LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
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LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE CENTRO DE HUMANIDADES UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E ENSINO LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: narrativas como caminho para a fruição Núbia Verônica Ferreira Avelino CAMPINA GRANDE MARÇO DE 2012 NÚBIA VERÔNICA FERREIRA AVELINO LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: narrativas como caminho para fruição Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal de Campina Grande, como pré-requisito para a obtenção do grau de Mestre em Linguagem e Ensino. Orientadora: Profª. Drª. Josilene Pinheiro-Mariz CAMPINA GRANDE MARÇO DE 2012 FOLHA DE APROVAÇÃO ________________________________ Profª. Drª, Josilene Pinheiro-Mariz Orientadora (UFCG) ________________________________ Profa. Dra. Maria Lúcia Pessoa Sampaio Examinadora Externa (UERN) ________________________________ Profa. Dra. Naelza de Araújo Wanderley Examinadora Interna (UFCG) ________________________________ Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves Examinador Interno (UFCG) Suplente Ao meu esposo Dori, aos meus filhos Zaarac e Maithê, a todas as crianças que passaram por mim e a amiga Mírian (in memória). Vocês me ensinaram muito, do pouco que aprendi e fazem o melhor da minha história. A vocês, dedico essa conquista. AGRADECIMENTOS Ao Trino Deus, a quem devo toda a minha gratidão, honra e louvor; Aos sujeitos da pesquisa, crianças e adultos, que nos receberam com disponibilidade; Aos meus pais Nelyta e Nino (in memória). Mainha, que me apresentou aos pássaros e aos livros, e Painho, contador de histórias, que nos doou seu bom humor; À minha orientadora, Prof. Drª Josilene Pinheiro-Mariz, Josi, exemplo de dedicação e compromisso com o ensino e com a pesquisa. Muito obrigada por sua compreensão e generosidade nos momentos mais difíceis; Aos meus familiares e amigos que torceram, por essa conquista. Entre esses gostaria de destacar alguns: Albanita Guerra (prof. na graduação) pelo acesso ao seu acervo literário, ao casal Aninha e Beguinha, pelos conselhos indispensáveis, as colegas do curso, a Prof Drª Eliane Lisboa, Eli, amiga preciosa, confidente e querida, alguém com quem também aprendi a contar histórias, a Graça, amiga de todas as horas, ao Prof. Dr José Helder Pinheiro Alves, alguém que tem o dom de ensinar no corredor, na cantina, na fila do banco, e faz da sua sala de aula um espaço de conversas agradáveis e produtivas, pois aprendeu a fazer da vida poesia e da poesia coisa séria; ao meu cunhado Maurício, constante torcedor, à Profª. Drª. Maria Lúcia Pessoa Sampaio e à Profª. Drª. Naelza Araújo Wanderley, pelas leituras atenciosas e sugestões preciosas; a minha irmã Norma, por suas orações; A Prefeitura Municipal de Campina Grande pela licença concedida; A Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/CAPES, pelos cinco meses de bolsa na fase de conclusão desta pesquisa. A cada um de vocês minha sincera gratidão. Aos professores, fica o convite para que não descuidem de sua missão de educar, nem desanimem diante dos desafios, nem deixem de educar as pessoas para serem “águias” e não apenas “galinhas”. Pois, se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela, tampouco, a sociedade muda. Paulo Freire vii RESUMO AVELINO, Núbia Verônica Ferreira. Leitura literária na educação infantil: narrativas como caminho para fruição. 2012. 133 f. (149 f.) Dissertação (Mestrado) – Unidade Acadêmica de Letras, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2012. Ao longo dos últimos anos, acompanhamos significativas mudanças em nossas creches, como o ingresso para o magistério via concurso público ou cursos de formação continuada; mas, estamos ainda engatinhando no que se refere ao trabalho pedagógico quanto à leitura literária. Nesse contexto, parecem predominar concepções e práticas que reservam à literatura um papel equivocado, sendo apenas um instrumento de aperfeiçoamento linguístico e modelador de comportamentos (BRAGATTO, 1995). Ao contrário das práticas de “ler” com o objetivo de ensinar letras, palavras, conteúdos curriculares e morais, tão presentes na Educação Infantil, o que desafia e encanta as crianças é a necessidade de se expressar, de usar a linguagem de forma livre e inusitada. Assim, ancorados nos pensamentos de autores como Lajolo e Zilberman (1984); Pennac,(1994); Campos, (1999); Cosson, (2006); Pinheiro (2007) queremos nos aperfeiçoar na tarefa de Sherazade, não para aquietar os pequenos, mas, para fazê-los expressar suas fantasias e sonhos. Portanto, o objetivo central deste trabalho diz respeito a uma abordagem da leitura de narrativas literárias como um caminho para a fruição proporcionada por esse gênero, desde que essa narrativa seja feita conforme propõe Benjamin (2010). O presente estudo configura-se como uma pesquisa qualitativa descritiva e explicativa (RODRIGUES, 2006), visto que visa a compreender o fenômeno estudado como base na descrição, análise e interpretação dos sentidos que adquire no ambiente social em que se manifesta. Caracteriza-se também como pesquisa-ação, uma vez que houve intervenção direta da pesquisadora, com o fim de proporcionar mudança no ambiente da sala de aula. Participaram desta pesquisa, dez crianças entre cinco e seis anos de idade e também uma professora de uma creche pública da cidade de Campina Grande. A coleta dos dados foi feita a partir de sequências didáticas que nos apontaram os principais resultados, sendo estes oriundos das produções pictográficas das crianças. Tais dados sinalizam para uma necessidade de se estabelecer um ambiente favorável para que a leitura-fruição ocorra de modo natural. Para isso, é preciso que o professor-educador torne-se um narrador artesão, que estimule a criança a adentrar no universo imaginário, levando-a a fruição. Palavras-chave: Leitura. Narrativa. Fruição. Educação Infantil. viii RÉSUMÉ AVELINO, Núbia Verônica Ferreira. Lecture littéraire dans l'éducation infantine: récits comme un chemin pour le plaisir. 2012. 133 f. (149 f.) Mémorie (Master 2) – Unité Acadêmique de Lettres. Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2012. Au cours des dernières années, nous avons accompagné des changements importants dans nos crèches, telle l'entrée dans le métier d’instituteurs par des concours publics ou par des cours de formation continue, mais nous sommes encore à ces balbutiements en ce qui concerne soit le travail pédagogique, soit sur la lecture littéraire. Dans ce contexte, il semble prédominer les concepts et les pratiques qui permettent de préserver à la littérature un rôle équivoque étant, ainsi, juste un simple instrument de perfectionnement linguistiques et d’amélioration des comportements (BRAGATTO, 1995). Contrairement à des pratiques de la «lecture» ayant l'objectif d'enseigner des codes, des mots, des contenus du curriculum et ceux de la moralité concernant l'Education Enfantine, ce qui défie et provoque l’enchantement des enfants, c’est le besoin de s'exprimer et d'utiliser le langage de manière libre et insolite. Ainsi, ancré sur les pensées de Lajolo et Zilberman (1984); Pennac, (1994), Campos (1999) et Cosson, (2006), Pinheiro (2007), nous aimerions bien retoucher le métier de Shéhérazade, de ne pas taire les petits ; mais de leurs faire exprimer ses fantaisies et ses rêves. Par conséquent, l'objectif central de ce travail concerne une approche de la lecture des récits littéraires comme un moyen spécial pour le plaisir du texte, surtout, considérant que ce récit soit fait tel que la proposition de Benjamin (2010). La présente étude se présente comme une recherche descriptive et explicative qualitative (RODRIGUES, 2006), car elle cherche à comprendre le phénomène étudié en tant que base pour la description, l'analyse et l'interprétation des sens qu'il acquiert dans l'environnement social dans lequel il se manifeste. Elle est également caractérisée comme une recherche-action, car il y a eu une intervention directe de la chercheuse, afin de produire des changements dans l'environnement de la classe. Dix enfants de l’âge entre cinq et six ans et une institutrice d’une école maternelle publique de la ville de Campina Grande ont participé de cette étude. Les données ont été recueillies à partir des séquences didactiques que nous ont montrées les principaux résultats, qui sont issus de productions pictographiques des enfants. Ces points des données indiquent une revendication d’établir un environnement favorable pour que le plaisir de la lecture, se produise d’une façon naturelle. Pour aboutir cet objectif, il est nécessaire que l'enseignant-éducateur devienne un narrateur artisan, celui qui encourage l'enfant à entrer dans le monde imaginaire, permettant la fruition de l’imaginaire. Mots-clés: Lecture. Narrative. Plaisir. Éducation Enfantine. ix LISTA DE FIGURAS Figura 1 Capa do livro Contos de Perrault 60 Figura 2 Capa do livro A última árvore do mundo 60 Figura 3 Capa do livro A margarida friorenta 60 Figura 4 Capa do livro Girafas não sabem dançar 60 Figura 5 Capa do livro O almoço. 61 Figura 6 Capa do livro Menina bonita do laço de fita. 61 Figura 7 Capa do livro Pinote, o fracote e Janjão, o fortão 62 Figura 8 Capa do livro Maria vai com as outras 62 Figura 9 Quadro lido pelos sujeitos da pesquisa piloto 71 Figura 10 Ilustração de Verônica sobre a história Chapeuzinho vermelho 87 Figura 11 Ilustração de Renato sobre a história de chapeuzinho Vermelho 87 Figura 12 Desenho de Carla sobre a narrativa Chapeuzinho Vermelho 88 Figura 13 Desenho de Alan da narrativa Chapeuzinho Vermelho (frente) 89 Figura 14 Desenho de Alan da narrativa Chapeuzinho Vermelho (verso) 89 Figura 15 Acácia, uma das árvores da creche 94 Figura 16 Pé de castanhola, a que nos abrigou para uma das leitura/contação. 95 Figura 17 Foto de um dos momentos de leitura/ contação 97 Figura 18 Foto de interação durante a leitura/ contação 99 Figura 19 Ilustração de Carla sobre a história da árvore 103 Figura 20 Ilustração de Renato sobre a história da árvore 103 Figura 21 Desenho da árvore de Nilton 104 Figura 22 A árvore de Pedro 104 Figura 23 Desenho d'A Margarida de Carla 109 Figura 24 Frente desenho de Jonh 110 Figura 25 Verso desenho de Jonh 110 Figura 26 Desenho de Gabriela da Margarida 111 x LISTA DE SIGLAS EI Educação Infantil LDB Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional LI Literatura Infantil PMCG Prefeitura Municipal de Campina Grande PET Programa de Erradicação do Trabalho Infantil SEDUC Secretaria de Educação Cultura e Desporto xi SUMÁRIO RESUMO ___________________________________________________________________ vii RÉSUMÉ ___________________________________________________________________ viii INTRODUÇÃO _______________________________________________________________ 13 1. NOÇÃO MODERNA DE INFÂNCIA ______________________________________________ 19 1.1 A importância da criança na sociedade medieval ________________________________________ 20 1.2 A criança na arte e na religião ________________________________________________________ 21 1.3 Sobre a aquisição da linguagem ______________________________________________________ 23 1.4 O surgimento da escola privada e a mudança na escola pública _____________________________ 26 1.5 Costumes e brincadeiras infantis _____________________________________________________ 28 1.6 A sexualidade infantil ______________________________________________________________ 31 2. A CONTRIBUIÇÃO DE CHARLES PERRAULT PARA A LITERATURA INFANTIL OCIDENTAL ____ 34 2.1. Primórdios da literatura infantil ______________________________________________________ 34 2.2. A literatura infantil no Brasil ________________________________________________________ 36 2.3. A presença de Perrault na literatura infantil do ocidente __________________________________ 38 2.4 A Bela adormecida, uma leitura indispensável na formação humana ________________________ 39 3. NARRATIVA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL _________________________________ 43 3.1 A narrativa, um gênero literário ______________________________________________________ 43 3.2 Narrativas infantis com função pedagógica _____________________________________________ 47 3.3 Narrativas na sala de aula ___________________________________________________________ 49 4. CAMINHOS METODOLÓGICOS PERCORRIDOS ____________________________________ 54 4.1 Caracterização da Pesquisa __________________________________________________________ 54 4.2 Estratégias metodológicas, técnicas e instrumentos de coleta de dados ______________________ 55 4.3 Perfil dos sujeitos __________________________________________________________________ 62 4.4 Pesquisa piloto ____________________________________________________________________ 64 4.4.1 Sujeitos participantes da pesquisa-piloto _____________________________________________ 64 4.4.2 Coleta dos dados da pesquisa-piloto _________________________________________________ 66 4.4.3 A leitura com objetivos didáticos na pesquisa-piloto ____________________________________ 66 4.4.4 O maribondo zangado e a letra do nome _____________________________________________ 68 4.4.5 Uma proposta de leitura fruição ____________________________________________________ 70 xii 5. ENTRANDO NAS HISTÓRIAS... LEITURAS-FRUIÇÃO E BRINCADEIRAS __________________ 76 5. 1 Chapeuzinho Vermelho: negação, recusa ou catarse? ____________________________________ 81 5.2 A última árvore do mundo: consciência ecológica ________________________________________ 93 5.3 A Margarida friorenta: aquecendo os afetos ___________________________________________ 106 5.4 As Girafas não sabem dançar, mas nós sabemos e podemos! _____________________________ 113 5.5. Outras histórias: continuação... _____________________________________________________ 117 CONSIDERAÇÕES FINAIS ______________________________________________________ 120 REFERÊNCIAS ______________________________________________________________ 124 APÊNDICES ________________________________________________________________ 128 APÊNDICE 1: SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS ___________________________________________ 129 1. Sequência Didática para a abordagem em sala de aula do conto Chapeuzinho vermelho _ 129 2. Sequência Didática para a abordagem em sala de aula da narrativa A última árvore do mundo ___________________________________________________________________ 131 3. Sequência Didática para a abordagem em sala de aula da narrativa A margarida friorenta 133 4. Sequência Didática para a abordagem em sala de aula da narrativa Girafas não sabem dançar____________________________________________________________________ 135 APÊNDICE 2: ENTREVISTA COM AS CRIANÇAS SUJEITOS DA PESQUISA _________________ 137 Entrevista com as Crianças do Pré-II ____________________________________________ 137 APÊNDICE 3: QUESTIONÁRIO APLICADO COM PROFESSORAS DO PRÉ-II ________________ 138 ANEXOS __________________________________________________________________ 139 ANEXO 1: Respostas aos questionários e entrevistas _______________________________ 139 ANEXO 2: Transcrição das entrevistas com as crianças ______________________________ 143 13 INTRODUÇÃO Desde o seu surgimento, a literatura apresenta uma natureza dupla e controversa, caracterizada tanto por sua dimensão artística, quanto pelo fato de constituir um produto de consumo, ou seja, uma mercadoria de uma sociedade em processo de industrialização. Segundo Lajolo e Zilberman, (2009), o advento da literatura infantil ocorre simultaneamente ao surgimento da escolaridade obrigatória e à consolidação de um modelo de família burguesa. Assim, a família e a escola burguesas se apropriaram da literatura como um importante instrumento de alfabetização, bem como de formação dos comportamentos e valores que passavam a ser exigidos pelo novo modelo de organização do trabalho e da sociedade. É sabido que as primeiras histórias conhecidas como infantis tais como as dos escritores franceses do século XVII, Charles Perrault e Jean de La Fontaine, não eram exatamente textos para crianças, pois as discussões sociais subjacentes a esses escritos lhes eram tão próprias que às crianças cabia a parte superficial das histórias. Aos adultos, aqueles que liam os textos, competia a análise e a recepção da mensagem inerente às histórias. No caso de La Fontaine, sabe-se que ele tomou como empréstimo o gênero fábula do grego Esopo e do latino Fedro, autores clássicos da literatura. Nessa perspectiva, a obra de La Fontaine apresenta personagens como animais com discursos provocadores e falas inteligentes. Um exemplo desse afloramento discursivo em personagens não humanas é a relação de poder encontrada na fábula O lobo e o cordeiro quando o lobo chega à fonte para tomar água e se julga o dono daquele espaço, simplesmente, pelo fato de ser mais forte. 14 Por um lado, as muitas narrativas com presenças de animais estimulavam o mundo encantado da criança, bem como as suas representações e seus desejos de dar fala a animais e vida a seres inanimados. Por outro lado, as lições, normas e valores morais também estavam implícitos nesses referidos textos, aparentemente, para crianças. Essas características podem justificar a necessidade, ainda atualmente, de se utilizar a literatura direcionada às crianças apenas para fins didáticos. Não se pode esquecer que a França vivia sob o reino do Rei Sol que, com seu poder absoluto, tomava todas as decisões, não deixando para o povo sequer a possibilidade de escolha; é nesse mesmo contexto, portanto, que Perrault reúne seus contos, oriundos de uma tradição oral, sob o título Contos da mãe Gansa. Essa coletânea agrupa histórias também endereçadas, em princípio, às crianças, mas com uma carga de valores morais muito acima do que se imagina que os pequenos poderiam compreender. Considerando-se esses dados históricos da literatura universal, pode-se dizer que a partir desses fatos instaurou-se uma ambiguidade no que se refere ao papel da literatura na formação do jovem aprendiz. Se, por um lado, a literatura oferecida às crianças passou a ser usada com um fim pedagógico, por outro, enquanto obra artística, é necessário que ela seja vista como arte que “desmascara sua postura doutrinária e a decisão por educar” (LAJOLO e ZILBERMAN, op. cit., p. 20). Essa dupla natureza estética e pragmática se faz presente tanto no nível da produção da literatura vista como elemento importante do mercado editorial, quanto como objeto de consumo no que concerne aos usos que dela são feitos no contexto escolar, em especial no nosso contexto de pesquisa. No que diz respeito ao texto narrativo, especificamente, desde a antiguidade este tem a finalidade de informar, divertir e convencer. Segundo Marmontel (1997) “o dever daquele que narra é instruir e persuadir” (apud ADAM; REVAZ, 1997, p.105). 15 Porém, a finalidade recreativa se sobrepõe às demais. E isso é percebido nos textos desses dois clássicos da literatura francesa: Perrault e La Fontaine O pensamento de Marmontel (op. cit.) é bem conveniente para conceituar narrativa naquela época (século XVIII). Já para os nossos dias, talvez seja mais conveniente pensar na narrativa, especialmente a narrativa para crianças, como um jogo ficcional que convida o leitor/ouvinte a, “como em um caso policial [...] reconstituir os antecedentes dos fatos e prever seu desfecho” (AMARILHA, 1997, p. 20). Quando uma criança consegue realizar tais ações, o prazer ultrapassa a simples gratificação da inferência correspondida, mostrando-lhes que as estruturas organizadas em narrativas são construtoras de sentido. Por essas razões, entendemos que o trabalho com a leitura de narrativas, além de ensinar, promove desenvolvimento sociocultural e intelectual, na medida em que estimula a formação do leitor. Vemos esta pesquisa, portanto, como de grande relevância para as discussões e para o estudo das práticas de leituras de crianças, sobretudo, as que são ainda bem pequenas e as da escola pública. Levamos em consideração que deveria ser essa escola o principal ambiente na sociedade a privilegiar a leitura literária como forma de democratização do conhecimento e da arte. Isto se dá por que, nesse caso particular, a maioria dos alunos que a frequentam é oriunda de famílias menos favorecidas economicamente e, em geral, tem menos acesso a bens como a arte literária, fora da escola. Entretanto, ao reconhecermos a importância da leitura de narrativas, desde a Educação Infantil (doravante EI), para a formação do leitor, não estamos defendendo sua abordagem apenas para o ensino de normas e valores morais. Acreditamos que esse tipo de prática conduz à produção do efeito oposto ao esperado pelos escritores das obras de narrativas para crianças. É diante dessas considerações que este trabalho reflete essa inquietação e, por isso, descreve e analisa algumas práticas de leitura de narrativas na EI da rede 16 pública municipal de ensino na cidade de Campina Grande. Por meio da descrição de situações observadas e/ou vivenciadas em uma sala de aula, analisamos exemplos de dois tipos de práticas: a que faz da leitura de narrativas um pretexto para ensinar conteúdos, comportamentos e normas e a que considera tais textos como uma forma de expressão artística na formação do gosto de ler. Diante dessas considerações, o nosso objetivo principal era o de investigar as práticas de abordagem da leitura de narrativas em uma turma do Pré II da rede municipal de Campina Grande-PB e nos propomos a discutir, nesta dissertação, aspectos que consideramos importantes para a formação integral da criança desde a EI, atendendo, desse modo, a uma exigência da LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). Sob o nosso ponto de vista, a leitura literária é um dos caminhos mais eficazes para se favorecer essa formação completa, uma vez que, enquanto expressão artística ela pode despertar o prazer pela leitura, já que instiga o imaginário, promovendo o gosto por ler. Para chegarmos à discussão dos dados, iniciamos as nossas reflexões com a apresentação do contexto histórico de surgimento da literatura infantil, destacando o papel da criança na sociedade em várias épocas da humanidade e, nesse contexto, discutimos a noção de infância. Em seguida, ponderamos a respeito da narrativa, enquanto grande gênero da literatura e colocamos em destaque as narrativas para crianças com toda a carga histórica de peso didático. Para isso precisamos descrever e analisar as práticas de leituras de narrativas literárias realizadas na Educação Infantil, identificar em que contexto e com que objetivos essas práticas aconteciam e se contribuem para uma adequada abordagem de obras literárias para crianças na Educação Infantil bem como refletir sobre alternativas metodológicas de abordagens de narrativas literárias para as crianças nessa fase de escolarização. 17 Em continuação, passamos à descrição dos aspectos metodológicos relacionados às práticas de leitura descritas e discutidas neste trabalho. Ao final desse capítulo, apresentamos uma pesquisa-piloto realizada com um grupo semelhante ao da pesquisa-ação que fundamentou esta dissertação. Essa pesquisa-piloto foi indispensável para a avaliação dos elementos escolhidos para a execução dos procedimentos metodológicos. Por fim, descrevemos analiticamente, exemplos de práticas de leitura que tinham objetivos claramente pedagógicos, observados ao longo de nossas notas de campo, nas aulas da EI. Em seguida, tratamos de eventos de nossa própria experiência profissional, etapa caracterizada como a pesquisa-ação, nos quais as narrativas infantis foram abordadas com o objetivo de compartilhar a beleza e o encanto das histórias. Finalmente, tecemos breves considerações, a partir dos dados obtidos nas produções do grupo, sobre como tais exemplos de prática de leitura podem contribuir, tanto quanto se almeja, para a formação desses indivíduos como jovens leitores. Assim, buscamos não apenas mostrar uma realidade e discuti-la. Buscamos, de modo muito especial, apresentar caminhos possíveis de leitura e contação de narrativas infantis com fins lúdicos; isto é, uma proposta de leitura literária ou um letramento literário na EI que ensine valores morais também, mas não fundamentalmente, uma vez que acreditamos que o imaginário infantil é tão intenso que, se estimulado, pode de maneira muito natural favorecer a formação integral da criança desde a primeira infância. 18 CAPÍTULO I SOBRE A NOÇÃO MODERNA DE INFÂNCIA O sentimento de família, o sentimento de classe e talvez, em outra área, o sentimento de raça surgem portanto como as manifestações da mesma intolerância diante da diversidade, de uma mesma preocupação de uniformidade. Philippe Ariès 19 1. NOÇÃO MODERNA DE INFÂNCIA Neste capítulo, discutiremos a noção moderna de infância a partir dos estudos feitos por Philippe Ariès (1914-1984). Esse autor ao pesquisar a iconografia na Europa, descobriu que até meados do século XVII, a arte negava a morfologia infantil e as crianças eram esculpidas ou pintadas com características de adultos, com músculos definidos. Os artistas da época diferenciavam um menino de um homem retratando o primeiro em menor estatura que o último, e na tentativa de se retratar crianças, ilustrava-se anões. Essa visão sobre a infância comprovava a falta de conhecimento que havia nos adultos sobre as peculiaridades dessa fase humana. Ao livrar-se das dependências físicas mais primitivas, as crianças passavam a conviver com os adultos como se fossem um deles, participando de todas as atividades, inclusive dos trabalhos e das guerras. O infanticídio era tolerado, pois muitas crianças morriam por falta de cuidados básicos ou de proteção, e não era raro se ter notícia de crianças mortas, sufocadas pelos pais durante a noite, quando esses adormeciam sobre os infantes, ou ainda afogadas na pia batismal durante a cerimônia do batismo. Foi por volta do final do século XVII que surgiu o sentimento que Ariès nomeou de paparicação. O autor percebeu nesse sentimento um indício de reconhecimento das especificidades das crianças e da necessidade de um tratamento diferenciado. A partir desse novo sentimento, o lugar da criança na família e na sociedade começou a mudar. Neste capítulo, faz-se necessário esclarecer o porquê de, durante muitos séculos, a literatura ter servido apenas para repassar valores, deixando-se de lado a espontaneidade característica dessa fase, enfatizando-se os valores pedagógicos em relação à arte literária. 20 1.1 A importância da criança na sociedade medieval Observando a história anterior ao século XVII e comparando a atenção dada à criança atualmente, podemos ver que a criança, hoje, recebe muita atenção por parte do Estado e de instituições educativas privadas e, principalmente, por parte da família. Entretanto, não foi sempre assim. Segundo os estudos do historiador francês Philippe Ariès (2011), a importância da identidade infantil (registro de nome e nascimento), por exemplo, ganharam relevância só a partir do século XVI, e ocorreram concomitantemente à epigrafia familiar, quando as famílias passaram a fazer inscrições em objetos, utensílios, móveis e fotos. Dessa forma, junto com os pertences da família, os recém nascidos começaram também a receber seus nomes. Todavia, nas fotos, em família, apenas os adultos eram identificados, não apareciam inscrições que identificassem as crianças. Foi com esse avanço, em relação à identificação dos recém nascidos, que no século XVII a criança morta também começou a ser retratada. Até então, só os adultos tinham seus túmulos adornados com suas fotos. O corpo de uma criança batizada era enterrado no túmulo da família, mas, sem nenhuma identificação (foto ou inscrição), enquanto a criança pagã era sepultada no jardim de casa, semelhantemente, aos animais domésticos. Inicialmente, as fotos das crianças mortas não apareciam sozinhas nos túmulos e sim ladeando os adultos, geralmente seus pais ou professores. Com o advento da identidade das crianças pequenas, começou a se formar um sentimento diferente em relação à infância. Nas pinturas em que apareciam esses pequenos, eram retratados como adultos com menor estatura, com aparência de anão como dissemos antes, já que eram vistos, exatamente, assim. "Na arte medieval francesa, a alma era representada por uma criancinha nua e em geral assexuada." (ARIÈS, op. cit., p.19). 21 Essa visão da criança como um ser anti-humano delegava a elas um lugar inferiorizado no qual ainda não eram consideradas pessoas, mas, seres anteriores, uma espécie de vir a ser, que se tornariam 'gente' quando alcançassem a idade adulta ou pelo menos quando se aproximassem dela. Talvez tenha sido essa visão que deu origem a algumas expressões para referir-se à criança como um ser inferior, como “só quer ser gente”, empregada quando uma criança contra-argumenta com um adulto, por exemplo. Ainda hoje, em alguns lugares, como na savana africana, a vida curta das crianças é vista como algo natural e as suas mortes sem grandes sofrimentos. Essas crianças que nascem em famílias com pouca esperança e expectativa de vida, têm seus óbitos assistidos como inevitáveis. No século XVI e até meados do XVII, isso era comum não apenas nas famílias pobres. E os sepultamentos delas causavam uma tristeza semelhante à de se enterrar um animal que vivia em seu quintal. 1.2 A criança na arte e na religião A partir do século XVI, a nudez infantil passou a ser muito solicitada como motivo na arte decorativa, incluindo-se a do menino Jesus, e os chamados putti1 invadiram as pinturas em telas e nas tapeçarias. Entretanto, foi na arte barroca que as crianças foram retratadas com mais dinamismo; brincando, lendo e em grupos. A arte, através de pinturas, apresentava idades definidas em degraus: primeiro, na idade dos brinquedos, os meninos eram retratados brincando com cavalos de pau, bonecas2 etc. Na idade da escola, eles eram pintados aprendendo a ler e segurando livros e estojos, enquanto as meninas apareciam aprendendo a fiar. As outras idades eram: as idades do amor ou dos esportes, depois as idades da guerra e da cavalaria 1 2 Putto (putti, no plural) termo artístico para referir-se a criança nua, geralmente do sexo masculino e comumente com asas. Como os meninos tinham direito a brincar, eles também brincavam com as bonecas que foram criadas para servir de modelo na escolha das roupas dos nobres. 22 e, finalmente, as idades sedentárias (velhice). A velhice era reconhecida como "a idade do recolhimento, dos livros, da devoção e da caduquice". Segundo o historiador: "As idades não correspondiam apenas a etapas biológicas, mas à funções sociais" (ARRIÈS, op.cit., p. 9 ss). Os garotos eram estimulados para as artes, nos primeiros anos de vida, principalmente à música e participavam de concertos de câmaras, às vezes, aos cinco anos de idade, a exemplo de Amadeu Mozart. Os jogos verbais com rimas e versos também eram feitos com a participação, especialmente, deles, que compartilhavam nos saraus o que aprendiam a respeito dessa arte. O ensino religioso também era iniciado cedo e a partir dos dois anos de idade, as crianças eram convocadas a assumirem as orações nas reuniões de famílias, antes das refeições e em rituais de festas sacras. Geralmente, os pais católicos estimulavam seus filhos a devotarem-se a algum santo para protegê-los, além do anjo da guarda. A transformação do sentimento relacionado à infância se deu também por essa relação de afinidade que se criou da criança com a religião. Antes, a criança era considerada apenas como imperfeita e até irritante, mas, passiveis de modelagem pela educação e religião, como podemos observar na afirmação seguinte. Se considerarmos o exterior das crianças, feito apenas de imperfeição e fraqueza, tanto no corpo como no espírito, é certo que não teremos motivos para lhes ter grande estima. Mas se olharmos o futuro e agirmos sob a inspiração da Fé, mudaremos de opinião. (COUSTEL, 1687, apud ARIÈS, 2011). Como vemos, as crianças adquiriram certo status com a religião e a devoção dos adultos, que passaram a retratá-las em pinturas com um anjo da guarda por detrás. Essa imagem, do anjo da guarda, foi bastante difundida e geralmente nas casas em que não havia obras de arte que o retratasse, havia réplicas de quadros ou calendários com essa imagem, costume que perdurou até meados do século passado. Surgiu aí um maior interesse pela infância, e as famílias passaram a apresentar seus recém-nascidos, orgulhosamente. Foi nesse período que se iniciou a 23 canonização de crianças, antes impensada. Também, nessa época, a primeira comunhão tornou-se a festa da infância mais importante, acontecendo após vários meses de preparação e catequese, culminando com uma grande comemoração em família. Essa nova visão originou a iniciativa da criação dos Jardins da infância, hoje conhecidos como EI, onde as crianças pequenas recebiam atenção e cuidados redobrados. Nessa fase de escolarização, as orações eram feitas, no mínimo, duas vezes por dia nas escolas e sempre tematizavam a santidade infantil. A literatura cita trecho do evangelho de João em que Jesus Cristo se porta com respeito e admiração pelas crianças. A partir dessas transformações a criança passou a ocupar um lugar de destaque na família e de maior importância na sociedade, além de receber atendimento escolar nos jardins de infância, que passou a ser obrigatório no século passado. 1.3 Sobre a aquisição da linguagem No que concerne à aquisição da linguagem, os jogos verbais e as rimas serviam como exercícios orais que distraiam e estimulavam o desenvolvimento do vocabulário e do conhecimento da metalinguagem nas crianças. No contexto de mudança sobre a visão da infância, os adultos também passaram a se interessar em registrar as expressões das crianças e o vocabulário das amas nos momentos de cuidado ou de vigilância. Esse tipo de episódio marcou um momento importante, por revelar o grande valor que se passou a atribuir ao vocabulário infantil e, consequentemente, à aquisição da linguagem. Uma fração desse processo pode ser notada na Divina Comédia exposto no seguinte texto: "Que glória terás tu a mais se deixares uma carne envelhecida, do que 24 se tivesse morrido antes de parar de dizer pappo3 e dindi, antes que mil anos se passassem." (DANTE, 2003, p. 189). Ainda em relação à aquisição da linguagem outros autores, como Agamben (2001), afirma que: Por isso, um adulto não pode aprender a falar; foram crianças e não adultos os que acessaram pela primeira vez a linguagem e, apesar dos quarenta milênios da espécie homo sapiens, a mais humana de suas características, precisamente - a aprendizagem da linguagem permaneceu tenazmente ligada a uma condição infantil e a uma exterioridade: quem acredita num destino específico não pode verdadeiramente falar. (AGAMBEN, op. cit., p. 79-80) Diversos trabalhos contemporâneos sugerem outros conceitos e outros lugares para a infância. Dentre eles, o do estudioso citado anteriormente, que mostra como a infância é, antes de uma etapa, uma condição da experiência humana. A infância é tanto ausência quanto busca de linguagem; só um infante se constitui em sujeito da linguagem e é na infância que se dá essa descontinuidade especificamente humana entre o dado e o adquirido, entre a natureza e a cultura. (AGABEN, op. cit.). O ser humano é o único animal que aprende a falar e não poderia fazê-lo sem infância. Notemos, portanto, que a infância não é apenas uma questão cronológica, mas, uma condição da experiência humana. O próximo excerto também sugere que o próprio da infância não é ser apenas uma etapa, uma "fase numerável ou quantificável da vida humana, mas um reinado marcado por outra relação - intensiva - com o movimento. No reino infantil, considerado como o tempo, não há sucessão nem consecutividade, mas a intensidade da duração." (AGAMBEN, id.ibid., p. 5ss.). A noção moderna da infância se formou, no decorrer de alguns séculos, a partir de fatores como as práticas de vacinação e de higiene, que diminuíram a mortalidade infantil e, unidas às práticas de contracepção, contribuíram tanto para que uma nova visão em relação à infância, quanto para que outro sentimento referente à perda dos filhos se formasse. 3 Pão. A palavra existia no francês na época de Dante. 25 A adolescência também não era reconhecida e, até o século XVIII, essa fase era confundida com a infância ao ponto de rapazes de 15 e até 18 anos serem chamados de criança, enquanto as meninas, aos nove, já eram consideradas mulheres. Casavam-se aos 11 ou 12 anos e, em muitas vezes, aos 10 assumiam a cozinha, tinham como outras ocupações fiar, costurar, bordar. Os meninos, nessa faixa etária, brincavam com bonecas, cavalos de paus etc. Enquanto as meninas ajudavam nas tarefas domésticas e nas ocupações das mulheres adultas. As crianças participavam de todas as atividades dos adultos, das festas e de seus preparativos, dos martírios, das execuções etc. A ausência da adolescência também noticiava a reação em relação à duração da vida. Segundo o dicionário de Furetière (início do século XVIII) a palavra enfant era também um termo de amizade para cortejar as pessoas a quem queriam agradar ou de quem queriam conseguir algo; as palavras mon enfant, petit eram exemplos dessas saudações. Os termos utilizados para os soldados da primeira fila nas batalhas, aqueles que estavam mais expostos aos perigos, eram do tipo: "coragem, enfants, aguentem firme" e eram chamados pelo capitão de enfants perdus ou crianças perdidas. Outros cumprimentos como jeune infant, jeune fille, lyttle petties também eram empregados com objetivos semelhantes. Esses tratamentos revelavam que uma nova maneira de ver e se dirigir às crianças estavam sendo cultivados. A linguagem, portanto, teve um papel importante para que essa nova visão a respeito da criança se formasse. (idem, p. 12) Quanto à relação de gênero, apenas no século XVIII, a menina passou a ser vista como diferente da mulher, fato que ocorreu anos depois de os meninos terem sido distinguidos dos homens; a escolaridade feminina só foi iniciada dois séculos após a dos garotos. Esse acontecimento, talvez, tenha persistido até recentemente, 26 quando, em algumas famílias, se cobrava que as filhas assumissem, sem a ajuda dos irmãos, os afazeres domésticos. Um aspecto curioso relacionado às crianças era a vestimenta: os trajes dos meninos eram muito femininos e aos cinco anos era quase impossível se fazer a distinção do sexo da criança pela aparência da roupa, já que eles também usavam cabelos compridos e, geralmente, penteados cacheados; ambos, meninos e meninas, usavam vestidos e só a partir dos seis anos os garotos passavam a usar calças curtas, pois as calças compridas só eram permitidas aos 15 anos e, em algumas famílias, nas mais tradicionais, só aos 18. Mesmo se livrando das roupas afeminadas durante o dia, ainda dormiam de camisolas. No período pós-guerra, os uniformes passaram a ser muito utilizados nos meninos e existiam basicamente três: militares, geralmente de marinheiro, o de camponês e macacões típico dos operários, estes últimos mais utilizados pelos garotos italianos. Essa nova forma de vestir os meninos passou a diferenciá-los das meninas, livrando-os dos vestidos compridos e das toucas com babados, bicos e bordados. Todavia, as garotinhas já eram trajadas como senhoras; com vestidos longos e aventais, roupas apropriadas para seus afazeres. 1.5 O surgimento da escola privada e a mudança na escola pública A escola da época era pública e em regime de internato. Mesmo assim, alguns filhos de populares entravam como bolsistas. Mais tarde os nobres consideraram inconveniente que seus filhos convivessem com crianças de uma classe inferior e nesse contexto foram criadas as escolas particulares. Essa divisão das classes sociais, em diferentes escolas, pública e privada, gerou também um atendimento diferenciado para os filhos das famílias populares e dos das nobres e burguesas. 27 As instituições destinadas aos ricos continuaram sendo os ginásios e funcionavam em regime de internato, com uma proposta pedagógica definida, rígida em conteúdos curriculares e disciplina de comportamentos, aulas de línguas, etiqueta, música e outras artes como pintura, escultura etc. As destinadas aos filhos das classes populares eram os orfanatos ou abrigos. Inicialmente, os colégios funcionavam como asilos para pobres e tinham como maior preocupação o assistencialismo, alimentação, abrigo e uma educação sem grandes pretensões; a ideia era mantê-los saudáveis e educados, o suficiente para não se tornarem marginais. As artes, por exemplo, passaram a ser consideradas sem muita valia para as crianças e jovens pobres que deveriam se ocupar com algum ofício que lhe rendesse sobrevivência no futuro. Talvez tenha sido esse pensamento que incentivou a criação das escolas técnicas, reservando para os "bem nascidos" o ensino superior. As idades dos alunos tanto nos abrigos, quanto nos colégios só passaram a ter importância no século XIX; até então, as classes eram superlotadas, crianças, jovens e adultos de várias idades participavam das mesmas aulas e não havia nenhuma preocupação quanto a isso já que a noção de idade era indiferente. O século XIX ficou marcado pela divisão das classes escolares por idade, semelhante à que temos atualmente, e essa divisão iniciou da seguinte forma: professores em um mesmo ambiente atendiam a determinado grupo de educandos com idades semelhantes; em seguida, percebeu-se a necessidade de separá-los em ambientes diferentes; e, mais adiante, a de criar uma escola específica para as crianças menores, surgindo aí o atendimento que hoje chamamos de EI. No século XVII, os meninos ingressavam na escola aos sete anos, depois passaram a entrar com nove ou dez. Os garotos que iniciavam cedo repetiam de série mesmo que conseguissem acompanhar o ensino, para obedecer à divisão de classes por idade. Nesse período, houve também uma maior atenção em relação às 28 disciplinas que deveriam ser ensinadas às crianças e aos adolescentes, bem como uma maior preocupação com sua integridade física, tornando o professor o principal responsável por sua proteção. Porém, os castigos corporais eram aceitos e cabia também ao educador aplicá-los. As relações entre os membros das famílias se davam de maneira tímida e era costume enviar as crianças aos internatos ou às casas de conhecidos para serem educadas longe dos pais. Durante o tempo de ensinamento, lhes eram cobradas, desde cedo, habilidades de servirem a mesa, cortarem carnes, participarem ativamente das organizações das festas, que eram públicas e, comumente, elas ocupavam papéis essenciais nas reuniões sociais. Foi dessa época que surgiu na França a expressão garçon que designava ao mesmo tempo um rapazinho novo ou um servidor doméstico. Eram as crianças que serviam nas festas e em uma dessas, a Festa de Reis (dia 6 de janeiro), o bolo só deveria ser servido pelas crianças pequenas, que eram vistas como dignas dessa função, por serem consideradas puras. Outra festa bastante popular na Europa era o Carnaval que atravessou os oceanos tornando-se popular em nosso país. Mas com o passar do tempo, as festas à fantasia tornaram-se raras nos países europeus e apenas as crianças se fantasiavam; esse costume originou a festa de halloween que é hoje uma festa caracteristicamente infantil e muito cultivada nos Estados Unidos. 1.6 Costumes e brincadeiras infantis Até certo tempo, não havia brincadeiras específicas de criança. Elas participavam de brincadeiras como de jogos de azar, rinhas de galos; e, os adultos, de jogos que hoje são considerados infantis como lutas, jogos de bola etc. Quanto ao objeto brinquedo, da forma como o conhecemos hoje, há registro de que a rainha da 29 Itália, no Natal de 1604, recebeu de presente vários brinquedos, dentre eles, uma bola e quinquilharias para si e para o príncipe, seu filho. Na medida em que a distinção entre crianças e adultos se desenvolvia, o costume das brincadeiras comuns ia perdendo espaço e os adultos que brincavam com as crianças passaram a ser considerados tolos. Nesse período, os brinquedos tornaram-se objetos especificamente das crianças. Todavia, mulheres e meninas começaram a consumir bibelôs, tal como conhecemos hoje, e as lojas em Paris encheram-se deles para serem vendidos como presentes, ao ponto de na cidade inteira não haver uma só casa onde não existissem bibelôs pendurados nas lareiras. Ariès, p.43) Com a escolaridade, os jogos de azar passaram a ser reprovados pelos pedagogos e apenas as pessoas das classes populares, adultas e crianças, não eram desencorajadas a permaneceram com esse costume. No entanto, esses jogos eram proibidos aos alunos que frequentavam os ginásios independentemente de sua condição sócio-econômica. Já os jesuítas defendiam os jogos físicos, argumentando que neles existiam possibilidades educativas e o educador Fénelon criou regras para os ginásios, onde eram permitidos os jogos dirigidos pelos professores. Os exercícios físicos eram muito estimulados e esse pedagogo já se preocupava com a alegria dos educandos e defendia a necessidade de se movimentarem. Assim, os jogos mais ativos com mais exercícios passaram a ser defendidos por outros educadores. Com o passar do tempo, alguns desses jogos transformaram-se em brincadeiras de criança muito conhecidas até hoje, como cabra-cega, escondeesconde e, dentre esses, eram estimulados também os jogos verbais, do tipo passarinho voa. Um aspecto que nos chamou a atenção foi o fato de que quando havia jogos entre os adultos de classes sociais diferentes, os camponeses eram obrigados a perderem para os fidalgos. 30 Com a consolidação da ideia de infância, os pedagogos passaram a ver na literatura um caminho indispensável para doutrinar a criança. Dessa forma, a obra literária também ganhou atenção, e uma produção direcionada às crianças começou a ser lançada, entretanto, não havia uma especificidade voltada para o infante. As crianças, nesse período, recebiam as obras que lhes eram contadas através das suas amas, avós e mães. A prova disso são as ilustrações dos livros de Perrault e de outras obras da época, nas quais era possível ver, nas suas capas, a figura feminina contando histórias aos pequenos. Na segunda metade do século XVII, os contos de fadas passaram a ser vistos pelos adultos como muito simples, ingênuo. As fadas eram retratadas como senhoras sem grande valor, capazes de distrair apenas as amas e criadas e contos ditos "de fadas" foram, portanto, destinados às classes populares e às crianças e, ao serem descartados pelos ricos foram direcionados às crianças e aos pobres, assim como foi com os jogos e alguns brinquedos. Nessa época os contos ganharam uma finalidade pedagógica. Por isso, foi nesse momento que os contos de Perrault ganharam a estima das crianças, pois, a partir deles os adultos, mais especificamente as mulheres, passaram a dedicar mais tempo aos pequenos leitores/ouvintes. É provável que, nesse período, os contadores de histórias tenham encontrado um espaço muito especial nos lares, em frente às lareiras ou às fogueiras nas noites frias dos invernos europeus. Momento propício para o surgimento de uma literatura direcionada especificamente para as crianças, a qual, mais tarde, passou a ser vista como útil e divertida para elas e para as mulheres; mas, descartável para os homens/intelectuais, distanciando-a da literatura considerada erudita. Foi a partir dessa distinção que nasceu a literatura chamada infantil. Assim como a noção moderna de infância, costumes e brincadeiras, a reflexão em torno da literatura direcionada às crianças passou por mudanças significativas. Sabemos também que é nesse momento que a Literatura Infantil (LI) começa a sofrer 31 as principais transformações, ganhando delineamentos que vemos ainda nos dias de hoje. 1.7 A sexualidade infantil Um fato intrigante que hoje nos causa espanto era o tratamento da sexualidade infantil. A inocência era desconsiderada e as brincadeiras indecentes, como a manipulação dos órgãos genitais era muito comum, feitas e publicitadas sem que ninguém se chocasse; muito pelo contrário, eram consideradas pelos adultos, inclusive pelos próprios pais, brincadeiras muito engraçadas. O rei Luis XIII teve suas primeiras experiências sexuais quando criança, com as criadas, casando-se aos 14 anos e sua noite de núpcias foi na presença dos pais e de alguns criados e hóspedes que compartilhavam do mesmo aposento. Os dormitórios, geralmente, tinham quatro camas de casal, que ficavam uma em cada canto, onde dormiam criados, hóspedes e crianças, havendo apenas uma cortina separando-os. Logo, as crianças desse século que viam e ouviam as relações sexuais de adultos também eram muitas vezes abusadas. Vale ressaltar que o termo pedofilia era inexistente, sendo, uma prática vista como aceitável. Todo esse embaraço, no nosso ponto de vista, teve seu declínio com Gerson, (importante educador daquela época, segundo Philippe Ariès) estudioso do comportamento sexual da criança. Ele deu início a uma nova visão a respeito da inocência infantil, criando regras rígidas para serem aplicadas nos internatos, orfanatos e ginásios. Nessas normas havia a proibição de que os alunos compartilhassem da mesma cama ou ficassem sozinhos com o professor ou com um colega, proibia-se também que levantassem no meio da noite e que fossem tocados ou beijados; e, caso isso acontecesse, deveriam se confessar o mais rápido possível. 32 Até o início do século XIX, os livros de etiquetas e manuais de boas maneiras que eram dirigidos às crianças eram também sugeridos para pais e educadores. Nesses livros havia várias instruções como, por exemplo, deitar-se com decência, como comportar-se à mesa, ser modesto e pouco vaidoso, ser cordial com as pessoas, ler livros decentes, não ler comédias. Os pais e os educadores eram avisados da importância da vigilância constante. A criança francesa, por exemplo, era mais exigida do que as demais, sobretudo, se comparada às norte-americanas. Elas eram severamente cobradas tanto no que concerne à racionalidade, quanto à religiosidade, práticas consideradas essenciais para a boa educação dos homens, e tal educação deveria acontecer sob forte disciplina. (ARIÈS, idem, p. 80 ss). Talvez por isso, as famílias brasileiras abastadas tivessem, e têm até os dias atuais, os países da Europa como os mais adequados para a formação de seus filhos. Com a modernização da escolaridade e a adesão às novas regras de comportamentos para os educandos, a LI e juvenil sofreu uma nítida transformação em relação ao seu lugar e seu desígnio, ocupando um papel de auxiliadora dos educadores na função de doutrinar as crianças modelando seus comportamentos. E foi sob essa influencia que surgiu uma LI meramente pedagógica, bem diferente dos textos para os adultos. Os livros passaram a ser indicados, censurados e proibidos naquelas instituições de educação. A união entre Pedagogia, Religião e Nova Literatura surgiu com o objetivo de implantar a moral e os bons costumes. 33 CAPÍTULO II A CONTRIBUIÇÃO DE CHARLES PERRAULT PARA A LITERATURA INFANTIL OCIDENTAL Oh, devolvei, devolvemos os contos de fadas para as crianças, se mais exigentes do que La Fontaine, não formos bastante puros para voltarmos nós próprios a eles. P. J. Stahl (Les Contes de Perrault) 34 2. A CONTRIBUIÇÃO DE CHARLES PERRAULT PARA A LITERATURA INFANTIL OCIDENTAL Neste capítulo temos o objetivo de apresentar, mais detidamente, um panorama histórico, a respeito da influência do autor francês Charles Perrault para a LI ocidental, destacando-se a contribuição do seu conto A bela adormecida para o desenvolvimento emocional de crianças e de adolescentes. Para as nossas discussões, tomaremos como base alguns estudos de Cunha, (2003), Feijó, (2005), Bettelheim, (2008), Benjamim, (2010), dentre outros que destacam o quanto a leitura literária pode proporcionar o desenvolvimento emocional e cognitivo de crianças. Apresentaremos ainda um breve histórico do início da LI no nosso país e para finalizar, discutiremos de que maneira a presença de Charles Perrault foi marcante para a literatura ocidental e, em especial, no Brasil, onde, ainda hoje, os seus contos são lidos como novidade para leitores em qualquer idade. 2.1. Primórdios da literatura infantil A partir da visão moderna de infância, as características e necessidades infantis passaram a receber atenção, quando se começou a pensar também em uma literatura específica para a criança. Quem inicialmente assumiu essa produção literária foram os renomados pedagogos europeus, daí a estreita ligação da LI com a Pedagogia. Entre esses educadores podemos citar: Comenius, Basedow, Campe, Fénélon entre outros. (CUNHA, 2003). A LI nasce com objetivos específicos bem definidos, tais como disciplinar e instruir, isto é, com intenções fundamentalmente formativas e informativas, direcionada diferentemente para dois tipos de criança: 35 A criança da nobreza, orientada por preceptores, lia geralmente os clássicos, enquanto a criança das classes desprivilegiadas lia ou ouvia as histórias de cavalaria, de aventuras. As lendas e contos folclóricos formavam uma literatura de cordel de grande interesse das classes populares. (CUNHA, 2003, p. 23). Por essa razão, a LI ocidental recebeu grande contribuição de Charles Perrault, pioneiro em adaptar contos folclóricos em clássicos e, também, preocupado com a formação das crianças. O seu primeiro conto de fada publicado foi Pele de asno. Entretanto, além de Perrault, podemos citar também outros escritores que contribuíram para a LI, como: Andersen, Carrol, Esopo, irmãos Grimm, La Fontaine, este último contemporâneo de Perrault. (cf. RICHTER, 1997 apud ZILBERMAN, 2003). A primeira adaptação documentada que temos de Chapeuzinho Vermelho, data de 1697, registrada por Charles Perrault (direcionada às crianças) em sua coleção intitulada Contos dos tempos passados, com moralidade, título que sinaliza seu objetivo doutrinário. É relevante lembrar que o autor francês era frequentador dos salões da corte, espaço muito comum aos intelectuais da época e, inicialmente, suas narrativas não tinham as crianças com alvo, pois partilhavam dos mesmos espaços com os adultos e escutavam histórias direcionadas a eles. Perrault, porém, já percebia as necessidades infantis e no final do século XVII escreveu na referida coleção uma versão, com final trágico; mas, menos apavorante do que A História da Avó, que veremos a seguir. Originários da tradição oral do povo, os contos retratavam a vida difícil dos menos favorecidos e, por isso, nem sempre tinham um final feliz; porém, esses desfechos sofreram alterações nas adaptações dos Irmãos Grimm. O conto, Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, escrito por Perrault, foi provavelmente baseado em outro da tradição oral: A História da Avó, "nele, o lobo come a avó e oferece a Chapeuzinho um pouco de seu sangue e de sua carne." (CANTON, 2009, 36 p.17). Esse enredo foi considerado bastante assombroso para se narrar propositalmente às crianças. A maioria dos contos do autor francês atravessou os oceanos e se tornou mais conhecida nas versões dos irmãos alemães, que viraram os principais adaptadores de Perrault. Os Grimm (século XVIII e XIX) fizeram adaptações de contos folclóricos e por volta de 1812 publicaram a versão do conto Chapeuzinho Vermelho que se tornou a mais conhecida até os dias atuais, com uma trama mais leve e já direcionada intencionalmente para as crianças, com objetivos mais explícitos de doutrinar e moralizar seus comportamentos, segundo os padrões da sociedade vigente, seguindo preceitos religiosos baseados no catolicismo da época. 2.2. A literatura infantil no Brasil Segundo Coelho (2010), a literatura para crianças sempre esteve e está ligada à educação da época, isto é, ao sistema educacional em vigor, sofrendo influência do pensamento científico/teórico corrente. Em relação à educação aqui no Brasil, até meados do século XVI não havia grandes preocupações com ela nem com a cultura. Tal inquietação passou a ocorrer com os colonizadores após o "descobrimento" do Brasil e, por volta de 1549, com a intenção dos jesuítas de catequizar os nativos, iniciou-se a luta pela consolidação/implantação da civilização dos colonizadores. Esse processo teve início com Tomé de Souza, que foi o primeiro governador da nova colônia e com José de Anchieta e Manoel da Nóbrega; este último rascunhou o primeiro plano brasileiro de educação4. No nosso país os contos de Perrault bem como outras obras literárias chegavam através dos livros trazidos da Europa e precisavam ser traduzidos e adaptados, contribuindo para a formação de uma elite cultural. Até então, os filhos das 4 Baseado numa série de cursos; primeiro, um preparatório, com o ensino de português através da doutrina cristã para posteriormente iniciar o período de alfabetização, relativo ao primário, depois de gramática, referente ao ginásio. (COELHO, 2010). 37 famílias brasileiras mais abastadas eram levados para estudar na Europa. Na volta para casa, traziam nas suas bagagens textos que passaram a ser adaptados por conhecidos escritores, como: Carlos Janssen (Contos seletos das mil e uma noites, Robinson Crusoé, As viagens de Gulliver e Terras desconhecidas), Figueiredo Pimentel (Contos da Carochinha), Coelho Neto e Olavo Bilac (Contos pátrios) e Tales de Andrade (Saudade). Esses autores/adaptadores de textos europeus, contribuíram para a formação da Literatura infanto-juvenil brasileira e, por conseguinte, à formação leitora de seus compatriotas. No entanto, foi com Monteiro Lobato que teve início a verdadeira literatura infanto-juvenil brasileira, pois, além de adaptar, Lobato também criava histórias que aguçavam o imaginário do leitor/ouvinte infantil, juvenil e adulto. O escritor de Taubaté abriu caminhos para outros talentos brasileiros enriquecerem nosso acervo literário infantil. Ele conseguiu em sete anos transformar o perfil da indústria editorial do país. Com a migração de europeus fugitivos da guerra, o Brasil recebeu mão de obra em tipografias e o escritor, com seu olhar empreendedor, investiu no setor promissor e, em 1920, a sua editora e gráfica, Monteiro Lobato & Cia, tornou-se poderosa a ponto de lançar A menina do narizinho arrebitado, com uma tiragem de 50.500 exemplares. Lobato enviou, gratuitamente, 500 desses às crianças das escolas públicas, o que contribuiu para a divulgação da LI na época. (FEIJÓ, 2005). Nos anos de 1970, houve uma inflação na produção de LI por autores brasileiros o que junto com a crítica a alguns adaptadores, influenciou na queda da produção de adaptações. Porém, obras de adaptações de contos de fadas são produzidas e consumidos até os dias atuais em grande escala. Hoje, estes contos são, prioritariamente, escritos para crianças; há alguns séculos isso sequer era pensado, quando a noção moderna de infância não existia. 38 2.3. A presença de Perrault na literatura infantil do ocidente Charles Perrault (1628 -1703) foi advogado de confiança de Luis XIV, o Roi Soleil e ficou conhecido pelos acadêmicos de sua época como um modernista. Alguém com ideias modernas e até mesmo inovadoras. Perrault estabeleceu-se como líder de um grupo de intelectuais que defendiam a literatura francesa. Esse movimento liderado pelo autor de A bela adormecida do bosque contrapunha-se a um pensamento antigo que reconhecia a antiguidade greco-romana como verdadeira literatura. Tal movimento ficou conhecido como a Querela dos antigos e dos modernos. Narrador nos palácios, ele fazia adaptações dos contos populares e os transformava em contos de fadas ou contos clássicos que narravam histórias de amor entre príncipes e princesas e sobre generosos e bondosos reis, narrativas que agradavam os seus nobres ouvintes. Faleceu aos 75 anos, deixando um acervo de vários escritos. (LEIVAS, 2010). Referindo-se a sua biografia, Canton (2009), assevera que o autor parisiense era um refinado burguês, foi eleito membro da Academia Francesa de Letras e mesmo sendo advogado preferia a função de escrever e narrar contos de fadas em saraus, o que lhe rendeu o título de mais conhecido e importante autor de contos de fadas da sua época. Consideramos pertinente lembrar que os contos de fadas tiveram sua gênese nas fábulas e talvez por isso, as primeiras versões dos contos de Perrault sempre se encerravam com uma mensagem de advertência endereçada aos leitores. Seus enredos não contêm, necessariamente, fadas e, em geral, são ricos em fantasia, com animais falantes, seres mágicos que estão a favor dos heróis e das heroínas, que sempre têm uma difícil tarefa a cumprir. Dessa forma, Perrault se coloca como o principal contista de sua época, tendo sua fama, portanto, ultrapassado o seu continente, alcançando países ultramarinos, 39 como é o nosso caso. Não somente no Brasil, mas em inúmeros países pelo mundo, esse escritor impôs a sua marca de respeito e atenção ao público infantil, valorizando também a literatura popular, a partir da qual é possível ler clássicos da literatura universal. 2.4 A Bela adormecida, uma leitura indispensável na formação humana A adolescência é uma fase do desenvolvimento humano reconhecida pelas suas contradições. Os adolescentes em geral buscam agitação, chamam a atenção com roupas e atitudes extravagantes, mas também são descritos como desatentos, sonolentos, preguiçosos, desastrados, desconcentrados, anti-sociais, isolados, contraditórios. Escolhemos para analisar o conto de fadas A Bela adormecida do bosque ou simplesmente, A Bela adormecida, como é conhecido, por se tratar de uma narrativa que pode ser abordada tanto com crianças da Educação Infantil quanto com as maiores. Algumas vezes, os adolescentes parecem não suportar a ausência dos amigos e durante a distância passam horas ao telefone ou internet sem que lhes faltem assuntos; em outras, parecem preferir refugiar-se dormindo horas seguidas ou isolando-se do mundo; por isso, esse conto pode ser apropriado para essa fase da vida, uma vez que pode haver certa identidade com a protagonista da história. Segundo Bettelheim (1980), o conto supracitado enfatiza esse período de sonolência, apatia e tranquilidade demorada, muitas vezes incômoda para os pais, mas necessária para a transição e maturidade do adolescente. O autor ainda compara essa espera inconsciente por uma ação posterior com o período que antecede a menstruação nas meninas, a puberdade nos meninos e nas meninas, a fertilidade, a maturidade sexual. Toda a busca incessante dos pais de impedir essa maturidade, procurando proteger seus filhos da despedida da infância é retratada no conto com a tentativa de evitar que a menina espete seu dedo na roca, o que se torna inútil, apenas 40 adiando o inevitável. Após cem anos de sono a moça desperta, bela e com 15 anos. Com o seu despertar, surge também seu amadurecimento sexual, a donzela mostrase pronta para a experiência sexual que vivenciará. Nesse ponto, é importante lembrar que essa temática da sexualidade é o laço que liga o conto A Bela adormecida do bosque, que parece claramente ter sido inspirada por Basílio: O sol, a Lua e Tália. O conto basiliano relata, de modo mais direto, um estupro. Este, originário da mitologia grega, resguardado na história de Leto, "uma das muitas amantes de Zeus que lhe deu como filhos Apolo, deus sol e Artemis, deusa lua", a rainha ciumenta é representada por Hera, a esposa traída. (BETTELHEIM, op.cit., p. 268). Lembramos que o conto de Perrault tinha as crianças como público. Para melhor nos fazermos entender, apresentaremos a seguir um breve resumo desse conto. Quando sua filha Tália nasceu, o rei convocou todos os sábios e videntes do reino para profetizar sobre seu futuro. Todos concordaram que ela correria um grande perigo ao acidentar-se com uma farpa de linho. Para evitar tal tragédia o rei ordenou que nunca entrasse linho ou cânhamo no palácio, porém havia uma velha que tecia no sótão e foi esquecida por todos, através dela o fatal aconteceu e a princesinha, ao cair como morta foi abandonada por seu pai que, muito deprimido, a deixou sobre o trono, sozinha em seu castelo. Um rei de outro império ao passear próximo ao castelo abandonado entrou e deparou-se com a princesa inerte, apaixonou-se e não resistindo, coabitou com ela que continuou adormecida. Não conseguindo despertá-la ele partiu. Nove meses depois Tália deu a luz a gêmeos (Sol e Lua). Os bebês sobreviveram mamando na mãe entorpecida. Certa vez um dos bebês ao procurar o seio dela, sugou seu dedo e extraiu a farpa fazendo-a despertar. Algum tempo depois, o rei apaixonado voltou ao castelo e ficou ainda mais maravilhado pela beleza de Tália e dos seus filhos. Ao descobrir o segredo do marido, a rainha tenta tirar a vida da princesa e das crianças, 41 mas acaba sendo morta pelo próprio cônjuge, que passa a viver feliz com sua nova esposa. Na versão do cortesão Perrault, os fatos são romanceados, há apenas um rei e o outro é substituído por um príncipe, este último obviamente solteiro, as crianças chamam-se Manhã e Dia, a princesa é conhecida como A Bela Adormecida. Já na versão dos Irmãos Grimm, ela recebe o nome de Aurora e as crianças não aparecem na narrativa. Tanto na versão de Perrault, quanto na de Basílio a rainha recebe a devida punição, já na dos Grimm esse fato é extraído, o que para alguns autores pode ter empobrecido o conto, no que se refere à doutrinação do comportamento infantil. (CANTON, 2009). Rosa (2011, p, 48), afirma que “quando nos deixamos envolver por uma história, adentramos a ficção, estamos confrontando nossos valores, experimentando alternativas para a vida”. Nessa mesma linha de pensamento, Laurenti (2006) enfatiza que as palavras adquirem poder de ações, estabelecendo correspondências com o mundo real, portanto verossímil, em vez de verdadeiro. A principal função da fantasia é promover a crença na realidade ficcional e, assim, ajudar os indivíduos a responderem às suas inquietações, sejam elas de perdas ou não. No dizer de Bosi (2003, p. 116), “Reconquistar o que se perdeu é muito difícil: difícil é o caminho de volta, [...] Esse caminho pede um alto grau de tomada de consciência da vida em si que começa na recusa do estabelecido, na suspensão da validade mundana”. De nossa parte, acreditamos que o melhor a fazer é procurar ‘prevenir’, investindo na nossa reflexão aprofundada acerca da nossa prática pedagógica, relativa à frequência, à dinâmica, ao planejamento e à capacitação dos professores para que nos tornemos professores narradores/contadores de histórias, fazendo circular as narrações literárias no ambiente escolar. 42 CAPÍTULO III NARRATIVA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Narrar não é só uma arte, é também um mérito, e no Oriente até mesmo um ofício. Acaba em sabedoria, assim como tantas vezes, ao contrário, a sabedoria nos chega sob a forma de um conto. O narrador é, portanto, alguém que sabe dar conselhos e que para fazê-lo tem que saber relatálos. Walter Benjamin 43 3. NARRATIVA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL Estudos sobre a presença da leitura literária ainda na primeira infância parecem ter obtido, nos últimos anos, mais espaço entre os pesquisadores que entre os principais intermediários da formação na Educação Básica, os professores. Essa observação tem nos conduzido a constantes reflexões a respeito desse evento, uma vez que consideramos indispensável a presença da literatura logo no primeiro momento da formação do indivíduo. Fase em que as redes neuronais estão em intensa evolução. É, por certo, na primeira infância que a intervenção adulta pode modificar, qualitativamente, a vida da criança; pois, trata-se de uma fase na qual ela tem uma possante capacidade de conferir sentidos ao seu universo que é tão intenso quanto real. O significado simbólico desse universo infantil pode ser moldado pelo contexto social e escolar, mas, sobretudo, com a presença de professores da EI. Por essa razão, cremos na importância da leitura da narrativa literária nesse período da vida, como um elemento capaz de realizar grandes transformações na vida desse ser humano em formação. De acordo com os estudos de Coelho (2002), "É, pois, nesse período de amadurecimento interior que a LI e, principalmente, os contos de fada podem se tornar valiosos contribuintes para a formação da criança em relação a si mesma e ao mundo à sua volta." (COELHO, 2002, p. 54). 3.1 A narrativa, um gênero literário Em uma época que se pode chamar de infância da humanidade (COELHO, 2010, p. 5), a literatura foi fundamentalmente fantástica, quando os fenômenos naturais ainda não eram explicados pela lógica, a “ciência” da época baseava-se no pensamento mítico. E o ato de narrar é muito remoto, "tão antigo como a imaginação 44 humana [...], seja para recrear [...], seja para tirar deles um ensinamento salutar." (COELHO, op. cit., p. 5). As narrativas surgiram a partir dos desenhos desde os homens das cavernas, evoluindo com a fala e, só muito tempo depois, se estabelecendo com a escrita; portanto, tornou-se difícil datar com precisão a sua origem. Provavelmente, surgiram a partir do mito, com a necessidade humana de entender e explicar a origem das coisas e de justificar padrões de comportamentos. Na medida em que o homem evoluiu, seu pensamento tornou-se cada vez mais reflexivo e o pensamento mítico cedeu espaço para a cientificidade. E o mito, que antes respondia às dúvidas, passou a ser representado artisticamente, nascendo o teatro, com a Tragédia Grega, a partir dos ditirambos5. (D'ONOFRIO, 2004). Platão (428-7 a 38-7 a.C) já se preocupava com a educação ética das crianças através da narração de contos. Em A república, ao discutir sobre justiça e injustiça e sobre a concepção de uma pólis ideal, o filósofo assegura que essa possibilidade está intrinsecamente ligada à formação de cidadãos éticos e íntegros, propondo: "Eduquemos estes homens em imaginação, como se estivéssemos a inventar uma história e como se nos encontrássemos desocupados." (PLATÃO, 2002 livro II, p.64, 376 a-e). Para ele, essa tarefa deveria ser vista como essencial, ao ponto de se investir tempo, dedicando-se a incentivar mães e amas ao exercício da contação de histórias. Platão também garantia que se deveria ensinar às crianças a ginástica e a música, e na música, a literatura; a ginástica para o corpo e a música para a alma, ensino que deveria ser iniciado pela música com a contação de fábulas (PLATÃO, op. cit.). Platão sugere a leitura de fábulas desde os primeiros anos de vida como podemos ver com essa alocução: "as fábulas são mentiras, embora contenham algumas verdades. E servimo-nos de fábulas para as crianças, antes de as 5 Narrativas religiosas cantadas com ausência de diálogos 45 mandarmos para os ginásios" (PLATÃO, ibidem p.65). Em sua época, algumas crianças eram ensinadas a ler e escrever a partir dos dez anos de idade e a educação oficial iniciava-se após os sete. Mas, ele garantia que o ideal seria que desde os três anos, além de ouvir histórias, as crianças fossem educadas através dos jogos militares e das ginásticas, em espaços físicos adequados, como os jardins e sob vigilância. Ele ainda demonstrou a sua preocupação com a qualidade dos textos apresentados às crianças, afirmando que: Devemos começar por vigiar os autores de fábulas, e selecionar as que forem boas e proscrever as más. As que forem escolhidas, persuadiremos as amas e as mães a contá-las às crianças, e a moldar as suas almas por meio das fábulas. (PLATÃO, ibidem, p.65 e 66). Como o objetivo dele era formar homens éticos, é provável que Platão tenha indicado as fábulas por conterem lições de boa conduta, percebendo que para alcançar o bem, os homens deveriam buscá-lo através das histórias contadas quando estes ainda fossem crianças. Segundo D'Onófrio, (op.cit.) só por volta do século XIV o conto ganha registro escrito, afirmando sua categoria estética. Entre o final do século XVII e início do XVIII, Charles Perrault prosseguiu adaptando contos folclóricos e populares, instaurando uma literatura infantil determinante para aquela época. No século XIX, com expansão da imprensa, os irmãos Grimm adaptaram e publicaram dos contos folclóricos, com características de contos infantis, imbuídos da doutrina medieval que assegurava a formação moral das crianças. Existem basicamente três tipos de formas de narrativas: o conto, a novela e o romance. Nosso interesse versa sobre o conto, visto que especialistas tais como Coelho (1991) o consideram como o gênero mais adequado para as crianças. Segundo ela, isso se dá porque o conto tem uma sequência linear e efabulação, isto é, começa com um motivo central e os acontecimentos ocorrem em ritmo acelerado. 46 O motivo dessa efabulação é baseado em três necessidades humanas: sobrevivência, preservação da espécie e vontade de poder. Ela (a efabulação) deve possuir características como: a) o tempo, que é a-histórico, o que torna a história sempre "nova"; b) o ato de contar, uma vez que a própria narrativa situa o mediador entre narração e o leitor; e, c) a forma literária básica, que é o próprio conto. Possui ainda a característica de repetição, que ajuda a retomar o enredo facilitando a compreensão; a representação simbólica, com imagens, alegorias, metáforas que simulam o real; os personagens; a verossimilhança ; o espaço ; a exemplaridade e um narrador. Essas são basicamente as características que a autora considera apropriadas para uma narrativa para crianças. (COELHO, op. cit.). Entendemos a importância da característica de a-historicidade em um conto, ao percebermos que a mesma narrativa que encantou as crianças do século XVII ou XIX pode encantar as crianças do nosso século com igual intensidade. Os desafios apresentados pelo texto devem ser superáveis pelo leitor para que a leitura se torne possível e prazerosa, portanto a forma deve ser básica, porém não empobrecida. Outro critério que devemos considerar ao escolhermos uma narrativa para abordar com as crianças, deve ser a estética do texto, devendo-se levar em conta a sua riqueza em alegorias, imagens, personagens que atuam com verossimilhança, promovendo, assim, a reflexão a partir da leitura literária, associada à própria realidade da criança. Tais características foram levadas em conta quando das intervenções feitas, descritas e analisadas ao longo desta pesquisa. A riqueza de personagens, imagens e alegorias constituíram-se em um dos principais recursos para seduzir os pequenos leitores, confirmando, assim, o que diz Coelho (op. cit.). Convém inda ressaltar que a narrativa, enquanto gênero literário teve sua origem nos mitos que surgiram com a necessidade de explicar fenômenos naturais e transmitir sabedoria às futuras gerações. A partir deles, os contos de fadas passaram 47 a ter a intenção de ilustrar a realidade por meio da arte, considerados também originários dos contos populares. Essas narrativas, inicialmente, tinham como protagonistas pessoas representantes do povo, tais como camponeses ou outros indivíduos que também viviam uma vida difícil provocada pelo intenso frio dos países europeus. Desde então, já era a ficção, uma forma de arte, na qual o homem se apoiava para explicar seus dilemas, ao mesmo tempo alimentando a imaginação do leitor/ouvinte, permitindo a reflexão sobre situações de desconforto, ajudando na construção do senso crítico. 3.2 Narrativas infantis com função pedagógica Considerando-se que historicamente a literatura, ao ser voltada para o público infantil, tinha uma função prioritariamente utilitária, com uma gênese essencialmente pedagógica, ela estava estabelecida em fundamentos que visavam uma finalidade disciplinar; sendo, por consequência, modeladora do comportamento das crianças. Embora, ao longo dos séculos, a literatura tenha assumido um papel muito mais didático, moralista, doutrinário e disciplinador, entendemos que o texto literário em sua essência é arte, e, portanto deve provocar múltiplas interpretações. E como fazê-las, se a obra é apresentada como um texto meramente informativo? A questão não é apenas se tem ou não um fim pragmático, mas também, como é feita a abordagem dos textos. Sem a pretensão de negar que a literatura estimula a aprendizagem de conteúdos e valores, mas, na intenção de mostrá-la mais "doce que útil", acreditamos que devemos abordar as obras literárias para as crianças, sobretudo na primeira infância, com o principal vislumbre de seduzi-las para as histórias, para as artes, certos de que os conhecimentos, as transformações e consequentemente as aprendizagens virão. 48 O trabalho com o gênero narrativo, em questão, pode possibilitar um jogo psicológico importante para o desenvolvimento afetivo e cognitivo das crianças. Ao ouvirem ou lerem contos de fadas, por exemplo, elas se projetam em algum dos personagens e passam, inconscientemente, a participar de um jogo que poderá ajudálas a superar conflitos interiores, fazendo-as lidar com certa leveza em situações reais, difíceis e inevitáveis, como a perda de um ente querido ou com a sua condição socioeconômica precárias, por exemplo. (BETTELHEIM, 2008). As viagens dos heróis e das heroínas descobrindo e explorando florestas perigosas podem, de maneira inconsciente, retratar para a criança as viagens feitas dentro de seu próprio eu; a rivalidade do vilão apresentado como uma fera, o dragão, o lobo ou a madrasta má podem representar o embate com um colega tirano, um professor autoritário ou mesmo maus tratos ou descuido dos pais. A vitória do herói sobre o adversário pode causar a catarse necessária para encorajar o leitor a buscar seu objetivo de liberdade e felicidade na vida real por meio da fantasia, imaginação, através da arte que é a literatura. Esse processo psicológico, a catarse, acontece, segundo Amarilha (2006), quando a criança se envolve emocional e intelectualmente, identificando-se com a trama, ocorrendo uma ruptura que "desencadeia um processo de suspensão temporária do real e trânsito para o ficcional semelhante ao da representação dramática" (AMARILHA, 2006, p.76). A perspectiva da catarse, enquanto purgação, foi um aspecto perceptível na contação da história da Chapeuzinho vermelho. Sob a ótica da cura, identificamos como resultados de catarse, a leitura d'A Margarida friorenta, provando que a literatura é uma porta especial para incitar a imaginação. (cf. capítulo V). Por isso, vemos o trabalho com a literatura na sua melhor função, vendo-a como arte transformadora. Independentemente de a quem for destinada, ela não perde o seu 49 valor literário, que implica literariedade, polissemia etc., para ser apenas disciplinadora. 3.3 Narrativas na sala de aula Entendemos que o trabalho de formação leitora de uma criança deve ser iniciado desde os primeiros anos de vida, os que antecedem sua escolaridade, começando na família e sendo continuado e ampliado na escola. Atualmente, a maioria das crianças ingressa mais cedo na escola e algumas dessas passam mais tempo na instituição do que em casa. Antigamente, as crianças eram assistidas exclusivamente em casa, pelos pais ou avós e muitas delas eram alfabetizadas no seio familiar, ingressando na escola a partir dos sete anos de idade. E nesse contexto doméstico, as que não tinham acesso aos textos impressos ouviam, junto à família, histórias de trancoso6, anedotas ou advinhas nas calçadas, entre parentes e vizinhos. Esse costume aguçava o imaginário de crianças e de adultos. Junto com o processo de industrialização, houve uma demanda de mão-deobra, e as mulheres foram atraídas para o mercado de trabalho, havendo com isso a necessidade de uma escolarização precoce para seus filhos. Hoje, tanto as crianças de família socioeconomicamente desfavorecidas, quanto às de classe média, ingressam mais sedo e passam mais tempo na instituição escolar ou pelo menos convivem com a ausência dos pais durante o dia. As menos favorecidas, economicamente, ficam sob os cuidados de irmãos mais velhos ou inseridas em programas sociais como o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e as de classe média, na companhia de um cuidador ou em escolas de música, idiomas, esportes, dentre outras. 6 De acordo com Valdevino, (2007) Gonçalo Fernandes Trancoso foi um escritor português que reuniu, no século XVI, histórias de relatos do povo de situações inverossímeis. Seu nome passou a ser associado às histórias populares fantasiosas. (Alexandre Valdevino, 200 7 in http://www.recantadasletras.com.br) 50 No intento de recuperar a força da fantasia e por considerar importante instigar o imaginário infantil, sobretudo através da leitura literária para a formação leitora das crianças, é que procuramos, com este estudo, ratificar a importância da abordagem do gênero narrativa em uma proposta de leitura para crianças na faixa-etária entre cinco e seis anos. Por esse motivo, o nosso intento tem como base a promoção, desde a EI, de situações que propiciem essa formação. Nesse sentido, buscamos compreender a atribuição do educador como um narrador de histórias, bem como suas práticas a respeito da leitura literária na EI. Acreditamos que há na narrativa literária, tanto oral quanto escrita, um poder educacional, em especial, para a educação de crianças, por estas estarem na fase em que a fantasia e imaginação são bastante intensas, e porque contribui com a aprendizagem sobre outras culturas e sobre sua própria identidade, além de propiciar uma visão com mais graça e sentido sobre a vida. Temos valorizado a abordagem desse gênero na sala de aula, pois acreditamos que as classes em que há atividades de narrativas literárias diárias tornam-se um espaço vibrante de entusiasmo criador, educativo. Também sabemos que a narração de histórias, em sala de aula, pode promover uma atmosfera de prazer e descontração necessária para um ambiente de alegria e confiança. Esse “clima” de confiança era considerado de fundamental importância para as sociedades nômades, onde os narradores de histórias eram muito respeitados, já que os acampamentos necessitavam ser sustentados por histórias bem contadas tanto para as crianças quanto para os adultos. (GIRARDELLO, 1999). Nós, na condição de pedagogos, buscamos entender tanto como a narrativa literária pode contribuir para a apropriação do conhecimento pelas crianças, no nosso caso específico as da EI, quanto de que forma os educadores dessa fase podem colaborar mediando essa interação. 51 O professor-narrador é contagiado pela alegria de compartilhar e essa reciprocidade é sempre percebida no desejo das crianças de ouvir de novo. Evidentemente, não seria uma simples curiosidade de saber como a história termina, uma vez que a narrativa, de um modo geral, já é conhecida da criança; é o mergulho no mundo fantástico que proporciona uma experiência única, como afirma Held (1980). Trata-se do deleite que ocorre durante a contação ou leitura de uma narrativa, provocando o prazer estético no gosto pela palavra, no ouvir e no ato de ler. Só assim, o professor-narrador poderá promover pequenas epifanias, estimulando novos olhares, novas buscas, consequentemente, novas descobertas. Convém salientar a importância de se preservar o ofício de narrar para as crianças como ação que a conscientiza sobre si e sobre o mundo em que vive, pois durante a escuta de uma narração, a criança aciona esquemas mentais para formular imagens, assim como o faz durante uma leitura. Crianças pequenas que ouvem histórias passam a interessar-se também por histórias impressas, assim essa prática pode contribuir para sua formação leitora. (GIRARDELLO, op. cit.) Assim como defende Walter Benjamin, (2010) citado na epígrafe deste capítulo, devemos ter compromisso com a arte de narrar, pois só assim daremos a devida importância à narração. Benjamin (op. cit.) ainda aponta o desparecimento da arte da narrativa que, para ele, é causado pela excessiva difusão da informação; e, assim, a narração passou a ser vista como ultrapassada, da mesma maneira que, com a industrialização, foram subtraídos os artesãos. Segundo ele, narrar recupera o que há de artesanal na palavra. Temos percebido, porém, que a preocupação de Benjamin, já na década de 1940, persiste em autores da nossa época e essa preocupação tem aberto caminhos para reflexões acerca não só da pouca presença, mas, das deturpações feitas com a narrativa literária na escola, quer seja lida, quer seja contada. 52 Ao entendermos que a leitura literária deva ser feita com prazer e ludicidade, não defendemos a leitura sem nenhum objetivo educativo. Acreditamos que ela pode, por exemplo, se tornar um valioso recurso para o desenvolvimento da oralidade das crianças, que é uma das habilidades a que se propõe a EI e uma das formas mais eficazes de valorizar a oralidade pode ser pela escuta e pela narração de histórias. Nessa perspectiva, faz-se necessário lembrar que, apesar de termos nos detido a tratar do educador como narrador, é conveniente lembrar que também as crianças devem ser estimuladas a narrarem, não apenas suas experiências pessoais, mas as literárias. Contudo é o educador que deve ter primeiro, a consciência do valor da narrativa. E a respeito da narrativa Pennac (1998) pondera: Mas ler em voz alta não é suficiente, é preciso contar também, oferecer nossos tesouros, desembrulhá-los na praia ignorante. Escutem e vejam como é bom ouvir uma história. Não há melhor maneira de abrir o apetite do que lhe dar a farejar uma orgia de leitura. (PENNAC, 1998, p. 64) Confiamos, portanto, em uma abordagem lúdica, prazerosa das narrativas literárias em sala de aula, que provoque boas sensações no leitor/ouvinte, que o instigue ampliando seus horizontes. Neste contexto, é importante que o professor procure capacitar-se na arte/no ofício de narrar. 53 CAPÍTULO IV CAMINHOS METODOLÓGICOS PERCORRIDOS Se o pedagogo em mim fica chocado por não apresentar a obra no seu contexto, persuada-se o dito pedagogo de que o único contexto que conta, por enquanto, é o dessa classe. Daniel Pennac 54 4. CAMINHOS METODOLÓGICOS PERCORRIDOS Este capítulo tem por objetivo descrever e explicar as estratégias metodológicas, as técnicas e os instrumentos de coleta de dados utilizados na realização desta pesquisa. Nesse sentido, apresentamos, inicialmente, a caracterização da investigação, seguida da descrição das estratégias, das técnicas e dos instrumentos para a coleta de dados e, por fim, traçamos um perfil dos sujeitos que fazem parte do estudo. 4.1 Caracterização da Pesquisa O presente estudo configura-se como uma pesquisa qualitativa descritiva e explicativa (RODRIGUES, 2007; MINAYO, 1994), visto que objetivamos compreender o fenômeno estudado como base na descrição, análise e interpretação dos sentidos adquiridos no ambiente social em que se manifestou. Assim, a investigação das práticas de abordagem da literatura infantil nas creches campinenses foi feita mediante o emprego de instrumentos e técnicas qualitativas. Considerando a necessidade não só de descrever e interpretar o objeto de estudo, mas de contribuir com a melhoria das práticas de leitura de narrativas para crianças, optamos pela pesquisa-ação como abordagem metodológica mais adequada ao nosso propósito. Nessa perspectiva, um dos principais procedimentos para a compreensão e atuação na realidade estudada foi a realização de intervenções pedagógicas assumindo ou dividindo com a professora o papel de mediadora pedagógica. Conforme Langeveld (apud BEL, 2002, p. 57), o objetivo da pesquisaação não é apenas “conhecer os fatos e entender as relações em prol do conhecimento. Queremos saber e entender para sermos capazes de agir e agir melhor do que agimos antes”. 55 Também de acordo com Moreira e Caleffe (2008, p. 94), a pesquisa-ação no contexto da sala de aula, pode contribuir para “introduzir abordagens adicionais e inovadoras no processo ensino-aprendizagem e aprender continuamente em um sistema que normalmente inibe a mudança e inovação.” Assim, a nossa investigação das concepções e práticas de leitura de narrativas literárias nas creches campinenses foi feita mediante o emprego de instrumentos e técnicas qualitativas, visando não somente a obtenção de dados, mas a construção de conhecimentos que nos capacitem a atuar melhor na EI. 4.2 Estratégias metodológicas, técnicas e instrumentos de coleta de dados Para respondermos às questões de pesquisa e atingirmos os objetivos do estudo que havíamos previsto, empregamos as seguintes estratégias, técnicas e instrumentos de pesquisa: revisão bibliográfica, observação das aulas, mediação pedagógica, entrevistas semi-estruturadas com as crianças e aplicação de questionário com as professoras, além da utilização de um diário de campo para as anotações pertinentes. A seguir, descrevemos brevemente cada um desses recursos. A construção dos referencias teórico-metodológico da pesquisa foi feita por meio de uma revisão bibliográfica sobre práticas de leitura de LI, da concepção moderna de infância, e da importância da leitura de narrativas literárias na Educação Infantil. Esse procedimento teve início com a preparação do projeto e se estendeu até a conclusão da análise dos dados. Dentre os autores estudados podemos destacar Amarilha (2006/1997), Brandão (2010), Coelho (1991), Lajolo e Zilberman (2009), Lerner (2002), Held (1980), Pennac (1998), Pinheiro (2006), Zilberman (2003). Como parte do trabalho de observação para a execução dessa pesquisa, começamos por visitar um total de nove creches na periferia da cidade de Campina Grande-PB, com o propósito de realizarmos a nossa pesquisa onde pudéssemos alcançar um número maior de crianças. O nosso intento era perceber uma maior 56 receptividade por parte da professora, e da gestão; queríamos ainda averiguar a realidade das unidades públicas municipais, que já conhecíamos em parte, com nossa prática docente. Apesar de vinte anos trabalhando em creches públicas municipais de Campina Grande, não conhecíamos totalmente as diferentes realidades das unidades, já que elas se distinguem, quanto à localização, à conservação da estrutura física, ao mobiliário e à manutenção de materiais. Durante as visitas, encontramos na maioria das creches, resistência em nos receber como pesquisadores. Justificamos tal fato como decorrente, principalmente, do período eleitoral, já que algumas das gestoras verbalizaram não se sentirem confortáveis em nos permitir realizar a pesquisa em "sua" unidade. Algumas delas, em suas falas, mencionaram que não considerava adequado para o momento, nos permitir, por exemplo, realizar entrevistas e fazer fotos das instalações. Após os diálogos com as gestoras e com as professoras de classes de Pré II dessas creches, concluímos que haveria a possibilidade de desenvolver a pesquisa em duas daquelas nove unidades. Aplicamos um questionário com as professoras das turmas dos Pré I e do Pré II de algumas das unidades visitadas e de outras escolas públicas, como parte de nosso estudo exploratório. Antes de iniciamos as intervenções, julgamos necessário um período de observação para que as crianças estivessem adaptadas à presença da pesquisadora. Por isso, a observação foi, certamente, uma das etapas mais importantes da nossa pesquisa, porque nela pudemos acompanhar a prática pedagógica da professora em cuja classe executamos a pesquisa. As observações dessa etapa contribuíram para identificarmos concepções, bem como as práticas de leitura de narrativas literárias presentes nas atividades pedagógicas realizadas pela professora. Identificamos também a frequência com que aconteciam as leituras e os procedimentos utilizados pelas professoras nessa atividade. Esses dados foram de grande relevância para 57 responder as questões que orientaram a presente pesquisa e para nortear a nossa intervenção pedagógica. Para melhor conhecermos a realidade pesquisada, consideramos relevante ouvir as crianças, uma vez que são agentes de sua formação e diretamente envolvidas nas práticas. As entrevistas com elas foram cuidadosamente planejadas em função de questões específicas identificadas no contexto das formas de interação com as narrativas literárias percebidas durante a etapa de observação da prática pedagógica. No período de observação percebemos que as crianças careciam de ouvir narrativas literárias, já que tiveram apenas uma vivência com a leitura da narrativa; Tatá a baratinha, de Naiara Mattar, (s/d) feita pela professora e com A galinha ruiva, da coleção Paraíso, (s/d), realizada pela pesquisadora em uma ocasião em que a professora ausentou-se da sala, deixando o grupo sob a nossa responsabilidade7. Como parte da coleta de dados, fizemos entrevistas semi estruturadas individuais e com cada uma das crianças separadamente. Buscamos responder: Que narrativas as crianças conheciam? Qual a que a professora leu/contou que elas mais gostaram? Ouviam histórias em casa? Por quem? Para auxiliar na caracterização de parte dos sujeitos do estudo, após as observações das aulas e antes de iniciarmos a nossa intervenção, solicitamos que a professora, em cuja sala aconteceu a pesquisa, respondesse um questionário sobre sua formação acadêmica e experiência profissional, além do preenchimento de dados de identificação necessários à construção de um perfil desse sujeito. 7 Faz-se pertinente lembrar que em alguns momentos da nossa escrita, optamos ora pelo uso da primeira pessoa do singular, ora pela primeira do plural. Nos momentos de reflexões, sobretudo teóricas, utilizamos o pronome nós, por entendermos que, de um modo geral, ponderações são feitas a partir de discussões seja em aulas, seja em orientações. No entanto, nas descrições e análises das intervenções pedagógicas, optamos pela primeira pessoa, pois nesses momentos as ações de pesquisa-ação se deram de forma mais direta entre as crianças e a pesquisadora. 58 A coleta de dados mediante observação e intervenção pedagógica foi realizada no período de 24 de setembro a 22 de outubro de 2010, somando-se um total de quinze (15) aulas, sendo nove observadas e seis ministradas pela pesquisadora. Para a realização da nossa intervenção pedagógica fizemos, inicialmente, leituras de quatro (04) narrativas literárias com as crianças do Pré-II, após o período de observação das aulas. Foi nesse momento de observação que tivemos a oportunidade de fazer a primeira leitura para as crianças: A galinha ruiva. Realizamos a intervenção pedagógica com um grupo de dez (10) crianças da turma do Pré-II (faixa-etária entre cinco e seis anos), que frequentavam uma creche pública localizada em um bairro de periferia da cidade, no horário das sete às onze horas, de segunda a sexta-feira do ano de 2010. Para iniciarmos a nossa atividade, planejamos quatro sequências didáticas (ver apêndice 1, p. 129ss), que serviram como base para as nossas aulas. Com o objetivo de realizarmos as leituras literárias durante nossa intervenção, optamos por usar como corpus literário um conto clássico, Chapeuzinho vermelho, na versão de Charles Perrault (1883/1994) e três narrativas modernas, a saber: A última árvore do mundo, de Lalau e Laurabeatriz, (2010); Girafas não sabem dançar (livro animado), de Gile Andrea, Guy Parker e Corina Fletcher (2009) e A Margarida friorenta, de Fernanda Lopes de Almeida, (2010). A história da Chapeuzinho vermelho foi contada e lida nas versões de Perrault e na dos irmãos Grimm, o que discutiremos posteriormente, na seção de análise dos dados. Ao escolhermos cada narrativa, procuramos levar para a turma algo que oportunizasse o prazer e o gosto pela leitura e que os motivasse à crítica, ao questionamento, à mudança, à maturidade e ao crescimento, podendo também proporcionar um conhecimento literário e pessoal. Com a leitura da narrativa, Chapeuzinho Vermelho (versão de Perrault), por exemplo, buscamos investigar a respeito da recepção desse clássico, constatando o que as crianças conheciam da 59 história, desejando, com isso, proporcionar um momento de fruição. A nossa perspectiva de recepção está de acordo com Zilberman (2004) ao afirmar que "a recepção refere-se à acolhida alcançada por uma obra à época do seu aparecimento e ao longo da história. Em certo sentido, dá conta de sua vitalidade, verificável por sua capacidade de manter-se em diálogo com o público". (ZILBERMAN, 2004, p. 114). Escolhemos a obra A última árvore do mundo, de Lalau e Laurabeatriz (2009), buscando favorecer um momento de leitura reflexiva, crítica, divertida e atraente, no qual as crianças poderiam perceber a importância da consciência ecológica e o respeito ao meio ambiente, sem que isso fosse dito através de um discurso didático. Durante as observações das nove aulas, cuja temática era meio ambiente, percebemos que as ações das crianças se resumiam em observar, copiar nomes, pintar desenhos de animais e ouvir explicações sobre suas locomoções e habitat. Diante desse contexto, entendemos que poderíamos favorecer uma situação de aprendizagem, através da leitura de narrativa literária, tanto a respeito da temática em questão quanto da própria linguagem. O critério para a escolha do livro Girafas não sabem dançar, de Giles Andreae, Guy Parker-Rees e Corina Fletcher (2009) foi a necessidade de proporcionar um momento de recreação através da dança, após uma leitura atrativa, com um livro animado, buscando entender as reações provocadas pelas imagens que "saltam" do livro e enchem os olhos dos leitores, sobretudo dos leitores em formação. Entendemos que essa turma precisava vivenciar situações lúdicas, em que pudessem movimentarse, cantar, dançar, mexer-se e remexer-se. A obra A Margarida friorenta, de Fernanda Lopes de Almeida (2010), foi considerada por nós, a narrativa de maior relevância para aquela turma, por ter em seu enredo uma temática que aborda a carência, o cuidado e a amizade. Observamos que na turma com crianças na faixa etária entre cinco e seis anos, que em geral têm 60 forte ligação afetiva com suas professoras, eram raras as situações que envolviam carinho ou afeição e no período da pesquisa pouco se viu demonstração de toque, abraço, elogio ou qualquer manifestação de afeto, cuidado, admiração entre a professora e as crianças. Inclusive, nas horas de chegada, os cumprimentos eram reservados aos adultos. Em algumas ocasiões a turma recebeu elogios de uma funcionária de apoio, que destacou a conservação da limpeza da sala, e da gestora, a respeito da aparência (cabelos cortados, roupas e calçados) de algumas das crianças. Figura 1: Primeira narrativa lida no período da intervenção; Figura 2 – Segundo livro no período das intervenções pedagógicas. Figura 3: Livro lido no terceiro encontro das intervenções; Figura 4: Livro lido no quarto encontro das intervenções pedagógicas. Ao percebermos que os momentos de leituras ou contação de histórias eram raros ou quase inexistentes naquela turma, resolvemos prolongar o tempo de 61 encontros para as leituras de narrativas literárias com as crianças e, posteriormente, também foram apresentadas a elas outras obras: O almoço (livro de imagem), de Mário Vale (1987); Maria vai com as outras, de Sylvia Orthof (2008); Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado (1996) e Pinote, o fracote, e Janjão, o fortão, de Fernanda Lopes de Almeida (2008). O livro O almoço, de Mário Vale (1987), foi escolhido para ser lido no período que denominamos de leituras complementares8. Trata-se de uma narrativa por imagem muito importante e atrativa para as crianças da EI, já que pode desenvolver a percepção visual, a oralidade, estimular a imaginação, a expressão, aflorando o gosto pela leitura, dando-lhes oportunidade de entender e explicar o que pensam e sentem, com a liberdade que os textos por imagem podem proporcionar, podendo fazê-las refletir sobre o mundo e sobre si mesmas. Figura 5: Livro escolhido por Alan e Carla; Figura 6: Livro lido coletivamente. 8 A esses encontros denominamos de leituras complementares, já que havíamos concluído o período acordado para a intervenção pedagógica e, a pedido da professora, esses encontros aconteceram em duas sextas-feiras no final da manhã. 62 Figura 7: Livro escolhido por Renato e John; Figura 8: Livro escolhido por Alan e Verônica. 4.3 Perfil dos sujeitos Como dissemos anteriormente, os sujeitos colaboradores desta pesquisa são dez crianças de uma turma do Pré-II (faixa-etária entre cinco e seis anos) e sua professora. A professora tem formação superior (curso de Pedagogia cursado em uma universidade pública da cidade), com habilitação em Educação Infantil. É funcionária concursada e possui duas matrículas na Prefeitura Municipal de Campina Grande e, atualmente, atua nas turmas do Pré II e Pré I nos turnos matutinos e vespertinos, respectivamente, em duas unidades diferentes. No período de observação, constatamos que a professora demonstrou bom relacionamento com os pais das crianças e funcionários da creche, mas evidenciou pouco afeto para com os educandos. No final do ano letivo, durante a preparação para a comemoração natalina, ela comprou chocalhos, óculos e também confeccionou lenços em TNT, acessórios necessários para que cada criança participasse da apresentação que foi ensaiada diariamente, demonstrando, dessa forma, o zelo que tem pelo trabalho que faz. 63 Também consideramos importante apresentar um breve perfil das crianças participantes da pesquisa e, para isso, utilizamos as fichas individuais (de matrícula) desses colaboradores, disponíveis na própria instituição para, então, construirmos esse perfil. Mesmo cientes da realidade das escolas públicas, pretendíamos aprofundar o nosso conhecimento sobre a realidade na qual seria efetuada a pesquisa. Por essa razão, foi de suma relevância para essa investigação aperfeiçoar o conhecimento desses sujeitos e assim escolhermos melhor as narrativas que seriam abordadas. A turma era formada por crianças filhas de famílias de baixa renda, com as dificuldades que essa realidade provoca; a maioria dos pais era analfabeta, algumas mães solteiras, desempregadas, trabalhavam na informalidade, sobretudo, no período eleitoral, fazendo panfletagens ou serviços gerais. Para a discussão dos dados e por questões éticas estabelecidas pela resolução 196/96 do Ministério da saúde que regulamenta as pesquisas com seres humanos, omitimos os nomes das crianças e optamos pela utilização de nomes fictícios: Alan, Carla, Gabriela, John, Kelly, Leila, Nilton, Pedro, Renato e Verônica. Como a maioria das crianças dessa faixa etária, as dessa turma eram alegres, ativas, dispostas e disponíveis às novidades, desafios e novas aprendizagens, demonstravam sensibilidade e criticidade em relação às narrativas apresentadas. Ao longo da pesquisa fizeram várias intervenções durante as leituras/contações das histórias, opinaram a respeito das atitudes de alguns personagens, criticaram e expressaram discordância em relação a um dos autores lidos. Essas crianças foram bastante receptivas para com a pesquisa. 64 4.4 Pesquisa piloto Para verificarmos se o percurso metodológico escolhido, descrito acima, era adequado para alcançar os nossos objetivos, executamos uma pesquisa piloto, com o intento de observar se as escolhas seriam apropriadas para a pesquisa. Nessa perspectiva, iniciamos ainda no primeiro semestre do ano de 2010 uma pesquisa de amostragem que nos confirmou que havíamos escolhido o percurso mais adequado. O estudo piloto consiste em realizar um experimento em menor escala ou abrangência do conjunto dos procedimentos que serão desenvolvidos na pesquisa como um todo e tem por objetivo avaliar em que medida as ações previstas são ou não adequadas à obtenção dos dados necessários para os objetivos do estudo. O projeto piloto foi realizado com um grupo de crianças de creches públicas municipais, pois, como afirma Bell (2008, p. 128), "O ideal é que a experiência-piloto seja efetivada com um grupo similar àquele que vai constituir a população do seu estudo". Descreveremos alguns aspectos concernentes aos procedimentos metodológicos adotados durante a nossa pesquisa para tendo em vista nossos objetivos e a busca do conhecimento da realidade de ensino infantil na cidade de Campina Grande-PB. Neste momento, apresentamos o tipo de pesquisa realizada; público participante deste estudo e destacamos as crianças frequentadoras das creches e, por fim, discutimos a coleta dos dados, constituídos em corpus a serem analisados. 4.4.1 Sujeitos participantes da pesquisa-piloto Os sujeitos deste estudo são crianças na primeira infância matriculadas em creches da cidade de Campina Grande. Na primeira creche, os colaboradores são crianças com idade entre dois e cinco anos, aproximadamente, matriculados nas turmas do Maternal I e II, Pré-Escolar I e II. As classes de Maternal I e II contavam 65 com duas professoras e as turmas da Pré-Escolar contavam apenas com uma em cada sala. Quanto à formação das seis professoras, uma do Maternal tinha concluído o curso pedagógico em nível de Ensino Médio profissionalizante, enquanto as demais possuíam Ensino Médio regular. Já a professora do Pré I tinha curso superior em Serviço Social e a do Pré II era estudante de Pedagogia em uma faculdade particular. Apesar dos avanços em relação à educação básica, ainda é comum, principalmente na Educação Infantil, observar uma menor exigência em relação à formação do educador infantil, tanto em relação a sua formação (escolaridade), quanto a sua experiência profissional (tempo de serviço). Percebe-se que ao contrário do que acontece em países da Europa, por exemplo, onde na formação básica existe um cuidado todo especial quanto ao instituteur que é aquele professor com uma intensa formação focada na criança em desenvolvimento. Nesses países, quanto mais jovem a criança, mais atenção com o formador que a acompanha. No Brasil, em muitos casos, parece acontecer o inverso, quanto menor a criança, menos qualificado precisa ser o professor. Desse procedimento, decorre uma formação frágil em um momento muito especial da constituição humana. A segunda experiência aconteceu em outra creche, também da rede pública de educação da mesma cidade, localizada em um bairro de classe menos favorecida e considerado um dos mais violentos. A pesquisa foi realizada em uma turma de Maternal I, (faixa-etária de dois anos a dois anos e onze meses), com 28 crianças matriculadas e duas professoras, ambas com curso superior em Pedagogia nas universidades públicas desta cidade. Nas turmas dos maternais, de ambas as unidades, as crianças permanecem nas creches das sete às dezessete horas de segunda a sexta e as dos Prés I e II 66 funcionam em meio expediente, das sete às onze horas ou das treze às dezessete horas nos mesmos dias. 4.4.2 Coleta dos dados da pesquisa-piloto Para a coleta de dados, primeiramente, frequentamos as aulas nas turmas supracitadas, com o intuito de fazer observações e anotações de campo. Após cada aula, anotávamos as principais observações que nos conduziam às respostas de nosso problema de pesquisa: a leitura de narrativas tem apenas um caráter pedagógico ou há também fruição? Assim, ao longo de um semestre, pudemos executar a coleta de dados que nos permitiu investigar a respeito das práticas de leitura literária realizadas em uma sala de Educação Infantil. Identificamos que a leitura/escuta fruição era deixada em segundo ou terceiro plano, dando espaço para lições de moral, admitindo a arte literária como documento moralizante. Após as observações e anotações, passamos a construir o nosso corpus para análise. 4.4.3 A leitura com objetivos didáticos na pesquisa-piloto Ao iniciarmos nosso trabalho de pesquisa, percebemos que a rotina de atividades docentes, nas creches, era construída, predominantemente, por ações ligadas à alimentação, higiene e ao descanso. Dentre as atividades que envolviam a interação das crianças em grupos e a inserção no mundo simbólico partilhado pelos adultos, destacava-se a prática de assistir à televisão, o que a nosso ver não nos parecia coerente, porque desde então, acreditávamos que uma instituição de Educação Infantil não poderia se limitar a tais práticas. 67 Assim, chamava-nos a atenção a ausência de atividades com as diversas formas de linguagem: plástica, oral, escrita, dentre outras, que propiciassem condições de desenvolver nas crianças curiosidade e interesse por essas formas de expressão. Exemplo de atividades dessa natureza seriam momentos de conversas, de leitura e contação de histórias em que as crianças fossem estimuladas a falar, ouvir, desenhar, pintar e, dessa forma, desenvolver o gosto por histórias, músicas, poemas. Na EI, fase em que a criança é facilmente conquistada pelos encantos da leitura de bons textos, a maioria dos educadores, por ansiedade e incompreensão, teima em antecipar conteúdos que poderiam ser mais bem compreendidos se a criança tivesse a oportunidade de aprender a ler prazerosamente. Se, em vez de vivenciarmos o prazer da leitura, a empregamos, com o objetivo de ensinar conteúdos curriculares, corremos um sério risco de afastar as crianças da leitura passando a ideia de que ler é um árduo dever. Desde os primeiros anos devemos oportunizar aos leitores em formação situações de interação e convívio com variados usos da linguagem escrita, especialmente com a leitura literária. Conforme considera Pinheiro (2006, p. 27), nos parece essencial “iniciar a criança o mais cedo possível no mundo da leitura, seduzi-la desde cedo para a riqueza interior que a leitura pode nos proporcionar”. Dessa forma, enquanto educadores consideramos relevante despertar a criança para as práticas de leitura, provocando desejo, fascínio, encantamento; tornando o texto, o livro, o poema, a pintura e todas as formas de linguagens irresistíveis. No entanto, não é isso que acontece na maioria dos casos, como veremos a seguir, no relato da intervenção a partir de duas narrativas. 68 4.4.4 O maribondo zangado e a letra do nome Em uma das creches, as crianças das quatro turmas de um turno (Maternal I e II, Pré-Escolar I e II) se reuniam no pátio para ouvir a professora fazer a leitura da história do dia. Tratava-se de uma atividade que fazia parte de um projeto de leitura literária realizado pela creche, no qual as professoras se revezavam para efetuar a leitura, uma a cada dia. Em certa ocasião, a professora contou a história de um maribondo muito "zangadinho"; e, assim, esse personagem conquistou logo a atenção das crianças. Após a leitura, a professora pediu as suas crianças que identificassem, entre seus colegas de classe, quem tinha o mesmo comportamento do maribondo. É possível ver neste exemplo, um caso clássico de uma prática de leitura que busca apenas apontar características negativas, provavelmente, com o intuito de amenizar conflitos entre as crianças, o que é uma situação muito frequente entre esses aprendizes nessa fase de desenvolvimento. Nesse procedimento, não foi possível observar qualquer outra forma de abordagem da literatura como obra de arte, o que ratifica que a leitura fruição sempre cede espaço à busca por normas e valores quando se trata da EI. Em ocasião seguinte, outra professora de uma turma de Pré-Escolar II (crianças de cinco anos) relatou entusiasmada sua prática de leitura com as crianças, afirmando que durante a leitura, aproveitava para mostrar às crianças a letra inicial do nome de um personagem e comparar com a inicial do nome de uma delas. Segundo essa professora, essa prática “dá muito resultado” porque, como “as crianças prestam bastante atenção às histórias, é um excelente momento para ensinar a ler”. Os dois casos acima são exemplos de práticas muito frequentes na EI. O que eles nos fazem ver? Vejamos: o primeiro caso exemplifica claramente a concepção de 69 literatura com objetivo pedagógico, pragmático, instrumento de disciplina, modelador de comportamento. Concordamos, portanto, com Bragatto (1995) ao afirmar que, no que se refere a leitura literária, ainda predominam concepções e práticas que reservam à literatura um papel equivocado de instrumento de aperfeiçoamento linguístico e modelador de comportamentos (BRAGATTO, 1995). Nesses casos, podemos evocar Amarilha (2001 p.17-18): “a narrativa é usada para acalmar as crianças quando estão muito inquietas e também para impor silêncio e disciplina ao caos que, às vezes, ocorre na sala de aula”. Essa reflexão é muito apropriada para as duas circunstâncias apresentadas. No segundo exemplo, percebemos a preocupação da professora com a apreensão do código pelas crianças através dos textos literários, descaracterizando, assim a obra literária e sua função rica e humanizadora. Por isso entendemos que, desde a Educação Infantil, devemos oportunizar situações de interação e convívio com variados usos da linguagem escrita, especialmente com a leitura literária. Ao contrário de muitos educadores, alguns autores de literatura infantil sabem que a preocupação com objetivos pedagógicos descaracteriza a arte, como afirma José Paulo Paes: “Embora eu nunca tenha sido professor, acho que transformar a leitura de poemas em pretexto para tarefas escolares (...) destrói o prazer de ler” (PAES, 1996, p. 57). O mesmo afirma o francês Daniel Pennac (1998, p.78), quando argumenta, dizendo que “Parece estabelecido por toda a eternidade, em todas as latitudes, que o prazer não deva figurar nos programas das escolas e que o conhecimento não pode ser outra coisa senão fruto de um sofrimento bem comportado”. Mesmo professores de Educação Infantil, aparentam demasiada preocupação com a disciplina na sala de aula, como se fosse possível trabalhar e desenvolver os aspectos cognitivos reprimindo os sensoriais e motores. As crianças pequenas têm os sentidos aguçados: ouvir, cantar, tocar, falar, gritar, correr, pular, dançar são ações sempre interessantes 70 e saudáveis para elas. Mas a escola prefere, muitas vezes, deter-se ao léxico, ao código, reprimindo o que elas têm de mais natural e espontâneo. Parece que o que fascina e encanta, na maioria das vezes, fica reservado para a hora do recreio; na sala de aula quase tudo é obrigação. Sabemos que a criança que tem contato com textos significativos apresenta uma capacidade enorme de compreender uma história. Se o professor poda essa habilidade, limita não só o texto como a possibilidade de prazer. Conforme argumenta Campos (1999), para que o prazer estético ocorra, “o sujeito precisa tomar posição, enamorar-se do objeto estético, o que possibilita uma reciprocidade, um envolvimento entre ambos a partir da ausência de interesse imediato”. (CAMPOS, 1999, p. 134135). Fazer um comentário inadequado após a leitura do texto, como fez a professora ao referir-se à criança, comparando-a com o Maribondo zangado, ou cobrar a identificação de letras (como a professora do segundo caso) muda completamente a leitura fruição, conduzindo o momento da leitura, que poderia ser de alegria, liberdade e prazer, a outro caminho; pois, pode fazer com que essa ocasião se torne em constrangimento e tédio. Atitudes como essas são não só inadequadas, mas são particularmente, contrárias à formação do leitor crítico e proficiente. 4.4.5 Uma proposta de leitura fruição Ao contrário das práticas de ler com objetivo de ensinar letras, palavras, conteúdos curriculares e morais, tão presentes na EI, o que desafia e encanta as crianças é a necessidade de se expressar. Junto a essa demanda de usar a linguagem de forma livre e inusitada, vemos o exemplo de Andrei, (três anos), que durante um passeio pelo jardim da creche, observou o pé de acerola e ao ver a fruta vermelhinha, exclamou: “Oh, tia essa já 71 amadorou!”. Então, como não se juntar a ele para fazer “peraltagens” com as palavras? Vejamos agora alguns eventos em que a abordagem da narrativa é feita de forma oposta à citada anteriormente, de modo que as crianças são consideradas leitoras e, portanto, são estimuladas a ler, interpretar e construir sentidos. Na intervenção pedagógica, nesse projeto piloto, durante uma aula com uma turma do Maternal I (formada por crianças de dois anos a dois anos e dez meses) fizemos a leitura de um quadro exposto no hall de entrada da escola em que se via uma casa com varanda, localizada em uma floresta. Na varanda estavam: Chapeuzinho Vermelho e sua avó, ao lado da casa, um lenhador cortando uma árvore e o lobo, próximo à varanda. Observamos o quadro por alguns instantes e sugerimos que as crianças falassem sobre ele. A seguir descreveremos as falas que julgamos relevantes para análise neste momento da pesquisa: Figura 9: Quadro lido pelos sujeitos da pesquisa piloto. 72 Aldo: “O Lobo vai soprar a casa até derrubar!” Carla: “Cadê a mãe de Chapeuzinho?” Raul: “Chapeuzinho já chegou na casa da vovó dela, o Lobo chegou depois.” Ao ler a imagem, Aldo se utiliza do conhecimento prévio sobre a estória Os Três Porquinhos lida para eles na semana anterior, estabelecendo uma intertextualidade entre as duas histórias. Apesar de ter apenas dois anos e cinco meses, Aldo demonstrou ser capaz de usar estratégias de leituras (conhecimento prévio, intertextualidade) para produzir o sentido do texto (texto imagem, no caso). Com base em seu conhecimento das histórias, este leitor em formação demonstra uma habilidade fundamental, antecipando a ação de um personagem, ainda que tenha confundido o papel do personagem nas duas narrativas em questão. Ao questionar a ausência da mãe de Chapeuzinho, Carla pareceu ter percebido que faltava um personagem da narrativa que não aparecia retratado na cena, demonstrando entender que o quadro não representa a narrativa, e sim o cenário (floresta) e seus personagens. Neste caso, a mãe deveria constar no quadro, mesmo que ela, no enredo, não apareça na floresta. Já a fala de Raul evidencia que conhecia o enredo da narrativa (conhecimento textual) ao afirmar que a menina chegou a tempo de ficar com avó, pois, no quadro, o lobo não invadia a casa, nem alcançou as duas. O fato de acreditarmos que as crianças são capazes de entender as histórias, de construir sentidos, de aprender sobre o mundo e a linguagem através delas fez com que assumíssemos uma atitude diferente da que foi descrita na seção anterior. Em vez de focar nossa atenção no que a criança ainda não sabe ou nos seus "erros", valorizamos o conhecimento que elas já têm e como constroem o sentido dos textos lidos. Acreditamos que, ao fazer a leitura do quadro exposto no hall da creche fizemos o papel de alcoviteiro do qual nos fala Pennac (1998), isto é, facilitadores dos 73 encontros, das paqueras das crianças com a linguagem escrita, especialmente com a leitura literária. No que diz respeito à leitura, a criança pequena é como um trabalhador incansável, sedento por fazer, por descobrir, por ler. Por isso, temos tanto o que trabalhar e aprender com elas! Pois, como afirma Manoel de Barros, “a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”. (BARROS, 1999, p. 7). Assim, podemos aproveitar a liberdade que existe nessa fase escolar para formar leitores críticos, ávidos por descobrir o mundo. É relevante lembrar que a atitude de promover momentos de sedução do leitor em formação e de convívio diário e prazeroso com a leitura literária é dever da escola, mas não basta. Como nos alerta Cosson, precisamos propor a proficiência da leitura do mundo, uma vez que ele é feito linguagem (COSSON, 2006). Acreditamos ser pertinente, apresentar de forma lúdica textos literários, para contribuir com a formação do gosto pela leitura, possibilitando o acesso ao rico mundo da linguagem literária, que pode seduzir, provocar, transformar e contribuir para a formação do leitor. Identificamos que atitudes como as das professoras dos dois primeiros casos apresentados dificultam a formação de um leitor proficiente, crítico e criativo que a escola se propõe a formar. O leitor/ouvinte que tem experiências de leitura repressoras com um professor que impõe seu modelo de leitura, certamente, terá mais dificuldades de se tornar um leitor proficiente ou gastará mais tempo para consegui-lo. Crianças que na escola escutam histórias apenas para responder a questionários, retirar dos textos letras, palavras ou frases, poderão perder o interesse pela leitura e esta poderá se tornar um tedioso dever. Entendemos que para contribuir com a formação de leitores, precisamos criar espaços agradáveis na escola, o convívio com professores capacitados e comprometidos, que se preocupem em conhecer e escolher bons textos de LI, que cobrem das autoridades acervos adequados. Acreditando na literatura como arte, 74 precisamos trabalhar com ela oportunizando as crianças um acesso democrático à arte, possibilitando a apreciação e o deleite da leitura. 75 CAPÍTULO V ENTRANDO NAS HISTÓRIAS... LEITURAS-FRUIÇÃO E BRINCADEIRAS "Não se força uma curiosidade, desperta-se. Ler, ler e ter confiança nos olhos que se abrem, nas cabeças que se divertem, na pergunta que vai nascer e que vai puxar uma outra pergunta." Daniel Pennac Imagem retirada da revista Construir notícias número: 21 março/abril 2005. 76 5. ENTRANDO NAS HISTÓRIAS... LEITURAS-FRUIÇÃO E BRINCADEIRAS Uma história não tem necessidade de ser verdadeira, mas de ser bela, diz a gaivota Alexandra. James Krüss (Le Chasseur d'étoiles et autres histoires) Para iniciarmos as intervenções, planejamos quatro sequências didáticas (apêndice 1, 129ss), que serviriam como base para as nossas aulas, cada uma com uma narrativa a ser lida/contada, a saber: Chapeuzinho vermelho, na versão de Perrault, (1883/1994); A última árvore do mundo, de Lalau e Laurabeatriz, (2010); A Margarida friorenta, de Fernanda Lopes de Almeida, (2010) e Girafas não sabem dançar, de Giles Andreae, Guy Parker e Corina Fletcher (2009). Nosso intuito era procurar, com cada história, ajudar a turma em algum aspecto que havíamos julgado necessário e, nesse sentido, assumimos uma postura pragmática, uma vez que o nosso intento não era apenas a fruição, mas também havia uma intenção de proporcionar reflexão no espaço da sala de aula. Identificamos essa necessidade no momento em que observamos que as crianças questionavam a professora sobre as atividades, por vezes, repetidas; sobre o fato de não terem uma recreação livre e também sobre alguns procedimentos em sala de aula como orações e entoação de cânticos, dentre outras coisas. Com a história Chapeuzinho vermelho, na versão de Perrault, pretendíamos identificar se aquelas crianças conheciam a história e, especialmente, nessa variante. O nosso desígnio era perceber como eles reagiriam a esse enredo considerando-se que se trata de uma versão omitida aos pequenos, na maioria das vezes. 77 Observando que a professora estava trabalhando o tema da ecologia, encontramos na história A última árvore do mundo, de Lalau e Laurabeatriz, um caminho para discutir os conteúdos daquele trimestre, levando fruição, sem escapar dos conteúdos a serem ministrados. Com a narrativa A margarida friorenta, por exemplo, pretendíamos proporcionar um momento de encontro afetivo da professora com a turma e viceversa. Algo que nos chamou bastante a atenção durante as observações das aulas foi o ambiente pouco aconchegante da sala, onde os momentos de carinho eram quase inexistentes. A narrativa em questão aborda o tema da carência afetiva, o que, a nosso ver, poderia estimular um momento de reflexão sobre a temática e talvez de mudança de atitude dos envolvidos. Já a história Girafas não sabem dançar foi apresentada com o intuito de levar àquela turma uma oportunidade de se expressar através da dança, dançando livremente ao som de poemas musicados e de um relaxamento com sons da floresta, na pretensão de oportunizar leitura, arte, prazer e liberdade, diversificando o "clima" didático predominante naquela sala. Ao percebermos que os momentos de leituras e contação de histórias eram raros ou quase inexistentes na turma, resolvemos nos dispor a prolongar o período dos encontros das leituras de narrativas literárias com as crianças. Posteriormente, também foram apresentadas a elas outras obras: O almoço, (livro de imagem) de Mário Vale, (1987); Maria vai com as outras, de Sylvia Orthof, (2010); Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado, (2010); Pinote, o fracote, e Janjão, o fortão, de Fernanda Lopes de Almeida, (2010). Dentre vários livros mostrados às crianças, esses foram os escolhidos por elas, para serem lidos. Os encontros posteriores aos da intervenção, deveriam acontecer semanalmente durante quatro semanas às sextas-feiras, no final do expediente, de acordo com a conveniência da professora. Apenas um dos quatro encontros acordados aconteceu efetivamente porque, nas visitas subsequentes ao primeiro, a 78 educadora nos explicou sobre impossibilidade da nossa intervenção, já que, segundo ela, as crianças precisariam ensaiar para a apresentação natalina. Nas aulas observadas durante o período de adaptação da pesquisadora, as atividades propostas pela professora se resumiam a pintar desenhos prontos, copiar letras ou palavras, ler palavras previamente escritas por ela (geralmente as palavras estavam relacionadas ao tema trabalhado, neste caso; animais); exercícios de reforço9 que, segundo a docente, ajudavam no desenvolvimento da escrita; cantar na hora das refeições ou para iniciar a aula (geralmente música referente ao tema, como animais, por exemplo). As brincadeiras geralmente eram realizadas na sala, com carrinhos, bonecos, jogos de encaixe ou modelagem com massa, o que proporcionava um ambiente de ações contidas e facilmente controláveis. Também eram raros os conflitos, a não ser quando alguma criança questionadora reclamava das atividades propostas, ou se outra criança tomava um brinquedo do colega. Cada um realizava sua tarefa individualmente e era estimulado a não interferir no trabalho dos outros, mesmo se esses solicitassem ajuda. Apesar de se tratar de uma turma de Pré II, com crianças de faixa etária entre cinco e seis anos, elas não vivenciavam situações que demonstrassem afeto entre si. Mesmo nas atividades feitas em conjunto, como colagem de gravuras em um mesmo cartaz, eram sempre orientadas a não ajudarem os colegas. Apenas na hora de guardar as peças dos jogos de encaixe, as crianças participavam efetivamente de uma atividade coletiva, momento em que conversavam descontraidamente enquanto organizavam a sala. Embora a turma fosse pouco numerosa, havia uma constante preocupação por parte da educadora em controlar e superproteger as crianças, ou de acidentes, ou de disputas entre elas mesmas; por isso, geralmente o grupo acatava os comandos da 9 Cada criança possuía uma pasta com uma sequencia de exercícios que consistiam em copiar letras de imprensa ou cursiva, números e traços. Que variava de acordo com as "necessidades" de cada criança. 79 professora. Ao longo das observações, notamos que a educadora desceu com sua turma para o pátio apenas duas vezes, favorecendo algumas brincadeiras, pois nessa ocasião ela não consentiu que brincassem no parque (balanço e escorregador) alegando ser perigoso. Nestes dois dias, foi permitido que as crianças brincassem somente na área coberta, sem correr nem gritar; alguns utilizaram os mesmos brinquedos permitidos na sala de aula (carrinhos, bonecos, bonecas e telefone). É sabido, através de vários estudos de autores como Piaget (1987), Vygotsky (1991), dentre outros, da importância da brincadeira para o desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Sabe-se também que essa experiência ocorre em um contexto sóciocultural que interfere e marca esses sujeitos históricos e sociais. Segundo esses estudiosos, as crianças pequenas que vivenciaram jogos simbólicos com maior frequência apresentam maior desempenho em testes de desenvolvimento cognitivo criados por Piaget (op.cit.), do que crianças com menor freqüência nesses jogos. Entendemos, consequentemente, que mesmo as brincadeiras espontâneas, sem um direcionamento especial de um adulto, favorecem a aprendizagem sobre as funções sociais e os papéis dos sujeitos na sociedade em que vivem, sendo, portanto, uma produção cultural dessa sociedade. Essa aprendizagem inicia-se desde os primeiros meses de vida e, de um modo geral, é uma interação entre mãe e bebê; nesse aspecto podemos perceber que é o adulto que, de certa maneira, confere sentido, dar significado a essa cultura lúdica. Ainda dentro desse argumento, entendemos que é fundamental o papel do adulto para a contribuição do desenvolvimento infantil. Reiteramos o pensamento de Lev S. Vygotsky (op.cit.) em sua obra Formação Social da Mente, ao destacar a importância da mediação do adulto nos momentos de brincadeiras com as crianças. A importância da brincadeira para o desenvolvimento infantil pode ser compreendida com base no conceito de "zona de desenvolvimento proximal", definido por Vygotsky (op.cit.) como a "distância entre o nível de desenvolvimento real, quando 80 a criança resolve problemas com independência e o nível de desenvolvimento potencial" (VYGOTSKY, op.cit., p. 60; itálico nosso) quando necessita da orientação de um adulto ou da colaboração de um companheiro mais experiente. Como podemos observar, Vygotsky destaca o papel das interações entre o que o sujeito já sabe (seu nível de desenvolvimento real) e aquilo que pode aprender com outros mais capazes ou experientes, o que inclui não só as pessoas responsáveis pelo cuidado e educação das crianças, mas também seus próprios colegas. As brincadeiras são uma forma particularmente significativa de representação de variadas atividades sociais realizadas pelos adultos, a exemplos do brincar de escolinha, espontaneamente realizado por muitas crianças. Assim, quando brinca de escolinha, quando calça os sapatos da mãe ou imita o pai fazendo a barba, as crianças estão realizando um importante esforço de compreensão e representação do mundo adulto, o que contribui significativamente para seu desenvolvimento. Sendo assim, o adulto tem uma função central no desenvolvimento social e cognitivo infantil e tanto as brincadeiras com apoio dos adultos, quanto as livres são essenciais para essa formação e devem estar presentes na educação de crianças, principalmente das pequenas. Outros estudiosos como Piaget (1987) e Oliveira (2000) também argumentaram sobre o papel das brincadeiras para o desenvolvimento emocional, motor, cognitivo e social das crianças. Existem argumentos baseados em uma visão antiga de que a brincadeira é perda de tempo. Piaget (op. cit.), porém, via nas brincadeiras das crianças pequenas como uma importante atividade infantil, na qual as crianças põem em ação os processos de construção de esquemas cognitivos. Essas brincadeiras iniciam-se quando ainda bebês e com o seu próprio corpo, chupando o dedo, pegando os pés ou as mãos e, progressivamente, evoluem para a manipulação, exploração e reconhecimento de objetos, favorecendo o conhecimento de si o do ambiente em que estão inseridos. 81 Piaget (ibibd.), assegura que as brincadeiras de faz-de-conta ou jogos simbólicos como ele denominou, são bastante significativos para o desenvolvimento global da criança, já que através deles lhes é possível simular situações semelhantes às vivenciadas na realidade. O adulto deve promover um ambiente seguro e participar de seus dramas, permitindo a expressão de anseio, desconforto emocional e esperança, gerando resoluções de conflitos interiores. (PIAGET; INHELDER, 1969 apud SHAFFER, 2009). Para Oliveira (2000), a brincadeira infantil é a atividade dominante para as crianças. E é importante que os educadores reconheçam o papel dessa brincadeira, compreendendo sua relevância para o seu desenvolvimento. Segundo essa autora: Esse desenvolvimento não se dá de forma gradual e acumulativa, como muita gente supõe. Ele se processa como que aos saltos, havendo a cada salto um momento de ruptura ou desequilíbrio, que cria oportunidade para uma nova organização do comportamento da criança. (OLIVEIRA, 2000, p.38). A brincadeira de faz de conta, por exemplo, pode revelar e transformar os sentimentos contraditórios das crianças: de medo, ódio, admiração, alegria, abandono, entre outros. Ao ouvir histórias de fadas, bruxas, lobos, girafas, as crianças identificam-se com as personagens revivendo com elas os anseios e as emoções. Esse distanciamento permitido pela fantasia é de suma importância para trabalhar suas emoções mais fortes e, portanto, fazê-las avançar em seus pensamentos e comportamentos, transformando-os. Foi nesse sentido que pensamos as atividades de contação/leitura-fruição, bem como as recreativas, para executarmos com os sujeitos desta pesquisa. Tais procedimentos serão descritos e analisados a seguir. 5. 1 Chapeuzinho Vermelho: negação, recusa ou catarse? Ao escolher cada narrativa, procuramos levar para a turma algo que oportunizasse não apenas o prazer e o gosto pela leitura, mas que também a 82 motivasse à crítica, ao questionamento, à mudança, à maturidade, ao crescimento. Assim, buscamos levar conhecimento literário estimulando ao mesmo tempo o autoconhecimento. Além disso, com a leitura do conto de fadas Chapeuzinho vermelho, pretendíamos investigar a recepção dessa obra clássica por aqueles pequenos leitores, observando se todos a apreciavam, quais versões conheciam e de qual mais gostavam. Essas interrogações tinham como principal objetivo proporcionar um momento de fruição da leitura literária. Convidei as crianças a sentarem-se em um tapete na sala e, nesse primeiro momento, apresentei um cesto. Houve suspense a respeito do que haveria ali dentro e foi explicado que tinha relação com a história que seria contada. Renato inferiu que deveria ser de Chapeuzinho, já que na história a menina tem um cesto e também por ele estar vendo que tinha algo vermelho dentro dele, “pela brechinha”. Dentro do cesto havia um par de óculos, um capuz vermelho, um par de orelhas marrons peludas e um rabo com essas últimas características. Ao ver a espessura do livro, Alan falou espantado e feliz: - “Eita que historona! Tu vai ler todinho, né?”. A reação dele nos chamou a atenção e entendemos com isso que os momentos de leitura e contação seriam interessantes, pelo menos para aquela criança. Então, expliquei que naquele livro havia várias histórias e que naquele dia seria lida a de Chapeuzinho Vermelho. Falei um pouco sobre o autor, seu nome, que morou em um lugar muito longe e muito frio e que ele já havia morrido quando eles ainda nem tinham nascido, que tinha escrito outras histórias, para adultos e crianças. Perguntaram se era meu amigo; expliquei que eu também não era nascida quando ele morreu. Mostrei também, um livro escrito em francês com as mesmas histórias. As crianças me pediram que lesse e, ao ler um pequeno trecho de Petit Chaperon Rouge, riram e Renato falou: -“Ela tá lendo em inglês, eu não entendo é nada!” 83 Expliquei, então, que a língua era francesa, e citei outras narrativas do autor: O gato de botas, A bela adormecida do bosque, O pequeno polegar. Ao serem questionadas se elas as conheciam, algumas crianças comentaram já ter visto as histórias de A bela adormecida, Branca de Neve e Bem 10, em DVDs. A abordagem de Chapeuzinho Vermelho foi feita da seguinte forma: a história foi contada e não lida, nesse primeiro momento; no entanto, utilizei as ilustrações do livro Os contos de Perrault (1994) para que eles pudessem, além de acompanhar com os objetos, participarem a partir das ilustrações. Para iniciarmos, contei a narrativa, enquanto tirava do cesto os objetos para ilustrar os personagens (capuz vermelho, orelhas, rabo e óculos), de acordo com a sequência do enredo procurando sempre modular a voz durante "as falas das personagens". Ao terminar, Alan reclamou: - ”Termine, não terminou ainda não!”. Respondi que havia terminado e ele protestou: - “Olha aqui!”, mostrando o livro e afirmando categoricamente: -"Você só leu até aqui. Tem mais no livro. Esse livro é bem grande. Leia o resto.” Com essa atitude, Alan nos mostrou ter um conhecimento próprio do leitor iniciante, de que o que está escrito pode ser lido, mas também o seu desagrado pelo final da história. E Pedro afirmou: - “Essa história é mau, eu não 'gosti' não”. Comungando do mesmo sentimento de Alan, outras declarações semelhantes surgiram como a de Carla, que também se pronunciou dizendo: - “Cadê o caçador?! num termina assim não. É assim: o caçador pega o lobo, abre o bucho dele e tira a avó de dentro, depois bota um monte de pedra, aí quando ele vai tomar água, morre. Ele cai no açude e morre.” E Nilton também contribuiu com o seu protesto: 84 -“Conte o resto!”. Verônica, considerada apática pela professora, pois raramente falava, a não ser quando era solicitada, asseverou, com certa agressividade e indignação: -“Tem que ter o caçador para salvar a vovó e Chapeuzinho.” Ao perguntar se gostaram de ouvir a história, as crianças responderam que haviam gostado, mas que queriam ouvir a que tem o caçador. Na intenção de provar que contei o que estava escrito, apresentei novamente a mesma narrativa, dessa vez lendo, o que, claro, não os satisfez. Ficou evidente para nós a reação das crianças em relação ao final da história de Perrault, em que tanto a avó, quanto a Chapeuzinho são devoradas, sem salvação. Combinamos, então, que no encontro seguinte, levaria a versão dos irmãos Grimm, em que há o final esperado pela turma. Cabe-nos destacar que as diferenças entre a narrativa de Charles Perrault e a dos irmãos Grimm tem altercações muito marcantes, principalmente no que se refere ao desfecho. Na versão do autor francês, vemos uma menina muito linda e querida por sua mãe e sua avó, que a presenteou com um lindo capuz vermelho. A menina gostou tanto desse presente que, de tanto usá-lo, recebeu o apelido de Chapeuzinho Vermelho. Um dia sua mãe enviou Chapeuzinho para visitar sua avó, que morava em uma aldeia vizinha e que estava doente, levando-lhe bolo e manteiga. Ao atravessar a floresta, a menina encontrou-se com o Lobo, que quis saber aonde ela ia. A garotinha informou ao Lobo o endereço da avó e ele, que sabia de um caminho mais curto, chegou primeiro à casa da velhinha, fingindo ser sua neta, entrou e devorou a pobre senhora. Em seguida, deitou-se para esperar a garota que chegou algum tempo depois. Ao chegar, Chapeuzinho foi orientada pelo Lobo, que fingia ser a sua avó, a despir-se e deitar-se na cama ao seu lado. Estranhando a aparência da suposta avó, a menina inicia uma série de perguntas a respeito do tamanho de seus braços, pernas, orelhas, olhos; e o Lobo justifica-se dizendo-lhe que é para tratá-la melhor. Finalmente, ao questionar sobre o tamanho dos seus dentes, ele afirma que é para comê-la, avançado e a devorando. Assim termina a narrativa desse autor, 85 variante que, de um modo geral, não é apreciada pelo grande público por se crer que ela pode causar traumas, em especial, às crianças. Essa versão representa, de modo bastante evidente, o valor da literatura na época de Perrault, (cf. item 3.1 desta dissertação). Ao contar a história da Chapeuzinho vermelho, de Perrault, pretendíamos levar as crianças a conhecerem uma versão que, de certa forma, também provocasse uma reação mais intensa. Portanto, retomamos o pensamento de Arriès (op. cit.) para respaldar a intenção ao abordar essa versão naquele ambiente específico. Para esse historiador do universo infantil, inicialmente, as crianças eram tratadas como pequenos adultos, sem se considerar as especificidades dessa fase. Com o advento do período histórico conhecido como paparicação (segundo a tradução de Dora Flaksman, 2011), as crianças passaram a receber um tratamento bem diferente do que recebiam no período anterior e, então, conforme o próprio termo sugere, elas passaram a ser excessivamente protegidas, sendo "paparicada", atitude que se pode observar na versão dos irmãos alemães, em que o final é suavizado pela interferência dos caçadores que salvam a protagonista e a sua avó. Enquanto no texto de Perrault o lobo apenas adia a sua ação de devorar Chapeuzinho, ali mesmo na floresta, para evitar ser flagrado por lenhadores que trabalham por perto, os Grimm tiram esses lenhadores do anonimato transformando-os em caçadores atuantes. Parodiando essas histórias, alguns autores como Chico Buarque, (2003) resolveram mostrar uma Chapeuzinho malvada enquanto o lobo é o enganado por ela. Nesse texto Chapeuzinho Amarelo, o lobo aparece como um bobo e covarde. Já no filme Deu a louca na Chapeuzinho, dirigido por Cory Edwards, (2005), essa personagem aparece como uma verdadeira ninja, diferenciando-se drasticamente da frágil menina ingênua e indefesa de Perrault/Grimm. Quiçá seus criadores considerem essas características (ingenuidade e fragilidade) inadequadas para com os leitores do século XXI. 86 Atualmente, percebe-se, na educação infantil moderna, um intento de se estabelecer limites, vivendo-se uma fase na qual não se defende nem a permissividade ou a paparicação, nem tampouco um comportamento que trate as crianças como pequenos adultos, mas que delegue a elas direitos e responsabilidades de acordo com suas capacidades intelectuais; para tanto, precisa-se conhecer as suas necessidades e, só assim, contribuir para seu desenvolvimento motor, emocional, afetivo, psicológico, cognitivo e social. Considerando esses aspectos e entendendo que há na literatura uma possibilidade de transformação/mudança e de avanço no autoconhecimento, no contar da versão perraultiana, subjazia a necessidade de provocar não somente o rico imaginário infantil, mas, sobretudo, a reação catártica de vingança, evidentemente, dentro da mimesis que o texto literário pode instigar. É importante também destacar o pensamento de Held (1980, p. 39), ao afirmar que "o fantástico é a zona fronteiriça inatingível, crepúsculo cão e lobo em que contornos se misturam [...], mantendo, por isso, estreita relação com a infância". Consequentemente, ao contar essa versão às crianças e fazê-las acreditar que todos aqueles fatos ocorreram, inclusive a morte da protagonista e de sua avó, busquei estimular esse universo fantástico do imaginário infantil e pude evidenciar que, principalmente por isso, as crianças puderam se manifestar quanto à discordância com o desfecho da história. Isso se deu porque a contação obedeceu a uma regra básica: aos personagens, foi dada vida, com vozes e gestos característicos e por essa razão pude identificar que não houve nenhum tipo de trauma sofrido pela turma e sim uma reação catártica. Assim, confirma-se Held (op. cit.) ao afirmar que não se precisa docilizar demais a vida das crianças, levando-as a ver que se o nascimento e o casamento fazem parte da realidade, a morte também o faz. Ainda segundo a autora, o conto literário pode ser um elemento "catalizador que permitirá, em alguns casos, essa liberação necessária, essa libertação psíquica" (HELD, op. cit. p.96). 87 Baseando-se nessas observações, sugeri que cada criança ilustrasse com um desenho a história contada, na intenção de verificar o expressar-se de cada uma delas a partir dessa atividade de ilustração, pois assim eu poderia identificar até que ponto houve recusa e negação quanto à apreensão do enredo. Solicitei, nesse contexto, que as crianças desenhassem a história da Chapeuzinho vermelho, na versão de Perrault. Apesar de não desenharem o caçador, foi percebida mais uma vez a demonstração de insatisfação com o desfecho dado pelo autor francês, tanto à Chapeuzinho e à avó, quanto ao "malvado" lobo. Ilustração de Renato sobre a história de Chapeuzinho vermelho Renato, por exemplo, desenhou o lobo com um pingo de chuva sobre a cabeça e afirmou: -"É um pingo de chuva para ele se molhar e ficar gripado. Verônica desenhou Chapeuzinho vermelho se soltando do lobo e esse com a barriga cheia de pedras, como sugeriu uma colega. 88 Desenho de Carla sobre a narrativa “Chapeuzinho vermelho” Carla, em sua ilustração, retratou o lobo doente da barriga. Há exemplo de outras crianças que, ao desenharem a narrativa, também procuraram punir o lobo, vingando o comportamento desse personagem através de sua ilustração, mesmo que esse fato não tenha ocorrido na história lida/contada confirmando o comportamento catártico, punindo o lobo pelo seu delito. Todas as ilustrações comprovam o que foi discutido acima. A versão perraultiana não provocou traumas, mas sim, uma atitude de purgação, tanto na gripe do lobo, ou na barriga cheia de pedras, quanto na doença do personagem. Em todas essas ilustrações, observa-se um intento de castigo, logo, vê-se a catarse provocada por essa leitura fruição. Outro recurso expressivo usado pelas crianças para indicar sua recepção da história foi desenhar a Chapeuzinho bem maior que o lobo, como mostram os exemplos de Alan e Kelly, abaixo. 89 Desenho de Alan da narrativa Chapeuzinho Vermelho - frente Desenho de Alan da narrativa Chapeuzinho Vermelho - verso Ao observar os desenhos das crianças, podemos notar que a maioria delas (sete de dez), retratou o Lobo menor ou do mesmo tamanho que a Chapeuzinho. 90 Pedro, apesar de ter desenhado o lobo maior, me pediu que ao lado do desenho de Chapeuzinho eu escrevesse Chapeuzão. Vale lembrar que a insatisfação dessa criança já havia sido manifestada logo após o término da leitura, afirmando que não havia gostado da história porque "a história era mal". Nota-se um mesmo significado nas ilustrações, o de purificação, isto é, a de purgar-se da presença do lobo mal. Isso confirma que além de não ter provocado trauma, a abordagem estimulou um comportamento de "liberação necessária e de libertação psíquica", no dizer de Held (op. cit.), percebida ao se punir o lobo ou fazê-lo menor, portanto, menos importante que a Chapeuzinho. Essa mesma manifestação de expressão pictórica pode ser vista em crianças de faixa etária semelhante a dos sujeitos da pesquisa, que solicitadas a desenharem a família, as crianças que tem o pai ausente, comumente o retratam bem menor que a mãe e, em alguns casos, que os irmãos. Esses dados nos pareceram relevantes, pois podem demonstrar o desejo de poder das crianças leitoras sobre o vilão Lobo, além de delegar à protagonista uma maior identificação com elas. Percebi nesse momento, que a motivação para a realização dos desenhos das crianças não era apenas o enredo em si, mas a necessidade de purgação, dando outro final para a narrativa que construísse uma imagem esperada para provocar a catarse necessária. Essa catarse se constitui em um dos principais estudos de Aristóteles, (1449b) que identificou na cartarse, um processo proporcionado pela tragédia grega, ocorrido nos expectadores durante os espetáculos teatrais; isto é, a descarga emocional vivenciada por eles ao se identificarem com uma ou outra personagem, com seus sofrimentos e seus dilemas. Segundo Aristóteles (op. cit.), essa experiência pode levar o expectador a buscar a resolução de seus conflitos interiores, algo que faz de maneira inconsciente. Pavis (2003) citando esse filósofo, afirma que "A catarse é uma das finalidades e uma das consequências da tragédia que, provocando piedade e temor, opera a purgação adequada a tais emoções" (PAVIS, 2003, p. 40). 91 Por essa razão, as análises da abordagem desse conto foram vistas pelo prisma da catarse, pois identificamos o mesmo comportamento nas crianças, uma vez que a contação, (a narrativa teatralizada/dramatizada) provocou uma descarga emocional, no momento em que elas se identificaram com a personagem principal, vítima do antagonista. Nesse sentido, a mimesis foi determinante para incitar a tal catarse. Após a atividade de ilustração, descemos para o pátio e brincamos da cantiga de roda Tá pronto seu lobo? Sugeri que eu faria o papel do lobo e a professora deveria protegê-los dele. Intencionalmente, queria provocar mais afetividade entre a professora e suas crianças. Durante a realização dessa atividade, era unânime a demonstração de satisfação nas crianças, principalmente ao abraçarem a professora, esconderem-se atrás de suas pernas, procurando permanecer sempre perto dela. Verônica se lançou na brincadeira, gritou, correu, riu e vibrou bastante quando o rabo do "lobo" caiu, demonstrando cumplicidade com a turma e com a sua professora. Durante a volta para a sala, algumas crianças correram na frente e foram advertidas pela professora para voltarem para a fila. Elas estavam eufóricas e ao chegarmos à sala demonstravam satisfação, enquanto comentavam e perguntavam para a professora se ela havia gostado. A professora nos falou que embora estivesse exausta e do mau comportamento da maioria das crianças de volta à sala, ela tinha se divertido e ficado surpresa por eles acreditarem que no momento da brincadeira, eu era realmente o lobo. Ao conversarmos um pouco sobre o imaginário infantil, presente na faixa etária de sua turma, ela reafirmou está surpresa, principalmente por Nilton, segundo ela, por ser tão inteligente, não esperava que até ele acreditasse, demonstrando com isso associar a fantasia a pouca inteligência ou a imaturidade intelectual. Ao discursar sobre o imaginário infantil Held (op. cit.) nos alerta que: "Se não há, por parte do meio ambiente, censura, atitude de reprovação ou de zombaria que terminam num bloqueio, essa personificação-projeção vai persistir além dos seis anos 92 e alimentar as criações da criança." (HELD, op. cit. p. 40). E como não podar essa capacidade poética e criativa das crianças se não a conhecemos? Como estimular um potencial que desconhecemos o seu valor? Ao final da manhã, ao se despedirem, algumas crianças perguntaram se levaria o cesto e mais histórias. Com isso, sentimos que o cesto poderia simbolizar algo que, até então, não sabemos explicar, mas resolvemos levá-lo para a outra aula. No encontro seguinte, levei a versão dos Irmãos Grimm da história de Chapeuzinho vermelho. Mostrei o livro e sugeri que a turma nos contasse o enredo que conhecia. Depois, as crianças pediram que eu lesse a narrativa. A narrativa na versão dos escritores alemães relata que a menina se chama Chapeuzinho Vermelho porque só vivia com um capuz dessa cor. Certo dia sua mãe pediu que ela fosse visitar a sua avó que estava doente e morava do outro lado da floresta. Ao enviar a menina, sua mãe tratou de alertá-la sobre o perigo de dar a atenção a desconhecidos e, ainda, que cuidasse do presente: um bolo e uma garrafa de vinho, que deveriam chegar intactos à casa da senhora. No caminho para a casa da avó, quando atravessava a floresta, Chapeuzinho se distraiu com as flores e as borboletas e foi surpreendida pelo Lobo que conseguiu enganá-la e, obtendo o endereço da velhinha, chegou primeiro que Chapeuzinho. Os fatos seguintes são semelhantes aos da versão de Perrault. Porém, ao descobrir que se trata do lobo malvado e não de sua avozinha, a menina grita assustada chamando a atenção de caçadores que passam próximo àquela casa. Esses homens entram e salvam a garota das garras da fera e, ao abrir sua barriga, retiram de lá a avó sã e salva. A turma demonstrou satisfação e algumas das crianças se manifestaram: Alan - “Tá vendo essa história é boa, tem o caçador”. Renato: -”O homi da outra, esqueceu não foi, de botar o caçador? Expliquei que “o homem”, Perrault, escreveu sem caçador mesmo e os outros, os irmãos Grimm, leram a história de Perrault e reescreveram-na colocando o caçador. 93 Nilton, então, afirmou: - “O outro homi também não gostou, sem caçador, não.” Com a intenção de fazê-los explorar um pouco mais as discussões, tão importantes para a formação do leitor, permitindo que assim se sentissem com liberdade de se expressar, discutir, criticar e debater, perguntei, então, de qual história eles haviam gostado mais: a que Perrault escreveu, que não tem caçador ou a dos irmãos Grimm, a que tem caçador? E todos, em uníssono, afirmaram: - “A dos irmãos!” Após esse momento, Alan perguntou: -“Tem mais história hoje?”, demonstrando grande interesse por ouvi-la. Respondendo à pergunta, afirmei que havia levado mais uma história. E ao conversar com as crianças sobre a história do dia, pedi que cada uma pegasse a sua cadeira e a posicionasse o mais próximo possível das janelas da sala. Depois pedi que subissem e observassem as árvores do jardim, que fica no piso mais baixo. Contamos juntos quantas árvores podíamos ver, qual a maior, qual a menor, se eram todas da mesma espécie, que frutos cada uma dá etc. Com esse procedimento, demos início à segunda intervenção de leitura literária naquela sala. 5.2 A última árvore do mundo: consciência ecológica Para iniciar a leitura da segunda história, sugeri que fizéssemos essa atividade em baixo de uma daquelas árvores, da que tinha a maior sombra. Combinei, primeiramente, com a professora, que iríamos descer para ler no jardim e, naquele momento, com as crianças. Todos queriam saber o que havia de surpresa no cesto. Expliquei que saberiam lá em baixo da árvore. Levei na mão o livro com a narrativa escolhida para o dia, A última árvore do mundo, e no cesto uma grande folha verde feita de TNT, acolchoada e dobrada que serviria para as crianças sentarem-se com certo conforto em baixo daquela árvore, onde a história seria lida. Além disso, levamos 94 também alguns objetos que nos auxiliariam na hora da leitura: um pequeno piscapisca que ilustraria o vagalume, um pau de chuva para identificar o som da chuva, uma pequena garrafinha de vidro vazia, usada para imitar o som do vento, um spray com perfume para ilustrar o cheiro da flor. Figura 15- Acácia, uma das árvores da creche. Fonte: arquivo pessoal da pesquisadora A escolha dessa narrativa e a atitude de ler em um ambiente diferente da sala de aula tinham como objetivo mostrar para as crianças e também para a professora as possibilidades de exploração do espaço escolar, tornando a aula atraente e surpreendente. Dessa forma pudemos motivar as crianças a cada dia com algo novo. Figura 16- Pé de castanhola, a que nos abrigou para uma das leitura/contação Fonte: arquivo pessoal da pesquisadora 95 Ao chegarmos ao jardim, Pedro perguntou se as árvores que vimos da sala eram aquelas mesmas, demonstrando que uma atividade tão simples, trouxe para ele um questionamento tão significativo. A visão a partir de anglos diferentes revelou que o ambiente frequentado por ele durante quatro horas por dia, cinco dias na semana, é pouco explorado e, portanto, pouco conhecido. Essa história tem como temática principal a reflexão sobre o futuro do nosso planeta. Fala sobre a vida de uma árvore; a última do mundo. De dia ela fazia sombra, esperando alguém para se abrigar do sol e, de noite, recebia a visita de um vagalume que passava toda a noite nela. Certo dia nasceu, em sua copa, um fruto, e um macaco o pegou para alimentar seus filhotes. Em um dia quente de verão, choveu forte e um esquilo aproveitou para tomar banho em cima dela. No outono, suas folhas caíram bem devagarzinho e uma formiguinha levou uma folha para o seu formigueiro. No inverno, fez muito frio e o vento assobiou entre seus galhos fazendo-a dançar. Na primavera, uma flor vaidosa se abriu e espalhou seu perfume pelo ar. Então, veio um beija-flor e beijou a flor da árvore. "Era uma vez uma árvore que amava o mundo. O último mundo da árvore." (LALAU; LAURABEATRIZ, 2010, p. 30) Durante a leitura da história, a maioria das crianças permaneceu concentrada e apenas Pedro se distraiu por alguns instantes, com umas sementes no chão, curioso 96 por saber do que se tratava, desconfiado de que fossem fezes de rato. Depois de receber a explicação de que se tratava de sementes de uma das árvores, Pedro expressou seu alívio e voltou a concentrar-se, mas antes nos explicou: -"É que meu tio morreu com doença de cocô de rato". Figura 17- Momento de leitura/ contação Fonte: arquivo pessoal da pesquisadora Depois que concluímos nossa leitura, sugerimos que as crianças falassem algo sobre a história. E Alan falou: -“Eu gostei, mas achei estranho que nesse planeta não mora gente.” E Verônica, que passou a participar mais verbalizando, disse: -“Eu gostei dos macaquinhos, que sobe na cacunda do pai dele.” Ainda durante a leitura da história, Carla nos perguntou se permitiríamos que manuseassem o livro e os objetos e, ao informar-lhes que sim, todos vibraram com um: “Oba!” Quando falei da flor que exalava um perfume, pedi que fechassem os olhos para sentirem o aroma e utilizei o spray com perfume, ilustrando, assim, o cheiro da flor. Apenas Verônica permaneceu com os olhos abertos. Ao concluirmos a leitura, a 97 turma se mostrou ansiosa por manusear o livro e os objetos do cesto. Então, expus o cesto e o livro para que o explorassem, solicitando que tivessem zelo pelo livro, pois, além de tudo, era emprestado. Ao procurarem os objetos no cesto, Nilton questionou: -“Onde tá o bichinho que acende?” Referindo-se ao pisca-pisca, que intencionalmente escondi desde a hora da leitura. E antes mesmo de responder, Alan fez o seguinte pronunciamento: -“Tu num viu não? Ele ficou na ávre!”. E Nilton duvidou: -“Cadê?”. Alan cobrou: - “Mostra tia, a ele.” Entreguei o livro a Alan, para que ele mesmo o fizesse. Juntos o folhearam e Alan explicou com convicção: - “Olha aqui, tá vendo? E Nilton pareceu satisfazer-se com a comprovação do colega, e esboçou: - “Ah!” Renato logo perguntou em tom de afirmação: -“Tu fez mágica, num foi tia?” Quando tu tava contando a história?” Esses depoimentos nos levam a Benjamim, (2010), quando afirma que devemos narrar os contos como verdadeiros para preservar-lhes o caráter sagrado, o narrador assim, torna-se testemunha e protagonista. Portanto, procuramos preservar a fantasia e a imaginação daquelas crianças, buscando oportunizar um momento de fruição e magia através da leitura literária. As crianças se envolveram e evidenciaram a crença de que o pisca-pisca que "sumiu" era o vaga-lume e estava realmente na árvore. Permitir que cada uma manuseasse os livros e os objetos utilizados nas aulas parece ter provocado um sentimento de cumplicidade entre mim e as crianças, contribuindo para que os 98 acordos feitos durante a intervenção fossem, no que dependeu do objetivo da pesquisa, cumpridos. Vale lembrar que essa turma tinha um número de doze crianças matriculadas, com uma frequência que variava de cinco a oito, e que durante o período da intervenção, que coincidiu com as festividades do mês da criança, elas compareceram em maior número, havendo uma frequência de oito a dez. Combinamos com a professora que desceríamos para as brincadeiras livres, todos os dias, durante a minha intervenção, porém, esse acordo não se cumpriu na íntegra, o que gerou insatisfação e questionamentos gerais Figura 18-Momento de interação durante a leitura/contação. Fonte: arquivo pessoal da pesquisadora . Para o dia da leitura de A Última árvore do mundo, havíamos planejado uma atividade com um jogo cantado, uma espécie de brincadeira de roda para reforçar a 99 proposta de preservação da natureza. A cantiga A árvore da montanha propunha descrições sobre a importância da árvore na natureza. A letra dizia: A Árvore da Montanha A Árvore da Montanha A árvore da montanha Ole-li aio (bis) Esta árvore tinha um galho O que galho, belo galho. Ai, ai, ai que amor de galho. E o galho da árvore. A árvore da montanha Ole-li aio (bis) Este galho tinha um broto O que broto, belo broto. Ai, ai, ai que amor de broto. E o broto do galho E o galho da árvore. A árvore da montanha Ole-li aio (bis)... Este broto tinha uma folha. E esta folha tinha um ninho. E este ninho tinha um ovo. E este ovo tinha uma ave. E esta ave tinha uma pluma. E esta pluma tinha um índio. E este índio tinha um arco. E este arco tinha uma fecha. Esta fecha foi na árvore O que árvore, bela árvore. Ai, ai, ai que amor de árvore. E a árvore da montanha Ole-li-aio (bis) (CANÇÕES ESCOTEIRAS ou CANTIGA DE RODA) 100 Entretanto, não foi possível a realização desse jogo, pois a professora não concordou que brincássemos no pátio, já que as crianças haviam saído da fila durante a volta à sala no encontro anterior, argumentando que elas sempre ficavam muito agitadas quando brincavam e por isso não era adequado descer com as mesmas para o pátio com o propósito de brincar. Enquanto ela conversava com outra funcionária que acabara de chegar, pedi, então, que as crianças se posicionassem atrás de mim, para procurarmos a formiga da história que poderia estar por ali, carregando uma folha. E voltamos organizados em fila até a sala. Lá chegando, as crianças pediram para desenhar a história lida e, após alguns minutos, a professora voltou à sala. As crianças participaram da leitura demonstrando bastante interessadas e envolvidas no enredo. Porém o não cumprimento do acordo feito com as crianças, de que permaneceriam fora da sala de aula para a realização de uma atividade recreativa, causou certo desconforto e agitação na turma. Nesse contexto a negociação com a professora não avançou e por isso resolvemos voltar à sala. As crianças sugeriram desenhar as árvores da creche, acatamos de imediato, na expectativa de não causarmos mais tormento. Uma das crianças, talvez para chamar a atenção da educadora ou esperando um elogio seu, mostrou seu desenho dizendo: - “Oh, tia o meu ficou feio.” A professora amassou e descartou o seu desenho e lhe entregou outra folha sugerindo que fizesse outro. Nesse momento, achei por bem pegar o desenho do lixo, chamei a criança e expliquei que seu desenho havia ficado lindo, disse que quando eu era do mesmo tamanho dela, eu não sabia desenhar uma árvore bonita daquele jeito. Então, pedi àquela criança que ela me presenteasse com seu desenho para que eu o levasse 101 comigo. A menina sorriu e permitiu que eu guardasse o seu desenho. Depois dessa atitude, a professora pediu desculpas, mas não à criança. Atitudes como essas devem ser refletidas para não serem reproduzidas. O educador tem uma função importantíssima na formação da auto-estima dos educandos, e suas ações podem marcá-los por toda a vida. As crianças pequenas precisam de incentivo para criarem, produzirem; precisam ser acolhidas, amadas para se sentirem seguras e confiantes. Atitudes simples, como a de valorizar e reconhecer sua produção, fez com que a criança se sentisse motivada a refazer seu desenho, dessa vez com detalhes e cores variadas, o qual pode ser apreciado nessa seção. Sabemos da importância de se discutir desde cedo o destino do nosso planeta, e que a preocupação dos educadores com a consciência ecológica é bastante pertinente e passou a ter mais força na medida em que ficaram evidentes as transformações ocorridas na terra a partir da degradação causada por cada um de nós. A inquietação das autoridades mundiais sobre os efeitos do aquecimento global, por exemplo, tem aberto discussões entre as nações e a ênfase desses debates recai basicamente sobre a necessidade de controlar o consumo desacelerado, poupando, dessa forma, os recursos naturais, e na de se educar as novas gerações para isso. Essas questões têm recebido maior atenção desde o século passado, mas a cada dia se torna mais atual. Nossa intenção, nesse encontro, era proporcionar um momento de apreciação da natureza, de valorização do ambiente arborizado daquela creche, tão pouco utilizado pela turma. A narrativa em questão contribuiu para que algumas reflexões acontecessem. Em relação à narrativa lida, uma das crianças questionou o fato de naquele planeta não existir pessoas, estranhando essa possibilidade. As ilustrações das crianças devem ser apreciadas levando-se em consideração o contexto em que foram produzidos. Segundo Manguel (2009), durante a leitura de imagens, podemos buscar ver mais fundo e descobrir mais, associando e combinando 102 outras imagens. O autor ainda nos alerta sobre a possibilidade de ler uma imagem sem escapar de saber algo sobre o artista, seu mundo, para termos idéias a respeito das influências que sofreu para produzi-la. Argumenta ainda que na tentativa de não comunicar o artista explicita a negação de algo que o incomoda e então afirma: "quando a alma afirma ou nega que essas imagens são boas ou más, ela igualmente as evita ou as persegue." (MANGUEL, op.cit. 21). Nesse sentido, voltando às imagens ilustradas pelos sujeitos da pesquisa sobre a narrativa perraultiana, podemos então inferir que na busca por ocultar o desfecho da história em que Chapeuzinho e sua avó são aniquiladas, as crianças assumiram o papel do caçador (inexistente) naquele enredo, mas bem presentes em suas imagens mentais, mostrando os seus desejos em relação ao lobo. Em relação às imagens produzidas a partir da história da árvore, e baseandose nos estudos de Manguel (op. cit.) concordamos que toda imagem é passível de leituras, a própria natureza pode ser interpretada em suas nuances, e se um abacate partido pode dar margem a leituras, o que dizer das produções daquelas crianças? É necessário que se repita: "Aristóteles sugeriu que todo processo de pensamento requeria imagens" (MANGUEL, 2009, op. cit. p.21). Se para o grande filósofo grego essa era uma verdade, imaginemos esse processo nos pensamentos dos pequenos nessa faixa etária! A árvore solitária, no meio do papel, como as desenhadas por Pedro e Kelly, representaria simplesmente a planta da história lida? Na trama a árvore aparece muitas vezes acompanhada. Porque, então, desenhar a sua solidão se as imagens mentais, conforme defende Manguel (op. cit.), são formadas a partir do contexto social de quem as vê e as retrata? Como inferir sobre a expressão pictográfica daquelas crianças sem considerar seu contexto particular de uma vida singular? Não é nossa pretensão fazer uma profunda análise psicológica; mas, a partir de informações dadas pela professora em relação à maioria das crianças de sua turma, pudemos entender 103 que a árvore pode, nesses dois casos particulares, representar uma solidão que os persegue. Essa atividade foi executada, imbuída de muito significado para as crianças. O desenho de Carla, por exemplo, nos chamou a atenção pela diversidade de cores e detalhes, apesar de ter ficado desapontada com a atitude da professora frente ao seu primeiro desenho. Após a nossa conversa, ela se mostrou animada a refazer a atividade e a fez com bastante zelo, sendo, portanto, a única, dentre aquelas oito crianças a retratar todas as cinco árvores do jardim da creche. Ela também ilustrou a professora mostrando suas características físicas e também a sua localização em relação a nós, durante a leitura; um pouco afastada, exatamente, como ocorreu no momento dessa atividade. Como pode ser visto em seu desenho abaixo. Ilustração de Carla sobre a história da árvore 104 Ilustração de Renato sobre a história da árvore Renato ilustrou uma "árvore-mundo", na qual toda a história se passa, e sua copa representaria também o globo. Ao nos desenhar ao redor da árvore, bem como Carla e outras crianças, Renato pareceu ao mesmo tempo retratar parte da história e do momento de leitura. A maioria das crianças cuidou de desenhar utilizando cores, embelezando o mundo que desejaram ilustrar, parecendo ser em um mundo assim que desejam viver, demonstrando, dessa maneira, ter entendido a proposta do autor. A árvore de Pedro 105 Tendo como foco o processo e a produção, e não apenas o produto final, vimos na ilustração de Pedro, a demonstração de uma exultação ao realizar a atividade. Atitude que, em outras situações, era bem diferente, uma vez que ele sempre reclamava das atividades de pintura, alegando cansaço. Neste caso, a atividade para ele pareceu ter um significado especial: além de ter expressado livremente suas dúvidas antes, durante e após a leitura, ele pôde perceber também o ambiente escolar em que convive, despertando para os detalhes de um jardim que conhecia pouco e que passou, desde então, a contemplar. Percebemos com a sua ilustração, que a atividade de desenho e pintura tornou-se atrativa para ele. Assim, acreditamos que esse fato aconteceu porque as ações anteriores (observação das árvores pela janela, a leitura/contação com objetos interessantes, as pausas feitas para atender seus questionamentos...) tornaram a atividade significativa, não artificial e, portanto, prazerosa. Após a atividade concluída, as crianças novamente questionaram porque não iríamos descer, já que havíamos combinado. Nesse momento, a professora se interpôs explicando que a turma havia bagunçado no dia anterior e por isso não desceriam. E Pedro argumentou: - “Mas hoje a gente brinca quieto". Parecendo, ele mesmo, entender a impossibilidade do prometido, corrigiu: -“A gente brinca sem bagunçar. Vai, tia deixa!” A professora respondeu: - “Já disse que não!”. Acreditamos que existe na literatura uma rica e eficaz função pedagógica, além de divertir. Como disse Horácio, a literatura (poesia) é dulce et utile, isto, é ela pode instruir e educar. No entanto, ressaltamos que a nossa busca procura refletir sobre como essa literatura vem sendo trabalhada nas turmas de EI das escolas públicas, espaço privilegiado para que o encontro da criança com o texto literário aconteça. Embora a atividade não tenha sido realizada na sua completude, identificou-se que as 106 crianças foram estimuladas no nível imaginário, confirmando que a leitura literária pode ser um instrumento eficaz no estímulo de várias competências. 5.3 A Margarida friorenta: aquecendo os afetos A abordagem da terceira história, A margarida friorenta, de Fernanda Lopes de Almeida (2008), aconteceu em um dia que aparentava grandes desafios: a professora chegou bastante séria e duas das dez crianças demonstraram não ter nenhum interesse pela aula, não acatando, de início, a sugestão de sentarmos no tapete para que lêssemos a história. Então resolvemos iniciar a leitura mesmo sem a participação dessas, que inicialmente não concordaram com a proposta. Logo que comecei apresentar o livro, uma delas veio e sentou-se junto aos colegas, a outra, John, permaneceu distante, mas sentou-se estrategicamente onde podia ver e apreciar as ilustrações, e na hora do debate foi uma das que mais participou – segundo a professora, John, é um garoto com problemas de abandono pelo pai e muito carente. Iniciei falando para eles sobre a autora, disse que aquele livro tinha sido escrito por uma mulher. Kelly afirmou: _ "Aposto que foi tu que fez esse livro." Expliquei de quem se tratava, mostrei a capa e pedi que falassem do que eles achavam que se tratava a história, como achavam que seria o nome daquela história, o que aconteceria nela. E Kelly respondeu: _ "É de uma menina que tinha os cabelo muito grande." Verônica completou: "E ela não deixa a mãe dela pentear não, porque dói e ela chora." E Nilton: - "Eita! então vai ficar com piolho." Carla afirmou: -"Acho que o nome da história é A menina com a flor no cabelo". 107 Alan sugeriu: - "A menina do cabelão." Nilton protestou: - "Vai, tia, conta logo" Então, resolvi ler o título da história e Kelly alegou: - "É de uma menina fedorenta? Ela não toma banho não?" Expliquei que o nome da história é A margarida friorenta (cf. capítulo IV). Perguntamos se sabiam o que é ser friorenta e Renato, em tom de dúvida, falou: _ “É porque ela tá com frio?" Confirmei a sua hipótese e iniciei a leitura. Todas as crianças, inclusive os que demonstravam desinteresse, ficaram atentas; e, ao terminar, algumas delas começaram a falar sobre a narrativa: Renato: -"A Margarida quase que num passa o frio dela, num foi? E Pedro completou: -"Demorou foi muito". -"A Margarida tava com frio de beijo" afirmou Carla. E quando perguntei como seria esse frio de beijo, ela explicou com autoridade: -"É quando a gente quer ganhar um beijo e ninguém dá" Embora não esteja explícito na escrita do texto, Carla percebeu o que a autora, sutilmente abordou com essa narrativa, demonstrando com isso, ter percebido o que ficou nas entrelinhas. Mesmo se tratando de uma criança ainda não alfabetizada, a menina mostrou a perspicácia de um leitor atento. Isso se deve, muito provavelmente, à sua história de vida que, contada pela professora. Ttrata-se de uma criança criada praticamente por uma vizinha, e quando a sua mãe chega do trabalho, ela já está dormindo, só a encontrando pela manhã, na hora de ir para a creche e nos finais de semana. Retoma-se, nesse ponto, a reflexão de Manguel (op. cit.), ao discutir que a história de vida de cada indivíduo direciona a interpretação da leitura, seja ela de um texto escrito ou pictórico. Por isso, identificamos nesse texto-imagem, a manifestação 108 da singularidade daquela criança, ao associar o frio da Margarida à necessidade de "beijo". De fato, A Margarida friorenta tem a carência e afetividade como temáticas vivenciadas pela própria flor, a protagonista da história; uma florzinha que mora em um vaso e sente sempre muito frio. Seus amigos, a Borboleta Azul, o cachorro Moleque e Ana Maria, tentam ajudá-la agasalhando-a. Primeiro, a colocam dentro de casa, depois a vestem em um casaco e, por fim, eles a põem dentro de uma caixa. Mas, nenhuma dessas ações resolve o seu problema. Então, Ana Maria beija a Margarida fazendo o seu frio passar e descobrindo, com isso, qual era o motivo de tanto frio. A atividade inicialmente planejada para a pós-leitura seria a cantiga de roda Apareceu a Margarida, mas, pela reação da turma frente à leitura e pela história de vida da maioria das crianças que faziam parte dela, resolvi improvisar outra atividade que julguei mais adequada para o momento. Tratava-se da brincadeira que denominei Carinho de índio. Sentados em circulo, um atrás do outro, cada um deveria fazer carinho no colega da sua frente, de maneira que cada uma desse e recebesse afeição, e alertei que ninguém deveria ficar com frio de carinho como aconteceu com a Margarida. Uma criança se recusou a participar e saiu do círculo, alguns empurraram seu colega da frente, causando certo embaraço. Então, sugeri a execução da brincadeira em um "trenzinho" de cadeiras, me posicionei atrás e a professora ficou na frente, as crianças estavam entre nós duas. A brincadeira consistia no seguinte: tudo o que eu fazia na criança à minha frente, deveria ser imitado por ela e assim sucessivamente, até chegar à professora. Inicialmente, houve resistência de alguns em fazerem o carinho, outros demonstravam incômodo em receber; mas, depois de algumas interrupções, conseguimos concluir a atividade com êxito. E Gabriela, a menina que estava de fora, voltou e participou e o mais surpreendente para nós foi a reação da professora, que se mostrou emocionada e tocada pela brincadeira. 109 Foi sugerido que a turma desse um grande abraço na professora e assim concluímos essa aula, que começou com desafios, mas tornou-se muito interessante, pois, além da adesão da turma, mesmo que gradativamente, também houve grande empatia com a personagem Margarida, tanto pelas crianças quanto pela professora, que nos pareceu tocada. Quando concluímos a brincadeira e julgamos encerradas as atividades, as crianças pediram para ilustrarem a história com desenhos. Foi aconselhado que os desenhos fossem feitos em forma de cartão, para serem dedicados a alguém, da sala, um colega ou a professora. Enquanto desenhavam, a gestora entrou na sala avisando da entrega das lembrancinhas referente à comemoração do mês das crianças, e a maioria delas preferiu não pintar suas ilustrações. No entanto, Gabriela, criança que tinha um elevado número de faltas e inicialmente resistiu bastante à proposta, demonstrou grande interesse por concluir a atividade, sem se apressar para receber seu presente, do mesmo modo que Jonh e Carla. Segundo relatos da professora, além de Pedro, considerado por ela como aluno especial, essas três crianças: Gabriela, Jonh e Carla seriam as que apresentavam maiores dificuldades em acatar as suas sugestões de atividades. Desenho d’A Margarida de Carla 110 Carla ilustrou a cena em que o cachorro carregava a Margarida, um dos momentos da história (p. 14), além dos outros personagens como a borboleta e menina Ana Maria. Retratou também a árvore de Natal da sala de aula parecendo retratar os acontecimentos da história à realidade daquela sala e dedicou a sua obra de arte a mim. Desenho de John - frente Desenho de John - verso 111 Jonh, por sua vez, desenhou em um lado ele mesmo com a sua mãe (ilustração acima) e, no verso, ilustrou a história, na qual ele estava inserido, destacando a casa, a borboleta e Ana Maria, conforme a ilustração seguinte, sendo, portanto, protagonista ele e sua mãe, a quem dedicou a obra. Desenho de Gabriela da Margarida A professora nos informou que Gabriela é a quarta de sete filhos e, com seis anos, tem três irmãos mais novos do que ela, pertencendo a uma família menos favorecida social e economicamente. Tinha um número elevado de faltas e sempre resistia às propostas de atividades, na intenção de tornar-se o centro das atenções na sala de aula. Um fato nos chamou a atenção: mesmo Gabriela pertencendo a uma família economicamente desfavorecida, ela não foi seduzida pela promessa de presente como os seus colegas. Essa menina, totalmente desprendida de ansiedade, concluiu sua ilustração, demonstrando dar mais valor e interesse à atividade que a uma sacolinha com guloseimas, brindes e mais. Na sua ilustração, ela teve a oportunidade de expressar o seu afeto, dedicando seu desenho à professora, fazendo questão de enfatizar: "A Margarida sem tá com frio". Relembrando os leitores dessa cena. 112 Ao presentear a sua professora, a menina nos faz imaginar que, na sua ilustração, as personagens seriam, sim, ela e a sua professora. Dessa forma, identificamos um resultado determinante quando Gabriela demonstra afeto por ela. A história da Margarida friorenta estimulou o aquecimento dos afetos, bem como uma singular troca de carinho, algo que parecia ser um momento único. Observamos que essa atividade, além de estimular o afeto recíproco, resultou em uma autoestima positiva nos pequenos. Faz-se necessário destacar que os estudos que focam nesses aspectos, não são tão recentes, embora ainda hoje sejam atuais e indispensáveis, sobretudo, quando se pensa na formação de indivíduos. Os estudos pioneiros sobre a importância da autoestima de Rosemberg (1965) e Coopersmith (1967), que ainda hoje são estudados largamente, estabeleceram como determinantes para a formação da autoestima dos indivíduos, as suas relações com os "seus pais, professores e colegas, nessa mesma ordem de importância" (LAGO, 2011, p.13.) Outra pesquisa feita com estudantes universitários de francês por Mills (2007, apud LAGO, op. cit.) ratifica a nossa crença na possibilidade de nós, professores, contribuirmos para o aumento da autoestima dos educandos. Segundo ele, os dados obtidos com a pesquisa, comprovam que os sujeitos que se viam como capazes alcançaram maior sucesso acadêmico, foram bem sucedidos na disciplina. Esses resultados se repetiram em investigações feitas por Metallidou e Vlachou (2007, apud LAGO, op. cit.), com crianças do Ensino Fundamental. Também foi confirmado que os estudantes que têm autoestima elevada recebem melhores notas. Esses pesquisadores dão sugestões, aos educadores, de como aumentar a autoestima dos discentes indicando o trabalho com pares, sobretudo nas atividades de leitura e interpretação, além de oportunizar a reflexão a respeito de si próprio. Com base nesses estudos, buscamos promover um momento de superação da carência afetiva daquele grupo, mesmo que por um tempo limitado. Naquele encontro houve, de certa forma, uma reflexão a respeito do "sabor" e da importância de se dar e 113 receber carinho, ações indispensáveis à formação de uma autoestima positiva. Por essa razão, entendemos com Held (1980), que "A imaginação, como a inteligência ou a sensibilidade, ou é cultivada, ou atrofia." (HELD, 1980, p.46). 5.4 As Girafas não sabem dançar, mas nós sabemos e podemos! Essa é a história de Geraldo, um "girafo" alto, de pescoço comprido e esguio, que tem joelhos tortos e pernas muito finas. "Quando tentava correr era um desastre". Houve um baile na selva onde todos os outros animais dançavam. Geraldo foi para a pista de dança, mas, quando começou a dançar, os outros bichos pararam e começaram a caçoar dele. Ele ficou muito triste e resolveu ir embora. No caminho de volta para casa, encontrou um grilo que entendeu o seu dilema e o incentivou a dançar, aconselhando-o a sentir a música. E Gê, como era conhecido o girafo, descobrindo que podia dançar, o fez ali mesmo. Enquanto bailava lindamente, os animais que voltavam da festa o viram dançando e se encantaram, reconhecendo que Geraldo era um excelente dançarino. A abordagem da obra Girafas não sabem dançar foi pensada para ser a última a ser apresentada, já que queria concluir a intervenção em um ambiente o mais descontraído possível. Dessa forma, planejei para a atividade, após a leitura, dançarmos ao som dos poemas musicados do CD A arca de Noé, de Vinícius de Moraes, 1996 (ano de produção) e depois fizermos um relaxamento ouvindo sons (vento, cachoeira, pássaros etc.) do CD Para relaxar: sons da Amazônia, vol. 1, produzido por Corciolli, 1999 (ano de produção) Ao apresentar o livro às crianças elas demonstraram bastante interesse, talvez por se tratar de um livro grande e bem colorido, causando bastante fascínio. Ao abri-lo, Pedro expressou perplexidade ao ver as imagens “saltarem” das páginas e exclamou: -"É mágico!" 114 As demais crianças também demonstraram não conhecer esse tipo de livro e comentaram: - "É massa, as figuras se bole!" (Renato). - "Tu vai deixar a gente mexer nesse também?" (Verônica). Buscamos propiciar para aquela turma as mais variadas experiências possíveis de leitura no tempo da nossa intervenção e, por isso, levamos obras que acreditávamos que fossem relevantes, considerando a faixa etária e o interesse por histórias, que o grupo experimentava mais através de DVDs. Cabe aqui uma observação a respeito da utilização dos livros e dos DVDs naquela sala de aula, pois entendemos ser essencial o acesso, por parte das crianças, não apenas às histórias em DVDs, mas, em especial, aos livros. A leitura da obra literária pode ser o grande diferencial da escola, uma vez que os filmes em DVD são de fácil acesso, até mesmo em casa, uma vez que no âmbito desta pesquisa, as próprias crianças levavam, de suas casas, alguns filmes que já haviam assistido. Esse procedimento visando muito menos a leitura/fruição/contação de histórias, que as sessões de cinema, pode dar espaço para inquietações tais como: Quais os objetivos ao se assistir repetidas vezes a um filme já conhecido pelo público em uma sala de aula? Ou qual a função dessa ação nessa faixa etária? Haveria uma função social relacionada à atividade? Esses questionamentos são necessários, pois, na nossa perspectiva, é indispensável que as experiências na escola sejam novas e inovadoras e não apenas uma reprodução do que a criança já vivencia em sua casa. Cremos que a escola pode fazer a diferença, ampliando o acesso aos bens culturais produzidos pela sociedade, e cabe ao educador conhecer e apresentar boas obras. Nesse sentido, vale ressaltar que a utilização do DVD como recurso pedagógico pode e deve ser um rico instrumento nas mãos desse educador; entretanto, quando não é utilizado da maneira adequada pode ser apenas um passatempo sem objetividade; logo, não transforma a vida dos educandos. Já o texto literário, por suas características intrínsecas, favorece o estímulo ao imaginário infantil, 115 proporcionando uma verdadeira fruição. Isso se dá pelo fato de que a cada leitura, a criança elabora mentalmente as suas personagens, criadas no seu mundo particular. O fato de a leitura/contação e, sobretudo, a dança e a canção não serem atividades frequentes para aquelas crianças, pelo menos não naquele contexto escolar, causou certo estranhamento, dificultando a perspectiva de abordagem que havíamos pensado. Algumas crianças demonstraram acanhamento e recusaram-se a dançar; um dos meninos sentou e ficou apenas olhando e após muitos estímulos, a maioria dançou, e Jonh, o garoto que estava sentado se posicionou de costas para a professora, e começou a balançar-se timidamente junto a nós. Talvez o fato de a professora não aderir a essa atividade e ficar nos observando tenha também contribuído ainda mais para a inibição de alguns. Verônica, a mais tímida, dançou com alegria, o que também muito nos alegrou, ao vê-la participando sem embaraço de uma atividade que inicialmente inibiu até os mais desenvoltos. Tal acontecimento nos confirmou a crença de que não devemos subestimar as potencialidades das crianças; mas, ao contrário disso, devemos promover momentos de descontração, confiança e motivação, para que essas habilidades sejam despertadas, gerando novos conhecimentos. Supõe-se, habitualmente, que o ambiente da sala de aula deva figurar em um espaço de disciplina e contenção. Entendemos que um ambiente de aprendizagens, sobretudo para crianças, deva ser ativo e provocador. A nosso ver, a intencionalidade educativa, na instituição de EI, deve admitir um caráter instigador e a mediação do adulto deve se basear na busca pela conquista da criatividade e da autonomia dos que a frequentam. As crianças são naturalmente espontâneas e sua inibição em geral é adquirida e manifestada de acordo com o ambiente, algumas crianças sentem-se inibidas fora de casa, outras participam ativamente dos ensaios feitos na sala de aula, mas recusam-se a apresentar-se na presença dos pais. Quando o adulto está atento a esses fatos, considera a importância da extroversão. Lucas, (2008, apud, LAGO, 2011), afirma que em estudos sobre a 116 aquisição de língua estrangeira, verificou-se que os estudantes extrovertidos têm maior atividade social e com isso ampliam mais suas possibilidades de relacionamentos e, por conseguinte, interagem mais. Participam ativamente das aulas sem tantos embaraços e conseguem melhor articular-se. Apesar de ser um estudo para aprendizes de língua estrangeira, consideramos esses dados relevantes. Enquanto educadores, devemos nos centrar nessa reflexão a respeito da relevância da mediação do educador infantil, independente de ele ser o pai ou o professor, uma vez que, naturalmente, ele imprime as marcas que acompanharão as crianças por toda a vida. Compreendemos com isso, a importância de oportunizar situações que nos possibilitem conceber as prováveis alterações no comportamento (inibição) de alguma criança e, conscientes, procurar encorajá-la a superar as suas limitações. Pensando sobre todo o período de intervenção pedagógica, aferimos que na verdade, Verônica não era exatamente tímida, mas que se mostrava dessa forma, em determinadas situações. Sempre que a proposta pedagógica era instigadora, ela se manifestava e, muitas vezes, com veemência, como o fez para defender sua opinião a respeito do final da história de Perrault. Já Pedro, sempre ativo, e normalmente muito desanimado para desenhar e pintar, concentrou-se não apenas nos momentos de contação/leituras das histórias, mas, muito especialmente nas produções das ilustração e pinturas, demonstrando que, a partir do lúdico, uma atividade semelhante pode instigar e a outra não. Entendemos que isso pode ser atribuído ao fato de que nas propostas diárias, as atividades consistiam em cobrir, copiar e colorir desenhos, enquanto nas atividades propostas nesta pesquisa, as produções eram livres, sendo de autoria delas mesmas, desde a construção das imagens até a escolha das cores para pintar os textos-imagens. Essas constatações deram-nos a impressão de que eles estavam sendo respeitados por sua criatividade e, por isso, sentiam-se livres para a produção. Mais uma vez pudemos verificar a importância da leitura literária como um recurso que pode favorecer a fruição. A história d'A Margarida friorenta comprovou o 117 quanto a força da literatura pode transformar pessoas em qualquer idade. Essa leitura, além de estimular o imaginário infantil, comprovado na produção das crianças, pôde favorecer também a autoestima positiva daquele grupo e tocar de maneira também expressiva a professora. Nesse último encontro, em que foi encerrado o período oficial de intervenções, houve abraços de despedida e uma esperança de ver o trabalho sendo continuado. Refletindo e discutindo sobre as conclusões das intervenções, percebemos que as crianças continuavam sedentas pelas histórias e, então, achamos por bem retornar à creche para dar continuidade à proposta de leitura. Logo, contatamos novamente a professora e a gestora da creche e, em comum acordo com elas, ampliamos os dias de encontros para as sessões de leitura. 5.5. Outras histórias: continuação... Com o intuito de prolongar um favorável espaço sócio-afetivo, buscamos prosseguir com a proposta de ler obras literárias para as crianças daquele grupo, uma vez que havíamos percebido a necessidade de dar continuidade à proposta que foi tão bem acolhida pelas crianças. Assim, no encontro posterior, levei vários livros de narrativas do meu acervo particular e os distribuí sobre as mesas, enquanto as crianças lanchavam coletivamente no refeitório. Ao voltarem à sala, alguns expressaram surpresa ao me verem e Renato gritou para os colegas que vinham depois dele: -"Ela voltou! A tia Núbia tá na sala!" Pedro, ao ver os livros sobre as mesas, falou com euforia: -"Eba! Surpresa, né?" A felicidade das crianças era perceptível, e então, consenti que folheassem os livros à vontade. Elas interagiam umas com as outras mostrando o livro que haviam escolhido. 118 Alan pediu que eu lesse Menina bonita do laço de fita para ele, o que fiz baixinho para não atrapalhar a concentração dos demais. Ao concluir, Renato pediu que eu lesse o livro Pinote o fracote, Janjão o fortão, que ele segurava e todos pararam suas leituras e pediram que eu lesse de maneira que todos escutassem. Depois que conclui, Verônica encostou-se em meu braço com o livro Maria vai com as outras na mão. Imediatamente, suspeitei do seu desejo, mas, mesmo assim, fiz de conta que não havia entendido e perguntei o que ela queria. Ela levantou o livro em minha direção e, na intenção de provocar sua fala, perguntei se ela gostaria de trocar de livro. Ela balançou a cabeça, negativamente, então perguntei o que ela queria e, quase inaudível, ela respondeu: -"Lê pra mim". Após a leitura ela sorriu para mim como forma de agradecimento e comentou, sobre o livro analisando a personagem: -"Ela né besta não, né? Ia bem cair também lá em baixo?" Encerrei a minha interferência nesse encontro esperançosa de que os posteriores seriam ainda mais felizes. Convicta das múltiplas possibilidades que a literatura continuaria a nos oferecer, especialmente, naquele contexto formado por crianças ávidas a se tornarem leitores literários proficientes, no dizer de Colomer (2007). No encontro posterior a esse, fui informada da impossibilidade de intervir. Segundo a educadora daquela sala, as crianças precisariam ocupar-se com os ensaios da apresentação natalina. Todavia, no início do ano letivo posterior à pesquisa, voltei à creche para tirar algumas dúvidas com a professora a respeito de seu acervo literário e fui surpreendida pelo fato de ela estar emprestando seus livros pessoais para que as crianças os levassem para casa. Ela confeccionou algumas sacolas em TNT na qual as crianças levavam para casa um livro que deveria ser devolvido no dia seguinte. Ela mesma me contou que orientava as crianças a levarem e pedirem que alguém da família lesse 119 para elas. E no dia seguinte, após tomarem o café, deveriam contar, resumindo, para os colegas de sala, a história que levou para casa. Com essa atitude pudemos perceber uma mudança significativa nessa educadora, que inicialmente desconsiderava a importância da literatura para a EI e depois se mostrou disponível a compartilhar de seu acervo particular com as crianças de sua turma. Infelizmente, a sua atitude não pôde se prolongar, já que sua nova turma contava com apenas sete crianças matriculadas e foi fechada por determinação da SEDUC (Secretaria de Educação, Cultura e Desporto). A professora foi remanejada para a turma do maternal, da mesma unidade e argumentou sobre a impossibilidade dos empréstimos com esse grupo, por ser formado por crianças muito pequenas (na faixa etária de dois anos de idade) e que passam o dia todo na creche. 120 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desse estudo, pudemos perceber que a leitura literária ainda é pouco abordada nas salas de aula da Educação Infantil, como observado com os sujeitos do Pré II. Porém, algumas professoras da Educação Infantil contam ou lêem histórias com frequência e esses procedimentos são elogiados porque, assim, elas conseguem acalmar a turma, mantendo-a na sala em dias de chuva, por exemplo, sem tumulto e ainda porque permite que os conteúdos curriculares sejam iniciados (cf. anexo 1, p. 139ss). Ao longo deste trabalho, discutimos não apenas essa função pragmática da literatura, mas buscamos mostrar que é possível unir o lúdico ao educativo; como dissemos antes, unir "o útil e o doce", a estética e a pragmática; evocando-se, ainda uma vez, a fala do poeta Horácio. Entendemos que a leitura literária na EI deve acontecer diariamente e deve ser planejada, com intencionalidade educativa, que permita a reflexão e a aquisição de valores e conceitos, que provoque novas aprendizagens, reflexão e transformação, sim. Não pretendemos negar a função pedagógica que há na literatura e isso não implica em atenuar o seu valor artístico, nem tão pouco que essa experiência seja isenta de ludicidade e fruição; procuramos ponderar que esse mover pedagógico não seja meramente pragmático, conteudista, utilitarista. Criar um ambiente diário de leitura, espaços agradáveis para que isso aconteça, o convívio com professores capacitados e comprometidos, que se preocupem em conhecer e escolher bons textos de L I, assim como em cobrar das autoridades acervos adequados para as escolas, nos parece ser bom começo para a formação de leitores. Acreditando na literatura como arte, procuramos trabalhar com 121 ela oportunizando às crianças um acesso a esta forma de arte, possibilitando a apreciação e o deleite durante a leitura. Como já foi dito, através de textos ficcionais e de uma abordagem que proporcione a fruição, o educador poderá promover a aprendizagem e o desenvolvimento da criança, ao mesmo tempo em que contribui para a sua formação leitora. Gostaríamos de lembrar que a literatura pode e deve ser trabalhada na escola desde o berçário, iniciando-se com os brincos, acalantos e cantigas, e ampliando-se para as rodinhas de leituras/contação, dramatizações e brincadeiras de faz de conta (jogo simbólico) que devem permanecer presentem durante toda Educação Infantil. Valemo-nos de Chapeuzinho, da Margarida, de Geraldo, o "girafo" e de uma árvore para sensibilizar aquele grupo de crianças e a sua professora e, com aquelas narrativas, apresentar as múltiplas possibilidades que se podem alcançar com essa atividade de leitura/contação, como as questões colocadas por seus autores, a reflexão que se pode adquirir com suas temáticas, o crescimento pessoal que isso pode proporcionar, além do prazer da fruição que podem contribuir para a formação leitora dos leitores/ouvintes. Se a criança é atraída pelas histórias já é um leitor em potencial, cabe ao adulto que o assiste, representado pelo Estado, pela família, pela escola proporcionar um ambiente atrativo, estimular momentos de leitura/contação/fruição e ampliar o acesso aos bens culturais dentro e fora da escola, criando rodas de leituras diárias, promovendo visitas às bibliotecas, ampliando o acervo da escola, oportunizando empréstimos de livros, inserindo a família nos projetos da instituição, convidando contadores, pais e funcionários para lerem/contarem histórias para as crianças. Essas ações mostram a importância da leitura para elas, que poderá perceber o sentido da leitura para a sua vida, considerando-se que a leitura e a escrita não são simplesmente atividades escolares, mas é principalmente a partir da escola que os sentidos sobre a leitura ganham maior importância. 122 A cena da criança amassando crepom para fazer bolinhas que deveriam ser coladas em uma letra desenhada pela professora nos inspira a refletir a respeito da função da leitura e da escrita na escola. Ao ser questionada sobre para que servem as bolinhas, a criança responde que é para colar na letra. E para que serve a letra?, pergunta a observadora, e a criança responde: "É pra colar bolinhas dentro!" A surpresa de Alan ante a informação de que a pesquisadora ainda estuda, pode representar a ideia que as crianças têm em determinada fase de que o adulto sabe tudo, então como ainda precisa estudar? O fato de asseverar "Quando eu crescer eu não vou estudar mais não" talvez revele o sentido que é dado por ela aos estudos: frequentar a escola porque ainda não tem autonomia para escolher não fazêlo. Quando Nilton expressou "Gosto mais de ficar em casa", ficou claro para nós que as atividades promovidas pela escola têm menos sentido/valor do que as realizadas em seu contexto doméstico. Nossos dados evidenciam que foi notória a participação intensa e voluntária por parte dos sujeitos deste estudo. Portanto, aconselhamos a inclusão diária de leitura/contação de narrativas na E I, além de disponibilizar às crianças materiais literários impressos, independentemente se essas crianças decodificam (lêem) ou não. O acesso ao acervo literário das instituições de EI, pelas crianças, deveria ser entendido pelos adultos como um direito que deve ser respeitado e garantido. Os livros nas creches deveriam estar sempre ao alcance das crianças e expostos por vários lugares na sala, no pátio e em todo lugar. A constituição garante que as crianças em idade inferior a sete anos devem ser assistidas em tempo integral, portanto, todos os espaços das escolas devem ser usados pelas crianças sob a supervisão/mediação de um adulto. Dessa forma a justificativa de trancar os livros nos armários da secretaria da unidade/escola ou sala específica para que não sejam danificados não é adequada. A manutenção de materiais como livros e brinquedos de uma escola que atende a crianças pequenas deve acontecer com maior freqüência; porém, se essas 123 crianças não aprenderem a manusear esses materiais, o Estado, os pais e a escola terão mais despesas em manutenção quando elas estiverem no Ensino Fundamental e na sua continuação. A postura do educador ante a leitura também interfere na formação das crianças. Um professor que não lê, dificilmente as convencerá que ler é importante e prazeroso. O educador que procura técnicas de contação/leitura adquire materiais que lhe auxiliem na hora da leitura/contação, lê livros de literatura infantil por prazer, fora do ambiente de trabalho, carregará consigo esse gosto e passará esse prazer para as crianças com mais sinceridade, dando maior sentido e importância à leitura. Se a história vai ser contada e não lida, o narrador deve contá-la respeitando a autoria, fazendo adaptações que facilitem a compreensão do leitor ouvinte, mas com o devido cuidado de não modificar o enredo, de não empobrecê-lo ou diminuí-lo com o argumento de que será incompreensível; os fatos podem aparecer menos detalhados, mas não transformados. Para que as histórias se perpetuem, devemos ter o devido cuidado, como um zeloso artesão, que imprime suas marcas e intuições, adaptando as histórias aos leitores sem abismar os tempos da criação. Só assim não nos perderemos durante o percurso, como aconteceu com João e Maria, e os pássaros não comerão as migalhas que cairem pelo caminho. 124 REFERÊNCIAS ADAM, M. J.; REVAZ, F. A análise da narrativa. Trad. Maria Adelaide Coelho da Silva; Maria de Fátima Aguiar. São Paulo: Gradiva, 1997. AGAMBEN, G. Infância e história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. ALMEIDA, F. L. A Margarida friorenta, 25. ed. São Paulo: Ática, 2010. ALMEIDA, F. L. Pinote, o fracote, e Janjão, o fortão,19. ed. São Paulo: Ática, 2010. AMARILHA, M. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. Petrópolis: Vozes, 1997. ----------- AMARILHA, M. Alice que não foi ao país das maravilhas: a leitura crítica na sala de aula. Petrópolis: Vozes, 2006. ANDREAE, L.; PARKER, G; FLETCHER, C. Girafas não sabem dançar (livro animado), Rio de Janeiro: Companhia das Letrinhas, 2009 ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. 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Sequência Didática para a abordagem em sala de aula do conto Chapeuzinho vermelho Tempo médio de execução: 30 minutos Público - alvo: Crianças do grupo 4/Pré II da Educação Infantil Justificativa: Escolhemos a abordagem do conto Chapeuzinho vermelho primeiro por reconhecermos que se trata de uma obra clássica, a qual as crianças devem ter acesso, depois para percebermos se as crianças conhecem essa versão, que sentimentos lhes causariam, além de proporcionarmos um momento de debate onde as críticas, os questionamentos, as discussões poderiam ampliar o conhecimento pessoal e literário e por pretendermos estimular as crianças à leitura literária. Objetivos: Geral: Oportunizar um momento de leitura fruição. Específicos: Provocar um debate, a partir da leitura/contação do conto perraultiano. Verificar a apreensão do enredo nessa versão Sensibilizar as crianças para a leitura literária; Procedimentos metodológicos: 1º Momento: Instigar a curiosidade dos educandos para a leitura, recorrendo ao 'mistério do cesto'. Formular hipóteses acerca do conto, se as crianças conhecem etc. Conversa informal a respeito do autor 130 2º Momento: A leitura/contação Confirmar ou não as hipótese levantadas Apresentar o título e as imagens Contar a história procurando modular a voz de acordo com o desenrolar da trama e da ação das personagens utilizando-se dos objetos do cesto (capuz vermelho, óculos, orelhas e rabo); 3º Momento: Debate sobre o conto Refletir acerca do conto, se as hipóteses feitas por elas havia se cumprido; Promover debate em que todos participem 4 º Momento: Apreensão do enredo Ilustrar a história através de desenho Material utilizado: Livro com o conto; Cesto de palha; Um capuz vermelho; Um par de óculos; Um par de orelhas marrons e peludas; Um rabo marron e peludo; Lápis grafites; Lápis coloridos; Papel tipo sufite. Referências : PERRAULT, Charles. Les contes de Perrault. Paris, 1883. Tradução Regina Régis Junqueira, Ilustrações Gustavo Doré. Belo Horizonte: Villa Rica, 1994. SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (orgs.) Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. 131 2. Sequência Didática para a abordagem em sala de aula da narrativa A última árvore do mundo Tempo médio de execução: 30 minutos Público - alvo: Crianças do grupo 4/Pré II da Educação Infantil Justificativa: A escolha dessa narrativa (A última árvore do mundo) para ser abordada com os sujeitos da pesquisa em questão se deu para contribuir com a aquisição de conhecimentos sobre os conteúdos referentes ao meio ambiente estudados por aquela turma, e na intenção de se refletir a respeito do ambiente em que convivemos, nossa escola, nosso planeta. Na intenção de ampliar a observação sobre nossa atuação nesse meio. Objetivos: Geral: Promover mais um momento de estímulo a leitura literária. Específicos: Sensibilizar as crianças para uma visão mais afetiva em relação as plantas e os animais; Estimular a criança a realizar um conhecimento do espaço físico da creche a partir da exploração do jardim da unidade; Promover um momento de dinamismo, brincadeira e descontração através do brinquedo cantado A árvore da montanha. Procedimentos metodológicos: 1º Momento: Observar as árvores ainda do interior da sala, pelas janelas; Identificar as árvores, buscando nomeá-la segundo sua espécie; Reorganizar a sala, colocando as cadeiras de volta no lugar; Explicação sobre o lugar onde a leitura será feita; 2º Momento: A leitura/contação Preparar o espaço em baixo da árvore, estender a folha alcochoada; Apresentar o título e a capa; 132 Ler a história procurando utilizando os objetos do cesto de acordo com a sequencia do enredo (pisca-pisca, pau de chuva, garrafinha de vidro e spray com perfume); 3º Momento: Debate sobre história Refletir acerca sobre a história; Promover debate em que todos participem; 4º Momento: Aproveitando o espaço No pátio brincar da cantiga de roda A árvore da montanha ou na sala ilustrar a história através de desenho Material utilizado: Folha em TNT alcochoada; Livro com a narrativa; Pisca-pisca; Pau de chuva; Garrafinha de vidro; Spray co perfume; Lápis grafites; Lápis coloridos; Papel tipo sulfite. Referências : LALAU; LAURABEATRIZ. A última árvore do mundo. São Paulo: Scipione, 2010. SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (orgs.) Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. 133 3. Sequência Didática para a abordagem em sala de aula da narrativa A margarida friorenta Tempo médio de execução: 30 minutos Público - alvo: Crianças do grupo 4/Pré II da Educação Infantil Justificativa: A nossa intenção em apresentar essa história para aquele grupo foi principalmente de promover um momento de empatia entre seus membros, de descontração e amizade, além é claro de oportunizar um momento de apreciação e reflexão a partir da narrativa literária. Objetivos: Geral: Promover um momento de vivência afetiva. Específicos: Sensibilizar as crianças para a gentileza, uma visão mais afetuosa em relação aos colegas e as pessoas em geral; Estimular a criança a realizar um autoconhecimento a respeito de suas necessidades afetivas; Promover um momento de reflexão e debate sobre os benefícios de dar e receber carinho. Procedimentos metodológicos: 1º Momento: Estimular as possíveis inferências a respeito da história a partir da leitura da imagem da capa; Falar sobre a autora; Ler o título e instigá-los sobre o enredo; 2º Momento: A leitura/contação Ler mostrando as ilustrações e respeitando as prováveis interferências; 134 Ler a história procurando utilizando os objetos do cesto de acordo com a sequencia do enredo (pisca-pisca, pau de chuva, garrafinha de vidro e spray com perfume); 3º Momento: Debate sobre história Refletir acerca sobre a história; Promover debate em que todos participem; 4º Momento: Apareceu a Margarida Brincar da cantiga de roda Apareceu a Margarida ou Brincadeira carinho de índio Material utilizado: Livro com a narrativa; Cadeiras da sala; Lápis grafites; Lápis coloridos; Papel tipo sulfite. Referências: ALMEIDA, F. L. A Margarida friorenta, 25. ed. São Paulo: Ática, 2010. SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (orgs.) Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. 135 4. Sequência Didática para a abordagem em sala de aula da narrativa Girafas não sabem dançar Tempo médio de execução: 30 minutos Público - alvo: Crianças do grupo 4/Pré II da Educação Infantil Justificativa: Por percebermos a necessidade de movimentação/deleite das/nas crianças sujeitos da pesquisa no ambiente escolar. Na intenção de ampliar as possibilidades de experiências com a leitura literária resolvemos também apresentá-los um livro animado e com o intuito de promover nesse encontro descontração, prazer e autoconhecimento, reservamos para ele a história de Geraldo, que apesar de ter sido considerado desengonçado, superou suas limitações assumindo o seu espaço na selva. Objetivos: Geral: Promover um momento de expressão corporal e descontração. Específicos: Proporcionar um momento de movimento e reconhecimento corporal; Estimular a criança a realizar um autoconhecimento através da dança; Promover um momento de descontração, liberdade e alegria; Procedimentos metodológicos: 1º Momento: Estimular a curiosidade nas crianças a respeito da história falando sobre a especificidade do livro; Falares sobre a criação dele quantas pessoas trabalharam para fazê-lo; Ler o título e instigá-los sobre o enredo; 2º Momento: A leitura/contação Ler mostrando as ilustrações e respeitando as prováveis interferências; 136 3º Momento: Debate sobre história Refletir sobre a história; 4º Momento: Dançando a vontade Dançar ao som de músicas do CD A arca de Noé (Vinícius de Moraes); Relaxar deitados no tapete ouvindo os sons da floresta; Material utilizado: Livro com a narrativa; CD A arca de Noé; CD Para Relaxar, sons da Amazônia Referências: ANDREAE, L.; PARKER, G; FLETCHER, C. Girafas não sabem dançar (livro animado), Rio de Janeiro: Companhia das Letrinhas, 2009 SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. (orgs.) Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. 137 APÊNDICE B: ENTREVISTA COM AS CRIANÇAS SUJEITOS DA PESQUISA Entrevista com as Crianças do Pré-II 1) Você gosta da creche? Por quê? 2) O que você mais gosta de fazer na creche? 3) O que você não gosta na creche? 4) Você gosta de ouvir historinhas? 5) Qual a historinha que a sua professora leu que você mais gostou? 6) Alguém na sua casa lê ou conta histórias para você? Quem? Quando? 7) Qual o livro de historinha que tem na sua sala que você mais gosta? 138 APÊNDICE C: QUESTIONÁRIO APLICADO COM PROFESSORAS DO PRÉ-II Qual a sua formação (escolaridade) e ano de conclusão? 1) Qual a sua condição atual na creche? Concursada ( ) prestadora de serviços ( ) Há quanto tempo? SOBRE LITERATURA 2) Com que freqüência costuma ler textos literários para suas crianças? 3) Quais os livros que você leu para sua turma este ano? 4) Com que objetivo você lê literatura para seus alunos? 5) Qual a idade que você considera ideal para iniciar a leitura com as crianças? Justifique. 6) O que você costuma fazer nas horas vagas? 7) Atualmente está lendo algum livro? Qual? 8) Você possui assinatura de algum jornal ou revista? Qual\ais? 9) Costuma comprar livros? Com que freqüência? Que tipo de livros? 10) Você lê literatura infantil fora do ambiente de trabalho? 139 ANEXOS ANEXO A: Respostas aos questionários e entrevistas Sujeitos Formação Instituição Experiência Você costuma ler para seus alunos? 1 PC Pedagogia Pública Federal 1 ano e seis meses Sim 2 MS Pedagogia c/habilitação em Educação Infantil Atua também no ensino fundamental Pública Estadual 29 anos. Leio todos os dias, apesar de ter que cumprir com um calendário de conteúdos, mas eu procuro encaixar leituras na rotina. 3 SF Pedagogia c/habilitação em Educação Infantil Pública Estadual 20 anos Sim. 28 anos Sim, todos os dias, temos o momento da leitura, onde leio ou às vezes os próprios alunos. 18 anos Leio todos os dias. Estágio supervisionado Sim 22 anos Sim, literatura infantil. Sim. 4 MA Pedagogia c/habilitação em Educação Infantil e Supervisão 5 TM Pedagogia c habilitação em educação Infantil. 6 BS Pedagogia (em curso) 7TR Pedagogia c habilitação em Educação Infantil 8ZG Pedagogia especialização em educação Infantil Pública Estadual Estágio probatório ensinou 1 ano escolinha de bairro 9KV Pedagogia e Geografia Pública Estadual 15 anos Sim. 10JN Pedagogia com habilitação em Educação Infantil Pública Estadual 22 anos Com certeza! Pública Estadual Pública Estadual Pública Federal Pública Estadual Questão Que tipo de textos você costuma ler para eles? Sujeitos Respostas 1 PC Literatura Infantil e poemas. 2 MC Cada dia leio um texto diferente; informativo, manchete de jornal, anedotas, literatura infantil e quando eu não leio, eles me cobram. 140 3 SF Histórias infantis. 4 MA Sempre é diversificado os diferentes gêneros textuais. Por exemplo: contos, poesias, poemas etc. 5 TM Vários, bula, histórias. 6 BS Histórias de para-didáticos. 7TR Literatura Infantil, não costumo ler textos informativos não, eles são muito pequenos. 8ZG Vários tipos, literatura infantil,notícias, jornais, textos do livro didático, e outros. 9 KV Fábulas 10JN Informativos, história, contos e poesias, sempre de acordo com o tema que vamos trabalhar, para dar o gancho sabe? No são João a gente trabalhou muitas músicas e receitas. Questão y Em que momentos essas leituras são realizadas? Sujeitos Respostas 1 PC Geralmente antes e depois do intervalo. Quando voltam do intervalo faço um relaxamento, aí depois leio. E antes de sair para que eles não fiquem sem fazer nada, se não eles começam a brigar ou a bagunçar. 2 MS Geralmente leio no final do expediente, porque eles descansam e não ficam agitados para sair. 3 SF No início ou no final da aula 4 MA Sempre são realizadas no início das aulas 5 TM Sempre antes de iniciar as atividades, antes de eu começar a aula. 6 BS No início da aula, antes do intervalo ou na hora da saída, é a hora mais agitada, eles relaxam. 7TR Geralmente quando voltam do intervalo, para eles relaxarem, ou quando vou introduzir algum tema. Aí procuro um texto que tenha haver com o que quero ensinar. 8ZG Geralmente no início da aula. 9KV No início da aula. 10JN Normalmente, depois do lanche, antes de sair para o recreio, quando eles chegam brincam com jogos de encaixe, aí lancham e depois é que fazem alguma atividade, lancham de duas horas. Questão y Você considera essa atividade importante? Por quê? Sujeitos Respostas 1 PC Extremamente importante, porque é através dela que a gente ajuda a desenvolver... adquirir mais conhecimentos e esquecer os problemas do cotidiano, através da leitura de um livro a gente relaxa e o mesmo acontece com as crianças. 2 MS É muito importante porque eles aprendem os diferentes tipos de textos e como 141 escrever esses textos. Cada um deles têm um diário e na sexta eles levam para casa, aí eu escolho um tipo de texto que trabalhei em algum dia da semana e mando eles fazerem em casa um outro texto do mesmo tipo, por exemplo, leio uma manchete e mando eles fazerem outra ,sendo com outro assunto, entende? 3 SF Sim, porque incentiva desde cedo a criança gostar de ler. 4 MA Eu considero importante, porque é a partir dessa vivência que os alunos podem adquirir o gosto pela leitura. 5 TM Sim, porque desenvolve o vocabulário das crianças. 6 BS Sim, ajuda a criança a desenvolver melhor, a entender os conteúdos que ensinamos. 7 TR Ajuda na ampliação do vocabulário e enriquece a oralidade, na disciplina da sala, no controle da turma sabe? Eles se concentram mais. 8ZG Sim, porque a leitura é a base para o bom desempenho dos alunos em todas as áreas, né? 9 KV Sim, pois gera o hábito para leitura e estimula. 10JN Sim, muito, porque desenvolve o hábito da leitura e eles aprendem a identificar os tipos de textos, se não mostrar como eles vão saber? Questão y Qual a idade que você considera ideal para iniciar esse tipo de atividade? Sujeitos Respostas 1 PC Qualquer idade é adequada, porque ajuda a criança a se desenvolver na escola. 2 MS As professoras dos pequenos devem ler também, mas acho que eles só devem ser chamados para ler pra turma só no segundo ano em diante, pra não ler errado e ficar inibido 3 SF Deve-se começar quanto mais cedo melhor, porque a criança aprende a importância da leitura. 4 MA Desde os primeiros anos de vida, quando a criança já ouve sons, vozes, entendeu? 5 TM Desde pequenos porque começa a desenvolver eles logo. Com uns três quatro anos. 6 BS Antes de entrar na escola, com os pais, para eles se adaptarem com os livros e desenvolver melhor na escola. 7 TR Desde o maternal, com uns dois anos, para desenvolver a oralidade, respeitando a idade e usando textos pequenos. 8 ZG A partir do momento em que a criança entra na escola a leitura deve fazer parte de sua vida, como forma de descobrir o mundo mágico da leitura. 9 KV De quatro anos em diante. Na escola a partir daí haverá uma grande “incentivação” para eles. 10JN Desde bebezinho, porque a criança vai pegar o hábito da leitura, se os pais conversam com elas desde cedo, eles aprendem a falar mais rápido e ler também, quanto antes começar melhor. 142 Questão Atualmente você está lendo algo? (fora do ambiente de trabalho) Sujeitos Respostas 1 Pc Só os textos que os professores do curso mandam, Saio de casa as 6:30 da manhã e só volto as 8:30 da noite, estudo de manhã e trabalho a tarde, não da tempo, não 2 MS Quando chego vou fazer as coisas de casa. Nunca tenho tempo. 3 SF Estou lendo textos sobre trabalho, educação. 4 MA O livro de Gabriel Chalita; A educação a partir do afeto e o de Augusto Cury; As deis leis pra ser feliz. 5 TM Nada, não tenho tempo, trabalho os dois expedientes, a noite tô cansada. 6 BS Os textos da universidade que os professores passam. 7TR Só revistas. 8ZG Revista nova escola e livros sacros. 9 KV O poder da esposa que ora. 10JN Um livro de Zíbia Gaspareto, não estou lembrando do nome. 143 ANEXO B: Transcrição das entrevistas com as crianças Análise das entrevistas aplicadas com os sujeitos da pesquisa; dez crianças da turma do Pré II da creche em que realizamos a pesquisa. Antes de iniciarmos a seção de perguntas foi explicado para cada criança que se tratava de "um trabalho da escola da pesquisadora", algumas estranharam o fato dela ainda estudar e Alan asseverou: "Quando eu ficar grande, eu não vou estudar mais não." Também lhes foi esclarecido de que ninguém saberia de quem seriam as respostas. Consideramos importante que as crianças tomassem conhecimento de como aconteceriam algumas etapas da pesquisa, mesmo que essa informação nos parecesse pouco relevante para elas. As entrevistas foram aplicadas individualmente em um ambiente separado, na ausência de colegas e da professora, no intuito de não inibir os sujeito, porém em alguns momentos uma funcionária de serviços gerais entrou na sala. As falas das crianças foram preservadas ipssis literis durante a transcrição. 1 Você gosta da creche? 100% das crianças responderam que gostam da creche. 2 Por quê? Porque tem brinquedo e porque a gente faz tarefa para não virar burro. (Alan) Porque a creche me ensina muito. (Carla) Porque gosta de aprender as letras e o alfabeto. (Gabriela) Porque aprendo. (Kelly) Gosto das outras pessoas (funcionários). (Leila) Gosto menos. (para expressar pouco) Queria que a gente pudesse brincar mais, e que dessem brinquedo para a gente. (Jonh) É bom, desenhar, pintar, mas faz bem muita tarefa e a professora ainda faz tarefa de reforço. (Nilton) Me acostumei, e nem choro, não sou mais bebezinho. (Pedro) Porque gosto de estudar. (Renato) Não respondeu. (Verônica) 144 3 O que gosta de fazer na creche? Brincar com elefante e com o sapo. (Alan) Tarefa, e de brincar mais ou menos. (Carla) Brincar de boneca, quando tia X deixa. (Gabriela) Abraçar as tias, brincar. (Kelly) Brincar, estudar e dançar (se referindo aos ensaios). (Leila) Brincar e estudar. (Jonh) Brincar de Dragon Bol Z, de escola, de Bem 10. De vez em quando tia deixa a gente Brincar. (Nilton) Brincar, estudar e fazer letras. Brincar com carrinho e com elefante, de toca e de correr e quando tem passeio de trenzinho. (Pedro) Brincar com o sapo, com carrinho, quando dá tempo. (Renato) Ficar brincando no chão, quando eu faço três tarefas, (mostrando quatro dedos) tia deixa. (Verônica) 4 O que não gosta na creche? Fazer muita tarefa, gosto de fazer pouquinha e brincar mais, queria que desse tempo brincar todo dia. (Alan) De fazer muita tarefa. (Carla) Eu gosto de almoçar e tomar café, mas não gosto do pão, nem fazer tarefa e nem arengar. (Gabriela) Nada. (Kelly) Estudar e das tarefas de reforço. (Leila) O povo e tia X brigar comigo, de fazer muita tarefa, só ficar na sala, só os colegas da outra sala vão lá pra baixo brincar. (Jonh) Assistir DVD, (com a chegada de uma funcionária a criança interrompe a fala afirmando em seguida): Meu irmão vai estudar aqui. (Depois que a funcionária saí, ele prossegue): gosto mais de ficar em casa. (Nilton) DVD de Dora, pintar muito, gosto quando é pra pintar pouco. (Pedro) Arengar, nem fazer raiva e nem fazer bagunça. (Renato) Das tarefas. (Verônica) 145 5 Gosta de ouvir histórias? 100% dos entrevistados afirmaram gostar de ouvir histórias. Quatro delas especificaram: Gosto da história da cobra, que mamãe contou. (Leila) Gosto da história do lobo mau. (Nilton) Gosto. Mas tu faz muita pergunta! Você quer saber tudo é? (Pedro) Gosto de historinha de Deus. (Renato) 6 Qual a história lida pela professora que você mais gostou? Gostei da história que tia X contou com o livro, a do peixinho. (Alan) Aquela que tu leu, d'A galinha ruiva. (Carla) Gosto da história de Branca de Neve que minha tia Vânia leu, minha tia de casa, não foi tia X não. (Gabriela) A do Dragon Bol Z, que tia X botou no DVD. (Jonh) A de Jesus, que tia Y contou quando eu estudava com ela na outra sala. (Kelly) A do DVD de Branca de Neve, tia X colocou, foi a que eu mais gostei. (Leila) Aquela do coelho e da tartaruga. (Nilton) (Se referindo a fábula A lebre e a tartaruga) Não sei. (pausa) 'Gosti' da que você contou, d'A galinha rúvia. (Pedro) Da do peixinho (Renato) Tia X não contou não. (Verônica) (A criança tem um número elevado de faltas, e é possível que não tenha presenciado essa atividade). As respostas das crianças para essa pergunta apontam para uma pouca abordagem da leitura literária naquele grupo, pois mesmo a pergunta ter direcionado para histórias lidas pela professora X, duas das dez crianças responderam ter gostado da história contada/lida pela pesquisadora, uma por alguém na sua casa, outra pela professora do ano letivo anterior, duas afirmaram que a professora apresentou histórias em DVD e apenas três responderam histórias lidas/contadas pela professora X, sendo que duas gostaram da história do peixinho e uma da do coelho. Demonstrando um número pequeno de atividades de leitura literária com aquele grupo, vale lembrar que a entrevista foi realizada após o período de observação das aulas no mês de outubro, nos chamou a atenção o fato de uma das crianças se 146 remeterem a uma história lida pela professora do ano anterior como a história que havia gostado de ouvir. 7 Alguém lê ou conta histórias em casa para você? Minha mãe contou sem livro, a história de uma pessoa. Mas eu não lembro mais não. (Alan) Minha mãe, mas faz tempo. Uma história do cachorrinho. (Carla) Tia Melina conta sem livro quando eu vou dormir na casa dela. (Gabriela) Não. (Jonh) Minha mãe contou a d'O patinho feio, meu tio a de Chapeuzinho Vermelho e meu pai a da princesa. (Kelly) Bianca minha amiga, que mora na casa de Zélia, ela trabalha no salão e pintou minhas unhas, contou a história do sapo. (Leila) Na minha casa nem tem historinha não. Mas minha irmã vai fazer. A gente brinca e lê uns papel que meu pai compra. (se referindo a panfletos e santinhos de campanhas eleitorais). (Nilton) Não, ninguém. E tem vez que meu pai e minha mãe bate em mim. (Pedro) Não, só a tia da igreja que conta as histórias de Jesus. (Renato) Cristina minha prima, contou a de Chapeuzinho Vermelho. (Verônica) 8 Qual o livro de história da sala que você mais gosta? D'A galinha ruiva. Que foi tu quem contou. (Alan) 147 O de Jesus. (Carla) Do animal. (Gabriela) Nenhuma só a d'A galinha ruiva, que você contou. (João) O de Jesus. (Kelly) Aquela que você contou dos 'pintim'. (Leila) Se referindo a história d'A galinha ruiva. A do coelho da corrida. (para referir-se a fábula d'A Lebre e a Tartaruga), (Nilton) O d'A galinha Rúvia. (Pedro) A do peixinho. (Renato) Tem livro de historinha, mas tá guardado ali, (apontando para o armário). A gente não pega não. Só se tia X deixasse n'era? (Verônica) Ao serem questionadas se gostavam da creche as dez crianças entrevistadas afirmaram gostar. Justificando a importância de estudar e das tarefas, porém seis das dez crianças responderam que não gostavam de fazer muitas tarefas, duas não gostavam de fazer as tarefas e uma respondeu que gostava mais de ficar em casa. Sobre leitura literária 100% das crianças afirmaram gostar de ouvir histórias. Esse gosto ficou confirmado durante o período das intervenções pedagógicas, quando foram feitas as leituras/contação conforme análises dos dados da pesquisa. As respostas para as perguntas de números 6 e 8 nos evidenciou uma subutilização da leitura literária por aquela turma tanto pela restrição do acervo literário da creche, quanto do da professora. Fato que foi observado no período das observações das aulas, de nove aulas observadas, foi feita apenas a leitura de uma narrativa com o intuito de observarem as características físicas de alguns animais. A restrição aos momentos de recreação livre foi demonstrada através das falas das crianças. 100% delas disseram que o que mais gostam de fazer na creche é brincar, duas delas afirmaram quando a professora deixa, ficando claro que não é uma atividade cotidiana/diária e outras duas que brincam quando dá tempo parecendo ter absorvido o discurso de alguns adultos de que brincar na escola é perda de tempo. As entrevistas foram aplicadas individualmente em um ambiente separado, na ausência de colegas e da professora, no intuito de não inibir os sujeito, porém em alguns momentos uma funcionária de serviços gerais entrou na sala. 148 9 Você gosta da creche? 100% responderam que gostam da creche. 10 Por quê? Porque tem brinquedo e porque a gente faz tarefa para não virar burro. (Alan) Porque a creche me ensina muito. (Carla) Porque gosta de aprender as letras e o alfabeto. (Gabriela) Porque aprendo. (Kelly) Gosto das outras pessoas (funcionários). (Leila) Gosto menos. (para expressar pouco) Queria que a gente pudesse brincar mais, e que dessem brinquedo para a gente. (João) É bom, desenhar, pintar, mas faz bem muita tarefa e a professora ainda faz tarefa de reforço. (Nilton) Me acostumei, e nem choro, não sou mais bebezinho. (Pedro) Porque gosta de estudar. (Renato) Não respondeu. (Verônica) 11 O que gosta de fazer na creche? Brincar com elefante e com o sapo. (Alan) Tarefa, e de brincar mais ou menos. (Carla) Brincar de boneca, quando tia "Fulana" deixa. (Gabriela) Abraçar as tias, brincar. (Kelly) Brincar, estudar e dançar (se referindo aos ensaios). (Leila) Brincar e estudar. (João) Brincar de Dragon Bol Z, de escola, de Bem 10. De vez em quando tia deixa a gente brincar. (Nilton) Brincar, estudar e fazer letras. Brincar com carrinho e com elefante, de toca e de correr e quando tem passeio de trenzinho. (Pedro) Brincar com o sapo, com carrinho, quando dá tempo. (Renato) Ficar brincando no chão, quando eu faço três tarefas, (mostrando quatro dedos) tia deixa. (Verônica) 149 12 O que não gosta na creche? Fazer muita tarefa, gosto de fazer pouquinha e brincar mais, queria que desse tempo brincar todo dia. (Alan) De fazer muita tarefa. (Carla) Eu gosto de almoçar e tomar café, mas não gosto do pão, nem fazer tarefa e nem arengar. (Gabriela) Nada. (Kelly) Estudar e das tarefas de reforço. (Leila) O povo e tia "Fulana" brigar comigo, de fazer muita tarefa, só ficar na sala, só os colegas da outra sala vão lá pra baixo brincar. (João) Assistir DVD, (com a chegada de uma funcionária a criança interrompe a fala afirmando em seguida): Meu irmão vai estudar aqui. (Depois): gosto mais de ficar em casa. (Nilton) DVD de Dora, pintar muito, gosto de pintar pouco. Fazer muita tarefa. (Pedro) Arengar, nem fazer raiva e nem fazer bagunça. (Renato) Das tarefas. (Verônica) 13 Gosta de ouvir histórias? 100% afirmaram gostar de ouvir história. Quatro delas especificaram: Gosto da história da cobra, que mamãe contou. (Leila) Gosto da historia do lobo mau. (Nilton) Gosto. Mas tu faz muita pergunta! Você quer saber tudo é? (Pedro) Gosto de historinha de Deus. (Renato), 14 Qual a história lida pela professora que você mais gostou? Gostei da história que tia "Fulana" contou com o livro, a do peixinho. (Alan) Aquela que tu leu, d'A galinha ruiva. (Carla) Gosto da história de Branca de Neve que minha tia "Cicrana" leu, minha tia de casa, não foi tia "Fulana" não. (Gabriela) 150 A do Dragon Bol Z, que tia "Fulana" botou no DVD. (João) A de Jesus, que tia "Beltrana" contou quando eu estudava com ela na outra sala. (Kelly) A do DVD de Branca de Neve, tia "Fulana" colocou, foi a que eu mais gostei. (Leila) Aquela do coelho e da tartaruga. (Nilton) (Se referindo a fábula A lebre e a tartaruga) Não sei. (pausa) 'Gosti' da que você contou, d'A galinha ruvia. (Pedro) Da do peixinho (Renato) Tia "Fulana" não contou não. (Verônica) (A criança tem um número elevado de faltas, e é possível que não tenha presenciado essa atividade). 15 Alguém lê ou conta histórias em casa para você? Minha mãe contou sem livro, a história de uma pessoa. Mas eu não lembro mais não. (Alan) Minha mãe, mas faz tempo. Uma história do cachorrinho. (Carla) Tia "Melina" conta sem livro quando eu vou dormir. (Gabriela) Não. (João) Minha mãe contou a d'O patinho feio, meu tio a de Chapeuzinho Vermelho e meu pai a da princesa. (Kelly) "Bianca" minha amiga, que mora na casa de "Zélia", ela trabalha no salão e pintou minhas unhas, contou a história do sapo. (Leila) Na minha casa nem tem historinha não. Mas minha irmã vai fazer. A gente brinca e lê uns papel que meu pai compra. (se referindo a panfletos e santinhos de campanhas eleitorais). (Nilton) Não, ninguém. E tem vez que meu pai e minha mãe bate em mim. (Pedro) Só a tia da igreja que conta as histórias de Jesus. (Renato) "Cristina" minha prima, contou a de Chapeuzinho Vermelho. (Verônica) 16 Qual o livro de história da sala que você mais gosta? D'A galinha ruiva. Que foi tu quem contou. (Alan) O de Jesus. (Carla) Do animal. (Gabriela) Nenhuma só a d'A galinha ruiva, que você contou. (João) 151 O de Jesus. (Kelly) Aquela que você contou dos 'pintim'. (Leila) Se referindo a história d'A galinha ruiva. A do coelho da corrida. (Nilton) O d'A galinha Rúvia. (Pedro) A do peixinho. (Renato) Tem livro de historinha, mas tá guardado ali, (apontando para o armário). A gente não pega não. Só se tia deixasse n'era? (Verônica)