Alci Marcus Ribeiro Borges - Curso de Direito da Faculdade
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Alci Marcus Ribeiro Borges - Curso de Direito da Faculdade
111 Brasília Volume 17 Número 111 Fev./Maio 2015 Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Ministro–Chefe da Casa Civil da Presidência da República Aloizio Mercadante Oliva Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil e Presidente do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência Ivo da Motta Azevedo Corrêa Coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência Daienne Amaral Machado Revista Jurídica da Presidência / Presidência da República Centro de Estudos Jurídicos da Presidência – Vol. 1, n. 1, maio de 1999. Brasília: Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, 1999–. Quadrimestral Título anterior: Revista Jurídica Virtual Mensal: 1999 a 2005; bimestral: 2005 a 2008. ISSN (até fevereiro de 2011): 1808–2807 ISSN (a partir de março de 2011): 2236–3645 1. Direito. Brasil. Presidência da República, Centro de Estudos Jurídicos da Presidência. CDD 341 CDU 342(81) Centro de Estudos Jurídicos da Presidência Praça dos Três Poderes, Palácio do Planalto Anexo II superior – Sala 204 A CEP 70.150–900 – Brasília/DF Telefone: (61)3411–2937 E–mail: [email protected] http://www.presidencia.gov.br/revistajuridica © Centro de Estudos Jurídicos da Presidência – 2015 Revista Jurídica da Presidência É uma publicação quadrimestral do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência voltada à divulgação de artigos científicos inéditos, resultantes de pesquisas e estudos independentes sobre a atuação do Poder Público em todas as áreas do Direito, com o objetivo de fornecer subsídios para reflexões sobre a legislação nacional e as políticas públicas desenvolvidas na esfera federal. Equipe Técnica Coordenação de Editoração Conselho Editorial Daienne Amaral Machado Claudia Lima Marques Renata Cristina do Nascimento Antão Claudia Rosane Roesler Gestão de Artigos Mariana Figueiredo Cordeiro da Silva Fredie Souza Didier Junior Gilmar Ferreira Mendes João Maurício Leitão Adeodato Projeto Gráfico e Capa Joaquim Shiraishi Neto Bárbara Gomes de Lima Moreira José Claudio Monteiro de Brito Filho Diagramação Bárbara Gomes de Lima Moreira Revisão Geral Daienne Amaral Machado Mariana Figueiredo Cordeiro da Silva Renata Cristina do Nascimento Antão Luis Roberto Barroso Maira Rocha Machado Misabel de Abreu Machado Derzi Vera Karam Chueiri Apropriate articles are abstracted/indexed in: BBD – Bibliografia Brasileira de Direito LATINDEX – Sistema Regional de Información Revisão de Idiomas en Linea para Revistas Científicas de América Daienne Amaral Machado Latina, el Caribe, España y Portugal Mariana Figueiredo Cordeiro da Silva ULRICH’S WEB – Global Serials Directory Fotografia da Capa Treliça em Madeira e Ferro Pintado Athos Bulcão, 1967 Sala dos Tratados, Palácio do Itamaraty Fotógrafo André Villaron Colaboradores da Edição 111 Pareceristas Adriano De Bortoli - Universidade de Brasília Adrualdo de Lima Catão - Universidade Federal de Alagoas Alexandre Coutinho Pagliarini - Universidade Tiradentes Alexandre Freire Pimentel - Universidade Católica de Pernambuco Alice Ribeiro de Sousa - Universidade Federal de Uberlândia Aline Albuquerque - Centro Universitário de Brasília Ana Gabriela Mendes Braga - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Ana Luiza Pinheiro Flauzina - Centro Universitário de Brasília Antônio Augusto Brandão de Aras - Universidade de Brasília Antônio Carlos da Ponte - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Antônio Carlos Mendes - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Antônio Rulli Júnior - Faculdades Metropolitanas Unidas Antonio Rulli Neto - Faculdades Metropolitanas Unidas Brunello Stancioli - Universidade Federal de Minas Gerais Carlos Bolonha - Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos José Cordeiro - Universidade Federal de Uberlândia Clovis Gorczevski - Universidade de Santa Cruz do Sul Cristiano Paixão Araújo Pinto - 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Centro Universitário de Brasília Ricardo Sebastián Piana - Universidade Federal do Rio Grande do Norte Rubia Carneiro Neves - Universidade Federal de Minas Gerais Silma Mendes Berti - Universidade Federal de Minas Gerais Teresa Celina de Arruda Alvim Wambier - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Valmir César Pozzetti - Universidade do Estado do Amazonas Vanessa Oliveira Batista Berner - Universidade Federal do Rio de Janeiro Verônica Teixeira Marques - Universidade Tiradentes Yvete Flavio da Costa - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Autor Convidado Carlos Libardo Bernal Pulido AUSTRÁLIA - Sydney Doutor em Direito (Universidad de Salamanca – Espanha) e em Filosofia (University of Florida – Estados Unidos). Mestre em Filosofia (University of Florida) e Bacharel em Direito (Universidad Externado de Colombia). Professor associado da Macquarie Law School. E-mail: [email protected] Co-autoria - Tradução Graça Maria Borges de Freitas BRASIL – Belo Horizonte/MG Doutoranda em Direito pela Universidad Externado de Colombia em cotutela com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Argumentação Jurídica pela Universidad de Alicante – Espanha. Juíza do Trabalho em Minas Gerais. E-mails: [email protected] e [email protected] Autores Alci Marcus Ribeiro Borges da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro BRASIL – Teresina/PI (FGV Direito Rio). Mestre em Educação pela Universidade E-mail: [email protected] Federal do Piauí (UFPI). Pós-graduado em Educação em Direitos Humanos (UFPI). Professor na Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (ESMEPI) e no Instituto Camillo Filho. Advogado. E-mail: [email protected] Andre Martins Bogossian BRASIL – Rio de Janeiro/RJ LL.M. candidate na Harvard Law School. Pesquisador Visitante na Brown University – Estados Unidos. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Alexandre Corrêa de Luca Janeiro (PUC-Rio). Graduado em Direito pela BRASIL – Rio de Janeiro/RJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Mestrando em Direito pela Universidade (UFRJ). Pesquisador da Escola de Direito da Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro Direito pela Universidade Estadual do Rio de (FGV Direito Rio). Advogado. Janeiro (UERJ). Pesquisador da Escola de Direito E-mail: [email protected] Bruna Santos Costa vatório do Ensino de Direito da Fundação BRASIL – Brasília/DF Getúlio Vargas (Direito GV). Coordenadora Pesquisadora da Organização Não-Go- do Núcleo de Atividades Complementares vernamental Anis – Instituto de Bioética, (NAC) da Faculdade de Ciências Jurídicas e Direito Humanos e Gênero. Bacharel em Sociais (FAJS) do Centro de Ensino Unificado Direito pela Universidade de Brasília (UnB). de Brasília (UniCEUB). Advogada. E-mail: [email protected] E-mail: [email protected] Ricardo Hermany Caroline Bastos de Paiva Borges BRASIL – Santa Cruz do Sul/RS BRASIL – Teresina/PI Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e – Portugal. Doutor em Direito pela Univer- Políticas Públicas pela Universidade Federal sidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). da Paraíba (UFPB). Pós-graduada em Direito Professor Permanente do Programa de Público e em Direito Privado pela Universi- Pós-Graduação - Mestrado e Doutorado da dade Federal do Piauí (UFPI) e pela Escola Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Superior da Magistratura do Estado do Piauí Professor da Graduação em Direito na UNISC (ESMEPI). Professora na Faculdade Mauricio e na Fundação Educacional Machado de de Nassau (UNINASSAU/PI). Advogada. Assis (FEMA). Advogado. E-mail: [email protected] E-mail: [email protected] Ernesto Roessing Neto Roberto Freitas Filho BÉLGICA - Bruxelas BRASIL – Brasília – DF Bolsista de Doutorado Pleno CNPq na Vrije Doutor em Direito pela Universidade de São Universiteit Brussel – Bélgica. Mestre em Paulo (USP). Membro do Comitê Científico Direito pela Universidade Federal de Santa do Observatório do Ensino de Direito da Catarina (UFSC). Professor Assistente da Uni- Fundação Getúlio Vargas (Direito GV). Coor- versidade do Estado do Amazonas (UEA). denador do Curso de Direito do Centro de E-mails: [email protected] e Ensino Unificado de Brasília (UniCEUB). [email protected] E-mail: [email protected] Luciana Barbosa Musse Iuri Bolesina BRASIL – Brasília/DF BRASIL – Santa Cruz do Sul/RS Doutora em Direito pela Pontifícia Uni- Doutorando e Mestre em Direito pela versidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Membro do Comitê Científico do Obser- Especialista em Direito Civil pela Faculdade Meridional (IMED). Integrante do Grupo de Pesquisa “Intersecções jurídicas entre o público e o privado”, coordenado pelo Pós-Dr. Jorge Renato dos Reis, vinculado ao CNPq. E-mail: [email protected] Taluana Wenceslau Rocha ARGENTINA – Buenos Aires Mestre e Especialista em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidad de Buenos Aires – Argentina. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected] 7 151 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos 3: um breve inventário ALCI MARCUS RIBEIRO BORGES Mestre em Educação (UFPI). Pós-graduado em Educação em Direitos Humanos (UFPI). Professor (ESMEPI e Instituto Camillo Filho). Advogado. CAROLINE BASTOS DE PAIVA BORGES Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (UFPB). Pós-graduada em Direito Público e em Direito Privado (ESMEPI/UFPI). Professora (UNINASSAU – Teresina/PI.). Advogada. Artigo recebido em 05/11/2013 e aprovado em 16/02/2015. SUMÁRIO: 1 Introdução 2 A Justiça de Transição e o direito à memória e à verdade: do que se trata? 3 Os caminhos do direito à memória e à verdade no Brasil 4 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos-3 5 Conclusão 6 Referências. RESUMO: Este artigo busca promover reflexões que favoreçam o reconhecimento da memória e da verdade como direitos humanos que reclamam efetividade como política pública. Nesse sentido, parte-se de uma apresentação conceitual, a qual explicita em que consiste esse direito, seus fundamentos jurídicos e suas justificativas. Em seguida, esses direitos são considerados no contexto das diretrizes integrantes do Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, ou seja, discute-se como esses direitos buscam efetividade como política pública, no Brasil, neste início de século XXI. PALAVRAS-CHAVES: Justiça de Transição Corte Interamericana de Direitos Humanos PNDH-3. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. 152 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário The right to memory and truth in the National Plan of Human Rights 3: a brief inventory CONTENTS: 1 Introduction 2 Transitional Justice and the right to memory and truth: what is this about? 3 The paths of the right to memory and truth in Brazil 4 The right to memory and truth in the National Plan of Human Rights 3 5 Conclusion 6 References. ABSTRACT: This article intends to promote reflections that collaborate for an understanding that support recognition of the memory and truth as human rights that claim effectiveness as public politics. In this sense, the text begins with a conceptual presentation, which explains what is this right, its legal grounds and its justifications, and then considers them in the context of the guidelines presented on the National Plan of Human Rights – PNDH3, in other words, how this right pursues effectiveness as public politics in Brazil at the beginning of the XXI century. KEYWORDS: Transition Justice Right to Memory and Truth PNDH3. Le droit à la mémoire et à la vérité dans le cadre du Plan National des Droits de l’Homme-3: un bref inventaire SOMMAIRE: 1 Introduction 2 La Justice Transitionnelle et le droit à la mémoire et à la vérité: de quoi s’agit-il? 3 Les voies du droit à la mémoire et à la vérité au Brésil 4 Le droit à la mémoire et à la vérité dans le cadre du Plan National des Droits de l´Homme-3 5 Conclusion 6 Références. RÉSUMÉ: Cet article vise à promouvoir les réflexions qui favorisent la reconnaissance de la mémoire et de la vérité en tant que droits de l’homme qui méritent de faire l’objet de politiques publiques efficaces. Le point de départ est une présentation conceptuelle qui explique en quoi consistent ces droits, leurs bases juridiques et leurs justifications. Ensuite, ces droits sont traités dans le contexte du Plan National pour des Droits de L’homme – PNDH-3, c’est à dire, que l’on présente la façon selon laquelle ces droits cherchent à s’affirmer efficacement dans le cadre d’une politique publique au Brésil, au début du 21ème siècle. MOTS-CLÉS: Justice Transitionnelle Cour Interaméricaine des Droits de l´Homme PNDH-3. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges 153 1 Introdução C onsidera-se um consenso a ideia de que os direitos humanos sejam quase sempre resultantes de processos de luta contra estruturas de opressão e de abusos de poder. É no contexto de holocaustos, genocídios, massacres, extermínios, escravidão, totalitarismos e colonialismos que brotam esses direitos, como a flor que nasce na lama e no lodaçal. Igualmente considera-se que é das lutas de resistência contra a barbárie que nascem as revoluções das quais germinaram os direitos humanos. E das revoluções nasceram as Declarações de Direitos que, internacionalizadas, inspiraram e instigaram o processo de constitucionalização dos direitos humanos, os quais, agora, são desejados como políticas públicas para se tornarem efetivos na vida cotidiana. Foi por meio de um permanente processo de construção que se consolidou o reconhecimento normativo de tais direitos. Entretanto, ainda que se diga que os direitos humanos já estão suficientemente teorizados e justificados, resta o exigente desafio de promovê-los, protegê-los e efetivá-los (BOBBIO, 1992). No Brasil, os processos de conquista formal de direitos humanos também resultaram das lutas contra as múltiplas estruturas de opressão e de sistemáticos abusos de poder, tais quais o colonialismo, a escravidão, a subjugação econômica, as milícias dos coronéis, o patrimonialismo, os senhores da terra e do poder, as senzalas, as chibatas e os chicotes, as ditaduras repressivas, os paus de arara, os exílios, os porões de tortura, fizerem emergir as revoltas dos indignados, os levantes dos inconfidentes, as insurreições, os quilombos, os Canudos e Palmares, as greves dos massacrados, os tantos movimentos de resistência em busca da dignidade dilacerada, forjando os direitos humanos. Desde a reconstrução da democracia, exsurge um movimento da sociedade civil, de vítimas de tortura e de familiares de mortos e desaparecidos durante o regime militar, que demanda que o direito à memória e à verdade lhe seja assegurado, como respostas às ações repressivas do sistema político ditatorial, perpetrador de variadas formas de violência contra os opositores do regime. Entretanto, esse direito à memória e à verdade encontra diversas resistências para ser consolidado, formalmente ou materialmente. O presente artigo busca promover reflexões que colaborem para uma compreensão que favoreça o reconhecimento da memória e da verdade como direitos humanos que reclamam efetividade. Parte-se de uma apresentação conceitual, a qual explicita em que consiste esse direito, seus fundamentos jurídicos e suas justificativas. Em seguida, apresentam-se os caminhos percorridos pelo direito à memória e à verdade no Brasil. Depois, promove-se um breve inventário sobre o cumprimento das diretrizes reRevista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. 154 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário ferentes a esse direito no contexto do Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, ou seja, como esse direito busca efetividade como política pública. 2 A Justiça de Transição e o direito à memória e à verdade: do que se trata? A ideia de uma Justiça de Transição tem matrizes diversas. Teitel, por exemplo, ao propor uma genealogia da justiça de transição, em busca histórica pelo século XX, considera que o desenvolvimento de ideias associadas à justiça transicional está estruturado em três fases: A Fase I da genealogia, a fase do pós-guerra, começou em 1945. Por meio de seu símbolo mais conhecido, o Tribunal de Nuremberg conduzido pelos aliados, esta fase refletiu o triunfo da justiça transicional dentro do plano do Direito Internacional. [...] A Fase II está associada com o período de acelerada democratização e fragmentação política [...]. Ao longo dos últimos 25 anos do século XX, o colapso e desintegração da União Soviética levaram a processos simultâneos de democratização em muitos lugares do mundo. [...] Até o final do século XX emerge a terceira fase da justiça transicional, a do estado estável (steady-state). Esta fase caracteriza-se pelo fenômeno de aceleração da justiça transicional [...]. A justiça transicional altera-se da exceção da norma para converter-se em paradigma do Estado de Direito. (2011, p. 46). A genealogia acima descrita permite observar que o conceito de Justiça de Transição foi desenvolvido mais especificamente a partir da segunda metade do século XX, em marcantes contextos históricos, confirmando-se atualmente como “o esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos” (ZYL, 2011, p. 47). Ou como uma concepção de justiça associada a períodos de mudança política, caracterizada por respostas jurídicas, com o fim de enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores no passado. Marcos da própria ONU podem ser destacados acerca da atual concepção de justiça transicional: No marco das Nações Unidas, o conceito de justiça de transição compreende a totalidade dos processos e mecanismos relacionados com os esforços de uma sociedade por reconciliar-se com uma herança de graves violações cometidas no passado, a fim de assegurar a responsabilização, a administração da justiça e a reconciliação. Esses processos podem compreender mecanismos judiciais e não judiciais, com diferentes níveis de participação internacional (incluída nenhuma) e julgamentos individuais, reparações, busca da verdade, reformas institucionais, verificação de ante- Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges 155 cedentes, demissões, ou uma combinação destes. (Documento do Conselho de Segurança das Nações Unidas S/2004/619 (3 de agosto de 2004), p.4, In: SALMÓN, 2011, p. 227-228) As concepções de justiça transacional acima apresentadas, consolidadas nos principais marcos normativos do direito internacional, indicam que seu objetivo “implica em processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação” (ZYL, 2011, p. 47). A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, ao julgar o caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras1 estabeleceu que todos os Estados devem: a) tomar medidas para prevenir violações aos direitos humanos; b) conduzir investigações quando as violações ocorrerem; c) impor sanções aos responsáveis pelas violações; e d) assegurar reparação às vítimas. Essa decisão foi confirmada e adotada, desde então, por outras cortes, bem como por tratados e resoluções da ONU. Nessa perspectiva, o campo de atuação da justiça de transição foi desenvolvido e ampliado, por diversos mecanismos e estratégias, fundamentados no primado dos direitos humanos, seja mediante esforços de organismos internacionais ou por iniciativas de diversos países, considerando seus próprios contextos políticos e sociais, não se confirmando um modelo único para tratar as profundas marcas das violações de direitos humanos. É nesse contexto que emerge o direito à memória e à verdade como resposta atual às graves violações perpetradas, especialmente no sentido de revelar a verdade sobre crimes passados. O direito à verdade ou direito de saber alcança toda a sociedade em razão do conhecimento de sua história (SALMÓN, 2011, p. 245). Nesse sentido, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos definiu o direito à verdade como: um direito de caráter coletivo, que permite à sociedade ter acesso à informação essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos e, ao mesmo tempo, um direito particular para os familiares das vítimas, que permite uma forma de reparação, em particular, nos casos de aplicação das leis de anistia. (COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1999, p. 224). Por sua vez, as Nações Unidas já manifestaram que: 1 Vide: CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1988. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. 156 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário Cada povo tem o direito inalienável de conhecer a verdade acerca dos acontecimentos sucedidos no passado, em relação com a perpetração de crimes aberrantes e as circunstâncias e os motivos que levaram, mediante violações massivas ou sistemáticas, à perpetração desses crimes. (ONU, 2005, principle 2). Como complemento e correspondência a esse direito à verdade associou-se o direito à memória ou o dever de recordar incumbido ao Estado. Também nessa direção, as Nações Unidas confirmaram o entendimento de que este direito se refere ao conhecimento, por um povo, da história de sua opressão, o que constitui parte de seu patrimônio e, por isso, deve ser conservado, adotando medidas adequadas em favor do dever de recordar incumbido ao Estado, para preservar os arquivos e outras provas relativas às violações dos direitos humanos e do direito humanitário, e para facilitar o entendimento/conhecimento de tais violações. Essas medidas devem ser encaminhadas no sentido de preservar a memória coletiva contra o esquecimento e, em particular, evitar que surjam teses revisionistas e negacionistas. (ONU, 2005, principle 3). Atualmente, o direito à memória e à verdade, resultante da doutrina e da jurisprudência das cortes internacionais, consolidou-se como direito fundamental, especialmente das vítimas de graves violações, confirmando-se em vários instrumentos normativos internacionais de direitos humanos. Diversas são as formas de expressão do direito à memória e à verdade. Não há uma única maneira de lidar com o passado marcado por graves violações enquanto a verdade não for totalmente revelada. Múltiplas experiências de aplicação do direito à memória e à verdade, no contexto de uma justiça de transição, já foram efetivadas em diversos países. Na África - Serra Leoa, Nigéria, República Democrática do Congo, Libéria, Quênia, África do Sul – por exemplo, desenvolveram diferentes mecanismos de busca da verdade. Timor Leste e Indonésia estabeleceram uma comissão conjunta para investigar a violência que envolveu o referendo de independência do Timor Leste em 1999 (CUEVA, 2011). Na América Latina, reconhecido cenário de repressão política e de hediondas violações de direitos humanos perpetradas por ditaduras civis-militares, quase todos os países realizaram iniciativas de responsabilização e promoção do direito à justiça, à verdade e à memória. Nesse seguimento, Argentina, El Salvador, Guatemala, Bolívia, Uruguai, Chile, Honduras, Panamá, Peru, Equador, Nicarágua, Paraguai e Colômbia, são exemplos de países. É certo que algumas experiências não foram bem sucedidas, mas “a tentativa de revelar o passado para consolidar um fu- Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges 157 turo democrático deve ser louvada, apesar das contingências políticas e econômicas que têm servidor de obstáculo”, no dizer de Pinto (2010, p. 134). 3 Os caminhos do direito à memória e à verdade no Brasil No Brasil, o direito à memória e à verdade emerge como resposta às violações de direitos humanos perpetradas e patrocinadas pelo Estado durante o período ditatorial brasileiro, especialmente entre 1964 e 1985, ocasião em que a liberdade de expressão foi reprimida, as mídias controladas e censuradas, os direitos civis e políticos suspensos, os mandatos cassados, os críticos do regime perseguidos, arbitrariamente detidos, banidos ou exilados, órgãos repressivos, especializados em práticas ilegais e criminosas, como a tortura, os desaparecimentos forçados e as execuções sumárias, instituídos. Organizou-se um conjunto estruturado de estratégias estatais repressivas para extinguir os que resistiram ao regime ditatorial, reeditando e reinventando outras práticas cruéis de violações de direitos humanos, não mais em senzalas e quilombos, mas agora nos porões da ditadura, conforme Swensson Jr. (2011). A sociedade brasileira, ao demandar um direito à memória e à verdade, luta contra a amnésia histórica e contra o esquecimento das multidões massacradas. Neste sentido, Ruiz assevera que: No esquecimento da violência ocorre uma dupla negação da alteridade humana. O esquecimento nega a violência cometida sepultando-a sob a indiferença do olvido; e também nega às vítimas da violência porque, pelo esquecimento, elas se tornam inexistentes. O olvido da violência sepulta de uma só vez o fato histórico ocorrido e as vítimas que sofreram a injustiça, o que podemos denominar de segunda morte das vítimas da história. Estas são violentadas uma segunda vez pelo esquecimento que as apaga de forma definitiva da memória da história, tornando-as insignificantes para o presente. [...] A tática amnésica sepulta o passado no presente, o nega pelo simples fato de que já foi; faz desaparecer o passado sob a consideração hermenêutica de que é irrelevante para o momento atual; projeta um manto de insignificância sobre o que foi para ocultar o olhar instigante das vítimas da história. (2012, p. 50). O caminho percorrido nesta direção ainda é pequeno para que o país promova plenamente as bases para a construção da plena democracia almejada. Alguns desafios continuam dificultando e resistindo à efetivação desse direito. Gallo esclarece: Assim, na busca pela efetivação do direito á memória e à verdade enfrentou-se, e segue-se enfrentando, dois problemas: o primeiro, diz respeito à Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. 158 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário já referida difusão e aceitação, por parte expressiva da população, de que a Lei no 6.683 de 1979 estabeleceu uma anistia recíproca tanto a torturadores quanto aos torturados, situação esta bastante propícia à consolidação de uma política do esquecimento; e, além deste, o outro entrave, sobretudo à verdade, tem sido a questão relativa à abertura dos arquivos da repressão, cuja ocultação (e até mesmo a destruição) de documentos oficiais faz com que, até hoje, caiba aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos obter, nos poucos arquivos que foram abertos, prova documental de que seus irmãos, pais, filhos e/ou cônjuges foram mortos pelo Estado brasileiro. (2010, p. 141). Apesar desses insistentes entraves e da histórica passividade do Estado brasileiro diante do problema, alguns avanços devem ser destacados, como o projeto Brasil: Nunca Mais, publicado em 1985, primeira atitude concreta para desvelar a verdade dos fatos ocorridos durante o período ditatorial. Iniciativa da sociedade civil, sob a liderança de Dom Paulo Evaristo Arns, o projeto reuniu documentos e processos políticos, e denunciou, publicamente, os crimes praticados pelos militares. Também merece destaque, na construção deste processo de continuada luta nos anos que se seguiram ao final do regime, o trabalho realizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos – CFMDP. Lisboa explica: A CFMDP começou a ser formada na primeira metade da década de 1970 (atuando até a atualidade), sendo que, através de sua luta, além de serem promovidas as denúncias das torturas, das mortes e desaparecimentos de seus familiares, visa obter o reconhecimento de que o Estado brasileiro, violando reiteradamente os direitos humanos de presos políticos, matou estes militantes, e, admitidas estas mortes, que, com a abertura dos arquivos da repressão, seja possível, finalmente, localizar os corpos, restabelecer as verdadeiras circunstâncias dos assassinatos, e, identificados os responsáveis, promover sua responsabilização. (2009, p. 208-212; 228-229). Somente a partir de 1988 o Estado brasileiro começou a se redimir de seu silêncio, mediante a promulgação da nova Constituição Federal. A novel Carta Magna, apesar das resistências de grupos militares, estabeleceu no artigo 8o, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o direito à anistia para os perseguidos políticos, deixando para posterior regulamentação a forma de reparação a ser adotada. Seguiu-se um hiato temporal desanimador, mas a promulgação da Lei no 9.140, de 04 de dezembro de 1995, na qual o Estado reconheceu a responsabilidade no desaparecimento forçado das 136 pessoas listadas em seu anexo, gerou novo ânimo. Ademais, a lei previu ainda a criação de uma Comissão Especial sobre Mortos e Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges 159 Desaparecidos Políticos, instituída pelo Decreto de 18 de dezembro de 1995, com o objetivo de proceder ao reconhecimento das pessoas desaparecidas, não relacionadas no anexo, bem como daquelas que, por terem participado ou por terem sido acusadas de participação em atividades políticas, entre 1961 e 1979, tenham falecido, por causas não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas. Além disso, à Comissão foi dada a atribuição de promover a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que poderiam estar depositados. Vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República desde 2003, a Comissão já analisou 339 casos e deferiu 221, além dos 136 já reconhecidos no anexo da Lei no 9.140/1995 (BRASIL, 2008). Passo seguinte foi a promulgação da Lei no 10.536, de 14 de agosto de 2002, que introduziu alterações na Lei no 9.140, de 04 de dezembro de 1995, que tinha como data limite, para efeito de indenizações, 15 de agosto de 1979. A nova lei ampliou esse limite temporal para 05 de outubro de 1988, data de promulgação da nova Constituição Federal. Em novembro de 2002, com o advento da promulgação da Lei no 10.559, instituiu-se a Comissão de Anistia. Segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República: A Comissão de Anistia já realizou 700 sessões de julgamento e promoveu, desde 2008, 30 caravanas, possibilitando a participação da sociedade nas discussões, e contribuindo para a divulgação do tema no país. Até 1o de novembro de 2009, já haviam sido apreciados por esta Comissão mais de 52 mil pedidos de concessão de anistia, dos quais quase 35 mil foram deferidos e cerca de 17 mil, indeferidos. Outros 12 mil pedidos aguardam julgamento. Até 2008, mais de R$ 100 milhões haviam sido gastos com reparações. (BRASIL, 2010). Em 2004, a Lei no 10.875 estabeleceu nova ampliação da Lei no 9.140, abrangendo também os casos de morte em consequência de repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos armados com agentes do poder público, além de suicídios cometidos “na iminência de serem presas ou em decorrência de sequelas psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder público” (BRASIL, 2004). Em 2005, com a promulgação da Lei no 11.111, que regulamentou o artigo 5o, XXXIII, da Constituição Federal, que permite o acesso aos documentos públicos, esperava-se que os arquivos de posse dos militares seriam finalmente abertos, eis que não mais protegidos sob rigoroso sigilo. Entretanto, segundo a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República: Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. 160 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário A alegação das Forças Armadas, quando diligenciadas pela CEMDP, é que os arquivos foram destruídos com base na legislação em cada época, mas a mesma legislação exige que, para destruir um arquivo, seja assinado um termo de eliminação de arquivo com a presença de testemunha. Fica a cargo das Forças Armadas apresentar o termo de destruição de arquivo, procedimento que ainda não ocorreu. (BRASIL, 2008, p. 192). Ainda em dezembro de 2005, o Governo Federal determinou que os arquivos da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN, especialmente os arquivos do extinto Serviço Nacional de Informações – SNI, do Conselho de Segurança Nacional e da Comissão Nacional de Investigações fossem entregues ao Arquivo Nacional, subordinado à Casa Civil, onde passaram a ser organizados e digitalizados. Em 2006, o governo brasileiro instituiu o Banco de DNA, que possibilitou a coleta e a acumulação de material genético de familiares dos desaparecidos para futura comparação de eventuais restos mortais encontrados sem identificação. Em 2007, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, publicou o relatório intitulado “Direito à Memória e à Verdade”, que resgata a história de 475 militantes políticos vitimados pelo regime ditatorial, em mais um passo no sentido do reconhecimento das barbáries perpetradas, considerado “importante contribuição do Estado brasileiro para a memória dos fatos recentes”, conforme Santos Jr. (2009, p. 17). Em 2008, a 23a Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou, em primeira instância, o coronel reformado do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandava o DOI-Codi entre 1970 e 1973, pelo crime de tortura contra membros da família Teles. Ustra foi o primeiro oficial condenado por esse crime. A sentença encontra-se em fase de recurso sob alegação de que a lei de anistia promoveu o perdão dos crimes perpetrados durante a ditadura. Ainda em 2008, o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública contra a União Federal requerendo que, além de Ustra, Audir Santos Maciel, comandante do DOI-Codi paulista entre 1974 e 1976, seja responsabilizado pela morte e tortura de 64 pessoas. O ano de 2009, por sua vez, foi um ano de importantes acontecimentos: em março, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, após estabelecer recomendações não totalmente cumpridas pelo Estado brasileiro, submeteu o caso dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia à Corte Interamericana de Direitos Humanos, requerendo que o Brasil seja responsabilizado pelas violações de direitos humanos ocorridas durante as operações de repressão àquele movimento. Em maio do mesmo ano, o Governo Federal lançou o projeto Memórias Reveladas, sob a resRevista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges 161 ponsabilidade da Casa Civil, que interliga digitalmente o acervo recolhido no Arquivo Nacional após dezembro de 2005 com vários outros arquivos federais sobre a repressão e com arquivos de 15 estados brasileiros, estimando-se em cinco milhões de páginas o total dos documentos. Em junho, o Governo Federal veiculou uma campanha publicitária multimídia tentando sensibilizar as pessoas sobre a questão do direito à memória e à verdade no Brasil. As mensagens solicitavam que informações sobre a localização de restos mortais ou sobre quaisquer documentos e arquivos envolvendo o tema da repressão política entre 1964 e 1985 fossem encaminhados ao projeto Memórias Reveladas. Ainda em 2009, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos publica o Dossiê Ditadura, atualizando as informações sobre os mortos e desaparecidos no Brasil durante o regime militar. Em julho, foi criada a Supervisão Civil do Grupo de Trabalho, com a participação da Comissão Especial, para realizar buscas na região do Araguaia. Em 21 de dezembro de 2009, por meio do Decreto no 7.037, o governo brasileiro publicou o Plano Nacional de Direitos Humanos 3 – PNDH-3, que estabeleceu diretrizes para uma implementação mais eficaz do direito à memória e à verdade, as quais serão objeto de reflexão no item seguinte. 4 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos 3: um breve inventário Os Planos Nacionais de Direitos Humanos têm sua gênese na 2a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, promovida pela ONU, e realizada em Viena, em 1993. A Declaração e o Programa de Ação dela resultantes confirmaram a indivisibilidade, a interdependência e a universalidade dos direitos humanos, da democracia e do desenvolvimento e, como foram aceitos pela totalidade dos países participantes, sem nenhum voto contrário ou abstenção, suas recomendações, apesar de não serem vinculantes, lograram significativa importância e enorme peso no cenário internacional. Dentre tantas recomendações, o parágrafo 71, do Programa de Ação assevera: A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos recomenda que cada Estado considere a oportunidade da elaboração de um plano de ação nacional que identifique os passos por meio dos quais esse Estado poderia melhorar a promoção e a proteção dos direitos humanos. (BRASIL, 2010). Antes, o parágrafo 69 dispõe que a ONU deverá apoiar os estados no processo de realização de planos de ação para a promoção e proteção dos direitos humanos. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. 162 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário Pinheiro, presente na Conferência, afirma que: O conceito mesmo de planos de ação de Direitos Humanos de certo modo completa o que não estava claro nos textos fundadores da ONU, a saber, que a realização dos Direitos Humanos depende dos governos e da sociedade civil de cada país para fazer iniciativas e ações que possam trazer mudanças significativas para a vida das pessoas. A grande inovação é que pela primeira vez nas Nações Unidas as mudanças em Direitos Humanos se tornavam elementos de políticas públicas, o que requer análise, avaliações concretas de situações e definição de programas e alocação de recursos. (PINHEIRO, 2010, p. 8). O Brasil, como participante ativo da Conferência de Viena, além de colaborar na construção de suas propostas e subscrevê-las, ratificou os principais instrumentos internacionais de direitos humanos, confirmando-se o compromisso constitucional de reger suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos. Nesse contexto jurídico-político, lançou-se, em 1996, o primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-1, que dedicou a totalidade de suas ações e metas à busca pela efetivação dos direitos civis e políticos. Em 2002, adveio o PNDH-2, objetivando revisar e atualizar o PNDH-1, incorporando a este os direitos sociais, econômicos e culturais. A terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3 foi precedida de amplo debate público nacional, que culminou na 11a Conferência Nacional de Direitos Humanos, a qual, com o lema “Democracia, Desenvolvimento e Direitos Humanos”, teve como objetivo principal promover a revisão e atualização do PNDH, resultando nas proposições que integram o PNDH-3. Realizaram-se 137 encontros prévios às etapas estaduais e distrital, denominados Conferências Livres, Regionais, Territoriais, Municipais ou Pré-Conferências. Participaram ativamente do processo cerca de 14 mil pessoas [...]. A iniciativa compartilhada entre sociedade civil e poderes republicanos, mostrou-se capaz de gerar as bases para formulação de uma Política Nacional de Direitos Humanos como verdadeira política de Estado. (BRASIL, 2010). Neste sentido, Piovesan assevera que: O 3o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), adotado em 21 de dezembro, tem como mérito maior lançar a pauta de Direitos Humanos no debate público, como política de Estado, de ambiciosa vocação transversal. [...] Ainda que várias das metas do PNDH-3 sejam objeto de contundentes críticas, seus pontos mais controvertidos estão em absoluta consonância Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges 163 com os parâmetros internacionais de Direitos Humanos e com a recente jurisprudência internacional, refletindo tendências contemporâneas na luta pela afirmação desses direitos e as obrigações internacionais do Estado brasileiro neste campo. (2010, p. 12-13). O PNDH-3 está estruturado em seis eixos orientadores, subdivididos em 25 diretrizes, 82 objetivos estratégicos e 521 ações programáticas, refletindo a quase totalidade das resoluções aprovadas na 11a Conferência Nacional de Direitos Humanos. O Plano também inclui propostas aprovadas em cerca de 50 outras conferências nacionais temáticas realizadas desde 2003, como saúde, meio ambiente, educação, juventude, criança e adolescentes, idosos, cultura, cidades, segurança alimentar, igualdade racial, pessoas com deficiência, diversidade sexual, dentre outras. O Direito à Memória e à Verdade é tratado no Eixo Orientador VI, compondo-se de três diretrizes, quais sejam as Diretrizes 23, 24 e 25. Cada uma das diretrizes, seus objetivos estratégicos e suas ações programáticas, foram objeto de investigação no presente inventário, buscando-se verificar as iniciativas já desenvolvidas para suas efetivações. A Diretriz 23 estabelece o “reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado”, cujo objetivo estratégico é promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticados no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. (BRASIL, 2010). Sua principal ação programática é a instituição de uma Comissão Nacional da Verdade, cujas atribuições estão indicadas no próprio texto que contém a ação, tais quais a promoção da reconstrução da história dos casos de violações de direitos humanos e a assistência às vítimas de tais violações. Nesse ponto, a ação programada, apesar de reiteradas resistências, foi implementada. A Comissão Nacional da Verdade – CNV foi criada pela Lei no 12.528, de 18 de novembro de 2011. Vinculada à Casa Civil da Presidência da República, com a finalidade de “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do ADCT, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (BRASIL, 2011), a Comissão da Verdade foi instaurada em maio de 2012 e está sediada atualmente no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, local onde ocorrem suas reuniões ordinárias. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. 164 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário Seus membros componentes e assessores, seu Plano de Trabalho e correspondente cronograma, suas resoluções, sua agenda, seus relatórios finais e demais informações encontram-se disponíveis na internet, para conhecimento público. Considera-se fundamental que as organizações da sociedade civil desempenhem estratégico e necessário papel no continuado e permanente monitoramento propositivo e colaborativo para que a CNV efetivamente alcance os objetivos para os quais foi instituída. A Diretriz 24 estabelece a “preservação da memória histórica e a construção pública da verdade”. Tem como objetivo estratégico “incentivar iniciativas de preservação da memória histórica e de construção pública da verdade sobre períodos autoritários” (BRASIL, 2010). Para alcançar este objetivo, seis ações programáticas foram indicadas: a) Disponibilizar linhas de financiamento para a criação de centros de memória sobre a repressão política, em todos os estados, com projetos de valorização da história cultural e de socialização do conhecimento por diversos meios de difusão. (BRASIL, 2010). Não se pode negar que há iniciativas do Governo Federal nesse sentido. O Ministério da Justiça, indicado como um dos responsáveis pela implementação dessa ação programática no PNDH-3, através da Comissão de Anistia, instituiu o projeto Marcas da Memória, que já promoveu três chamadas públicas nacionais, selecionando projetos oriundos de organizações da sociedade civil para financiamento nesta área. Os editais têm ofertado apoio financeiro de 30 mil a 600 mil reais. O governo federal está construindo, em Belo Horizonte, o Memorial da Anistia, um memorial nacional sobre a repressão política, que funcionará como espaço de memória das vítimas de violações passadas e difusão dos direitos humanos no presente. b) Criar comissão específica, em conjunto com departamentos de História e centros de pesquisa, para reconstituir a história da repressão ilegal relacionada ao Estado Novo (1937-1945). Essa comissão deverá publicar relatório contendo os documentos que fundamentaram essa repressão, a descrição do funcionamento da justiça de exceção, os responsáveis diretos no governo ditatorial, registros das violações bem como dos autores e das vítimas. (BRASIL, 2010). Quanto a essa ação programática, não se conseguiu identificar iniciativa de qualquer dos órgãos indicados pelo PNDH-3, como responsáveis pela realização desta ação, quais sejam a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges 165 da República e os Ministérios da Educação, da Justiça e da Cultura. Registre-se, porém, que o Governo do Estado de Pernambuco, ao instituir sua Comissão Estadual da Memória e da Verdade Dom Helder Câmara, estabeleceu que suas atividades devem também recuar na história para investigar crimes cometidos pela repressão durante a ditadura do Estado Novo. c) Identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade, bem como promover com base no acesso às informações, os meios e recursos necessários para a localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos. (BRASIL, 2010). Iniciativas específicas para implementar essa ação programática também não foram identificadas junto aos órgãos responsáveis indicados no Plano. Também não restou esclarecido se essa ação foi incorporada às atribuições da Comissão Nacional da Verdade. d) Criar e manter museus, memoriais e centros de documentação sobre a resistência à ditadura. (BRASIL,2010). Quanto ao item “d”, reporte-se ao indicado na letra “a” quanto à construção, em Belo Horizonte, do Memorial da Anistia, um memorial nacional sobre a repressão política que funcionará como espaço de memória das vítimas de violações passadas, bem como aos Projetos Memórias Reveladas e Marcas da Memória. Também, memoriais estão sendo colocados em praças, assembleias legislativas e universidades pelo país, segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (BRASIL, 2010). e) Apoiar técnica e financeiramente a criação de observatórios do Direito à Memória e à Verdade nas universidades e em organizações da sociedade civil. (BRASIL, 2010). Para atender a essa ação programática, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República instituiu, pela Portaria no 1.515, de 04 de agosto de 2011, a Rede dos Observatórios do Direito à Memória, Verdade e Justiça das Universidades Brasileiras. A Rede, em parceria com o Arquivo Nacional do Brasil (e a rede arquivística nacional) deverá, dentre outras ações comuns, desenvolver oficinas de treinamento, presenciais e à distância, para os pesquisadores das universidades integrantes. Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. 166 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário f) Desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre as graves violações de direitos humanos ocorridos no período fixado no artigo 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988. (BRASIL, 2010). Quanto a essa ação, informe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República registra que o livro – relatório Direito à Memória e à Verdade, da CEMDP: teve seu conteúdo ampliado e transformado em CD para ser amplamente distribuído às escolas. Numa linguagem atual e de fácil entendimento, crianças e adolescentes poderão navegar na história recente do país, com acesso a músicas e filmes que compõem o cenário daquele período. (BRASIL, 2010). A Diretriz 25 estabelece a “modernização da legislação relacionada com a promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia” e indica como seu objetivo estratégico “suprimir do ordenamento jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem os compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos” (BRASIL, 2010). Para alcançar esse objetivo, quatro ações programáticas foram indicadas: a) Criar Grupo de Trabalho para acompanhar, discutir e articular, com o Congresso Nacional, iniciativas de legislação propondo i) a revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias às garantias dos Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações; ii) revisão de propostas legislativas envolvendo retrocessos na garantia dos Direitos Humanos em geral e no direito a memória e à verdade. (BRASIL, 2010). Polêmica, esta ação programática foi acusada de buscar a revogação da Lei de Anistia de 1979. Dallari comentou: Ao imaginar que a citada proposta do III Programa de Direitos Humanos tem em mira a lei de anistia de 1979, a corporação militar tirou a máscara. Ela reconheceu que esse diploma legal viola os direitos humanos, e que essa violação só pode consistir no fato de a indigitada lei haver anistiado os agentes públicos, militares e policiais, que mataram, estupraram e torturaram opositores ao nefasto regime político de 1964 a 1985. Tranquilizem-se, porém, o ministro e os chefes militares. O que o Conselho Federal da OAB propôs no Supremo Tribunal, por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental no 153, não foi a revogação da lei de anistia. Aliás, em um Estado de Direito o Poder Judiciário não tem poderes para revogar leis. Objeto daquela ação é a declaração judicial de que a Lei Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges 167 no 6.683, de 1979, não anistiou os autores de crimes de sangue e de violência contra opositores políticos, durante o regime militar. (2010, p. 03). Não se conseguiu, todavia, constatar a criação de tal grupo de trabalho por qualquer dos órgãos responsáveis indicados no Plano. b) Propor e articular o reconhecimento do status constitucional de instrumentos internacionais de Direitos Humanos novos ou já existentes ainda não ratificados, especialmente o Protocolo Facultativo do PIDCP, visando à abolição da pena de morte (1989); a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (ONU, 1968) e a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados (2006). (BRASIL, 2010). Nesse ponto, constata-se que o Brasil assinou apenas a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, em 2007. c) fomentar, debater e divulgar informações no sentido de que logradouros, atos e próprios nacionais ou prédios públicos não recebam nomes de pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores. (BRASIL, 2010). Não se conseguiu identificar iniciativa dos órgãos responsáveis indicados no Plano para a implementação desta ação programática. Entretanto, constatou-se que diversas Câmaras Municipais receberam Projetos de Leis no sentido de impedir ou de alterar que logradouros públicos recebam nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade. d) Acompanhar e monitorar a tramitação judicial dos processos de responsabilização civil ou criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964-1985. (BRASIL, 2010). Atualmente tramitam ações judiciais cujos objetos referem-se diretamente a atos praticados durante o regime ditatorial. Dentre as quais, citam-se a ação movida contra a União Federal para a abertura dos arquivos e localização dos restos mortais dos envolvidos na Guerrilha do Araguaia, em trâmite na 1a Vara Federal do Distrito Federal sob o no 82.00.24682-5; ações civis declaratórias movidas pelas famílias Teles e Merlino, para que Carlos Alberto Brilhante Ustra seja declarado pela Justiça torturador, em trâmite nas 23a e 42a Varas Cíveis de São Paulo, sob os números, respectivamente, 05.202853-5 e 583.00.2007.241711-7. Além dessas, conforme já indicado, o Ministério Público Federal propôs uma Ação Civil Pública contra a União Federal requerendo que, além de Ustra, Audir Santos Maciel, comandante do DOI-Codi paulista entre Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. 168 O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário 1974 e 1976, sejam responsabilizados pela morte e tortura de 64 pessoas, processo sob o no 2008.61.00.011414-5, em trâmite na 8a Vara Federal de São Paulo. Importa ainda destacar que, em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal – STF uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, objetivando que o STF estabelecesse uma interpretação conforme a Constituição, no sentido de se declarar que a anistia concedida pela lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes do regime ditatorial contra os opositores da ditadura, ao mesmo tempo em que se declare a recepção ou não da lei de anistia de 1979 pela Constituição Federal de 1988. O STF, por sua vez, decidiu que a lei de anistia de 1979 é compatível com a nova ordem constitucional vigente, mantendo a validade da referida lei. Tal decisão teve ampla repercussão midiática. De outro lado, em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil declarou, por unanimidade que: As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010). O Estado brasileiro foi considerado responsável pelo desaparecimento forçado das pessoas indicadas na petição inicial, violando diversos dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992. Nesse sentido, a questão agora é sobre o que fazer diante desta colisão de decisões do STF e da CIDH. Garcia (2012, p. 246) aponta como caminho a “aprovação pelo Parlamento brasileiro do Projeto de Lei no 4667/2004, que reafirma os efeitos jurídicos imediatos das decisões dos organismos internacionais de proteção dos Direitos Humanos, cuja competência seja reconhecida pelo país”. Outra proposta é “a utilização da justiça nacional para aquilo que foge a decisão do STF” (ABRÃO, 2012, p. 220). Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. Alci Marcus Ribeiro Borges - Caroline Bastos de Paiva Borges 169 5 Conclusão Restou evidenciado que o campo de atuação da Justiça de Transição foi desenvolvido e consolidado, seja mediante esforços de organismos internacionais ou por iniciativas de diversos países, considerando seus próprios contextos políticos e sociais, não se confirmando um modelo único para tratar as profundas marcas das violações de direitos humanos. Também restou indicado que foi nesse contexto que emergiu o direito à memória e à verdade, como resposta atual às graves violações perpetradas, especialmente no sentido de revelar a verdade sobre crimes passados. Igualmente restou demonstrado que o direito à memória e à verdade consolidou-se como direitos humanos exigíveis, sendo afirmado em diversos instrumentos normativos internacionais, e que este engloba diferentes formas de expressão e experiências de aplicação, no contexto de uma justiça de transição. No Brasil, o direito à memória e à verdade emerge como resposta às violações de direitos humanos perpetradas e patrocinadas pelo Estado durante o período ditatorial brasileiro, especialmente entre 1964 e 1985. Desde o fim da ditadura, a luta contra a amnésia histórica e contra o esquecimento continua viva, ativa, persistente, uma teimosia cidadã em busca pela verdade, pela justiça e pela memória. Entretanto, muito ainda resta para ser feito para que o país promova plenamente as bases para a construção da plena democracia almejada. Muitos desafios continuam dificultando e resistindo à efetivação desse direito. Destaque-se a luta incansável da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos pelo esforço permanente em busca da abertura de todos os arquivos, pela construção das memórias, pela reversão dos efeitos perversos da Lei da Anistia de 1979. Mas a verdade e a justiça continuam a nos desafiar. Muitos arquivos ainda estão fechados e os mortos continuam desaparecidos. No PNDH-3, ao menos quanto ao eixo referente à Memória e à Verdade, diversas ações programáticas continuam sem plena efetivação e já necessitam ser revisadas e atualizadas, pois a pauta continua viva e reclama continuada movimentação. As feridas ainda não cicatrizaram e o esquecimento ainda nos rodeia e a dor ainda não cessou. Quando será que poderemos dizer NUNCA MAIS? Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 111 Fev./Maio 2015 p. 151-172. O direito à memória e à verdade no Plano Nacional de Direitos Humanos III: um breve inventário 170 6 Referências ABRÃO, Paulo. A lei de anistia no Brasil: as alternativas para a verdade e a justiça. In: RUIZ, Castor M.M. Bartolomé (Org.). Justiça e memória. Direito á justiça, memória e reparação: a condição humana nos estado de exceção. São Leopoldo: Casa Leiria; Passo Fundo: IFIBE, 2012. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BRASIL. Decreto de 18 de dezembro de 1995. Diário Oficial da União. Brasilia, 1995. 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