machado de assis, minas e a história da medicina

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machado de assis, minas e a história da medicina
MACHADO DE ASSIS, MINAS E A HISTÓRIA DA
MEDICINA
João Amílcar Salgado
O centenário do falecimento de Machado de Assis, em 2008, sugere a reavaliação de
sua vida e obra, com base em conhecimentos e recursos hoje disponíveis, alguns deles
propiciados pela história da medicina. Preliminarmente selecionamos três temas discutidos no
Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais da Universidade Federal de Minas Gerais: 1 MACHADO DE ASSIS E O CIENTIFICISMO - OU DE COMO SIMÃO BACAMARTE É IRMÃO
DO DR. JEKILL E ANTÍPODA DE SHERLOCK HOLMES, 2 – O CARIOCA MACHADO DE
ASSIS E O MINEIRO BELMIRO BRAGA e 3 – MACHADO DE ASSIS E UMA POSSÍVEL
CAPITU REAL.
1 - MACHADO DE ASSIS E O CIENTIFICISMO - OU DE COMO SIMÃO
BACAMARTE É IRMÃO DO DR. JEKILL E ANTÍPODA DE SHERLOCK
HOLMES
Os estudiosos de Machado de Assis, em geral, concordam em que o primoroso escritor
brasileiro, quando escreveu O ALIENISTA (1881), pretendeu satirizar o cientificismo em voga
nessa época. Ora, os críticos literários quando falam em cientificismo não vão além do
significado literal deste termo. Assim seria de interesse saber o que significa tal cientificismo e
também a referida novela, ambos vistos do ponto de vista da história da medicina.
Para tentar esclarecer tais significados parece necessário responder a três perguntas:
que era o cientificismo nessa época?; o tema escolhido por Machado de Assis (1839-1908) era
próprio para satirizar o cientificismo ou a psiquiatria?; que resultou da pretensão do escritor?
O CIENTIFICISMO
Seria errôneo dizer que o cientificismo é exclusivo de determinada época. Ele, de fato
tem uma genealogia correspondente a períodos de euforia intelectual, que, assinalados nas
mitologias e na proto-ciência das grandes civilizaçãoes, vêm especificar-se na filosofia grega, na
escola alexandrina, na alquimia, na renascença e no iluminismo. Visto desse modo, o
cientificismo ocorrido no final do século 19 dá continuidade a idéias cientificistas do iluminismo
do século 18, inclusive com mais de um feitio. Outro equívoco é opor cientificismo a romantismo,
pois cientificistas românticos a seu modo foram, por exemplo, Goethe, Byron, Mary Shelley e
Poe.
Para melhor compreensão do cientificismo do final do século 19, julgamos apropriado,
pelo menos, ter a mínima notícia do médico e cientista Claude Bernard (1813-1878), do exestudante de medicina Charles Darwin (1809-1882), do primo deste o matemático Francis Galton
(1822-1911), do filósofo Herbert Spencer (1820-1903) do químico e cientista Louis Pasteur
(1822-1895), do escritor Emile Zola (1840-1902), do escritor Júlio Verne (1828-1905), do escritor
Robert Louis Stevenson (1850-1894) e do médico e escritor Conan Doyle (1859-1930) – todos
contemporâneos de Machado de Assis.
Claude Bernard, que desde jovem foi ligado ao mundo artístico, veio a ser autor de um
conjunto monumental de investigações fisiofarmacológicas, hoje considerado estruturador da
medicina ocidental moderna, principalmente pelo cânone metodológico que criou. Em virtude de
sua iniciação científica, está vinculado mais diretamente às idéias de Rousseau. Sua influência
se fez sentir junto aos artistas, nomeadamente sobre ficcionistas e compositores musicais, tendo
por referência principal o livro intitulado INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA MEDICINA
EXPERIMENTAl, de 1865, até hoje norma para investigadores biológicos ou de qualquer ciência.
Sua influência sobre os ficcionistas está nítida no próprio título do texto em que Emile
Zola se mostra seguidor de Bernard: O ROMANCE EXPERIMENTAL, de 1880. Mas Zola já
havia experimentado o romance experimental antes disso, quando publicou TERESA RAQUIN,
em 1867, dois anos após o texto de Bernard. Essa corrente literária foi reforçada quando se
popularizou a descoberta dos micróbios por
Pasteur e da evolução natural por Darwin.
Seguiram-se outras descobertas e invenções, dentro e fora da medicina, principalmente ligadas
à revolução industrial e veiculadas pela própria popularização da imprensa periódica. Surgiram
então as aplicações da evolução biológica de Darwin ao mundo social por Galton e Spencer.
Nessa altura, a ciência, mesmo antes da manifestação de Zola, já havia passado a ser ela
mesma tema do ficcionista Júlio Verne, a partir do livro CINCO SEMANAS EM UM BALÃO, de
1862. Nesta linha, surgiu mais tarde, em 1886, a obra O MÉDICO E O MONSTRO (The Strange
Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde) de Stevenson. Mas a conseqüência mais específica de tal
movimento literário só poderia surgir de um médico ficcionista, Conan Doyle, que cria em 1887
um detetive-cientista de enorme sucesso, denominado Sherlock Holmes, na novela UM
ESTUDO EM VERMELHO. Vale lembrar que honra Minas Gerais ter em Júlio Ribeiro o mais
radical brasileiro entre os seguidores de Zola, com seu romance A CARNE, de 1888, sete anos
posterior a O ALIENISTA.
Ora, se O ALIENISTA é de 1881, ele foi publicado um ano apenas após O ROMANCE
EXPERIMENTAL de Zola, sendo 14 anos posterior a TERESA RAQUIN do mesmo Zola e 19
anos subseqüente a CINCO SEMANAS EM UM BALÃO de Verne. Assim, dos citados, O
ALIENISTA precedeu apenas dois: O MÉDICO E O MONSTRO, de Stevenson, e UM ESTUDO
EM VERMELHO de Doyle. E, do ponto de vista da história da ciência e da medicina, o doutor
Jekill de O MÉDICO E O MONSTRO é irmão de Simão Bacamarte, enquanto Sherlock Holmes
vem a ser seu antípoda.
O TEMA PSIQUIATRIA FOI APROPRIADO?
A escolha da psiquiatria para tema de sátira ao cientificismo é criticável porque a
psiquiatria de certo modo era retardaria em relação ao cientificismo, tanto é que aqueles médicos
mais esperançosos de transforma-la em ciência preferiam e até impuseram a autodenominação
de neuropsiquiatras, reciprocamente abominando o nome alienista, usado por Machado. Este
não tinha obrigação de saber nem sequer de perceber tal posição relativa da psiquiatria na
comparação com as demais disciplinas médicas e demais ciências, pois era apenas um leigo.
Enfim, a psiquiatria, no estádio em que se encontrava, estava plenamente a seu alcance e
estava a seu alcance exatamente por não se prestar plenamente a veleidades cientificistas.
Para melhor descrever o passo lento da psiquiatria, basta dizer que, enquanto Bernard,
Darwin e Pasteur chegaram ao século 19, amparados na retaguarda de Galileu, Harvey e
Boerhaave, a psiquiatria, ainda impregnada de possessões demoníacas, tinha em Kraepelin seu
Boerhaave retardatário. Mesmo assim pouca atenção se deu a Kraepelin e então a psiquiatria
prosseguiu sem rumo certo entre as aquisições nada convergentes de Mesmer, Pinel, Lombroso,
Charcot, Janet, Binet, Duchenne, Bleuler e Breuer, bem como da iatro-eletricidade e da
antropologia nascente. Só veio a atingir avanços substantivos com Cajal, Pavlov e Freud.
Quando estes afinal pareciam impulsionar avanços rápidos, infelizmente se mantiveram
dissociados, permitindo que correntes psiquiátricas desaguassem em guerra pelo século 20
afora, como verdadeiras e vergonhosas religiões, cada qual mais intolerante, cultuando ídolos
não como gênios da ciência, mas como profetas extemporâneos e ridículos. O valoroso Simão
Bacamarte, aparecido ainda às vésperas de Cajal, Pavlov e Freud, evidentemente só tinha um
destino, o de se sentir muito bem no meio desse tiroteio, apesar do nome. Isso explica como O
ALIENISTA continua tão atual.
Assim é possível neste ponto caracterizar o Sherlock como a sátira oposta bem
fundamentada, feita pelo médico Conan Doyle, contra os médicos resistentes ao progresso
verdadeiro que estava ocorrendo a partir de Bernard, Darwin, Pasteur e outros. Mas a sátira que
Machado faz à psiquiatria está bem fundamentada se for entendida, pelas razões acima, não
como sátira ao cientificismo psiquiátrico, mas como sátira à psiquiatria em si. Em outras
palavras, Conan Doyle era cientificista e fez sátira aos médicos resistentes ao progresso real,
simbolizados no doutor Watson, enquanto Machado tinha razões para desconfiar e mesmo para
ter receio de quem no ambiente dele posava de cientificista. Neste caso suponho que Machado,
se forçado, ficaria do lado do doutor Watson, pois seus modelos de médicos em 1881 não
deixavam de ser Manoel Antonio de Almeida e Joaquim Manoel de Macedo. Eram dois médicosescritores sensíveis ao pequeno mundo carioca a seu redor, mas alheios à revolução cientifica e
tecnológica em andamento no hemisfério norte. Podemos, portanto, dizer que, de certo modo,
Machado atirou no que viu e acertou no que não viu. Por não ter outra opção a fazer, satirizou a
psiquiatria da época que merecia a sátira.
RESULTADO DA REVOLUÇÃO BACAMARTEANA
Basta lembrar tudo isso para concluirmos ser desaconselhável situar O ALIENISTA em
determinada brecha da tumultuada história da neurociência. Melhor caminho será nos
socorrermos da história de outro genial negro brasileiro, o incrível psiquiatra Juliano Moreira
(1873-1932). Este já se tinha projetado na Bahia e chega ao Rio cinco anos antes da morte de
Machado de Assis. Na então capital da República o hospital destinado aos alienados já existia
desde 1841, pois fora inaugurado em majestoso edifício para assinalar a maioridade do
imperador menino, com a saudável intenção de cuidado condigno aos pacientes. Acontece que
em meio século de revolução industrial e urbanização, as boas intenções para com o alienado,
emergentes do iluminismo, tinham-se enfraquecido, mais ainda no Brasil. A abolição da
escravatura e a proclamação da república ampliaram o desajustamento de negros, mulatos e
brancos às novas condições econômico-sociais. Assim, o ex-hospício Pedro II passou a ser o
destino de muitos deles taxados de alienados.
Ora, nada melhor que um alienista negro para cuidar daqueles que os novos tempo
marginalizaram, claramente incapacitados para esta bela época que surgia. Mas, em forte revide
provocativo, descobrem um Juliano Moreira muito mais inteligente, mais competente e mais ético
que todos os que assim pensavam. Seus enciumados colegas de profissão, quase enfurecidos
exatamente por perceberem nele o talento superior de um negro, tiveram que engolir goela
abaixo sua magnífica figura no âmbito da psiquiatria brasileira, imponente estatura ao mesmo
tempo correta e à frente de seu tempo. Sim, ainda hoje deve ser considerado um dos três
maiores psiquiatras brasileiros de todos os tempos. E sua maior luta foi contra os inimigos de
sua cor, que, ao mesmo tempo, eram inimigos da abordagem cientifica e humana dos loucos.
Assim, pelo conhecimento das agressões sofridas por Juliano Moreira, pelas pedras que jogaram
em seu caminho e até pela mesquinhez das insinuações jocosas de que era alvo – podemos
aquilatar o que Machado de Assis temia bem antes de 1903 e até antes de 1881.
Sim, os que assim pensavam eram adeptos do darwinismo social, sob a forma de um
galtonismo tendencioso. Julgavam que o novo mundo emergente tinha de se livrar daqueles
inaptos a ele, no mínimo segregando-os. Os inferiores por doença adquirida ou congênita e
principalmente pela raça tinham forte tendência para lunáticos. Tal era a doutrina vigente em
determinados círculos. Tal era a ciência de determinados cientificistas da época em que
Machado escreveu O ALIENISTA. Eis aí o pavor do epiléptico Machado de Assis: faltar-lhe a
cobertura de casta social oferecida pela esposa e o cunhado e daí ser internado como epiléptico
no hospital de alienados. Seu temor era tanto que a ambientação de O ALIENISTA foi deslocada
para pequena cidade, de modo a não ofender diretamente os potenciais algozes desta possível
(e provável com o passar da idade) internação.
PARALELO ENTRE ITAGUAÍ E BARBACENA
Neste ponto fazemos a proposta de comparar Itaguaí, a cidade de O ALIENTISTA, com
Barbacena, a cidade dos loucos. Por esta comparação podemos ver nova relação entre
Machado de Assis e os mineiros, em adição a seu relacionamento singular com Belmiro Braga,
que apresentamos em outro texto. Repetimos, Machado não deixou de ter a prudência de situar
os acontecimentos protagonizados Bacamarte fora da cidade onde vivia, o Rio de Janeiro. Com
isso, pretendeu prevenir eventuais retaliações, localizando-os, para dar-lhes significado genérico,
em Itaguaí - na época pequena comunidade provinciana.
Localidades há que são estigmatizadas apenas por serem periféricas. Outras por serem
consideradas propícias a um ou mais males. Outras ainda por serem procuradas como local de
cura para uma ou mais enfermidades. Itaguaí e Barbacena não se enquadram em nenhuma
dessas possibilidades. Em princípio, Itaguaí é caso excepcional de estigma por ficção, no caso
criado por Machado de Assis, como o local onde se teria feito pesquisa para tratamento da
loucura. Já Barbacena ficou estigmatizada como degredo final - desesperado e nada fictício - de
milhares de vítimas da loucura.
A história verdadeira de Itaguaí, entretanto, mostra que lá antes houve episódio de
loucura coletiva, quando uma tribo indígena inteira sofreu genocídio. A história verdadeira de
Barbacena também mostra outras peculiaridades: além de berço de figuras ilustres e palco de
acontecimentos de relevo na história de Minas, tem sido refúgio a viandantes, a intelectuais, a
artistas, a plantadores de frutos e flores e a qualquer um que queira encontrar o melhor da
convivência humana.
Foi esta última vocação que permitiu a Barbacena chegar ao paradoxo de usar o próprio
estigma para se desestigmatizar. Isso aconteceu no dia em que alguém teve a idéia feliz de
inventar para Barbacena o FESTIVAL DA LOUCURA. A cidade então entrou no século 21 não
como a cidade dos loucos mas a cidade do Festival da Loucura.
Propomos que Itaguaí faça algo semelhante, mutatis mutandis, com O ALIENISTA.
2 - O CARIOCA MACHADO DE ASSIS E O MINEIRO BELMIRO BRAGA
No centenário da morte de Machado de Assis não pode deixar de ser lembrada a
admiração que o inspirado poeta mineiro Belmiro Braga dedicou ao augusto escritor carioca. O
próprio livro de memórias de Belmiro Braga traduz essa admiração no título: DIAS IDOS E
VIVIDOS, derivado do célebre soneto de Machado à esposa Carolina.
Belmiro, um simples balconista do interior mineiro, acompanhava tudo sobre Machado,
inclusive a data de seu aniversário. Em 1891 não resistiu ao impulso de ousar cumprimentá-lo
por uma carta e um poema, enviados para chegar antes do natalício, 21 de junho. Talvez o
missivista fosse a única ou das poucas pessoas a lembrar-se da data. Isso pode ter sensibilizado
ainda mais o esplêndido prosador, desencadeando sincera admiração mútua.
Os delicadíssimos versos que acompanhavam a carta são estes:
A MACHADO DE ASSIS
Quando ela fala, parece
que Deus é que anda a escutá-la.
A natureza emudece,
quando ela fala.
Quando ela canta, suponho
ouvir cantar uma santa,
com dias festivos sonho,
quando ela canta.
Quando ela chora, seus olhos
têm os matizes da aurora;
penso num mundo de escolhos,
quando ela chora.
Quando ela ri, no seu riso
vejo aberto um bogari
e eu vivo num paraíso,
quando ela ri.
Em 24 de junho, Machado responde: “Meu caro poeta. Recebi e agradeço-vos muito
de coração a carta com que me felicitais pelo meu aniversário natalício. Não tendo o gosto
de conhecer-vos, mais tocante me foi a vossa lembrança. Pelo que me dizeis em vossa
bela e afetuosa carta, foram os meus escritos que vos deram a simpatia que manifestais a
meu respeito. Há desses amigos, que um escritor tem a fortuna de ganhar sem conhecer,
e são dos melhores. É doce ao espírito saber que um eco responde ao que ele pensou, e
mais ainda se o pensamento, trasladado ao papel, é guardado entre as coisas mais
queridas de alguém. Agradeço-vos também os gentis versos que me dedicais e trazem a
data de 21 de junho, para melhor fixar o vosso obséquio e intenção. Disponde de mim, e
crede-me. Am.o m.to agradecido - Machado de Assis.”
Mais extraordinário que a circunstância do início da correspondência entre ambos é o
fato de que nunca se encontraram presencialmente. Belmiro se deslocava freqüentemente de
Minas para o Rio, com o objetivo de adquirir mercadorias de atacadistas. Ficava rondando a
casa de Machado, observando tudo, sem coragem de chegar. Um dia Machado saiu de casa e
tomou o bonde. Belmiro quase aproveitou esta oportunidade de se apresentar, mas a timidez foi
maior. Sentou-se mais atrás e acompanhou oculto todo o passeio de seu mestre. E isso se
repetiu em outras viagens.
Sobre a morte de Machado, diz o próprio Belmiro Braga: “Quando morreu, o meu
retrato foi encontrado sobre a sua mesa, um amigo mandou-me flores retiradas de seu
féretro e dois oradores, dando-lhe o último adeus, referiram-se ao meu nome...” Antes
Belmiro enviara-lhe carta consolando-o da ausência de Carolina. Machado respondeu: “E já que
se referiu na sua carta à Carolina, mando-lhe estes versos que acabo de compor.”
Completa Belmiro: “E mandou-me o soneto À CAROLINA, que conservo entre os papéis
que mais prezo... E eu, que o vi tantas vezes, que o admirava tanto e que tanto lhe queria,
nunca tive ânimo de dizer-lhe quem era e de apertar-lhe a mão...”
3 - MACHADO DE ASSIS E UMA POSSÍVEL CAPITU REAL
Neste ano do centenário da morte de Machado de Assis tenho visto muitas entrevistas
com os mais expertos machadianos e ouvido citações de outros tantos - vivos e mortos. O tema
mais recorrente é a fidelidade ambígua de Capitu a seu esposo, no romance DOM CASMURRO.
Como especialista em História da Medicina, proponho aqui discutir uma possibilidade
compreensivelmente pouco estudada. Trata-se da hipótese de que Machado tenha tido de fato
uma amante casada, retratada no romance como Capitu. O amor adúltero da esposa teria sido
percebido pelo marido, amigo de Machado. O esposo apaixonado cedera à esposa o álibi da
dúvida e fornecera ao amigo desleal o argumento de sua melhor obra.
Minha hipótese vai mais além. O motivo para que Machado tivesse uma amante seria a
ausência de prole com Carolina, quatro anos mais velha que ele. Naquele tempo não havia meio
de esclarecer qual dos dois era estéril. Sabe-se que aqui outra ambigüidade surge. O escritor se
sente desafiado a engravidar outra mulher para se ver livre da dúvida sobre sua capacidade
reprodutiva, ainda mais portador que era de doença estigmatizante, a epilepsia. Demais, o
primeiro livro dele, de 1861, tem título sintomático: QUEDA QUE AS MULHERES TÊM PARA OS
TOLOS, de fato uma opinião da qual se oculta como tradutor (sendo tradutor ou não). Daí a
hipótese se completa com uma possibilidade adicional: Machado de Assis pode ter tido um ou
mais de um filho e ter deixado descendentes. Neste caso o esposo traído não duvidou de que
era o pai, mesmo sendo a criança mais morena do que era de se esperar.
Para completar, acrescento a explicação por que tal possibilidade não foi ainda bem
estudada. É que as grandes figuras costumam ser retratadas por grandes admiradores. O zelo
pelo ídolo costuma ser intolerante, a ponto de censurar aspectos ou fatos julgados desfavoráveis
ao objeto do fanatismo - o que o poupa, mas também o desumaniza. Seria fácil citar vários
exemplos, o que não cabe aqui. Basta dizer que os grandes homens nunca são nem cem por
cento coerentes, nem necessariamente santos, inclusive os santos mais admiráveis.
O quase-escravo, órfão, frágil, gago, epiléptico, de visão precária e desescolarizado veio
a topar com dois irmãos, verdadeiros anjos bons: Faustino e Carolina. Faustino foi ao mesmo
tempo o pai, o padrinho e a universidade que Machado não teve. Carolina acumulou com o papel
de esposa o de mãe, irmã, professora e secretária. Pode ser que essas carências de Machado
se completassem com mais uma: conseguir uma amante que fosse simples parceira de sexo
animal, tão animal que proibido. Enfim, a moral do subterrâneo da mestiçagem brasileira não é a
mesma dos fariseus da corte.
O autor é professor titular de Clínica Médica e pesquisador em História da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

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