ADOLESCÊNCIA E CRISE UMA VISÃO PSICANALÍTICA

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ADOLESCÊNCIA E CRISE UMA VISÃO PSICANALÍTICA
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ADOLESCÊNCIA E CRISE: UMA VISÃO PSICANALÍTICA
Daniel Franco de Carvalho e Laéria Fontenele
Inicialmente, faz-se necessário definir aquilo que entendemos, do ponto de
vista psicanalítico, por adolescência, na medida em que este não é um conceito
psicanalítico. Freud discutiu, nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”
(1989a), mais precisamente em seu terceiro ensaio - “As transformações da
puberdade”, a respeito da puberdade e deu a este termo, ao lado de suas outras
concepções, uma significação psíquica. A necessidade de retomar a palavra de
Freud sobre este assunto é oportuna na medida em que a psicanálise tem sido,
reiteradamente, vitimada por toda uma sorte de desvios, os quais se devem tanto
a um ecletismo cego, quanto a um desconhecimento e uma normalização da
radicalidade da letra freudiana (JORGE, 1988).
O conceito de adolescência nem sempre existiu, trata-se de uma invenção
discursiva datada de meados do século XVIII e consolidada em seu emprego no
século XIX. É uma forma de nomeação que tem origem no discurso pedagógico,
tributário de uma ortopedia moral e vinculada a práticas de vigilância e da
ordenação entre idade e nível escolar requeridos (ARIÈS, 1981; FOUCAULT, 2000).
Apesar de o seu uso remontar a um momento histórico em que a psicanálise
começa a ser gerada, ele não foi adotado por Freud, muito embora muitos
psicanalistas pós - freudianos tenham adotado tal conceito e o definido de uma
forma muito diferente dos pressupostos da psicanálise, enfatizando bem mais os
aspectos existentes acerca da relação entre a adolescência e a sexualidade genital.
É neste contexto, então, que surge o questionamento sobre a chamada “crise da
adolescência” - questão que, veremos, é bastante discutível do ponto de vista
freudiano.
Alguns críticos do discurso sobre a crise na adolescência atribuem à Princesa
Marie Bonaparte os suportes teóricos de tal discussão, os quais teriam se baseado
numa má tradução e interpretação do preceito freudiano Wo Es war sol Ich
werden - “Onde o Isso estava o Eu deve advir”; tendo a princesa traduzido o dito
freudiano por “O Eu deve desalojar o Isso”. Disto resultaram as teorias
psicanalíticas pós - freudianas que se somariam ao coro das vozes psicologizantes
acerca da crise da adolescência, a qual se encontraria fundamentada na hipótese
de que haveria por parte do adolescente uma inaptidão para enfrentar as invasões
do Isso ou, em outros termos, a anarquia das pulsões.
Nada mais estranho à visão freudiana sobre a puberdade, na medida em que
os psicanalistas responsáveis por tais formulações acabaram por fazer equivaler a
adolescência a um período de crise na vida do indivíduo, desconsiderando, desta
forma, a noção de sujeito do inconsciente e privilegiando um trabalho terapêutico
que teria por finalidade apaziguar a crise por intermédio do fortalecimento do Eu
do adolescente. Assim sendo, na medida em que se constatasse uma disfunção do
Eu, diagnosticar-se-ia a crise. Segundo Sonia Alberti (1999), para esta terapêutica,
um Eu forte seria capaz de barrar as exigências pulsionais desagradáveis e anti sociais em ação na adolescência. A visão ideológica da adolescência como um
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momento atormentado e tempestuoso, muito embora tenha trilhado seu caminho
na contramão da teoria freudiana, acabou gerando várias discursividades,
passando, inclusive a ocupar o imaginário social e servindo para naturalizar e
tamponar tanto questões relativas ao encontro do adolescente com o real, como
as suas conseqüências para a lucidez crítica que pode surgir neste momento em
relação às mazelas sociais e às contradições do capitalismo. Mais fácil seria
encarar, a partir disto, o adolescente como um ser incapaz de lidar com as
irrupções das profundezas da alma, do que tomá-lo por aquele que tem
dificuldades de aceitar as falhas e contradições do mundo dos adultos e, portanto,
do social.
Ora, para Freud, a psicanálise sempre foi vista como um empreendimento
subversivo; este chegou mesmo a nomeá-la de peste. Um Eu fortalecido era
considerado por ele como o habitat do sintoma, o que equivaleria ao Eu do
neurótico, em seu esforço de negar a castração simbólica; seria este mesmo Eu
forte o responsável pela prevalência da fantasia no trato do neurótico para com a
realidade. Em seu texto “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1989b),
ele defende que os prejuízos acarretados por um Eu inflado em demasia são a sua
remodelação ficcional da realidade, o que se manifesta por sua tendência a
antecipar uma angústia real por meio da fantasia. Qualquer terapêutica que tenha
por meta reforçar o Eu, consoante a visão do criador da psicanálise, resultará
numa produção de neurose. Se a crise da adolescência for tratada, como propõe a
corrente anteriormente citada, por meio do fortalecimento do Eu, teríamos a troca
da crise adolescente pela crise neurótica. A psicanálise tem no processo de cura a
possibilidade de lidar com o furo real do qual o Eu não está livre, uma vez que ele
sofre uma estratificação em sua constituição e, com ela, pode ser entendido como
consciente e inconsciente. Por que então desconsiderar tal divisão no que diz
respeito ao adolescente? Se toda análise pressupõe uma destituição subjetiva, a
análise de um sujeito adolescente teria de ser orientada pelos mesmos
pressupostos da terapêutica psicanalítica; ou seja, não se trataria de adormecer a
crise do adolescente, mas de fazer com que o despertar proporcionado pelo seu
possível aparecimento possa ser conduzido conforme os termos analíticos, de
modo que o adolescente possa se localizar e realizar sua implicação quanto a ela único meio de confrontá-lo, como sujeito, com o seu desejo.
Se a crise implica a dificuldade de elaborar conflitos, logo toda a vida
apresentaria momentos de crise. Aquilo que os motiva seria estruturalmente
diferente? “Crise há porque a sexualidade, muito antes de fazer sentido, faz furo
no real”, conforme afirma Alberti (p. 100, 1999). Isto não seria, então, privilégio
do adolescente, mas a maldição do sujeito falante, o que nos remete à questão do
sexo como sendo traumático. O que há de traumático no encontro com o sexo que
se dá na puberdade? É que se vislumbra, com muita lucidez, que o sexo é muito
mais uma experiência de desencontro do que de síntese ou harmonia.
Diferentemente da Psicologia do Eu, que considera o primado do genital anunciado pela adolescência - como uma síntese, ou seja, como uma normalização
da perversão polimorfa da infância, o que Freud vislumbra é que o primado do
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genital é a submissão da libido do sujeito ao significante do falo - signo da
diferença sexual -, que conduziria a sexualidade adulta a uma desarmonia de base,
na medida em que a submissão ao falo implica em, por um lado, colocar à margem
o mundo das pulsões, e, por outro implica numa proibição que divide o campo do
gozo. Não seria, deste modo, algo de difícil elaboração para qualquer sujeito e não
admitiria muitas saídas, resultando não em uma crise generalizada e datada, mas
numa posição particular do sujeito frente ao seu desejo.
Se hoje é difícil não falar em adolescência, então o que em Freud poderia
definir a puberdade - equivalente do que hoje os teóricos chamam de
adolescência? Para Freud, a puberdade é acompanhada de transformações
corporais e psíquicas, estando estas marcadas, sobretudo, pela reatualização dos
complexos edípico e de castração, e que possuiriam um importante valor à
civilização: “Contemporaneamente à subjugação e ao repúdio dessas fantasias
claramente incestuosas consuma-se uma das realizações psíquicas mais
significativas, porém também mais dolorosas, do período da puberdade: o
desligamento da autoridade dos pais, unicamente através do qual se cria a
oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a nova e velha
gerações” (p. 213, 1989a).
O que ocorre com os sujeitos adolescentes do ponto de vista estrutural? O
que ocorre do ponto de vista de seus laços sociais? São verificadas as
transformações corporais; a queda da imagem ideal dos pais; a necessidade de
fundar sua identificação em referenciais simbólicos; a elaboração do processo
alienação e separação etc. Contudo, conforme nos lembra Alberti,
“A partir do momento em que o sujeito, saído da infância, se depara com o
real do sexo, a puberdade é o próprio encontro mal sucedido - traumático com
este real. O real do sexo é por definição algo que jamais poderá ser simbolizado,
deixando o sujeito - em linguagem do senso comum - sem palavras” (p.26, 1999).
Assim, podemos afirmar, a termo de conclusão, que a adolescência é o
encontro com o sexual, não aquele do sexo genital, mas seria um momento de
assunção do posicionamento sexual exigido pelo meio que cerca o adolescente,
bem como pelas motivações inconscientes que o determinam.
Referências bibliográficas:
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Marca d'Água, 1999.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar,
1981.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes; 2000.
FREUD, Sigmund. “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) in Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1989a.
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______. “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924) in Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1989b.
JORGE, Marco Antonio Coutinho Jorge. Sexo e discurso em Freud e Lacan. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.