CERVO,Anna

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CERVO,Anna
1
Ensino, PCN e enunciação: uma proposta de análise de texto1
Teaching, PCN and enunciation: a proposal for text analysis
Anna Cervo* 2
RESUMO: Este trabalho tem o objetivo de refletir sobre o ensino de língua portuguesa, a partir da linguística da
enunciação. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) sugerem que o ensino de língua deve ser voltado ao
uso, às práticas sociais da língua. Assim, este artigo propõe uma extensão da reflexão acerca da teoria da
enunciação de Émile Benveniste para o ensino, mostrando que o sentido de um texto não é dado, mas construído
a cada enunciação.
Palavras-chave: língua; ensino; enunciação.
ABSTRACT: This paper aims to reflect on the Portuguese language teaching, from linguist of enunciation. The
National (Brazilian) Curricular Parameters suggest that the teaching language should be direct to use, to the
social practices of language. Thus, this paper proposs an extension of reflection about the theory of enunciation
of Émile Benveniste for the teaching, showing that the meaning of a text is not given, but constructed for each
enunciation.
Key-words: language; teaching; enunciation.
1.
INTRODUÇÃO
A linguagem, para os Parâmetros Curriculares Nacionais é essencial para a
construção da vida social.
(...) é uma forma de ação interindividual orientada por uma finalidade específica; um
processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes
grupos de uma sociedade, nos distintos momentos da sua história (PCN, 1997, p.17).
Nesse sentido, a aula de língua portuguesa deveria estar embasada em um trabalho de
interpretação do mundo e participação nele, ou seja, com foco na atividade discursiva do
falante/aluno. Diante disso, este trabalho visa a um estudo de texto em função do uso que o
locutor faz da própria língua.
A teoria que embasa este estudo é a de Émile Benveniste, linguista que define língua
como sistema de signos, tal como Saussure. Porém, Benveniste admite um novo elemento,
1
Trabalho apresentado como requisito da disciplina Aprendizagem de Língua Materna, Unisinos.
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada – UNISINOS. Bolsista PROMESTRE
(UNISINOS)
2
que é a enunciação, e o define como ato do locutor que mobiliza o sistema de signos, para
significar no discurso.
Nesse viés, a análise proposta neste artigo vai de encontro à metalinguagem, presente
nas gramáticas, ou até mesmo nos livros didáticos, nos quais é solicitado ao aluno que
decodifique o código escrito, ou ainda, que extraia do texto determinado significado dado.
Esta análise busca mostrar a dupla significância da língua (Benveniste, 2006, p.64), ou seja, a
combinação dos domínios3 semiótico e semântico como construtores do todo da significação.
Com isso, pretendemos um estudo voltado ao uso da linguagem nas diversas situações.
Em um primeiro momento, na seção O ensino de língua portuguesa, apresentaremos
as principais ideias acerca de ensino-aprendizagem de língua, segundo os PCN (1997). Em
Princípios teóricos da teoria da enunciação de Émile Benveniste para o trabalho em sala de
aula, faremos uma revisão dos principais fundamentos da teoria de Emile Benveniste,
encontrados nos artigos Da subjetividade da linguagem (1958), Os níveis de análise
linguística (1962), A forma e o sentido na linguagem (1967) e O aparelho formal da
enunciação (1970). Por fim, em Ensino, PCN e enunciação: uma proposta de análise de
texto, mostraremos que é possível o ensino da leitura e da interpretação, em língua
portuguesa, através da teoria da enunciação, devido à necessidade de se estudar o uso da
língua.
2.
O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Saber utilizar as diferentes linguagens para produzir, expressar e comunicar suas
ideias, usufruir das produções culturais e interpretá-las, atendendo a diferentes intenções e
situações de comunicação é um dos principais objetivos do ensino, para os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN).
Os PCN foram elaborados para dar uma nova perspectiva ao ensino, em relação a
metodologias e práticas pedagógicas. Através desse documento, passa-se a olhar língua
portuguesa de maneira especial, refletindo, sobretudo, sobre a noção de erro e variação
linguística.
A tarefa do professor de língua portuguesa, segundo os PCN (1997) é ensinar aos
alunos a melhor maneira de utilização da língua. Assim, o ensino de língua deve levar em
conta o desenvolvimento do aluno, acerca de seu potencial crítico e capacitação enquanto
3
A questão da dupla significância será desenvolvida na seção Princípios teóricos da teoria da enunciação de
Émile Benveniste para o trabalho em sala de aula.
3
leitor dos vários textos. Para os PCN (1997), é preciso haver o domínio da linguagem nos
campos cognitivo e discursivo para que haja pleno desenvolvimento linguístico do aluno.
A linguagem é entendida, no documento, como atividade discursiva, e nós a
produzimos nas diferentes práticas sociais das quais fazemos parte. Nesse sentido, os
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua portuguesa enfatizam que a aprendizagem da
língua deve se dar por meio da prática de linguagem, da produção de linguagem.
(...) A linguagem, por realizar-se na interação verbal dos interlocutores, não pode ser
compreendida sem que se considere o seu vínculo com a situação concreta de
produção. É no interior do funcionamento da linguagem que é possível compreender
o modo desse funcionamento. Produzindo linguagem, aprende-se linguagem.
Produzir linguagem significa produzir discursos. Significa dizer alguma coisa para
alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico. Isso
significa que as escolhas feitas ao dizer, ao produzir um discurso, não são aleatórias
— ainda que possam ser inconscientes —, mas decorrentes das condições em que
esse discurso é realizado. Quer dizer: quando se interage verbalmente com alguém, o
discurso se organiza a partir dos conhecimentos que se acredita que o interlocutor
possua sobre o assunto, do que se supõe serem suas opiniões e convicções, simpatias
e antipatias, da relação de afinidade e do grau de familiaridade que se tem, da
posição social e hierárquica que se ocupa em relação a ele e vice-versa. Isso tudo
pode determinar as escolhas que serão feitas com relação ao gênero no qual o
discurso se realizará, à seleção de procedimentos de estruturação e, também, à
seleção de recursos linguísticos. (PCN, 1997, p. 22)
Não basta que os alunos aprendam as palavras, mas que saibam utilizá-las no
contexto social, tendo em vista seus significados culturais. Essa utilização das palavras ocorre
através de gêneros, noção oriunda da teoria enunciativa bakthiniana, embora o autor não seja
citado no documento.
A indicação encontrada nos PCN é de tratar o texto como unidade de estudo e análise
em sala de aula, de forma que a definição de texto, para o documento, é destacada a seguir:
―produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo significativo e acabado,
qualquer que seja sua extensão‖ (op. cit.: 23). Com a teoria benvenistiana, utilizamos a noção
de texto equivalente à de cena enunciativa, referindo o modo pelo qual o discurso constrói
uma representação de sua própria situação de enunciação.
Em vista disso, as atividades de leitura e escrita, além da reflexão sobre as escolhas
linguísticas e sua análise, são essenciais para formar alunos críticos, que sejam capazes de
utilizar a linguagem dentro e fora da sala de aula. Por isso, as análises textuais devem focar as
relações entre enunciação, texto (cena) e produção de sentidos.
Sabemos que o trabalho com textos, em sala de aula, ocorre de maneira pouco
criativa. Repetem-se exercícios, elaboram-se fórmulas de leitura, levando os alunos a
experiências de leitura limitadas, repetitivas e, por isso, mecanizadas. Além disso, temos o
4
ensino da língua reduzido à metalíngua (gramática), tratada como regras a decorar,
juntamente com exercícios de aplicação, sem relação com a prática de leitura e da escrita.
Segundo Toldo (2010),
Os alunos, durante praticamente uma década, estudam definições, verbalizam regras,
fazem classificações, fixam estruturas afastadas da língua em uso, ou seja,
desenvolvem atividades sobre a língua. Priorizam o código, a forma, como se a
língua fosse autônoma, imutável e exterior ao falante. (p.63)
Nos PCN, há uma perspectiva importante de se destacar, a de que é necessário
trabalhar a metalíngua não como objeto e objetivo em sala de aula, mas sim como instrumento
de apoio do ensino aprendizagem. Mais uma vez, reforça-se o que Toldo (2010) afirma sobre
a análise dos fatos de língua: tal análise não ocorre desconsiderando o funcionamento da
língua.
Conforme os PCN, dentre os objetivos da aula de Língua Portuguesa, relacionados à
leitura, o aluno deve ser ensinado a utilizar a linguagem para realizar a leitura de textos,
chegar à compreensão de textos, desenvolver a capacidade de leitura crítica, entre outros. É
utilizando exemplos da língua enquanto discurso que a competência comunicativa, tão
almejada pelos documentos oficiais, será alcançada.
Através do processo de transformação da língua em discurso, do qual trata
Benveniste, é que a língua se semantiza. A subjetividade de um texto permeia essa passagem,
a qual implica a significação. Por sua vez, a enunciação implica o eu e seu alocutário,
mostrando que é no uso que a construção do sentido se dá.
O uso da língua revela o modo como a subjetividade nela intervém. Levar isso em
consideração talvez possa contribuir para que o ensino da língua abandone seu caráter
mecanizado4 para buscar sentidos instituídos no uso da língua nas diversas cenas
enunciativas.
3.
Princípios teóricos da teoria da enunciação de Émile Benveniste para o
trabalho em sala de aula
Dentre os teóricos das teorias da enunciação, encontram-se Charles Bally, Oswald
Ducrot, Roman Jakobson e o tão referido nos PCN, Mikhail Bakhtin. Neste trabalho,
propomo-nos a estudar Émile Benveniste, considerado o pai dos estudos linguísticos da
enunciação, cujo pensamento filia-se ao pensamento estruturalista de Saussure.
4
O uso do termo ―mecanizado‖ deve-se ao fato de que o ensino tradicional, muitas vezes, foca seu estudo no
decorar e aplicar regras.
5
Benveniste considera a língua enquanto sistema, no entanto, produziu artigos que
tratam sobre a possibilidade de o sistema linguístico considerar os fenômenos linguísticos da
enunciação. De acordo com Flores e Teixeira (2005, p.29), Émile Benveniste foi ―o primeiro
linguista (...) a desenvolver um modelo de análise da língua especificamente voltado à
enunciação‖.
A teoria benvenistiana deu lugar à articulação entre estrutura e sujeito, elemento
excluído na teoria de Saussure, tal como apresentada no Curso de Linguística Geral5. Para
Benveniste, a enunciação é o fenômeno que possibilita ao locutor a passagem a sujeito,
através de um ato de apropriação.
Os textos6 a seguir buscam explicar, brevemente, alguns princípios teóricos, da teoria
benvenistiana. Neste artigo, pretendemos apresentar tal teoria, buscando aliá-la ao ensino de
leitura em língua portuguesa.
Em Da subjetividade na linguagem, artigo publicado em 1958, Émile Benveniste
afirma que a linguagem está na natureza do homem, que não a inventou. Como é condição de
existência do homem, a linguagem é ―sempre referida ao outro, o que acaba por vincular
linguagem e subjetividade‖ (Flores et al, 2009, p.219). A intersubjetividade, portanto, é
inerente à linguagem e, por isso, condição da intersubjetividade.
É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito, porque só
a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de
―ego‖. (Benveniste, 2005, p.286).
Nas palavras do Benveniste, a subjetividade é a ―capacidade do locutor para se
propor como ―sujeito‖ (p.286), e é determinada pelo status linguístico da ―pessoa‖. É
estabelecida na linguagem quando cada locutor, ao tomar a palavra, institui-se como sujeito
do seu dizer, qualificando-se como eu no seu discurso. Ao mesmo tempo, institui o outro,
aquele com quem fala, designando-o como tu.
Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será minha alocução tu.
Essa condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica reciprocidade
– que eu me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa eu.
(BENVENISTE, 2005, p. 286).
Essa inversibilidade de papeis torna possível a comunicação linguística. A
polaridade eu/tu é o que Benveniste chama de intersubjetividade, a qual é condição necessária
para a instauração da subjetividade, uma vez que a linguagem é, por si só, intersubjetiva.
5
No CLG, Saussure não ignora o elemento ―sujeito‖, apenas o retira de seu recorte metodológico, a fim de
melhor estudar o sistema de signos e tentar institucionalizar a ciência linguística.
6
Textos presentes em Problemas de Linguística Geral I e II.
6
Em Os níveis de análise linguística, artigo de 1964, Émile Benveniste mostra que é
através de níveis que é possível reconhecer as partes que compõem o todo que é a língua. O
autor propõe que se segmentem os elementos linguísticos em porções cada vez menores para
chegarmos aos elementos não-decomponíveis (merismas). Através dessa segmentação, é
possível fazer as substituições que os elementos admitem.
As relações de forma e sentido estão presentes nos níveis de análise. O sentido é a
condição fundamental que ―todas as unidades de todos os níveis devem preencher para obter
status linguístico‖ (Benveniste, 2006, p. 130).
Destarte, a língua possui dois domínios, ou dois níveis de significância: o semiótico e
o semântico. O semiótico é o domínio que podemos relacionar àquilo que Saussure, no CLG,
chama de sistema, e Benveniste de intralinguístico. Sua unidade é o signo, o qual é distintivo
e dotado de valores opositivos e genéricos. Os signos se relacionam no interior da língua,
onde não há referência.
O domínio semântico é resultado da atividade do locutor que a língua em ação. O
signo transforma-se em palavra, tornando-se esta a unidade do domínio semântico. Teixeira e
Ferreira (2008), concordando com Benveniste (2006), afirmam que a frase é pertencente desse
domínio. Além disso, a referência é característica desse domínio, uma vez que ―os
interlocutores referem e co-referem na atribuição de sentido às palavras‖ (Flores e Teixeira,
2008, p.32). O sentido da frase é a ideia que ela evoca, que é sempre particular; já a referência
da frase é ―o estado de coisas que a provoca, ou seja, a situação de discurso a que ela se
reporta que não podemos jamais prever ou fixar‖ (Teixeira e Ferreira, 2008, p. 66)
Por isso, dizemos que o signo ocupa ponto central no processo de semantização da
língua. Do fonema, passa-se ao signo, que pode ser confundido com palavra. O signo,
portanto, é o ponto central entre o nível inferior (fonema) e o superior (frase), ou seja, entre os
dois domínios de significação da língua supracitados.
A flutuação do signo/palavra possibilita a significação no discurso, ou seja, a
transformação do signo em palavra promove a significação. Do mesmo modo que o locutor
propõe-se como sujeito na enunciação, o signo assume a condição de palavra.
Consequentemente, a existência da palavra é dependente do signo, visto que o locutor se
apropria da língua, da qual o signo é a unidade. ―A mutação signo/palavra é o que promove a
significação da língua, reconhecível pela manifestação do sujeito no processo enunciativo.‖
(Della Méa, 2009, p.28).
7
A significação tratada aqui é entendida como resultado do sentido que se forma na
enunciação. Portanto, o sentido se forma na relação entre a sintagmatização e a situação de
discurso.
Ainda nesse sentido mais analítico, Benveniste escreveu A forma e o sentido na
linguagem (1966). Em ambos os artigos, o autor trata das duas formas de ser língua.
Entretanto, nesse último, enfatiza as noções de forma e sentido, as quais aparecem tanto na
dimensão semiótica da língua, quanto na semântica.
Na dimensão semiótica, há uma relação entre os elementos linguísticos, algo
semelhante à ideia de valor do mestre genebrino. O signo, que é a unidade dessa dimensão,
apresenta uma forma e vários sentidos, por oposição a outros signos. Já na dimensão
semântica, a unidade é a palavra, cuja característica é ter forma e um sentido dado pelo sujeito
na sua enunciação.
Em O aparelho formal da enunciação (1970), último texto escrito pelo autor, há a
diferenciação entre emprego das formas de emprego da língua. Para Benveniste, o emprego
das formas é necessário às descrições, já o emprego da língua é ―um mecanismo total e
constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira‖ (Benveniste, 2006, p.82).
O emprego da língua é o que permite a enunciação, definida como o ―colocar em
funcionamento a língua por um ato de utilização‖ (op.cit.: 82), ou como o ato de produzir
enunciados, ou ainda como um processo.
A relação do locutor com a língua determina os caracteres linguísticos da
enunciação. Deve-se considerá-la como o fato do locutor, que toma a língua por
instrumento, e nos caracteres linguísticos que marcam esta relação. (op.cit.: 82)
O locutor é ―parâmetro nas condições necessárias da enunciação‖ (p.83). Por ser a
enunciação um acontecimento individual, o locutor, no processo de semantização, ou seja, na
passagem da dimensão semiótica para a semântica, torna-se sujeito.
O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. Este
é um dado constitutivo da enunciação. A presença do locutor em sua enunciação faz
com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno. Esta
situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuja função é de
colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação. (p.84)
Através da semantização, a língua se transforma em discurso, e a enunciação é quem
permite ao locutor essa conversão.
4.
Ensino, PCN e enunciação: uma proposta de análise de texto
8
Não há um método, a priori, em Linguística da Enunciação, pois tratar da
enunciação, segundo Benveniste, é entender que a língua é posta em funcionamento por um
ato individual de utilização, que é irrepetível.
Trabalhar um texto, nessa perspectiva, é trabalhar uma cena enunciativa. Isso implica
dizer que, através dessa cena, o sentido se forma em palavras, ou seja, a dimensão semiótica
permite a construção da dimensão semântica.
Nessa seção, apresentaremos um exemplo de análise de texto, numa perspectiva
enunciativa, conforme os conceitos de Benveniste apresentados neste trabalho e conforme
renomados leitores de sua obra.
Seguiremos a metodologia sugerida por Toldo (2010), em que três elementos serão
analisados, pois, segundo a autora, constituem o quadro formal da enunciação. São eles: ato,
situação, instrumentos.
4.1. A cena enunciativa em análise
O texto é de Luis Fernando Veríssimo7, publicado em um blog da internet.
Simplicidade
7
1
Cada semana uma novidade.
2
A última foi que pizza previne câncer do esôfago.
3
Acho a maior graça. Tomate previne isso, cebola previne aquilo,
4
chocolate faz bem, chocolate faz mal, um cálice diário de vinho não tem
5
problema, qualquer gole de álcool é nocivo, tome água em abundância, mas,
6
peraí, não exagere...
7
Diante dessa profusão de descobertas acho mais seguro não mudar de
8
hábitos. Sei direitinho o que faz bem e o que faz mal pra minha saúde.
9
Prazer faz muito bem. Dormir me deixa 0 km.
10
Ler um bom livro me faz sentir novo em folha.
11
Viajar me deixa tenso antes de embarcar, mas, depois, rejuvenesço uns
12
cinco anos.
14
Viagens aéreas não me incham as pernas; incham-me o cérebro: volto
15
cheio de idéias...
16
Brigar me provoca arritmia cardíaca. Ver pessoas tendo acessos de
A publicação afirma ser o texto Simplicidade de autoria de Luis Fernando Veríssimo, embora não haja
nenhuma comprovação de tal fato.
9
17
estupidez me embrulha o estômago.
18
Testemunhar gente jogando lata de cerveja pela janela do carro me faz
19
perder toda fé no ser humano...
20
E telejornais? Os médicos deveriam proibir... como doem!
21
Caminhar faz bem, namorar faz bem, dançar faz bem, ficar em silêncio
22
quando uma discussão está pegando fogo faz muito bem: você exercita
23
o autocontrole e ainda acorda no outro dia sem se sentir arrependido de
24
nada.
25
Acordar de manhã arrependido do que disse ou do que fez ontem à
26
noite, isso sim, é prejudicial à saúde.
27
E passar o resto do dia sem coragem para pedir desculpas, pior ainda.
28
Não pedir perdão pelas nossas mancadas dá câncer. Guardar mágoas,
29
ser pessimista, preconceituoso ou falso moralista, não há tomate ou
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pizza que previna.
31
Ir ao cinema, conseguir um lugar central nas fileiras do fundo, não ter
32
ninguém atrapalhando sua visão, nenhum celular tocando e o filme ser
33
espetacular, uau!
34
Cinema é melhor para a saúde do que pipoca.
35
Conversa é melhor do que piada. Exercício é melhor do que cirurgia.
36
Humor é melhor do que rancor. Amigos são melhores do que gente
37
influente. Economia é melhor do que dívida. Pergunta é melhor do que
38
dúvida.
39
Sonhar é o melhor de tudo e muito melhor do que nada!
Como já foi dito, não existe um método, a priori, em linguística da enunciação.
Por isso, analisaremos o texto ―Simplicidade‖, em primeiro lugar, a partir do ato de
enunciação. O eu/autor enuncia-se, passando de locutor a sujeito, instaurando um tu/leitor. A
polaridade eu/tu é constitutiva da enunciação, portanto, o tu/leitor se transformará em eu e
produzirá uma outra enunciação de retorno.
O ato de enunciação é irrepetível, pois a situação de enunciação nunca é a
mesma, ou seja, o eu, o tu, o tempo e o espaço de interlocução mudam. No nosso caso, um
texto de grande circulação em blogs da internet instaura outros interlocutores, em outros
espaços (blogs) e em outros tempos. Além disso, toda enunciação de retorno do tu/leitor é
uma nova enunciação, uma nova instância de discurso.
―A presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância de discurso
constitua um centro de referência interno‖ (Benveniste, 2006, p.84), ou seja, os índices
10
específicos e os procedimentos acessórios8 utilizados pelo locutor fazem com que este esteja
sempre atrelado à sua enunciação.
Deste modo, podemos notar que locutor faz escolhas para construir a referência no
discurso, a qual é diferente daquela de Frege ou Peirce9. É uma referência ao mundo sob os
olhos daquele que fala.
Na linha 1, o locutor apresenta o referente ―uma novidade‖, que é complementada,
na linha 2, pela referência anafórica ―a última‖. Para o locutor, a ideia de comer pizza para
prevenir o câncer de esôfago é a notícia mais recente acerca de tudo aquilo que é publicado na
mídia, acerca de saúde. Além disso, na linha 7, outro referente anafórico é utilizado,
―descobertas‖, que também remete à ―novidade‖ (linha 1) na saúde.
Percebemos o tom irônico dessas palavras pelo todo que a cena enunciativa nos
apresenta. Através da sintagmatização do locutor, entendemos a escolha do título, que resume
todo o texto.
Em relação à situação de enunciação, destacamos as marcas formais e os índices de
ostensão, dos quais fala Benveniste, no texto de 1958, Da subjetividade da linguagem. Esses
são indicadores de subjetividade que marcam explicitamente a presença do sujeito na
enunciação.
No texto Simplicidade, de Veríssimo, as marcas formais são, basicamente, os índices
de pessoa, como ―Acho‖ (linha 3), ―Sei‖ (linha 8), ―me‖ (linhas 9, 10, 11, 16), rejuvenesço
(linha 11), nossas (linha 28). Essas passagens mostram o eu comentando acerca daquilo que
vem sendo propagado pela mídia, que determinados alimentos são aliados contra as doenças.
O eu vai apresentando, aos poucos, sua crítica para com essa ―moda‖ de dizer que os
alimentos curam.
―Acho‖ (linha 3) introduz a tese do enunciador, pois é empregado contrapondo
ironicamente a última novidade divulgada, a de que pizza previne câncer do esôfago. O
pronome oblíquo ―me‖ (linhas 9, 10, 11, 16 etc.) é usado para mencionar determinadas coisas,
em um ato reflexivo, que fazem bem ao enunciador, independente do alimento que ele ingira.
O diminutivo ―direitinho‖ (linha 8) não indica dimensão menor, como sugerem as
gramáticas tradicionais, em relação ao valor semântico dos sufixos. Nesse caso, o diminutivo
constitui marca da presença do sujeito, já que este ironiza aquilo que pode fazer bem à saúde,
8
Aresi (2011) discorre sobre esse assunto, concluindo que toda instância de discurso está implicada na
enunciação do sujeito, ou seja, os índices específicos (caracteres formais) e os procedimentos acessórios (o
agenciamento desses caracteres, a sintagmatização), os quais são tão fundamentais quanto os índices formais.
9
Para Frege, existe uma relação entre o mundo físico e a linguagem permeada pela condição de verdade. Já
Peirce afirma que todo signo é formado por duas unidades psíquicas (representamem e o interpretante) e uma
física (o objeto físico).
11
segundo as pesquisas, em detrimento daquilo que realmente lhe faz bem, como ler um livro,
caminhar, viajar.
―E os telejornais?‖ (linha 20) é uma pergunta retórica, que convoca o interlocutor a
refletir a respeito da funcionalidade desse tipo de programa de televisão. Em seguida, o eu
afirma que os telejornais ―doem‖ (linha 20). O signo se transformou em palavra e seu sentido,
podemos ver, formou-se no discurso, já que o eu relacionou o verbo doer aos telejornais, e
não a um machucado, por exemplo.
Da mesma maneira que a pergunta retórica, o vocábulo ―você‖ (linha 22) é utilizado
para chamar o tu/leitor a se enunciar. Esse vocábulo é a ―não-pessoa‖, da qual Benveniste
trata, porém está empregado com valor de 1ª pessoa (eu-enunciador ou nós-eu+leitor).
Esses recursos de convocar o tu a se enunciar marcam a intersubjetividade, que é
condição para a subjetividade. Sem o tu, o eu não existiria.
Outro recurso que marca fortemente o sujeito no discurso é a interjeição ―uau!‖
(linha 33). O locutor exterioriza sua posição em relação ao que faz bem a saúde: se as pessoas
conseguissem ir ao cinema sem ter alguém atrapalhando a visão e sem celular tocando seria
um bom remédio à saúde.
Os signos da língua são vazios e só se plenificam no uso que o locutor faz dela. Na
linha 14, a ideia expressa pelo enunciador, a qual diz respeito a inchar o cérebro, é um ponto
interessante de se destacar em relação ao processo de semantização. No texto que estamos
analisando, o enunciador afirma que viagens aéreas fazem com que seu cérebro inche. Em um
primeiro momento, podemos pensar que viagens aéreas o deixam com dor de cabeça.
Entretanto, o eu logo quebra essa expectativa, ao preencher o sentido do verbo ―inchar‖,
afirmando que esse inchaço é de ideias. Ou seja, um verbo que tem, previamente, um sentido
negativo, adquire um sentido positivo, através da subjetividade. Já que tudo passa pelo
sujeito, na perspectiva da enunciação benvenistiana, diz-se que a referência é ao sujeito, não
ao mundo.
Em relação aos instrumentos, Toldo (2010) afirma que todos os recursos linguísticos
dos quais a língua dispõe servem ao locutor para estabelecer uma relação interlocutiva e, por
isso, intersubjetiva, entre eu e tu. Tudo que destacamos nessa análise foram exemplos de
instrumentos que viabilizam a realização de um ato de enunciação.
Portanto, a análise do texto Simplicidade mostrou a dependência da dimensão
semiótica (forma/língua) em relação à dimensão semântica (discurso), evidenciando que o
sentido se forma através do uso.
12
5.
Considerações finais
Ao tomar a palavra, o eu instaura diante de si um interlocutor (tu), comprovando que
a intersubjetividade é estabelecida no uso da língua. A intersubjetividade é condição da
subjetividade; o uso da língua é sempre subjetivo. Assim, apesar de as marcas formais de
pessoa (eu/tu) não aparecerem em um texto (enunciado, cena enunciativa), este sempre será
subjetivo.
O importante, ao analisarmos um texto em sala de aula, é mostrar que o sentido de
uma expressão não está construído a priori, mas sim que depende do sujeito enunciador, isto
é, o sentido é construído a cada vez que um locutor toma a palavra. Por isso, cada alunoenunciador construirá seu próprio sentido.
Além disso, ao fazermos uma análise de texto sob a perspectiva enunciativa, não
podemos olhar os elementos – lexicais e gramaticais – de maneira isolada, visto que o texto
está todo relacionado ao sujeito que enuncia. Sobre isso, Flores e Mello (2009) afirmam que o
texto como conjunto deve ser levado em conta, pois cada enunciado tem referência única,
permeada pelo sujeito. Por isso, existem usos que são singulares na enunciação.
Além disso, Teixeira e Ferreira (2008) afirmam que devemos auxiliar
o aluno a observar o modo como as palavras circulam pelo enunciado, interrelacionando-se com outras para a expressão da ideia do enunciador. Assim, ele
poderá passar à condição de dialogante com o texto, instituindo-se como o outro da
escritura (página)
Oferecendo escuta ao texto, colocando-se na posição daquele a quem se fala, o
aluno/leitor poderá experimentar sua própria presença, ou seja, instituir-se como quem fala,
como aquele que, por sua intervenção singular, entreabre possibilidades de novos sentidos.
A significação é resultado do sentido na enunciação. Isso só é possível na
transformação da língua em discurso, do signo em palavra. Nessa transformação, ou seja, no
ato de enunciação, os signos podem assumir um sentido particular. Assim, corrobora-se a
ideia de que o ensino de língua portuguesa deve ser pautado na língua em uso, no discurso.
13
6.
Referências Bibliográficas
BENVENISTE, Émile. A natureza dos pronomes. Problemas de linguística geral I.
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- acessado em 07/12/2011