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traço
I ilustração I
ANDRÉ
CARRILHO
A ARTE DE TRABALHAR PARA O BONECO
Caricaturista, ilustrador, cartunista,
realizador de animação, vj, designer gráfico.
As caras de um “self made
man” que não alinha em discursos derrotistas.
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só queria desenhar.
Mas nunca acreditou que isso
pudesse vir a ser uma profissão a
tempo inteiro. «No meu tempo,
devia-se tirar um curso, ter um
emprego numa empresa, fazer carreira», explica. Entretanto, pára
para se interrogar, rindo: «acho que
já posso dizer “no meu tempo”…?»
André Carrilho nasceu em 1974,
na Amadora. Começou por dese-
nhar apenas para os amigos e
família. Divertia-se a caricaturálos. A dada altura, a mãe muda-se
para Macau e André acompanhaa. É lá que faz o 12º ano. E é lá
que, por influência de colegas de
escola, se aventura na Comuni cação Social. «Como é um meio
muito pequeno, toda a gente se
conhece. Tive a sorte de me
darem algum espaço no jornal
“Ponto Final”.» Já não se lembra
do primeiro desenho que publicou.
Mas recorda-se bem do primeiro
que vendeu: «a caricatura do Rocha
Vieira, que era, então, o Governador de Macau».
Hoje, aos 34 anos, André Carrilho é
o ilustrador português com maior
visibilidade no estrangeiro e um
dos mais requisitados a nível internacional. Já publicou no “The New
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
2007
AO PRINCÍPIO,
2007
TEXTO JOÃO MESTRE I FOTOGRAFIA PEDRO LOUREIRO
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traço I ilustração I
“O
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
2007
SEGREDO DO
MEU SUCESSO?
É UMA MISTURA
DE OPORTUNIDADE, CONTEXTO
E SORTE...
E CAPACIDADE
DE VER, BOA
INTUIÇÃO.”
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York Times”, na “Vanity Fair”, na
“Harper’s Magazine” (EUA); no
“Independent on Sunday”, na
“Word” (Inglaterra); no “El País”,
no “El Mundo” (Espanha); no
“Courier International” (França); e
no “Neue Zürcher Zeitung” (Suíça).
Isto para além do “Diário de
Notícias”, do “Independente”, do
“Público", do “Diário Económico”
e do “Expresso”. E de trabalhos
de ilustração para diversas editoras, entre elas a nova-iorquina
Random House.
Surpreendentemente, André confessa-se pouco empenhado na
procura de trabalho. «Como já
tenho tanto trabalho e não tenho
capacidade para fazer mais, interessa-me muito mais ter duas ou
três contas fixas e ter tempo livre
para me dedicar ao VJing [forma de
videoarte, apresentada, por norma,
em eventos musicais, como concertos ou actuações de DJs], à animação e a outras coisas que não
me dão tanto dinheiro mas que
gosto de ir fazendo.»
Entre essas «outras coisas», encontra-se a banda desenhada, a «pri meira paixão». Houve até (quem
diria?) um longo período da sua
vida em que desprezava a ilustração. «Sempre achei mais piada a
contar histórias». A ideia já anda a
germiná-la – «tenho na minha
cabeça uns cinco álbuns». É um
trabalho demorado: «para fazer um
álbum, preciso, pelo menos, de um
ano». No entanto, não quer «morrer
sem lançar um».
SENTAMO-NOS
a conversar numa
esplanada do Chiado, interrompidos, de tempo a tempo, pela ruidosa passagem de um eléctrico.
Pergunto-lhe pelo segredo do
sucesso. «O segredo do meu
sucesso? É uma mistura de oportunidade, contexto e sorte.» À
receita acrescenta, depois de
uma breve paragem para pensar,
«capacidade de ver… tenho uma
boa intuição para apanhar as
alturas em que é preciso fazer
uma jogada».
HONRAS.
WOODY ALLEN
Comecemos pela sorte: em
2001, André Carrilho é convidado
por Jorge Silva, director de arte do
“Públi co”, a colaborar no suplemento “Mil Folhas”. Sem o saber,
é inscrito pelo próprio Jorge Silva
no concurso da Society for News
Design. Ganhou o Prémio de Ouro
pelo seu portefólio individual.
Isso bastou para lançar uma carreira internacional de ilustrador.
«Quando o Jorge Silva foi lá para
receber o prémio…» Interrompo-o:
«o André não foi receber o
NICOL
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JACKS
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DECO
vem dos próprios
temas que lhe são dados. E também do cinema, da literatura, da
pintura, de tudo excepto a
própria ilustração. «Um mestre
de animação russo dizia aos
alunos que se deve ir buscar
inspiração a todas as outras áreas
excepto àquela onde a gente trabalha.» As referências do mundo
da ilustração, contudo, são
A INSPIRAÇÃO
TUDO MUDOU ASSIM QUE
COMEÇOU A ILUSTRAR PARA
O BOOK REVIEW, SUPLEMENTO DO
NY TIMES: «A PARTIR DO MOMENTO
EM QUE SE PUBLICA NUM SÍTIO
DESSES, HÁ MUITA GENTE
QUE REPARA EM NÓS».
prémio?». A resposta: «não, não
tinha dinheiro para ir lá, porque,
além da viagem e da estadia em
Nova Iorque, tinha de pagar 400
dólares para entrar na cerimónia».
Valeu-lhe a ida de Jorge Silva.
«Dei-lhe um portefólio para ele
entregar a quem achasse mais
adequado.» Entregou-o ao “The
New York Times”. Passados três
meses, André é convidado a desenhar para o suplemento “Book
Review”, onde acaba por fazer
algumas capas. Entrava, assim,
para um dos espaços de ilustração
mais cobiçados dos Estados
Unidos. «A partir do momento em
que se publica num sítio desses,
há muita gente que repara em
nós». E assim aconteceu.
Em simultâneo, Carrilho é expos-
ou design. Descobriu, então, o
Design Gráfico, «um curso relativamente recente» que frequentou, regressado de Macau, nas
Belas Artes de Lisboa. No meio
tempo, foi fazendo alguns trabalhos de ilustração. E abriu um
“atelier” com o ilustrador/designer Luís Lázaro. Apercebem-se,
porém, de que estão «mais talhados para a criação pessoal, pura e
dura». E aqui entra a tal boa intuição de que André falava: «comecei a descobrir que o meu talento
específico de caricatura não era
coisa fácil de encontrar e que era
valorizado no mercado». Pergunto-lhe quando é que se apercebeu de que iria ser essa a sua
profissão. A resposta, entre risos:
«quando vi que estava a ganhar
muitas. Os seus ídolos são, em
boa parte, portugueses. «Não é
nacionalismo bacoco; ter no
nosso meio pessoas que fazem
coisas que temos em alta conta é
muito importante.» Na hora de
eleger a sua maior referência,
aponta Abel Manta, «porque
quando conhecemos alguém com
aquela qualidade e vemos que é
português, também nos apercebemos de que é possível fazermos
qualquer coisa.» Adiantando um
pouco mais a conversa, André
acaba por apontar uma tríade de
“mestres” inspiradores: «em Portugal, houve três criadores que
foram seminais e estão ao mais
alto nível mundial: o Rafael Bordalo Pinheiro, o Stuart Carvalhais
e o Abel Manta». Depois refere
2007
MÁRIO CESA
RINY
vontade era ir para
Arquitectura. «Não conseguia arranjar profissões que fossem de desenhar» e a Arquitectura acabava
por ser uma espécie de mal menor, «era a coisa mais próxima».
Entretanto, repara que alguns
dos caricaturistas que mais admirava trabalhavam em publicidade
A SUA PRIMEIRA
mais dinheiro com a ilustração do
que com o design».
JANEIRO, FEVEREIRO, MARÇO
FRANK GEHRY
to ao “Independent on Sunday”,
suplemento de domingo do “The
Independent”, cuja directora gráfica integrava o júri do concurso.
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após sete desenhos, sete tentativas, teve de dizer ao cliente que
desistia. «Era uma cara normal»,
justifica-se - «normalmente, são
pessoas bonitas, que não têm
nada de assimétrico». É por isso
que prefere os escritores, «porque temos acesso a fotografias
que são “mais” eles, são mais
“as pessoas”».
mais alto da sua carreira
foi quando um trabalho seu
chegou ao Parlamento. «Ainda
ontem, estava a arrumar o “atelier” e encontrei essa imagem: o
Telmo Correia a segurar um
desenho meu na Assembleia da
República e a dizer que era um
escândalo». Que desenho era
esse? «Quando o Bagão Félix
estava a reformular a Lei do
Trabalho, fi-lo no corpo de um
cão, aos pés de um patrão»,
sendo que «o patrão tinha charuto e era gordo». «A grande
polémica», conta, claramente
divertido com a situação, «foi
que os patrões não eram gordos
nem fumavam charuto, mas o
facto é que perceberam que era
um patrão». Passado mais um
eléctrico, continua: «quando se
faz uma imagem dessas, há que
lidar com clichés colectivos».
E a censura? «Não gosto de falar
de censura.» Ou melhor, é mais
«uma questão de gosto» do que
«uma questão de moral ou ética».
«É preciso testar», explica. «Testo
os limites daquilo que posso
fazer: a experiência está em fazer
um desenho que seja aceite mas
que seja pertinente e vá ao fundo
da questão.» Um «jogo» que
acaba por considerar divertido.
«Até gosto de trabalhar dentro de
um espaço confinado», afirma,
sublinhando que isso o obriga a
«usar alguma agilidade para fazer
um desenho interessante».
O PONTO
MORADAS. André
nasceu a 26/07/1974, na
Amadora. Aos 10 anos,
mudou-se para Lisboa,
onde estudou até ao 11º
ano. Entretanto, a sua mãe,
arquitecta do IGAPHE, é
transferida para Macau. É lá
que faz o 12º ano. Passado
um ano, regressa a Lisboa
(onde reside actualmente) e
ingressa no curso de Design
Gráfico nas Belas Artes.
Que não chega a concluir,
por descontentamento.
Enquanto trabalha no seu “atelier”, em Lisboa, André Carrilho
convive com dezenas de desenhos
de sua autoria, que preenchem as
paredes e restantes espaços livres.
«São a minha porta, o meu meio
de comunicação para o mundo
exterior», afirma. «Sou uma pessoa
introvertida, um bocado tímida, e
assim convivo com a ideia que as
pessoas têm de mim e do meu trabalho.» O que, na sua opinião,
acaba por ser uma forma de se
conhecer melhor a si próprio.
RECORDO-ME
EM PAPEL. Para além
dos trabalhos para jornais
e revistas, publicados em
Inglaterra, EUA, Espanha,
Suíça e França, ilustrou
também diversos livros,
tanto em Portugal como
no estrangeiro. Em 2007,
lançou, em nome próprio,
a colectânea “O Rosto do
Alpinista” e ilustrou o livro
“O Vírus da Vida”, do
músico/escritor JP Simões.
«Gosto mais do objecto
livro, porque o livro fica,
enquanto que a ilustração
em si é efémera», afirma.
OUTRAS ARTES.
Em 2007, estreia-se na
animação, com a curta
“Jantar em Lisboa”, aplaudida em festivais de todo o
mundo. Actualmente, sonha
com a realização de uma
longa-metragem «capaz de
rivalizar com o que de
melhor se faz na animação».
E sonha também em lançar
um álbum de banda desenhada. Não será, porém, a
sua primeira aventura na
9ª Arte: em 2003, lançou
a colectânea de histórias
curtas “Em Lume Brando”.
de ter lido, numa
citação do próprio André, que, se
não tivesse começado em Portugal, «nunca teria chegado aos
jornais internacionais». Soa
quase a contra-senso, já que o
discurso habitual é precisamente
o inverso. «Em Portugal, não
estamos no centro de nada, estamos equidistantes de tudo o
resto». Passado outro eléctrico,
completa: «temos referências
equi distantes de tudo: dos ingleses, dos franceses, dos americanos, dos japoneses». Nos
Estados Unidos, por exemplo, «as
pessoas são muito mais formatadas, há especializações para
tudo», ao passo que, em Portugal, «somos os “desenrascas”,
fazemos de tudo um pouco». E
reforça: «acho que, se não fosse
português, nunca tinha chegado
a trabalhar para os sítios onde
trabalho». Mas há mais: como em
Portugal «havia pouca gente a
fazer isto, uma pessoa tem possibilidade de progressão no próprio
meio». Outra vantagem de trabalhar cá: «tenho mais liberdade de
movimentos. Lá fora, querem
especificamente aquilo que já
viram.»
É bom desenjoar do habitual discurso do «se não tivesse começado
em Portugal, teria sido mais fácil».
“ACHO
QUE,
SE NÃO FOSSE
PORTUGUÊS,
NUNCA TINHA
CHEGADO A
TRABALHAR
PARA OS
SÍTIOS ONDE
TRABALHO”
2007
também os contemporâneos (e
seus amigos) Nuno Saraiva, Luís
Lázaro e Cristina Sampaio. E
recorda o tempo em que coleccionava as caricaturas de António
(“Expresso”), Vasco (“Público”) e
Cid (“Independente”).
Acrescenta ainda que «temos
muitos mais que também foram
muito bons, mas não os conhecemos, porque pouca gente presta
atenção a estas coisas». É tudo
«uma questão de cultura, de educação, das próprias escolas»,
advoga. E, aí, assume-se «muito
crítico das universidades e do
ensino das artes em Portugal»,
que classifica de «um bocado deficiente». Adiante-se que o curso
de Design Gráfico nunca chegou a
ser terminado. «Desisti… naquela
al tura, fazer ilustração e usar um
computador era sacrilégio», graceja.
Peço-lhe, sem sucesso, para
definir o seu traço. «Não faço
ideia» é a primeira resposta.
Após a passagem de um eléctrico, elabora um pouco – «procuro
dar alguma noção de fluidez e
movimento a desenhos estáticos».
Ainda tenta avançar a descrição –
«se calhar, procuro fazer um realismo abstracto». Entretanto,
recua – «mas não definiria assim»
– e ri-se. «Não sei, não sei como
definir.»
Se lhe perguntarmos quem é a
sua «vítima» favorita, responde,
com pena, que gostaria que
António Guterres ainda estivesse
em cena. Salienta, porém, que o
que mais gosta é de caricaturar
escritores. «Se eu tiver de fazer a
caricatura de uma modelo»,
exemplifica, «só tenho acesso a
fotografias normalizadas, onde há
um esforço por eliminar defeitos
e irregularidades – e é nisso que
a gente pega, as especificidades». Houve até uma vez («uma
única vez», garante) em que,
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ESCOLHA
DIFÍCIL
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