Simone Silva - Água, Mulheres e Desenvolvimento

Transcrição

Simone Silva - Água, Mulheres e Desenvolvimento
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO – UAB
Especialização em Políticas Públicas com ênfase em gênero e raça
Pólo Sete Lagoas
ABORTO INSEGURO, SAÚDE DA MULHER E POLÍTICAS PÚBLICAS:
Impasses e Perspectivas
Simone Sany Silva
INTRODUÇÃO
A prática do aborto reflete uma questão bastante polêmica e que exige
uma adequada discussão acerca das dificuldades e perspectivas a ela
inerentes. O aborto é previsto como crime na legislação penal brasileira,
no entanto, há evidências empíricas em vasta literatura de que o aborto
seja amplamente praticado. Em virtude de seu caráter ilícito, o aborto
frequentemente ocorre em condições de saúde inapropriadas e com
consequências muitas vezes catastróficas à saúde da mulher: numerosas
internações
hospitalares,
sequelas
e
alta
mortalidade
materna.
(SANTIAGO, 2008)
Na literatura, estudiosos da temática apontam que a proibição da prática
de aborto através de lei não tem contribuído para reversão das
estatísticas, levando, sobretudo à sua realização de forma clandestina e
insegura. Com a ilegalidade é dificultada a prestação de uma assistência
integral à mulher, inviabilizando suas possibilidades de pensar e fazer
escolhas. (CAVALCANTE & BUGLIONE, 2008)
O aborto retrata uma realidade onde muitas mulheres sofrem pela falta de
amparo nos serviços públicos, especialmente no campo da saúde, além
do desrespeito à sua autonomia reprodutiva. Tal contexto revela a
demanda por políticas públicas relacionadas à questão
e pela
implementação de programas e serviços de assistência e de saúde da
mulher mais adequados.
Desta forma, delimita-se de forma geral o objeto de estudo desenvolvido
neste trabalho, qual seja, discutir a prática do aborto inseguro
vislumbrando não somente os impasses, mas também as perspectivas
para atenuar o impacto na saúde da mulher. De maneira mais específica,
deseja-se refletir acerca das alternativas que viabilizem a diminuição da
ocorrência do aborto inseguro através de políticas públicas inovadoras e
da efetivação do planejamento familiar. Dito isto, também se pretende
intensificar o debate acerca das formas de afirmação e reconhecimento
dos direitos reprodutivos da mulher.
Estimativas
de
organizações
internacionais
comprovam
que
o
abortamento é um dos grandes vilões da morte materna em nosso país,
provocando ainda várias sequelas. A maior proporção de complicações é
verificada entre mulheres de nível socioeconômico baixo, que recorrem
aos hospitais públicos para tratamento das complicações. As mortes por
aborto atingem de forma preponderante as mulheres jovens e as negras,
de estratos sociais desfavorecidos, residentes em áreas periféricas das
cidades. (MENEZES & AQUINO, 2009)
Há que se considerar ainda que o atendimento e as complicações
causadas pela prática do aborto representam o terceiro item nos gastos
da Previdência Social com hospitais (BARTILOTTI, 2002). Recursos
públicos que poderiam ser investidos na prevenção e na promoção de
forma universal do acesso a todos os meios de proteção à saúde, de
concepção e anticoncepção com respeito.
Falar sobre o aborto remete, sobretudo, a questões cruciais das relações
de gênero problematizadas na luta pela autonomia do corpo e pelo direito
de decidir e ainda na luta pela garantia de um Estado laico com aparatos
legais que reconheçam a autonomia sexual e reprodutiva das mulheres. O
debate sobre o aborto encontra-se correlacionado ainda a uma discussão
política acerca da garantia da dignidade e cidadania de todas as
mulheres.
A proposta deste trabalho é a de realizar discussão sobre o aborto
vislumbrando seus desdobramentos clínicos, políticos, sociais e jurídicos.
A metodologia utilizada abarcou a realização de pesquisa bibliográfica e
documental através do acesso ao conhecimento já produzido sobre o
tema
em
informações
questão.
Buscou-se
pesquisadas,
bibliografia consultada.
realizar
propiciando
uma
um
sistematização
debate
conceitual
das
da
Para tanto, foram utilizadas bibliografias de grande relevância sobre o
tema efetuando-se uma discussão teórica e reflexão crítica do assunto
pesquisado.
Este trabalho está organizado em dois capítulos que ilustram a discussão
teórica sobre o aborto e políticas públicas correlatas. No primeiro capítulo
é aponta-se a discussão política sobre o aborto demonstrando a influência
de referenciais religiosos, morais e culturais que engendram a sua prática.
Ainda neste capítulo há uma exposição acerca do debate conceitual em
torno das controvérsias e polissemias do conceito de vida. Por fim é
apresentada uma retrospectiva histórica acerca do debate político
brasileiro sobre o aborto em especial nas esferas do legislativo, judiciário,
executivo além do âmbito da sociedade civil.
No segundo capítulo, realiza estudo explanatório acerca do impacto da
ilegalidade do aborto na saúde e na vida da mulher, para tanto é
apresentada um panorama dos embates jurisdicionais ocorridos em
outros países. Foram descritos também os aspectos psicossociais
associados à pratica do aborto finalizando com uma discussão acerca da
urgência pela implementação de políticas públicas relacionados a garantia
dos direitos reprodutivos.
Por meio deste trabalho espera-se contribuir para o debate sobre o aborto
vislumbrando não só os impasses postos ao enfrentamento da
problemática, mas, também, buscando-se fomentar as políticas públicas
já existentes e despertando também para alternativas possíveis.
CAPÍTULO 1: A DISCUSSÃO POLÍTICA SOBRE ABORTO
NO BRASIL: IMPASSES RELIGIOSOS, MORAIS E
CULTURAIS.
A discussão sobre o aborto implica em uma apreciação acerca do
contexto sócio-histórico, isto porque o tema reflete as normas e costumes
de determinada sociedade e época. Trata-se de tema controverso que
envolve sentimentos diretamente vinculados a convicções religiosas,
filosóficas e morais, sendo, portanto, objeto de forte sanção social. O
debate na literatura a respeito do aborto denota a interferência de
vivências religiosas e filosóficas nos julgamentos pessoais e coletivos
tendo em vista sua influência na conduta humana. É marcante a
tendência por parte da sociedade de utilizar padrões morais advindos da
religião, considerando o aborto como pecado.
Conceitualmente, o aborto é definido pela “terminação da gravidez antes
de completar 20 semanas e pode ser espontâneo ou induzido”, conforme
descrito por Santiago (P. 33). Já na concepção de Bartilotti, o aborto é
compreendido como:
“a expulsão ou a extração de toda e qualquer parte da
placenta ou das membranas, sem um feto identificável,
ou um recém-nascido vivo ou morto que pese menos de
quinhentos gramas. Na ausência do conhecimento do
peso, uma estimativa da duração da gestação de menos
de vinte semanas completas, contando desde o primeiro
dia do último período menstrual normal, pode ser
utilizada.” (BARCHIFONTAIN apud BARTILOTTI, 2002,
p. 99)
Associado a tabus e preconceitos, a prática do aborto tem sido realizada
ao longo dos séculos, conforme descrito em vasta literatura acadêmica.
Historicamente, há referências sobre o aborto como ato criminoso contra
os interesses do pai e do marido descritas no Código de Hamurabi, 1700
A.C., conforme demonstra Bartilotti (2002).
De acordo com Scavone (2008), outro aspecto que marca a polêmica em
torno do tema diz respeito à multiplicidade de significados acerca da
interrupção de uma gravidez indesejada frente às expectativas sociais em
torno da realização da maternidade, “marca relevante da identidade
histórico cultural feminina brasileira” e também do contexto mundial.
Observamos aqui a tradição paternalista de sociedade que limita o papel
social da mulher exclusivamente ao âmbito do cuidado, disseminando-o
como parte da natureza da mulher. Tal paradigma encontra nas teorias
biológicas
e
deterministas
fundamentação
teórica
para
tanto,
estabelecendo assim uma ligação entre o papel do cuidado à capacidade
física da mulher de dar a vida.
O conceito e o significado de maternidade aparecem, portanto, associado
a uma obrigação decorrente da condição de ser mulher desvalorizando o
caráter de escolha ou de projeto pessoal em relação à reprodução.
Leal (2012) salienta, em seu texto, a “riqueza da própria definição de
aborto e as nuances de seus significados”. Segundo esta autora, a
vivência e a interpretação da prática do aborto acontecem de forma
múltipla e a partir de um processo eminentemente social. Nesta
perspectiva, o aborto está relacionado a uma discussão social que
envolve negociações de gênero que perpassam um conjunto de
representações e noções de concepção, corpos e reprodução. Sendo
assim, a culpabilização da mulher que pratica o aborto estaria vinculada,
segundo Leal (2012), a uma “espécie de postulado público, parte de um
repertório de crenças, ideias e princípios implicitamente tomados como
naturais (...).”
Compreender a multiplicidade em torno do conceito aborto assim como
avaliar a predominância de uma cultura legitimada através de preceitos
marcadamente religiosos, fornece valiosos elementos para uma análise
do contexto de ilegalidade que esta situação contribui para reproduzir.
Contrariando o pensamento hegemônico das hierarquias religiosas e a
crença generalizada da inscrição da maternidade na natureza feminina,
Badinter (1989) teoriza que o tão aclamado instinto materno não passaria
de um mito. Argumenta não haver uma conduta universal da figura
materna, antes, sim, uma extrema variabilidade de sentimentos, segundo
a cultura, ambições ou frustrações da mulher. Através de uma extensa
pesquisa histórica, a autora demonstra que o amor materno não configura
como determinismo1, mas antes disso como um produto da evolução
social marcada por flutuações socioeconômicas do contexto cultural.
1
Aqui a autora se refere ao determinismo como uma corrente filosófica que crê que os eventos
possuem uma causa natural, ou seja, que tem seu funcionamento ditado por regras da natureza.
Faz menção ainda, à ideia generalizada acerca da existência de um instinto próprio da mulher em
relação ao exercício da maternidade, “como se uma atividade pré-formada, automática e
necessária esperasse apenas a ocasião de se exercer”. Nesta perspectiva, o amor materno estaria
profundamente inscrito na natureza feminina, determinando a maternidade como uma conduta
Tecendo uma crítica às teorias naturalistas, Badinter (1989) faz um alerta
acerca da tendência em confundir-se determinismo social e imperativo
biológico. De maneira audaciosa, defende a ampla predominância dos
conteúdos inconscientes da mulher sobre os seus processos hormonais,
compreendendo aqueles como uma das formas de exprimir sua liberdade.
Parafraseando a autora, “o desejo de ter um filho é complexo, difícil de
precisar e de isolar de toda uma rede de fatores psicológicos e sociais.”
Há aqui uma contraposição entre a ideia de “natureza feminina” e a
consideração de uma multiplicidade de experiências femininas ainda que
submetida aos valores sociais de sua época.
Badinter nos propõe abrir os olhos para as “perturbações que contradizem
as normas” buscando com isto uma melhor compreensão da maternidade
através da conscientização das contingências sociais e psicológicas em
detrimento de princípios advindos do determinismo natural.
1.1 - A Controvérsia do conceito de vida
Conforme sublinham Cavalcante & Buglione (2008), a ilegalidade da
prática do aborto no Brasil fundamenta-se nos ideais de supremacia da
vida e na vida humana em que esta é tida como direito absoluto com
início na concepção. Na perspectiva dos referidos autores, os argumentos
utilizados e defendidos nos debates públicos que sustentam a
criminalização do aborto tem seu alicerce em um determinado paradigma
de concepção sobre a vida humana e a partir da imposição deste sobre a
coletividade. Nesta lógica, ocorre um desrespeito à diversidade de
universal e necessária à mulher. Segundo Schultz & Schultz, o determinismo é a crença de que
todo ato é determinado por eventos passados. Assim, o princípio do determinismo influenciou
correntes de pensamento da psicologia resultando no pressuposto de que o comportamento
humano seria determinado, sendo o resultado das nossas ações influenciado pelas experiências
passadas. (SCHULTZ, D. P. & SCHULTZ, S. E. História da Psicologia moderna. Cultrix: São Paulo,
2001, 14ª edição)
pensamento e crença “em face de uma impossibilidade de consenso tanto
na ciência da Biologia quanto na Medicina e na ética” para demarcar o
início da vida humana. (Cavalcante & Buglione, 2008, p. 108)
É controverso o debate acerca dos limites do Estado no que concerne à
proteção do processo de desenvolvimento da vida humana e as restrições
impostas à autonomia e dignidade das mulheres. Consultando a
legislação vigente no Brasil, observa-se que o art. 2º do Código Civil de
2002 define que a personalidade civil começa com o nascimento. A lei
também resguarda desde a concepção, os direitos do nascituro. No
entanto, a efetivação destes direitos carece do nascimento com vida
conforme o parágrafo 3º do art. 1.800.
Desta forma, o nascituro tem garantidos os seus direitos assim como
também os possui a mulher grávida. A vida do nascituro está penalmente
protegida a partir do momento em que se dá a chamada nidação, que
acontece mais ou menos no décimo quarto dia após a fecundação. Até
então, não existe vida a ser juridicamente protegida.
Percebemos, portanto que a perspectiva de defesa do feto tem respaldo
nas análises legais a partir de uma definição de vida em termos biológicos
e abstratos. Evidencia-se uma contraposição entre a vida da mulher e a
vida do feto, esvaziando-se com isto o papel da mulher na reprodução e
ignorando-se de seus direitos sobre o próprio corpo. (ALDANA, 2008)
Estudos apontam para a influência do discurso religioso que identifica a
“defesa da vida” com o momento da fertilização do óvulo pelo
espermatozoide, buscando ainda amparo na genética para concepção
absoluta e intangível do feto. Com isto, ocorre uma invocação da entrada
do Estado na defesa da vida do nascituro em detrimento da liberdade e
diversidade de credo religioso ou mesmo ausência deste. Segundo
Cavalcante & Buglione (2008):
O fato é que o único aporte possível e não arbitrário, logo
de respeito à diversidade de pensamento e crença, para
demarcar o início da vida humana, em face de uma
impossibilidade de consenso tanto na ciência da Biologia
quanto na Medicina e na ética, é falar em uma regressão
infinita, em uma vida que começou a milhares de anos.
Nessa perspectiva, o feto é apenas um estágio de um
processo evolutivo da vida humana, e uma potencialidade
de vir a ser. Pensá-lo como sujeito de direito e com
direitos que devem ser preservados à revelia da
autonomia das mulheres á admitir uma única concepção
moral válida. (CAVALCANTE & BUGLIONE, 2008, p.
108)
Definir o início da vida reporta à busca de uma certeza inexistente. Desta
maneira, afirmar que a vida humana começa na concepção implica na
imposição de determinada crença ou concepção moral. O conceito “vida”
é carregado de subjetividade e não guarda valor absoluto do ponto vista
científico e nem mesmo religioso, conforme indicam cientistas e teólogos.
Ainda segundo tais autores, do ponto de vista católico, por exemplo, a
ideia de concepção está atrelada a uma extensa e controversa discussão
teológica sobre o momento em que a alma se instala no corpo.
A despeito de um consenso e unificação do conceito de vida, há que se
buscar a
garantia
da
liberdade,
da
imparcialidade
e
do
igual
reconhecimento dos interesses e crenças, evitando-se com isto a
imposição de um ou outro interesse em detrimento das deliberações
sociais. Consolidar o caráter laico do Estado consiste antes de tudo na
substituição da verdade religiosa pelos direitos fundamentais, tendo os
últimos como parâmetro de organização social.
1.2 - Panorama histórico da discussão política sobre o aborto no
Brasil
Conforme referencia Bartilotti (2002), a prática do aborto no Brasil é
prevista como criminosa desde o final do século XIX a partir do Código
Criminal do Império datado de 1830. Segundo a autora, o aborto é aludido
neste aparato legal no capítulo referente aos crimes contra a segurança
das pessoas e das vidas. Desta forma, o aborto realizado pela própria
gestante era passível de punição. O tema reaparece com reformulações
no Código Criminal da República de 1890, onde a punição apenas estava
previsto em casos em que era praticado por terceiros e dele resultasse a
morte da mulher. No caso de autoindução do aborto em benefício da
própria honra era concedida redução da pena.
Em conformidade com Bartilotti, Domingues (2008),assinala que as
normas legais envolvendo a questão do aborto vigoram expressamente
no Brasil desde a promulgação do Código Penal de 1890. No entanto,
ressalta o autor, o repúdio moral à prática do aborto acontecia antes da
referida data. Todavia, até então não existia consenso acerca da
existência do crime propriamente dito. Por conseguinte, na edição do
Código Penal Brasileiro de 1940, período ditatorial do Estado Novo, fica
estabelecida a distinção entre o crime do aborto e o homicídio e que
permanece em vigor nos dias atuais.
Desta forma, a interrupção voluntária da gravidez encontra-se tipificada
no Código Penal Brasileiro e inserida no “Título I – Dos crimes contra a
pessoa, Capítulo I - Dos crimes contra a vida”. Este diploma legal prevê a
punição com pena de detenção de um a três anos para a mulher que
“provocar aborto em sim mesma ou consentir que outrem lho provoque”
(art.124, CP), com pena de reclusão de três a dez anos quem “provocar
aborto, sem consentimento da gestante” (art.125, CP) e pena de reclusão
de um a quatro anos para quem “provocar aborto com o consentimento da
gestante” (art. 126, CP). A legislação penal brasileira só autoriza a prática
do aborto em casos de estupro ou nos casos que não há outro meio para
salvar a vida da mãe. O artigo 128 dispõe expressamente que não se
punirá o aborto praticado por médico “se não houver outro meio de salvar
a vida da gestante” (art. 128, I, CP) ou “se a gravidez resulta de estupro e
o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz,
de seu representante legal” (art. 128, II, CP). Segundo Domingues (2008)
o primeiro caso de aborto permitido pelo artigo 128 é denominado “aborto
necessário ou terapêutico”, enquanto o segundo, “aborto sentimental”.
O “aborto necessário” tem por característica o iminente risco de morte da
gestante associado à inexistência de qualquer outro meio que possibilite
salvar sua vida. Domingues (2008) salienta uma tendência à diminuição
de casos frente ao crescente avanço da ciência biomédica que oferece
mais alternativas que compatibilizem a gestação e a vida da mulher. Já a
hipótese do “aborto sentimental” prevê o aborto em caso de estupro e
fundamenta-se no direito à honra, à integridade física e psíquica da
mulher e à segurança social, posto que estupro é também previsto como
delito.
Temos assim, uma legislação editada no século passado, marcada por
ideais machistas e patriarcais característicos da época (SARMENTO,
2012). A despeito do contexto sociopolítico absolutamente diverso em
relação ao período de edição de tal norma - em que se evidencia o
crescente o reconhecimento da igualdade de gênero e a mudança de
paradigma acerca da sexualidade feminina - não há alterações relevantes
no tocante às normas legais que regem a questão do aborto no Brasil.
Dentro desta ótica, Rocha (2006) contextualiza em seu estudo, a
discussão política sobre o aborto nas esferas do legislativo, judiciário,
executivo além do âmbito da sociedade civil no processo histórico do
país, dividindo-o em períodos. Seu estudo baseou-se em pesquisa da
legislação pertinente, documentos do governo e da sociedade civil (mídia
escrita) além de literatura especializada. A partir destes instrumentos a
autora tece uma análise referente às conquistas e retrocessos das
decisões políticas nas esferas da sociedade e do Estado acerca do
aborto.
Neste estudo, a autora delineia um panorama da discussão sobre o
aborto dividindo-o em dois períodos da história política do país: a do
Estado autoritário, de 1964 a 1985, e a do Estado democrático, a partir de
1985 até os dias atuais. Antes deste período, em especial no período
ditatorial do Estado Novo, a divulgação e a prática do aborto eram
punidas por diferentes instrumentos legais.
Segundo Rocha (2006), o primeiro período, referente ao governo
autoritário, subdivide-se em dois momentos específicos, sendo que o
primeiro abrange os anos de 1964 a 1979. Neste período, as discussões
sobre aborto eram escassas. Em 1969 houve a decretação de novo
Código Penal que mantinha a incriminação do aborto, mas alterava as
respectivas punições. No legislativo, treze projetos de lei foram
apresentados, no entanto, a questão do aborto não figurava o centro do
debate. Rocha (2006) ressalta quatro projetos pioneiros neste período:
um em relação à descriminalização do aborto e outros três referentes à
ampliação das possibilidades da prática do abortamento. No âmbito da
sociedade civil, a discussão sobre o tema ainda era bastante restrita.
Ainda segunda aquela autora, no período correspondente à fase da
abertura política – 1979 até 1985 – não há registros de nenhuma medida
específica na esfera do Executivo relacionada ao aborto. Com exceção de
algumas breves referências acerca da questão na formulação do
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM)2 que
apresentou um diagnóstico sobre a saúde da população feminina. O
PAISM abarcava políticas de planejamento familiar e controle de
natalidade no país.
No Legislativo, foram apresentadas sete propostas: cinco ligadas
diretamente ao aborto e duas nas quais o tema aparecia vinculado a
projetos de lei sobre anticoncepção. Já no âmbito da sociedade civil a
discussão sobre a questão estava menos restrita, com destaque para a
atuação
pública
do
movimento
feminista.
Configurava-se
um
posicionamento político por parte deste movimento, fundamentado no
princípio do direito individual.
2
Segundo Costa (1999), “o PAISM constitui-se de um conjunto de diretrizes e princípios
destinados a orientar toda a assistência oferecida às mulheres das distintas faixas
etárias, etnias ou classes sociais, nas suas necessidades epidemiologicamente
detectáveis – incluindo as demandas específicas do processo reprodutivo. Compreende,
ainda, todo o conjunto de patologias e situações que envolvam o controle do risco à
saúde e ao bem-estar da população feminina.”
Este período ainda foi marcado por publicações e eventos relacionados
ao tema. Destaque para encontro de cunho nacional realizado no Rio de
Janeiro, em 1983, sobre saúde, sexualidade, contracepção e aborto que
foi
um
marco
no
debate
público
da
questão
e
contou
com
representatividade marcante de mulheres de todo o país. A partir daí
começava-se a falar sobre políticas públicas nessa área.
No período citado pela autora como o da “transição demográfica” que
corresponde ao fim da ditadura militar ocorrida entre os anos de 1985 e
1989, ocorrem diferentes momentos políticos com avanços tanto nas
discussões quanto nas decisões sobre a questão do aborto se
comparadas com
a etapa
do Estado Autoritário. Ocorreu
uma
intensificação da atuação da sociedade civil com novos direitos
assegurados na Constituição de 1988. O debate sobre o aborto passou a
refletir enfrentamentos mais acentuados entre feministas e as entidades
religiosas com repercussões no Congresso Nacional.
Na fase entre 1985 e 1989, iniciou-se uma transformação na configuração
do Estado brasileiro e intensificação do debate sobre o aborto. O
enfrentamento entre o movimento feminista e as entidades religiosas
tornou-se mais acirrado. No âmbito do Legislativo, há destaque neste
período para a iniciativa de representantes da Igreja Católica na criação
de projetos de lei que proibiam o aborto em todas as circunstâncias,
obtendo o apoio de parlamentares evangélicos.
Entre
1986
e
1988
foram
apresentados
quatro
projetos
que
representavam uma visão restritiva do aborto assim como uma reação
conservadora em oposição aos dois projetos mais liberais apresentados
no período anterior. Também foi marcante a participação direta e indireta
do movimento feminista assim como de representantes da Igreja Católica
na preparação da Constituinte.
A partir de 1989 iniciou-se uma nova fase política inaugurada pelo
conjunto de transformações aprovadas na Constituinte. Ocorreram
significativas mudanças no rumo das discussões e decisões acerca da
questão do aborto. Uma importante referência deste período foi a
participação do Brasil na Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento no Cairo (1994), na Conferência Mundial sobre a Mulher
em Pequim (1995)3. Na esfera do executivo, há destaque para a
estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) com repercussões na
ampliação de serviços de saúde que atendem o aborto legal,
principalmente entre os anos de 1988 e 2005.
Em 1999 ocorre a Conferência Nacional de Direitos Humanos onde se
propôs a ampliação dos permissivos para a prática do aborto legal, em
consonância
com
os
compromissos
assumidos
pelo
Estado
na
Conferência realizada em Pequim. Em 2005, foi organizada a I
Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres de onde partiu a
decisão acerca da criação de uma Comissão Tripartite4 - com
representação dos Poderes Executivo e Legislativo, além da Sociedade
Civil - para discussão, elaboração e encaminhamento de proposta de
revisão da legislação referente à interrupção voluntária da gravidez
vigente. A comissão apresentou um anteprojeto à Câmara de lei que
autorizaria o aborto até 12 semanas de gestação e ampliava situações
permissivas em relação às previstas na legislação em vigor. O projeto foi
arquivado em virtude do término da legislatura conforme os termos do
3
Conferências promovidas pela ONU na década de 90 que tiveram como alvo a
propagação dos conceitos de saúde reprodutiva e de Direitos Sexuais e Reprodutivos,
inclusive acerca do controle da própria fecundidade (Carvalho et al). A realização das
conferências são o resultado da luta do movimento feminista e simbolizam ainda
compromissos assumidos por várias nações a partir da consolidação dos direitos
reprodutivos no plano internacional. Em tais plataformas foi recomendado o tratamento
da questão do aborto ilegal de forma prioritária entendendo-o como um problema de
saúde pública e não pela ótica criminal. Em decorrência das Conferências emergiram
documentos que recomendavam a oferta de programas de saúde sexual e reprodutiva
aos homens e mulheres de forma a amparar os avanços conceituais propostos. (COSTA,
1999; SARMENTO, 2012; CARVALHO et al, 2012).
4
Sarmento salienta em seu estudo que a instituição da Comissão Tripartide pelo Governo
brasileiro estava “destinada a repensar o posicionamento do nosso Estado sobre o
aborto, visando eventual elaboração de nova legislação sobre a matéria”. Da formação
desta Comissão foi elaborada uma proposta de projeto de lei que buscava garantir o
direito de decisão das mulheres sobre a maternidade, e ainda estabelecer prazo de
ocorrência do procedimento da interrupção voluntária da gravidez, bem como fortalecer o
planejamento reprodutivo. De acordo com CAVALCANTE & BUGLIONE, o projeto foi
engavetado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados,
“devido às pressões de hierarquias religiosas e seus signatários leigos”. (CAVALCANTE
& BUGLIONE, 2008, p. 131).
artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados no dia
31/01/2011. 5
Após a aprovação da Constituinte, seis projetos de lei foram apresentados
e em sua maioria vislumbravam a ampliação dos permissivos legais ou a
descriminalização do aborto. Foram apresentadas várias proposições
favoráveis à permissão da prática do aborto, acentuando com isto a
reação conservadora.
No âmbito do Legislativo, observou-se neste período um aumento da
participação de atores políticos e sociais em busca de mudanças
liberalizantes na legislação, assim como intensificou a reação contrária e
de retrocesso em relação à lei. Apesar disto, nenhuma proposta
substantiva foi aprovada.
Ao longo da trajetória política de discussão do aborto, ganhou destaque a
atuação de dois movimentos sociais: o feminista e de ativistas religiosos,
em especial da Igreja Católica, que representam visões divergentes de
mundo, de relações de gênero, de sexualidade e reprodução. Ainda tenha
ocorrido avanços proporcionados pela redemocratização do país com
maior visibilidade do tema e ampliação do debate, as modificações na
legislação não foram significativas.
Rocha (2006) ressalta a correlação de forças no parlamento que delineia
uma queda de braço entre representantes do movimento feminista e
ativistas religiosos gerando uma tensão que paralisa decisões, impedindo
avanços na legislação. Esta colocação do autor vem de encontro às de
Scavone (2008), que ressalta que o êxito das negociações propiciada
pela redemocratização foram mais relevantes em nível político do que
social, já que não alcançou uma sensibilização de camadas mais amplas
da população.
5
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=16299,
acesso em 03/06/12
O debate na literatura aponta que os argumentos religiosos contra a
legalização do aborto são essencialmente de ordem ética e moral, de
defesa dos direitos do feto, considerando sua prática um crime contra a
vida. São enfatizadas proposições baseadas na “lei natural”, na verdade
da fé católica e/ou religiosa que professam que a vida é dom de Deus.
(ROCHA, 2006; DOMINGUES, 2008; ALDANA, 2008; SCAVONE, 2008)
Na percepção de Aldana (2008), o movimento feminista propõe a defesa
de questões de direitos reprodutivos, enfatizando, sobretudo, o grau de
domínio que a mulher pode ter sobre o seu próprio corpo. Neste contexto,
o aborto é considerado como um último recurso diante de uma gravidez
indesejada. E como direito, reivindicam a possibilidade de realizar a
interrupção voluntária da gravidez em condições humanas e seguras
assegurando a saúde das mulheres.
Contudo, observa-se que tratar de assuntos relacionados à sexualidade e
reprodução, como o aborto, há uma visível influência de preceitos morais
e religiosos que impregnam a vida política-social do país. Em face à
situação descrita, Cavalcante & Buglione (2008) demonstram que esta
realidade reflete a dificuldade de “consolidação da laicidade do Estado,
numa perspectiva pluralista e democrática, e as conquistas de direitos das
mulheres” (p. 111). Além disso, há o cerceamento da liberdade de crença
e de pensamento a partir da hegemonia da moral cristã e da crença
religiosa dominante fragilizando com isto a democracia brasileira.
O debate sobre o aborto no âmbito político permanece na agenda do
Congresso até os dias atuais. Muito recentemente, o Supremo Tribunal
Federal (STF) decidiu6, com ampla maioria, pelo direito ao aborto de fetos
encefálicos o que gerou grande descontentamento entre entidades
religiosas, acirrando também a polêmica em torno do tema na sociedade
civil.
6
Decisão proferida em 11/04/2012 na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental) de n° 54 proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Saúde. Disponível em www.stf.jus.br.
CAPÍTULO 2: A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS ACERCA DOS DIREITOS REPRODUTIVOS
2.1 - O impacto da ilegalidade do aborto na saúde e na vida da
mulher
Segundo estimativas publicadas em estudo da Organização Mundial de
Saúde em 2012 e citado por LEAL (2012), o número de mulheres que se
submetem
a
abortos
inseguros
anualmente
no
mundo
é
de
aproximadamente 22 milhões. Grande parte deste montante acontece em
países em desenvolvimento. O referido estudo traz ainda evidências de
que quanto menos restritiva for a legislação em um país no que tange ao
aborto, menor será sua prevalência. Da mesma forma, quanto maiores
forem as restrições legais existentes, maior será o percentual de abortos
provocados e realizados em condições inseguras.
SILVA (1993) também constata uma inversão no panorama mundial da
liberação do aborto com significativo incremento nas legislações
permissivas em detrimento das restritivas no período entre 1971 e 1982.
Sendo assim, hoje em dia vigora na grande maioria das nações uma
legislação permissiva em relação a pratica do aborto.
Essa situação reflete a mesma encontrada por COSTA (1999) ao salientar
a tendência observada nas últimas décadas na maioria dos países do
mundo em liberalizar as leis do aborto. Em contrapartida, a situação na
América Latina seria exceção segundo SILVA (1993), já que foram
poucos os países alteraram as leis implementadas.
Confirmando as proposições de SILVA (1993) e COSTA (1999),
SARMENTO (2012) destaca que desde a década de 60 do século
passado, se assiste um fenômeno global de liberalização da legislação
sobre o aborto. Neste contexto países como Estados Unidos, Alemanha,
França, Inglaterra, Itália, Espanha, Canadá, dentre tantos outros
promoveram significativas alterações em suas proposições jurídicas,
legalizando
a
interrupção
voluntária
da
gravidez,
balizada
por
determinados prazos ou indicações específicas. O autor salienta que tal
alteração da ordem legal conferida ao aborto constitui também o
cumprimento
de
compromissos
internacionais
estabelecidos
nas
Conferências promovidas pela ONU em 1994 e 1995.
Em seu trabalho, SARMENTO (2012) traça um breve panorama dos
embates jurisdicionais relevantes sobre a questão do aborto que
simplificaremos à título de ilustração. De acordo com o autor, nos Estados
Unidos, a questão do aborto não está diretamente regulada pela
Constituição norte-americana. No entanto, a Suprema Corte declarou a
inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Texas que criminalizava a
prática do aborto, definindo os parâmetros que os Estados deveriam
seguir ao legislarem sobre o tema.
Na França foi aprovada, em 1975, lei que permitia a realização do aborto
por médico nas dez primeiras semanas de gestação, a pedido da
gestante, quando alegue que a gravidez lhe cause angústia ou, em
qualquer época, quando haja risco à sua vida ou saúde. Em 2001 foi
promulgada nova lei que ampliou o prazo geral de possibilidade de
interrupção de gravidez de dez para doze semanas e tornou ainda
facultativa a consulta prévia em instituições de aconselhamento e
informação, que antes era obrigatória.
Já legislação italiana regulamentou detalhadamente em 1978 o aborto,
conferindo à gestante o direito de solicitar sua realização nos primeiros
noventa dias de gravidez nos casos de: risco à sua saúde física ou
psíquica; comprometimento das suas condições econômicas, sociais ou
familiares; em razão das circunstâncias em que ocorreu a concepção; ou
em casos de má formação fetal. Também autorizou a realização do aborto
em qualquer tempo quando a gravidez ou o parto representem grave risco
de vida para a gestante ou se for verificado processos patológicos,
anomalias fetais que gerem perigo à saúde física ou psíquica da mulher.
No caso da Alemanha, foi editada lei em 1974 descriminalizando o aborto
praticado por médico, a pedido da mulher, nas primeiras doze semanas
de gestação. Em 1976 ocorreu um retrocesso na legislação proibindo o
aborto em regra, contemplando exceções ligadas ao risco à saúde e vida
da mãe e casos de patologia fetal, violação ou incesto e razões sociais e
econômicas. Em 1992 foi promulgada nova lei que permitia a prática do
aborto nos primeiros três meses de gravidez, desde que a gestante se
submetesse a um serviço de aconselhamento. Em 1995, nova lei foi
editada descriminalizando as interrupções de gravidez ocorridas nas
primeiras doze semanas, estabelecendo procedimento pelo qual a mulher
deve recorrer a um serviço de aconselhamento que tentará convencê-la a
levar a termo a gravidez.
Em Portugal ocorreu, em 1998, referendo que versava sobre a
despenalização geral do abortamento, por vontade da gestante, realizado
nas primeiras semanas dez semanas de gestação em estabelecimento
oficial de saúde. No entanto, tal proposta foi derrotada apesar de um
elevadíssimo índice de abstenção. Atualmente o aborto só é legal nesta
nação em casos específicos, de risco de vida ou saúde materna, má
formação ou doença incurável do feto e gravidez decorrente de violência
sexual.
Em 1985, foi aprovado na Espanha projeto de lei que permitia às
gestantes a realização do aborto, por médico, em casos de risco grave à
saúde física ou psíquica em qualquer momento; em caso de gestação
decorrente de estupro, nas primeiras 12 semanas de gravidez; e em
hipótese de má formação fetal nas primeiras 22 semanas. Prevalece na
Espanha um conceito amplo de risco à saúde psíquica da mulher.
Por fim, SARMENTO (2012) cita o caso do Canadá onde a Suprema
Corte proferiu em 1988 o direito fundamental das mulheres à realização
da interrupção voluntária de gravidez.
O autor ressalta que nos países em que o aborto foi legalizado, não se
constatou qualquer aumento significativo de tal prática, averiguando que
“os efeitos dissuasórios da legislação repressiva são mínimos: quase
nenhuma mulher deixa de praticar o aborto voluntário em razão de
proibição legal”. Outros autores corroboram com esta ideia e destacam
que a legalização do aborto não levou, segundo estudos já realizados, a
um aumento da demanda pelo procedimento, mas sim a uma diminuição
da morbi-mortalidade, assim como dos gastos públicos. (SANTIAGO,
2008)
SARMENTO (2012) ainda acrescenta que a taxa de condenação criminal
é absolutamente desprezível e conclui que, do ponto de vista prático, a
criminalização do aborto tem produzido como principal consequência a
exposição da saúde e da vida das mulheres, sobretudo as mais pobres, a
riscos gravíssimos. Riscos estes que poderiam ser evitados através da
implementação de políticas públicas mais eficientes.
Ainda na percepção de SARMENTO (2012), na discussão contemporânea
sobre o aborto não é admissível negligenciar o direito à autonomia
reprodutiva da mulher assim como o reconhecimento de igualdade de
gênero e a mudança de paradigma em relação à sexualidade feminina,
que supera ideais machistas e patriarcais. Além disso, a legislação penal
vigente impõe como consequência inexorável a exposição a riscos graves
e desnecessários da vida das mulheres. Neste contexto, SARMENTO
(2012) assevera que a revisão da legislação sobre o aborto torna-se um
verdadeiro imperativo constitucional.
Esta colocação do autor vem de encontro à proposição referenciada por
LEAL (2012), quando afirma que ocorre no Brasil uma invisibilidade
crônica do aborto ilegal assim como de suas implicações para a saúde da
mulher. Esta autora ainda ressalta a urgência de políticas públicas no
sentido de buscar soluções para a questão. Nesse âmbito, reforça que o
aborto inseguro reflete um problema antigo de saúde pública que
permanece sem soluções, a despeito das profundas transformações e do
processo de consolidação da democracia nas últimas duas décadas no
país.
Analisando as definições fornecidas é possível inferir que o caráter de
ilegalidade da prática do aborto favorece a sua clandestinidade, o que
pode ser constatado pelo número elevado, apesar de subnotificado, de
abortos provocados e realizados em condições inseguras.
No que se refere ao abortamento inseguro, SANTIAGO (2008) além de
citar como um problema de saúde pública, salienta que os dados sugerem
uma pandemia de importância máxima na saúde da mulher. Este autor
cita estimativas de que 68.000 mulheres morrem por ano em todo o
mundo em decorrência do aborto inseguro, o que equivale a oito mil
mulheres por hora. Nesse sentido, conclui que o aborto inseguro
permanece como um dos grandes desafios globais mais negligenciados
da saúde pública. O autor vai além ao apontar a apatia e desdenho para
com a saúde das mulheres como causas subjacentes dessa pandemia
global.
2.2 - Aspectos psicossociais do aborto: dificuldades e sutilezas de
seu estudo
De maneira geral, pode-se dizer que uma das escolhas mais importantes
na vida da mulher diz respeito a ter ou não um filho tendo em vista que
pode modificar radicalmente os projetos de vida da mulher. Em nossa
cultura, o exercício da maternidade é ainda permeado de tabus e
expectativa, muitas vezes associados a funções ou papéis sociais
cristalizados e determinados pelas relações de gênero pré-estabelecidas.
Sendo assim, compreender os motivos que levam uma mulher a cogitar a
realização do aborto refletem frequentemente sua situação psicossocial
em consonância com o sistema de valores e costumes da sociedade em
que vive. Esse aspecto foi observado no estudo de COSTA (1999) ao
afirmar que tais motivos têm sido objeto de muito interesse e
especulação. Segundo a autora, pesquisas já realizadas enfatizam desde
os fatores individuais – estado emocional ou características da
personalidade – até variantes situacionais e sociais.
BARTILOTTI (2002) sublinha que “o abortamento é uma situação de
grande conflito, o qual não se faz sem deixar marcas e repercussões
no equilíbrio emocional”. Na perspectiva desta autora, a gravidez
traduz uma experiência que pode ser motivo de desespero pelo fato de
que estão relacionados a um conjunto de fatores econômicos e sociais
que, muitas vezes acabam gerando conflitos.
A realização de um aborto implica num contraste de sentimentos que
oscilam entre ‘pensar em abortar’ e ‘culpar-se por tal decisão’ que
indica o quão profundamente sensibiliza a mulher e gera sofrimento
físico
e
emocional
(OSIS
et
al,
1996).
Os
sentimentos
de
arrependimento e remorso também são frequentemente encontrados
como reações emocionais em consequência do aborto. (COSTA et al,
1995)
A decisão pela interrupção de uma gestação implica frequentemente na
necessidade de enfrentar o preconceito da própria família e de pessoas
de sua rede de apoio, assim como da sociedade. Contribuem para a
exasperação da dificuldade desta decisão as interferências da
educação cristã hegemônica em nosso país, independentemente da
vertente religiosa a que se pertença. (VIANA, 2008).
Levando-se em consideração o contexto social, podemos inferir ainda
que alguns processos gestacionais são considerados indesejáveis. Isto
acontece, por exemplo, no caso das mulheres solteiras, das gestações
resultantes de um estupro, incesto ou adultério e das mulheres que já
tem filhos adultos.
Sob esta perspectiva, a proposta analítica de LEAL (2012) versa sobre
a existência de um imperativo moral no nível das relações sociais em
que, diante de uma gravidez, deve-se assumir o filho, ou seja, há uma
premissa moral que indica a proibição do aborto. No entanto, na
perspectiva desta autora, tal premissa é, na prática, relativizada por
situações concretas que coloca o aborto em níveis toleráveis.
Neste sentido, a autora identifica, para fins de análise, a prática do
aborto a partir de três categorias: os abortos toleráveis, os condenáveis
e os recomendáveis. Nestas categorias, o que está “sub judice” não é a
vida ou morte do embrião, mas a postura da mãe em assumir ou não a
gravidez. Aqui a legitimidade social é dada pela capacidade aparente
de desempenhar o papel de mãe e não pelo ato abortivo em si.
Analisando os diversos níveis de legitimidade das práticas abortivas,
LEAL (2012) faz algumas distinções que facilitam a compreensão dos
arcabouços conceituais por ela apresentados. Os abortos provocados
em momentos liminares (onde a condição pública de “grávida” ainda
não foi estabelecida), e praticados a partir de uma interrupção “natural”
ou “não cirúrgica” podem ser pensados como diferencialmente
legítimos em face daqueles praticados de forma autoinfligida, ou seja,
com utilização de sonda ou chás. Na primeira situação, não terá havido
sequer a concepção, mas apenas uma “desordem” biológica.
Já os abortos cometidos por um não “especialista”, ou seja, praticados
por uma parteira ou aborteira são condenáveis, possivelmente pela
associação a uma condição implícita de reconhecimento público da
gravidez da mulher.
Conforme disserta LEAL (2012), enquanto a primeira situação indica
uma alteração ambígua e indefinida no corpo da mulher (às vezes até
mesmo entendida como a menstruação que não desce), a segunda
implica um caráter mutilador onde a conotação de gravidez do estado
corporal está nítida. Em face dessa contingência, “estar grávida” ou
“assumir um filho” reflete um processo de negociação social a partir da
realidade da mulher onde recursos abortivos podem servir para corrigir
uma desordem biológica, estrategicamente não reconhecida como
gravidez.
Outro aspecto apontado por LEAL (2012) em seu estudo, diz respeito a
uma escala valorativa em relação ao aborto, sendo esta prática
considerada mais grave quando praticada por mulheres que já tem
filhos. Aqui o imperativo moral seria: “quem cria um, cria outro”, ou
seja, se a mulher apresentou condições de “criar” um filho, não haveria
impedimento social e pessoal de fazê-lo com outro. Assim, as provas
de legitimidade e consecução do projeto reprodutivo já realizado pela
mulher agravaria um aborto. Em face à situação descrita, a autora
pondera:
“Há
uma
reconhecimento
de
uma
maior
responsabilização do ato da concepção ou do controle
sobre a reprodução para as mulheres que já passaram
pelo aprendizado da maternidade. O fato de já ter um
filho indica um estado irreversível de identidade da
mulher, com fortes conotações morais, o que agravaria
um aborto.”7
A partir desta reflexão, a autora atenta para a legitimação da gravidez
biológica através do reconhecimento da gravidez social, avalizadas por
uma série de condições morais e materiais que respaldam a decisão do
“assumir”. Nesta lógica há uma divisão analítica da identificação da
gravidez a partir de indicadores biológicos: sinais de alteração
corporais, interrupção do fluxo menstrual e, por outro lado de
indicadores sociais, relacionados aos aspectos de identidade social; se
está casada ou não, se o parceiro vai assumir, o apoio da família, as
condições financeiras e morais de criar a criança, o estágio do ciclo de
reprodução da mulher entre outros. Assim, o julgamento moral e a
criminalização do aborto “não dependeria de um fundamento biológico,
mas antes das expectativas coletivas e dos acordos traçados em torno
da gravidez”. Só após o reconhecimento público da gravidez através
das
negociações
sociais
e
avaliações
estratégicas
há
o
reconhecimento do feto e, por conseguinte, de uma “criança que não
tem culpa”. Ocorre então uma valorização cultural, positiva ou negativa,
do processo gestacional que traz implicações para o julgamento social
do aborto.
7
LEAL, O. F. “Levante a mão aqui quem nunca tirou criança!”: Revisitando dados
etnográficos sobre a disseminação de práticas abortivas em populações de baixa-renda
no Brasil. Revista Ciência e Saúde Coletiva, Nº 0042/2012. Disponível em <http://
www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/artigoint.php?id_artigo=9446>acesso
em
15/03/12
Por conseguinte, LEAL (2012) conclui que o contexto social ampliado é
fator determinante no modo com que se reconhece a existência ou não
de uma gravidez. E acrescenta que “em um universo em que a
maternidade é tão valorizada, a gravidez se apresenta como um
momento crucial do ponto de vista sociológico”.
Albuquerque (2008), por sua vez, a partir de uma análise histórica
chama atenção para uma divisão social dos papeis da mulher e do
homem no que tange ao exercício da paternidade e da maternidade.
Segundo esta autora, o patriarcalismo e a estrutura hierárquica entre
os membros da família eram características marcantes até o início do
século XX. Assim, o homem exercia o papel de provedor e chefe da
família, já a mulher era responsável pelo cuidado e zelo com a
educação dos filhos e, portanto, “era ausente da cena pública e
excluída da cidadania jurídica” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 140). Neste
contexto, a procriação era uma das funções essenciais do casamento e
também a única forma legítima da prática de relações sexuais. A partir
da codificação deste modelo familiar qualquer hipótese que fora deste
padrão significaria um atentado contra a moral social estabelecida.
O contexto social impunha um rígido comportamento de
conduta à mulher e sua inobservância gerava uma
enorme pressão social, gestar um filho na condição de
solteira já seria uma desonra e mais grave ainda se fosse
fruto de uma relação extramatrimonial. Fatos que
tornavam a mulher indigna da convivência familiar e alvo
de discriminação e vergonha no meio social.
(ALBUQUERQUE, 2008, p. 141).
Ainda no que concerne aos aspectos psicossociais do aborto, SILVA
(1993) chama atenção para achados de sua pesquisa que apontam a
relação entre a incidência do aborto provocado e o estado conjugal das
mulheres. Na percepção desta autora, as mulheres casadas e as
solteiras,
em
contraste
com
as
viúvas,
divorciadas,
unidas
consensualmente são as que recorrem menos intensamente a essa
prática. Nessa ótica, as gestações das mulheres casadas são as que
com menor frequência terminam em aborto, enquanto as das solteiras
têm esse fim com a maior frequência.
Outro ponto observado pela referida autora em relação ao aborto
provocado diz respeito ao diferencial em função do número prévio de
filhos. Em seu estudo foi possível observar que entre as mulheres com
nascidos vivos, à medida que se eleva o número de partos, diminui a
ocorrência de aborto. Para as mulheres sem nascidos vivos constatouse
que
embora
engravidem
proporcionalmente
menos,
ao
engravidarem, utilizam o aborto provocado com maior frequência que
as mulheres com nascidos vivos.
Esta colocação do autor vem de encontro às informações expostas por
COSTA (1999) quando alega que a instabilidade da relação ou ainda a
falta de apoio emocional e financeiro por parte do companheiro em
relação à gravidez têm sido mencionados pelas mulheres como uma
das razões para abortar. A autora cita ainda uma análise multivariada
que revela a situação conjugal como o maior fator de risco
independente para aborto induzido que resultou em hospitalização.
Conforme as proposições desta autora, dados sugerem que as
mulheres que vivem sozinhas têm uma probabilidade cinco vezes
maior de viver um aborto induzido do que as casadas.
Tal constatação aproxima-se das inferências de SILVA (1993) ao
concluir que a união matrimonial estável – caso das mulheres casadas
e viúvas – favorece o prosseguimento da gestação, enquanto os
relacionamentos instáveis “revelam-se um fator de incremento à
ocorrência do aborto provocado”. Emergem aqui a discriminação e os
problemas sociais relacionados à gestação de mulheres não casadas.
Por conseguinte, estas mulheres parecem recorrer ao aborto como
uma maneira de se livrarem de uma gravidez inoportuna, discriminada
socialmente. Observa-se ainda uma escassa utilização de alternativas
contraceptivas para evitar uma gravidez indesejada, haja vista que um
número significativo de mulheres inicia sua vida reprodutiva com a
provocação de um aborto. Em síntese, SILVA (1993) demonstra que a
incorporação
provocado,
dos
está
métodos
contraceptivos,
estreitamente
relacionada
inclusive
com
o
os
aborto
valores
socioculturais das mulheres.
Igualmente importante para compreendermos o contexto social da
prática do aborto, diz respeito às relações de gênero. A este respeito,
SILVA (1993) sinaliza que a mulher sempre aparece como protagonista
da opção do aborto sem a devida responsabilização do marido ou
companheiro (permanente ou transitório), dos pais, da família, das
igrejas, da empresa, dos filhos, dos médicos. Neste contexto a
penalização, principalmente social, é exclusivamente voltada para a
mulher. Frequentemente a mulher aparece como uma criminosa, que,
isoladamente, decidiu cometer um delito.
Outro detalhe importante relativo ao contexto social do aborto, e que é
bem ressaltado por CARVALHO et al. (2012), é que a indução desta
prática é utilizada por mulheres pobres como uma forma de controlar
sua fertilidade, considerando-se a falta de conhecimento na obtenção
dos métodos de planejamento familiar, associados ainda à ampla
disponibilidade de drogas abortivas.
Segundo pesquisadores, a interrupção da gravidez costuma ser mais
comum entre mulheres de menor escolaridade, fato que pode estar
relacionado a outras características sociais das mulheres de baixo nível
educacional (DINIZ & MEDEIROS, 2010).
Ocorre que o aborto provocado tende a ser visto exclusivamente como
um problema médico, deixando em segundo plano os aspectos
psicológicos e sociais aplicados. Desta forma, a maioria dos estudos
realizados sobre o assunto é feita por meio do levantamento de
informações hospitalares e concentrando-se nos aspectos médicos. No
entender de COSTA et al (1995) o resultado desta visão médica da
questão é ausência de pesquisas sobre as circunstâncias sociais e
fatores emocionais que exerceriam influência sobre a decisão de
abortar. Também são escassos os estudos sobre o processo de
decisão de aborto ou das suas repercussões na saúde mental das
mulheres.
Partindo das considerações acima referidas é possível inferir que a
causa da maior parte dos abortos realizados no Brasil não é decorrente
da intercorrência médica, e se encontram associada a fatores de ordem
psicossocial (BARTILOTTI, 2002). Nesta perspectiva, é possível inferir
que os fatores emocionais e sociais representam peso significativo no
processo de decisão das mulheres para efetuar ou não ao aborto. Tais
aspectos apontam ainda para a necessidade de algumas reflexões
importantes para a compreensão da prática do aborto de forma mais
sistêmica e global.
Corroborando tal proposição, MENEZES & AQUINO (2009) destacam
que a investigação do aborto requer cuidados metodológicos
específicos, com implicações éticas no manejo do tema. Estas autoras
assinalam que a “maioria das pesquisas está concentrada em
populações específicas, sendo estas, em sua maioria, mulheres
admitidas em hospitais públicos com aborto incompleto”. Sendo assim,
apresentam um viés de seleção posto que se reporta à apenas uma
parcelas dos abortos, aqueles com complicações e que demandam
hospitalização.
Presume-se
que
as
particularidades
sociais
e
psicológicas em torno da questão do aborto implicam em dificuldades
no seu relato pelas mulheres, especialmente em contextos de
ilegalidade, como no Brasil.
A pesquisa em torno do tema também é dificultada pela ausência de
dados abrangentes e confiáveis sobre o assunto, conforme sinaliza
(OSIS et al., 1996). Nessa ótica, observou-se que as mulheres tendem
a omitir informação sobre a prática do aborto, além daquelas que não
reconhecem o uso de chá ou medicamentos como práticas abortivas.
Existe ainda certa resistência das mulheres em assumirem a indução
do aborto devido ao desconforto psíquico em abordar o tema. Assim,
“admitir ou não a prática do aborto está relacionado ao significado da
gravidez indesejada e da sua interrupção ou não no imaginário de cada
mulher”.
O sub-registro e a classificação errônea também são frequentes,
segundo COSTA (1999). Desta forma, é corriqueira a relutância dos
profissionais de saúde em registrar corretamente o evento em
prontuários hospitalares, por causa das sanções legais aplicáveis.
Sob ótica semelhante, SILVA (1993) assinala que as sutilezas da vida
emocional e afetiva das mulheres assim como as relações sociais,
culturais e morais em torno da questão são motivos que levam a
omissão de informações sobre a provocação do aborto. Salienta esta
autora que “o Brasil enquadra-se, seguramente, entre os países que
apresentam as estatísticas mais deficientes acerca da ocorrência do
aborto provocado”. Conclui que a omissão destas informações mostrase coerente com os padrões sócio-morais vigentes em nossa
sociedade.
Na visão de CARVALHO et al (2012), a situação de ilegalidade do
procedimento pode determinar a falta de confiabilidade dos dados
coletados. Na mesma perspectiva, LEAL (2012) conclui que dados
etnográficos “juntamente com questões relativas à ilegalidade do
aborto, permite levantar hipóteses sobre eventual subestimativa de
taxa de aborto no caso brasileiro”.
2.3 - O aborto como um direito: a urgência da formulação de novas
políticas públicas
O abortamento inseguro e clandestino é potencialmente danoso para a
saúde das mulheres e invocam a elaboração de políticas públicas que
levem em consideração as particularidades e sutilezas diretamente
relacionadas a tal situação. A magnitude da prática do aborto inseguro
na realidade brasileira e mundial também aponta a necessidade de
direcionar esforços na busca da compreensão do comportamento de
fecundidade das mulheres visando uma abordagem mais ampla de
saúde e dos direitos reprodutivos.
Ademais, a proteção ao direito constitucional à saúde da mulher, assim
como o direito à liberdade e privacidade, indica a urgente reforma da
legislação brasileira, visando a descriminalização do aborto e a
realização dos procedimentos de interrupção voluntária da gravidez
pelo Sistema Único de Saúde. Pode citar com mais
SARMENTO (2012) pontua que a criminalização do aborto, conforme
estabelecida na legislação brasileira, atinge duplamente o direito à
saúde das mulheres. Por um lado, ocorre a lesão aos direitos das
gestantes na medida em que são obrigadas a levar a termo gestações
que representam risco à sua saúde física ou psíquica, sendo que a
última não configura como uma hipótese de aborto autorizada pela
legislação. Além disso, ocorre uma lesão coletiva ao direito de saúde
das mulheres em idade fértil já que o principal efeito prático das
normas repressivas acarreta em milhares de gestantes, sobretudo as
mais pobres, que se submetem a procedimentos clandestinos.
Entretanto, embora esteja previsto no código penal o aborto como um
crime, é possível constatar a total ausência de dados relativos às
consequências previstas. Cumpre reconhecer que a tal delito não é
atribuída significativa importância pela sociedade nos dias atuais e,
desta forma, não há clamor público no sentido de reprimir a conduta
delitiva, conforme destaca DOMINGUES (2008). Assim sendo, a
ênfase dada pelo referido autor, é de que “não existe razão suficiente
para a manutenção de normas incriminadoras no ordenamento jurídico
que não cumprem o seu papel subsidiário de conformação de condutas
e repressão de desvios”.
Ressalta o mesmo autor que a conservação do aborto como crime
acirra a desigualdade existente entre homens e mulheres, dificultando
às últimas de acessar possibilidades e concorrer em condições
igualitárias no mercado de trabalho e nas relações sociais como um
todo. Neste ponto, cumpre enfatizar a questão dos direitos reprodutivos
como uma questão de democracia, uma questão de política. A matriz
desta ideia traz a tona o debate acerca das relações assimétricas de
gênero.
Conforme a perspectiva de SARMENTO (2012), o fato de a gestação
desenvolver-se no interior do corpo feminino tem particular relevância.
Neste sentido, o autor considera a imposição à gestante de que
mantenha uma gravidez contra a sua vontade uma intrusão intensa e
grave sobre seu próprio corpo. A proibição ao aborto viola ainda a
igualdade entre os gêneros, posto que subjuga as mulheres ao infligir
exclusivamente a elas o ônus decorrente e impactos desproporcionais.
Tal situação tende a perpetuar a assimetria de poder entre os gêneros,
marcante em nossa sociedade.
Neste contexto, a maternidade precisa ser concebida como uma
decisão livre e desejada e não uma obrigação social imposta à mulher.
Portanto, é imperativa a formulação de políticas públicas que garantam
à mulher decidir soberanamente se quer ou não ser mãe,
reconhecendo assim sua autonomia. Essas premissas encontram-se
em conformidade com as ideias apresentadas no “Manifesto da Frente
Nacional pelo fim da criminalização e pela legalização do aborto”,
datado de setembro de 2008, conforme trecho que transcrevemos a
seguir:
A maternidade deve ser uma decisão livre e desejada e
não uma obrigação das mulheres. Deve ser
compreendida como função social e, portanto, o Estado
deve prover todas as condições para que as mulheres
decidam soberanamente se querem ou não ser mães, e
quando querem. Para aquelas que desejam ser mães
devem ser asseguradas as condições econômicas e
sociais, através de políticas públicas universais que
garantam a assistência a gestação, parto e puerpério,
assim como os cuidados necessários ao desenvolvimento
pleno de uma criança: creche, escola, lazer, saúde. As
mulheres que desejam evitar gravidez devem ser
garantido o planejamento reprodutivo e as que
necessitam interromper uma gravidez deve ser
assegurado o atendimento ao aborto legal e seguro no
sistema público de saúde. (FLEISCHER, anexo 1, 2009,
p. 105)
Além da questão da busca pela igualdade de gênero, a problemática
do aborto ainda implica a desigualdade social, já que as mulheres
provenientes de situação socioeconômica desfavorável são as grandes
vítimas do modelo repressivo vigente.
E é relevante destacar, neste ponto, que as mulheres pobres, negras e
jovens, do campo e da periferia das cidades, são as que, em sua
maioria, mais recorrem a clínicas clandestinas e a outros meios
precários e inseguros. Isto porque não têm acesso às ofertas da rede
privada, que cobra preços altos. Também não podem viajar a países
onde o aborto é legalizado, opções utilizadas pelas mulheres ricas,
conforme discute FLEISCHER (2009).
Vale lembrar que as formas de abortamento induzido são as mais
diversas e refletem a precariedade em que vivem estas mulheres.
Segundo SANTIAGO (2008), há registros de mulheres que se
submeteram a formas desumanas e desesperadas de realização do
aborto: introdução de osso de galinha, de faca doméstica ou de cabide
de roupas; uso de chás caseiros, alguns produzidos com drogas
tóxicas; e até traumas autodeferidos sobre a região abdominal.
Com base nestas premissas teóricas é mister reconhecer a
necessidade
de
reformulação
da
normas
legais
vigentes,
descriminalizando a prática do aborto. Utilizando palavras de
SARMENTO (2012), “a proibição do aborto não salva vidas de fetos,
mas mata muitas mulheres e impõe graves sequelas a outras tantas”.
Paradoxalmente, pode-se argumentar que a legalização do aborto é
uma etapa necessária, mas insuficiente para eliminar o aborto
inseguro. Em contrapartida à criminalização do aborto, necessitamos
de políticas integrais de saúde sexual e reprodutiva que contemple as
condições necessárias para práticas sexuais seguras. Neste sentido, a
criação de mecanismos extra-penais para evitar a banalização do
aborto, relacionados à educação sexual, ao planejamento familiar e ao
fortalecimento da rede de proteção social voltada para a mulher são de
fundamental importância. E, além de remover a interdição legal ao
aborto, é preciso garantir a realização de procedimentos médicos
necessários no sistema público de saúde, propiciando o acesso a tal
serviço pelas camadas sociais mais vulneráveis, como bem destacado
por SARMENTO (2012).
Em 1998, o Ministério da Saúde elaborou norma técnica8 que inclui o
atendimento às mulheres com gravidez decorrente de estupro e que
solicitam o procedimento de interrupção da gestação na saúde pública.
Neste particular, ROCHA (2004) cita, em seu estudo, a constatação
das dificuldades da implementação do conjunto de serviços que
prestam atendimento ao aborto legal no país. No mesmo sentido,
VIANA (2008) demonstra que, apesar dos esforços de profissionais, de
grupos sociais e do próprio poder público, até hoje o número de
serviços existentes de assistência à mulher para os casos de aborto
legal não é suficiente e não está distribuído adequadamente pelo país.
Além disso, a divulgação dentro dos próprios serviços de saúde e junto
à população é insuficiente, inviabilizando o acesso às mulheres.
Por outro lado, acrescenta-se a esta situação a baixa qualidade do
atendimento registrado na realização do procedimento de interrupção
de gestação. Conforme disserta MENEZES & AQUINO (2009), a
atenção dispensada às mulheres que praticam o aborto “está centrada
em cuidados corporais, muitas vezes de modo técnico e impessoal,
com pouca escuta e atenção às necessidades das mulheres”.
Frequentemente o tempo de espera para a realização da curetagem é
longo e raramente são fornecidas explicações sobre os procedimentos
realizados ou sobre os cuidados requeridos pós-procedimento.
Ainda no que concerne a tal situação os mesmos autores citam estudo
etnográfico realizado em uma maternidade pública de Salvador onde
fica demonstrado que as unidades onde são realizados estes
8
BRASIL. “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra
Mulheres e Adolescentes, publicada em 1999.
procedimentos são pensadas exclusivamente como espaço destinado
às parturientes. Assim concluem:
Para
além
dos
maus
tratos
na
relação
profissional/usuária, discute-se como a discriminação é
também simbólica e está institucionalizada na estrutura
física, nos espaços destinados às mulheres que abortam
e na forma de organização do atendimento9.
Tal constatação aproxima-se dos resultados encontrados em pesquisa
realizada por GESTEIRA, DINIZ & OLIVEIRA (2008) através de uma
abordagem qualitativa com profissionais de equipe de enfermagem de
uma maternidade pública. Foi constatado pelas autoras que mesmo
nos casos do aborto legal e após o devido processo judicial com
sentença favorável à interrupção da gravidez, tal prática permanece
sendo considerada pelas profissionais de enfermagem como crime.
Além disso, restou concluído neste estudo que as profissionais de
enfermagem percebem o abortamento também como pecado por
contrariar dogmas religiosos e culpabilizam as mulheres por ferirem a
“lei de Deus”.
Outro aspecto ressaltado pelas referidas autoras é que as profissionais
de enfermagem “declaram priorizar a assistência às parturientes,
puérperas e gestantes de alto risco em detrimento da assistência às
mulheres que abortam”, evidenciando assim atitudes discriminatórias.
Estas profissionais trazem à tona em seus discursos a negação do
exercício
dos
direitos
reprodutivos
da
mulher,
influenciando
sobremaneira a assistência prestada nos casos de aborto provocado.
Torna-se fundamental, em suma, a implantação de políticas públicas
com relação à assistência à mulher dando especial atenção à relação
dialógica entre profissional e usuária. Desta forma, prioriza-se a
implantação da política de humanização da assistência às mulheres em
processo de aborto provocado.
9
MENEZES, G. AQUINO, E. M. L. Pesquisa sobre aborto no Brasil: subsídios para as
políticas públicas de saúde. Rev. Promoção da Saúde, Brasília, v.3, n.6, out. 2002. P.
196.
Outro aspecto que merece atenção quando se discute a questão do
aborto, diz respeito à melhoria da contracepção que também pode
auxiliar muito na redução do nível de gravidez indesejada. Com base
nesta premissa, SILVA (1993) aponta para a necessidade de maiores
esforços para o esclarecimento, divulgação e acesso aos métodos
contraceptivos disponíveis. Além disso, é essencial dispensar maior
atenção à implementação de meios anticoncepcionais adequados ao
período inicial da vida reprodutiva, uma vez que, tido como eficazes,
pílula e DIU ainda apresentam contraindicações.
Tendo em vista as particularidades do comportamento de fecundidade
apontadas por SILVA (1993), salienta-se a necessidade de políticas
públicas na área da saúde, sobretudo da saúde reprodutiva,
direcionadas para propiciar os devidos esclarecimentos, bem como o
acesso a mecanismos adequados de regulação do ciclo reprodutivo
das mulheres.
Portanto, é imperativo um maior investimento na formulação de
políticas além da sensibilização dos gestores públicos no sentido da
implementação de medidas que reflitam maior impacto sobre a
habilidade das mulheres de um melhor planejamento da gravidez. Tal
proposição pode ser alcançada através de melhorias na disponibilidade
e qualidade de informação e os serviços de contracepção e
planejamento familiar na rede pública de saúde. (COSTA, 1999)
De acordo com o estudo de ROCHA (2004), a principal referência
quanto à legislação sobre planejamento familiar no Brasil é a
Constituição Federal de 1988, em seu parágrafo 7º, artigo 226.
Posteriormente, nos anos de 1996 e 1997 o dispositivo constitucional
foi regulamentado por meio da lei Nº 9263/96 que propôs uma visão
mais abrangente
de
planejamento familiar
na
perspectiva
de
assistência integral à saúde.
A política pública brasileira referente ao planejamento familiar no Brasil
é parte integrante do Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher (PAISM)10, formulado em 1983 e regulamentado em 1986, pelo
Ministério da Saúde. Todavia, a implementação deste programa
encontra dificuldades tendo em vista que atinge uma quantidade
relativamente pequena de mulheres, assim como presta atendimento
de maneira limitada em relação à proposta original, conforme salienta
ROCHA (2004).
Ao analisar o processo de implementação do PAISM, COSTA (1999),
de maneira similar, aponta alguns impasse e desafios, entre eles o
baixo impacto nos indicadores de saúde. No entanto, defende que, no
tocante ao âmbito conceitual e das políticas para a saúde das
mulheres, o PAISM satisfaz inteiramente. A autora faz ressalvas quanto
aos necessários ajustes e adequações ao programa de forma a
abarcar a dinâmica e complexa realidade epidemiológica.
Contrapondo tais premissas, CARVALHO et al. (2012) assinalam que
mesmo se constituindo em uma das ações do PAISM, o atendimento à
demanda por contracepção não tem encontrado resposta suficiente nos
serviços públicos de saúde. Os autores problematizam a escassez de
programas de planejamento familiar assim como a irregularidade na
provisão de métodos para distribuição gratuita. Há ainda carência de
profissionais treinados e clareza sobre ações programáticas. Estas
deficiências
contribuem
para
a
inadequação
das
medidas
contraceptivas com consequente ocorrência de gestações não
planejadas e abortos inseguros.
É importante repisar que a reavaliação da legislação vigente e a
melhoria das formas de contracepção são iniciativas já previstas,
recomendadas e aprovadas pelo governo brasileiro durante a
conferência sobre população e desenvolvimento, realizada no Cairo em
1994.
10
Segundo Costa (1999), “o PAISM constitui-se de um conjunto de diretrizes e princípios
destinados a orientar toda a assistência oferecida às mulheres das distintas faixas
etárias, etnias ou classes sociais, nas suas necessidades epidemiologicamente
detectáveis – incluindo as demandas específicas do processo reprodutivo. Compreende,
ainda, todo o conjunto de patologias e situações que envolvam o controle do risco à
saúde e ao bem-estar da população feminina.”
De qualquer sorte, o acesso à contracepção pode reduzir, mas não
elimina a necessidade das pessoas a praticarem o aborto. A alteração
deste quadro reflete a necessidade de atuação em vários campos a
partir de ações articuladas e intersetoriais.
São dignas de nota as considerações de SANTIAGO (2008) acerca da
urgente elaboração de uma política de saúde em termos de prevenção
das complicações decorrentes do abortamento inseguro. O autor cita
as propostas de políticas da Organização mundial de Saúde que
preconizam a “realização de procedimentos de interrupção em
condições salubres, dentro de limites de adequação médica e
sanitária”.
A partir desta premissa, a referida autora apresenta propostas para a
diminuição da mortalidade e morbidade maternas, associadas ao
aborto inseguro, em níveis de prevenção primária, secundária e
terciárias. Nas ações primárias o foco seria a redução da necessidade
de procura pelo abortamento com proposta de criação e implantação
de políticas amplas de planejamento familiar, facilitando seu acesso e
conscientizando acerca da sua responsabilização pelo casal e não
exclusivamente pela mulher. Além disso, a prevenção primária tem
como objetivo a realização do aborto em condições sanitariamente
corretas com capacitação profissional a partir da legalização do aborto.
A prevenção secundária aconteceria no âmbito da capacitação para o
reconhecimento e a abordagem das complicações clínicas. Já a
prevenção terciária prevê o controle de longo prazo das complicações
e suporte hospitalar às condições clínicas difíceis e reparo cirúrgico de
outras situações.
Neste ponto, cumpre esclarecer que a implementação de políticas
públicas para solucionar a problemática do aborto não implicaria numa
exacerbação dos gastos pelo Estado. SARMENTO (2012) frisa que
apesar da ilegalidade do aborto no país, o Governo já gasta atualmente
vultosos
recursos
para
tratar
as
consequências
clandestinos sobre a saúde das mulheres.
dos
abortos
Seguindo a mesma linha de raciocínio, COSTA (1999) cita estudo
realizado no estado do Rio de Janeiro que calculou gastos de hospitais
públicos com procedimentos decorrentes de situação de abortamento.
Utilizando dados do DATASUS este estudo chegou a estimativas
acerca dos custos advindos de tratamentos e internações após a
prática do aborto. Conclui-se que a quantia destinada às internações
por complicações de abortamentos de curetagens seria suficiente para
o Estado garantir a realização de 62.600 abortos seguros, o que
representa 91% dos 68,649 abortos estimados para o estado do Rio de
Janeiro no ano de 1991. O estudo mostrou ainda que, ao reduzir o
custo de aborto para o valor cobrado pelo setor privado permitiria ao
governo oferecer aborto seguro para todas as mulheres que
procuraram o recurso e ainda garantir verba para planejamento
familiar.
Diante das considerações apresentadas, convém destacar que o
aborto
não
pode
ser
tratado
como
um
simples
método
anticoncepcional. Além disso, tanto a vida do nascituro como os
direitos fundamentais à saúde, à privacidade, à autonomia reprodutiva
e à igualdade da mulher são interesses constitucionalmente relevantes,
que merecem ser devidamente protegidos.
No entanto, já restou comprovado a partir de experiências nacionais e
internacionais que o meio de proteção mais adequado do nascituro não
é pela via da repressão criminal. Faz-se necessário a ampliação dos
investimentos em planejamento familiar e educação sexual, políticas de
gênero eficientes que garantam a oferta de creches e o combate ao
preconceito contra a mulher grávida no ambiente de trabalho, e o
fortalecimento da rede de segurança social.
Outra perspectiva à questão do aborto é verificada pelo caminho da
juridicionalização que já vislumbra algumas propostas. Existe um
projeto de lei de nº 3.220/2008 proposto pelo Deputado Sérgio
Barradas Carneiro que consiste na possibilidade da genitora doar a
criança sem ser identificada, anonimamente, ficando isenta de
responsabilidade civil e penal. Os idealizadores de tal proposta
acreditam que a criminalização de práticas de aborto e de abandono de
crianças só agrava a situação, já que os genitores, por temor à
punição, acabam por procurar “soluções”, as mais clandestinas
possíveis para uma gravidez indesejada. A instituição do “parto
anônimo” não apenas seria uma alternativa para evitar o aborto e
assegurar o anonimato da mãe, como também representaria uma
política pública de proteção à criança. (ALBUQUERQUE, 2008)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema estudado, aborto inseguro, saúde da mulher e políticas
públicas, reflete diferentes considerações construídas essencialmente
com
bases
em
valores
morais,
religiosos
e
culturais
que
desconsideram questões atinentes à dignidade e à saúde da mulher.
Na literatura utilizada, estudiosos da temática apontaram inclusive para
a presença de fundamentos religiosos no contexto do poder Legislativo
através da presença marcante de setores conservadores contrários à
descriminalização do aborto.
Há que se chamar a atenção para a necessidade de desvinculação da
questão do aborto de uma visão exclusivamente religiosa quando,
oportunamente, o Estado passará então a assumir uma posição laica a
esse respeito.
Com base nestes questionamentos, é possível inferir ainda acerca de
interferências do Estado em uma decisão de âmbito privado, qual seja,
a escolha de ter ou não um filho, ou ainda, o direito de optar ou não
pela maternidade. Vê-se, por conseguinte, uma tendência ao controle e
publicização em torno do corpo feminino com notáveis prejuízos para a
almejada equidade de gênero.
Um ponto que merece destaque e que se pôde concluir com estudo,
diz respeito à urgência pela revisão da legislação penal vigente em
relação ao aborto, conforme convencionado em protocolos
e
compromissos internacionais já mencionados. Do mergulho e da
compreensão realizados, foi possível aferir que, se por um lado as
interdições legais ao aborto não tem contribuído para evitar a sua
prática, por outro, colaboram para sua realização de forma clandestina
e insegura à saúde da mulher.
Há que se destacar, neste ponto, a genuína preocupação com uma
possível banalização da prática do aborto decorrente de sua
descriminalização. Neste sentido, é possível argumentar, a partir dos
arcabouços conceituais empregados que esta situação poderá ser
evitada a partir da implementação de políticas públicas voltadas para a
educação sexual, planejamento familiar e fortalecimento da rede de
proteção social direcionada à mulher.
Neste contexto, também foi possível vislumbrar, a partir do estudo
bibliográfico, uma crescente e exitosa tendência à liberalização da
legislação sobre o aborto em uma gama de nações, sobretudo em
razão da proteção dos direitos humanos e dos direitos reprodutivos,
sendo os últimos entendidos como direito ao livre exercício da
sexualidade humana.
É preciso sublinhar, entretanto, a insuficiência, do ponto de vista
prático, da descriminalização da prática do aborto no campo dos
direitos reprodutivos sem equivalente garantia da realização dos
procedimentos pelo sistema público de saúde. Tal medida torna-se
fundamental quando se compreende o fenômeno do aborto inseguro
como uma realidade que atinge em sua grande maioria mulheres de
baixo poder econômico.
É ainda importante destacar a existência de uma força simbólica
acerca da interdição penal em torno do aborto, ainda que tal prática
frequentemente não resulte em condenação, conforme ressaltado em
literatura pesquisada. Em nossa sociedade é marcante a tendência de
práticas sociais preconceituosas assim como acentuada intolerância
moral em
relação
à
mulher
abortiva,
visto
não
assumir os
compromissos socialmente convencionados à maternidade.
Um dos grandes desafios que se coloca posto, diz respeito à discussão
do assunto junto à sociedade civil. Neste particular, faz-se necessário
uma decodificação dos conceitos de maternidade e maternagem,
vislumbrando principalmente o alcance, ainda que em longo prazo, de
mudanças culturais que favoreçam a questão da autonomia reprodutiva
das mulheres.
Contudo, é possível concluir que a sociedade brasileira ainda carece
de maiores informações sobre o tema, reconhecendo que a prática do
aborto é real e incide de forma preocupante na experiência de milhares
de mulheres. No tocante aos estudos e pesquisas científicas sobre o
assunto,
verificou-se
que
a
investigação
do
aborto
abrange
especificidades não apenas no que tange a cuidados metodológicos
particulares e à implicações éticas no manejo, mas sobretudo no
contexto de subnotificação decorrentes do caráter ilícito da prática. Em
suma, há uma infinidade de lacunas e desafios que invocam
investigações mais aprofundadas sobre o aborto.
Neste âmbito, cabe ainda o questionamento acerca de uma possível
associação entre as dificuldades de realização de pesquisas sobre o
aborto e a inexistência de políticas públicas mais adequadas no diz
respeito aos direitos reprodutivos. Esta problemática ainda nos leva a
inferir acerca da ineficiência das políticas públicas atuais em garantir as
condições para o planejamento reprodutivo que, por sua vez, parecem
contribuir para a uma maior incidência do aborto inseguro.
Não obstante, há que se questionar também acerca da inexistência de
políticas públicas preventivas que toma contornos ainda mais
agravantes pela prevalência de medidas repressivas e punitivas para
questões de base fundamentalmente social. O contexto brasileiro
evidencia o predomínio de práticas estatais punitivas que representam,
sobretudo, formas de conter comportamentos moralmente reprováveis
em detrimento de ações que considerem a proteção a direitos já
instituídos em plataformas internacionais.
Sendo assim, este trabalho aponta para a pertinência da formulação de
políticas públicas voltadas para questões de saúde reprodutiva. Ainda
que não seja possível aferir sobre dados oficiais da prática do aborto,
em razão da ilegalidade, não se pode ignorar as evidências empíricas e
estimativas acerca de sua magnitude. Neste contexto, o enfrentamento
desta situação reflete um problema social e, em particular, de saúde
pública.
Tal situação sinaliza a necessidade de elaboração de projetos e
programas que busquem acolher a mulher que vive gravidez
indesejada, investindo na promoção de sua autonomia e no respeito à
decisão que possa vir a tomar frente àquela realidade.
Estes projetos e programas poderiam oferecer o apoio necessário tanto
na prevenção da gravidez indesejada, quanto no acompanhamento
prévio e pós a tomada de decisão acerca da interrupção ou não da
gestação. Visando a eficácia e eficiência desta proposta, as ações
poderão
ocorrer
em
diferentes
frentes:
uma
delas
seria
a
conscientização da comunidade acerca dos direitos reprodutivos
através de campanhas que visem à desmistificação dos papeis da
mulher/mãe e também da mobilização da sociedade civil para que a
atenção a estas mulheres passe a ser prioridade na agenda política.
Outra frente seria a busca pela superação de atitudes preconceituosas
por parte dos profissionais que compõem os serviços públicos de
saúde destinados à realização do procedimento do aborto.
Uma ação igualmente importante está relacionada à capacitação dos
profissionais dos serviços de atendimento a gravidez indesejada, no
sentido de buscar compreender os motivos para a interrupção da
gestação, realizar intervenções e ofertar alternativas, tais como a
proposta do “parto anônimo”, que possam ampliar o espectro de
decisões da mulher. Neste processo é igualmente importante propiciar
um contexto adequado ao pleno exercício dos direitos reprodutivos,
incluindo aí o de decidir sobre o calendário da própria maternidade.
Propostas como estas podem propiciar ainda, em longo prazo,
mudanças culturais acerca do papel social da mulher a partir da
contraposição entre o exercício da maternidade e o desejo de
maternar. A implementação de políticas similares podem ainda
fomentar discussões acerca das relações de gênero internalizadas
socialmente e que contribuem enormemente para a condenação legal e
moral da mulher que não deseja assumir a maternidade. Vimos que a
culpabilização da mulher e a sobrecarga feminina em torno das tarefas
de procriação contribuem em grande parte para a prática do aborto,
posto que esta vislumbra como uma forma encontrada de lidar com a
gravidez indesejada.
Cabe ressaltar que a efetividade deste tipo de proposta dependerá de
estratégias intersetoriais e articuladas na sua implementação. A
elaboração e execução de políticas públicas que visem oferecer
espaço de escuta e acolhimento, serviços de orientação e assistência à
mulher frente à decisão de abortar ou não pode se mostrar eficiente. A
diminuição da ocorrência dos abortos inseguros demanda ações que
extrapolam o âmbito da saúde. Investimentos em educação são
necessários, primando pela inserção da educação sexual nas escolas
em uma perspectiva não-sexista e não-homofóbica e também na
ampliação do número de creches e escolas.
As perspectivas de solução para o problema exposto abarcam a
discussão, elaboração e implementação de políticas públicas efetivas,
que certamente poderão contribuir para a diminuição da ocorrência dos
abortos inseguros.
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