Alci Marcus Ribeiro Borges - Curso de Direito da Faculdade

Transcrição

Alci Marcus Ribeiro Borges - Curso de Direito da Faculdade
111
Brasília
Volume 17
Número 111
Fev./Maio 2015
Presidenta da República
Dilma Vana Rousseff
Ministro–Chefe da Casa Civil da Presidência da República
Aloizio Mercadante Oliva
Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil e
Presidente do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência
Ivo da Motta Azevedo Corrêa
Coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência
Daienne Amaral Machado
Revista Jurídica da Presidência / Presidência da República
Centro de Estudos Jurídicos da Presidência – Vol. 1, n. 1, maio de 1999.
Brasília: Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, 1999–.
Quadrimestral
Título anterior: Revista Jurídica Virtual
Mensal: 1999 a 2005; bimestral: 2005 a 2008.
ISSN (até fevereiro de 2011): 1808–2807
ISSN (a partir de março de 2011): 2236–3645
1. Direito. Brasil. Presidência da República, Centro de Estudos Jurídicos da Presidência.
CDD 341
CDU 342(81)
Centro de Estudos Jurídicos da Presidência
Praça dos Três Poderes, Palácio do Planalto
Anexo II superior – Sala 204 A
CEP 70.150–900 – Brasília/DF
Telefone: (61)3411–2937
E–mail: [email protected]
http://www.presidencia.gov.br/revistajuridica
© Centro de Estudos Jurídicos da Presidência – 2015
Revista Jurídica da Presidência
É uma publicação quadrimestral do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência voltada à divulgação de artigos científicos inéditos, resultantes de pesquisas e estudos independentes sobre
a atuação do Poder Público em todas as áreas do Direito, com o objetivo de fornecer subsídios
para reflexões sobre a legislação nacional e as políticas públicas desenvolvidas na esfera federal.
Equipe Técnica
Coordenação de Editoração
Conselho Editorial
Daienne Amaral Machado
Claudia Lima Marques
Renata Cristina do Nascimento Antão
Claudia Rosane Roesler
Gestão de Artigos
Mariana Figueiredo Cordeiro da Silva
Fredie Souza Didier Junior
Gilmar Ferreira Mendes
João Maurício Leitão Adeodato
Projeto Gráfico e Capa
Joaquim Shiraishi Neto
Bárbara Gomes de Lima Moreira
José Claudio Monteiro de Brito Filho
Diagramação
Bárbara Gomes de Lima Moreira
Revisão Geral
Daienne Amaral Machado
Mariana Figueiredo Cordeiro da Silva
Renata Cristina do Nascimento Antão
Luis Roberto Barroso
Maira Rocha Machado
Misabel de Abreu Machado Derzi
Vera Karam Chueiri
Apropriate articles are abstracted/indexed in:
BBD – Bibliografia Brasileira de Direito
LATINDEX – Sistema Regional de Información
Revisão de Idiomas
en Linea para Revistas Científicas de América
Daienne Amaral Machado
Latina, el Caribe, España y Portugal
Mariana Figueiredo Cordeiro da Silva
ULRICH’S WEB – Global Serials Directory
Fotografia da Capa
Treliça em Madeira e Ferro Pintado
Athos Bulcão, 1967
Sala dos Tratados, Palácio do Itamaraty
Fotógrafo
André Villaron
Colaboradores da Edição 111
Pareceristas
Adriano De Bortoli - Universidade de Brasília
Adrualdo de Lima Catão - Universidade Federal de Alagoas
Alexandre Coutinho Pagliarini - Universidade Tiradentes
Alexandre Freire Pimentel - Universidade Católica de Pernambuco
Alice Ribeiro de Sousa - Universidade Federal de Uberlândia
Aline Albuquerque - Centro Universitário de Brasília
Ana Gabriela Mendes Braga - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Ana Luiza Pinheiro Flauzina - Centro Universitário de Brasília
Antônio Augusto Brandão de Aras - Universidade de Brasília
Antônio Carlos da Ponte - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Antônio Carlos Mendes - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Antônio Rulli Júnior - Faculdades Metropolitanas Unidas
Antonio Rulli Neto - Faculdades Metropolitanas Unidas
Brunello Stancioli - Universidade Federal de Minas Gerais
Carlos Bolonha - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carlos José Cordeiro - Universidade Federal de Uberlândia
Clovis Gorczevski - Universidade de Santa Cruz do Sul
Cristiano Paixão Araújo Pinto - Universidade de Brasília
Daniela de Freitas Marques - Universidade Federal de Minas Gerais
Dinorá Adelaide Musetti Grotti - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Edimur Ferreira de Faria - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Edinilson Donisete Machado - Universidade Estadual do Norte do Paraná
Élcio Trujillo - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Fabricio Macedo Motta - Universidade Federal de Goiás
Felipe Braga Albuquerque - Universidade Federal do Ceará
Fernando Andrade Fernandes - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Fernando Antonio de Carvalho Dantas - Universidade Federal de Goiás
Fernando de Brito Alves - Universidade Estadual do Norte do Paraná
Guilherme Assis de Almeida - Universidade de São Paulo
Guilherme de Souza Nucci - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Guilherme Scotti - Universidade de Brasília
Hélio Silvio Ourém Campos - Universidade Católica de Pernambuco
Hugo de Brito Machado Segundo - Universidade Federal do Ceará
Iara Menezes Lima - Universidade Federal de Minas Gerais
Ingrid Zanella Andrade Campos - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
João Paulo Allain Teixeira - Universidade Católica de Pernambuco
Jorge Renato dos Reis - Universidade de Santa Cruz do Sul
José Soares Filho - Universidade Católica de Pernambuco
Katya Kozicki - Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Leonardo Macedo Poli - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Leonardo Netto Parentoni - Universidade Federal de Minas Gerais
Marcellus Polastri Lima - Universidade Federal do Espírito Santo
Marcus Alan de Melo Gomes - Universidade Federal do Pará
Margareth Vetis Zaganelli - Universidade Federal do Espírito Santo
Marília Montenegro Pessoa de Mello - Universidade Católica de Pernambuco
Marisa Helena D’Arbo Alves de Freitas - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Nestor Eduardo Araruna Santiago - Universidade Federal do Ceará
Paulo Burnier da Silveira - Universidade de Brasília
Paulo Sérgio João - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Raquel Tiveron - Centro Universitário de Brasília
Ricardo Sebastián Piana - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Rubia Carneiro Neves - Universidade Federal de Minas Gerais
Silma Mendes Berti - Universidade Federal de Minas Gerais
Teresa Celina de Arruda Alvim Wambier - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Valmir César Pozzetti - Universidade do Estado do Amazonas
Vanessa Oliveira Batista Berner - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Verônica Teixeira Marques - Universidade Tiradentes
Yvete Flavio da Costa - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Autor Convidado
Carlos Libardo Bernal Pulido
AUSTRÁLIA - Sydney
Doutor em Direito (Universidad de Salamanca – Espanha) e em Filosofia (University of Florida
– Estados Unidos). Mestre em Filosofia (University of Florida) e Bacharel em Direito (Universidad Externado de Colombia). Professor associado da Macquarie Law School.
E-mail: [email protected]
Co-autoria - Tradução
Graça Maria Borges de Freitas
BRASIL – Belo Horizonte/MG
Doutoranda em Direito pela Universidad Externado de Colombia em cotutela com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade
Federal de Minas Gerais e em Argumentação Jurídica pela Universidad de Alicante – Espanha.
Juíza do Trabalho em Minas Gerais.
E-mails: [email protected] e [email protected]
Autores
Alci Marcus Ribeiro Borges
da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro
BRASIL – Teresina/PI
(FGV Direito Rio).
Mestre em Educação pela Universidade
E-mail: [email protected]
Federal do Piauí (UFPI). Pós-graduado em
Educação em Direitos Humanos (UFPI).
Professor na Escola Superior da Magistratura
do Estado do Piauí (ESMEPI) e no Instituto
Camillo Filho. Advogado.
E-mail: [email protected]
Andre Martins Bogossian
BRASIL – Rio de Janeiro/RJ
LL.M. candidate na Harvard Law School.
Pesquisador Visitante na Brown University
– Estados Unidos. Mestre em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Alexandre Corrêa de Luca
Janeiro (PUC-Rio). Graduado em Direito pela
BRASIL – Rio de Janeiro/RJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Mestrando em Direito pela Universidade
(UFRJ). Pesquisador da Escola de Direito da
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em
Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro
Direito pela Universidade Estadual do Rio de
(FGV Direito Rio). Advogado.
Janeiro (UERJ). Pesquisador da Escola de Direito
E-mail: [email protected]
Bruna Santos Costa
vatório do Ensino de Direito da Fundação
BRASIL – Brasília/DF
Getúlio Vargas (Direito GV). Coordenadora
Pesquisadora da Organização Não-Go-
do Núcleo de Atividades Complementares
vernamental Anis – Instituto de Bioética,
(NAC) da Faculdade de Ciências Jurídicas e
Direito Humanos e Gênero. Bacharel em
Sociais (FAJS) do Centro de Ensino Unificado
Direito pela Universidade de Brasília (UnB).
de Brasília (UniCEUB).
Advogada.
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
Ricardo Hermany
Caroline Bastos de Paiva Borges
BRASIL – Santa Cruz do Sul/RS
BRASIL – Teresina/PI
Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa
Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e
– Portugal. Doutor em Direito pela Univer-
Políticas Públicas pela Universidade Federal
sidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
da Paraíba (UFPB). Pós-graduada em Direito
Professor Permanente do Programa de
Público e em Direito Privado pela Universi-
Pós-Graduação - Mestrado e Doutorado da
dade Federal do Piauí (UFPI) e pela Escola
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Superior da Magistratura do Estado do Piauí
Professor da Graduação em Direito na UNISC
(ESMEPI). Professora na Faculdade Mauricio
e na Fundação Educacional Machado de
de Nassau (UNINASSAU/PI). Advogada.
Assis (FEMA). Advogado.
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
Ernesto Roessing Neto
Roberto Freitas Filho
BÉLGICA - Bruxelas
BRASIL – Brasília – DF
Bolsista de Doutorado Pleno CNPq na Vrije
Doutor em Direito pela Universidade de São
Universiteit Brussel – Bélgica. Mestre em
Paulo (USP). Membro do Comitê Científico
Direito pela Universidade Federal de Santa
do Observatório do Ensino de Direito da
Catarina (UFSC). Professor Assistente da Uni-
Fundação Getúlio Vargas (Direito GV). Coor-
versidade do Estado do Amazonas (UEA).
denador do Curso de Direito do Centro de
E-mails: [email protected] e
Ensino Unificado de Brasília (UniCEUB).
[email protected]
E-mail: [email protected]
Luciana Barbosa Musse
Iuri Bolesina
BRASIL – Brasília/DF
BRASIL – Santa Cruz do Sul/RS
Doutora em Direito pela Pontifícia Uni-
Doutorando e Mestre em Direito pela
versidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Membro do Comitê Científico do Obser-
Especialista em Direito Civil pela Faculdade
Meridional (IMED). Integrante do Grupo de
Pesquisa “Intersecções jurídicas entre o público e o privado”, coordenado pelo Pós-Dr.
Jorge Renato dos Reis, vinculado ao CNPq.
E-mail: [email protected]
Taluana Wenceslau Rocha
ARGENTINA – Buenos Aires
Mestre e Especialista em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidad
de Buenos Aires – Argentina. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Goiás
(UFG).
E-mail: [email protected]
7
151
O direito à memória e à verdade no Plano
Nacional de Direitos Humanos 3:
um breve inventário
ALCI MARCUS RIBEIRO BORGES
Mestre em Educação (UFPI). Pós-graduado em Educação em Direitos Humanos
(UFPI). Professor (ESMEPI e Instituto Camillo Filho). Advogado.
CAROLINE BASTOS DE PAIVA BORGES
Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (UFPB).
Pós-graduada em Direito Público e em Direito Privado (ESMEPI/UFPI).
Professora (UNINASSAU – Teresina/PI.). Advogada.
Artigo recebido em 05/11/2013 e aprovado em 16/02/2015.
SUMÁRIO: 1 Introdução 2 A Justiça de Transição e o direito à memória e à verdade: do que se trata? 3 Os caminhos do direito à memória e à verdade no Brasil 4 O direito à memória e à verdade
no Plano Nacional de Direitos Humanos-3 5 Conclusão 6 Referências.
RESUMO: Este artigo busca promover reflexões que favoreçam o reconhecimento
da memória e da verdade como direitos humanos que reclamam efetividade como
política pública. Nesse sentido, parte-se de uma apresentação conceitual, a qual
explicita em que consiste esse direito, seus fundamentos jurídicos e suas justificativas. Em seguida, esses direitos são considerados no contexto das diretrizes
integrantes do Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, ou seja, discute-se
como esses direitos buscam efetividade como política pública, no Brasil, neste
início de século XXI.
PALAVRAS-CHAVES: Justiça de Transição Corte Interamericana de Direitos Humanos PNDH-3.
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
152
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
The right to memory and truth in the National Plan of Human Rights 3: a brief
inventory
CONTENTS: 1 Introduction 2 Transitional Justice and the right to memory and truth: what is this
about? 3 The paths of the right to memory and truth in Brazil 4 The right to memory and truth
in the National Plan of Human Rights 3 5 Conclusion 6 References.
ABSTRACT: This article intends to promote reflections that collaborate for an understanding that support recognition of the memory and truth as human rights that
claim effectiveness as public politics. In this sense, the text begins with a conceptual
presentation, which explains what is this right, its legal grounds and its justifications, and then considers them in the context of the guidelines presented on the
National Plan of Human Rights – PNDH3, in other words, how this right pursues effectiveness as public politics in Brazil at the beginning of the XXI century.
KEYWORDS: Transition Justice Right to Memory and Truth PNDH3.
Le droit à la mémoire et à la vérité dans le cadre du Plan National des Droits de
l’Homme-3: un bref inventaire
SOMMAIRE: 1 Introduction 2 La Justice Transitionnelle et le droit à la mémoire et à la vérité: de
quoi s’agit-il? 3 Les voies du droit à la mémoire et à la vérité au Brésil 4 Le droit à la mémoire et
à la vérité dans le cadre du Plan National des Droits de l´Homme-3 5 Conclusion 6 Références.
RÉSUMÉ: Cet article vise à promouvoir les réflexions qui favorisent la reconnaissance de la mémoire et de la vérité en tant que droits de l’homme qui méritent de faire
l’objet de politiques publiques efficaces. Le point de départ est une présentation
conceptuelle qui explique en quoi consistent ces droits, leurs bases juridiques et
leurs justifications. Ensuite, ces droits sont traités dans le contexte du Plan National
pour des Droits de L’homme – PNDH-3, c’est à dire, que l’on présente la façon selon
laquelle ces droits cherchent à s’affirmer efficacement dans le cadre d’une politique
publique au Brésil, au début du 21ème siècle.
MOTS-CLÉS: Justice Transitionnelle Cour Interaméricaine des Droits de l´Homme
PNDH-3.
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
153
1 Introdução
C
onsidera-se um consenso a ideia de que os direitos humanos sejam quase sempre
resultantes de processos de luta contra estruturas de opressão e de abusos de
poder. É no contexto de holocaustos, genocídios, massacres, extermínios, escravidão,
totalitarismos e colonialismos que brotam esses direitos, como a flor que nasce na
lama e no lodaçal. Igualmente considera-se que é das lutas de resistência contra a
barbárie que nascem as revoluções das quais germinaram os direitos humanos. E das
revoluções nasceram as Declarações de Direitos que, internacionalizadas, inspiraram
e instigaram o processo de constitucionalização dos direitos humanos, os quais, agora,
são desejados como políticas públicas para se tornarem efetivos na vida cotidiana.
Foi por meio de um permanente processo de construção que se consolidou o
reconhecimento normativo de tais direitos. Entretanto, ainda que se diga que os direitos humanos já estão suficientemente teorizados e justificados, resta o exigente
desafio de promovê-los, protegê-los e efetivá-los (BOBBIO, 1992).
No Brasil, os processos de conquista formal de direitos humanos também resultaram das lutas contra as múltiplas estruturas de opressão e de sistemáticos
abusos de poder, tais quais o colonialismo, a escravidão, a subjugação econômica, as
milícias dos coronéis, o patrimonialismo, os senhores da terra e do poder, as senzalas, as chibatas e os chicotes, as ditaduras repressivas, os paus de arara, os exílios,
os porões de tortura, fizerem emergir as revoltas dos indignados, os levantes dos
inconfidentes, as insurreições, os quilombos, os Canudos e Palmares, as greves dos
massacrados, os tantos movimentos de resistência em busca da dignidade dilacerada, forjando os direitos humanos.
Desde a reconstrução da democracia, exsurge um movimento da sociedade civil, de
vítimas de tortura e de familiares de mortos e desaparecidos durante o regime militar,
que demanda que o direito à memória e à verdade lhe seja assegurado, como respostas
às ações repressivas do sistema político ditatorial, perpetrador de variadas formas de
violência contra os opositores do regime. Entretanto, esse direito à memória e à verdade
encontra diversas resistências para ser consolidado, formalmente ou materialmente.
O presente artigo busca promover reflexões que colaborem para uma compreensão que favoreça o reconhecimento da memória e da verdade como direitos humanos
que reclamam efetividade. Parte-se de uma apresentação conceitual, a qual explicita
em que consiste esse direito, seus fundamentos jurídicos e suas justificativas. Em seguida, apresentam-se os caminhos percorridos pelo direito à memória e à verdade no
Brasil. Depois, promove-se um breve inventário sobre o cumprimento das diretrizes reRevista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
154
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
ferentes a esse direito no contexto do Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3,
ou seja, como esse direito busca efetividade como política pública.
2 A Justiça de Transição e o direito à memória e à verdade: do que se trata?
A ideia de uma Justiça de Transição tem matrizes diversas. Teitel, por exemplo,
ao propor uma genealogia da justiça de transição, em busca histórica pelo século
XX, considera que o desenvolvimento de ideias associadas à justiça transicional está
estruturado em três fases:
A Fase I da genealogia, a fase do pós-guerra, começou em 1945. Por meio
de seu símbolo mais conhecido, o Tribunal de Nuremberg conduzido pelos
aliados, esta fase refletiu o triunfo da justiça transicional dentro do plano
do Direito Internacional. [...] A Fase II está associada com o período de
acelerada democratização e fragmentação política [...]. Ao longo dos últimos 25 anos do século XX, o colapso e desintegração da União Soviética
levaram a processos simultâneos de democratização em muitos lugares
do mundo. [...] Até o final do século XX emerge a terceira fase da justiça
transicional, a do estado estável (steady-state). Esta fase caracteriza-se pelo
fenômeno de aceleração da justiça transicional [...]. A justiça transicional
altera-se da exceção da norma para converter-se em paradigma do Estado
de Direito. (2011, p. 46).
A genealogia acima descrita permite observar que o conceito de Justiça de Transição foi desenvolvido mais especificamente a partir da segunda metade do século
XX, em marcantes contextos históricos, confirmando-se atualmente como “o esforço
para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em
massa ou violação sistemática dos direitos humanos” (ZYL, 2011, p. 47). Ou como
uma concepção de justiça associada a períodos de mudança política, caracterizada
por respostas jurídicas, com o fim de enfrentar os crimes cometidos por regimes
opressores no passado. Marcos da própria ONU podem ser destacados acerca da
atual concepção de justiça transicional:
No marco das Nações Unidas, o conceito de justiça de transição compreende a totalidade dos processos e mecanismos relacionados com os esforços de uma sociedade por reconciliar-se com uma herança de graves
violações cometidas no passado, a fim de assegurar a responsabilização,
a administração da justiça e a reconciliação. Esses processos podem compreender mecanismos judiciais e não judiciais, com diferentes níveis de
participação internacional (incluída nenhuma) e julgamentos individuais,
reparações, busca da verdade, reformas institucionais, verificação de ante-
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
155
cedentes, demissões, ou uma combinação destes. (Documento do Conselho
de Segurança das Nações Unidas S/2004/619 (3 de agosto de 2004), p.4,
In: SALMÓN, 2011, p. 227-228)
As concepções de justiça transacional acima apresentadas, consolidadas nos
principais marcos normativos do direito internacional, indicam que seu objetivo
“implica em processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados,
fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e
promover a reconciliação” (ZYL, 2011, p. 47).
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, ao julgar o caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras1 estabeleceu que todos os Estados devem: a) tomar
medidas para prevenir violações aos direitos humanos; b) conduzir investigações
quando as violações ocorrerem; c) impor sanções aos responsáveis pelas violações;
e d) assegurar reparação às vítimas. Essa decisão foi confirmada e adotada, desde
então, por outras cortes, bem como por tratados e resoluções da ONU.
Nessa perspectiva, o campo de atuação da justiça de transição foi desenvolvido
e ampliado, por diversos mecanismos e estratégias, fundamentados no primado dos
direitos humanos, seja mediante esforços de organismos internacionais ou por iniciativas de diversos países, considerando seus próprios contextos políticos e sociais,
não se confirmando um modelo único para tratar as profundas marcas das violações
de direitos humanos. É nesse contexto que emerge o direito à memória e à verdade
como resposta atual às graves violações perpetradas, especialmente no sentido de
revelar a verdade sobre crimes passados.
O direito à verdade ou direito de saber alcança toda a sociedade em razão do conhecimento de sua história (SALMÓN, 2011, p. 245). Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos definiu o direito à verdade como:
um direito de caráter coletivo, que permite à sociedade ter acesso à informação essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos e, ao
mesmo tempo, um direito particular para os familiares das vítimas, que
permite uma forma de reparação, em particular, nos casos de aplicação das
leis de anistia. (COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS,
1999, p. 224).
Por sua vez, as Nações Unidas já manifestaram que:
1 Vide: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1988.
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
156
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
Cada povo tem o direito inalienável de conhecer a verdade acerca dos
acontecimentos sucedidos no passado, em relação com a perpetração de
crimes aberrantes e as circunstâncias e os motivos que levaram, mediante violações massivas ou sistemáticas, à perpetração desses crimes. (ONU,
2005, principle 2).
Como complemento e correspondência a esse direito à verdade associou-se o
direito à memória ou o dever de recordar incumbido ao Estado. Também nessa direção,
as Nações Unidas confirmaram o entendimento de que este direito se refere ao
conhecimento, por um povo, da história de sua opressão, o que constitui
parte de seu patrimônio e, por isso, deve ser conservado, adotando medidas
adequadas em favor do dever de recordar incumbido ao Estado, para preservar os arquivos e outras provas relativas às violações dos direitos humanos e do direito humanitário, e para facilitar o entendimento/conhecimento de tais violações. Essas medidas devem ser encaminhadas no sentido de
preservar a memória coletiva contra o esquecimento e, em particular, evitar
que surjam teses revisionistas e negacionistas. (ONU, 2005, principle 3).
Atualmente, o direito à memória e à verdade, resultante da doutrina e da jurisprudência das cortes internacionais, consolidou-se como direito fundamental, especialmente das vítimas de graves violações, confirmando-se em vários instrumentos
normativos internacionais de direitos humanos.
Diversas são as formas de expressão do direito à memória e à verdade. Não há
uma única maneira de lidar com o passado marcado por graves violações enquanto a verdade não for totalmente revelada. Múltiplas experiências de aplicação do
direito à memória e à verdade, no contexto de uma justiça de transição, já foram
efetivadas em diversos países.
Na África - Serra Leoa, Nigéria, República Democrática do Congo, Libéria, Quênia,
África do Sul – por exemplo, desenvolveram diferentes mecanismos de busca da verdade. Timor Leste e Indonésia estabeleceram uma comissão conjunta para investigar a violência que envolveu o referendo de independência do Timor Leste em 1999
(CUEVA, 2011). Na América Latina, reconhecido cenário de repressão política e de
hediondas violações de direitos humanos perpetradas por ditaduras civis-militares,
quase todos os países realizaram iniciativas de responsabilização e promoção do
direito à justiça, à verdade e à memória. Nesse seguimento, Argentina, El Salvador,
Guatemala, Bolívia, Uruguai, Chile, Honduras, Panamá, Peru, Equador, Nicarágua, Paraguai e Colômbia, são exemplos de países. É certo que algumas experiências não
foram bem sucedidas, mas “a tentativa de revelar o passado para consolidar um fu-
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
157
turo democrático deve ser louvada, apesar das contingências políticas e econômicas
que têm servidor de obstáculo”, no dizer de Pinto (2010, p. 134).
3 Os caminhos do direito à memória e à verdade no Brasil
No Brasil, o direito à memória e à verdade emerge como resposta às violações de
direitos humanos perpetradas e patrocinadas pelo Estado durante o período ditatorial brasileiro, especialmente entre 1964 e 1985, ocasião em que a liberdade de
expressão foi reprimida, as mídias controladas e censuradas, os direitos civis e políticos suspensos, os mandatos cassados, os críticos do regime perseguidos, arbitrariamente detidos, banidos ou exilados, órgãos repressivos, especializados em práticas
ilegais e criminosas, como a tortura, os desaparecimentos forçados e as execuções
sumárias, instituídos. Organizou-se um conjunto estruturado de estratégias estatais
repressivas para extinguir os que resistiram ao regime ditatorial, reeditando e reinventando outras práticas cruéis de violações de direitos humanos, não mais em senzalas e quilombos, mas agora nos porões da ditadura, conforme Swensson Jr. (2011).
A sociedade brasileira, ao demandar um direito à memória e à verdade, luta contra a amnésia histórica e contra o esquecimento das multidões massacradas. Neste
sentido, Ruiz assevera que:
No esquecimento da violência ocorre uma dupla negação da alteridade
humana. O esquecimento nega a violência cometida sepultando-a sob a
indiferença do olvido; e também nega às vítimas da violência porque, pelo
esquecimento, elas se tornam inexistentes. O olvido da violência sepulta
de uma só vez o fato histórico ocorrido e as vítimas que sofreram a injustiça, o que podemos denominar de segunda morte das vítimas da história.
Estas são violentadas uma segunda vez pelo esquecimento que as apaga
de forma definitiva da memória da história, tornando-as insignificantes
para o presente. [...] A tática amnésica sepulta o passado no presente, o
nega pelo simples fato de que já foi; faz desaparecer o passado sob a consideração hermenêutica de que é irrelevante para o momento atual; projeta
um manto de insignificância sobre o que foi para ocultar o olhar instigante
das vítimas da história. (2012, p. 50).
O caminho percorrido nesta direção ainda é pequeno para que o país promova
plenamente as bases para a construção da plena democracia almejada. Alguns desafios continuam dificultando e resistindo à efetivação desse direito. Gallo esclarece:
Assim, na busca pela efetivação do direito á memória e à verdade enfrentou-se, e segue-se enfrentando, dois problemas: o primeiro, diz respeito à
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
158
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
já referida difusão e aceitação, por parte expressiva da população, de que a
Lei no 6.683 de 1979 estabeleceu uma anistia recíproca tanto a torturadores quanto aos torturados, situação esta bastante propícia à consolidação
de uma política do esquecimento; e, além deste, o outro entrave, sobretudo
à verdade, tem sido a questão relativa à abertura dos arquivos da repressão, cuja ocultação (e até mesmo a destruição) de documentos oficiais faz
com que, até hoje, caiba aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos obter, nos poucos arquivos que foram abertos, prova documental
de que seus irmãos, pais, filhos e/ou cônjuges foram mortos pelo Estado
brasileiro. (2010, p. 141).
Apesar desses insistentes entraves e da histórica passividade do Estado brasileiro diante do problema, alguns avanços devem ser destacados, como o projeto
Brasil: Nunca Mais, publicado em 1985, primeira atitude concreta para desvelar a
verdade dos fatos ocorridos durante o período ditatorial. Iniciativa da sociedade
civil, sob a liderança de Dom Paulo Evaristo Arns, o projeto reuniu documentos e
processos políticos, e denunciou, publicamente, os crimes praticados pelos militares.
Também merece destaque, na construção deste processo de continuada luta
nos anos que se seguiram ao final do regime, o trabalho realizado pela Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos – CFMDP. Lisboa explica:
A CFMDP começou a ser formada na primeira metade da década de 1970
(atuando até a atualidade), sendo que, através de sua luta, além de serem
promovidas as denúncias das torturas, das mortes e desaparecimentos de
seus familiares, visa obter o reconhecimento de que o Estado brasileiro,
violando reiteradamente os direitos humanos de presos políticos, matou
estes militantes, e, admitidas estas mortes, que, com a abertura dos arquivos da repressão, seja possível, finalmente, localizar os corpos, restabelecer
as verdadeiras circunstâncias dos assassinatos, e, identificados os responsáveis, promover sua responsabilização. (2009, p. 208-212; 228-229).
Somente a partir de 1988 o Estado brasileiro começou a se redimir de seu silêncio, mediante a promulgação da nova Constituição Federal. A novel Carta Magna,
apesar das resistências de grupos militares, estabeleceu no artigo 8o, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, o direito à anistia para os perseguidos políticos, deixando para posterior regulamentação a forma de reparação a ser adotada.
Seguiu-se um hiato temporal desanimador, mas a promulgação da Lei no 9.140, de
04 de dezembro de 1995, na qual o Estado reconheceu a responsabilidade no desaparecimento forçado das 136 pessoas listadas em seu anexo, gerou novo ânimo.
Ademais, a lei previu ainda a criação de uma Comissão Especial sobre Mortos e
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
159
Desaparecidos Políticos, instituída pelo Decreto de 18 de dezembro de 1995, com
o objetivo de proceder ao reconhecimento das pessoas desaparecidas, não relacionadas no anexo, bem como daquelas que, por terem participado ou por terem
sido acusadas de participação em atividades políticas, entre 1961 e 1979, tenham
falecido, por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas. Além
disso, à Comissão foi dada a atribuição de promover a localização dos corpos de
pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que
poderiam estar depositados. Vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos
da Presidência da República desde 2003, a Comissão já analisou 339 casos e deferiu
221, além dos 136 já reconhecidos no anexo da Lei no 9.140/1995 (BRASIL, 2008).
Passo seguinte foi a promulgação da Lei no 10.536, de 14 de agosto de 2002,
que introduziu alterações na Lei no 9.140, de 04 de dezembro de 1995, que tinha
como data limite, para efeito de indenizações, 15 de agosto de 1979. A nova lei
ampliou esse limite temporal para 05 de outubro de 1988, data de promulgação da
nova Constituição Federal. Em novembro de 2002, com o advento da promulgação
da Lei no 10.559, instituiu-se a Comissão de Anistia.
Segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República:
A Comissão de Anistia já realizou 700 sessões de julgamento e promoveu,
desde 2008, 30 caravanas, possibilitando a participação da sociedade nas
discussões, e contribuindo para a divulgação do tema no país. Até 1o de
novembro de 2009, já haviam sido apreciados por esta Comissão mais de
52 mil pedidos de concessão de anistia, dos quais quase 35 mil foram
deferidos e cerca de 17 mil, indeferidos. Outros 12 mil pedidos aguardam
julgamento. Até 2008, mais de R$ 100 milhões haviam sido gastos com
reparações. (BRASIL, 2010).
Em 2004, a Lei no 10.875 estabeleceu nova ampliação da Lei no 9.140, abrangendo também os casos de morte em consequência de repressão policial sofrida
em manifestações públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público,
além de suicídios cometidos “na iminência de serem presas ou em decorrência de
sequelas psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder público” (BRASIL, 2004).
Em 2005, com a promulgação da Lei no 11.111, que regulamentou o artigo
5o, XXXIII, da Constituição Federal, que permite o acesso aos documentos públicos,
esperava-se que os arquivos de posse dos militares seriam finalmente abertos, eis
que não mais protegidos sob rigoroso sigilo. Entretanto, segundo a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República:
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
160
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
A alegação das Forças Armadas, quando diligenciadas pela CEMDP, é que
os arquivos foram destruídos com base na legislação em cada época, mas
a mesma legislação exige que, para destruir um arquivo, seja assinado um
termo de eliminação de arquivo com a presença de testemunha. Fica a
cargo das Forças Armadas apresentar o termo de destruição de arquivo,
procedimento que ainda não ocorreu. (BRASIL, 2008, p. 192).
Ainda em dezembro de 2005, o Governo Federal determinou que os arquivos
da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, especialmente os arquivos do extinto
Serviço Nacional de Informações – SNI, do Conselho de Segurança Nacional e da
Comissão Nacional de Investigações fossem entregues ao Arquivo Nacional, subordinado à Casa Civil, onde passaram a ser organizados e digitalizados.
Em 2006, o governo brasileiro instituiu o Banco de DNA, que possibilitou a coleta e a acumulação de material genético de familiares dos desaparecidos para futura
comparação de eventuais restos mortais encontrados sem identificação.
Em 2007, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada
à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, publicou o relatório
intitulado “Direito à Memória e à Verdade”, que resgata a história de 475 militantes
políticos vitimados pelo regime ditatorial, em mais um passo no sentido do reconhecimento das barbáries perpetradas, considerado “importante contribuição do Estado
brasileiro para a memória dos fatos recentes”, conforme Santos Jr. (2009, p. 17).
Em 2008, a 23a Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou, em primeira instância, o coronel reformado do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, que
comandava o DOI-Codi entre 1970 e 1973, pelo crime de tortura contra membros
da família Teles. Ustra foi o primeiro oficial condenado por esse crime. A sentença
encontra-se em fase de recurso sob alegação de que a lei de anistia promoveu o perdão dos crimes perpetrados durante a ditadura. Ainda em 2008, o Ministério Público
Federal ajuizou uma Ação Civil Pública contra a União Federal requerendo que, além
de Ustra, Audir Santos Maciel, comandante do DOI-Codi paulista entre 1974 e 1976,
seja responsabilizado pela morte e tortura de 64 pessoas.
O ano de 2009, por sua vez, foi um ano de importantes acontecimentos: em
março, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, após estabelecer
recomendações não totalmente cumpridas pelo Estado brasileiro, submeteu o caso
dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia à Corte Interamericana de Direitos Humanos, requerendo que o Brasil seja responsabilizado pelas violações de direitos
humanos ocorridas durante as operações de repressão àquele movimento. Em maio
do mesmo ano, o Governo Federal lançou o projeto Memórias Reveladas, sob a resRevista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
161
ponsabilidade da Casa Civil, que interliga digitalmente o acervo recolhido no Arquivo Nacional após dezembro de 2005 com vários outros arquivos federais sobre a
repressão e com arquivos de 15 estados brasileiros, estimando-se em cinco milhões
de páginas o total dos documentos. Em junho, o Governo Federal veiculou uma campanha publicitária multimídia tentando sensibilizar as pessoas sobre a questão do
direito à memória e à verdade no Brasil. As mensagens solicitavam que informações
sobre a localização de restos mortais ou sobre quaisquer documentos e arquivos
envolvendo o tema da repressão política entre 1964 e 1985 fossem encaminhados
ao projeto Memórias Reveladas.
Ainda em 2009, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos publica
o Dossiê Ditadura, atualizando as informações sobre os mortos e desaparecidos no
Brasil durante o regime militar. Em julho, foi criada a Supervisão Civil do Grupo de
Trabalho, com a participação da Comissão Especial, para realizar buscas na região
do Araguaia. Em 21 de dezembro de 2009, por meio do Decreto no 7.037, o governo
brasileiro publicou o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 – PNDH-3, que estabeleceu diretrizes para uma implementação mais eficaz do direito à memória e à
verdade, as quais serão objeto de reflexão no item seguinte.
4 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos 3: um
breve inventário
Os Planos Nacionais de Direitos Humanos têm sua gênese na 2a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, promovida pela ONU, e realizada em Viena, em 1993.
A Declaração e o Programa de Ação dela resultantes confirmaram a indivisibilidade,
a interdependência e a universalidade dos direitos humanos, da democracia e do desenvolvimento e, como foram aceitos pela totalidade dos países participantes, sem
nenhum voto contrário ou abstenção, suas recomendações, apesar de não serem vinculantes, lograram significativa importância e enorme peso no cenário internacional.
Dentre tantas recomendações, o parágrafo 71, do Programa de Ação assevera:
A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos recomenda que cada Estado considere a oportunidade da elaboração de um plano de ação nacional
que identifique os passos por meio dos quais esse Estado poderia melhorar
a promoção e a proteção dos direitos humanos. (BRASIL, 2010).
Antes, o parágrafo 69 dispõe que a ONU deverá apoiar os estados no processo
de realização de planos de ação para a promoção e proteção dos direitos humanos.
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
162
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
Pinheiro, presente na Conferência, afirma que:
O conceito mesmo de planos de ação de Direitos Humanos de certo modo
completa o que não estava claro nos textos fundadores da ONU, a saber,
que a realização dos Direitos Humanos depende dos governos e da sociedade civil de cada país para fazer iniciativas e ações que possam trazer
mudanças significativas para a vida das pessoas. A grande inovação é que
pela primeira vez nas Nações Unidas as mudanças em Direitos Humanos se
tornavam elementos de políticas públicas, o que requer análise, avaliações
concretas de situações e definição de programas e alocação de recursos.
(PINHEIRO, 2010, p. 8).
O Brasil, como participante ativo da Conferência de Viena, além de colaborar na
construção de suas propostas e subscrevê-las, ratificou os principais instrumentos
internacionais de direitos humanos, confirmando-se o compromisso constitucional
de reger suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos. Nesse contexto jurídico-político, lançou-se, em 1996, o primeiro Programa Nacional
de Direitos Humanos – PNDH-1, que dedicou a totalidade de suas ações e metas
à busca pela efetivação dos direitos civis e políticos. Em 2002, adveio o PNDH-2,
objetivando revisar e atualizar o PNDH-1, incorporando a este os direitos sociais,
econômicos e culturais.
A terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3 foi precedida de amplo debate público nacional, que culminou na 11a Conferência Nacional
de Direitos Humanos, a qual, com o lema “Democracia, Desenvolvimento e Direitos
Humanos”, teve como objetivo principal promover a revisão e atualização do PNDH,
resultando nas proposições que integram o PNDH-3.
Realizaram-se 137 encontros prévios às etapas estaduais e distrital, denominados Conferências Livres, Regionais, Territoriais, Municipais ou
Pré-Conferências. Participaram ativamente do processo cerca de 14 mil
pessoas [...]. A iniciativa compartilhada entre sociedade civil e poderes republicanos, mostrou-se capaz de gerar as bases para formulação de uma
Política Nacional de Direitos Humanos como verdadeira política de Estado.
(BRASIL, 2010).
Neste sentido, Piovesan assevera que:
O 3o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), adotado em 21 de
dezembro, tem como mérito maior lançar a pauta de Direitos Humanos no
debate público, como política de Estado, de ambiciosa vocação transversal.
[...] Ainda que várias das metas do PNDH-3 sejam objeto de contundentes
críticas, seus pontos mais controvertidos estão em absoluta consonância
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
163
com os parâmetros internacionais de Direitos Humanos e com a recente jurisprudência internacional, refletindo tendências contemporâneas na luta
pela afirmação desses direitos e as obrigações internacionais do Estado
brasileiro neste campo. (2010, p. 12-13).
O PNDH-3 está estruturado em seis eixos orientadores, subdivididos em 25
diretrizes, 82 objetivos estratégicos e 521 ações programáticas, refletindo a quase totalidade das resoluções aprovadas na 11a Conferência Nacional de Direitos
Humanos. O Plano também inclui propostas aprovadas em cerca de 50 outras conferências nacionais temáticas realizadas desde 2003, como saúde, meio ambiente,
educação, juventude, criança e adolescentes, idosos, cultura, cidades, segurança alimentar, igualdade racial, pessoas com deficiência, diversidade sexual, dentre outras.
O Direito à Memória e à Verdade é tratado no Eixo Orientador VI, compondo-se
de três diretrizes, quais sejam as Diretrizes 23, 24 e 25. Cada uma das diretrizes,
seus objetivos estratégicos e suas ações programáticas, foram objeto de investigação no presente inventário, buscando-se verificar as iniciativas já desenvolvidas
para suas efetivações.
A Diretriz 23 estabelece o “reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado”, cujo objetivo estratégico é
promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos
Humanos praticados no contexto da repressão política ocorrida no Brasil
no período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar
o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. (BRASIL, 2010).
Sua principal ação programática é a instituição de uma Comissão Nacional da
Verdade, cujas atribuições estão indicadas no próprio texto que contém a ação, tais
quais a promoção da reconstrução da história dos casos de violações de direitos
humanos e a assistência às vítimas de tais violações.
Nesse ponto, a ação programada, apesar de reiteradas resistências, foi implementada. A Comissão Nacional da Verdade – CNV foi criada pela Lei no 12.528, de
18 de novembro de 2011. Vinculada à Casa Civil da Presidência da República, com a
finalidade de “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do ADCT, a fim de efetivar o direito à memória e à
verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (BRASIL, 2011), a Comissão
da Verdade foi instaurada em maio de 2012 e está sediada atualmente no Centro
Cultural Banco do Brasil, em Brasília, local onde ocorrem suas reuniões ordinárias.
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
164
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
Seus membros componentes e assessores, seu Plano de Trabalho e correspondente
cronograma, suas resoluções, sua agenda, seus relatórios finais e demais informações encontram-se disponíveis na internet, para conhecimento público.
Considera-se fundamental que as organizações da sociedade civil desempenhem estratégico e necessário papel no continuado e permanente monitoramento
propositivo e colaborativo para que a CNV efetivamente alcance os objetivos para
os quais foi instituída.
A Diretriz 24 estabelece a “preservação da memória histórica e a construção
pública da verdade”. Tem como objetivo estratégico “incentivar iniciativas de preservação da memória histórica e de construção pública da verdade sobre períodos
autoritários” (BRASIL, 2010). Para alcançar este objetivo, seis ações programáticas
foram indicadas:
a) Disponibilizar linhas de financiamento para a criação de centros de memória sobre a repressão política, em todos os estados, com projetos de
valorização da história cultural e de socialização do conhecimento por diversos meios de difusão. (BRASIL, 2010).
Não se pode negar que há iniciativas do Governo Federal nesse sentido. O Ministério da Justiça, indicado como um dos responsáveis pela implementação dessa
ação programática no PNDH-3, através da Comissão de Anistia, instituiu o projeto
Marcas da Memória, que já promoveu três chamadas públicas nacionais, selecionando projetos oriundos de organizações da sociedade civil para financiamento nesta
área. Os editais têm ofertado apoio financeiro de 30 mil a 600 mil reais. O governo
federal está construindo, em Belo Horizonte, o Memorial da Anistia, um memorial
nacional sobre a repressão política, que funcionará como espaço de memória das
vítimas de violações passadas e difusão dos direitos humanos no presente.
b) Criar comissão específica, em conjunto com departamentos de História e centros de pesquisa, para reconstituir a história da repressão ilegal
relacionada ao Estado Novo (1937-1945). Essa comissão deverá publicar
relatório contendo os documentos que fundamentaram essa repressão, a
descrição do funcionamento da justiça de exceção, os responsáveis diretos
no governo ditatorial, registros das violações bem como dos autores e das
vítimas. (BRASIL, 2010).
Quanto a essa ação programática, não se conseguiu identificar iniciativa de
qualquer dos órgãos indicados pelo PNDH-3, como responsáveis pela realização
desta ação, quais sejam a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
165
da República e os Ministérios da Educação, da Justiça e da Cultura. Registre-se, porém, que o Governo do Estado de Pernambuco, ao instituir sua Comissão Estadual da
Memória e da Verdade Dom Helder Câmara, estabeleceu que suas atividades devem
também recuar na história para investigar crimes cometidos pela repressão durante
a ditadura do Estado Novo.
c) Identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e
as circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos,
suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade, bem como promover com base no acesso às informações, os meios e
recursos necessários para a localização e identificação de corpos e restos
mortais de desaparecidos políticos. (BRASIL, 2010).
Iniciativas específicas para implementar essa ação programática também não
foram identificadas junto aos órgãos responsáveis indicados no Plano. Também não
restou esclarecido se essa ação foi incorporada às atribuições da Comissão Nacional
da Verdade.
d) Criar e manter museus, memoriais e centros de documentação sobre a
resistência à ditadura. (BRASIL,2010).
Quanto ao item “d”, reporte-se ao indicado na letra “a” quanto à construção, em
Belo Horizonte, do Memorial da Anistia, um memorial nacional sobre a repressão
política que funcionará como espaço de memória das vítimas de violações passadas,
bem como aos Projetos Memórias Reveladas e Marcas da Memória. Também, memoriais estão sendo colocados em praças, assembleias legislativas e universidades
pelo país, segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
(BRASIL, 2010).
e) Apoiar técnica e financeiramente a criação de observatórios do Direito
à Memória e à Verdade nas universidades e em organizações da sociedade
civil. (BRASIL, 2010).
Para atender a essa ação programática, a Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República instituiu, pela Portaria no 1.515, de 04 de agosto de 2011,
a Rede dos Observatórios do Direito à Memória, Verdade e Justiça das Universidades
Brasileiras. A Rede, em parceria com o Arquivo Nacional do Brasil (e a rede arquivística nacional) deverá, dentre outras ações comuns, desenvolver oficinas de treinamento, presenciais e à distância, para os pesquisadores das universidades integrantes.
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
166
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
f) Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação
básica e superior sobre as graves violações de direitos humanos ocorridos
no período fixado no artigo 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988. (BRASIL, 2010).
Quanto a essa ação, informe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República registra que o livro – relatório Direito à Memória e à Verdade, da CEMDP:
teve seu conteúdo ampliado e transformado em CD para ser amplamente
distribuído às escolas. Numa linguagem atual e de fácil entendimento, crianças e adolescentes poderão navegar na história recente do país, com acesso
a músicas e filmes que compõem o cenário daquele período. (BRASIL, 2010).
A Diretriz 25 estabelece a “modernização da legislação relacionada com a promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia” e indica como
seu objetivo estratégico “suprimir do ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem os compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos” (BRASIL, 2010). Para
alcançar esse objetivo, quatro ações programáticas foram indicadas:
a) Criar Grupo de Trabalho para acompanhar, discutir e articular, com o Congresso Nacional, iniciativas de legislação propondo i) a revogação de leis
remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias às garantias
dos Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações; ii)
revisão de propostas legislativas envolvendo retrocessos na garantia dos Direitos Humanos em geral e no direito a memória e à verdade. (BRASIL, 2010).
Polêmica, esta ação programática foi acusada de buscar a revogação da Lei de
Anistia de 1979. Dallari comentou:
Ao imaginar que a citada proposta do III Programa de Direitos Humanos
tem em mira a lei de anistia de 1979, a corporação militar tirou a máscara.
Ela reconheceu que esse diploma legal viola os direitos humanos, e que
essa violação só pode consistir no fato de a indigitada lei haver anistiado
os agentes públicos, militares e policiais, que mataram, estupraram e torturaram opositores ao nefasto regime político de 1964 a 1985. Tranquilizem-se, porém, o ministro e os chefes militares. O que o Conselho Federal
da OAB propôs no Supremo Tribunal, por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental no 153, não foi a revogação da lei de
anistia. Aliás, em um Estado de Direito o Poder Judiciário não tem poderes
para revogar leis. Objeto daquela ação é a declaração judicial de que a Lei
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
167
no 6.683, de 1979, não anistiou os autores de crimes de sangue e de violência contra opositores políticos, durante o regime militar. (2010, p. 03).
Não se conseguiu, todavia, constatar a criação de tal grupo de trabalho por qualquer dos órgãos responsáveis indicados no Plano.
b) Propor e articular o reconhecimento do status constitucional de instrumentos internacionais de Direitos Humanos novos ou já existentes ainda
não ratificados, especialmente o Protocolo Facultativo do PIDCP, visando à
abolição da pena de morte (1989); a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (ONU, 1968)
e a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os
Desaparecimentos Forçados (2006). (BRASIL, 2010).
Nesse ponto, constata-se que o Brasil assinou apenas a Convenção Internacional
para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, em 2007.
c) fomentar, debater e divulgar informações no sentido de que logradouros,
atos e próprios nacionais ou prédios públicos não recebam nomes de pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores. (BRASIL, 2010).
Não se conseguiu identificar iniciativa dos órgãos responsáveis indicados no
Plano para a implementação desta ação programática. Entretanto, constatou-se que
diversas Câmaras Municipais receberam Projetos de Leis no sentido de impedir ou
de alterar que logradouros públicos recebam nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade.
d) Acompanhar e monitorar a tramitação judicial dos processos de responsabilização civil ou criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao
regime de 1964-1985. (BRASIL, 2010).
Atualmente tramitam ações judiciais cujos objetos referem-se diretamente a atos
praticados durante o regime ditatorial. Dentre as quais, citam-se a ação movida contra
a União Federal para a abertura dos arquivos e localização dos restos mortais dos
envolvidos na Guerrilha do Araguaia, em trâmite na 1a Vara Federal do Distrito Federal sob o no 82.00.24682-5; ações civis declaratórias movidas pelas famílias Teles e
Merlino, para que Carlos Alberto Brilhante Ustra seja declarado pela Justiça torturador,
em trâmite nas 23a e 42a Varas Cíveis de São Paulo, sob os números, respectivamente,
05.202853-5 e 583.00.2007.241711-7. Além dessas, conforme já indicado, o Ministério Público Federal propôs uma Ação Civil Pública contra a União Federal requerendo que, além de Ustra, Audir Santos Maciel, comandante do DOI-Codi paulista entre
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
168
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
1974 e 1976, sejam responsabilizados pela morte e tortura de 64 pessoas, processo
sob o no 2008.61.00.011414-5, em trâmite na 8a Vara Federal de São Paulo.
Importa ainda destacar que, em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do
Brasil - OAB ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal – STF uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, objetivando que o STF estabelecesse uma interpretação conforme a Constituição, no sentido de se declarar que a
anistia concedida pela lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes
comuns praticados pelos agentes do regime ditatorial contra os opositores da ditadura, ao mesmo tempo em que se declare a recepção ou não da lei de anistia de
1979 pela Constituição Federal de 1988.
O STF, por sua vez, decidiu que a lei de anistia de 1979 é compatível com a
nova ordem constitucional vigente, mantendo a validade da referida lei. Tal decisão
teve ampla repercussão midiática. De outro lado, em 2010, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos, ao julgar o Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil declarou, por
unanimidade que:
As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e
sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a
Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso,
nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem
ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010).
O Estado brasileiro foi considerado responsável pelo desaparecimento forçado
das pessoas indicadas na petição inicial, violando diversos dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992. Nesse sentido,
a questão agora é sobre o que fazer diante desta colisão de decisões do STF e da
CIDH. Garcia (2012, p. 246) aponta como caminho a “aprovação pelo Parlamento
brasileiro do Projeto de Lei no 4667/2004, que reafirma os efeitos jurídicos imediatos das decisões dos organismos internacionais de proteção dos Direitos Humanos,
cuja competência seja reconhecida pelo país”. Outra proposta é “a utilização da justiça nacional para aquilo que foge a decisão do STF” (ABRÃO, 2012, p. 220).
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
169
5 Conclusão
Restou evidenciado que o campo de atuação da Justiça de Transição foi desenvolvido e consolidado, seja mediante esforços de organismos internacionais ou
por iniciativas de diversos países, considerando seus próprios contextos políticos e
sociais, não se confirmando um modelo único para tratar as profundas marcas das
violações de direitos humanos.
Também restou indicado que foi nesse contexto que emergiu o direito à memória
e à verdade, como resposta atual às graves violações perpetradas, especialmente no
sentido de revelar a verdade sobre crimes passados. Igualmente restou demonstrado
que o direito à memória e à verdade consolidou-se como direitos humanos exigíveis,
sendo afirmado em diversos instrumentos normativos internacionais, e que este engloba diferentes formas de expressão e experiências de aplicação, no contexto de
uma justiça de transição.
No Brasil, o direito à memória e à verdade emerge como resposta às violações
de direitos humanos perpetradas e patrocinadas pelo Estado durante o período ditatorial brasileiro, especialmente entre 1964 e 1985. Desde o fim da ditadura, a
luta contra a amnésia histórica e contra o esquecimento continua viva, ativa, persistente, uma teimosia cidadã em busca pela verdade, pela justiça e pela memória.
Entretanto, muito ainda resta para ser feito para que o país promova plenamente as
bases para a construção da plena democracia almejada. Muitos desafios continuam
dificultando e resistindo à efetivação desse direito.
Destaque-se a luta incansável da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos pelo esforço permanente em busca da abertura de todos os arquivos, pela construção das memórias, pela reversão dos efeitos perversos da Lei da
Anistia de 1979. Mas a verdade e a justiça continuam a nos desafiar. Muitos arquivos
ainda estão fechados e os mortos continuam desaparecidos. No PNDH-3, ao menos quanto ao eixo referente à Memória e à Verdade, diversas ações programáticas
continuam sem plena efetivação e já necessitam ser revisadas e atualizadas, pois a
pauta continua viva e reclama continuada movimentação. As feridas ainda não cicatrizaram e o esquecimento ainda nos rodeia e a dor ainda não cessou. Quando será
que poderemos dizer NUNCA MAIS?
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
170
6 Referências
ABRÃO, Paulo. A lei de anistia no Brasil: as alternativas para a verdade e a justiça.
In: RUIZ, Castor M.M. Bartolomé (Org.). Justiça e memória. Direito á justiça, memória
e reparação: a condição humana nos estado de exceção. São Leopoldo: Casa Leiria;
Passo Fundo: IFIBE, 2012.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BRASIL. Decreto de 18 de dezembro de 1995. Diário Oficial da União. Brasilia, 1995.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DNN/Anterior%20a%20
2000/1995/Dnn3630.htm>. Acesso em: 21 maio 2015.
______. Decreto no 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Diário Oficial da União.
Brasilia, 2009. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2009/decreto/d7037.htm>. Acesso em: 21 maio 2015.
______ Direitos Humanos, 2008: a realidade do país aos 60 anos da Declaração Universal. Brasília: SDH, 2008.
______. Direito à memória e à verdade: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: SDH, 2007. Disponível em: <http://dh.sdh.gov.br/download/
dmv/direito_memoria_verdade.pdf>. Acesso em 26 maio 2015.
______. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Brasília: SDH, 2010.
______. Lei no 9.140, de 04 de dezembro de 1995. Diário Oficial da União. Brasilia, 1995. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9140.htm>.
Acesso em: 21 maio 2015.
______. Lei no 10.536, de 14 de agosto de 2002. Diário Oficial da União. Brasilia,
2002. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10536.
htm>. Acesso em: 21 maio 2015.
______. Lei no 10.875, de 1o de junho de 2004. Diário Oficial da União. Brasilia, 2004.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/
L10.875.htm>. Acesso em: 21 maio 2015.
______. Lei no 11.111, de 05 de maio de 2005. Diário Oficial da União. Brasilia, 2005.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/
L11111.htm>. Acesso em: 21 maio 2015.
______. Lei no 12.528, de 18 de novembro de 2011. Diário Oficial da União. Brasilia, 2011. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2011/lei/l12528.htm>. Acesso em: 21 maio 2015.
BRASIL: Nunca mais. Arquidiocese de São Paulo. São Paulo: Vozes, 1985.
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges
171
CNV - COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Portal institucional. Disponível em:
<www.cnv.gov.br>. Acesso em 26 maio 2015.
COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Organización de los Estados Americanos. Informe no 136/99. Caso 10.488 - Ignacio Martín Baró, S.J.; Joaquín
López Y López, S.J..; Juan Ramón Moreno, S.J.; Julia Elba Ramos; y Celina Mariceth
Ramos El Salvador, 22 de diciembre de 1999. Disponível em: <http://cidh.oas.org/
annualrep/99span/De%20Fondo/El%20Salvador10.488.htm>. Acesso em 19 maio
2015.
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Velásquez Rodríguez Vs.
Honduras. Sentencia de 29 de julio de 1988. Disponível em: <http://www.corteidh.
or.cr/docs/casos/articulos/seriec_04_esp.pdf>. Acesso em: 19 maio 2015.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros
(“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>.
Acesso em: 21 maio 2015.
CUEVA, Eduardo González. Até onde vão as comissões da verdade? In: REÁTEGUI,
Félix (Coord.). Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília: Comissão
de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de
Transição, 2011.
DALLARI, Dalmo. O macaco não soube esconder o rabo. Observatório da Imprensa, ed.
572. Disponível em: <www.observatoriodaimprensa.com.br>. Acesso em 15 out. 2012.
GALLO, Carlos Artur. O direito à memória e à verdade no Brasil pós-ditadura civil-militar. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 2, n. 4, dezembro de 2010.
GARCIA, Luciana Silva. Nada é impossível mudar: julgamento das violações de Direitos Humanos ocorridas na Ditadura Militar brasileira. In: RUIZ, Castor M.M. Bartolomé (Org.). Justiça e memória. Direito á justiça, memória e reparação: a condição humana nos estado de exceção. São Leopoldo: Casa Leiria: Passo Fundo: IFIBE, 2012.
LISBOA, Suzana Keniger. Lembrar, lembrar, lembrar... 45 anos do Golpe Militar: resgatar o passado para transformar o presente. In: PADROS, Enrique Serra et al. (Org.).
A ditadura de segurança nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e
memória, v. 2. Porto Alegre: Corag, 2009.
ONU. Organização das Nações Unidas. E/CN.4/2005/102/Add.1. Promotion and Protection of Human Rights. Impunity – Report of the independent expert to update the
Set of principles to combat impunity, Diane Orentlicher. Addendum – Updated Set of
principles for the protecntion and promotion of human rights through action to combat impunity, 8 febr. 2005. Disponível em: <http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/
GEN/G05/109/00/PDF/G0510900.pdf?OpenElement>. Acesso em 19 maio 2015.
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.
172
O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário
PINHEIRO, Paulo Sérgio. A genealogia e o legado de Viena. Revista Direitos Humanos, v. 5. Brasília, SDH, 2010.
PINTO, Simone Rodrigues. Direito à memória e à verdade: comissões de verdade na
América Latina. Revista Debates, v.4, n.1, 2010.
PIOVESAN, Flávia. A constitucionalidade do PNDH-3. Revista Direitos Humanos, v 5.
Brasília, SDH, 2010.
RUIZ, Castor M.M. Bartolomé. Os paradoxos da memória na crítica da violência. In:
Justiça e memória. Direito á justiça, memória e reparação: a condição humana nos
estado de exceção. Ruiz, Castor M.M. Bartolomé (Org.). São Leopoldo: Casa Leiria;
Passo Fundo: IFIBE, 2012.
SALMÓN, Elizabeth. Algumas reflexões sobre o Direito Internacional Humanitário
e a justiça transicional: lições da experiência latino-americana. In: REÁTEGUI, Félix
(Coord.) Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília: Comissão de
Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de
Transição, 2011.
SANTOS Jr., Belisário. Direito à memória e à verdade. Revista Direitos Humanos, v. 3.
Brasília, SDH, 2009.
SWENSSON JR., Lauro Joppert. Ao julgar a Justiça, te enganas: apontamentos sobre
a justiça da justiça de transição no Brasil. Revista Anistia Política e Justiça de transição. Ministério da Justiça, n. 4. Brasília: Ministério da Justiça, 2011.
TEITEL, Ruti. Genealogia da justiça transicional. In: REÁTEGUI, Félix (Coord.). Justiça
de transição: manual para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério
da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a Justiça de Transição, 2011.
ZYL, Paul van. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. In: REÁTEGUI, Félix (Coord.). Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília:
Comissão de Anistia, Ministério da Justiça; Nova Iorque: Centro Internacional para a
Justiça de Transição, 2011.
Revista Jurídica da Presidência
Brasília
v. 17 n. 111
Fev./Maio 2015
p. 151-172.

Documentos relacionados