fundição Kovatch

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fundição Kovatch
PARTE III
DTI 3
Comunicação
e Cidadania
Comunicação popular, alternativa e comunitária:
um mapeamento da produção discente de PósGraduação em Comunicação no Brasil (1972-2012)
Popular, alternative and community communication:
a mapping of Postgraduate student production
in Communication in Brazil (1972-2012)
M a r i a A l ic e C a m pagn o l i O t r e 1
Resumo: Trata-se de um recorte da tese de doutorado da autora, por meio do
qual foram mapeadas as pesquisas referentes à comunicação popular, alternativa
e comunitária (CPAC) defendidas, até 2012, nos Programas de Pós-Graduação
em Comunicação no Brasil, níveis mestrado e doutorado. Foram analisadas 102
pesquisas sobre CPAC, por meio de Análise de Conteúdo, a partir de partes prédefinidas: Resumo, Palavras chave, Introdução, Sumário, Considerações Finais e
capítulo metodológico, quando presente. Resultados indicam: a) 68% das pesquisas
enfocam a comunicação comunitária, 24% enfatizam o caráter alternativo e 8%
dizem respeito a ambos os enfoques b) predominância de estudos empíricos 79% ante 21% de estudos teóricos; c) a variedade de denominações atribuídas às
experiências pelos pesquisadores; d) a constante luta das classes populares por
democratização da comunicação e por direitos sociais; e) a influência e importância
dos intelectuais orgânicos nas experiências estudadas, f) problemas metodológicos
como a não explicitação do método de pesquisa e em alguns casos nem do tipo
e técnicas no resumo e introdução; g) UMESP, USP e UFRJ como as instituições
que mais pesquisam sobre a subárea, e, h) Cicilia Peruzzo e Raquel Paiva como
as orientadoras que mais centralizam as reflexões no País.
Palavras-Chave: Comunicação popular. Comunicação alternativa. Comunicação
Comunitária. Pós-graduação. Brasil.
Abstract: The article refers to an extract piece of the author’s Doctorate thesis whereby researches relating with Popular, Alternative and Community Communication
(CPAC) presented in Brazil up to 2012 were mapped out. These researches relates
to Post Graduate studies in Brazil at master and doctorate level. To this analysis
102 researches about CPAC had their content evaluated by the pre-defined parts:
Abstract, Keywords, Introduction, Summary, Final Considerations and Methodology chapter when present. Results indicated: a) 68% of researches highlight and
focus the community communication, 24% emphasizes its alternative trait, 8%
relates to both focus: community and alternative; b) Empiric studies prevails in
79% before 21% of theoretical studies; c) a variety of denominations attributed to
the experiences by the researcher; d) the constant class struggle to democratize
1. Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo e docente da Universidade
de Marília. [email protected].
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communication and for social rights; e) the relevance and influence of the organic
intellectuals on the studied experiences; f) methodological problems such as no
research method explanation and in some cases not even the type and technique
on the abstract and introduction and; g) UMESP, USP and UFRJ as the institutions
that mostly research on this sub-area, and; h) Cicilia Peruzzo and Raquel Paiva
as the supervisors and tutors that most centralize this reflection in the country.
Keywords: Popular Communication. Alternative Communication. Community
Communication. Post-Graduation. Brazil
INTRODUÇÃO
STE ARTIGO apresenta um mapeamento e análise das dissertações e teses defendi-
E
das nos Programas de Pós-Graduação em Comunicação stricto sensu no Brasil, de
1972 a 2012, a partir da Análise de Conteúdo (AC). Nesta etapa, avaliamos com base
em um protocolo de AC as 102 dissertações e teses identificadas por meio de pesquisa
exploratória, sobre a comunicação popular, alternativa e comunitária (CPAC), definida
conforme nosso quadro de referências baseado em Jorge González, Cicilia Peruzzo,
Regina Festa, Pedro Gilberto Gomes e outros.
Quanto aos procedimentos metodológicos, no que se refere aos filtros usados para
compor a amostra, num primeiro momento analisamos todos os trabalhos a partir do
título. Depois, analisamos título e resumo. A última forma de seleção inclui a leitura
do título, resumo, introdução, considerações finais e capítulo metodológico (quando
presente) e sua Análise de Conteúdo.
Para selecionar os trabalhos e atribuir-lhes categorias específicas, o mais difícil
de fazer nesta subárea precisava ser feito: separar as experiências em categorias/
denominações, mesmo sabendo que elas são muitas vezes elásticas e híbridas. Também
contava como empecilho o fato de não estarmos em contato direto com as experiências
para analisá-las todas com os mesmo parâmetros. Nossa matéria-prima era um discurso
(já enviesado pelas marcas subjetivas/discursivas do pesquisador) sobre as experiências.
O ângulo que ele selecionou, os fatos que descreveu mais detalhadamente, as informações
que achou desnecessárias – e que talvez nos interessasse – e assim por diante. “O ponto de
vista, diz Saussure, cria o objeto” (apud LOPES, 2001, p.122); devido a isso, consideramos
importante elencar, dentre os critérios recuperados por meio de nosso quadro teórico
de referência, baseado principalmente nas pesquisas de Cicilia Peruzzo e na pré-análise
das teses e dissertações, alguns parâmetros que foram utilizados como critérios para
o enquadramento:
a) Comunicação popular e alternativa: processos diversos de comunicação (fanzine,
jornal mural, vídeos) forjados, geralmente, com o apoio de um agente externo às classes
populares (Igreja, movimentos populares, ONGs) e tendo como pano de fundo a questão da democratização da comunicação, do direito à voz e da crítica às desigualdades
sociais. Além disso, esses veículos contam com a participação do povo em sua produção
e/ou gestão. Não tematiza em primeiro plano questões referentes à localidade, como
problemas específicos do bairro, mas atua em uma esfera mais ampla de luta por direitos
sociais, incluindo o direito à comunicação.
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b) Comunicação popular e comunitária: Geralmente circunscrita a uma localidade,
ou a comunidades por afinidades, em que o foco está, para além do produto comunicacional, nos processos vivenciados por meio da participação horizontal, da produção à
gestão; processos educomunicativos que ampliam o olhar daquela comunidade sobre
o que está “extra-muro”. Exige, para que a comunidade se aproprie da comunicação de
maneira transformadora, processos que favoreçam a leitura crítica da mídia. Objetivam, na maioria das vezes, dar visibilidade às comunidades consideradas às margens
da sociedade, mostrando um outro lado que na maioria das vezes a grande mídia não
mostra; por isso, também se situa no âmbito da democratização da comunicação e na
amplificação de vozes. Atua como contrafluxo comunicacional em um momento em que
a mídia se coloca cada vez mais como legitimadora de discursos; não posicionando-se como combativa à grande imprensa, mas como fonte silenciada ou cuja imagem é
frequentemente deturpada ações que contribuem para os processos exclusórios. Sua
preocupação está geralmente focada nos projetos mais localizados de transformação
social, como políticas públicas que digam respeito ao bairro; embora, para além dos
aspectos políticos, também estejam a serviço da cultura local, da diversidade musical,
religiosa; em situações de constante negociação entre seus membros, já que não se pode
idealizar uma comunidade pós-moderna homogênea e sem conflitos.
c) Comunicação popular, alternativa e comunitária: Especificamente para a tese,
esta categoria serviu para caracterizar pesquisas, geralmente de cunho teórico, que
falavam de maneira ampla de uma comunicação transformadora e cidadã; ou de processos diversos de comunicação em comunidades periféricas, sendo, portanto também
entendido como um encontro de experiências alternativas e comunitárias de cunho
popular em uma mesma localidade.
d) Jornalismo Popular Alternativo: Menos amplo que a comunicação popular e alternativa, que pode envolver diversos processos que não apenas jornalísticos, consideramos
como jornalismo popular e alternativo os processos jornalísticos forjados, geralmente,
com o apoio de um agente externo às classes populares (Igreja, movimentos populares,
ONGs), nas mesmas bases da comunicação popular e alternativa, no que diz respeito a
temas, participação, postura ante aos grandes meios. A distribuição, geralmente, vai além
da localidade, portanto, contam com tiragens volumosas, se comparadas às experiências
de comunicação popular e comunitária. Devido a isso, assumem muitas vezes um padrão
“mais profissional”, jornalisticamente falando, se compararmos com a mídia comunitária.
Apesar de todo esforço de pesquisa, não garantimos aqui a infalibilidade da amostra e pode ser que trabalhos referentes à subárea que analisamos não tenham sido
contemplados pelos filtros aplicados ou tenham sido catalogados em desacordo com
outros quadros teóricos. Numa área tão plural, criativa e movediça, como a comunicação
popular, alternativa e comunitária não esperamos que haja um consenso generalizado.
Justamente por isso, elencamos nossos critérios e nos dedicamos a selecionar e analisar
40 anos de produção acadêmica baseados neles2. Para fins de análise, o gráfico abaixo
2. Não foi possível no espaço deste artigo apresentar os 102 títulos de pesquisas que compõem cada fase
de análise. Da mesma forma, não será possível apresentar todas as categorias analisadas, assim como
quadros e gráficos resultantes da AC. Aos que se interessarem em conhecer os resultados aprofundados,
o trabalho completo poderá ser encontrado a partir de agosto de 2015 no link http://portal.metodista.br/
poscom/teses-e-dissertacoes/teses.
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ilustra a divisão feita, com enfoque temporal, para a análise. Esta última década de
produção discente foi dividida devido à grande concentração de produções nesta fase
(cerca de 67% das pesquisas concentradas nesta década) e às rápidas mudanças sociais
e tecnológicas que podem nos permitir diferentes análises.
Gráfico 1. Distribuição das teses e dissertações sobre comunicação
popular, alternativa e comunitária por períodos (1972-2012)
Identificamos que a pesquisa referente à CPAC começa efetivamente em 1984,
com a dissertação de mestrado de Regina Festa, defendida na Universidade Metodista
de São Paulo; mesmo assim, situamos nosso estudo a partir de 1972, pois a pesquisa
exploratória abarcou todo o período de existência da pós-graduação em Comunicação
no país.
1. DE 1972 A 1992: REFLEXÕES FUNDANTES PARA A CPAC NO BRASIL
Identificamos que no período que vai de 1972 a 1992, estão presentes reflexões
fundantes para e sobre a comunicação popular, alternativa e comunitária no Brasil.
Fazem parte desta primeira fase de análises, que vai de 1972 a 1992, 11 pesquisas, sendo 8 (oito) dissertações de mestrados e 3 (três) teses de doutorado. A Universidade de
São Paulo e a Universidade Metodista de São Paulo ocupam neste momento posição
central no interesse pela CPAC, sendo 6 (seis) pesquisas desenvolvidas na USP e 4
(quatro) na UMESP.
Apesar de ser composto por apenas 11 trabalhos, encontra-se aqui uma multiplicidade de temas que engloba pontos principais da comunicação popular. De maneira
geral, podemos dizer que os temas abordados neste período marcam de maneira clara
a relação da comunicação popular com a Igreja católica (principalmente representada
pelo movimento de base e pelas Comunidades Eclesiais de Base); dialogam com os
conceitos marxistas de classe e dos conflitos de classes como pano de fundo da comunicação popular; falam sobre experiências de vídeo, rádio e jornal impresso populares;
além de discutirem a importância dos Centros de Documentação e Informação populares; enfocam a participação como peça chave para este tipo de comunicação; analisam
experiências em comunidades indígenas do Equador; e, por fim, analisam a inserção
do popular no ensino superior em comunicação. É um grande leque de discussões que
dá conta da amplitude e complexidade do universo da CPAC.
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Além disso, pesquisadores que fazem parte deste momento como Regina Festa,
Pedro Gilberto Gomes, Luiz Fernando Santoro e Cicilia Peruzzo passam a ser atores-chave para a pesquisa em comunicação popular, alternativa e comunitária desde então.
2. DE 1993 A 2002: LEGALIZAÇÃO E DEMOCRATIZAÇÃO EM DESTAQUE
No segundo período de análises identificamos 22 pesquisas referentes à comunicação popular, alternativa e comunitária, sendo 17 de mestrados e 5 (cinco) de doutorados.
Entre 1993 e 2002, a USP começa a se destacar com 7 (sete) pesquisas desenvolvidas. A
UFRJ aparece com 6 (seis) trabalhos e a Metodista (UMESP) com 5 (cinco) pesquisas.
Se nas duas primeiras décadas de pesquisa o total de trabalhos com esta abordagem
era 11, vivenciamos no final do século XX e início do século XXI o dobro de produções
sobre os temas, aumento certamente impulsionado pelo maior número de programas
de mestrado e doutorado em Comunicação no País, mas também pela importância que
tais temas representaram nos últimos anos. Acreditamos que as eleições diretas (1989)
e a sensação de liberdade política, de expressão e de mobilização da sociedade civil
tenham contribuído para esse salto de 100% nas pesquisas.
Esse período se destaca por dois marcos legais: a institucionalização dos canais
comunitários através da Lei Federal nº 8.977, de 6 de janeiro de 1995 – conhecida como
Lei do Cabo; e a Lei 9.612, de 19 de fevereiro de 1998, que institui o serviço de radiodifusão comunitária.
Depreendemos da análise de conteúdo que das 22 pesquisas deste momento, apenas uma fixava seus olhos para um período histórico anterior a 10 anos, estudando os
jornais alternativos da Amazônia numa análise que foi de 1971 a 1981.
Rádio e televisão foram os canais estudados em 13, das 22 pesquisas. Com relação a
temáticas paralelas que conseguimos identificar com as leituras, destaca-se a diminuição de pesquisas que falavam da Igreja Católica, agente tão importante nos trabalhos
da primeira fase de análises. Neste contexto, penas 13% do total de produções falavam
sobre comunicação relacionada à Igreja, enquanto na primeira fase eles representaram
36%. Com o fim da ditadura e a abertura política, as CEBs e a Teologia da Libertação
parecem ter perdido sua força.
Essas observações são importantes, pois, por meio de um olhar dialético, é possível
identificar o quanto o momento histórico e social vivido pelos pesquisadores influencia
na definição dos temas e problemas analisados. Muitos pesquisadores destacaram em
seus trabalhos que analisavam o objeto que ainda estava em movimento e, mais do que
enxergar um problema nisso, viam uma oportunidade de verificar durante o processo
de desenvolvimento do objeto (por exemplo, a instalação dos canais comunitários na TV
a Cabo) como as experiências se davam, servindo de motivação para futuros projetos.
3. DE 2003 A 2007: TESTANDO AS EXPERIÊNCIAS
E FORJANDO IDENTIDADES
Fazem parte deste período de análise, que vai de 2003 a 2007, 25 pesquisas sobre
comunicação popular, alternativa e comunitária, sendo 20 mestrados e 5 (cinco) doutorados. A UMESP apresenta neste período, um total de 5 (cinco) produções neste subcampo,
assim como a USP. UFRJ produziu nesta fase 4 (quatro) dissertações de mestrado.
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Identificamos que das 25 pesquisas, 21 tratam da comunicação popular e comunitária, o que representa cerca de 84% das pesquisas de 2003 a 2007, dado muito expressivo,
pois indica novas configurações nas pesquisas - e também nas experiências – sobre
CPAC: do alternativo para o comunitário. A mudança do cenário político, assim como as
novas formas de as classes populares se organizarem e se apropriarem da comunicação
contribuem para isso.
Com relação a temas subjacentes, que não foram categorizados na Análise de Conteúdo, mas que foram identificados pela recorrência com o qual foram tratados, destaca-se
a comunicação popular, alternativa e comunitária como ferramenta para a promoção da
cidadania, preponderante para o desenvolvimento local e para a melhoria nas condições
de vida da comunidade em destaque, inclusive com autores que incluíram o conceito
de esfera pública de Habermas, analisando as mídias comunitárias sobre esse viés:
processos e instrumentos capazes de fortalecer a esfera pública e o poder local.
Sedimentadas algumas conquistas nos anos anteriores - fim da censura, fim da
perseguição pela ditadura, regulamentação dos sistemas de Rádio e TV Comunitárias
etc - os pesquisadores voltam seus olhos para uma vertente da comunicação popular que
não é exclusiva desta década - sempre se falou da relação intrínseca entre comunicação
popular e cidadania - porém, neste contexto, a relação parece ganhar mais destaque.
É como se a conquista da cidadania fosse atividade-fim do processo de comunicação
popular e estivéssemos chegando lá; após duras batalhas.
Outro tipo de perseguição, que não o da ditadura, está presente nas pesquisas da
década: perseguição às rádios que não têm a autorização conquistada. As pesquisas
retratam as dificuldades desses veículos e os problemas identitários (discutem se são
ou não piratas, são ou não legítimas) e, nesse sentido, a dissertação de Cristiano Aguiar
Lopes defendida na UnB em 2005 e intitulada “Política de Radiodifusão Comunitária
no Brasil – Exclusão como Estratégia de Contra-reforma” deu grande contribuição. O
objetivo primordial do estudo foi demonstrar o quão restritiva é a política de radiodifusão comunitária vigente no Brasil, que, segundo o pesquisador, “termina por ser
não um fator de inclusão, mas de exclusão radiofônica” (LOPES, 2005, p. 5). Devido
a esse problema, alguns autores pontuaram em suas pesquisas a questão da municipalização das RadCom como uma possibilidade, uma saída para agilizar o processo
das concessões, inclusive sendo este o foco da dissertação de Adriane Lorenzon dos
Santos (2004).
A discussão identitária de “é uma comunitária verdadeira, mesmo sem a outorga?”
ou ainda “é verdadeiramente comunitária só por ter a outorga?” também esteve presente
nas discussões do período. Lahni (2005), Ferreira (2006), Bahia (2006) e Afonso (2007)
foram alguns pesquisadores que pautaram este tema.
4. DE 2008 A 2012: NA CONTRAMÃO TECNOLÓGICA,
O GRITO POR CIDADANIA
Os anos de 2008 a 2012 foram muito frutíferos para pesquisa sobre comunicação
popular, alternativa e comunitária. Em cinco anos, foram 44 produções acadêmicas,
sendo 42 dissertações e 2 (duas) teses, número que representa 43% do total de produções.
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A Metodista se destaca com a defesa de 11 dissertações e 1 (uma) tese sobre o enfoque pesquisado. Na UFRJ defende-se neste período cinco (5) mestrados. Pela primeira
vez, a Unisinos aparece como uma das instituições que mais produziu nesta abordagem, sendo 4 (quatro) dissertações e 1 (uma) tese publicada. A PUC-RS apresenta 3
(três) pesquisas, e a UFRGS, também situada no Rio Grande do Sul, aparece com duas
pesquisas sobre a subárea.
Percebe-se uma ramificação das pesquisas sobre o tema do eixo RJ-SP para o RS.
Isso também confirma o fortalecimento dos Programas em Comunicação de outras
regiões, que não a sudeste. Vimos nestes cinco últimos anos um declínio na produção
da USP sobre a CPAC, com apenas um trabalho produzido neste período. Certamente
isso se deve a falta de um professor-pesquisador que oriente e represente a subárea
analisada, como acontece na Metodista, na UFRJ e mais recentemente na Unisinos.
Neste período, pela primeira vez, tivemos acesso a 100% das teses e dissertações
completas, sendo que todas elas podem ser acessadas via internet. Isso demonstra um
grande avanço no Brasil com relação à democratização da ciência no que diz respeito à
produção discente stricto sensu, pelo menos no recorte estudado.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE
Cada comunidade, grupo ou processo comunicacional analisado é único e permeado por especificidades. Não é a toa que as pesquisas da área são de cunho geralmente
exploratório, na tentativa de apreender as particularidades de cada situação. No entanto,
para viabilizar a análise desta tese precisamos assumir posicionamentos teóricos que
nos permitissem categorizar as pesquisas, mesmo correndo o risco de não abranger
todos os posicionamentos teóricos possíveis. Assim, temos como eixo principal:
Quadro 1. Eixo principal das pesquisas (1972-2012)
Eixo principal
Comunicação popular e comunitária
69
Comunicação popular e alternativa
15
Comunicação popular, alternativa e comunitária
8
Jornalismo Popular Alternativo
10
Total
102
As experiências mais estudadas em nossa amostra, 68%, dizem respeito à comunicação popular e comunitária. Se somados os trabalhos categorizados como jornalismo
popular alternativo e comunicação popular e alternativa, que fazem parte de um mesmo tronco conceitual, temos 24% do total. Cerca de 8% retratam ou experiências que
reúnem o popular, alternativo e comunitário; ou se colocam como pano de fundo das
experiências em geral; por exemplo, a formação de comunicadores populares ou ainda
políticas públicos para ampliar o direito à comunicação, portanto foram consideradas
de maneira ampla.
Perguntamo-nos também sobre quais os canais de comunicação mais estudados
nas dissertações e teses. Obtivemos o seguinte gráfico:
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Gráfico 2. Suportes analisados nas teses e dissertações da amostra total (1972-2012)
Identificamos a predominância dos estudos sobre rádios (33%), sendo que 91% destes
falavam sobre rádios comunitárias. Em segundo lugar, destacam-se as pesquisas que
analisaram jornais impressos (15%), sendo que, destes, 79% dizem respeito à comunicação
ou jornalismo alternativo. Dentre as dissertações e teses que analisaram a televisão (11%),
em 90% dos casos o enfoque era a comunicação popular e comunitária. O vídeo, por
sua vez é o quarto suporte mais analisado (7%) e, na maioria dos casos, 57%, a pesquisa
dizia respeito à comunicação popular e alternativa.
Entendemos que a definição do tipo de experiência (popular, alternativa, comunitária
ou mista) não precede a escolha do meio de comunicação a ser utilizado. Parece-nos,
porém, que as características técnicas, de produção, linguagem, distribuição, seus formatos e até mesmo questões legais (como no caso da regulamentação de rádios e TVs
comunitárias), tornam alguns veículos mais propícios a serem usados em determinadas
situações: Rádio e TV enquanto comunicação popular e comunitária e Impresso e Vídeo
enquanto comunicação popular e alternativa, por exemplo. Se existem características que
promovem essa identificação, questões de adequabilidade e/ou quais são as variáveis
em jogo, podem ser propostas para outro estudo.
Questões metodológicas
Quanto à questão metodológica, foi comum identificarmos nas teses e dissertações,
termos como qualitativa, analítico-descritiva, levantamento, descritiva, exploratória,
hipotético-dedutiva e etnometodologia, por exemplo, sendo usados pelos pesquisadores como forma de definir o método utilizado na pesquisa. Pelo que identificamos na
literatura, não há consenso quanto à forma correta de apresentar o método. Uma forma
é, como explica Antônio Carlos Gil (2002, p. 41-43), classificar a pesquisa com base nos
seus objetivos, podendo estas serem exploratórias, descritivas ou explicativas. Triviños
(1987, p. 109) chama-os de tipos de estudo, podendo ser exploratórios, descritivos e
experimentais.
Elas podem ainda ser descritas, conforme Gil (2002, p. 43-57) com base nos procedimentos técnicos utilizados, sendo divididos quanto às fontes utilizadas para coleta
de dados: fontes de “papel” ou fontes “humanas”.
Constatamos que não há, entre os próprios livros e manuais de metodologia científica, consenso sobre a forma como deveriam ser apresentadas as orientações metodológicas da pesquisa. Em Gil (2002, p. 162-163), por exemplo, existe a orientação de
que deve aparecer o tipo de pesquisa e delineamento adotado; população e amostra;
coleta de dados e análise dos dados como foi/será feita, tudo com foco na descrição de
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procedimentos. Em Peruzzo (2013, p. 17), orienta-se que a metodologia seja apresentada da seguinte forma, exigindo a explicitação dos paradigmas teórico-metodológicos,
conforme consideramos:
Nesta parte do projeto é necessário descrever detalhadamente como se vai proceder para
fazer a investigação explicitando os métodos e as técnicas a serem empregados. Ou seja, há
que detalhar todos os procedimentos metodológicos adotados apontando:
a) Quais são os paradigmas teórico-metodológicos norteadores da pesquisa, principalmente
em se tratando de projetos de pesquisa para teses de doutoramento.
b) Qual a estratégia (o tipo de pesquisa) adotada, por exemplo, se será uma pesquisa bibliográfica, um estudo de caso, uma análise de conteúdo, uma pesquisa participante etc.
c) Descrição dos procedimentos e técnicas, ou seja, evidenciar os instrumentos a serem
empregados para o levantamento de dados e para a análise dos resultados, tais como questionário, entrevista, diário de campo, protocolo categorial etc.
Optamos, assim, ao formular as categorias da AC, separar em métodos de pesquisa
(Dialético; Fenomenológico; Positivista; Construtivista; Funcionalista; Outros) Tipos de
pesquisa (Pesquisa bibliográfica; Pesquisa documental; Pesquisa histórica; Pesquisa-ação;
Pesquisa participante; Pesquisa Etnográfica; Pesquisa de recepção; Estudo de caso; Análise de conteúdo; Análise de discurso) e as Técnicas (dentre elas, observação; entrevistas;
diário de campo; questionários; protocolos; planilhas) que orientaram a pesquisa.
Das 102 pesquisas estudadas, 14 foram classificadas como completas no que diz
respeito à explicitação metodológica (método, tipo e técnicas de pesquisa). Isso representa menos de 14% do total. Destas, 13, ou 93%, tiveram como referência o enfoque
marxista. Método dialético, histórico-dialético, ou materialismo dialético foram os termos utilizados pelos pesquisadores. Apenas em um trabalho o construtivismo fora
citado enquanto método de pesquisa. Em um dos trabalhos analisados, de Maria Inês
Amarante, a autora traz uma citação de Bertold Brecht (apud CANDIDO et al., 1972,
p. 97) que dizia que “tudo o que tem relação com o ‘conflito, o choque ou o combate’
nunca pode ser tratado fora da dialética materialista, pois é proveniente de uma força
social real que determina essas atitudes” (AMARANTE, 2004, p. 156). Lopes (2001, p. 38)
indo ao encontro da citação de Brecht, diz que “há certas problemáticas que somente se
impõem a partir de determinadas teorias, ou somente com base em dada teoria é que
certa problemática se resolve plenamente” (LOPES, 2001, p. 38).
Isso marca de maneira clara o viés com o qual a subárea é pensada, assim como o
quadro teórico de referência da comunicação popular, alternativa e comunitária, relacionando a própria pesquisa com o que se espera da praxis: menos desigualdades; mais
mudanças sociais; emancipação dos sujeitos; a defesa dos direitos sociais, dentre eles
o de comunicação; etc.
Com relação à baixa reflexão sobre o método utilizado, consideramos um problema nas teses e dissertações não apenas o silenciamento sobre a orientação teórico-metodológica enquanto paradigmas que norteiam a pesquisa, mas a falta de clareza na
indicação dos tipos e/ou técnicas de pesquisa nos resumos e introduções; já que embora
não haja consenso do que deva ser apresentado, há consenso de que ao menos os tipos
e ou técnicas de pesquisa devem ser explicitados. E em muitas pesquisas, tivemos que
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ir para além do resumo e introdução para entender quais foram os passos dados pelo
pesquisador para o encaminhamento das problematizações.
Ao falar especificamente das pesquisas em Comunicação, já em 2001 Lopes (2001)
questionava o que vimos refletir na vertente da comunicação popular, alternativa e
comunitária, até 2012. Assim diz:
É comum nas teses de comunicação notar-se um marco teórico que guarda pouca relação
com a estratégia metodológica [...] ou então um discurso inicial e bastante genérico sobre o
método, que serve mais para preencher a função de “título honorífico”3, tal como apontada
por Kaplan. Segundo Bachelard, a explicitação dos métodos é requisito indispensável para
o exercício da vigilância epistemológica que deve ser exercida pelo investigador (LOPES,
2001, p. 101-102).
Foi possível na análise perceber o caráter instrucional e técnico que o tema “métodos
e técnicas de pesquisa” tem representado. O ponto positivo é que mesmo a explicação
técnica foi ascendente no último período de análise, juntamente com a explicitação
plena dos métodos e técnicas, se compararmos com os anos de 2003 a 2007. Além disso,
os casos de pesquisas que não explicitavam métodos nem técnicas caíram para zero
e os que citam, mas com pouca clareza, representam neste último período apenas 2%.
É possível que com o amadurecimento das Ciências da Comunicação, assim como
as cada vez mais frequentes discussões epistemológicas, estejam forjando uma cultura
(urgente e necessária) de se dedicar mais atenção à reflexão e aos procedimentos metodológicos. Especificamente quanto a tipos e técnicas de pesquisa, identificamos que
100% das pesquisas são de cunho qualitativo, apesar de algumas apresentarem técnicas
quantitativas de coletas de dados, em alguns momentos, como por meio da utilização
de questionários (survey); levantamentos de dados de acesso; audiência etc.
Instituições e professores-orientadores que centralizam produções na subárea
Para encerrar essas considerações gerais sobre as análises de conteúdo quantitativas, elencamos instituições e orientadores que mais favoreceram o desenvolvimento
desta subárea.
Gráfico 3. Programas de Pós-Graduação que mais desenvolveram pesquisas
sobre a comunicação popular, alternativa e comunitária (1972-2012)
3. Segundo a autor, citando Kaplan, o termo título honorífico servia para designar uma preocupação formal,
que serviria para assegurar o “status cientifico”, sem qualquer indicação clara de como a preocupação se
incorpora à investigação (LOPES, 2001, p. 101).
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Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012)
Maria Alice Campagnoli Otre
Juntas, estas 7 (sete) instituições somam 82 pesquisas desenvolvidas no período
de 1972 a 2012, representando 80% do total. As outras instituições4 que produziram
teses e dissertações sobre a subárea estudada não foram apresentadas no gráfico, pois
tinham apenas 1 (uma) ou 2 (duas) pesquisas sobre o enfoque. Citamos três pontos, que
analisados de maneira cruzada, contribuem para este protagonismo:
1) Ano de criação do curso de pós-graduação em comunicação: Em sua maioria são programas tradicionais e consolidados que, também pelo tempo, cumulam mais pesquisas
nessa subárea. USP e UFRJ (1972); UNB (1974); UMESP (1978); Unisinos (1994) e PUC-RS
(1994) possuem de 20 a 40 anos de história. Apenas a Unesp iniciou o Programa mais
recentemente, em 2002, e doutorado em 2014.
2) Contemplam linhas de pesquisa específicas ou próximas da subárea: das sete instituições,
quatro possuem linha de pesquisa específica para a temática e as outras três se valem
de linhas bem amplas que abrem margem para a investigação da temática enfocada.
3) Na maioria, reúnem professores orientadores que se dedicam/dedicaram à temática; o que
indica o quanto estes professores estimulam a produção de conhecimento nestes locais
sobre comunicação popular, alternativa e comunitária5. Vejamos:
Gráfico 4. Professores que orientaram duas ou mais pesquisas sobre comunicação popular,
alternativa e comunitária, conforme nossa amostra. (1972-2007).
Por último, mas não menos importante, vale lembrar que tanto a Universidade Metodista de São Paulo quanto a Universidade Federal do Rio de Janeiro, que estão entre as
três principais referências sobre o tema no Brasil, mantêm grupos de pesquisa fortes e
que muito contribuem para a subárea, o Comuni (Metodista) e o LECC (UFRJ) promovendo encontros, discussões, investigações teóricas e empíricas. Sabe-se que a contribuição
desses grupos e professores é bem mais ampla do que o enfoque a que nos dedicamos,
porém, não teríamos como analisar as pesquisas que englobam todo o espectro de temas
correlatos abordados pelos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Portanto,
4. PUC-MG, PUC-RIO, PUC-SO, UCB, UCL, UEL, UERJ, UFC, UFF, UFG, UFJF, UFMG, UFPE, UFPR, UFRGS
e Unicamp.
5. Na Metodista, destaca-se a atuação do prof. José Marques de Melo, na década de 1980 com duas orientações;
e da profa. Cicilia Peruzzo, a partir dos anos 2000, com 19 orientações concluídas. Na UFRJ, temos Muniz
Sodré, com duas orientações, na década de 1990 e de Raquel Paiva, a partir dos anos 2000 (totalizando
oito orientações). Na USP, apesar de não termos atualmente um nome que se dedique exclusivamente à
comunicação popular, alternativa e comunitária, repetem-se como orientadores, José Marques de Melo, com
duas orientações nos anos 1980; Anamaria Fadul, com duas assistências, em 1989 e 1991; Maria Nazareth
Ferreira, com orientações em 1991 e 2005; José Manuel Moran Costa, orientador em 2000 e 2001; e Luiz
Fernando Santoro, em 2005 e 2006.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação popular, alternativa e comunitária: um mapeamento da produção discente de Pós-Graduação em Comunicação no Brasil (1972-2012)
Maria Alice Campagnoli Otre
delimitar o enfoque da comunicação popular, alternativa e comunitária seguindo nosso
quadro de referência, não significou menosprezar toda essa produção, mas foi estratégia
metodológica para a viabilização desta pesquisa.
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Nas margens do Rio Tocantins:
voz do Movimento dos Atingidos por Barragens
sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO
On the edges of the Tocantins River:
the voice of the Movement of Dam-Affected People
on Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO
Ligia R egina Guimar aes Clemente 1
Resumo: Este artigo objetiva compreender as formações discursivas construídas
pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) por meio da análise de 18
notícias publicadasde 2010 a 2013 do site institucional www.mabnacional.org.br
no trato dado sobre a Usina Hidrelétrica Estreito (construída no rio Tocantins, nos
estados do Maranhão e Tocantins, com reservatório de 400 km² e executada pelo
Consórcio formado pelas multinacionais GDF Suez-Tractebel Energia, Vale, Alcoa
e Intercement). O MAB atua comoporta-voz das comunidades impactadas por
hidrelétricas no país desde os anos 1980. A partir das contribuições teóricas de
Michel Foucault, mapeiam-se aqui os sujeitos que constituem o discurso do MAB:
quem fala, o que fala e o lugar institucional do discurso do Movimento. Dos
resultados parciais, nota-se que a principal temática abordada abarca as ações
de resistência do movimento contra as hidrelétricas,marchas, manifestações,
denúncias e conquistas. O MAB considera o Ceste como “dona da barragem”
e põe em xeque o interesse das multinacionais em detrimento do bem-estar
da população local; situa o Estado como responsável pelo empreendimento e
pela situação de vida dos atingidos e reforça seu próprio lugar institucional de
mediador nasconquistas do direito das famílias atingidas.
Palavras-Chave: Movimento dos Atingidos por Barragens. Usina Hidrelétrica
Estreito. Formações Discursivas.
Abstract: This article aims to understand the Discursive Formations built by
the Movement of Dam-Affected People (MAB) through the 18 news analysis
published 2010- 2013 on the institutional site www.mabnacional.org.br about
the Usina Hidrelétrica Estreito (built on the Tocantins River in the states of
Maranhão and Tocantins, with reservoir 400 km² and executed by the Consortium formed by multinational GDF Suez-Tractebel Energia, Vale, Alcoa and
Intercement). The MAB acts as spokesman of the communities impacted by
hydropower in the country since the 1980s. From the theoretical contributions
of Michel Foucault we map here the subjects that constitute the discourse of
MAB: the speaker, the talking and the institutional place Movement speech.The
partial results, we note that the main theme discussed covers the movement of
1. Mestranda da Universidade Paulista – Unip. [email protected].
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Nas margens do Rio Tocantins: voz do Movimento dos Atingidos por Barragens sobre a Usina Hidrelétrica Estreito - MA/TO
Ligia Regina Guimaraes Clemente
resistance actions against hydroelectric power plants, such as marches, events,
complaints and achievements. The MAB considers Ceste as “owner of the dam”
and questions the interest of multinationals to the detriment of the welfare of
the local population; places the State as responsible for the development and the
living situation of those affected and reinforces their own mediator institutional
place in the achievements of the right of affected families.
Keywords: Movement of Dam-Affected People. Usina Hidrelétrica Estreito. Discursive Formations
D
ENTRO DA problemática que envolve a construção de grandes empreendimentos
no país, como a Usina Hidrelétrica Estreito, este artigo traz o recorte de uma
pesquisa de Mestrado em andamento, na qual nos preocupamos em observar
como são construídos os discursos nas diferentes instâncias da esfera midiática sobre
os diversos atores sociais envolvidos no processo de implantação de uma usina. A
partir da categorização das instituições que fazem parte desse processo por esferas: do
Estado, da Sociedade Civil; do Mercado e da mídia impressa, analisa-se como os atores
sociais, tais quais: o poder público, o consórcio responsável pelas obras; associações;
movimentos sociais; organizações não governamentais e comunidade impactada direta
e indiretamente (ribeirinhos, agricultores, comerciantes, indígenas e outros) se fazem
representar e são representados.
Neste texto, especificamente, enfocaremos sobre a construção do discurso de um
dos segmentos em análise, na esfera da sociedade civil, o Movimento dos Atingidos
por Barragens (MAB). Analisaremos aqui o site institucional do MAB, na cobertura jornalística sobre a UHE Estreito, com o intuito de perceber as Modalidades Enunciativas
que compõem essas Formações Discursivas (Foucault, 2000), identificar quais sujeitos
falam, sobre o que falam e qual o lugar institucional do Movimento.
Tomaremos como suporte teórico, para compreender o discurso, a obra de Michel
Foucault, que em A Ordem do Discurso (2009) propõe métodos de análise, de desconstruir os procedimentos que regem o discurso, de compreender a origem de sua formação.
Apropriando-nos dos conceitos trabalhados em Arqueologia do Saber, buscamos encontrar, num percurso metodológico, regularidades no discurso, como propõe Foucault, no
conceito-noção de Formação Discursiva.
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante
sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos,
as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições
e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva. (Foucault, 2000, p. 43)
As regularidades que existem por trás da dispersão de elementos e essas regularidades resultam no processo de formação discursiva, que tentaremos identificar nas
publicações do MAB sobre a Usina Hidrelétrica Estreito.
A Usina em estudo, a UHE Estreito, foi inaugurada em 2012. Construída no rio Tocantins, é situada nos estados do Maranhão e Tocantins, com reservatório de abrangência
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em 12 municípios desses dois estados e alcançando 400 km2 de terras inundadas. Sob
responsabilidade do Consórcio Estreito Energia (Ceste), formado pelas empresas multinacionais GDF Suez-Tractebel Energia, Vale, Alcoa e Intercement, a Usina teve investimento na ordem de R$ 5 bilhões e compõe uma das grandes metas do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) 2 na área energética do país desta década. O processo
de instalação do empreendimento, iniciado em 2008, foi marcado por diversos conflitos
e despertou o debate na imprensa sobre as questões relativas aos impactos trazidos a
nível local (questões ambientais, socioeconômicas e territoriais), assim como o potencial
desenvolvimento para a matriz energética brasileira gerado pela barragem.
1. O SUJEITO ATINGIDO POR BARRAGEM
Antes de discutirmos a natureza de movimentos sociais como o Movimento dos
Atingidos por Barragens, é válido esboçarmos alguma demarcação sobre quem é o
sujeito “atingindo por barragens” e quais legislações e concepções abarcam esse sujeito.
Waldman enumera alguns impactos mais recorrentes na criação de usinas hidrelétricas.
A forma com a qual é realizado o estudo das propriedades; desmatam as áreas, destroem
roçados, fazem perfurações, instalam postos de mediações causando uma série de prejuízos
aos proprietários que não são indenizados. [...] Alteração do curso rio e poluição das águas
a jusante da barragem. O que afeta a pesca e o plantio. Alteração na ecologia; surgimento de pragas. Mudanças bruscas na região e possibilidades de terremotos. Êxodo rural e
migração forçada; aumento de desemprego e violência, destruição da cultura, esfacelamento
da vida comunitária; Desaparecimento de terras férteis que estão produzindo alimentos
(Waldman, 2002, p. 82).
Para que sejam emitidas licenças ambientais e a permissão para construir usinas
hidrelétricas é necessária a realização do chamado Estudo de Impactos Ambientais
(EIA). No caso da UHE Estreito, o EIA foi realizado em 2001, pela empresa CNEC
Engenharia como condição para emissão da Licença Prévia pelo Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O EIA relata, no quesito
“impactos socioambientais”, que a construção da UHE Estreito resultaria num saldo
inicial de 5.937 habitantes atingidos, compreendidos em 268 famílias da zona urbana
e 1.019 famílias da zona rural. Registra, também, impactos sobre 301 imóveis urbanos
atingidos e 909 imóveis rurais. O Estudo reconhece e avalia os impactos ambientais e
sociais para a região: “A intervenção sobre o espaço físico para implantar a UHE Estreito
(TO/MA) atinge também o espaço social constituído, provocando, de modo considerável,
alterações no cotidiano da população residente nas proximidades do empreendimento”.
(CNEC, 2001, p.67).
O EIA aponta as principais tendências da mudança social decorrente da implantação
do empreendimento, evidenciando, principalmente, os processos sociais que atingem as
populações rural (ribeirinha e ilhéus) e urbana, que se encontram na área a ser afetada
pelo reservatório e afirma que o meio socioeconômico é o que abarca os impactos mais
representativos das alternativas de barramento do empreendimento, classificado em
quatro diferentes grupos:
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Econômico (a base econômica efetiva e potencial da área estudada): potencial dos recursos
naturais e potenciais áreas de lavouras; Social (as populações urbana e rural afetadas):
integração à vida social, alterações no nível de emprego, na posse dos meios de produção e
trabalho e interferências culturais; Regional (quilometragem de estradas): Infra-estrutura
de articulação produtiva e social da região; e institucional (divisão político-territorial):
municípios atingidos em mais de 10% e sedes municipais relocadas (CNEC, 2001, 34).
O Estudo de Impactos Ambientais, além de descrever a área a ser afetada pelo
empreendimento, apresenta alternativas, como indenização, desapropriação por utilidade pública ou não e o reassentamento habitacional. “A desapropriação é o procedimento
administrativo pelo qual o Poder Público ou seus delegados, mediante prévia declaração
de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, impõe ao proprietário a
perda de um bem, substituindo-o em seu patrimônio por justa indenização” (CNEC,
2001, p.88).
Nos termos do art. 10, da Lei 9.074/95, com a redação dada pela Lei 9.648/98, “cabe
à Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, declarar a utilidade pública, para
fins de desapropriação ou instituição de servidão administrativa, das áreas necessárias
à implantação de instalações de concessionários, permissionários e autorizados de
energia elétrica”. Desde 26 de outubro de 2010, com o Decreto Nº 7.342, a ferramenta
utilizada pelos estudos hidrelétricos que define quem é ou não considerado atingido
é o Cadastro Socioeconômico realizado com os moradores das áreas afetadas: “Art. 1o
Fica instituído o cadastro socioeconômico, como instrumento de identificação, qualificação e registro público da população atingida por empreendimentos de geração
de energia hidrelétrica”.
Dentro da compreensão sobre quem é esse sujeito que sofre os impactos, Vainer
(2007), no artigo “Conceito de atingido: uma revisão do debate e diretrizes”, discute que
a noção de “atingido por barragem” não é meramente técnica ou econômica, mas é um
conceito em disputa, que diz respeito à legitimação e ao reconhecimento de direitos e
demandas.
Estabelecer que determinado grupo social, família ou indivíduo é, ou foi, atingido
por determinado empreendimento significa reconhecer como legítimo – e, em alguns
casos, como legal – seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação ou reparação não pecuniária. Isto explica que a abrangência do conceito seja, ela
mesma, objeto de uma disputa (Vainer, 2007, p.01)
No caso da UHE Estreito, ser reconhecido como atingido e, consequentemente,
ter direito a uma compensação, foi motivo de diversas tensões entre os moradores das
áreas direta e indiretamente atingidas do reservatório, sociedade cicvil organizada e o
Consórcio responsável pelo empreendimento.
A forma como o atingido é concebido, os princípios que essa concepção abarca
definem as práticas pelas quais a instituição vai reconhecer os direitos desse sujeito.
Locatelli (2014) e Vainer (2009) traçaram um quadro com síntese de concepções sobre o
atingido que vêm sendo utilizadas por projetos hidrelétricos desde os anos 1980, definindo as principais características e por quais instituições são usadas:
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Tabela 01. Concepções sobre Atingido por Barragens
Concepção
Características
Tendência de uso
Territorial patrimonialista
Direito de desapropriação por interesse público;
“O território atingido é concebido como sendo a área
a ser inundada e a população atingida é constituída
pelos proprietários fundiários da área a ser inundada”;
Indenização mediante a títulos.
Empreendedores
Bndes.
Hídrica
Efeitos do empreendimento estritamente a área a ser
inundada. Exclui os que não têm área alagada, mas
têm sua estrutura produtiva prejudicada.
Bndes; Legislação; Empreendedores;
MME; Aneel; Ibama; Eletrobas.
Mudança social
Empreendimento como mudança social nos planos
econômico, político, cultural e ambiental, em várias
dimensões e escalas espaciais e temporais.
Parte da literatura acadêmica, movimentos sociais, MAB, Banco Mundial,
Comissão Mundial de Barragens.
Fonte: Locatelli (2014); Vainer (2009).
Como se pode observar no quadro, a concepção sob um ponto de vista de mudança
social considera, além das mudanças físicas e territoriais que o alagamento em sentido
estrito acarreta, também as outras instâncias mais subjetivas pelo qual o atingido é
submetido. Essa concepção é um ponto de partida dos movimentos sociais que atuam
na causa, como a do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que luta pela
garantia do direito dos atingidos por barragens no país.
2. O MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS
Aumentar o potencial energético do país também tem sido uma grande preocupação de especialistas desde a década de 1970, quando grandes projetos hidrelétricos
começaram a ser implantados. Considerada uma energia “limpa”, mais segura, mais
duradoura e menos custosa quando comparada com outras formas de geração de energia,
a hidroeletricidade tem sido o meio mais utilizado pelo país para suprir sua demanda
por energia, correspondendo a 67,09% da produção nacional atualmente em operação
(Aneel, 2014). As demais fontes utilizadas no Brasil em operação são de origem, respectivamente, fóssil (19,04%); biomassa (9,58%); nuclear (1,45%); eólica (2,82%) e solar (0,01%)
(Aneel, 2014).
O processo de instalação das primeiras usinas hidrelétricas no Brasil se deu de forma
abrupta, muitas vezes, ferindo os direitos das famílias ribeirinhas.
Milhares de atingidos por barragens foram vítimas da ditadura militar, principalmente
nos anos 1970, sendo expropriados de suas casas, terras e trabalhos sem qualquer tipo de
direito ou reparação pela construção de barragens, tais como Sobradinho, Itapiraca, Tucuruí,
Itaipu e Passo Real. Os ‘afogados’ não eram reconhecidos como sujeitos de direitos pelas
empresas construtoras e pelo Estado, que considerava os desalojados como uma questão a
ser resolvida do âmbito da reforma agrária. (ANAB, 2013, p.09)
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, novos movimentos sociais eclodiram
no Brasil, como movimentos das mulheres, ecológicos e pacifistas. Novos atores sociais
entraram em cena. Nesse contexto que surgiam várias forças de trabalhadores como o
Movimento Sem Terra, a Central Única dos Trabalhadores e o Partido dos Trabalhadores,
a organização dos atingidos por barragens dava seus primeiros passos.
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A organização do MAB teve raízes nos focos de resistência locais de usinas do Tucuruí (PA); Itaipu (binacional com Paraguai), Itá e Machadinho, no sul no país; Sobradinho
e Itaparica, na região nordeste. Nessas regiões os atingidos iniciaram revoltas, lutas por
indenização e formaram organizações locais e regionais de resistência. Eram as chamadas Comissões de Atingidos, CRAB (Comissão Regional dos Atingidos por Barragens)
na região Sul, CAHTU (Comissão dos Atingidos pela Hidrelétrica de Tucuruí) e CRABI
(Comissão Regional dos Atingidos do Rio Iguaçu).
A partir de março de 1991 o MAB se consolidou como um movimento nacional,
popular e autônomo, de massa, com direção coletiva, organizando e articulando as ações
contra as barragens a partir das realidades locais. Atualmente o MAB está organizado
em 16 estados do Brasil (BA, CE, GO, MA, MG, MT, PA, PB, PE, PI, PR, RO, RS, SC, SP e
TO), levantando bandeiras pelos direitos dos atingidos por barragens, por um modelo
energético popular que leve em conta as necessidades do povo, defendendo o lema “Água
e energia não são mercadorias! Água e energia são para soberania!”.
O MAB está organizado nos grupos de base e possui coordenações a nível local,
estadual e nacional. De acordo com o movimento, integram o MAB:
Participam dos Grupos de Base todas as famílias ameaçadas ou atingidas direta e indiretamente por barragens. Na prática, isso significa organizar todos aqueles que moram nas
comunidades atingidas e estão dispostos a lutar. Participam dos grupos, não só as famílias
que possuem terras nas comunidades, mas também aquelas que de alguma forma dependem
economicamente da comunidade atingida para viver ou do próprio rio, ou seja, os arrendatários, os posseiros, os pescadores, os meeiros, os parceiros, os agregados, os trabalhadores
rurais sem-terra, entre outros (MAB, acesso em agosto de 2014).
3. PRODUÇÃO DISCURSIVA NO SITE DO MAB
O site www.mabnacional.org.br funciona como uma ferramenta institucional do
movimento, como porta-voz das ações realizadas nas lutas em prol dos atingidos por
barragens de todo o país, denunciando perdas de direitos e destacando as conquistas
alcançadas pelo movimento. O site é muitas vezes utilizado como fonte secundária por
jornalistas na produção do noticiário sobre a atuação de hidrelétricas.
O site em análise data o início de postagens de notícias a partir de 2009. Além de
postagens sobre barragens ordenadas de acordo com as cinco regiões geográficas do
país, é possível acessar também a outras produções institucionais do movimento, como
o jornal institucional “Jornal do MAB”, entrevistas em áudio, poesias, músicas, jingles,
vídeos, cartilhas, fotos; assim como um acervo de publicações acadêmicas sobre hidrelétricas como livros, dissertações, teses e artigos.
Para este estudo foram mapeadas primeiramente a totalidade de 33 notícias jornalísticas do site que fazem menção à UHE Estreito, no período de 2009 a 2013 (período
que compreende das fases de instalação ao início de operação da usina). Do total das 33
notícias foram selecionadas para a análise 18 notícias, que têm como temática específica
somente a problemática que envolve a UHE Estreito.
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Tabela 02. Notícias site do MAB sobre a UHE Estreito selecionadas para análise
Título na notícia
Data de publicação
1.
Atingidos por barragens realizam acampamentos na próxima semana
12 mar 2010
2.
Atingidos por barragens reforçam acampamento de 9 meses no Tocantins
16 mar 2010
3.
Atingidos por barragens continuarão mobilizados rumo a Brasília
18 mar 2010
4.
Atingidos pela UHE de Estreito realizam marcha por direitos em Tocantins
19 ago 2010
5.
Atingidos pela UHE Estreito continuam marcha por direitos
30 ago 2010
6.
Marcha dos atingidos chega à Estreito
7.
MAB denuncia violação de direitos humanos na barragem de Estreito
18 mar 2011
8.
Atingidos ocupam área da União em Barra do Ouro (TO)
18 abr 2011
9.
Usina de Estreito acaba com pesca no Tocantins
27 abr 2011
10.
Acampamento ganha força com chegada de mais atingidos
29 abr 2011
11.
MAB e MST completam uma semana de acampamento em frente ao INCRA (TO)
12.
Hidrelétrica de Estreito deixa famílias assentadas sem água
07 jun 2011
13.
Ceste apresentou relatório falso, denuncia MPF/TO
22 jun 2011
14.
Pescadores do Maranhão e Tocantins organizam cooperativa
04 out 2011
15.
Atingidos pela barragem de Estreito cobram resolução de problemas
15 mar 2012
16.
Atingidos por Estreito entregam pauta a presidenta Dilma
20 out 2012
17.
Ministro da Pesca e Aquicultura inaugura salas multiuso em Estreito
25 fev 2013
18.
Atingidos trancam hidrelétrica de Estreito, em Tocantins
11 jul 2013
02 set 010
06 maio 2011
Fonte: www.mabnacional.org.br
3.1. Quem fala e o sobre o que se fala?
Em sua aula inaugural no Collège de France, Foucault levanta alguns apontamentos sobre a Ordem do Discurso. O primeiro deles é o pressuposto que a produção do
discurso em toda sociedade é “ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada
e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade” (2009, p.8). Nessa obra, Foucault elenca procedimentos externos e internos
de exclusão do discurso. Segundo ele, a palavra proibida (interdição), a segregação da
loucura (separação) e a vontade de verdade são os três grandes sistemas de exclusão e
que se apoiam sobre um suporte institucional. Foucault (2009) aponta que os procedimentos de controle (seleção, organização e redistribuição da produção) funcionam como
rarefação do discurso, da “rarefação dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem
do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para
fazê-lo” (p.37). E destaca três coerções do discurso: as que limitam seus poderes; as que
dominam suas aparições aleatórias e as que selecionam os sujeitos que falam.
Recorreremos, para esta análise, ao conceito de Foucault (2000) sobre formação
discursiva, que objetiva desvendar o funcionamento das regras de formação de cada
constituição em particular, buscando a regularidade em meio à dispersão. Estas regras
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passam pela descrição dos quatro níveis de construção discursiva: Objetos, Modalidades Enunciativas, Conceitos e Estratégias. Tratando da formação das Modalidades
Enunciativas Foucault (2000, p.57-59) aponta que é preciso descrever uma coexistência
de enunciados dispersos visando buscar sua articulação e determinar as regras que
permitem a existência de enunciações diversas. Estas regras remetem a questões como:
1) Quem fala? Quem, entre todos os sujeitos falantes possui legitimidade para
enunciar?;
2) De quais lugares institucionais ele obtém o seu discurso? De qual lugar advém
tanto os objetos e enunciados quanto sua legitimidade?;
3) Que posições o sujeito ocupa em relação aos domínios ou grupos de objetos?
Estes três questionamentos põem o discurso novamente em um jogo de relações,
uma prática que articula status, lugares e posições e, em plena expressão discursiva,
produz um campo de regularidades para as diversas (e dispersas) posições de
subjetividade (Foucault, 2000).
No quadro-resumo abaixo são identificados, nas 18 notícias, quem é o sujeito que
fala, quem é qualificado para falar; quem obedece aos critérios que regem o discurso,
categorizado aqui de acordo com a esfera a qual pretence (Estado, Mercado, Sociedade,
Sociedade Civil Organizada e Academia). Observamos que em 17, do total das 18 notícias,
pelo menos um dos membros da coordenação no MAB ou de outra instituição civil organizada tem sua voz no texto veiculado. Em seis, do total das notícias analisadas, o atingido
(morador, pescador ou ribeirinho, que não necessariamente membro do Movimento)
foi ouvido e pôde detalhar, com citações diretas, seu posicionamento e relato perante
a construção da UHE Estreito. Considerando-se que a temática principal abordado no
noticiário do MAB são denúncias contra ao Consórcio responsável pela Usina, constata-se
que não houve registro, no entanto, da fala do Ceste - consórcio responsável pela Usina.
Tabela 04. Quadro-resumo sujeitos que falam.
Esfera
Quem Fala
Estado
Analista do IBAMA que não quis se identificar; Ministério Público Federal; Prefeito de
Babaçulândia; Procurador da República no Tocantins, Álvaro Manzano.
Mercado
------
Sociedade
Assentado Alberto dos Reis, engenheiro agrônomo e morador;
Atingidos; Morador; Moradora; Pescador Domingos; Pescador Raimundo.
Sociedade Civil
Organizada
Cirineu da Rocha, coordenador regional do MAB; Flávio Gonçalves, coordenador do Movimento;
José Josivaldo Alves, da coordenação nacional do MAB; Luiz Moura, presidente da Associação de
Pescadores Cooperatins; MAB; Pescadores.
Academia
Especialista em Ecologia e Conservação de Peixes da Universidade Federal do Tocantins (UFT),
Fernando Mayer Pelicice; Professora de Ciências Sociais da Universidade Federal de Tocantins
(UFT), Rejane Medeiros.
Fonte: elaborado pela autora
Na análise do diagnóstico sobre o que se fala, tem-se que a principal temática na
produção do noticiário do MAB permeia sobre ações de táticas de resistência do movimento contra as hidrelétricas, como marchas, manifestações, acampamentos, denúncias
e as evidências das conquistas alcançadas.
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Enunciados do tipo ‘“Lutaremos pelos nossos direitos até que tenhamos condições
mais dignas para viver’, declarou José Josivaldo Alves, da coordenação nacional do
MAB” (MAB, 2010), funcionam como regularidades que marcam o lugar institucional do
Movimento como militância ativa, que atua quando o Estado deixa de prover os direitos
do cidadão. ‘“Já se passaram mais de 30 dias e nada foi resolvido. Foram publicadas
algumas denúncias, mas nada adiantou. O povo então ocupou a área e não vai sair’,
declarou uma militante” (MAB, 2011).
A visão do noticiário do MAB sobre o Consórcio Estreito Energia é de que o Ceste
é “dono da barragem”, evidenciando que as empresas que compõem o Consórcio são
multinacionais e que não se preocupam com o bem- estar da população local.
‘O consórcio é formado pelas empresas Suez, Vale, Alcoa, BHP Billiton Metais e Camargo
Corrêa Energia. São todas transnacionais que não se importam com a vida das pessoas,
apenas com o lucro que a usina vai gerar, por isso não vamos arredar o pé’, afirmou Cirineu
da Rocha, coordenador do MAB. (MAB, 2010)
Há uma queixa recorrente nos enunciados da falta de diálogo entre os atingidos
e o Ceste. A população local, na outra extremidade do processo, não participaria
plenamente da tomada de decisões sobre a Usina:
‘Ao invés de discutir os direitos dessas categorias, as empresas vêm cooptando, articulando
falsas lideranças para confundir e dividir as comunidades, prometendo empregos, prestação de serviços, doando recursos para festas, computadores, carros e outras coisas’, afirma
Cirineu da Rocha, coordenador do MAB na região (MAB, 2010).
Regularidade observada tanto na fala institucional do movimento quanto na da
sociedade atingida como se observa na notícia intitulada “MAB denuncia violação de
direitos humanos na barragem de Estreito”:
‘Durante todas as audiências públicas realizadas no município de Barra do Ouro, em Tocantins, o consórcio sempre deixou claro que os povoados a beira rio não seriam atingidos. No
entanto, no início do ano, uma equipe do consórcio alojou-se na cidade e iniciou o levantamento de todo o povoado, sem sequer discutir conosco o porquê de tal medição de última
hora’, afirmam os atingidos. (MAB, 2011)
A expropriação dos moradores, sob uma concepção sobre o atingido territorial-patrimonialista, conforme detalhado na tabela 01, enquadra-se com uma das principais reivindicações do Movimento. O curto intervalo de tempo no qual o processo
ocorre também coloca o morador ribeirinho numa situação de sujeição frente à força
do empreendimento. ‘“Eles deram o prazo de 24 horas para nós sair e se não saísse,
nós iria ser multado em até 27 mil reais e seria retirado por força policial’, declarou
uma moradora” (MAB, 2011). A relação com o ambiente transformado; a relocação
das famílias; a adaptação a novas ocupações de trabalho com a nova configuração
do cenário pós a barragem também compõem de forma persistente os enunciados
analisados.
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‘Estou com a minha canoa no seco. Pesquei a minha vida inteira e criei meus 15 filhos
com a pesca’, lamenta Raimundo Tavares da Silva, 70 anos, 43 dedicados à atividade. O
pescador conta que tanto abaixo quanto acima da barragem, não há mais peixe. ‘Acabou a
nossa condição de pescar. Com essas mortes, as pessoas nem estão comprando os peixes
que restaram’, completa (MAB, 2011).
O lugar institucional da esfera da academia, com a fala da Professora de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Tocantins (UFT), Rejane Medeiros, define o funcionamento econômico da hidrelétrica sob uma perspectiva que corrobora com o lema
defendido pelo movimento: “Trata-se de um caso de privatização da água, um bem
natural sendo utilizado a favor da minoria que controla a água na região para gerar
energia para seu próprio beneficio” (MAB, 2011).
Na ocasião da inauguração da usina, o site publicou em 20 de outubro de 2012, a
notícia intitulada “Atingidos por Estreito entregam pauta a presidenta Dilma”.
Durante a inauguração da UHE Estreito, nesse 17 de outubro (quarta-feira), a presidenta
Dilma Rousseff recebeu a pauta do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). A pauta
é resultado de anos de luta e organização das famílias atingidas por esta barragem que em
muitos momentos sofreram por falta de diálogo e intransigência dos representantes dos
CESTE, dona da barragem. Desde o início das obras, os atingidos já fizeram mais de três
acampamentos e uma marcha de mais de uma centena de quilômetros sempre na busca da
terra e das condições de sobrevivência das famílias. A presidenta se comprometeu em dar os
devidos encaminhamentos principalmente no tocante a terra para as famílias cadastradas
pelo INCRA e no desenvolvimento do projeto do pescado. ‘Estreito é um marco para o setor
elétrico brasileiro e para pesca, pois foi a partir do processo de luta dos pescadores que os
mesmos foram reconhecidos como atingidos. Para pensar, propor, construir o desenvolvimento é necessário dialogar, garantir o direito das famílias atingidas’, afirmou Cirineu da
Rocha, militante do MAB. (MAB, 2012)
Diferentemente do enfoque que os veículos da grande mídia deram à notícia – a
inauguração propriamente dita da Usina – o site do MAB deu enfoque à pauta que estava sendo entregue à Presidenta, recapitulando os anos de luta do movimento e a falta
de diálogo dos representantes do Consórcio. Na fala, o militante do MAB reconhece a
importância do empreendimento para o país e situa o Estado no lugar institucional de
responsável pelo empreendimento e pela situação de vida dos atingidos; e reforçando
o lugar institucional do Movimento de mediador nas conquistas do direito das famílias
atingidas por meio do diálogo e ações.
4. CONSIDERAÇÕES
Reitera-se que a análise das formações de um discurso pressupõe estudo de práticas, de disputas, de processos, por isso, não estanques. Em um dos segmentos que
constituem a esfera da sociedade civil, no caso o Movimento dos Atingidos por Barragens, pôde-se perceber, por ora, alguns elementos recorrentes nas formações discursivas
que tendem a ser refletidos no brilho da visibilidade por parte da produção noticiosa
do próprio MAB.
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Sob a luz dos estudos de Foucault, pressupõe-se nestas análises que há um sistema de poder que age sobre o discurso, e estes emergem de relações entre verdades,
saberes, práticas sociais e instituições; daí a necessidade de compreender as condições
de existência desses discursos. Percebe-se que as formações discursivas construídas
pelo Movimento dos Atingidos por Barragens sob a égide da luta de “Água e energia
são para soberania!” pressupõe a representatividade de sujeitos das diversas esferas
sociais elencadas na análise; dando certa visibilidade ao indivíduo atingido que sofre
os impactos da hidrelétrica e que encontra no Movimento, enquanto sociedade civil
organizada, espaço de legitimação de lutas; acusando e cobrando o sujeito da esfera do
Mercado e pressionando do Estado o posicionamento de retomada da ordem e a garantia
dos direitos que foram prejudicados em prol do discurso do desenvolvimento do país.
Ponderamos, no entanto, que não temos o intuito de superestimar o MAB; que
embora ele seja uma entidade representativa, não representa a unanimidade dos sujeitos
atingidos; também que há contradições entre o MAB e outras organizações da sociedade civil no entorno da UHE Estreito; e que nos processos de tensões e negociações que
envolvem a sociedade, o MAB, o Ceste e o Estado há oscilações entre conflitos, acordos,
estratégias e táticas que compõem uma delicada teia de relações.
Por outro lado, do ponto de vista da comunicação dos movimentos sociais
reconhecemos que há uma contribuição pra o jogo democrático, que pressupõe
liberdades, e participação popular.
A participação popular pode facilitar o devir de uma nova práxis da comunicação. A participação e a comunicação representam uma necessidade no processo de constituição de uma
cultura democrática, de ampliação dos direitos de cidadania e da conquista da hegemonia,
na construção de uma sociedade que veja o ser humano como força motivadora, propulsora
e receptora dos benefícios do desenvolvimento histórico. (Peruzzo, 1998)
Cabe, ainda, considerar que nos processo de intalação de barragens, ferramentas
democráticas que poderiam dar visibilidade aos sujeitos envolvidos, como os comitês de co-gestão e audiências públicas, nem sempre cumprem o papel igualitário de
dar voz aos que deveriam falar. Os processos concernentes à instalação de uma usina
hidrelétrica ocorrem em paralelo às representações que são dadas a essas práticas. No
entanto, pressões e lutas a nível simbólico, em que a imagem de instituições e de sujeitos
ganham espaço na esfera midiática (articuladora desses múltiplos discursos), podem
influenciar na conquista de direitos, como o das famílias remanejadas, alterando e promovendo uma revisão sobre como o processo pode ser reconduzindo, de forma mais
justa; e remoldando os procedimentos a serem adotados em futuros empreendimentos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Atingidos por Barragens por Direitos Humanos - ANAB. Recuperada em agosto de 2014, em:
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CNEC Engenharia
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pronunciada em 2 de dezembro de 1970, São Paulo: Ed. Loyola.
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Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo
e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
Communication, power and citizenship: the meeting of the
alternative and counter-hegemonic in the same media vehicle
A m anda Medeiros 1
Resumo: Costumamos considerar o sistema midiático estruturado em meios
hegemônicos e contra-hegemônicos ou alternativos de comunicação. Por vezes,
falhamos ao utilizar como sinônimas palavras que, neste contexto, podem indicar meios midiáticos diferentes. O fato de ser alternativo, não garante, por si
só, que um veículo seja considerado contra-hegemônico. É neste sentido que,
como parte de uma pesquisa mais ampla, buscamos aqui discutir teoricamente
sobre o momento em que o alternativo e o contra-hegemônico “confundem-se”
em um mesmo veículo midiático. Para tanto, amparamo-nos principalmente
em teóricos como Gramsci, Downing, Peruzzo, Paiva e Moraes, os quais nos
levaram à conclusão de que é a partir do encontro do alternativo com o contra-hegemônico que podemos falar de uma comunicação cidadã e do seu poder.
Palavras-chave: Hegemonia; Contra-hegemonia; Mídia radical alternativa;
Comunicação cidadã; Veículos midiáticos.
Abstract: We usually consider the media system structured in hegemonic and
counter-hegemonic media or alternative media of communication. Sometimes,
we fail using as synonymous words that, in this context, may indicate differents
vehicle media. The fact that be alternative does not guarantee, by itself, that a
vehicle is considered counter-hegemonic. This is why, as part of a broader research, we have here a theoretical discussion about the time when the alternative
and conter-hegemonic are mixed into the same vehicle media. For this, we base
mainly on theoreticals as Gramsci, Downing, Peruzzo, Paiva and Moraes, who
take us to the conclusion that is from the meeting of alternative and counter-hegemonic that we can speak of a citizen communication and its power.
Keywords: Hegemony; Counter-hegemonic; Radical alternative media; Citizen
communication; Media vehicles
INTRODUÇÃO
IANTE DA afirmação de que “X” é alternativo a “Y”, podemos concluir objetivamente
D
que “X” difere de “Y”, uma vez que possuindo exatamente as mesmas características um não poderia ser considerado alternativo ao outro. Partimos, portanto,
dessa premissa geral para abordá-la, mais especificamente, no âmbito da esfera midiática.
1. Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (PPgEM/UFRN). Email: [email protected]
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827
Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
Amanda Medeiros
De forma simplificada, costumamos considerar o sistema midiático como sendo
estruturado em meios hegemônicos e contra-hegemônicos ou alternativos de comunicação.
Por vezes, falhamos ao utilizar como sinônimas palavras que, neste contexto, podem
indicar meios midiáticos diferentes. O fato de ser alternativo, não garante, por si só, que
um veículo seja considerado contra-hegemônico.
Para Paiva (2008, p. 164), é no entendimento de que o “contra” se define “pela
visceralidade da oposição – e não por um mero revezamento de forças contraditórias –
que reside possivelmente a compreensão daquilo que se pode pautar ideologicamente
como uma postura contra-hegemônica”. Seguindo tal linha de raciocínio, nos amparamos
ainda em Peruzzo (2009) quando ela diz que os meios alternativos assumem o papel
de se estruturarem em espaços em que a comunicação aconteça de forma participativa,
dialógica e horizontal, logo, aproximando-se da ideia de mídia radical alternativa
oferecida por Downing (2004).
É neste sentido que, como parte de uma pesquisa mais ampla, buscamos aqui
discutir teoricamente sobre o momento em que o alternativo e o contra-hegemônico
“confundem-se” em um mesmo veículo midiático. Ao final deste ensaio chegamos
a uma discussão teórica suficientemente consistente que, quando confrontada com
dados empíricos, poderá nos auxiliar na identificação de propostas midiáticas que são,
de fato, alternativas e contra-hegemônicas, por conseguinte, ligadas aos princípios da
comunicação cidadã.
HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA NO CENÁRIO MIDIÁTICO
A palavra hegemonia vem do grego “hêgemôn”, que significa líder; logo, está
diretamente ligada à ideia de uma posição superior. Para Gramsci, essa superioridade
se dá em termos de liderança cultural e/ou político-ideológica de uma classe social
sobre as outras. O autor acredita que o domínio implícito na ideia de hegemonia se
dá através de duas frentes, uma de consenso e outra de coerção. Antes de tudo, os
dominados precisam ser convencidos da proposta dominante – através de estratégias
de argumentação e persuasão –, para que somente então as heterogeneidades existentes
entre eles possam ser amenizadas, e os princípios hegemônicos possam ai ser aceitos
e tomados como universais.
[...] a hegemonia não deve ser entendida nos limites de uma coerção pura e simples, pois inclui
a direção cultural e o consentimento social a um universo de convicções, normas morais e
regras de conduta, assim como a destruição e a superação de outras crenças e sentimentos
diante da vida e do mundo (GRAMSCI, 2002, apud MORAES, 2010, p. 55)
Amparada também em Gramsci, Veloso (2014, p. 38) acrescenta que “o bloco de
poder abriga não apenas a classe que exerce a autoridade cultural, política e econômica,
mas também segmentos da classe subordinada que entendem seus interesses como
os mesmo do grupo dominante”. A partir dessa ideia, seguimos com a hipótese de
que, mesmo dentro de um grupo aparentemente coerente, a heterogeneidade faz-se
presente, tornando inevitável a existência de conflitos; logo, há aí o impedimento de
uma subordinação absoluta, o que resulta na impossibilidade de uma hegemonia total:
“sempre há formas emergentes de consciência e representação podendo ser mobilizadas
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
Amanda Medeiros
em oposição à ordem (O’SULLUVAN et al, 2001, p. 122 apud VELOSO, 2014, p. 38). Acerca
das limitações de uma hegemonia, Gruppi (1978, p. 67, apud MORAES, 2010, p. 55) nos diz:
Uma classe é hegemônica, dirigente e dominante até o momento em que – através de uma
classe sua ação política, ideológica, cultural – consegue manter articulado um grupo de
forças heterogêneas e impedir que o contraste existente entre tais forças exploda, provocando assim uma crise na ideologia dominante, que leve à recusa de tal ideologia, fato que
irá coincidir com a crise política das forças no poder.
São realmente muitas as oportunidades para que crises desse tipo se desenvolvam,
pois a ideia de hegemonia não se restringe ao domínio do campo econômico: os embates
também se dão em torno da organização política, de questões culturais, expressão de
saberes, tradições, modelos de representação e autoridade. Conforme Moraes (2010, p.
54), “além de congregar as bases econômicas, a hegemonia tem a ver com entrechoques
de percepções, juízos de valor e princípios entre sujeitos da ação política”.
Atrelada à ideia de hegemonia encontramos, pois, a ideia de contra-hegemonia.
Eduardo Coutinho, parafraseando Marx, diz que toda hegemonia traz em si o germe
da contra-hegemonia: “há, na verdade, uma unidade dialética entre ambas, uma se
definindo pela outra. Isto porque a hegemonia não é algo estático, pronta e acabada. Uma
hegemonia viva é um processo. Um processo de luta cultura” (COUTINHO, 2008, p. 77).
Processo pelo qual uma classe social constrói e reconstróis sua liderança intelectual e moral
sobre as demais classes, reproduzindo ativamente os valores, as ideias, as práticas culturais
por uma determinada perspectiva e impondo-a ao conjunto da sociedade. Assim, podemos
falar em tradições hegemônicas, que reafirmam a visão de mundo das camadas dominantes, e em tradições contra-hegemônicas, que reconstroem a história pelas perspectiva das
classes subalternas (COUTINHO, 2005, p.95)
Ainda conforme Coutinho (2008), a contra-hegemonia se coloca como possibilidade a
partir do momento em que a dominação de classe já não se dá pela coerção, mas também
pelo consenso. Essa contra-hegemonia assume o papel de instituir o contraditório e a
tensão no que até então parecia homogêneo e estável. Segundo Moraes (2010, p. 73), um
dos principais desafios para o pensamento contra-hegemônico consiste em “alargar
a visibilidade pública de enfoques ideológicos que contribuam para a reorganização
de repertórios, princípios, e variáveis de identificação e coesão, com vistas à alteração
gradual e permanente das relações sociais e de poder”.
Retomando a discussão anteriormente suscitada acerca de heterogeneidade das
classes sociais e resistência, temos que, de acordo com Williams (1999), hegemonia não
existe “passivamente” como forma de dominação, sendo capaz de renovar-se, recriar-se,
defender-se e modificar-se diante da resistência continuada, limitada e desafiante em
que se configura a contra-hegemonia.
Ao abordar o conceito de hegemonia, Paiva (2008, p. 164), em consonância com
o que Gramsci nos oferece, afirma tratar-se de “uma forma de poder caracterizada
por uma postura totalizante, generalizada, mas que se dá com o consentimento ou a
aceitação dos demais. É, assim, uma configuração particular de dominação ideológica”.
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Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
Amanda Medeiros
Por outro lado, segundo a mesma autora “é no entendimento de que o ‘contra’ se
define pela visceralidade da oposição – e não por um mero revezamento de forças
contraditórias – que reside possivelmente a compreensão daquilo que se pode pautar
ideologicamente como uma postura contra-hegemônica”. (PAIVA, 2008, p. 164)
Neste sentido, e já propriamente inseridos no campo midiático, podemos não só
afirmar que os meios contra-hegemônicos não almejam uma simples substituição na
ocupação do lugar hegemônico, como também podemos dizer que estes residem no fato
de nunca objetivarem a posição hegemônica e todas as suas peculiaridades. São, portanto,
meios que se vestem da responsabilidade de “propiciar novas formas de reflexão, com
o objetivo precípuo e final de libertar as consciências. Se as bases são diferentes dessas,
certamente os propósitos são outros. E, então, a ‘pró-hegemonia’ torna-se o objetivo
maior” (PAIVA, 2008, p. 167). Vale salientar que, conforme Gramsci (2010), uma força
contra-hegemônica só pode ser reconhecida como tal na medida em que consegue
ultrapassar a espontaneidade do movimento, que intervém com capacidade de modificar
e alterar uma dada estrutura social.
Assim sendo, temos que, apesar dos obstáculos, os meios alternativos à mídia
hegemônica ocupam posição de destaque nas ações de resistência diante dos dominantes,
e na disseminação da contra-informação. Portanto, “num ambiente de dominação onde
a prática jornalística é alvo de omissões, distorções e manipulação deliberadas, os meios
alternativos têm a possibilidade de discutir o pouco que se informa, mas também o que
não se informa, quem informa e como faz” (BELTRÁN & FOZ, 1982, apud, VELOSO,
2014, p. 40).
A MÍDIA (RADICAL) ALTERNATIVA: PARTICIPAÇÃO,
DIÁLOGO E HORIZONTALIDADE
Com a disseminação de tecnologias de informação e comunicação (TICs), e a
facilidade de acesso à internet, os meios alternativos somaram novas possibilidades de
exercerem o seu papel contra-hegemônico. Como já sugerido anteriormente, esses meios
não são o simples oposto dos meios hegemônicos, uma vez que, se por um lado propostas
hegemônicas e contra-hegemônicas de comunicação buscam ocupar determinados
espaços e legitimar-se junto à sociedade; por outro, os caminhos percorridos, as estratégias
utilizadas e as metas a serem alcançadas por eles divergem em vários aspectos, como
veremos adiante. Caracterizando brevemente a mídia alternativa, Downing (2002) nos
diz que ela seria, em geral,
[...] de pequena escala e sob muitas formas diferentes; que expressa um visão alternativa
às políticas, prioridades e perspectivas hegemônicas; que não apenas fornece ao público os
fatos que lhe são negados, mas também pesquisa formas de desenvolver uma perspectiva de
questionamento do processo hegemônico e fortalece o sentimento de confiança do público
em seu poder de engendrar mudanças construtivas. (DOWNING, 2002, apud GOÉS, 2007)
Sendo assim, é coerente afirmar que a mídia alternativa contra-hegemônica defende
a mudança social, buscando, para tanto, garantir aos sujeitos a ideia de pertencimento
dentro dos processos necessários ao alcance dos objetivos traçados. Este tipo de comunicação é, portanto, uma prática em conflito (BERGER, 1989, apud PERRUZO, 2004) que
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
Amanda Medeiros
não se resume a estratégias diferenciadas de produção de conteúdo, mas que se ocupa
com uma produção crítica capaz de instigar questionamentos e levar à reflexão/ação
dos sujeitos e/ou grupos socialmente organizados. Peruzzo (2006, p. 07) explica que
A comunicação alternativa é caracterizada por apresentar uma opção de fonte de informação, tanto pelo conteúdo que oferece quanto pelo tipo de abordagem que utiliza. No Brasil,
denominou as experiências de contra-informação na época da ditadura militar, mas está
presente na comunicação dos movimentos populares.
Ainda conforme Peruzzo (2009), esses meios alternativos assumem o papel de
se estruturarem em espaços em que a comunicação aconteça de forma participativa,
dialógica e horizontal, configurando-se, dessa forma, em instrumentos de conscientização
e democratização da informação que acabam por contribuir para a transformação
social. Para Ramírez (1997, p. 45, apud, VELOSO, 2014, p. 33), a comunicação alternativa
é “[...] participação dos cidadãos, defesa do bem comum, serviço à verdade, mediação
para resolver problemas da vida cotidiana, cultivo do debate responsável e pluralista,
garantia efetiva de recepção e expressão para os legítimos movimentos sociais, políticos
e culturais”.
Sem entrar em detalhes sobre o que diz a legislação acerca do funcionamento de
canais comunitários, tomemos o exemplo hipotético de um canal comunitário de televisão, uma mídia alternativa2; para seu funcionamento dentro de uma lógica realmente
contra-hegemônica, tal canal “requer a existência de democracia e envolvimento direto
de cidadãos, associações populares e demais organizações sem fins lucrativos nos seus
processos de criação, de administração e na programação” (PERUZZO, 2007, p. 110).
Como sugerido acima, uma das características essenciais de uma mídia alternativa
contra-hegemônica é a participação livre de pessoas nos processos que vão desde o pensar
o veículo até a execução de um produto midiático. Essa participação garantirá, além
do direito essencial da liberdade de expressão, a multiplicidade de conteúdos a serem
veiculados – visto que construídos “a muitas mãos” –, e a pertinência desses conteúdos
junto ao público a que se destinam. Uma vez que tais conteúdos sejam idealizados
por sujeitos que não estão inseridos na lógica capitalista do mercado midiático, e que
fazem parte do contexto social no qual aquela mídia alternativa se insere, possivelmente
teremos como resultado um produto que interesse, de fato, ao público alvo, bem como
que possua uma carga de preocupação social.
Com as TICs, conceitos mercadológicos como o de interatividade3 tentam aproximar-se da ideia de participação ativa de sujeitos na produção de conteúdos midiáticos.
Ao navegar pela internet, por exemplo, são muitas as possibilidades oferecidas para
que possamos comentar sobre o tema de algum produto jornalístico, sugerir pautas,
enviar vídeos e/ou fotos, etc; todavia, esta participação é reativa, tendo em vista que
nós, enquanto internautas, reagimos a uma ação lançada pela grande mídia e somos
2. Entendemos como comunicação alternativa contra-hegemônica toda aquela que se opõe e, logo, se
diferencia da mídia hegemônica; neste sentido, propostas de comunicação comunitária, popular, livre,
etc, são tipos de projetos que se diferenciam entre si, mas que serão considerados aqui inseridos no macro
campo da mídia alternativa.
3. Vale esclarecer que a interatividade não é um termo que nasce com a web; Moherdaui (2007) explica que
esse tipo de relação já ocorria no rádio e na tv, por exemplo, mas que foi com a internet que ela se amplificou.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
Amanda Medeiros
instigados a participar, agindo desta ou daquela forma, desde que seja a maneira mais
conveniente aos interesses do veículo em questão. Como já indicado anteriormente,
no contexto de uma mídia alternativa contra-hegemônica essa participação não deve
sofrer esse tipo de “censura”; aqui o sujeito é livre para se expressar, para agir, e não
somente reagir diante de assuntos que sejam de interesse público.
Ligada diretamente à ideia de participação, temos o diálogo como outra característica
da mídia alternativa contra-hegemônica. Conforme Paulo Freire (1977), para haver
comunicação faz-se necessário reciprocidade, jamais passividade, e o diálogo é o que
marca essa comunicação. Tomemos novamente as possibilidades de “participação”
oferecidas no ciberespaço, e lancemos o seguinte questionamento: no momento em
que reagimos a uma provocação apresentada em uma página online, digamos que de
um telejornal, e fazemos um comentário abaixo de determinada postagem, estaríamos,
então, falando de diálogo?
No Dicionário de Comunicação, organizado por Ciro Marcondes Filho (2009, p.
95), a etimologia do termo “diálogo” aparece como “do grego dia- + logos, palavra, fala,
discurso que atravessa, que perpassa. Conversa entre duas ou mais pessoas visando
objetivos diversos”. Neste sentido, é lícito afirmar que, na lógica da mídia hegemônica,
de uma forma geral, não encontramos a ideia de diálogo, uma vez que a palavra deveria
ser trocada, num processo de ação e reflexão, e o que encontramos é a construção
do discurso midiático de forma vertical e descendente. Portanto, respondendo ao
questionamento, temos que, neste caso, o diálogo se resumiria a uma ação (por parte
do veículo) e uma reação (por parte do internauta); resguardadas as exceções, o processo
se encerraria ai, quebrando as lógicas de circularidade, dinamicidade, reciprocidade,
inerentes à ideia de diálogo.
Por fim, e ligada intimamente às características anteriores, temos a horizontalidade
como marca da mídia alternativa contra-hegemônica. Há muito tempo Beltrán (1981)
já tratava da comunicação horizontal. Para o autor, são três os pré-requisitos básicos
para que se concretize sua ideia de horizontalidade: todos devem ter o direito efetivo
de receber mensagens, sem que haja restrição por parte dos responsáveis pela emissão;
todos devem ter o direito efetivo de transmitir mensagens, salvo aquelas que infrinjam
questões morais e /ou leis; todos devem ter o direito efetivo de participação na produção
e/ou emissão das mensagens.
Dornelles (2007, p. 8) nos diz que “teoricamente, toda comunicação deveria ser
horizontal, mas nem sempre este processo acontece na prática”; o que temos, na
realidade, é uma multiplicidade de exemplos de comunicação vertical. Sobre esse tipo
de comunicação, Beltrán (1981, p. 72) explica que,
[...] o que ocorre seguidamente sob o nome de comunicação é pouco mais do que um monólogo dominante em benefício do iniciador do processo. A retroalimentação não é empregada
para proporcionar a oportunidade de um diálogo autêntico. [...] Tão vertical, assimétrica e
quase autoritária relação social constitui, no meu modo de ver, uma forma antidemocrática
de comunicação [...]. Devemos ser capazes de construir um novo conceito de comunicação
– um modelo humanizado, não elitista, democrático e não-mercantilista.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
Amanda Medeiros
Downing (2004, p. 30), por sua vez, apresenta um ponto de vista diferente sobre
comunicação vertical e horizontal. Para o pesquisador, qualquer proposta de comunicação radical alternativa4, pode e deve incluir ambos os propósitos, vertical e horizontal;
essa espécie de mídia, portanto, serviria a duas finalidades: “a) expressar verticalmente,
a partir dos setores subordinados, oposição direta à estrutura de poder e seu comportamento; b) obter, horizontalmente, apoio e solidariedade e construir uma rede de relações
contrária às políticas públicas ou mesmo à própria sobrevivência da estrutura de poder”
Face ao exposto, podemos afirmar que a comunicação alternativa contra-hegemônica
segue com a premissa de ser feita por pessoas, e não sobre pessoas ou grupos socialmente
organizados, e, para tanto, precisa verdadeiramente estruturar-se no tripé “participação”,
“diálogo” e “horizontalidade”.
Temos ainda que são muitas as possibilidades abertas junto à ideia de ser alternativo,
logo, alcançar uma conceituação precisa permanece sendo um desafio aos estudiosos da
área. Em sua tese, Veloso (2014) debate esse termo e nos diz que, apesar dos estudos já
existentes em torno dele, não é possível dar ao alternativo uma definição estável, uma
vez que o conceito é bastante cambiante. Para falar com pertinência de comunicação
alternativa, seria necessário, pois, tratar de elementos alternativos na comunicação, como
buscamos fazer no decorrer desta discussão teórica. Segundo a pesquisadora,
Nesta perspectiva, ao buscar rotular quais meios seriam alternativos – e contrahegemônicos –, Grinberg, (1987, p. 30, apud VELOSO, 2014, p. 34) sintetiza seu pensamento
afirmando que é alternativo todo meio que, num contexto onde setores privilegiados
detêm o poder político, econômico e cultural, representa uma “opção frente ao discurso
dominante”. Chegamos, pois, a outro ponto acerca da conceituação desse tipo de veículo.
Por vezes, falhamos ao utilizar como sinônimas palavras que, no contexto midiático,
podem indicar meios de comunicação diferentes. O fato de ser alternativo, não garante,
por si só, que um veículo seja considerado contra-hegemônico: um veículo “X” pode
ser alternativo a determinado canal de televisão da mídia hegemônica simplesmente
por não ter a estrutura necessária para funcionar nos mesmos moldes desta televisão;
todavia, seus princípios são os mesmos, assim como seus objetivos – resguardando as
proporcionalidades de cada um desses meios. Downing (2004), em um longo estudo
acerca da mídia alternativa, discute a definição do conceito, e opta por chamá-la de
“mídia alternativa radical”.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que falar simplesmente em mídia alternativa é quase
um paradoxismo. Qualquer coisa, em algum ponto, é alternativa a alguma outra. [...] Até
certo ponto5, a designação extra de radical ajuda a firmar a definição de mídia alternativa.
[...] O contexto e as consequências devem ser nossos principais guias ao que pode ou não
pode ser definido como mídia radical alternativa. (DOWNING, 2004, p. 27-28)
Ainda conforme Downing (2004, p. 28), a imprensa radical alternativa “constitui a
forma mais atuante da audiência ativa e expressa as tendências de oposição, abertas e
veladas, nas culturas populares”.
4. Mais adiante discutiremos tal conceito.
5. Em sua obra “Mídia Radial: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais” Downing explica ponto
a ponto, dez motivos pelos quais mesmo a designação radical precisa ser tomada com cautela.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
Amanda Medeiros
A COMUNICAÇÃO CIDADÃ NA MÍDIA ALTERNATIVA E CONTRA-HEGEMÔNICA:
PERSPECTIVAS DE UM ESPAÇO DEMOCRÁTICO
Diantes das discussões conceituais já apresentadas, podemos agora, pois, falar da
comunicação cidadã como uma das características – e mesmo finalidades – dos meios
alternativos e contra-hegemônicos de comunicação. Trata-se, como veremos mais adiante,
de uma ideia diretamente ligada à perspectiva de uma comunicação mais democrática.
A ideia de “cidadania comunicativa” é concebida em termos de possibilidades de
democratização do acesso e participação da sociedade na propriedade, gestão, produção
e distribuição dos recursos comunicacionais (COGO, 2012). Mata (2006, p. 13) acrescenta
que cidadania comunicativa implica no “6desenvolvimento de práticas tendentes à
garantir os direitos no campo específico da comunicação”.
O exercício da cidadania é um processo de aprendizagem com o qual contribuem diferentes
instituições presentes na sociedade, entre elas os meios de comunicação. A partir de um
meio de comunicação sempre se constrói cidadania: pode-se ajudar no fortalecimento de
uma cidadania ativa e participativa, ou pode-se fomentar uma cidadania passiva vinculada
unicamente com o consumo7. (LAMAS, 1998, p. 224, apud CAMACHO, 2011, p. 151).
Lima (2009, p. 01) acredita que o direito à comunicação abre perspectivas imensas do
ponto de vista de garantias ao cidadão; sendo assim, democratizar a comunicação passa
a ser, portanto, “garantir a circulação da diversidade e da pluralidade de ideias existentes
na sociedade, isto é, a universalidade da liberdade de expressão individual e coletiva”.
Ainda segundo o mesmo autor, a comunicação perpassa todas as três dimensões da
cidadania8, constituindo-se, ao mesmo tempo, em direito civil — “liberdade individual
de expressão”; em direito político — “através do direito à comunicação, que vai além do
direito de ser informado”; e em direito social — “através do direito a uma política pública
democrática de comunicação que assegure pluralidade e diversidade na representação
de ideias e opiniões” (LIMA, 2006, p. 11).
Para que se alcance o processo pleno de cidadania sob a lógica comunicativa não basta
que o sujeito social tenha o direito de ser informado, mas também de informar e buscar
informações e bens culturais. Tais direitos esbarram na lógica de mercado que, para Mata
(2006), se continuar como único regulador dos meios de comunicação, poucas serão as
chances para pensarmos um exercício efetivo de cidadania. Em uma relação ideal entre
os meios de comunicação e o exercício pleno da cidadania, esses precisam ser tomados
como espaços estratégicos “para a expressão, mobilização, transformação sociocultural e
política e para a produção de igualdade em que a comunicação midiática não se restringe
a conteúdos e efeitos, mas a processos que possibilitam usos dos recursos midiáticos
por parte de diferentes setores sociais”. (MATA, 2006 & COGO, 2010, apud COGO, 2012).
Ainda segundo Mata (2006, p. 13), a ideia de cidadania comunicativa se firma no
6. Texto original: “desarrollo de prácticas tendientes a garantizar los derechos en el campo específico de
la comunicación”
7. Texto original: “El ejercicio de ciudadanía es un proceso de aprendizaje al que contribuyen las diferentes
instituciones presentes en la sociedad, entre ellas los medios de comunicación. Desde un medio de
comunicación siempre se construye ciudadanía: se puede ayudar al fortalecimiento de una ciudadanía
activa y participativa o se puede fomentar una ciudadanía pasiva vinculada únicamente con el consume”.
8. Propostas por T. H. Marshall em 1949
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Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
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[...] reconhecimento da capacidade de ser sujeito de direito e dever no terreno da comunicação pública, e o exercício desse direito. Trata-se de uma noção completa que envolve
várias dimenões e que reconhece a condição de públicos dos meios que os indivíduos têm
nas sociedades midiatizada9.
Face ao exposto, é lícito afirmar que mesmo com as TICs propiciando atualmente
a multiplicação dos espaços democráticos de comunicação, são muitos os entraves que
nos são apresentados até que possamos alcançar uma comunicação cidadã efetiva, uma
vez que “a falta de pluralidade (concentração da mídia em poucos grupos privados)
e de diversidade, ou seja, de conteúdos ou programas que contemplem os distintos
interesses da sociedade é um problema histórico do contexto comunicacional brasileiro”
(LACERDA, 2013, p. 6). Neste sentido, cabe aos meios alternativos e contra-hegemônicos
o desafio de buscar uma comunicação cidadã plena, marcada, principalmente, pela
democratização dos espaços comunicativos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desafio de ser alternativo e contra-hegemônico já foi uma tarefa que exigia muito
mais ousadia por parte dos veículos de comunicação. Hoje, com a presença marcante
das TICs os espaços se ampliaram e, consequentemente, as possibilidades de enfrentar
a mídia hegemônica se multiplicaram. Sendo assim, temos que o poder dos meios
alternativos e contra-hegemônicos cada vez mais legitima-se através de suas ações –
democráticas – de disseminação da contra-informação. Se antes esse poder não era um
preocupação para a mídia hegemônica, hoje trata-se de uma questão que não só não
pode ser deixada de lado, como em muito mexe com as estratégia e táticas dos que fazem
os grupos dominantes no cenário midiático.
É investindo-se desse poder que os meios alternativos e contra-hegemônicos de
comunicação ocupam novos espaços na sociedade ao levr à cabo uma proposta, como
visto, de cidadania comunicativa. Moraes (2010, p. 72) ressalta que, “para a contraposição
ao poderio midiático, todos os recursos táticos e canais contra-hegemônicos devem ser
mobilizados e aproveitados. As forças renovadoras não podem se dar o luxo de eleger
uma única vertente de expressão”. Maia (2008, p. 278), por sua vez, diz que é preciso
levar em consideração que, para fortalecer a democracia, são necessárias “não apenas
estruturas comunicacionais eficientes, ou instituições propícias à participação, mas
também devem estar presentes a motivação correta, o interesse e a disponibilidade dos
próprios cidadãos para engajar-se em debates”.
Por fim, vale salientar que ser alernativo não basta quando o intuito é se estruturar
em uma contra-mídia-hegemônica (PAIVA, 2008). Portanto, para alcançar tal finalidade
e seguir, então, norteado pela comunicação cidadã, precisamos que, em um mesmo
veículo midiático, confundam-se as ideias de alternativo e contra-hegemônico em suas
essências.
9. Texto original: “[...] reconocimiento de la capacidad de ser sujeto de derecho y demanda en el terreno
de la comunicación pública, y el ejercicio de ese derecho. Se trata de una noción compleja que envuelve
varias dimensiones y que reconoce la condición de público de los medios que los individuos tenemos en
las sociedades mediatizadas”.
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Comunicação, poder e cidadania: o encontro do alternativo e do contra-hegemônico em um mesmo veículo midiático
Amanda Medeiros
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837
Comunicação e Capital Social em Cooperativas:
uma análise das convergências teóricas
Communication and Social Capital in Cooperatives:
an analysis of theoretical convergences
M a u r a Pa d u l a 1
Resumo: A proposta deste artigo é fazer uma análise teórica sobre capital social
e comunicação especificamente em cooperativas. A partir das diversas ênfases
teóricas empregadas para definir o conceito de capital social e das teorias sobre
cooperativismo, foi feita uma análise comparativa com o objetivo de identificar
pontos de convergência, a fim de oferecer mais subsídios que possam contribuir
com a necessidade de engajamento entre cooperados e cooperativa (governança),
conforme apontado por pesquisadores e pelas entidades representativas de classe
da área. Os resultados demonstram que capital social está enraizado nos princípios
e legislação cooperativistas, mas nem por isso pode-se dizer que tenham capital
social alto. Apontam a necessidade de criar caminhos para uma comunicação voltada ao entendimento (não ao convencimento), capaz de gerar oportunidade para
que os cooperados/associados reflitam não apenas sobre suas ideias, mas também
sobre as dos seus pares. Entretanto, são resultados que não encerram a questão.
Ao contrário, identificam a necessidade de se investir em novos estudos sobre o
tema, principalmente considerando a questão dos valores cooperativistas, identificados como uma fonte de vantagem competitiva neste modelo organizacional.
Palavras-Chave: Capital Social; Comunicação; Cooperativismo; Valores.
Abstract: The proposal of this paper is to make a theoretical analysis on social
capital and communication, specifically in cooperative organizations. Departing
from diverse theoretical emphasis used to define the concept of social capital,
and from the theories on cooperatives, a comparative analysis is done aiming at
to identify points of convergence, in order to offer subsidies that can contribute
to fill the need of engagement of members of cooperative organizations and
governance of the organizations, as indicated by researchers and associations
that represent those organizations. Our findings show that although social
capital has roots in the cooperatives principles and legislation, it is not possible
to say that cooperatives have a strong social capital. It is necessary to create
new paths to a communication oriented to understanding (not convincement),
and able to generate opportunities for the associates of cooperatives to make a
reflection about their own ideas and of their peers as well. But those findings
do not put an end to the problem. On the contrary, they show the need to invest
in new studies on the subject, specially in the question of cooperative values,
that are seen as a source of competitive advantage in this organizational model.
Keywords: Social Capital; Communication; Cooperatives; Values
1. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Comunicação da Universidade de São Paulo.
[email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas
Maura Padula
INTRODUÇÃO
ESDE OS tempos dos pioneiros de Rochdale (Inglaterra)2, em 1844, os sistemas
D
cooperativos contribuem de forma significativa para o desenvolvimento econômico e social em muitos países. Hoje, cerca de 1 bilhão de pessoas em mais
de 100 países estão vinculadas a cooperativas, com a geração de mais de 100 milhões
de empregos (ACI, 2014). Dados publicados no World Co-operative Monitor (2014, p. 15)
apontam que o setor movimentou, em 2012, USD 2,603.02 bi3.
No Brasil, cerca de 33 milhões de pessoas estão envolvidas direta ou indiretamente
no cooperativismo, segundo a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). Existem
mais de 6,6 mil cooperativas no país, com 11 milhões de cooperados, divididos em 13
ramos. Em 2013, o sistema cooperativo injetou R$ 8 bilhões na economia, apenas com
salários e benefícios ao trabalhador e as exportações chegaram a US$ 6 bilhões. O número
de empregos diretos chegou a 321,4 mil. (Relatório OCB, 2013).
Apesar de sua importância econômica e social, o cooperativismo vive um conflito
intrínseco de sua estrutura, com dimensões distintas, dependendo do ramo de atividade
em que atua e das características específicas de seus sócios, incluindo, aqui, cultura,
hábitos e costumes (PADULA, 2006, p.2). Democracia, solidariedade e igualdade são
princípios da gestão cooperativista, que se preocupa em manter o foco no homem e
não no capital. Entretanto, é um modelos organizacional que frequentemente expõe
o associado/cooperado a uma dicotomia de papéis enquanto prestador de serviços, e/
ou como cliente e/ou como dono do negócio ou, ainda, quando eleito pelos seus pares,
como dirigente/gestor, situações que propiciam o conflito.
Neste cenário, Davis e Bialoskorsky Neto (2010) desenvolveram estudo sobre
governança e a gestão do capital social em cooperativas e alertaram que a participação
dos associados na gestão pode ser limitada e complexa, mas que ao não dar atenção
para tal questão as cooperativas comprometem uma importante vantagem competitiva.
Mas a forma de fazê-lo ainda é um desafio.
(...) está claro que há a necessidade de novas abordagens para incentivar o envolvimento
dos membros, não se sugere que sejam abolidas as oportunidades de participação tradicionais e democráticas, em que os cooperados frequentam as reuniões e nas quais os gestores
têm a obrigação de apresentar relatórios. Os processos democráticos de responsabilização
institucional e de prestação de contas devem ser preservados, mas deve-se reconhecer que,
por si só, eles não são suficientes. (DAVIS & BIALOSKORSKY NETO, 2010, 4)
Os autores discutem formas de governança corporativa em cooperativas e
defendem que os gestores devem identificar as necessidades dos associados e aumentar
o envolvimento desses nas questões de suas cooperativas, pois isso certamente
proporcionará melhor eficiência econômica da organização. Ao final, propõem um
processo de Gestão Cooperativista de Capital Social ou “Cooperative Social Capital
Management-CSCM”, aplicando esse conceito às cooperativas brasileiras.
2. Há relatos de experiências cooperativistas anteriores, mas a Sociedade dos Probos Pioneiros de
Rochdale (UK) foi a primeira que estruturou um estatuto para o seu funcionamento (SILVA FILHO, 2001;
MARASCHIN, 2004).
3. Valores que incluem as cooperativas de crédito e os prêmios das cooperativas de seguros e mutualidades.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas
Maura Padula
A proposta deste ensaio é avançar neste tema, aprofundando os estudos sobre
capital social e comunicação em cooperativas, a fim de oferecer mais subsídios que
possam atender às demandas reais do cooperativismo em todo o mundo, conforme
apontado pelos autores. Verificará, também, junto às orientações legais cooperativistas,
os pontos de intersecção que justifiquem (ou não) maior investimento dos gestores
cooperativistas em estudos sobre capital social, comunicação e esfera pública. O uso do
termo esfera pública especificamente neste estudo, logicamente, restringe-se a rede social
de abrangência das respectivas cooperativas, visando ao engajamento dos associados,
conforme proposto por Davis e Bialoskorky Neto (2010).
Trata-se de um estudo teórico e a análise comparativa foi feita com base na bibliografia sobre capital social e comunicação, mais especificamente, a partir da obra de Matos
(2009), e as Diretrizes para a Legislação Cooperativista - 3ª Edição - (2012), desenvolvidas
pela Organização Internacional do Trabalho, a pedido da Aliança Cooperativista Internacional (ACI). Para uma verificação mais localizada em nível de Brasil, foram consultadas
também as legislações locais: Lei nº 5.764, de 16.12.71; Lei nº 7.231, de 23.10.84; Decreto
90.393, de 30.10.84 e Resoluções do Conselho Nacional de Cooperativismo.
CAPITAL SOCIAL E ENGAJAMENTO
Os estudos em torno do conceito e aplicação de “capital social” tem merecido a
atenção de diversos pesquisadores no campo das ciências sociais. Prates, Carvalhais e
Silva (2007, p. 47) propuseram-se a discutir “a questão da ambiguidade teórica do conceito
de capital social na sociologia contemporânea” e afirmam que “o tema vem sendo
discutido tanto na literatura sociológica (Bordieu, 1983; Coleman, 1990; Putnam, 1996;
Portes, 1998; Fukyama, 2001) como na econômica (Robison et al., 2000; Arrow, 2001)”. Os
autores destacam que dois conceitos ganharam visibilidade nos últimos anos: o de capital
social e o de rede social e limitam o seu estudo aos conceitos de redes, de Gronevetter
(1973), que “teve maior impacto e visibilidade teórica na sociologia contemporânea”
(Prates et al, 2007, p. 47).
Na exploração das definições sobre capital social o texto cita dois grandes conjuntos
de conceitos: o primeiro em torno de uma dimensão individual-utilitária – uma relação
entre pessoas ou grupos - (Robison, 2000) e o segundo, em uma definição culturalista
(Putnam, 1996), como “práticas institucionalizadas de cultura cívica” (p.49).
Na visão de Prates et al (2007, p.49) a literatura pode ser diferenciada pelo tipo de
ênfase empregada para definir capital social e, assim, dividem em três tradições:
1. Individualista: baseada em Bourdieu, na qual “a participação nas redes sociais
constitui um recurso potencial de poder, na medida em que possibilita acesso
diferenciado aos recursos existentes nas redes para a realização de seus interesses individuais” (Prates et al, 2007. p. 49).
2. Tradição normativo-associativista: que pautada em Fukuyama (2001) e Putnam
(1993), “enfatizam o papel de valores e normas como definidores de atitudes
voltadas para o interesse coletivo, para a “coisa pública”, e funcionam como
predisposições comportamentais que minimizam os custos da ação coletiva
ou do associativismo”. (p.49).
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3. Tradição interacionais – baseada em Coleman (1990), que segundo os autores,
cria um conceito genuíno de capital social com ênfase nas relações sociais.
Matos (2009, p, 35) lembra que a primeira análise sistemática do conceito de capital
social foi feita por Bourdieu (1980), para quem “o capital social descreve circunstâncias
nas quais os indivíduos podem se valer de sua participação em grupo e redes para
atingir metas e benefícios”. Nesta ótica, capital social seria algo a ser apropriados pelos
indivíduos. Já Coleman propõe que o capital social deve ser concebido como um bem
público e que “não está situado nem nos indivíduos nem nos meios de produção, mas
nas redes sociais densas e fechadas que garantem a confiança nas estruturas sociais e
permitem a geração de solidariedade” (COLEMAN, 1990, p. 302, apud MATOS, 2009, p.
36), indo ao encontro da tradição interativa apontada por Prates et al, (2007). Apoiando-se
em Granovetter (1983), Coleman definiu as distinções entre capital físico, capital humano
e capital social, sendo esse último constituído por três características: confiança entre
os membros; gerar e colocar em funcionamento os fluxos de informações; e as normas
que regem o processo.
A confiança também é defendida por Putnam como elemento facilitador de cooperação. Mediante a importância dada a essa questão, Reis (2003) desenvolveu estudo no
qual buscou enfocar os significados teóricos e empíricos dos conceitos de capital social e
confiança e expõe o quão imaturo ainda é o tema. Destaca o papel perigoso da “confiança” neste processo, pois a precisão analítica do lugar da confiança no argumento pode
ser comprometida pela polissemia em que se enreda. E concluí: “Será crucial, talvez,
para a preservação de seu papel em uma teoria empírica da democracia, mostrarmo-nos
capazes de traduzir o que esperamos da confiança em padrões comportamentais (grifo
do autor) observáveis” (REIS, 2003, p.47)
Há, portanto, uma linha de pensadores que considera os laços sociais na construção
do capital social, que podem ser laços fortes – marcados pela proximidade, intimidade
e intenção de se construir e manter vínculos – ou fracos, caracterizados pelas relações
eventuais, sem intimidade (Granovetter, 1984 e Lin, Burt e Cook, 2011, apud Matos, 2009).
De acordo com pesquisa de Prates et al (2007), há uma associação entre a existência de
laços fracos e alto capital social na determinação da eficácia coletiva. Há, ainda, os laços
multiplexos, que incluem a interação em vários tipos de relações sociais: trabalho, social,
lazer etc. Para Recuero (2005) a interação social é uma ação que tem reflexo comunicativo para o indivíduo e seus pares e não necessariamente há a necessidade de interação.
Como exemplo cita os laços associativos, em que interação seria de outra ordem, sendo
necessário apenas um sentimento de pertencimento.
Entretanto, estudos mostram que a interação social que gera o capital social tem
perdido força. Nos EUA, por exemplo, houve queda na participação dos americanos
nas eleições, nas ações religiosas, nas associações de pais e mestres das escolas, entre
outros. Entre as causas, aponta-se a mídia, pois as pessoas passam a dedicar horas de
seu tempo para assistir TV e deixam de interagir. Há autores que rebatem a crítica, pois
não há evidências de uma relação negativa entre a ação de usar as mídias para buscar
informações políticas e o interesse político. Ao contrário, vê-se uma relação positiva.
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Enfim, nota-se que capital social está intimamente relacionado à interatividade, comunicação e opinião pública. O engajamento depende da confiança, formada principalmente pela opinião favorável à causa. E o princípio básico da opinião
pública é que exista o debate a partir da disseminação das informações. A esse tipo
de conversação, Matos (2009) chama de “conversação cívica” – diferente da conversação social e conversação política - caracterizada por uma comunicação em busca
do entendimento.
(...) é preciso valorizar as conversações que, cotidianamente, auxiliam os indivíduos a interpretar coletivamente certos problemas, orientando suas forças para que visem à busca do
entendimento e da intercompreensão. (....) a conversação cívica cotidiana entre amigos,
familiares, vizinhos, conhecidos, colegas de trabalho e mesmo desconhecidos, sobre questões de interesse público, prepara o caminho para seu engajamento em processos decisórios
formais e normativos” (MATOS, 2009, p. 87)
Acreditamos que o mesmo aconteça em uma estrutura cooperativista. Entretanto,
como alertam Rojas (2008,) e Kim e Kim (2008) (apud Matos, 2009), a conversação deve ser
voltada para o entendimento e não o convencimento. Matos(2009) adverte que o aumento
de exposições de ideias geradas pela conversação aumenta as chances de integração e
confiança entre as pessoas. Mas destaca que algumas interações são mais cooperativas
e outras mais conflituosas. Algumas formas de engajamento e de participação ampliam
a cooperação e outras simplesmente a destrói.
Apesar das ressalvas, para a autora, nas associações, a conversação cívica é fundamental, pois por meio dela os participantes podem expressar suas experiências, refletir
sobre elas e também entrar em contato com um rol maior de opiniões e entendimentos.
E o fato positivo é que ter a própria opinião considerada confere ao indivíduo um
sentimento de “eficácia política”, ou seja, a percepção de que seu ponto de vista pode
fazer a diferença (Lane e Sears, 1996; Noris, 2000 apud Matos, 2009, p. 97)
COOPERATIVISMO: PRINCÍPIOS E DESAFIOS
Os princípios cooperativos, criados desde o tempo dos pioneiros de Rochdale, são
as linhas orientadoras pelas quais as cooperativas levam os seus valores à prática. Em
1937, foram adotados pela Aliança Cooperativista Internacional (ACI). Na época, as
regras eram: 1º - Livre adesão; 2º - Controle democrático: uma pessoa corresponde a um
voto; 3º - Retorno de excedentes em proporção às compras; 4º - Juros limitados sobre o
capital; 5º - Neutralidade política e religiosa; 6º - Vendas à vista: preocupação pela boa
gestão; 7º - Educação contínua dos sócios, custeada por uma pequena parte do saldo
anual. (MAURER, 1966)
Para promover o fortalecimento do cooperativismo na economia mundial, a ACI
passou a fazer revisões nestes princípios: em 1966 (Congresso de Viena), 1988, sendo
concluída nos Congressos de Tóquio (1992) e Manchester (1995). Atualmente, os princípios
cooperativistas, apresentados no Quadro 1, regem as cooperativas em todo o mundo.
Dependendo da natureza da cooperativa um ou outro item é mais valorizado.
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Quadro 1. Princípios Cooperativistas
Princípios
Entendimento
1º - Adesão voluntária e livre.
Liberdade na adesão. Organizações livres e abertas às pessoas que tenham
afinidade à proposta. Não permite discriminações de sexo, sociais, raciais,
políticas e religiosas.
2º - Gestão democrática e livre.
Um homem, um voto. Grandes decisões tomadas por todos, em assembleias, que
elegem também os membros do grupo que ficarão à frente da administração.
3º - Participação econômica dos
membros.
Os membros contribuem equitativamente para o capital das suas cooperativas e
controlam-no democraticamente. A remuneração está relacionada à produtividade
e as sobras ou perdas são destinadas conforme decisão de assembleia.
4º - Autonomia e independência.
As cooperativas são organizações autônomas, de ajuda mútua, controladas por
seus membros.
5º - Educação, formação e
informação.
Trabalham a educação e formação dos seus membros, dos representantes
eleitos e dos trabalhadores e têm a missão de difundir a filosofia cooperativista.
6º - Intercooperação.
Valorizam o movimento cooperativista, trabalhando em conjunto, em estruturas
locais, regionais, nacionais e internacionais.
7º - Interesse pela comunidade.
As cooperativas trabalham para o desenvolvimento sustentavel das suas
comunidades por meio de políticas aprovadas pelos membros.
Fonte: Padula, 2006, p.12. Adaptado da OCB (www.ocb.org.br).
Segundo a OCB,
[...] as cooperativas baseiam-se em valores de ajuda mútua e responsabilidade, democracia,
igualdade, equidade e solidariedade. Na tradição dos seus fundadores, os membros das
cooperativas acreditam nos valores éticos da honestidade, transparência, responsabilidade
social e preocupação pelo seu semelhante (www.ocb.com.br).
A importância do cooperativismo para mundo fica clara nos número: envolvimento
de 1 bilhão de pessoas em mais de 100 países; geração de mais de 100 milhões de
empregos; movimentação de USD 2,603.02 bi4 em 2012. (ACI, 2014). E também faz a
diferença quando promove a inclusão de pessoas que, pelas normas do capitalismo
liberal, estariam excluídas ou à margem legal em suas atividades, como ressalta um
trecho das Diretrizes para a Legislação Cooperativista - 3ª Edição - (2012), desenvolvido
pela Organização Internacional do Trabalho, a pedido da Aliança Cooperativista
Internacional (ACI).
Durante os últimos 160 anos, as cooperativas têm provado ser um meio para os atores da
economia informal se juntarem à economia formal em muitos países ao redor do mundo.
Políticas cooperativas e legislação facilitam o reconhecimento das cooperativas como pessoas
jurídicas legais, com os mesmos direitos e obrigações das outras entidades empresariais
legalmente reconhecidas. Uma legislação cooperativista adequada - incluindo a tributação
de cooperativas, que leva em conta a diferença entre lucro e excedente, a lógica do pagamento dos sistemas pró-rata entre os membros e a criação de fundos de reserva indivisíveis,
bem como a aplicação de normas contábeis específicas para cooperativas -, são medidas
4. Valores que incluem as cooperativas de crédito e os prêmios das cooperativas de seguros e mutualidades.
Dados publicados no World Co-operative Monitor (2014, p. 15)
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que percorrem um longo caminho no sentido de deter os atores da economia informal de
evasões fiscais e também evitar que paguem contribuições para esquemas de segurança
social. (tradução nossa). (HENRŸ, 2012, p 43) 5
Com todos os benefícios que o cooperativismo traz para a sociedade, trata-se de
um modelo organizacional que expõe os seus associados a uma dicotomia de papeis,
enquanto fornecedores de bens e serviços e, também, proprietários do negócio. Para se
entender o processo, é preciso esclarecer o modus operandi do sistema cooperativo, no qual
o capital é dividido em cotas-parte, de igual valor econômico, que cada cooperado adquiri
no momento de adesão à cooperativa, com direito a uma única cota, a fim de garantir
o princípio da democracia, ou seja, a igualdade de participação entre os associados.
A partir daí, a renda de cada cooperado está relacionada ao desenvolvimento de seu
próprio produto, ou serviço junto à cooperativa, e não à “sobra”6, dando margem ao
surgimento de interesses individuais em detrimento do coletivo. Assim, como pode uma
estrutura coletivista ter valores individualistas? São questões que demandam debates
por serem fontes constantes de conflito entre gestores e associados.
Outro desafio está relacionado às legislações (ou a falta delas), que permitem desvios
de governança – principalmente relacionado às tributações - e expõem negativamente
o sistema cooperativo. Em função disso, viu-se criar, nas últimas décadas do século
20, em determinados países, leis que apoiam ou impedem o desenvolvimento de
cooperativas. Foi para reverter esse processo que a Organização Mundial do Trabalho
(OIT) criou as Diretrizes para a Legislação Cooperativista, em 1995, trabalho que já se
encontra em sua 3ª Edição. Sua função é orientar e respaldar as cooperativas, enquanto
responde aos desafios de uma concorrência cada vez mais dura entre as empresas em
todos os níveis.
Buscando especificamente as orientações do documento para relacionamentos
entre os sócios (item 4,8 – Obrigações e Diretos dos membros – p. 75), destacam-se,
primeiramente, os princípios cooperativistas, já descritos neste artigo (HENRŸ, 2012,
p 75). O autor destaca que a sequência pela qual as questões são tratadas na lei não
é indicativa de qualquer ranking, mas reflete o peso dado a um item específico. E
assim justifica a ênfase dada nas Diretrizes às obrigações dos sócios, justificando que
frequentemente os associados querem discutir os benefícios. Segundo ele, o sistema
cooperativo está associado a benefícios e a legislação cooperativista e leis subsidiárias
devem assegurar que sejam respeitadas as regras, mesmo em casos em que as normas
sociais gerais tendam a substituir esses direitos e obrigações.
5. For the past 160 years, cooperatives have proven to be a means for informal economy actors to join the
formal economy in many countries around the world. Cooperative policy and law facilitate the recognition
of cooperatives as legal persons with the same rights and obligations as other legally recognized business
entities. An adequate cooperative legislation, including taxation of cooperatives, which takes into account
the difference between profit and surplus, the rationale of patronage refund payments to members and
the setting up of indivisible reserve funds, as well as the application of cooperative-specific accounting
standards, are all measures which go a long way towards deterring informal economy actors from tax
evasion and from avoiding paying contributions to social security schemes.
6. “Sobra” é o termo usado pelo sistema cooperativo para identificar os resultados operacionais da
organização, que é distribuída aos cooperados, ao final de cada exercício fiscal. Quanto é negativo é chamado
de “perdas”, que também são rateadas entre os associados.
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Fica clara na legislação que a participação efetiva do cooperado em sua cooperativa
é mais que um direito: é um compromisso (p. 76).
Por pertencer a uma cooperativa, os membros se comprometem a:
• respeitar os estatutos, as decisões tomadas pela assembleia geral, independentemente
se votaram em sua adoção ou não, bem como as decisões tomadas pela administração, que
estejam em consonância com as decisões da assembleia geral.
• abster-se de qualquer atividade prejudicial para o objetivo da sua cooperativa. Frequentemente, a participação em várias cooperativas com o mesmo objetivo é considerada um
prejuízo para o sistema cooperativo. No entanto, isso não precisa ser o caso.
• participar das atividades da cooperativa. Esta obrigação não pode, contudo, ser forçada. (Grifo nosso.
Tradução nossa.)7
Complementando o item acima, o documento esclarece, em “outras obrigações”,
que é possível prever em estatuto a obrigatoriedade dos cooperados no uso de, pelo
menos, os serviços ou instalações de sua cooperativa, mas não é recomendado. Apesar
de favorecer, em um primeiro momento, o desenvolvimento da organização, tal regra
pode influenciar negativamente a competitividade da cooperativa e, pior, o direito da
concorrência. E assim, sugere que ao invés de se impor por meio de obrigações legais,
pode-se considerar que os membros têm o dever moral de trabalhar com sua cooperativa.
Entretanto, ressalta que cabe aos administradores oferecerem serviços suficientemente
atrativos para agregar os seus membros. Surge, aqui, mais uma necessidade fundamental
de conversação “cívica” para a solução dos desafios e impasses.
Falando dos direitos, as Diretrizes destacam o ambiente democrático de expressão,
que marca o cooperativismo:
Cada cooperado tem o direito de:
• pedir pelos serviços que constituem o objetivo da cooperativa
• pedir educação e formação pela cooperativa de acordo com os estatutos ou as decisões
da assembleia geral
• utilizar as instalações e serviços da cooperativa
• participar da assembleia geral, propor moções e votar
• eleger ou ser eleito para um cargo na cooperativa ou em uma estrutura de nível superior
a qual sua cooperativa seja afiliada
• obter, a qualquer tempo, informações por parte dos responsáveis eleitos sobre a situação
da cooperativa
• ter acesso aos livros e registros inspecionados pelo conselho fiscal, se houver
• em conjunto (número necessário para ser determinado) os associados podem também convocar
uma assembleia geral e/ou ter uma pergunta inscrita na ordem do dia de uma assembleia geral e
• pedir uma auditoria (adicional) (Tradução nossa). (HENRŸ, 2012, p 77.).8
7. By belonging to a cooperative, members commit themselves to: • respect the bylaws/statutes, the decisions
taken by the general assembly, whether they voted for their adoption or not, as well as the decisions taken
by the management which are in line with the decisions of the general assembly; • abstain from any
activity detrimental to the objective of their cooperative. Frequently, membership in several cooperatives
having the same objective is considered as harming the cooperative(s). However, this need not be the case;
• participate in the activities of the cooperative. This obligation may not, however, be enforced.
8. Each member has the right to: • ask for those services which form the objective of the cooperative; • ask
for education and training by the cooperative according to the bylaws/statutes or the decisions of the general
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Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas
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No Brasil, a legislação que rege o cooperativismo acompanha as orientações gerais
da ACI. Em termos regionais, assim como na Europa (Statute for a European Cooperative
Society - SCE), o Mercosul possui, desde 2009, um estatuto cooperativo para orientar
os seus membros associados nas relações transnacionais. Porém, sua aplicabilidade
depende do seu reconhecimento da legislação local. No Mercosul, apenas o Uruguai
adotou o documento.
Assim, nota-se que teoricamente, em termos legais, o processo democrático e de
participação está garantido, mas não é o que se observa em termos de mercado. Para
Davis e Bialoskorky Neto (2010), na era da administração voltada para valores e em
ambiente de altíssima competição, o compartilhamento de valores é um elemento vital
para engajar os trabalhadores e, no caso das cooperativas, os associados, no processo
decisório. Pode-se supor que as cooperativas proporcionem, com maior facilidade, esse
ambiente, mas, contraditoriamente, nem sempre isso acontece.
Contudo, paradoxalmente, em grande medida, as próprias cooperativas têm falhado na
utilização dinâmica de seus valores centrados no ser humano e em seus processos de comunicação com seus membros, clientes e empregados. Isso ocorre porque o movimento tem
dado pouca atenção ao que esses valores representam de fato para a gestão. Parece que a
literatura cooperativista não ajuda a sanar esse problema porque enfatiza demasiadamente
a responsabilidade democrática no estabelecimento de políticas e a responsabilidade administrativa na execução das políticas traçadas. (DAVIS e BIALOSKORKY NETO, 2010, p.12)
Para os autores, o problema pode estar exatamente na literatura cooperativista e,
principalmente, responsabilizam a gestão, que acaba por provocar o afastamento dos
seus membros.
Na verdade, a prática da gestão cooperativista tem sido determinada por ideias administrativas inadequadas que acabaram criando uma falta de visão por parte da gestão nas
sociedades cooperativistas. Provocaram também o afastamento dos membros dos verdadeiros processos de tomada de decisões no interior de suas cooperativas. A ideia de que
a democracia representa a responsabilização institucional ao invés da participação dos
membros acaba por deixá-los sem influência e os gestores sem informação. O resultado é
uma divisão criada por suspeitas mútuas que impedem a união da comunidade de trabalho
para atender às necessidades mais gerais da sociedade para o benefício de todos. (DAVIS e
BIALOSKORKY NETO, 2010, p.12)
COOPERATIVISMO, CAPITAL SOCIAL E COMUNICAÇÃO
Parece-nos claro que os benefícios que o cooperativismo traz para a sociedade
são inquestionáveis. Tanto que a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu o
ano de 2012 como o “Ano Internacional das Cooperativas”, tendo como tema central
assembly; • use the installations and services of the cooperative; • participate in the general assembly, propose
a motion therein, and vote; • elect or be elected for an office in the cooperative or in that of a higher level
structure to which his cooperative is affiliated; • obtain at all reasonable times from the elected responsible
persons in the cooperative information on the situation of the cooperative and; • have the books and registers
inspected by the supervisory council, if any; • jointly (necessary number to be determined) the members
can also convene a general assembly and/or have a question inscribed on the agenda of a general assembly
and; • ask for an (additional) audit.
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Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas
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“Empresas cooperativas constroem um mundo melhor”. Durante as comemorações
lançaram projetos para uma década cooperativista, com atividades até 2020. Entre os
grandes desafios para a década, segundo o relatório desenvolvido pelo Comitê Gestor
da ACI que deu subsídios para a proposição do plano de ação, estão a necessidade de
elevar a participação entre cooperados e governança a um nível maior de envolvimento
e a construção de uma mensagem capaz de garantir a identidade cooperativa.
Nota-se que o capital social é o grande diferencial e maior vantagem competitiva neste
modelo organizacional. Atualmente, também tem sido uma das maiores preocupações. Pelo
tripé confiança, informações e normas resumem-se os desafios a serem encarados pelos
líderes cooperativistas. Daves e Bialoskorsky Neto (2010) defendem a necessidade de se
consolidar uma Gestão Baseada em Valores em Cooperativas, a qual chamaram de Gestão
Cooperativista de Capital Social (GCCS). Sua proposta foca nas questões administrativas,
que podem e devem ser melhor amparadas por uma boa estrutura de conversação
cívica cooperativista, voltada para o entendimento. Os autores propõem adaptações de
teorias, como a Learning Organisation Theory e a Intellectual Capital Management Theory,
pois ambas reconhecem que a vantagem organizacional competitiva é derivada da
aplicação do conhecimento compartilhado entre o capital humano das organizações e,
no caso das cooperativas, o seu capital social.
Em pesquisa anterior (Padula, 2006), pudemos verificar que a maioria das cooperativas
entende a importância da comunicação nos processos cooperativos, mas a maior parte o
faz de forma assimétrica. Buscam não apenas informar, mas principalmente convencer,
o que acaba por quebrar a confiança tão almejada, conforme mostram os estudos sobre
capital social. Investimentos na área de comunicação não garantem o engajamento, pois
para se construir o capital social não basta informar; tem que interagir, olho no olho, a
fim de desenvolver a confiança. Mas concordamos com Reis (2003) que é preciso definir
em nível comportamental o que é confiança.
Das leituras realizadas, um dado que deverá colocar o sistema cooperativo em
alerta é o fato das pessoas estarem participando menos da vida comunitária. A
sociedade globalizada entra um ritmo alucinante de informações, pois ao mesmo
tempo que se quebra a barreira na relação espaço-tempo (Canclini, 2002), integrando
povos e nações, isola os indivíduos, que passam a se relacionar por meios tecnológicos.
Não é foco deste trabalho discutir se isso é bom o ruim para a humanidade, mas sim
analisar o seu impacto na formação do capital social. A questão é que falta tempo
para convivência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao relacionar o cooperativismo com capital social trabalha-se com uma perspectiva
de valorização da gestão voltada para valores, defendida por Daves e Bialoskorsky Neto
(2010), que pode e deve ser melhor amparada por uma boa estrutura de conversação
cívica cooperativista, voltada para o entendimento. Fica claro nos estudos sobre o tema
que o movimento cooperativista não tem dado a atenção necessária ao que esses valores
representam de fato para a gestão. Partilhamos da ideia que o capital social, com a
valorização da cooperação, é o grande diferencial e uma importante fonte de vantagem
competitiva no modelo organizacional cooperativista.
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Comunicação e Capital Social em Cooperativas: uma análise das convergências teóricas
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O sistema cooperativo, em suas diretrizes e leis, busca garantir os princípios democráticos que motivaram o movimento desde os tempos de Rochdale e a comunicação é
uma forte aliada neste processo. Entretanto, não é qualquer comunicação. Pautados em
Coleman (1990), para se atingir o nível interativo recomentado para a gestão do capital
social, vê-se a necessidade de se trabalhar a confiança, a circulação das informações e
as normatizações. Investimentos na área de comunicação não garantem o engajamento.
O engajamento depende da confiança, formada principalmente pela opinião favorável
à causa, que por sua vez, para se formar necessita de informação e debate.
Considerando a própria filosofia cooperativa, é fundamental que os gestores criem
oportunidades para que os membros/cooperados possam interagir, expressando suas
experiências e refletindo sobre elas, além de também de conhecer um número maior
de ideias e argumentos. Pois como alertado por Lane e Sears (1996) e Noris (2000) (apud
Matos, 2009) ter sua a própria opinião considerada confere ao indivíduo um sentimento
de “eficácia política”, ou seja, a percepção de que seu ponto de vista pode fazer a diferença, reforçando seu sentimento de pertencimento, além de reforçar a confiança mútua. E
reforçamos o pensamento de Reis (2003) que é preciso definir em nível comportamental
o que é confiança, para elevar a gestão a um nível maior de envolvimento e à construção
de uma mensagem capaz de garantir a identidade cooperativa.
Não é objetivo deste trabalho encerrar questões, muito pelo contrário. Trata-se de
inquietações para as quais precisamos de respostas, sob pena de comprometer um
sistema que beneficia cerca de um bilhão de pessoas.
Quando buscam uma cooperativa para viabilizar o seu trabalho ou para escoar sua
produção, o cooperado não está preparado para esse modelo de gestão. E a educação
cooperativista, fornecida por muitas cooperativas aos seus cooperados, não dá conta
da questão, pois o problema está além da administração: esta nos valores pessoais, na
cultura. E assim, abrem-se aqui diversas oportunidades de novas pesquisas.
REFERÊNCIAS
BIALOSKOSKY NETO, S. Economia das organizações cooperativas: uma análise da influência
da cultura e das instituições. 2004, 178f. Tese (Livre Docência). Faculdade de Economia
e Administração, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, 2004.
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institui o regime jurídico das sociedades cooperativas e dá outras providências. Brasília:
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CANCLINI, N. G. La Globalización Imaginada. Barcelona, Paidos Ibérica, 2002.
COLEMAN, J. Social capital in the creation of human capital. American Journal of Sociology,
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Mobilizando questões de gênero na internet:
a luta das mulheres por reconhecimento e a
presença de testemunhos em blogs feministas
Encouraging gender issues on the internet:
women’s struggle for recognition and the
presence of testimonies on feminist blogs
Laís Modelli Rodrigues1
M au ro Souz a Ven t u r a 2
Resumo: O artigo propõe um estudo analítico sobre o modo como questões de
gênero são percebidas em blogs feministas quando blogueiras compartilham
testemunhos. A rede formada pela repercussão destes posts entre os leitores,
a motivação das autoras e como o compartilhamento de experiências pessoais
de mulheres na internet podem evidenciar sentimento de injustiça e casos de
opressão e humilhação de gênero são questões reflexionadas. Para tanto, foram
analisados posts mais lidos de 2014 dos blogs coletivos Blogueiras Feministas
e Blogueiras Negras. Como protocolo metodológico, seguimos os estudos
de participação de Maia e Gomes (2012), de Maia (2008) sobre testemunhos e
narrativas, métodos de pesquisa para internet de Fragoso, Recuero e Amaral (2011)
e pontuações de Castells (2013) sobre redes sociais na era da internet. Concluiu-se
que as causas de gênero foram vivenciadas, compartilhadas e repercutidas em
2014 de maneiras muito distintas entre mulheres que publicaram no Blogueiras
Feministas e mulheres que publicaram no Blogueiras Negras. Problemas,
injustiças e insatisfações também não foram os mesmos quando comparados os
blogs. Constatou-se, ainda, que quando uma autora feminista testemunha sobre
um problema de gênero vivenciado, outros testemunhos são gerados entre os
leitores de maneira espontânea, se aproximando de uma conversação cotidiana.
Palavras-Chave: Internet. Blogs. Testemunhos. Feminismo.
Abstract: The article proposes an analytical study on how gender issues are
perceived in feminist blogs when bloggers share testimonies. It will discuss the
network formed by the repercussion of these posts among readers, the motivation of
the authors and how the sharing of personal experiences of women on the internet
may show cases of oppression, gender humiliation and the feeling of injustice.
For these purposes, the most read posts of the collaborative blogs “Blogueiras
Feministas” and “Blogueiras Negras” in 2014 were analyzed. As a methodological
protocol, we follow Maia and Gomes (2012) participation studies, Maia´s (2008)
1. Mestranda do programa de pós graduação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP,
[email protected]
2. Professor doutor e coordenador do programa de pós graduação da Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação da UNESP, [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas
Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura
testimony and narratives, Fragoso, Recuero and Amaral´s (2011) methods for
researching the internet and Castells ´(2013) social networks in the internet age. It
was concluded that gender issues experienced, shared and passed in 2014 in very
different ways among women published in Blogueiras Feministas and among
women published in Blogueiras Negras. Problems, injustices and dissatisfactions
were not the same when comparing the blogs. It was found, still, when a feminist
blogger testimonie about an experienced gender problema, other testimonies are
generated among readers spontaneously, approaching an everyday conversation.
Keywords: Internet. Blogs. Testimonies. Feminism.
UMA BREVE HISTÓRIA DO FEMINISMO NO BRASIL
S BANDEIRAS que se discutem ainda hoje no movimento feminista nacional,
A
como a legalização do aborto, igualdade salarial e maiores penas à crimes de
violência sexual e doméstica, são pautadas pelo movimento feminista brasileiro
desde a década de 60. Essa foi a época em que o movimento começa a aparecer na mídia
para debater temas sobre a condição do corpo feminino e a luta para ocuparem maiores espaços de poder na sociedade e dentro da própria casa. Naquela época, contudo,
não se tratava de ampliar os direitos previstos em uma sociedade democrática, mas de
conquistar a própria democracia.
Se por um lado a ação de feministas brasileiras era intensa nos anos de 1960, a
reação do governo também era. A História política dessa época, à exemplo de outras,
tentava abafar os movimentos feministas no Brasil em casos como o Golpe de 1964, que
colocou milhares de mulheres no exílio, nas cadeias e na clandestinidade. Em 1975, a
luta feminista volta a ganhar força com o Movimento das Mulheres pela Anistia. Em
1987, as mulheres se reúnem para exigir seus direitos em uma Carta das Mulheres aos
Constituintes. O documento foi aprovado no texto Constitucional de 1988 em 85 por
cento da sua totalidade. Desde a data, no entanto, a pauta da luta das mulheres cresceu
e exige novas necessidades e debates no Brasil. Eram bandeiras do movimento feminista
brasileiro dessa época: o combate à discriminação de gênero, o combate à violência contra
a mulher e a luta pelos Direitos Sexuais e Reprodutivos. Vale lembrar que até 1988, o
homem era considerado o chefe da família perante a Constituição.
Tal panorama histórico demonstra que foi somente no final do século XX que
a mulher brasileira conseguiu dialogar com a sociedade pautas ligadas ao controle
do próprio corpo, como o uso da pílula anticoncepcional e a divisão social entre a
sexualidade e a maternidade. Conseguir maiores espaços de diálogo não significa,
contudo, que esses direitos tenham sido alcançados.
FEMINISMO NA ERA DA INTERNET
O mundo vive uma nova onda feminista, em que questões de gênero conseguem
espaço na mídia por causa das possibilidades de maior intervenção das mulheres nos
espaços públicos e simbólicos (CASTELLS, 2013). Mas como já apontamos anteriormente,
maior espaço de diálogo e capacidade de pautar temas feministas não significa alcançar
a aprovação desses temas. Aqui também é preciso refletir sobre como essas pautas têm
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas
Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura
sido abordadas e como falar sobre os pequenos ganhos conseguidos com muita luta até
hoje parecem naturalizar e deslegitimar as ações feministas atuais:
A sociedade patriarcal rejeita a ideia de que ainda é preciso falar de feminismo nos tempos contemporâneos. Isso porque as mulheres já conquistaram um espaço significativo no
mercado de trabalho. Hoje, ocupam cargos historicamente masculinos e têm liberdade de
escolha na vida pessoal e profissional. Essas mudanças promoveram a naturalização de um
perfil de “mulher moderna” enquanto independente financeiramente; naturalização esta
que produziu um efeito de estabilidade sobre os impactos das conquistas dos movimentos
feministas na vida da mulher (LIMA, 2013, p.10)
Diferente de duas décadas atrás, quando não era possível confrontar os discursos
antifeministas da mídia de maneira direta, a não ser por meio de uma ligação à redação
do meio de comunicação ou do envio de uma carta ao editor, hoje essa ação já se torna
possível graças à internet. Nas redes sociais e até nos espaços de comentários de notícias
de grandes portais, feministas podem confrontar tais discursos. Já em blogs e sites
próprios, mulheres que vivem o problema de gênero podem divulgar seus próprios
relatos sem cortes e edição de um editor ou revisor. Segundo Lima (2013, p10), “a
popularização da internet contribuiu para fazer circular massivamente discursos de
valorização do feminismo”. Assim, se o movimento Marcha Mundial das Mulheres
resolve fazer um grande ato no dia 8 de março, por exemplo, ele não depende mais
exclusivamente da grande mídia para convocar as pessoas e cobrir a marcha; o próprio
movimento tem suas páginas em redes sociais na internet e ainda contam com a ajuda
de divulgação de demais blogs feministas na rede.
Diante da sociedade do conhecimento, a internet se torna um elemento estratégico
a mais para a luta das mulheres em busca de condições de igualdade social. Mais
assim como nos espaços reais, é preciso também conquistar seu espaço ne virtual, uma
vez que o próprio ambiente on-line também apresenta sua parcela de exclusão por
gênero, seja pela falta de mulheres em ambientes de desenvolvedores(as) de tecnologias
digitais, seja pelas brechas de definição de gênero e feminismo encontradas em páginas
como Wikipédia, seja pela violência das redes sociais na internet contra mulheres,
com vazamento de vídeos e fotos íntimos de mulheres famosas e anônimas. “Afinal, a
virtualização das relações sociais não reduziu as velhas práticas de violência sexista,
ao contrário, criou novas ferramentas para o exercício do poder patriarcal sobre nossas
vidas e nossos corpos” (NATANSOHN, 2013, p180).
A ESCOLHA DOS SUJEITOS, DOS ESPAÇOS E OS PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS DA PESQUISA
O Brasil passa por um momento em que discussões feministas acaloram marchas
de rua, vida as ações internacionais e nacionais da Marcha Mundial das Mulheres e dos
atos semestrais da Marcha das Vadias, ambos os movimentos espalhados pelo Brasil
todo. No âmbito institucional, a recente aprovação da lei que transforma o assassinato
de mulheres em crimes de feminicídio, que podem duplicar a prisão ao agressor, também
contribuíram para maior destaque de temas feministas na mídia. No âmbito social, o
crescente número de blogs feministas, vide Lugar de Mulher, Escreva Lola Escreva, Think
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Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas
Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura
Olga etc, que ao mesmo tempo postam diariamente conteúdos ligados às causas de
gênero, também permitem que qualquer mulher feminista post seu próprio texto, tem
criado uma nova geração de mulheres que se informam com outras mulheres. E não
foi somente o feminismo, como demais movimentos sociais viram nas redes sociais o
potencial para se organizarem e se manifestarem (CASTELLS, 2013).
Para Castells, o poder de se expressar sem intervenção de um editor nessas redes
sociais na internet fazem com que essas ferramentas on-line vão além de uma função
organizacional para os movimentos sociais. “Quanto mais as ideias são geradas de
dentro do movimento com base na experiência dos participantes, mais representativo,
entusiástico e esperançoso será ele, e vice-versa”. (2013, p.20). Tratam-se, logo, de
ferramentas de revigoramento social.
Depois de prévio levantamento, escolhemos estudar os objetos: Blogueiras Feministas,
um blog coletivo, hospedado em http://blogueirasfeministas.com/, surgido em 2010 e
que reúne mulheres feministas de todo o Brasil para compartilharem suas experiências
em forma de textos sobre questões de gênero; Blogueiras Negras, hospedado em http://
blogueirasnegras.org/, surgido em 2010, que reúne postagens de mulheres negras
feministas de todo o país. Todo dia ou em um intervalo curto de dias, uma mulher de um
lugar diferente do Brasil relata no blog um caso pessoal sobre um tema feminista ou se
posiciona diante de uma questão ligada à condição de gênero ou de uma notícia circulada
na grande mídia nacional e internacional. Também há a tradução e postagem de textos
feitos por mulheres estrangeiras em outros blogs feministas.Uma das organizadoras do
Blogueiras Feministas define o projeto como:
Este blog existe porque queremos vivenciar na rede a experiência de ser feminista. Escrever
posts, apontar manifestações do machismo na sociedade, twittar, fazer videos, publicar
fotos, organizar manifestações nas ruas e na rede, entre outras formas de espalhar essa
ideia de que ainda tem muita coisa pra mudar nas relações entre homens e mulheres. Por
outro lado, tem a ver com uma reflexão constante sobre a nossa própria vida, sobre como a
gente pode enfrentar as nossas contradições, como a gente constrói as nossas relações com
mais autonomia e liberdade. (BLOGUEIRAS FEMINISTAS, 2014)
Baseado nos processos interativos de dar e receber razão e da importância
dos testemunhos para evidenciar um problema antes naturalizado (MAIA, 2012) e
considerando que “a mudança do ambiente comunicacional afeta diretamente as normas
de relação de significado e, portanto, a produção das relações de poder” (CASTELLS,
2013, p.11), procuraremos indicar: Como blogueiras feministas brasileiras compartilham
na internet experiências pessoais ligadas à condição de ser mulher; como questões
de gênero são percebidas em blogs feministas quando blogueiras compartilham
experiências pessoais por meio de testemunhos e depoimentos; como essas informações,
ligadas a atual demanda de bandeiras feministas no Brasil, são recebidas e refletidas
pelos leitores.
Escolher analisar blogs, dentre tantas outras redes sociais existentes na internet,
também tem suas razões: blogs possuem um papel importante na maneira como uma
informação é propagada na internet, uma vez que a personalização da ferramenta
foca diretamente a linguagem e a forma de determinar o que será publicado, além de
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Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas
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manter sempre uma pequena audiência em torno do blog, audiência essa normalmente
conectada através dos blogrolls (lista de outros blogs que normalmente vai anexa a um
determinado blog, criando uma rede de conexões entre audiências de blogs diferentes
e até de redes sociais diferentes) (RECUERO, 2009). Conceitualmente, ainda segundo
Recuero, Blogs são sites de divulgação, capazes de reunir links de outros blogs ou
quaisquer outras redes sociais na internet. São formados por textos, chamados de posts,
organizados de forma cronológica inversa, com a presença frequente de comentários.
A escolha dos blogs ainda considerou que existe pouca bibliografia sobre metodologias
aplicadas nas redes formadas em Twitter e, menos ainda, em Facebook. O estudo de
Redes Sociais como aporte metodológico, por sua vez, foi escolhido porque os autores
do presente artigo acreditam na potencialidade de observar a sociedade organizada na
metáfora da rede, com atores tecendo e quebrando suas conexões entre si e com outras
redes sempre que conveniente.
Sendo os blogs e demais redes sociais espaços de debates e discussões sociais entre
atores ativos, podemos analisar a maneira como testemunhos são compartilhados, percebidos, significados e negociados na rede on-line, além de estudar como essa percepção
e negociação pode influenciar as trocas de informação entre blogueiras feministas e seus
leitores por meio de outros testemunhos gerados no espaço dos “comentários”.
Este trabalho origina-se de uma pesquisa mais abrangente da autora sobre a formação de capital social e formação da rede on-line em torno das manifestações feministas na internet e nas marchas de rua, pesquisa essa que vem sendo desenvolvida
na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual de São
Paulo, Unesp – Bauru.
Espaço dos comentários no blog: deliberativo ou impositivo?
Não chamaremos o espaço virtual dos “comentários” analisado como um espaço de
deliberação e de esfera pública, uma vez que não há aquilo que Gomes e Maia apontam
como elemento essencial de uma esfera pública: “não seja uma mera competição verbal,
supõe que aqueles que discutem empreguem argumentos que são dispostos em posições
e contraposições, voltados para a obtenção de uma opinião prevalente ou de um consenso
possível” (2008, p. 36). A competição verbal aqui apontada refere-se ao fato de termos
verificado durante a coleta de comentários que muitos deles são postados uma única
vez, por pessoas que não haviam comentado antes no período, e que não têm a intensão
de gerar uma conversa argumentativa, mas apenas querem ora ofender, ora impor sua
opinião sobre algum tema feminista. Não podemos deixar de ressaltar, contudo, que,
assim como nos espaços deliberativos (GOMES e MAIA, 2008), o espaço dos comentários
dos blogs analisados propiciam a discussão e a troca de argumentos e razões entre os
leitores/as e as autoras das postagens:
Participar da esfera pública, nesse sentido, significa comprometer-se a obedecer às leis da
racionalidade (discute-se sinceramente quando se quer expor razões e considerar as razões
que os outros queiram expor) e da discursividade (pretensões só podem ser consideradas
se apresentadas na forma de argumentos), excluindo-se eticamente todos os recursos e
expedientes que a tais leis se oponham. (GOMES e MAIA, 2008, p. 36)
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Desse modo, apesar de não ser nomeado como esfera pública por não acreditarmos até
o momento que o espaço seja, de fato, deliberativo, utilizamos, em caráter metodológico,
categorias de análise dos conteúdos dos comentários coletados advindas dos estudos
de participação política e de deliberação online.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Por meio de um estudo qualitativo com elementos empíricos, o corpus desta pesquisa
está constituído pelos posts contendo testemunhos feitos durante o ano de 2014 pelos
blogs coletivos e feministas Blogueiras Feministas e Blogueiras Negras e listados como os
“mais lidos do ano” pelas autoras das próprias páginas.
Os objetos foram analisados sob a ótica metodológica da formação de redes sociais
na internet, uma metáfora estrutural para compreender elementos dinâmicos e de
composição dos grupos sociais envolvidos. No caso, atores envolvidos em uma rede
construída por feministas em torno de narrativas em primeira pessoa de experiências
pessoais vividas pelas autoras na condição de mulher. O aporte metodológico teve como
base os estudos de Fragoso, Recuero e Amaral (2011) sobre métodos de pesquisa para
internet, de Maia e Gomes (2011) sobre internet e participação política, de Castells (2013)
sobre formação de poder e influência das redes on-line. Vale ressaltar que, apesar de não
nomear o espaço virtual analisado neste artigo como “esfera pública”, vem do pensar
na formação dela que definimos a metodologia apresentada.
A análise foi feita por meio de uma ida ao campo virtual, na página do Blogueiras
Feministas e na página do Blogueiras Negras, onde foram analisados os posts mais lidos
de 2014. Também foram coletados comentários de leitores replicados no blog nesses
mesmos posts a fim de analisar como foi a recepção, reflexão e tomada de decisão para
postar um novo depoimento como comentário.
A coleta de dados precedida da ida ao campo virtual resultou na construção de
uma tabela de categorias de análise que mediu o grau de interação entre as blogueiras
e os leitores em volta do compartilhamento de testemunhos feministas feitos em 2014.
Sobre as categorias de análise da tabela, considerando os estudos de Barbero (2002),
que percebe como ativo quem recebe a mensagem, receptor esse capaz de produzir seus
próprios significados e negociações a partir do seu repertório sociocultural, adaptamos
seus estudos para o conceito de graus de conexão, advindo dos estudos de Redes Sociais
de Fragoso, Recuero e Amaral (2011) e estabelecemos categorias de análise: Depoimento
(Depoimento que viveu o mesmo problema; Depoimento que viveu o mesmo problema,
mas em situação diferente; Depoimentos que contradizem a situação) Concordância,
Discordância, Reflexão. Quanto mais as categorias forem preenchidas, mas forte será a
rede on-line construída. Quanto menos categorias preenchidas, mais fraca as conexões
dessa rede e menos propícia para o ambiente de discussão e reflexão, pois “Enquanto
os laços fortes possuem um alto nível de intimidade e suporte social, os laços mais
fracos representam relações mais superficiais, menos íntimas e com menos valores
construídos entre os atores” (RECUERO, 2009, p.24). Quando tabelamos Concordância e
Discordância, consideramos o ponto de vista defendido pelo depoimento da blogueira;
quando tabelamos Reflexão, consideramos comentários que informam que, ao ler o texto
e os comentários deixados, refletiu sobre o assunto para poder deixar o seu comentário.
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Ao identificar e categorizar os comentários de leitores e blogueiras, conseguiremos
dimensionar: a) o grau de interação entre blogueiras e leitores/as, e vice-versa; b) o grau de
confiança entre leitores/as e blogueiras; c) como o tipo de narrativa, no caso depoimentos
e testemunhos, impulsiona as postagens sobre um tema feminista.
RESULTADOS
Enquanto o Blogueiras Negras elegeu os 20 textos mais lidos do blog em 2014. Deles,
sete tinham depoimentos e testemunhos como principal tema das postagens. O Blogueiras
Feministas elencou os 10 mais lidos de 2014 e seis continham tais narrativas.
No que se refere aos textos do Blogueiras Negras, vale ressaltar que um dos posts
foi assinado por uma das blogueiras como “Anônima”, com a descrição de “A autora
anônima somos todas nós. Ela sou eu e também é você quando precisa preservar sua
identidade”. Foi o único, de todos os textos analisados em ambos os blogs, em que a
autora assinou como “anônima”.
Sobre os textos mais lidos do Blogueiras Feministas, dos seis posts que se referem a
depoimentos e testemunhos de mulheres na internet: a) dois são depoimentos de autoras
do blog, b) dois são tradução de depoimentos de mulheres feministas de outros países,
publicados em outros sites e blogs, c) dois são reflexões das autoras sobre testemunhos de
atrizes de Hollywood e de uma jornalista do Estado de São Paulo. Sobre os comentários
postados no blog, somando todas as mensagens feitas nos seis posts analisados,
foram tabelados 193 comentários. Desses, 179 são depoimentos e testemunhos. 151
se identificaram em seus depoimentos com o problema retratado pelas autoras; 25 se
identificaram com o problema, porém vivenciaram-no de maneira diferente; 3 usaram
seus depoimentos para discordarem da situação apresentada pelas autoras.
No Blogueiras Negras, encontramos sete posts de depoimentos de autoras do blog.
Deles, apenas um é o depoimento de uma mulher que não pertence ao blog e que esteja
presente na mídia. Dos comentários, encontramos 156 deixados nos sete posts. Desses, 138
eram depoimentos e testemunhos. 118 se identificaram com o problema retratado pelas
autoras; 18 se identificaram com o problema, porém vivenciaram-no de maneira diferente;
2 usaram seus depoimentos para discordarem da situação apresentada pelas autoras.
Gostaríamos de destacar um dos casos que conseguiu atingir o autor do caso de
discriminação racial deposta pela autora. Trata-se do post “Não fui selecionada. Por
que será?”, em que a autora, mesmo tendo assinado como “Anônima”, foi localizada
pelo possível autor nos comentários deixados. No texto, a autora conta como se sentiu
discriminada ao participar de uma seleção da loja Arezzo para trabalhar como vendedora.
Na ficha de seleção, tinha que informar peso e cor. “Minha entrevista durou menos de
10 minutos”. Ao sair frustrada da seleção, resolveu visitar três lojas da marca, uma delas
para onde era a vaga, e constatou que não havia uma mulher negra como vendedora.
“Qual a relevância de se perguntar o PESO e a COR de uma pessoa para processo seletivo
de suas vagas?”, questiona a autora. Dentro os 30 comentários que teve o post, um deles
era da empresa responsável pela seleção da Arezzo, comentando que o preenchimento
era apenas protocolo e que isso não era levado em conta na hora da contratação de
vendedoras. A partir daí, não houve nenhuma outra postagem de depoimentos e
testemunhos nos comentários, uma vez que os leitores passaram a questionar a resposta
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Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas
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da empresa de seleção de maneira mais aprofundada. A empresa, por sua vez, não
respondeu a nenhum comentário.
Comparando o resultado em ambos os blogs, foi constatado aquela que era nossa
hipótese desde o início: com o compartilhamento de depoimento e testemunho das
blogueiras, novos depoimentos e testemunhos são gerados de maneira espontânea entre
os leitores. Quando dizemos espontânea, consideramos aqueles comentários que, ao
concordar ou discordar com a autora do post, registra a sua própria experiência de vida.
Muitos desses depoimentos espontâneos assumem o risco, inclusive, de serem o que é
considerado machista e preconceituoso para os demais atores sociais da rede:
Assumo aqui minha gordofobia, que odeio e desprezo. Luto todos os dias contra esse preconceito, essa ideia absurda de que ser gordo não é saudável. Não me orgulho disso, ok?
Como acabei de dizer, luto contra isso. Sou uma pessoa que acredita na tolerância e aceitação das diferenças, sejam elas quais forem e por essa razão sofro tanto com essa visão
enviesada que tenho concernente as pessoas gordas. Acredito que a porra da televisão me
fez muito mal, a visão dos padrões de beleza, de uma forma só de ser pessoa e mulher me
transformaram nesse ser preconceituoso que sou. Ontem, mesmo antes de ler este post, em
um diálogo comigo mesma, resolvi que evitaria assistir essas baboseiras para que parasse
de ver a vida e as pessoas de forma tão enquadradas.Assumo aqui que sou preconceituosa,
que luto contra isso e que estou no caminho. Espero que não me condenem por isso, porque
não estou falando que esteja certa, não estou. Estou assumindo aqui que não quero ter essa
visão e que como sempre é muito bom levar uns tapas argumentativos para poder repensar
os próprios equívocos e erros. (Viviane, 15/01/2014 às 10:24)
Dentro dos comentários do Blogueiras Feministas, vimos poucos depoimentos de
mulheres que, para exemplificar uma situação de preconceito, depunham sobre o
preconceito racial. Somente uma leitora fez isso nos textos analisados no blog. O mesmo
também aconteceu no Blogueiras Negras: apenas 9 leitores/as que não se consideravam
“negra” depôs no espaço dos comentários.
Constatamos também que depoimentos que apresentavam um novo ponto de vista
a situação geravam outros depoimentos compatíveis, gerando mais que Reflexão, mas
também um diálogo racional e aprofundado sobre a questão. Veja a sequência a seguir
retirada do post Algumas vezes é preciso se divorciar de seus pais, postado no Blogueiras
Feministas:
Quando se tem pais crueis, creio que seja necessario esses afastamento, mas qdo se tem pai
ou mae (mae no meu caso) que sofre de problemas psiquiatricos (bipolaridade e depressão),
nao quer e nunca quis se tratar, e usa essa doença como desculpa para sempre ser uma
vitima da vida, provocando dia a dia somente culpa e distirubios nos filhos? e sendo filha
unica de pai ausente? Difícil (DANI, 22/08/2014)
Dani, tenho o mesmo problema que vc, também sou filha única. Quando li seu relato, parecia que vc estava falando de mim, é muito complicado mesmo, recentemente moro longe
da minha mãe e minha vida mudou completamente, mas ela ainda me liga reclamando de
tudo e também não se trata, sempre coloca obstáculo pra tudo. Nunca nada é bom pra ela.
É difícil demais ajudar quem não se ajuda. (Fran, 13/09/2014)
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
857
Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas
Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura
Meu Deus! Estou pasma, lendo esses comentários e parece que as pessoas estão falando
sobre mim rsrsrs Fico feliz e me sinto acolhida de saber que existem outras pessoas com o
melhor problema e que não sentem vergonha de compartilhar isso, pq infelizmente vivemos
numa sociedade hipocrita que taxa pai e mae como santinhos. (Ana, 29/10/2014)
Constatamos, por fim, que quase todos comentários foram postados com um nome e
foto. Se eram reais, não podemos afirmar. Os que postavam como anônimos, geralmente
escreviam “hoje estou anônimo/a”, demonstrando que possivelmente já tinham deixado
outros depoimentos e testemunhos nos blogs. Ainda, constatamos que a presença de
leitores que se declaram homens nos comentários foi baixa. No Blogueiras Feministas,
apenas 16 homens comentaram. No Blogueiras Negras, 23 homens.
Sobre os temas depostos e testemunhados, encontramos no Blogueiras Feministas:
preconceito com mulheres que não se enquadram no padrão de beleza das magras;
cobrança da maternidade e do pós-parto; existem pais que não fazem bem aos seus
filhos; posar nua; descriminalização do aborto. No Blogueiras Negras encontramos:
protestos contra a representação da mulher negra no programa da TV Globo O Sexo
e as Negas; mercado de trabalho discrimina mulheres negras na hora de contratar; o
direito de assumir o cabelo afro sem sofrer preconceito pela sociedade; repercussão do
caso #TodosSomosMacacos, campanha online lançada pelo jogador Neymar; repercussão
do discurso da atriz negra ganhadora do Oscar, Lupita Nyong´o.
CONCLUSÕES
Ao analisar os temas que viraram posts mais lidos em cada um dos blogs, ambos
feministas, com um deles voltado à questão do racismo, podemos constatar como
o feminismo tem suas especificidades quando deixamos de generalizar o que é ser
“mulher”. Em outras palavras, pudemos constatar como que mulheres do mesmo país,
no mesmo ano, perceberam e vivenciaram as questões de gênero de maneiras distintas.
Podemos ver essa distinção de mulher para mulher na vivência de problemas sociais
ligados ao gênero logo no primeiro post analisado do período, publicado em janeiro de
2014 no Blogueiras Feministas, que traz falas das atrizes hollywoodianas sobre seu peso
e sua vontade de comer, Melissa McCarthy, mulher considerada muito além do peso, e
Jennifer Lawrence, magra, porém considerada “gorda” para os padrões (“Em Hollywood,
eu sou obesa. Sou considerada uma atriz gorda”; “Eu sou a única atriz sobre a qual
não existem rumores sobre anorexia”). Por ser uma tradução de um texto escrito por
uma blogueira americana, sem intervenção da blogueira brasileira que o traduziu, dos
25 comentários deixado no post afirmava que “Bom artigo, muito mais pertinente nos
EUA, onde a intolerância com a obesidade é imensa” (Renata, postado em 14/01/2014).
No mesmo comentário, contudo, a leitora deixa seu próprio depoimento concordando
com o tema: “Eu sei como é isso, já fui bem magra comendo de tudo e achei que nunca
fosse engordar, aí tive um problema e engordei e minha mãe me chamava de obesa
(vestindo 40) até que cheguei quase no 48 e emagreci um pouco depois”. Ressaltamos
que o problema, no caso o de se enquadrar nos padrões de beleza da mulher magra,
foi vivenciado de maneira diferente, mas a questão existe tanto para mulheres norte
americanas como para as mulheres brasileiras.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
858
Mobilizando questões de gênero na internet: a luta das mulheres por reconhecimento e a presença de testemunhos em blogs feministas
Laís Modelli Rodrigues • Mauro Souza Ventura
Vale a ressalva que a palavra “denunciar”, mostrando que o depoimento esbarra
em questões legais, foi usada uma única vez em todos os depoimentos analisados nos
dois blogs: veio do texto Sistema da PF não aceitou meu cabelo black power para foto
de passaporte, postado no dia 16 de julho de 2014.
Das repercussões e traduções de depoimentos de mulheres públicas que não são
autoras dos blogs, percebemos que o Blogueiras Negras replicou o depoimento de apenas
uma mulher, da atriz Lupita Nyong´o, vencedora do Oscar 2014 na categoria de atriz
coadjuvante, enquanto que no Blogueiras Feministas houve a replicação e tradução
de depoimentos de duas atrizes e uma jornalista, todas brancas. Dessas constatações,
podemos inferir questões de representação da mulher branca e da mulher negra versus
sentir-se representada, concluindo que a mulher negra tem poucos referenciais e sentese pouco representada na mídia.
REFERÊNCIAS
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
The leadership of black women in alternative media
T a t i a n a C ava l c a n t e
de
Oliveir a Botosso 1
Resumo: Este trabalho discorre sobre o poder da mídia, os conglomerados de
comunicação do Brasil e como é retratada a imagem da mulher negra nessas
empresas. O objetivo deste estudo é examinar meios de comunicação alternativos
protagonizados por mulheres negras. A mídia atua como uma indústria da
informação e naturaliza as relações de desigualdade e opressão da mulher
negra, que sofre com as piores condições socioeconômicas. Em contrapartida,
as mulheres negras têm produzido um conteúdo independente nos meios de
comunicação alternativa. Tais conteúdos, protagonizados por mulheres negras,
reproduzem um discurso independente de valorização da identidade e da
cultura afro-brasileira, e de resistência aos sistemas de opressão.
Palavras-Chave: Mulher negra. Mídia. Comunicação alternativa. Blogueiras
Negras. Meninas Black Power.
Abstract: This paper discusses the power of the media, the Brazilian media
conglomerates and how are portrayed the image of black women by these
communication companies. The objective of this study is to examine alternative
media of communication spearheaded by black women. The media operate as an
information industry, and naturalize the relations of inequality and oppression
of black women, which suffering under the worst socioeconomic conditions. On
the other hand, black women generate an independent communication content
in alternative medias. Such communication content, produced by black women,
generates an independent speech of identity and african-Brazilian culture, and
resistance to oppression systems.
Keywords: Black women. Media. Alternative media. Blogueiras Negras. Meninas
Black Power.
INTRODUÇÃO
S MULHERES negras enfrentam as piores condições socioeconômicas da socie-
A
dade brasileira. Entretanto, o protagonismo político dessas mulheres negras
tem promovido o reconhecimento dessas opressões, denunciando inclusive a
naturalização do racismo nos meios de comunicação.
O poder simbólico é exercido pela mídia através de conglomerados da indústria da
comunicação. Essas empresas atuam de maneira opressora ao invisibilizar as mulheres
negras nos seus veículos, ou quando disseminam uma imagem negativa dessas mulheres.
1. Jornalista e mestre em Ciências com ênfase em Mudança Social e Participação Política pela EACH - Escola
de Artes Ciências e Humanidades da USP, professora do Celacc – Centro de Estudos Latino-Americanos
sobre Cultura e Comunicação na ECA – Escola de Comunicações e Artes da USP, email: [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso
Na contramão do poder midiático, os meios de comunicação alternativos atuam
promovendo novas relações de produção comunicativa. As mídias alternativas:
Blogueiras Negras e Meninas Black Power mobilizam o protagonismo das mulheres
negras na produção de conteúdos de maneira independente e colaborativa.
O MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS ENEGRECENDO O FEMINISMO
Cotidianamente, a realidade das negras brasileiras é constituída de empecilhos
à plenitude de sua cidadania. Tais como: estereótipos negativos e ofensivos, assédio
sexual no local de trabalho, esterilização, violência doméstica, quesito de boa aparência,
subemprego, tráfico e turismo sexual, falta de registro em carteira, aborto induzido
através de métodos danosos à saúde, múltiplas jornadas de trabalho e o analfabetismo.
(Quintão, 2004)
A partir da década de 1980, a dificuldade em promover a discussão sobre: a opressão
racial dentro do movimento feminista, e a opressão machista dentro do movimento
negro, resultou na criação de várias organizações de mulheres negras.
Para a filósofa Sueli Carneiro (2003), no movimento feminista brasileiro a trajetória
das mulheres negras pode ser designada pela expressão enegrecendo o feminismo. Essa
expressão demonstra que a identidade feminista clássica: branca e ocidental revela-se
insuficiente na teoria e na prática política do feminismo construído em sociedades
pluriculturais e multirraciais. O protagonismo político das mulheres negras tem
promovido:
• o reconhecimento da falácia da visão universalizante de mulher;
• o reconhecimento das diferenças intragênero;
• o reconhecimento do racismo e da discriminação racial como fatores de produção e reprodução das desigualdades sociais experimentadas pelas mulheres no Brasil;
• o reconhecimento dos privilégios que essa ideologia produz para as mulheres do grupo
racial hegemônico;
• o reconhecimento da necessidade de políticas específicas para as mulheres negras para
a equalização das oportunidades sociais;
• o reconhecimento da dimensão racial que a pobreza tem no Brasil e, conseqüentemente,
a necessidade do corte racial na problemática da feminização da pobreza;
• o reconhecimento da violência simbólica e a opressão que a brancura, como padrão estético
privilegiado e hegemônico, exerce sobre as mulheres não brancas. (Carneiro, 2003, p. 129-130)
Entretanto, os principais vetores de enfrentamento do movimento são: o mercado
de trabalho, a violência: em seus variados aspectos, a saúde e os meios de comunicação.
Para a autora:
Os meios de comunicação vêm se constituindo em um espaço de interferência e agendamento de políticas do movimento de mulheres negras, pois a naturalização do racismo e
do sexismo na mídia reproduz e cristaliza, sistematicamente, estereótipos e estigmas que
prejudicam, em larga escala, a afirmação de identidade racial e o valor social desse grupo.
(Carneiro, 2003, p. 125)
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso
Dessa maneira, o movimento de mulheres negras, fruto da reivindicação histórica
por melhores condições de vida, também denuncia a maneira como a imagem da mulher
negra é apresentada na mídia.
O PODER DA MÍDIA
Em relação a suas instituições paradigmáticas e recursos, Thompson (1998) afirma
que existem quatro formas de poder. Uma delas pode ser identificada como o poder
simbólico, no qual operam os recursos dos meios de comunicação e informação. Tais como,
as instituições culturais, a igreja, as indústrias da mídia, as escolas e as universidades.
Dessa maneira, a mídia exerce o poder simbólico, naturalizando as relações de opressão.
A mídia exerce o poder simbólico em dois aspectos principais, denominados
por Chaui (2006) como econômico e ideológico. No aspecto econômico, os meios de
comunicação são empresas privadas, “uma indústria (a indústria cultural) regida pelos
imperativos do capitalismo” (CHAUI, 2006: p. 73).
No Brasil existem dez conglomerados de empresas de comunicação denominados
por Görgen (2009) como Sistema Central de Mídia, que se adequam a três condições:
(1) exercer controle direto de uma rede nacional de rádio ou de TV, (2) manter relações
políticas e econômicas com mais de dois grupos regionais afiliados em mais da metade das
unidades da federação e (3) possuir vínculo com grupos que detêm propriedade de veículos,
ao menos, nos segmentos de rádio, televisão e jornal ou revista. (Görgen, 2009, p. 97)
Os dez conglomerados que compõe o Sistema Central de Mídia no Brasil, identificados
pelo autor, são: (1) Organizações Globo, (2) Sílvio Santos, (3) Igreja Universal do Reino de
Deus, (4) Bandeirantes, (5) Governo Federal, (6) TeleTV, (7) Abril, (8) Amaral de Carvalho,
(9) Governo do Estado de São Paulo e (10) Organização Monteiro de Barros. Estas
organizações controlam ao todo 1.310 veículos de comunicação direta ou indiretamente. O
número de veículos do conglomerado Organizações Globo era de 383 durante a pesquisa,
o segundo colocado, Sílvio Santos, tinha 195 veículos.
Em seu aspecto ideológico, Chaui (2006) afirma que o exercício do poder pode
ser nomeado como ideologia da competência e seu discurso tem a forma do discurso do
conhecimento. Esse discurso é ser personificado na figura do especialista. “Dizendo-nos
o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, afirma que nada sabemos e seu poder se
realiza como intimidação social e cultural.” Assim, a divisão social entre os incompetentes
que não sabem e o competentes que sabem é instituída pela ideologia da competência.
O discurso do conhecimento, disseminado pela ideologia da competência, pode ser
produzido pelas elites logotécnicas que são, para Sodré (1999, p. 244), “especializadas na
neo-retórica elaboradora do discurso público”. Formadas por âncoras de tevê, artistas,
jornalistas especiais, editores, criadores publicitários, editorialistas, articulistas, têm a
funcionalidade de filtragem e síntese de diversas formas de cognição e ação presentes
nas elites políticas, culturais e econômicas.
Contudo, pelo discurso mediático-popularesco, essas elites reproduzem
logotecnicamente o imaginário racista de maneira mais eficaz e sutil, disseminando
o racismo mediático. Os fatores que suscitam o racismo mediático são: 1) a negação; 2) o
recalcamento; 3) a estigmatização e 4) a indiferença profissional. (SODRÉ, 1999)
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso
A representação das mulheres negras nos meios de comunicação tem sido objeto
de estudo de inúmeras pesquisas nos veículos de televisão, jornal e revista.
A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NA MÍDIA
Pavan e Oliveira (2004) analisaram a novela Da cor do pecado, escrita por João Emanuel
Carneiro e transmitida pela Rede Globo de Televisão no primeiro semestre de 2004. Na
trama, a protagonista é a atriz negra Taís Araújo, cuja personagem se chama Preta e
seu par romântico é o ator Reinaldo Gianecchini, que interpreta Paco. A avaliação da
personagem Preta aponta que:
Primeiro: Preta, embora a heroína da história, ainda atua como o elemento perturbador da
ordem familiar branca. Perturba o namoro de Paco e Bárbara, cria tensões na família de
Paco, cria tensões na cabeça de Paco após o sumiço deste e mantém uma relação com Felipe
mesmo deixando claro sua preferência por Paco.
Segundo: Ainda Preta. O seu movimento nas relações raciais é o da passividade. Se porta
como vítima, frágil, que necessita de apoio, proteção, dó. O tipo físico da atriz – menina,
bonita – reforça esta imagem. Neste sentido, Preta aponta para uma relação racial de fragilidade de um dos pólos que necessita de uma ação paternalista. Além disso, tem uma
perspectiva de relação estável com um branco (Paco), familiar com brancos (Afonso e família)
e de amores pontuais com negros (Dodô e Felipe). Pavan e Oliveira (2004, p. 10)
Segundo os autores, um aspecto positivo da novela é a ideia de possibilidade de
existência de uma beleza negra com a ostensiva presença da atriz Taís Araújo no CD da
trilha sonora da novela e em revistas, que inegavelmente questiona o padrão estético de
beleza branca. Entretanto, um aspecto negativo é “o reforço da idéia de que a superação
dos conflitos raciais dá-se unicamente pela via da negociação e que o problema do
racismo se resume a comportamentos desviantes e não são fruto de questões estruturais,
particularmente das relações de classe” (PAVAN e OLIVEIRA, 2004, p. 14).
A presença de mulheres negras e pardas foi analisada por Christofoletti e Watzko
(2009) em uma pesquisa de fotografias dos jornais do estado de Santa Catarina: A Notícia,
Jornal de Santa Catarina e Diário Catarinense. A principal constatação dessa pesquisa foi: a
quantidade de fotografias com mulheres negras e pardas desses jornais é muito inferior
ao seu percentual na população do estado.
Os autores concluem que a imprensa catarinense contribui muito pouco para revelar
a diversidade étnica e cultural da região. “Consciente ou não, deliberada ou inadvertida,
essa tendência na imprensa contribui para um processo de embranquecimento da
população local” (Christofoletti e Watzko, 2009, 103-104).
Ainda segundo os autores, no Brasil a discriminação racial não ocorre somente por
atitudes, mas principalmente pela indiferença com que as mulheres negras são tratadas
nos jornais, pela ausência, pela exclusão e pelo reforço aos estereótipos equivocados e
preconceituosos atribuídos a elas.
Para Oliveira (2011), a dimensão da opressão simbólica ocorre no reforço da
branquitude normativa, na eleição do paradigma estético e formal branco como o
referencial e os demais que se afastam dele como desviantes. O autor realizou uma
pesquisa quantitativa e qualitativa nas seguintes revistas brasileiras: Playboy, Nova,
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso
Atrevida, Raça e Veja. Para a comparação da análise quantitativa, também foram
analisadas as revistas norte-americanas congêneres: Seventeen, Playboy (EUA),
Cosmopolitan, Ebony e Time.
A análise quantitativa verificou que, com exceção das revistas direcionadas aos
afrodescendentes, a presença dos negros no Brasil foi menor: 8,7% em relação aos
EUA, que foi de cerca de 9% nas revistas analisadas. Entretanto, “A diferença seria
insignificante não fosse pelo detalhe que a população negra no Brasil é, segundo os
dados oficiais, superior a 50% contra 15% nos EUA. A distorção, portanto, no Brasil é
muito maior que nos Estados Unidos.” (Oliveira, 2011, p. 36)
Na pesquisa qualitativa foi observada uma difamação estética ou classificação
negativada no que se refere à moda e beleza das mulheres negras:
Na seção Sexy ou Over, também da revista Nova, percebe-se que é classificado como sexy
opções estéticas mais utilizadas por mulheres brancas e aquelas que advém da estética de
mulheres negras são classificadas como over, isto é exagerado, uma dimensão da sensualidade acima da medida, conforme define a própria revista. (Oliveira, 2011, p. 37)
Outra constatação da análise foi a objetificação radicalizada da mulher negra dentro
de uma perspectiva de objeto de consumo:
Nas poucas vezes em que modelos negras posam para a revista Playboy é ressaltada o
caráter de puro objeto sexual, acima inclusive das suas qualidades profissionais. No caso de
mulheres brancas, o discurso da Playboy inverte: a nudez das mulheres vai no sentido de
revelar uma face oculta de uma mulher que se estabeleceu como celebridade por atributos
outros (em geral como atriz de telenovela da Globo). No caso da mulher negra, o fato dela
ser atriz aparece como um plus, uma cereja no bolo, pois o que se ressalta nela é o fato de
ser uma mulher “gostosa”, resgatando a idéia da mulata. (Oliveira, 2011, p. 38)
Oliveira (2011) conclui que as revistas concedem pouco espaço nas revistas aos
negros e negras. Entretanto, essas concessões não diminuem o preconceito racial, mas
deslocam esse preconceito criando símbolos formatados por processos de objetificação.
Para conhecer a opinião da população brasileira em relação às representações das
mulheres na mídia, Data Popular e Instituto Patrícia Galvão (2013), realizaram a pesquisa:
Representações das mulheres nas propagandas na TV, que entrevistou 722 homens e 779
mulheres de diversas regiões do país. Discordaram da frase As propagandas na TV mostram
a mulher na vida real: 59% das mulheres e 52% dos homens. Além disso, 80% de todos os
entrevistados consideram que as propagandas na TV mostram mais mulheres brancas,
e a maioria: 51% gostariam de ver mais mulheres negras nas propagandas.
Diante dessa pesquisa, podemos concluir que a invisibilidade das mulheres negras na
propaganda é percebida pelo público brasileiro que anseia por maior representatividade
dessa população.
Apesar da expressiva presença de mulheres negras na população brasileira, a mídia,
enquanto uma esfera de poder simbólico atua ideologicamente reforçando um padrão
naturalizado de embranquecimento. Por meio dessa prática de racismo mediático, as
mulheres negras são estereotipadas e invisibilizadas. Entretanto, na contramão desses
conglomerados midiáticos, existem meios de comunicação alternativos.
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O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso
A COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA E O PROTAGONISMO DAS MULHERES NEGRAS
NO SITE BLOGUEIRAS NEGRAS E NO BLOGUE MENINAS BLACK POWER
Diante do inconformismo da desigualdade histórica entre subalternos e dominadores,
de acordo com Peruzzo (2009), estão em curso reelaborações culturais, tais como a
comunicação alternativa e comunitária, que contribuem com uma mudança nas práticas
que constituem o exercício da cidadania.
Incorporando suportes digitais, as novas manifestações alternativas de comunicação, tendo em vista a desalienação, produzem conteúdos diferenciados. Esses conteúdos
são produzidos com novos procedimentos de ação e socialização de conhecimentos
técnicos, instituindo novas relações sociais de produção nas quais se suspende a hierarquia. Não se trata de tornar-se uma celebridade, mas sim “de uma participação
política, uma vontade de interferir para a ampliação da qualidade da cidadania, para
a circulação de ideias dissonantes das dominantes e para a transformação social”
(PERUZZO, 2009, p. 144).
Uma das conclusões da autora é que os processos de comunicação alternativa
têm sido revolucionados pela comunicação mediada por computador (CMC). E, dessa
forma, fazem parte de um amplo processo mutacional, atualizando o social interesse
por democracia e justiça.
Dois expressivos meios de comunicação alternativa, produzidos por mulheres
negras, são: o site Blogueiras Negras e o blogue Meninas Black Power.
O site Blogueiras Negras, cujo endereço eletrônico é: < http://www.blogueirasnegras.
org>, informa no Manual da Blogueira Negra2, que sua atuação é de instrumento de
publicação, que objetiva principalmente o aumento da visibilidade da produção de
blogueiras negras. Além de ser uma comunidade com opiniões e demandas diversificadas,
que se organiza por: 1) um grupo de discussão; 2) um time dinâmico de autoras; 3) e
uma equipe de facilitadoras. Sobre a linha editorial:
Partimos do princípio que nossa espinha dorsal é o feminismo negro e a experiência da
mulher negra. Nosso objetivo é fornecer material para o debate por meio do nosso protagonismo e visibilidade.
Primaremos pelo ativismo de interseção que direciona o olhar para as demandas e especificidades da mulher negra, evitando hierarquizar qualquer opressão. Não temos o objetivo
ou a pretensão de protagonizar outras lutas, corpos e territórios que tem vida e atuação próprias, mas escreveremos em solidariedade a todas as mulheres que não são tradicionalmente
contempladas pelos movimentos de hegemonia. (Disponível em: <http://blogueirasnegras.
org/manual-da-blogueira-negra/>)
O Blogue Meninas Black Power está localizado no endereço: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/>. A página: Sobre3 descreve o Coletivo Meninas Black Power,
que é constituído por mulheres pretas formadas em diversas áreas, que fizeram a opção
pelo cabelo natural crespo, compreendendo os significados e significantes dele para a
sociedade.
2. Publicado em setembro de 2013 na página: <http://blogueirasnegras.org/manual-da-blogueira-negra/>.
3. A página Sobre localiza-se no endereço: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/p/faq.html>.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso
Nosso trabalho consiste em incentivar a consciência do valor deste cabelo crespo natural
e outras características naturalmente pretas, mas, sobretudo, do valor que cada mulher preta
com quem nos comunicamos deve possuir aos próprios olhos.
Trazemos nossas ideias para a prática através de atividades educativas direcionados para o público
infantojuvenil e mulheres pretas, além de atuar em redes sociais e outras mídias, promovendo
diálogos diversos que contemplem as pessoas para as quais falamos. Contatos para possíveis
ações em espaços educativos são muito bem-vindos e podem ser feitos através do email
[email protected]. Para que possamos crescer enquanto Coletivo, nos organizamos em
Grupos de Trabalho de acordo com nossas áreas de atuação. São eles: educação, histórico-político, comunicação, cultura, moda e beleza. (Disponível em: http://meninasblackpower.
blogspot.com.br/p/faq.html)
O DISCURSO DE MULHERES NEGRAS NA MÍDIA ALTERNATIVA
Para a pesquisa das mídias alternativas: Blogueiras Negras e Meninas Black Power
foi utilizada a metodologia da análise de discurso, tendo como referência a autora Eni
Puccinelli Orlandi4.
Segundo Orlandi (2005), a produção da existência humana está fundamentada no
trabalho simbólico do discurso. Na análise de discurso, a linguagem pode ser concebida
como mediadora da realidade social e natural do ser humano. A partir de uma formação
ideológica determinada, a autora define como formação discursiva aquilo que determina
o que pode e deve ser dito. Dessa maneira, o discurso compreendido na formação
discursiva é constituído por seus sentidos determinados ideologicamente.
Para a análise de discurso do protagonismo feminino negro nos meios de
comunicação alternativos foi utilizado o método de termos pivôs que, de acordo com
Oliveira (1997), identifica os conceitos nos quais o discurso pleiteia sua entrada no
domínio da intertextualidade.
Foram escolhidos seis textos, três de cada blogue, no período do mês de julho de
2014 devido à celebração do dia 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e
da Mulher Negra; e o Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. Os termos pivôs
escolhidos foram: identidade, cultura e resistência. Os textos foram selecionados de acordo
com as indexações de categorias homônimas das publicações.
Análise dos resultados
A primeira categoria analisada teve como termo-pivô: identidade. O texto selecionado:
Literatura infantil negra5, de Aline Silva, foi publicado em 30/07/2014 no site Blogueiras
Negras. A autora relata a sua experiência no ensino de educação infantil com livros de
literatura infantil negra.
O discurso da identidade, presente no texto, revela uma positividade, com valorização
ao pertencimento à cultura africana e à cultura negra brasileira, disseminado na sala de
4. Eni Puccinelli Orlandi parte da linha francesa da análise de discurso proposta por Michel Pêcheux, que
fundou a Escola Francesa de Análise de Discurso, na qual teoriza de que maneira a linguagem se materializa
na ideologia e como esta é manifestada pela linguagem.
5. Disponível em: <http://blogueirasnegras.org/2014/07/30/literaturainfantilnegra/>.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso
aula. É importante destacar também que a experiência relatada remonta uma mudança
positiva nos alunos, conforme a autora discorre no seguinte trecho: “Com as histórias
contadas nesses livros, vi olhos brilharem, vejo gostos pela leitura nascerem, vi conflitos
resolvidos, ganhei o amor e confiança de muitas crianças que tinham em mim uma
referência, uma esperança, amor e carinho”.
O texto Sankofa6, de Maria Fernanda, foi publicado em 30/07/2014 no site Meninas
Black Power. A autora explica o significado de Sankofa, como referencial simbólico na
recuperação da cultura ancestral africana. Além de compartilhar o sucesso de sua própria
experiência de identidade positiva: “Um exemplo é poder compartilhar a felicidade de
ter conseguido sair à rua orgulhosa com seu Black Power e não sentir-se acuada ao
ouvir uma piada racista, receber elogios amorosos de homens ou mulheres pretas que
enxergam quem você é”.
A segunda categoria analisada teve como termo pivô: cultura. O texto: Ser preto tá na
moda?7, de Mara Gomes, foi publicado em 10/07/2014 no site Blogueiras Negras. Trata-se
de uma crítica à apropriação da música negra pela elite branca, questionando os artistas
e os produtos culturais apropriados por essa elite. O discurso cultura é positivado para
as manifestações culturais negras, porém é negativado quando essas manifestações são
apropriadas e comercializadas para as elites brancas, tanto por artistas negros quanto
pela indústria musical.
A autora conclui justificando suas críticas e conclamando um debate sobre o tema:
“a apropriação de cultura não é bonita, não me agrada, não é um elogio, é um processo
racista que infelizmente não nos damos conta por completo ainda. No entanto precisamos,
precisamos muito falar mais sobre isso”.
O texto Encrespando8 -2.a Edição foi escrito e publicado pelo blogue Meninas Black
Power em 21/07/2014. É um texto que divulga a segunda edição do evento Encrespando,
destacando a importância dele para o Coletivo Meninas Black Power. O discurso da
cultura ressalta valores da cultura negra, como o Renascença Clube, local aonde será
realizado o evento e que foi muito importante para a cultura negra carioca.
A relação do discurso da cultura com o entretenimento e a conscientização foi
diagnosticada na seguinte frase: “O Encrespando é nossa casa e queremos que quem
passar por lá possa desfrutar de um entretenimento saudável, conscientizador, que
reflita toda beleza e resistência de nossa negritude”.
A terceira categoria de análise foi o termo-pivô: resistência. O texto: Por quais mulheres
o feminismo radical luta ?9 da Gabriela Pires, foi publicado em 21/07/2014 no site Blogueiras
Negras. Nesse texto a autora, que se assume feminista, faz uma crítica negativa da ao
feminismo radical. O discurso da resistência vai ao sentido de não se deixar dominar
por uma vertente do feminismo com a qual não concorda, justificando suas motivações,
em vários trechos, tais como: “O feminismo radical defende que a raiz de todas as de
opressões é o patriarcado. Enquanto isso mães negras presenciam os assassinatos de
seus filhos homens negros todos os dias (por serem negros, não por serem homens)”.
6. Disponível em: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/2014/07/sankofa.html>.
7. Disponível em: <http://blogueirasnegras.org/2014/07/10/serpretotanamoda/>.
8. Disponível em: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/2014/07/encrespando2edicao.html>.
9. Disponível em: <http://blogueirasnegras.org/2014/07/21/porquaismulheresofeminismoradicalluta/>.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
867
O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
Tatiana Cavalcante de Oliveira Botosso
Além disso, a autora denuncia práticas opressivas do feminismo radical, e discursa
em resistência a essas opressões: “Feminismo radical não considera a sua luta uma luta
de pessoas trans*, enquanto mulheres trans* e negras sofrem com a exploração sexual,
com a patologização de seus corpos e mentes, com a transmisoginia”.
O texto Olha, eu sou da pele preta: graças a Deus!10, de Cecília Oliveira, foi publicado
em 28/07/2014 no blogue Meninas Black Power. A autora relata a experiência de assumir
o seu cabelo natural, que ela alisava desde os nove anos de idade, discorrendo sobre o
ato político da aceitação e do enfrentamento ao racismo. O discurso sobre resistência é
conduzido pelo processo de valorização do cabelo da autora e no seu reconhecimento.
Contudo, o enfrentamento também é perceptível no discurso de resistência no
seguinte trecho: “Nós vamos lutar para viver mais e melhor e vamos ensinar nossos
filhos que nosso cabelo, nosso nariz, nossa pele são as características da liberdade e da
resistência e que temos, sim, direito a um lugar ao sol”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Historicamente as mulheres negras se organizaram por melhores condições de
trabalho, saúde, educação e renda. O movimento de mulheres negras enegreceu o
feminismo promovendo o protagonismo político na luta contra o racismo e o machismo.
A mídia brasileira é formada por conglomerados midiáticos que exercem o poder
simbólico. E as relações de opressão das mulheres negras pela sua cor e pelo seu
sexo são reproduzidas pelas elites logotécnicas. Dessa maneira o racismo mediático se dá
principalmente pela invisibilidade e pelos estereótipos atribuídos às mulheres negras.
Entretanto, os brasileiros gostariam de ver mais mulheres negras na propaganda, uma
vez que a mesma não revela a dimensão real da proporção dessas mulheres na população.
Os meios de comunicação alternativa, na contramão do poder ideológico e econômico
das grandes empresas de mídia, atuam pela desalienação, mobilizando o interesse pela
democracia e justiça social.
As mídias alternativas Blogueiras Negras e Meninas Black Power atuam de maneira
colaborativa e independente para a produção de conteúdos emancipadores do discurso
do conhecimento. Ao escreverem os textos em primeira pessoa, as autoras abordam os
temas da perspectiva de sua própria realidade, personalizando a mobilização pelo
empoderamento das mulheres negras e as relações de pertencimento com o público leitor.
Os textos analisados têm em comum o protagonismo emancipador das mulheres
negras, com discursos positivos e valorativos de identidade, de resgate da cultura africana
e afrodescendente. E também de resistência, crítica e enfrentamento à opressão simbólica
dos padrões de branqueamento impostos pela mídia.
REFERÊNCIAS
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10. Disponível em: <http://meninasblackpower.blogspot.com.br/2014/07/olhaeusoudapelepretagracasdeus.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O protagonismo das mulheres negras na mídia alternativa
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
869
As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias
de ativistas na luta contra o câncer de mama
Communicative, civic and identity practices of
activists on the fight against breast cancer
Th a í s C o s ta C a r d o s o S o a r e s 1
Resumo: Este artigo pretende discutir as possibilidades de construção de
vínculos entre os sujeitos e de exercício da cidadania, oportunizada pelas novas
tecnologias de comunicação digitais. Para tal, analisou os meios de comunicação
digitais desenvolvidos pela Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de
Apoio à Saúde da Mama (FEMAMA) e as interações de ativistas engajados na luta
contra o câncer mama, nestes espaços digitais. Partindo da análise sistemática do
site e redes sociais da FEMAMA, que permitiu conhecer os usos e apropriações
que os sujeitos fazem da tecnologia durante suas interações, foi possível verificar
que estes espaços comunicacionais podem suscitar e ampliar o debate a cerca
do direito à saúde, possibilitando o exercício da cidadania, contribuindo para a
formação de uma identidade cultural específica dos ativistas envolvidos com a
temática do câncer de mama.
Palavras-Chave: Câncer de Mama. Ativismo. Cidadania. Identidade Cultural.
Abstract: This article aims to discuss the possibilities of bonds establishment
between individuals and possibilities of exercising citizenship, offered by the
new digital technologies of communications. To accomplish it, this research
analyzed the digital media developed by FEMAMA and the interactions of
the activists engaged on the fight against breast cancer, in these digital spaces.
Starting from the systematic analyze of FEMAMA’s website and social networks,
that allowed the knowledge of the uses and appropriations which individuals do
of the technology during their interactions, it was possible to verify that those
spaces can stimulate and increase the debate around the right of health, allowing
citizenship practices, contributing for the formation of a specific cultural identity
of activists involved with the breast cancer theme.
Keywords: Breast Cancer. Activism. Citizenship. Cultural Identity.
MOVIMENTOS SOCIOCOMUNICATIVOS NAO ESPAÇO DIGITAL
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA vem passando por sucessivas fases de transfor-
A
mações culturais e tecnológicas. Em todas as camadas sociais há uma busca cada
vez maior por uma vida mais digna que gradativamente se transforma no desejo
de interferir na realidade atual e provocar mudanças. Na tentativa de criar sociedades
1. Mestranda em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS),
bolsista CAPES-PROSUP, Graduada em Comunicação Social- Habilitação Relações Públicas, pela mesma
universidade. Membro do grupo de pesquisa PROCESSOCOM. Contato: <[email protected]>.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
870
As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
mais justas e igualitárias, vários grupos vêm se aproximando e transformando estas
inquietações em movimentos sociais de formas diversas.
Historicamente a saúde é considerada como um dos direitos sociais fundamentais,
por ser a base elementar do direito à vida. No Brasil, por exemplo, a criação do Sistema
Único de Saúde, sistema que garante à população o acesso gratuito e universal à saúde,
é uma conquista baseada em uma concepção de direitos sociais avançada, construída
ao longo de cerca de 40 anos de história por movimentos sociais ligados ao desenvolvimento da saúde pública. (CÂMARA, 2011).
Neste cenário, a articulação dos movimentos sociais com as mídias ao longo do
tempo se tornou fundamental para dar visibilidade as suas pautas e engajar cada vez
mais indivíduos a fim de inserir suas demandas na agenda social. Conforme Rubim
(2003, p. 112) “a comunicação, enquanto espaço, inclusive socialmente existente, que
possibilita a publicização passa a ter um lugar essencial para a cidadania na atualidade”.
Desse modo, percebe-se que, nas últimas décadas, o uso dos meios de comunicação
digitais intensifica a capacidade de influência das mídias nos modos com que sociedade
contemporânea interage, sociabiliza e entende o mundo. A comunicação digital se
apresenta como espaço propício para a formação de redes diversas e potencializa as
formas de representação e ação para transformação social. (CASTELLS, 2013).
Dessa forma, ampliam-se as possibilidades para que os variados movimentos
sociais criem e estruturem seus próprios espaços comunicacionais digitais, configurando
processos comunicacionais alternativos às mídias hegemônicas, e oferecendo outras
percepções e novas formas de atuação e mobilização para seus ativistas. Neste sentido,
parte-se do pressuposto que o papel da comunicação na mobilização destes indivíduos vai
além da simples disseminação de informações, sendo também essencial para articulação
de valores e partilha de sentidos que contribui para o processo de reconhecimento e
pertencimento na formação da identidade do movimento. (HENRIQUES, 2007).
É assim que se inserem as organizações como a FEMAMA2, objeto de referência
desta investigação. A FEMAMA é uma associação civil, sem fins lucrativos, fundada
em 2006, que conta com representação em 17 estados brasileiros e no Distrito Federal,
por meio de 56 entidades associadas, atuando na articulação de uma agenda nacional
única. Com o objetivo de diminuir a incidência e a mortalidade por câncer no Brasil,
esta instituição se propõe a informar a sociedade e ampliar o debate público sobre a
doença, visando influenciar a formulação de políticas públicas efetivas que garantam
o seu acesso ao diagnóstico precoce e ao tratamento adequado. Para tal, desenvolve, no
ambiente digital, meios de comunicação autônomos, independentes e alternativos aos
meios de comunicação hegemônicos.
Sendo assim, entende-se que essa instituição, através de seus meios de comunicação
digitais, estabelece espaços comunicacionais que podem suscitar e ampliar o debate a
cerca do direito à saúde, possibilitando práticas cidadãs e contribuindo para a formação de uma identidade cultural dos ativistas envolvidos com a temática do câncer de
mama. Logo, esta pesquisa busca encontrar e analisar nestes meios de comunicação
desenvolvidos pela instituição, com foco no processo comunicacional, esta construção de
2. Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio a Saúde Mama
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
871
As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
vínculos entre os sujeitos e as possibilidades de exercício da cidadania, tanto no âmbito
do direito de livre expressão quanto no âmbito do direito à saúde.
Vale ressaltar que esta investigação considera estes ativistas, públicos preferenciais
das organizações estudadas, como sujeitos comunicantes qualificados, que apresentam,
simultaneamente características de receptores, produtores, participantes, transmissores
e fruidores de sentidos no processo comunicacional. Nesse sentido, a investigação também busca ponderar sobre os modos como as organizações disponibilizam recursos
e ferramentas de comunicação aos públicos que acessam seus espaços, contribuindo
para a garantia dos direitos de acesso a informação e à expressão, constitutivos de uma
cidadania comunicativa. (MATA, 2005).
Com relação aos conteúdos, importa destacar que esta pesquisa considera apenas os
recursos e informações disponíveis no portal3 da instituição na internet e em seu perfil no
Facebook4, por ser a rede social mais ativamente utilizada pela organização. Da mesma forma, são interessantes para investigação apenas os materiais e discussões que façam referência à busca por direitos relacionados ao tratamento e diagnóstico, bem como, a inclusão
social do paciente com câncer de mama, excluindo os conteúdos educativos e científicos
sobre a doença. Dessa maneira, o objetivo é construir um mapeamento dos aspectos
mais relevantes e recorrentemente abordados pela organização, através da observação
e organização sistemática dos conteúdos disponíveis nestes espaços comunicacionais.
Acerca da noção de cidadania a pesquisa se debruça em autores como Cortina
(2005), que entendem que este conceito integra exigências por justiça e sentimentos de
pertença, não se limitando, a reivindicações por bens imprescindíveis a sobrevivência,
mas se estendendo a aceitação e a inclusão social, tecnológica e comunicacional. No que
diz respeito ao conceito de identidade, a investigação toma a perspectiva de Hall (1997),
de que a identificação não é singular e nem automática, podendo mudar de acordo com
a forma com os sujeitos são representados ou interpelados, bem como, ser perdida ou
ganhada ao longo da vida de acordo com as interações sociais de cada sujeito.
Cabe esclarecer, também, que as reflexões sobre a internet como espaço comunicacional, consideram não só a rapidez do desenvolvimento tecnológico dos meios de
comunicação digital, mas também o modo desigual com que esses recursos são acessados. Da mesma forma, entende-se que o aumento das possibilidades de participação
no debate público não é determinado exclusivamente pelo desenvolvimento de novas
tecnologias, mas pelos usos sociais que são dados a essas tecnologias. (FRAGOSO,
MALDONADO, 2009).
PROBLEMATIZAÇÃO TEÓRICA
Para o desenvolvimento teórico, este estudo teve embasamento em autores e obras
de referência no campo da comunicação através da revisão bibliográfica de pesquisas
a respeito da problemática da cidadania, das identidades culturais e dos movimentos sociocomunicativos. Além disso, devido às especificidades dos instrumentos de
comunicação escolhidos, faz-se necessário teorizar sobre a comunicação autônoma ou
alternativa e as redes de comunicação da internet.
3. http://www.femama.org.br
4. https://www.facebook.com/femamabrasil
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
872
As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
Primeiramente, é preciso esclarecer que, segundo Miani (2008), movimentos sociais
são todos os grupos e organizações que atuam para a circulação e consumo de bens de
uso coletivo, os que confrontam o capital de reprodução social e aqueles que enfrentam
a ideologia de dominação nas lutas políticas cotidianas. Conforme Castells (2013, p.16)
“suas raízes estão na injustiça fundamental de todas as sociedades, implacavelmente
confrontadas pelas aspirações humanas de justiça”.
Para Thompson (2009) o próprio surgimento dos movimentos sociais está ligado à
criação de sistemas de comunicação, como o invento da imprensa entre os séculos XV
e XVI, que possibilitavam a partilha de símbolos e crenças expressas entre indivíduos
não interagiam diretamente, dando origem ao moderno sentido de pertença a uma
particular nação.
No entanto, conforme Gohn (2004), a partir dos anos 90 a prática dos movimentos
sociais foi cada vez mais se deslocando de movimentos populares de natureza classista
ou partidária para movimentos marcados por lutas cívicas ou cidadãs, com destacada
emergência das Organizações Não Governamentais (ONGs). Para Cogo (2010, p.46) a
partir deste momento “a cidadania já se constituía, portanto, em uma questão de comunicação” estando não exclusivamente orientada por demandas dos grandes sindicatos e
partidos políticos, mas por uma combinação de formas e configurações de participação
que também incluem temas relacionados à vida cotidiana e ao mundo simbólico.
Faz-se necessário esclarecer que a cidadania é um conceito complexo, não estando
restrito apenas à dimensão cívica, mas abrangendo também as dimensões moral, pessoal,
social e cultural dos sujeitos. Segundo Cortina (2005, p.28) “a cidadania é um conceito
mediador porque integra exigências de justiça e, ao mesmo tempo, faz referência aos que
são membros da comunidade, une a racionalidade da justiça com o calor do sentimento
de pertença”. Desta forma, é possível afirmar que esta cidadania complexa, intercultural
e cosmopolita, também passa por questões comunicativas, uma vez que a construção
desse sentimento de pertença depende de trocas simbólicas e interações sociais que se
baseiam em atos comunicativos.
No que diz respeito especificamente à cidadania comunicativa, cabe esclarecer que
ela é compreendida como “o reconhecimento e a capacidade de ser sujeito de direito e
demandar no terreno da comunicação pública o exercício desse direito”. (MATA, 2006,
p.13). Para Rubim (2003, p. 112), “o direito à comunicação pode ser formulado como
direito à existência social no mundo atual” sendo essencial para o exercício da cidadania
de forma geral.
Neste contexto, Peruzzo (2010, p.18) afirma que estes movimentos inauguram uma
forma de comunicação que pode ser classificada como popular, alternativa ou comunitária que “é constituída por iniciativas populares (para além dos jornais) e orgânicas aos
movimentos sociais”. Ainda segundo Peruzzo (2010, p.19) devem ser considerados como
alternativos “tanto os produtos de comunicação produzidos dentro dos movimentos
sociais, como aqueles feitos fora, mas que de algum modo contribuem para o processo
de conscientização e ação”.
Castells (2013) define a comunicação desenvolvida pelos movimentos sociais, através de plataformas de comunicação digitais, como uma autocomunicação de massa, pois
alcança uma multiplicidade infindável de receptores, é decidida de forma autônoma
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
873
As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
pelo remetente, é multidirecional, permite referência constante a um hipertexto global
e não pode ser totalmente controlada pelo poder instituído. Desta forma, Castells (2013,
p. 12) define que “a autocomunicação de massa fornece a plataforma tecnológica para a
construção da autonomia do ator social, seja ele individual ou coletivo, em relação às
instituições da sociedade”.
Além disso, a comunicação é considerada como fator articulador na formação de
identidades culturais, que são entendidas como “o conjunto de características pertencentes aos indivíduos e às formações coletivas”, de forma complexa, multifacetada e
em constante transição. (COÊLHO, 2014, p. 91). Sendo assim, Henriques (2007, p.23-24)
reforça que:
Cabe à comunicação uma articulação entre valores e símbolos no processo de construção
da identidade de um movimento, estabelecendo de uma maneira estruturada a produção
de elementos que orientem e gerem referências para a interação dos indivíduos, possibilitando, assim, um sentimento de reconhecimento e pertencimento capaz de torná-los
corresponsáveis.
No entanto, não basta que esses grupos se reconheçam entre si e se identifiquem
como movimentos sociais. Para realizar mudanças de fato, é preciso que eles se articulem
de forma organizada. Conforme Henriques (2007, p.29) a comunicação “é imprescindível
para os movimentos sociais sendo, ela própria, o fator de coordenação de ações e de
mobilização”. Desta forma, Castells (2013), reforça que as tecnologias de comunicação
digitais exercem um papel fundamental no desenvolvimento dos movimentos sociais
na atualidade, pois mais do que ferramentas, são formas organizacionais, expressões
culturais e plataformas específicas para a autonomia política desses grupos. Sendo assim,
estes movimentos podem ser categorizados como sociocomunicativos, uma vez que se
organizam através de aparatos midiáticos, realizando uma reapropriação tecnopolítica
dos meios de comunicação (CASTELLS, 2013).
Neste sentido, a comunicação assume não só o papel de coordenação entre os indivíduos pertencentes a um mesmo movimento social, mas também um papel motivador
com a responsabilidade de convocar cada vez mais indivíduos para estes movimentos
através do compartilhamento de experiências e sentimentos. Sendo assim, Henriques
(2007, p.21) afirma que “isso significa dizer que a comunicação deve ser planejada para
estimular a participação destes públicos, devendo estar orientada pelo sentimento de
corresponsabilidade”.
Segundo Castells (2013), todos os movimentos sociais são emocionalmente motivados,
mas para que eles realmente se formem é preciso que a ativação emocional dos indivíduos se conecte com a de outros indivíduos. Assim, as redes de comunicação digitais
são espaços privilegiados de catalisação destas emoções, pois estabelecem uma ubiquidade simbólica, permitindo que os indivíduos se encontrem e se conectem, mesmo que
territorialmente distantes, e juntos vençam a solidão e o medo que os impedem de agir.
Para que o processo de comunicação opere, há duas exigências: a consonância cognitiva
entre emissores e receptores da mensagem e um canal de comunicação eficaz. A empatia no
processo de comunicação é determinada por experiências semelhantes às que motivaram
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
874
As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
o acesso emocional inicial. Quanto mais rápido e interativo for o processo de comunicação,
maior será a probabilidade de formação de um processo de ação coletiva enraizado na
indignação, propelido pelo entusiasmo e motivado pela esperança (CASTELLS, 2013, p.19).
Obviamente, não pode ser ignorado o fator informacional dos meios de comunicação,
principalmente os digitais. Dallari (2002), explica que a informação é o primeiro passo
para a conscientização das pessoas sobre a existência dos seus direitos e a possibilidade
de defendê-los. Para Vieira (2003, p. 20) “as oportunidades de atualizações e geração
de conhecimento são condições indispensáveis para o amadurecimento da cidadania,
quanto maior for o universo conceitual abarcado pelos cidadãos, mais abundante será a
colheita da cidadania”. Da mesma forma, Castells (2013), reforça que a inserção racional
de ideias e ideologias no movimento também se dá por um processo de comunicação,
sendo indispensável para passagem da ação impulsionada pela emoção para a deliberação e elaboração de projetos conjuntos.
No entanto, é importante frisar que a verdadeira transformação social não se dá
apenas pela capacidade comunicacional dos movimentos sociais, ela depende de uma
série de outras condições objetivas, do âmbito político, econômico e cultural, associados à ação de redes sociais e pessoais dentro e fora da internet. Neste sentido, Peruzzo
reforça que:
Contudo, a comunicação não se presta a fazer mudanças sozinha. A visão de uso dos meios
meramente para difundir conteúdos educativos está superada. Trata-se de sua inserção em
processos de mobilização e de vínculo local ou identitário sintonizados a programas mais
amplos de organização-ação dos movimentos sociais populares. (PERUZZO 2010, p. 20)
Sendo assim, cabe dizer que a verdadeira batalha por transformação está acontecendo na mente das pessoas, e nesse sentido os movimentos sociocomunicativos baseados
na internet têm feito um grande progresso, pois promovem uma cultura mundial da
transformação, através da superação do medo e da solidariedade internacional. Assim,
Castells (2013) aponta que os movimentos sociais da atualidade estão desenvolvendo
uma revolução rizomática, no qual o processo de transformação de consciência, como
fluxo constante, é mais importante do que qualquer mudança ou produto imediato dos
movimentos em seu âmbito local.
PROCESSUALIDADES METODOLÓGICAS
Neste artigo, serão abordados os resultados adquiridos através da adaptação do
método de Análise Multifocal, proposto por Vieira (2012), que consiste na sistematização
dos conteúdos, visando à construção de um sistema de lentes voltadas a múltiplos
focos, capazes de captar uma imagem ampliada e categorizada do ativismo na internet.
A Análise Multifocal se mostrou pertinente para esta investigação, pois representa uma
perspectiva quantitativa e qualitativa, que permite um estudo retrospectivo do conteúdo
das interações da organização com seus públicos. Além disso, este método se propõe a
uma categorização temática baseada em conceitos da Comunicação para a Mobilização
Social, que servem aos objetivos desta pesquisa, mas que precisaram ser adaptados para
considerar as especificidades das mensagens e do objeto de pesquisa (VIEIRA, 2012).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
Nesta adaptação, mantiveram-se os critérios de categorização relacionados aos
conteúdos, e as especificidades dos meios de interação, mas foram desconsiderados os
critérios ligados à autoria das mensagens, já que estas não variam no objeto de pesquisa
selecionado. Assim, Análise Multifocal centra-se, nesta pesquisa, em duas vertentes, o meio
e o conteúdo, que funcionam como captadores de informação, ajudando a formar uma
imagem global sobre os processos de comunicação da FEMAMA no ambiente digital.
Os critérios relacionados ao meio, dizem respeito ao potencial de capilaridade
das postagens, oferecidas através de conexões com plataformas externas ao site da
FEMAMA e ao seu perfil no Facebook. Já os critérios relacionados ao conteúdo avaliam
a força comunicativa das mensagens e sua capacidade de coletivização. Portanto,
subdividem-se em: classe, tipo, natureza, função comunicativa e nível de relação com
a causa, neste caso a formulação de políticas públicas de atenção à saúde das mamas
(VIEIRA, 2012).
No que diz respeito às categorizações e suas subcategorizações, o quadro abaixo
apresenta um breve descritivo dos quesitos que compreendem cada uma delas, segundo
o que é proposto por Vieira (2012), e pelos quais foram analisados e classificados individualmente cada postagem para posterior comparação.
Tabela 1. Descrição dos critérios de categorização das postagens na Análise Multifocal.
Categoria
Classe
Subcategoria
Descrição
Manifestações
Caráter geral, diversas naturezas, as quais revelam enunciados e vocalizações dos
sujeitos, expressões individuais de opiniões, interpretações, inferências, entre outros.
Táticas de
Mobilização
Mensagens direcionadas à disseminação de repertórios de ações comunicativas, offline ou online, com vistas à mobilização de público em torno da causa.
Monitoramen- Informações que relatam, refletem ou problematizam fatos ou ações relacionados
to da atividade ao universo do Congresso Nacional, particularmente da atuação de deputados e
parlamentar
senadores com relação a Projetos de Lei de interesse da organização.
Enunciações
Mensagens de adesão ou apoio ao movimento; mensagens de protesto ou repúdio a
fatos, ações, conduta de agentes políticos ou pessoas públicas; proposição direta ou
indireta de questões para debate no ambiente do Facebook.
Convocações
Convites a ações presenciais ou virtuais (twitaço, e-mail, ligações telefônicas, entre
outros), destacam-se as mensagens que estimulam a adesão via abaixo-assinado,
seja fisicamente ou via sites como Avaaz.org ou Petition Online e também aquelas que
fazem denuncias de irregularidades nos sistemas de saúde.
Notícia
Conteúdo de caráter noticioso, oriundos da mídia comercial, dos canais oficiais de
órgãos públicos, ou provenientes de mídias alternativas, incluindo a própria internet,
particularmente a plataforma Facebook.
Material de
Campanha
Vídeos, banners, depoimentos, modelos de mensagens, listas de contatos, conteúdos
em geral disponibilizados pela FEMAMA.
Operacional
Tratam de questões logísticas de campanha, oferecem um passo-a-passo para
determinada ação ou esclarecem sobre questões pontuais. Não exigem uma
interpretação aprofundada dos leitores, são de rápida assimilação.
Contextual
Mensagens que tratam de um contexto de ação, oferecendo dados sobre um fato,
uma realidade vivida pelos públicos, exigindo capacidade de interpretação do leitor.
As notícias, por tratarem de fatos políticos, em grande medida estão presentes nesta
categoria.
Temática
Mensagens vinculadas detalhes dos tratamentos, procedimentos e medicamentos
que necessitam de maior dedicação e tempo do leitor para reflexão sobre o conteúdo
e são de caráter mais analítico. Em geral, não se prendem a uma ação ou contexto
específico, mas a uma visão ampliada do tema.
Tipo
Natureza
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
876
As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
Categoria
Função
Comunicativa
Nível
Subcategoria
Descrição
Convocação e
Identificação
Interações onde há o predomínio do chamamento à causa do câncer de mama; se
utilizam fartamente de elementos simbólicos e de identificação visual, tradutores dos
objetivos do movimento; por meio delas os indivíduos se vêm reconhecidos na causa.
Motivação e
Animação
Interações que fazem circular informações sobre as ações desenvolvidas, oferecendo
visibilidade aos avanços do movimento; almejam o reconhecimento público delas
e também dispõem de uma ritualística que valorize as situações de encontro e de
construção coletiva.
Fomento ao
Debate
Interações que trazem subsídios ao debate, como informações qualificadas sobre os
temas políticos de interesse da organização. Estas interações contribuem para ampliação do entendimento, percepção e compreensão dos públicos sobre a problemática
enfrentada, favorecendo a participação deles na criação de soluções
Central
Posts que tratam diretamente de questões relacionadas ao movimento de mobilização
em favor da aprovação, sanção e viabilização de Projetos de Lei.
Tangencial
Agrupam os posts cujas informações tratam de temas relacionados à saúde, mas não
relacionados ao câncer de mama diretamente.
Periférico
Posts que tratam de outras causas de interesse público, mas alheias à temática do
câncer de mama.
Capilaridade
Refere-se à presença de conexão com outros conteúdos, mensagens ou atores presentes na internet;
em geral oferecem links para eles. Quanto a essa variável, importa saber se há ou não a presença da
capilaridade e para quem essa direciona.
Canal
Direciona a outras plataformas de ação da internet, em especial para redes sociais e ambientes de
livre compartilhamento de conteúdo. Podem remeter a canais como: Youtube, Twitter, para o próprio
Facebook, Avaaz.org, Petition Online, entre outros sites.
Tabela 2. Exemplo comparativo dos procedimentos de classificação dos conteúdos
Número do post
33
37
Data
04/02/15
27/02/2015
Classe
Táticas de Mobilização
Manifestações
Tipo
Convocações
Notícias
Natureza
Operacional
Temática
Função
Convocação e Identificação
Fomento ao Debate
Nível
Central
Periférico
Capilaridade
Sim
Sim
Canal
Petição Online – avaaz.org.br
Site FEMAMA
Comentários
9
0
Curtidas
163
36
Compartilhamentos
0
0
Observação
Dia Mundial do Câncer
Pesquisa renda das pacientes
Cabe esclarecer que foram considerados para esta base de dados os 46 posts, de
caráter político, do perfil da FEMAMA no Facebook, bem como, as 86 noticias postadas
no portal da organização, que continham o mesmo cunho político, durante o período
de março de 2014 a março de 2015. Tais mensagens foram transpostas para um arquivo
digital de texto, e posteriormente numeradas e listadas em uma planilha eletrônica,
em ordem crescente, do mais antigo ao mais recente. Sendo assim, cada postagem se
configurou em uma unidade-base de coleta, interpretação e análise.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
877
As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
Vale enfatizar que embora os comentários relacionados a cada post façam parte
deste repositório de informação, os mesmos não foram categorizados, mas serão posteriormente comparados com resultados de entrevistas em profundidade a serem ainda
realizadas. Da mesma forma, as imagens e vídeos foram reservados para análise posterior, que demandará outros procedimentos metodológicos. Entende-se também que
o intercruzamento destas categorias permitirá diversas leituras interessantes sobre o
objeto de pesquisa, mas este artigo se deterá naquelas que são mais pertinentes aos
objetivos da investigação.
A partir desta base de dados, foi preciso mapear e agrupar as postagens e notícias
de acordo com suas funções comunicativas, buscando relacioná-las com a sua capacidade
de estabelecer vínculos identitários entre os sujeitos e motivá-los a práticas cidadãs de
luta por direitos e dignidade. Nesse sentido, as funções comunicativas são fundamentais,
pois através delas podemos identificar que os processos comunicativos da FEMAMA
realmente contribuem para a formação da identidade dos ativistas, bem como, proporcionam um espaço privilegiado para o exercício da cidadania.
Sendo assim, nas postagens categorizadas de acordo com a função de Convocação e
Identificação, são aquelas em que predominam os elementos simbólicos e de identificação
visual, que criam um senso de nós, fazendo um chamamento à participação ativa dos
sujeitos em alguma ação com objetivo específico, convocando o sentimento de corresponsabilidade. Já aqueles correspondentes à função de Motivação e Animação, fazem
circular informações referentes às ações da organização, dão visibilidade aos avanços
do movimento e almejam o reconhecimento público. Por fim, as postagens identificadas
com a função de Fomento ao Debate se caracterizam como fontes de informação qualificada, ampliando o entendimento da sociedade sobre a causa, e fornecendo subsídio
para o debate público, se configurando em um espaço propício para discussões e problematização de temas que dividem e que mobilizam opiniões diversas dentro e fora
do movimento (HENRIQUES, 2007).
No que diz respeito à análise das postagens, destaca-se que as funções comunicativas nelas manifestadas se equilibram e apresentam certa interdependência entre si,
mas preponderam umas sobre as outras dependendo do contexto em que se inserem.
Neste sentido, é possível afirmar que as postagens em que predominam a primeira e a
segunda função são aquelas que mais facilmente se propõem a formação de identidades
culturais. Da mesma forma, aquelas que combinam a segunda e a terceira função são
aquelas que permitem o exercício da cidadania tanto em termos de envolvimento em
atividades práticas de protesto e pressão política, quanto ampliam as discussões sobre
o direito a saúde, no espaço público.
Outra questão relativa, a análise das postagens refere-se a um senso de injustiça irrefutável demonstrado através de expressões contundentes de repúdio a situação humilhante em que as pacientes de câncer de mama se encontram. Neste sentido,
Gamson (2011) reforça que este processo de indignação coletiva desatomiza os sujeitos,
impulsionando-os na defesa um dos outros, através de ações dentro e fora da internet. Da
mesma forma, Castells (2013) explica que através do compartilhamento de experiências
via internet, os cidadãos da era da informação superam os sentimentos de isolomento e
impotência, e acabam subvertendo o processo comunicacional como tradicionalmente
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
se dá, envolvendo-se na produção autônoma de mensagens e lutam contra os poderes
instituídos identificando as redes que os constituem.
No entanto, Castells (2013) destaca que todos os processos de construção simbólica
dependem amplamente das mensagens e estruturas criadas e difundidas nos meios de
comunicação, pois mesmo que cada sujeito interprete e construa seus próprios significados, esse processo é condicionado pelo ambiente da comunicação. Ao descrever os
processos comunicacionais desenvolvidos pelos movimentos sociais durante a Primavera
Árabe, Castells (2013) explica que,
O poder das imagens, assim como das emoções criativas provocadas pelas narrativas, ao
mesmo tempo mobilizadoras e tranquilizantes, produziram um ambiente virtual de arte
e significado no qual os ativistas do movimento podiam confiar para se conectar com a
população jovem em geral, transformando assim a cultura em instrumento de política
(CASTELLS, 2013, p.85).
Neste sentido, pode-se afirmar que a estética e o estilo de linguagem adotado pela
FEMAMA, bem como, as estruturas multimídias características dos espaços digitais,
é que fomentam esse sentimento de revolta e possibilitam a identificação e o encontro
dos sujeitos com seus pares. Da mesma forma, os recursos tecnológicos disponíveis
em plataformas digitais como o Facebook e o próprio site da organização, oportunizam
o compartilhamento intenso de informações, bem como, a rápida adesão dos sujeitos
através de um simples “curtir”, e o envio direto de mensagens de apoio ou repúdio aos
detentores do poder institucional. Todas essas ações realizadas nos espaços digitais
podem ser caracterizadas como práticas cidadãs que visam à transformação social.
Outra questão verificada através da análise das postagens é de que as tecnologias
de comunicação digitais realmente configuram um novo espaço de sociabilidade. Ficou
evidente que sem o uso destas tecnologias, a FEMAMA jamais conseguiria articular a
formação de uma agenda única, considerando as distâncias geográficas que separam
as organizações associadas, umas das outras. Da mesma forma, essas tecnologias
permitem a aproximação da organização com movimentos internacionais, oxigenando o movimento local com informações vindas de outros cenários socioeconômicos,
permitindo a comparação e o aprendizado com iniciativas bem sucedidas e permitindo o engajamento da organização em movimentos de escala global. No entanto, a
principal contribuição deste novo espaço de sociabilidades, possibilitado pela internet,
é a renovação contínua do sentimento de esperança, que é a força propulsora dos
movimentos sociais.
Contudo, Castells (2013) reforça que este novo espaço é híbrido, sendo composto por
um espaço de fluxos, presente na internet, e um espaço de lugares, representado pelos
encontros presenciais que continuam sendo fundamentais ao movimento e retroalimentam o debate online. Esta questão pode ser evidenciada pelo fato de que as postagens
com o maior número de curtidas e compartilhamentos são aquelas que anunciam ou
relatam um evento presencial promovido pela instituição. No entanto, ao contrário do
que é evidenciado por Castells (2013), durante a execução destes encontros o número
a participação online do público decai significativamente. Isto pode indicar tanto que
os indivíduos mais ativos nas redes são aqueles que já fazem parte formalmente da
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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As práticas comunicacionais, cidadãs e identitárias de ativistas na luta contra o câncer de mama
Thaís Costa Cardoso Soares
organização, como sua inabilidade ou desinteresse de participar simultaneamente nos
espaços online e off-line.
Por fim, cabe dizer que a análise das postagens tanto do site quanto do perfil da
FEMAMA no Facebook, também verificou que se realizam as principais condições de coletivização de uma causa apontadas por Henriques (2010). Na experiência de observação
das plataformas digitais nos quais a FEMAMA atua, a concretude foi evidenciada pelo
desenvolvimento e pela adesão do público em abaixo-assinados e petições online, bem
como, seu encaminhamento físico aos órgãos oficiais responsáveis que também alimentou
o espaço digital com notícias. Já o caráter público, pode ser verificado na expressiva evolução da adesão numérica que se deu pelas variadas formas de capilaridade das postagens.
No que diz respeito à viabilidade, o apelo da própria causa gera a impossibilidade de
se argumentar contra as práticas realizadas pela organização, com exceção de algumas
controvérsias geradas por especificidades técnicas e científicas de alguns procedimentos médicos defendidos pela organização. Neste sentido, é notável que em diferentes
momentos, somam-se ao movimento jornalistas, artistas, parlamentas e especialistas
médicos unindo esforços em prol da melhoria no acesso ao diagnóstico precoce e o
tratamento adequado ao câncer de mama. Acerca dos valores mais amplos as postagens
demonstraram a preocupação da organização em debater não apenas questões específicas do tratamento e diagnóstico do câncer de mama, mas também questões relativas
a outros tipos de câncer, a situação da saúde pública em geral, ao direito das mulheres
e à dignidade e igualdade social dos pacientes.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
880
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Thaís Costa Cardoso Soares
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo
da internet para o desenvolvimento de conversações
políticas em torno da vacinação contra o HPV
Communication and Public Health: the communicative
potential of the Internet for the development of
political talks about the HPV vaccination
Fr a n c i n e A lt h e m a n 1
Resumo: O objetivo do trabalho é analisar o possível potencial deliberativo
de conversações políticas on-line acerca da campanha de vacinação contra
o HPV, lançada em março de 2014. Foram analisados comentários postados
espontaneamente em divulgações da campanha na página oficial do Ministério
da Saúde no Facebook. A discussão on-line gerada nesse espaço revela que
conversações políticas nas redes sociais podem, potencialmente, garantir a
formação de esferas públicas e contextos deliberativos. No entanto, a comunicação
pública, especialmente aquela que tem como emissor o Estado, precisa ser melhor
explorada em redes sociais, para que a troca argumentativa não seja bloqueada
ou mesmo fique na superficialidade.
Palavras-Chave: Comunicação Pública. Esferas Públicas. Conversação Política.
Campanha de Vacinação contra HPV.
Abstract: The objective of this article is to analyze the possible deliberative
potential of online political talks about the vaccination campaign against HPV,
launched in March 2014. It had been analyzed comments posted spontaneously
in campaign disclosures on the official website of the Ministry of Health on
Facebook. The online discussion generated in this space shows that political
talks on social networks can potentially ensure the formation of public spheres
and deliberative contexts. However, public communication, especially those
who’s the issuing is the state, needs to be better exploited in social networks, so
that the argumentative exchange is not blocked or even stay in superficiality.
Keywords: Public Communication. Public Spheres. Political Conversation.
Vaccination Campaign against HPV.
INTRODUÇÃO
COMUNICAÇÃO PÚBLICA é aquela que tem como emissor o Estado, ou ainda
A
sujeitos privados, cujo objeto de divulgação é de interesse geral da sociedade.
De forma generalista, a comunicação pública engloba a troca comunicativa
entre instituições (geralmente públicas) e sociedade. Autores que vem estudando a
1. Mestre em Comunicação na Contemporaneidade pela Faculdade Cásper Líbero. Graduada em Comunicação
Social – Jornalismo – pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Especialista em Divulgação Científica
pelo Núcleo José Reis da ECA/USP. Coordenadora de Comunicação do Conselho de Fisioterapia e Terapia
Ocupacional (Crefito). Professora do curso de Jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing
(ESPM). E-mail: [email protected].
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
882
Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV
Francine Altheman
comunicação pública (ROLANDO, 2011; LÓPEZ, 2012; HASWANI, 2013; MAIA, 2011;
MATOS, 2011) entendem que ela é um processo de comunicação que envolve o Estado
e a sociedade, inserindo-se na esfera pública, ou seja, promovendo a participação dos
atores sociais para que estes não sejam apenas receptores do processo comunicacional
do governo.
Por outro lado, uma esfera pública é constituída quando indivíduos consideram
que há uma questão que os afeta coletivamente e tentam construí-la como problema,
ao mesmo tempo em que instauram uma situação comunicativa de interlocução em
que se empenham para buscar o entendimento recíproco através do oferecimento de
razões e justificativas para seus pontos de vista. Desse modo, uma esfera pública é
parte de uma “engrenagem social voltada para a solução coletiva de um problema
definido na interação” (GOMES, 2008, p. 120). Ela é uma estrutura social orientada pela
razão comunicativa e funciona a partir dos critérios de publicidade, acessibilidade e
visibilidade. Assim, uma esfera pública se forma a partir de um processo deliberativo
que se inicia entre interlocutores os quais se sentem concernidos por uma questão e
buscam, através da obediência a determinados princípios normativos (inclusividade,
igualdade, reflexividade, reciprocidade, uso da razão), entender o que está em causa e
buscar a solução que atenda, de forma justa, as demandas de todos e de cada um.
Desse modo, ao se falar de esfera pública como espaço social onde se insere a comunicação pública, este artigo busca analisar a comunicação estabelecida pelo Ministério
da Saúde em suas redes sociais, especificamente no Facebook, no período de lançamento
da campanha de vacinação contra o HPV (março de 2014), bem como a conversação
política on-line que se forma a partir dos comentários postados pelos atores sociais.
O objetivo é verificar o efeito da internet, especialmente das redes sociais, na
comunicação pública, especialmente aquela que provêm do Estado e como ela fomenta
a participação e o engajamento da população nas políticas adotadas, especialmente em
um período específico de lançamento de uma campanha nacional, em que o governo
promove uma espécie de lobby junto à opinião pública (caracterizado pela comunicação
governamental), ao mesmo tempo em que necessita do reconhecimento da população
pelas políticas públicas promovidas.
COMUNICAÇÃO PÚBLICA E SUAS DIFERENTES DIMENSÕES
Os estudos sobre comunicação pública ainda têm registrado multiplicidade de
conceitos, provavelmente porque é uma área da comunicação que começou a ser observada
somente nas últimas décadas, especialmente no Brasil. No entanto, é importante salientar
que crescem os estudos sobre esse assunto focados na realidade brasileira, o que amplia
o número de instituições que procuram adotar a produção de informações observando
o interesse público.
O conceito de comunicação pública parece estar intimamente ligado ao Estado
como emissor. No entanto,
(…) a comunicação pública compreende processos diversos e faz interagir os atores públicos e também os privados, na perspectiva de ativar a relação entre o Estado e os cidadãos,
com o intuito de promover um processo de crescimento civil e social (Haswani, 2011, p. 82).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
883
Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV
Francine Altheman
O bem-estar social não é apenas responsabilidade do Estado, mas também da
organização civil, que se reúne em redes associativas, que participa do processo de
decisão política e se engaja politicamente, promovendo políticas comunitárias, com
enfoque no interesse coletivo (HASWANI, 2013; MATOS, 2011; HABERMAS, 2003b). Mas,
para que isso ocorra, é necessária uma comunicação pública pró-ativa, mesmo porque a
participação dos atores sociais em debates pressupõe a publicidade, entre outros fatores.
Stefano Rolando (2011) reflete sobre a comunicação pública como um sistema
fragmentado e propõe, incorporando experiências da comunicação empresarial, que
os pressupostos da comunicação pública sejam divididos em sete estágios, formando um
edifício que vai do térreo ao sexto andar. Tal metáfora ficou conhecida como o Edifício de
Rolando e mostra que a comunicação pública começa com serviços básicos, como acesso
a ações administrativas (térreo), passando por fases cada vez mais complexas, conforme
os andares “sobem”, chegando ao sexto andar que envolve a gestão dinâmica de um
patrimônio simbólico. Essa experiência proposta por Rolando pretende inter-relacionar
os andares entre si e, com isso, promover o diálogo entre os sujeitos envolvidos.
Produzir comunicação, estabelecer pontes relacionais, gerar serviço baseado na escuta e na
transferência de conhecimento, utilizando aquelas superfícies com relação a essas necessidades, deve ser de fato um processo guiado por uma consciência de objetivos precisos a serem
alcançados. (Rolando, 2011, p. 31).
Nesse contexto, também é importante entender o que é interesse público. Seu
conceito pode parecer óbvio e, de forma generalizada, o interesse público está ligado ao
bem comum da sociedade. É natural pensar que quanto mais pessoas forem beneficiadas
com determinada informação, maior é o interesse público.
Rousiley Maia (2011), baseada nos teóricos deliberacionistas, entende que para se chegar
ao interesse público é necessário intercâmbios entre as pessoas. O interesse público deve
resultar de um debate público. No entanto, constrangimentos diversos, situações que envolvem interesses pessoais, a complexidade geográfica de um Estado como o Brasil e mesmo
o papel dos meios de comunicação de massa podem descaracterizar o interesse público.
Ainda que carregado de persuasões e ação estratégica, o debate público deve ser uma
das formas que sustenta a comunicação pública. Antônio Hohlfeldt (2011, p. 238) sustenta
que “no caso do Estado, o maior interesse público a que pode servir a comunicação é
a democracia”.
Nesse sentido, publicidade é característica fundamental da democracia e um Estado
democrático de direito não pode se furtar de fornecer informações. Daí a importância
de se estudar a comunicação pública e ampliá-la cada vez mais.
Tais características sobre a esfera pública, a formação do debate, a publicidade e o
papel dos meios de comunicação, especificamente as redes sociais, nesse processo serão
analisados adiante. Antes, porém, o momento da pesquisa – lançamento da campanha
de vacinação contra o HPV – será contextualizado a seguir.
CONTEXTUALIZAÇÃO: CAMPANHA DE VACINAÇÃO CONTRA O HPV
A campanha de vacinação contra o papiloma vírus humano (HPV) foi lançada em
março de 2014, logo após o fim do período de carnaval, com a veiculação de campanha
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV
Francine Altheman
publicitária para orientar a população sobre a importância da prevenção contra o câncer
do colo do útero. A campanha foi veiculada em TV, rádio e jornais, mas com foco especial
nas redes sociais, tendo em vista que o público-alvo eram meninas de 9 a 13 anos (aquelas
que seriam vacinadas na primeira fase da campanha). O investimento do Ministério da
Saúde na campanha foi de R$ 20 milhões.
Os postos de saúde e escolas de todo o país começaram a ofertar a vacina no dia
10 de março de 2014, período em que a campanha foi intensificada nos veículos de
comunicação.
A meta do Ministério da Saúde era de vacinar 80% do público-alvo, formado por
cerca de 5 milhões de meninas entre 9 e 13 anos, que foram priorizadas porque a vacina
tem mais eficácia em meninas que ainda não iniciaram a vida sexual. No entanto, no
primeiro mês de aplicação, 58% das meninas nesta faixa etária foram vacinadas.
Existem diversos questionamentos importantes que surgem, especialmente nas mães
de meninas que devem tomar a vacina, que não ficam claros na campanha divulgada
pelo Ministério da Saúde.
Ao analisar a campanha, não fica clara a questão da eficácia da vacina em meninas
que ainda não iniciaram a vida sexual, nem o fato de que a vacina é um complemento às ações preventivas que já existem, e devem ser mantidas, como a realização do
Papanicolau e o uso de preservativos em relações sexuais. A campanha não menciona
efeitos colaterais da vacina, que foram relatados em muitas meninas, ou questões mais
sérias, como a causa de paralisias musculares, difundidas pelas redes sociais e cujo
esclarecimento oficial não foi satisfatório, entre outros questionamentos e dúvidas que
surgiram durante a campanha.
A falta de informações claras e precisas pode ser um dos aspectos que explica
a porcentagem relativamente baixa – 58% – de meninas vacinadas em um primeiro
momento.
Nesse sentido, pode-se avaliar um dos aspectos da campanha de vacinação
promovida pelo Ministério Público – nas redes sociais – e seus desdobramentos na
conversação política formada a partir dos comentários postados.
Com relação à participação política, formação da opinião pública e como a esfera
pública pode se inserir em um ambiente informal como a internet veremos adiante, com
os conceitos introduzidos por Jürgen Habermas.
ESFERAS PÚBLICAS DIGITAIS
De acordo com o especialista em comunicação pública, mobilização social e processos
participativos, Juan Camilo Jaramillo López (2012), é na esfera pública que se constrói
a agenda a partir da qual se chega à opinião pública. Portanto,
Comunicação pública é, no meu conceito, a que se dá na esfera pública, seja para construir
bens públicos (política), para incidir na agenda pública (midiática), para fazer a comunicação
das entidades do Estado com a sociedade (estatal), para construir sentido compartilhado
ao interior da organização (organizacional), ou como resultado das interações próprias dos
movimentos sociais (vida social). (López, 2012, p. 255).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
885
Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV
Francine Altheman
Os estudos sobre deliberação e sua associação com os conceitos de esfera pública
estão principalmente baseados pelos trabalhos de Jürgen Habermas (2003a, 2003b, 2008),
que reflete sobre a interseção da comunicação com o processo deliberativo.
Esfera pública pode ser definida como o espaço social e comunicativo entre esfera
privada e o Estado, caracterizada pelo acesso livre, geral e desimpedido ao público, pela
publicidade e, com isso, pela possibilidade de crítica ao Estado e pela decisão própria
autônoma do cidadão. Esse espaço só pode ser constituído por meio da linguagem e o
fluxo de informações que circula nele provém não só da mídia, mas também de outros
espaços de conversação e diálogo.
A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.
(...) A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado
pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não
com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana (Habermas, 2003b, p. 92).
Uma esfera pública é constituída principalmente quando indivíduos se consideram
afetados por uma questão e colocam-na em discussão de maneira coletiva, de modo a
buscar o entendimento recíproco do problema, como é o caso dos debates em torno da
educação pública de qualidade, ou mesmo sobre a progressão continuada. Desse modo,
segundo Habermas (2003b, p. 47), a deliberação é um processo discursivo que conecta
as diferentes discussões que ocorrem nas esferas públicas e toma forma em uma “rede
de discursos e negociações, a qual deve possibilitar a solução racional de questões
pragmáticas, morais e éticas”.
A deliberação deve ser entendida como um processo social de comunicação, que
pode conectar esferas formais e informais de discussão, além de diferentes atores e
discursos, que estabelecem um diálogo para avaliar e compreender um problema
de interesse coletivo. Para isso, é necessário que os indivíduos saibam fazer uso da
linguagem para argumentar, considerar a opinião do outro, refletir e simultaneamente
interpelá-lo, convencendo-o e se deixando convencer. Os atores sociais que se propõe a
participar do processo deliberativo estão expostos a opiniões que nem sempre concordam
e devem deixar-se persuadir por elas, ao mesmo tempo em que expõem seus pontos de
vista. Esse é um dos motivos pelos quais não se pode afirmar que os espaços de debates
on-line formam esferas públicas digitais.
Assim, deve-se ter cautela em apontar os fóruns on-line como esferas públicas, pois
a troca argumentativa que caracteriza uma esfera pública é reflexiva, mesmo sendo
de natureza conflitiva, propondo sempre a continuação do diálogo. A diversidade de
públicos e a proliferação de todos os tipos de vozes na rede conectada podem acarretar
problemas nesse sentido (MARQUES, 2010a).
Além disso, como destaca Habermas, a formação de mini-espaços públicos
especializados na web pode fazer com que os sujeitos restrinjam suas interlocuções
àqueles espaços que congregam os temas de sua preferência e os interlocutores que
pensam como eles:
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Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV
Francine Altheman
O crescimento de milhões de salas de bate-papo (chat rooms) fragmentadas através do mundo
tende a uma fragmentação de amplas audiências de massa, porém politicamente focadas,
em um grande número de públicos isolados e voltados para uma única questão (Habermas,
2006, p. 414).
Certamente a internet pode abrigar esferas públicas nas quais prevalece o agir
orientado ao entendimento. Mas é preciso que tenhamos sempre em mente que a
comunicação em rede é intermediada por softwares e condicionada por protocolos que
delimitam os conteúdos e os formatos de interação. A assimetria entre interagentes no
interior do ciberespaço coloca em dúvida se os atos de fala e a liberdade comunicativa
são minimamente equilibrados nas interações entre os que dominam ou entendem
os códigos e os que não entendem (SILVEIRA, 2009). Tais assimetrias nas relações e
oportunidades de acesso à rede interconectada dificulta a participação paritária dos
indivíduos e a própria constituição de esferas públicas on-line. O uso da linguagem
de forma clara, para que todos se entendam mutuamente, também é uma barreira na
internet, já que existem comunicações cifradas e nem todo significado atribuído a um
proferimento ou sentença é entendido por todos os participantes.
Mesmo considerando as diversas possibilidades de construção de esferas públicas,
os autores acima mencionados são cautelosos ao apontar a internet como espaço capaz
de abrigar esferas públicas. Eles salientam que a ampla possibilidade de expressão nos
espaços digitais não garante a formação de esferas de debate; não assegura ser ouvido e
considerado e não indica que os argumentos serão compreendidos, pois a igualdade não
é exatamente uma característica da rede. “Redes existem apenas em situações de assimetria ou incongruência. Se não, nenhuma rede seria necessária – pares simétricos podem
se comunicar, mas pares assimétricos devem ‘se enredar’” (GALLOWAY, 2010, p. 89).
A internet, com todas as críticas que lhe podem ser feitas, amplia a visibilidade de
informações e acontecimentos além de abrigar inúmeros espaços de trocas comunicativas.
Sem deixar de lado as barreiras digitais da rede, Maia (2008, p. 277) também observa o
potencial democrático e deliberativo da internet: a “rede pode proporcionar um meio
pelo qual o público e os políticos podem comunicar-se, trocar informações, consultar
e debater, de maneira direta, rápida e sem obstáculos burocráticos”. Nesse sentido,
Silveira (2009) e Girardi Júnior (2009) mostram que o conceito habermasiano de esfera
pública pode ser compatibilizado com o mundo digital. Segundo eles, o ciberespaço pode
abrigar debates que possuam contornos deliberativos, dados sobretudo pelos princípios
normativos que estruturam a ação comunicativa habermasiana.
Além disso, os avanços tecnológicos que envolvem a internet se transformaram em
uma importante ferramenta de comunicação pública, pois “possibilita a inclusão, entre
os emissores, de pessoas e grupos sociais até então segregados, com uma importante
perspectiva emancipadora” (HASWANI, 2013, p. 98). Além disso, como alerta a autora
citada, a proliferação das redes sociais faz com que a pressão da opinião pública exija
mais transparência do Estado.
Alguns desses princípios, como veremos adiante, serão utilizados como base
para refletir e analisar a comunicação pública desenvolvida a partir de redes sociais –
Facebook, neste caso – analisando a página do Ministério da Saúde na rede.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV
Francine Altheman
ANÁLISE: FACEBOOK COMO OPÇÃO PARA A ABERTURA
AO DIÁLOGO E ESPAÇO DE CONVERSAÇÃO POLÍTICA
As redes sociais se apresentam hoje como espaços de troca comunicativa que alimentam processos deliberativos mais amplos (que se desdobram em espaços administrativos,
institucionais, do cotidiano e da mídia) ao promoverem situações de conversação que
levam potencialmente à formação de esferas públicas e ao desenvolvimento de capacidades argumentativas e reflexivas. A conversação política on-line é extremamente
importante para estruturar e fortalecer processos deliberativos que, ao articularem
diferentes esferas públicas, demandam que os sujeitos que nelas interagem tenham tido
a oportunidade de desenvolver suas capacidades argumentativas e reflexivas (MAIA,
2008; ALTHEMAN, 2012). A conversação, portanto, pode incentivar os sujeitos a aprimorar formas de pensar, de formular verbalmente, interpretar, argumentar e agir sobre
questões políticas que afetam diretamente suas próprias vidas e de outros (CONOVER
et al., 2002). Assim, fazem emergir a opinião pública e a participação política.O percurso
metodológico desenvolvido leva em conta que um processo deliberativo não se apresenta
de maneira pontual, mas se desdobra em diferentes momentos no ambiente de conversação on-line. Tal desdobramento leva em conta tanto aspectos ligados às configurações
das trocas de enunciados no Facebook quanto aspectos configuradores de momentos
que podem ser considerados como deliberativos.
Com relação à configuração das trocas, podemos destacar o fato de que o próprio
espaço do Facebook oferece ferramentas para a construção da conversação e, ao mesmo
tempo, aqueles que aí interagem constroem e se apropriam do contexto por elas gerado,
aproveitando a experiência que já possuem de exploração da plataforma (RECUERO,
2012). No Facebook, e também em outros ambientes sociais da rede, há uma forte interseção entre o ambiente e as possibilidades de mediação que ele oferece: articulação
com outras redes sociais, mecanismos de busca, citação e indexação (o que amplia as
possibilidades de fundamentação e exemplificação de pontos de vista e argumentos, por
exemplo). Tal característica é importante, pois o estudo do processo deliberativo on-line
não pode desconsiderar que as trocas discursivas que acontecem em uma rede social
frequentemente se espraiam para outras plataformas dando origem à uma interconexão
de esferas e de conteúdos.
Quanto às contribuições que a conversação política no Facebook podem oferecer ao
processo deliberativo, procurou-se observar a partir da troca desencadeada pelas postagens a configuração de alguns princípios normativos que guiam a deliberação, a saber:
• Discussão crítico-racional: como os participantes expressam seus pontos de vista sob
a forma de argumentos potencialmente aceitáveis por todos e capazes de ser refutados e
justificados;
• Reciprocidade: envolve a troca de turnos e respostas às afirmações dos outros. O ponto
de vista apresentado deve ser confrontado pela visão oposta dos outros, com respeito mútuo;
• Reflexividade: os participantes se mantém flexíveis para alterar suas opiniões e preferências quando confrontados com críticas e argumentos sustentados pelos outros.
A página oficial do Ministério da Saúde no Facebook apesar de parecer, à primeira
vista, um local com grande quantidade de informações interessantes para a sociedade,
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Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV
Francine Altheman
não aprofunda seu conteúdo, se limitando a divulgar a campanha publicitária da campanha, com pouca informação de fato esclarecedora.
Assim, surgem diversos comentários, a maioria deles buscando informação sobre
a vacinação, como vemos abaixo (foram elencados aqueles que nos parecem mais pertinentes para a análise proposta)2:
1. É uma bela iniciativa a vacina contra HPV. Mas quando essa vacina vai estar disponível
para outras faixas etárias e para o gênero masculino? E a vacina contra Varicela e Hepatite
A, que podem deixar sequelas? Estou fazendo estágio e tive que pagar 310 reais pela primeira dose dessas vacinas... Ainda tenho que pagar a segunda dose, de mesmo valor. Tanto
imposto e ainda não temos vacinas essenciais no SUS...
2. Por que só meninas? Meninos também são portadores e possem passar o mal para outros e
outras... Por que perto da Copa do Mundo? Se antes existia a vacina, por que não fizeram antes?
3. A questão é cade o estudo que permite das as doses nas datas tão afastadas da indicada
pelo fabricante? Será que vai servir?
4. Tenho uma filha de 11 anos e estou com medo de vacina-la... pq vi no face uns videos
com crianças que tomaram e estão com problemas seríssimos...queria ajuda
5. Soube que a priorização e limite de idade é para meninas virgens, é verdade?
6. Quem ja teve e tem 20 anos pode tomar também?
Grande parte das questões levantadas são respondidas pelo Ministério da Saúde,
mas as respostas costumam ser padronizadas, sugerindo a procura de informações
em outros canais, cortando, desse modo, o diálogo, comprometendo a reciprocidade e
a discussão crítico-racional que poderia se formar a partir daí.
O que se observa também é que diante das questões levantadas pelos atores sociais, o
ministério não buscou reavaliar a campanha para promover mais esclarecimentos acerca das
principais dúvidas dos usuários. Tais informações foram trabalhadas por alguns veículos
de comunicação em uma programação que pouco atinge o público-alvo da campanha.
Outro enfoque observado nos comentários foi a crítica ao órgão do governo,
muitas vezes sem o aspecto racional, o que compromete a continuação de um processo
deliberativo como se supõe. Vejamos3:
1. E lamentável o GOVERNO ficar divulgando essa campanha e chegar no posto e as
“enfermeiras” dizerem acabou volte amanhã !! e no outro dia ouvir a mesma coisa !! se
não tem pra que divulgam ??? So pra constar moro na “Cidade” de Belford Roxo ! fica no
estado do RIO DE JANEIRO !
2. Uma medida do proprio ministerio da saude, disse a pouco no problema sem censura
que a vacinacao contra o hpv é apenas para classe c e d!?!?! Mas isto nao é claro na propaganda da vacina!!
3. Concordo plenamente com essa iniciativa. Porém, acho amiga, que essa proposta tem
que ser melhor explicadinha para os pais. Porque conheço varios que dizem que estamos
facilitando para as meninas começarem cedo a vida sexual. Acho que para essa campanha
ser mais positiva, os pais tinham que assistir uma uma palestra exclarecedora!!
2. A grafia foi deixada como publicada, incluindo erros gramaticais.
3. A grafia foi deixada como publicada, incluindo erros gramaticais.
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Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV
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4. Seria melhor educar as. Meninas a não andar acasalando sem preservativo..
5. Meninas não devem transar e sim estudar e se preparar para o casamento..
6. O governo quer que seus filhos se sintam seguros para praticar sexo com 10 anos de
idade, isso é uma das armadilhas!
7. Quero + ação e – publicidade.
8. O pior é saber que tem crianças com 9 anos já tendo relação sexual...
9. Estãopensando que o governo esta agindo com bondade em vacinar seus filhos esperem
e verão!
Numa análise preliminar dos comentários postados, é possível detectar aspectos
de uma discussão crítico-racional. As posições, sob a forma de argumentação (objeções,
demonstrações e contra-objeções), foram usadas, porém não de forma racional, com
os pré-requisitos à construção de uma esfera pública, como uso da linguagem de
forma que todos se entendam com clareza e criação de uma relação em que todos
se veem como parceiros, com reconhecimento recíproco. Ao contrário, a maioria dos
participantes demonstra que conhece o assunto, apresenta os enunciados de acordo
com suas evidências e experiências pessoais, mas não de forma clara e acessível, além
de reagir negativamente e muitas vezes agressivamente ao ser refutado.
A conversação política on-line que se estabelece entre governo e sociedade pressupõe
também, como fica evidente nos comentários analisados, que a questão vai além da
clareza das informações prestadas e do diálogo que é interrompido pelo próprio Estado.
A questão passa pelo reconhecimento, já que os envolvidos, em muitos momentos, não
se sentem reconhecidos pelo Estado como interlocutor, apenas como receptor.
(...) o sujeito é oprimido por um sentimento de falta do próprio valor, porque seus parceiros
de interação ferem normas cuja observância o fez valer como a pessoa que ele deseja ser
conforme seus ideais de ego; portanto, a crise moral na comunicação se desencadeia aqui
pelo fato de que são desapontadas as expectativas normativas que o sujeito ativo acreditou
poder situar na disposição do seu defrontante para o respeito. (Honneth, 2003, p. 223)
Assim, verifica-se que o público deseja manter um canal de diálogo e interação
com o órgão do governo, apesar de algumas reações negativas que comprometem a
reciprocidade e a discussão crítico-racional. Mas a rede social ainda é um campo que
precisa ser explorado para ser utilizada no contexto de conversações políticas de forma
mais eficaz.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A conversação política on-line é um processo que permite aos sujeitos se perceberem como participantes de um processo deliberativo que os ultrapassa e que, ao
mesmo tempo, oferece a possibilidade de tomarem a palavra e terem-na inserida em
uma rede de esferas públicas digitais. A interação comunicativa destinada à definição
e à interpretação de uma questão política possibilita aos sujeitos colocar em prática
suas habilidades e conhecimentos, submetendo-os à apreciação e ao julgamento de
seus parceiros de conversação. Além disso, as trocas on-line requerem uma tomada
de posição no debate com relação aos valores e pontos de vista partilhados com entre
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação e Saúde Públicas: o potencial comunicativo da internet para o desenvolvimento de conversações políticas em torno da vacinação contra o HPV
Francine Altheman
os interlocutores. As conversações políticas auxiliam os cidadãos a aprimorarem suas
capacidades comunicativas e reflexivas ao convidá-los a tomar parte e a assumir os riscos
do debate público como, por exemplo, ter seu ponto de vista desafiado e recusado; ser
insultado e depreciado; tematizar questões delicadas, etc. (MARQUES, 2009).
Por outro lado, é possível perceber que a rede é uma importante ferramenta para
a ampliação do processo de comunicação pública e que as redes sociais são uma fonte
para colher a opinião e as necessidades da população. O espaço público aberto na rede
pode ser um caminho interessante para colher informações sobre o interesse público,
se bem utilizado.
No entanto, faz-se necessário conhecer melhor espaços de comunicação pública on-line, como o Facebook, e seus potenciais para conectar indivíduos dessemelhantes para
produzir uma fala política intersectada, capaz de promover relações com as diferentes
discussões e espaços políticos (formais e informais), especialmente no que se refere aos
emissores de comunicação pública por excelência, ou seja, o Estado.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
892
Comunicação no Comperj:
um canteiro de conflitos e resistência
Suelen
de
A g u i a r S i lva 1
Resumo: Estudo sobre os processos comunicacionais dos trabalhadores do Comperj. Os objetivos são discorrer sobre os novos movimentos sociais e a atuação
desses trabalhadores por meio da autocomunicação. A metodologia partiu de
referências bibliográficas, pesquisa documental, análise empírica no Facebook,
Youtube, jornais da grande mídia e jornal alternativo. Conclui-se que a autocomunicação em rede parece gerir esse movimento.
Palavras-Chave: Processos comunicacionais. Movimentos Sociais. Comperj.
Rede.
Abstract: Study on the communication processes of Comperj workers. The
objectives are to discuss the new social movements and the performance of
these workers through the self-communication. The methodology came from
references, documentary research, empirical analysis on Facebook, Youtube,
newspapers of the mainstream media and alternative newspaper. It is concluded
that the self-communication network seems to manage this movement.
Keywords: Communication processes. Social Movements. Comperj. Network.
INTRODUÇÃO
ARAFRASEANDO MANUEL Castells (2001), a galáxia da internet é um novo [não tão
P
novo assim] ambiente de comunicação. Como a comunicação é inerente à atividade
humana é impossível dissociá-la do nosso cotidiano. Com o avanço vertiginoso
das tecnologias de informação e comunicação todos os domínios da vida social estão
sendo modificados e transformados pelos usos e implicações que a internet proporciona.
Ela faz parte desse processo de mudança e atua nos diversos setores da vida social, nos
governos, nas variadas instituições, na cultura, na economia, na política, e é claro, que
os movimentos sociais não ficariam de fora.
Acontecimentos recentes têm mostrado que o ciberespaço é a ágora da contemporaneidade, mas não se encerram neste. Como pode ser percebido no Polo Petroquímico do Rio de Janeiro - Comperj. Este mega empreendimento faz parte do Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC) e caracteriza-se como um complexo industrial,
onde serão produzidos derivados de petróleo e produtos petroquímicos. O Comperj
é um dos principais empreendimentos da Petrobras e está sendo construído numa
área de 45 km² no município de Itaboraí, região metropolitana do Rio de Janeiro. A
construção dessas instalações tem gerado muitos problemas para a comunidade local.
1. Publicitária e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo – São Paulo, [email protected], bolsista CNPq.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
893
Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência
Suelen de Aguiar Silva
Muitos proprietários de sítios, chácaras e fazendas foram convidados a vender suas
propriedades para ceder lugar ao empreendimento. Com efeito, muitos caseiros ficaram
desempregados e mais, sem local de moradia. Especulação imobiliária, crescimento
populacional, seguido do aumento da criminalidade, tráfego intenso na rodovia, índice
significativo de acidentes etc.
No início do mês de janeiro de 2014 funcionários terceirizados, por meio de ações
coletivas, fizeram greve de 40 dias reivindicando reajuste salarial e melhores condições de
trabalho. Um ano se passou e o cenário de greves, corrupções, demissões só aumentou,
junto com o desejo dos trabalhadores em ter suas reinvindicações atendidas. E como?
Com a boca no trombone. Eles se fazem ouvir pelas redes sociais digitais e também fora
delas, utilizando várias ferramentas tais como, Facebook, Youtube, Zello, WhatsApp e
a boa e velha rádio peão.
A partir da contextualização acima pretendemos discorrer sobre os processos
comunicacionais desenvolvidos pelos trabalhadores do Comperj e seus dispositivos
em rede. Justifica-se a escolha do tema em função de sua relevância social, pois o estudo
recai sobre as mutações dos processos comunicacionais mediados pelas mídias. Não
temos o intuito de pesquisar tecnologias, mas os tipos de interações que acorrem na
internet por meio das redes sociais online e que as extrapolam, se materializando nas
ruas. O que desejamos não é um deslumbre tecnológico, mas a reflexão sobre novos
dispositivos que transitam por todos os setores da vida cotidiana.
A metodologia utilizada partiu de referências bibliográficas, pesquisa documental,
bem como análise empírica em algumas páginas do Facebook, Youtube, alguns jornais
da grande mídia e um jornal alternativo sobre a atuação dos trabalhadores na greve de
40 dias no Comperj.
A primeira parte do trabalho será dedicada aos aspectos mais gerais sobre os
novos movimentos sociais, com ênfase naqueles surgidos no século XXI. Não temos a
ambição de caracterizar ou enquadrar este ou aquele movimento dentro de categorias
pré-definidas, mas a partir do entendimento de suas novas configurações, entendêlos por meio de suas atuações, agora em rede. Contudo, objetiva-se teorizar sobre a
configuração desses novos movimentos à luz dos processos comunicacionais, assim
como os dispositivos re-inventados neste contexto. Na segunda parte será explicitado os
procedimentos metodológicos utilizados para a análise empírica do material coletado
bem como a pesquisa documental. Os resultados serão analisados à luz das teorias
empregadas na primeira parte do texto.
MOVIMENTOS SOCIAIS DO SÉCULO XXI
Os movimentos sociais utilizam a internet como um instrumento privilegiado para
informar, atuar, recrutar, resistir, organizar, dominar e contradominar. Os movimentos sociais do século XXI, por meio de ações coletivas que visam objetivos comuns, à
transformação de valores e instituições da sociedade, se manifestam na e pela internet.
A Primavera Árabe em meados do ano de 2010 tomou força e se espalhou por diversos
países do oriente médio, tendo em vista a condição do processo econômico e a reformulação geopolítica dos países do mundo árabe; os protestos que eclodiram no Brasil em
junho de 2013 devido à reivindicação do movimento Passe Livre pelo transporte gratuito
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
894
Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência
Suelen de Aguiar Silva
e de qualidade, que em seguida ganham força por causa dos processos de corrupção na
política brasileira demonstram que os movimentos sociais se reinventam a cada instante.
Gohn (2012, p.11-14) afirma que para analisar os diferentes movimentos sociais, em
realidades sociais concretas, como no Brasil atual, deve-se primeiro destacar quatro
pontos do contexto sociopolítico, econômico e cultural do país, são eles: 1- a necessidade
de qualificar o tipo de ação coletiva que tem sido caracterizado como movimento social.
2- no novo cenário as relações desenvolvidas entre os diferentes sujeitos sociopolíticos
na cena pública alteraram-se; ampliação das formas de mobilização e atuação agora em
redes; novas tecnologias da informação e comunicação; neocomunitarismo. 3- alterações
do papel do Estado em suas relações com a sociedade civil e em seu próprio interior;
novas políticas sociais. 4- grande lacuna na produção acadêmica sobre os movimentos
sociais, tais como o próprio conceito de movimento social, o que os qualifica como novos,
o que os distingue de outras ações coletivas, o que ocorre quando uma ação coletiva
expressa num movimento social se institucionaliza, o papel dos movimentos sociais neste
novo século, como diferenciar movimentos sociais criados a partir da sociedade civil
de outras formas, quais tem sido as teorias que têm sido construídas para explicá-los.
Para Gohn (2012, p.14) “um movimento social é sempre expressão de uma ação
coletiva e decorre de uma luta sociopolítica, econômica ou cultural”. A autora faz um
apanhado sobre os traços constituintes de um movimento social e aponta os seguintes
aspectos: demandas que configuram sua identidade; adversários e aliados, bases,
lideranças e assessorias, formando redes de mobilizações; práticas comunicativas, desde
a oralidade aos modernos recursos tecnológicos; visões de mundo que dão suporte a
suas demandas e culturas próprias nas formas como sustentam e encaminham suas
reivindicações (GOHN, 2012, p.14).
Em texto mais recente escrito no calor das manifestações de junho de 2013 Gohn
(2014, p.8-9) denomina as manifestações que ocorrem nas ruas e praças como atos de
protesto e os inclui em uma categoria mais geral: “‘Movimento dos Indignados’. Os
‘Indignados’ focalizam demandas locais, regionais, nacionais, ou seja, a realidade do
país.” É importante frisar também que para a pesquisadora as manifestações de junho de
2013 no Brasil fazem parte de uma nova forma de movimento social composta por jovens,
escolarizados, predominância de camadas médias, conectados por e em redes digitais.
Este último aspecto, torna-se importante para o movimento em aqui em questão, dos
trabalhadores do Comperj. Essa massa trabalhadora, ao contrário do que aponta Gohn
(2014) são formados em sua maioria por trabalhadores com pouco grau de instrução, de
classes mais abastadas, mas preserva um traço importante apontado pela pesquisadora,
eles estão conectados por e em redes.
REDES ENERGIZADAS PELA INTERNET
O conceito de redes sociais é complexo e amplo. A formação de redes é uma prática
humana muito antiga em virtude da necessidade de interação social e compartilhamento com o outro. Dentre as categorias teóricas utilizadas nos estudos atuais sobre
os movimentos sociais apontadas por Gohn (2013) destaca-se a categoria rede. Para a
autora (2013, p.32) rede social passa a ter na atualidade para vários pesquisadores um
papel mais importante do que o movimento social.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência
Suelen de Aguiar Silva
A categoria rede segundo Gohn é muito utilizada em diferentes sentidos e constitui-se em certo modismo, todavia, ela é importante na análise das relações sociais, tais
como território, comunidade porque permite a leitura da diversidade sociocultural e
política existente nessas relações. A autora aponta que tanto nas ciências exatas, quanto
nas ciências humanas e biológicas a ideia de rede não é nova. Nas ciências sociais o
uso de redes sociais também é antigo, mas atualmente é utilizado como instrumento
de análise e articulação de políticas sociais.
Segundo Gohn (2013, p.34), a categoria rede também incorpora várias outras subcategorias: “circulação, fluxo, troca, intercâmbio de informações, compartilhamento,
intensidade, extensão, colaboração, [...] horizontalidade organizativa, flexibilidade, maior
agilidade etc”. Todavia, o uso indiscriminado de termos novos na busca do moderno
pode estar deixando de lado outras categorias importantes como articulações, processos, relações etc (GOHN, 2013, p.34 -35). Afirma ainda que a questão é complexa e diz
respeito à luta política e cultural de diferentes grupos sociais.
Para Manuel Castells (2013, p.11), “a constituição de redes é operada pelo ato da comunicação”. Define a comunicação como o processo de compartilhar significado pela troca
de informações. Reitera ainda que a principal fonte da produção social de significado é
o processo de comunicação socializada. Essa é parte das premissas de Castells, de que
as pessoas, instituições, a sociedade em geral transforma a tecnologia, apropriando-a,
modificando-a, experimentando-a, como é o caso da internet que, para o sociólogo, é
uma tecnologia de comunicação.
A territorialidade física e simbólica dos movimentos sociais em nossa sociedade
é formada pelo espaço híbrido, conforme Castells (2013, p.16), entre o espaço urbano
ocupado e as redes sociais digitais na internet. A questão premente é que nesse novo
espaço em rede, situado entre os espaços digital e urbano forma-se um espaço de comunicação autônoma. E autonomia é a quintessência dos movimentos sociais, ao permitir
que ele se forme e possibilitar que ele se relacione com a sociedade, fora do controle dos
detentores do poder, do poder da comunicação (CASTELLS, 2013, p.16).
A nova configuração espaço-temporal advinda das transformações nas tecnologias
de informação e comunicação mudou significativamente os modos de vida, as relações
sociais e econômicas entre as pessoas. Possibilitou também a participação de eventos
simultâneos, sem a necessidade de estar num mesmo local. Então, surge a possibilidade
de novos tipos de grupamentos sociais, de supostos tipos de comunidades. Segundo
Costa (2008, p.34), o que o estilo de vida móvel vem provocando é uma reorganização
na forma como as pessoas se encontram, trocam e se comunicam entre si.
Andréas Huyssen (2000), comenta que as novas tecnologias da informação e
comunicação sempre transformaram a percepção humana na modernidade. Para
Huyssen (2000, p.36), “práticas de memória nacionais e locais contestam os mitos do
cibercapitalismo e da globalização com sua negação de tempo, espaço e lugar”. O Autor
assegura que foi dessa forma desde a ferrovia, o telefone, o rádio e o avião e acredita
que o mesmo vai acontecer quanto ao ciberespaço. Aliás, é o que está acontecendo na
atualidade, pois vivemos numa intensa compressão espaço-temporal onde a relação entre
passado, presente e futuro está sendo transformada. E as tecnologias da informação e
comunicação, em especial a internet, contribuem para este novo ordenamento.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência
Suelen de Aguiar Silva
Raquel Recuero (2009) compartilha com Andreas Hyussen a ideia de que as redes
existem muito antes da chegada da internet. Entretanto, Recuero (2009, p.135) afirma que
uma das primeiras mudanças detectadas pela comunicação mediada pelo computador
nas relações sociais é a transformação da noção de localidade geográfica dessas relações
sociais, embora assim como Hyussen aponta que a internet não foi a única responsável
por essas transformações.
Por outro lado, Castells (2003) aponta a revolução [mutação] da tecnologia da
informação como ponto de partida por sua penetrabilidade em todas as esferas da
atividade humana e afirma que devemos localizar o processo de transformação
tecnológica revolucionária no contexto social em que ele ocorre e pelo qual está sendo
moldado. Em Castells (2003, p. 287), “a internet não é simplesmente uma tecnologia; é
o meio de comunicação que constitui a forma organizativa de nossas sociedades”. O
estudioso demonstra que a internet é um novo paradigma sociotécnico e que constitui a
base material da vida das pessoas, de suas relações cotidianas, de trabalho e comunicação.
“Qual seria o possível legado dos movimentos sociais em rede ainda em processo? A
democracia. Uma nova forma de democracia. Uma antiga aspiração jamais concretizada
da humanidade” (CASTELLS, 2013, p.30).
AUTOCOMUNICAÇÃO, AUTONOMIA E RESISTÊNCIA
A comunicação é um direito humano, e como tal precisa ser garantido e exercido,
pelo menos. Vimos à explosão dessa vontade de comunicar a partir dos levantes da
Primavera Árabe, dos diversos protestos espalhados pelo mundo e os reflexos das manifestações que eclodiram no Brasil e que ainda acontecem nos centros das metrópoles,
como São Paulo e Rio de Janeiro. Castells (2013, p.11) diz que a mudança fundamental
ocorrida nos últimos anos está no domínio da comunicação, no que ele denominou
como autocomunicação, “o uso da internet e das redes sem fio como plataformas da
comunicação digital”.
Como aponta Castells (2013), as manifestações começaram nas redes sociais digitais,
já que estas são espaços de autonomia, muito além do controle de governos e empresas,
que, ao longo da história, haviam monopolizado os canais de comunicação como
alicerces de seu poder. Tais manifestações não são protestos espontâneos, são protestos
provocados por descontentamentos muito antigos ligados a organizações das sociedades
civis que existem em determinados países, sob a perspectiva social, política, econômica
e ditatorial. Compartilhando dores e esperanças no livre espaço público da internet, os
atores sociais formaram redes, independente de suas opiniões ou filiações. Uniramse e compartilharam. A partir da segurança promovida pelo ciberespaço, multidões
passaram a ocupar o espaço público para reivindicar seu direito de fazer história numa
“manifestação da autoconsciência que sempre caracterizou os grandes movimentos
sociais” (CASTELLS, 2013, p.10). No entanto, essas manifestações não são mutações2 das
redes sociais digitais - Twitter, Facebook, blogs etc -, são mutações da sociedade civil
que utilizam o aparato tecnológico para divulgar informações e compartilhar, porém, o
2. Preferimos utilizar o termo mutações ao invés de revoluções. Revolução implica numa mudança de
paradigma, numa ruptura. Acreditamos que esse processo seja uma mutação tecnológica, como aponta
Muniz Sodré (2002).
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência
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que é óbvio é que sem a internet os movimentos sociais não teriam condições de juntar
e mobilizar tantas pessoas nas ruas instantaneamente.
Após décadas de embate e luta dos movimentos pela cidadania, a comunicação
que era privilégio de poucos grandes conglomerados, se reinventa e passa a fazer parte
do cotidiano dos sujeitos. De uma forma ou de outra, a comunicação dos movimentos
sempre existiu, via folhetos, marchas, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores
sem Terra (MST)3, entre outras formas de comunicar. Porém, a diferença na atualidade
é a maneira como ela acontece, no espaço em rede, ou seja, num espaço de comunicação
autônoma. A comunicação que sempre aconteceu no bojo dos movimentos, com os
novos movimentos sociais, se reinventa e conquista outros espaços, outros dispositivos
apoiados nas tecnologias de informação e comunicação (TICC).
Para Castells a questão basilar é que os movimentos sociais são a chave para a
mudança social, para a constituição da sociedade. E para ele, muito mais do que categorizar movimentos sociais e questionar seu nascimento é preciso compreender o conjunto
de causas estruturais e motivos individuais que os move. Os movimentos sociais são
constituídos de indivíduos, de suas emoções, de seus anseios, de sua subjetividade, de
sua autonomia. Uma questão importante para esse entendimento é segundo o sociólogo
“quando, como e por que uma pessoa ou uma centena de pessoas decidem, individualmente, fazer uma coisa que foram repetidamente aconselhadas a não fazer porque
seriam punidas” Castells (2013, p.17). Em síntese, precisamos entender como esses indivíduos se formam em rede, primeiro mentalmente, de uns quererem se conectar aos
outros, por que são capazes de fazê-lo, num processo de comunicação que, em última
instância, leva à ação coletiva.
BREVE ANÁLISE E CONSIDERAÇÕES: COMPERJ
PELAS ONDAS DA INTERNET
Após busca no Facebook localizamos alguns perfis, comunidades e páginas
criadas automaticamente devido à procura dos usuários pelo Comperj. Contudo,
selecionamos para análise, o Comperj Online. Esta página é aberta e fomenta discussões e
compartilhamentos sobre o Comperj, assuntos relacionados a classe operária, construção
civil e metalúrgica. Ela é administrada por um colaborador, Militar Santos, conforme
declaração de autoria na Facebook. Apesar da página Comperj Online ter começado suas
atividades no final da greve, ela teve muita visibilidade por noticiar uma retrospectiva do
confronto que ocorreu durante a última assembleia realizada pelo sindicato da categoria.
Importante apontar também que outra página encontrada foi a Acorda Peão – uma
comunidade do Facebook, intitulada de Movimento de trabalhadores e trabalhadoras do
Comperj, independente, classista e combativo, de oposição à atual diretoria do Sinticom,
porém notamos poucas atualizações de conteúdo. O foco do conteúdo desta página versa
sobre o movimento da cozinha realizado pelas mulheres que trabalham no preparo da
alimentação dos trabalhadores. Os operários do Movimento Acorda Peão (MAP) contam
o apoio da Central Sindical e Popular (CSP- Conlutas).
3. Em nosso trabalho de conclusão de curso (monografia) defendido em 2005, discutimos as formas de
comunicação do MST.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência
Suelen de Aguiar Silva
Verificamos que a utilização do Youtube foi essencial para a divulgação dos fatos
ocorridos durante a greve e as manifestações. Os dispositivos citados foram analisados
num período que correspondeu, aproximadamente aos 40 dias de greve, de fevereiro
a março de 2014.
Durante a análise levamos em consideração os comentários, as fotos, os ícones, os
compartilhamentos e as curtidas dos seguidores da página Comperj Online no Facebook,
bem como os vídeos postados no Youtube. Não tivemos a pretensão de quantificá-los,
mas sim de buscar uma compreensão mesmo que de forma geral sobre os processos
comunicacionais oriundos desses funcionários, na linha do pensamento de Castells
(2013) sobre autocomunicação.
Para a análise dos vídeos postados no Youtube não criamos nenhuma categoria
pré-estabelecida, no entanto tomamos como norte algumas palavras-chave, tais como:
Comperj online 2014; Comperj 2014; Comperj; Greve no Comperj na busca pelos vídeos.
Utilizamos o próprio filtro disponibilizado pelo Youtube para facilitar a nossa busca,
selecionando os filtros Vídeo e Canal. A maioria dos vídeos postados são referentes
aos atos de manifestações e principalmente aquela ocorrida no dia 10 de março, dia em
que o sindicato convocou uma Assembleia. Revoltados cerca de 20 mil trabalhadores
lançaram guerra contra o governo, o sindicato e o Comperj.
A maioria dos vídeos analisados mostra um cenário degradante de fumaça, correcorre, gritaria, nervosismo, palavrões etc. Alguns títulos das postagens sugerem a
indignação dos trabalhadores, tais como: Manifestação dos trabalhadores do Comperj
2014. 37 Dias de greve; Greve continua no Comperj; confronto entre trabalhadores e
polícias no Comperj; Guerra no Comperj de Itaboraí 12mar2014, entre outros. Apesar
de estarmos atentos às visualizações, acreditamos não ser importante inclui-las aqui, já
que empreendemos às análises algum tempo depois do calor da greve e também como
já apontamos, não temos a pretensão de quantificar essas publicações.
Destacamos também dois canais que colaboraram em defesa dos funcionários, o
canal do Jornal A Nova Democracia (AND) e o canal da deputada Estadual Janira Rocha,
integrante do PSOL. No dia 15 de março o Jornal AND divulga em seu canal um vídeo
sobre a manifestação citada, cujo título é Greve do COMPERJ: “Sindicato ameaça e paga
para matar”.
No texto publicado junto ao vídeo, a AND relata que a última assembleia foi marcada
por intensos confrontos entre os trabalhadores, pistoleiros do sindicato e a polícia, que
deixaram várias pessoas feridas com tiros de munição letal.
Segundo os trabalhadores, o sindicato não os representa e até agora só tem servido ao patrão.
Diante da rejeição dos trabalhadores, o Sindicato da Construção Civil de São Gonçalo e
Região — que fatura até 1,5 milhão de reais por ano — começou a apelar à pistolagem para
seguir dirigindo as assembleias, de acordo com os operários (Youtube, 2014).
Neste vídeo, o Jornal AND com tom denunciatório entrevista um trabalhador, que
teve a sua imagem protegida. Ele reclama da falta de pagamento de salários e fala sobre
o papel do sindicato, sobre o fato de que eles deveriam ter uma representação grande
e alega que esse mesmo sindicato os abandonou. “Os próprios trabalhadores é que
começou o movimento de greve, o próprio trabalhador é que tava sendo massacrado
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência
Suelen de Aguiar Silva
dentro da empresa, dentro do Comperj por esse mesmo sindicato. Por que? Por que eles
elegem por conta própria os seus representantes [...], relatou o trabalhador.
Com obras atrasadas, empresas falindo, o Comperj, que era pra ser um audacioso
projeto de desenvolvimento social e urbano e de promoção de riqueza, tornou-se um
caos. Na fala da deputada Janira Rocha, em assembleia veiculada na TV ALERJ, “ele está
falindo a cidade de Itaboraí, ele está falindo aquela região, os consórcios de municípios
que num primeiro momento estavam dentro desse processo de construção” (Youtube,
2014). A deputada apontou ainda que o lado mais sensível, mais pobres são os operários.
E que dos 30 mil operários que trabalham no Comperj 50% não são do Estado do Rio de
Janeiro, são de outros estados, em grande maioria do nordeste brasileiro.
Já as análises na página do Facebook, o Comperj Online, nos indica que existe
um colaborar que pautava e ainda continua pautando os acontecimentos, bem como
dinamizando o processo, estimulando os trabalhadores, ex-trabalhadores a comentar
suas postagens. A maioria das postagens e imagens são relacionadas ao momento de
crise envolvendo o Comperj, as empreiteiras, os descontentamentos com sindicato da
categoria e a cobrança dos direitos dos trabalhadores, e principalmente, as demandas
dos trabalhadores.
Entre os principais portais de notícias como o G1 e o Estadão, no período da greve,
averiguamos críticas em relação ao Comperj. A matéria publicada pelo G1 na edição
do dia 07/04/2014 e exibida no Jornal Nacional intitulada “Empresas ligadas à obra do
Complexo Petroquímico do Rio atrasam salários e não pagam direitos trabalhistas”4,
retrata o cenário envolvendo o Comperj, suas empresas subsidiárias e seus colaboradores.
A participação do Jornal A Nova Democracia durante os protestos também foi
importante para dar visibilidade a luta dos trabalhadores, bem como a atuação da
Mídia Ninja. Em um vídeo relatam que foram impedidos de filmar às manifestações,
tendo o seu direito de comunicar violado naquele momento. Mesmo assim, relataram
parte da ação.
Outro momento importante da pesquisa foi a averiguação das formas de comunicação
desenvolvidas pelo Comperj, Petrobras, empreiteiras e do sindicato em busca de
respostas ou pronunciamentos em relação a greve de 40 dias. Não cabe aqui destrinchar
os resultados porque não é o intuito do trabalho, mas vale uma contextualização. Durante
o período analisado não constatamos nenhum tipo de pronunciamento da Petrobras na
rede, em sua página no Facebook, no site, tampouco no blog. Simplesmente a Petrobras
e as empreiteiras não respondiam aos comentários dos funcionários, preferiram não
comunicar. Não localizamos em seu site espaço para esclarecimentos, mas continuava
a postar notas, informações e publicidade sobre suas boas ações, projetos sociais etc
na tentativa de maquiar o momento de crise, maquiar a revolta e a indignação dos
trabalhadores.
O Comperj não possui site, blog, tampouco rede social digital. No site da Petrobras
existe uma página (aba) com informações sobre o Complexo, porém não recebe atualização
de conteúdo. Nesta página, além do conteúdo institucional, existe um boletim online.
4. Matéria veiculado no G1, edição do dia 07/04/2014 disponível em <http://g1.globo.com/jornal-nacional/
noticia/2014/04/empresas-ligadas-obra-do-complexo-petroquimico-do-rio-atrasam-salarios-e-nao-pagamdireitos-trabalhistas.html>
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Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência
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Este mesmo boletim é distribuído esporadicamente nas comunidades no entorno do
Complexo.
Já o Sinticom - Sindicato dos trabalhadores da indústria da construção civil e pesada,
montagem e manutenção Industrial, de São Gonçalo, Itaboraí e região - publicava em
seu site notícias sobre a situação da greve, bem como noticiava as sus próprias ações e
informações relacionadas ao andamento das negociações com as empreiteiras. E algumas
vezes, levantam bandeiras de estimulo aos funcionários.
Sendo assim, não diagnosticamos estratégias para o gerenciamento da crise ocorrida
no Comperj, mas pudemos sintetizar os resultados do seu silenciamento. Greve. Protestos,
manifestações e demissões. Resistência. Uma comunicação autônoma via corpo a corpo,
compartilhamentos de informações postadas, discussões fomentadas pelos trabalhadores
a partir do tema da postagem, a fim de se organizarem, de compartilham seus pontos de
vista, por vezes, divergentes quanto algumas demandas. Alguns favoráveis às ações do
sindicato, outros querendo derrubá-lo. Uma comunicação autônoma forjada no interior
dos ônibus a caminho do canteiro de obras, nos protestos registrando e compartilhando
suas ações. Os trabalhadores fizeram uso das redes sociais para colocar a boca no
trombone sobre as demissões e falta de pagamento de salários. De acordo com Bueno
(2014, p. 120) “a comunicação democrática requer menos logística e mais diálogo, menos
engenheiros de precisão e mais transparência”.
Após mais de 40 dias de greve, o Sinticom, pressionou os trabalhadores, e sem
alternativa eles decidiram pelo fim da paralisação. A greve foi derrotada em função do
não apoio do sindicato aos trabalhadores, simplesmente de forma verticalizada decidiram
que os funcionários deveriam acatar o aumento de 9% do salário e o não desconto dos
dias de greve (contra os 15% de aumento e R$ 500, 00 de Sodexo - cartão alimentação
que os trabalhadores reivindicavam), sendo estas as últimas possibilidades apontadas
pelo sindicato, quem comentou publicamente a esse respeito e fez críticas severas foi
a deputada Janira Rocha. Mesmo não tendo a reinvindicações atendidas a altura, os
trabalhadores suspenderam o movimento grevista e voltaram às suas atividades, mas
a luta continuou. Serviu também para demarcar a atuação dos trabalhadores enquanto
movimento sem liderança. Movimento que aconteceu nas mentes, nas redes via celulares
conectados à internet com mais repercussões nas ruas tempos depois.
Logo depois da greve de 40 dias, os funcionários fizeram novas paralisações e
continuaram usando a rede para fomentar discussões e reclamar sobre o descaso das
empresas contratantes. As reclamações são inúmeras, dentre elas, o silenciamento das
empresas terceirizadas, do sindicato e, especialmente, do Comperj.
Um ano após o ocorrido, acontece um processo de demissão em massa devido à
crise da Petrobras – a partir da investigação sobre corrupção, iniciada também há um
ano, com a Operação Lava Jato, renúncia de diretores, fraude em licitações, falência de
empreiteiras, o atraso nas obras do complexo. Aproximadamente há quatro meses 3.000
funcionários de uma das empreiteiras investigadas na Operação Lava Jato estão com
salários atrasados, vivendo em condições de miséria e vulnerabilidade, alguns nas ruas.
No canteiro de obras do Comperj só restaram 300 trabalhadores, atingindo de forma
avassaladora suas vidas.
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O Comperj é o maior investimento individual de toda a história da Petrobras,
contabilizando mais de US$ 8, 4 bilhões, ou seja, esse valor seria suficiente para a
construção de aproximadamente três refinarias do porte da Refinaria de Duque de
Caxias - Reduc. Hoje, é um fantasma para os moradores, para a maioria dos pequenos
comerciantes da região do entorno do Comperj e principalmente para aqueles homens e
mulheres que trabalham no canteiro de obras para levar para suas casas o alimento, para
ter o direito de ir e vir. Todavia, enquanto esse movimento e muitos outros, estiverem
em movimento, descasos, desmandos, esquemas de corrupção virão à tona. É apenas a
pontinha do iceberg. E a autocomunicação tem favorecido a luta pelo direito a democracia
comunicacional e a consciência de que ter direitos precisa ser exercida na prática.
Em contrapartida, o cenário das manifestações de junho de 2013 permite um olhar
atento para as reinvindicações da classe trabalhadora do Comperj. Indignados, buscam
por meio de mobilizações na internet mecanismos, dispositivos que dê visibilidade em
seus discursos e os auxilie na luta por melhores condições de trabalho, pagamento de
salários atrasados etc. Tais trabalhadores colocaram a boca no trombone, ou melhor, nas
redes sociais digitais, buscando visibilidade para demandas específicas. O que os motiva
é um sentimento de revolta, descontentamento e indignação contra a conjuntura atual.
Na primeira parte do texto apontamos categorias explicitadas por Gohn (2013; 2014),
para situar os novos movimentos sociais, são elas: redes e indignados. O movimento
de trabalhadores do Comperj aponta, mesmo que de forma provisória, para essas duas
categorias.
Interessante que a comunicação não acontece só via computadores e internet, os
funcionários utilizaram durante os protestos de 2014 celulares, smartphones, num registro
instantâneo do individual e do coletivo. Fazendo ponderações sobre as manifestações de
junho de 2013 no Brasil, Gohn (2014, p.141) diz que “os celulares e as diferentes formas
de mídia móvel passaram a ser meios de comunicação básicos, o registro instantâneo de
ações transformou-se em arma de luta, ações que geram outras ações como resposta”.
Exatamente como na passagem anterior, é o que se percebe neste movimento em rede e
de indignados do Comperj. Além do Facebook e do Youtube, utilizam a ferramenta Zello,
um aplicativo gratuito que realiza e recebe ligações por meio da internet, uma espécie
de rádio. Assim, com mais este canal os funcionários se mobilizavam e articulavam suas
demandas. Atualmente o administrador da página do Comperj Online no Facebook
disponibilizou um contato via WhatsApp, mais uma ferramenta para colaborar com a
luta os trabalhadores.
Novos dispositivos em sintonia com a boa e velha rádio peão. Num encontro do
canteiro de obras com as redes online acontece a autocomunicação. Por um lado, os
trabalhadores almejam visibilidade por meio da internet, mesmo que não tenham
respostas efetivas das empreiteiras, do sindicato e tampouco do Comperj, pelos mesmos
canais. Por outro, se fazem ouvir e compartilham entre si suas demandas, suas opiniões.
O Comperj Online parece ser reflexo da rádio peão, agora uma rádio sintonizada pelas
ondas da internet.
No entanto, mais do que categorizar manifestações, ações coletivas, mobilizações,
protestos, movimentos sociais na era da internet, é importante buscar uma compreensão
sobre o momento atual, seja na política, na economia, na cultura, na comunicação, na
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Comunicação no Comperj: um canteiro de conflitos e resistência
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vida cotidiana. Momento este, marcado pelo desejo e devir dos sujeitos que se movem
nas redes e nas ruas, num espaço híbrido conforme Castells (2013). Porém, uma coisa
é certa, os atores sociais estão mudando e a mudança começa na mente, com o desejo
de formar redes. Tais redes não dizem respeito somente às redes que se formaram e se
formam na internet, mas a rede complexa de atores sociais, cada qual, com sua luta em
busca do bem comum. Difícil nomear os últimos acontecimentos no Brasil e no mundo,
difícil nomear, categorizar a classe trabalhadora do Comperj, talvez até mesmo o conceito
de classe precisaria ser repensado na atual conjuntura. Todavia, redes e indignados
parecem mesmo servir, provisoriamente, aquilo que dá corpo, alma, autonomia e põe
em movimento centenas, milhares de pessoas. E a autocomunicação parece gerir esse
movimento no canteiro do Comperj em meio à conflitos e resistência.
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Ato comunicativo nas “jornadas de junho”?
O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo
The communicative act in the “jornadas de junho”?
The MPL, the mainstream media and the Executive Branch
K e i l a C . G. R o s a 1
Resumo: Em junho de 2013, manifestações tomaram as ruas do país. Um fenômeno
que não se via há mais de duas décadas, desde os “caras pintadas”. Nas recentes
manifestações, organizadas pelo Movimento Passe Livre, protestava-se contra o
aumento da tarifa do transporte público, mas novas reivindicações surgiram e o
número de adeptos ao movimento cresceu. Com o caso em tela, o objetivo deste
trabalho foi explorar a atual ambiência comunicacional da internet, por meio
de um estudo exploratório sob a luz do ato comunicativo de três atores: o MPL/
SP, a grande imprensa e o Poder Executivo. Para tanto, foram analisadas suas
respectivas atuações durante as Jornadas de Junho, em seus esforços nas redes
sociais digitais, para divulgar seus pontos de vista relativos ao fenômeno que
se vivia. As impressões obtidas foram que as manifestações tiveram relevância
para o MPL/SP, devido à vasta visibilidade alcançada. Para a grande imprensa,
os fatos tiveram elevado valor noticioso. Nas instâncias governamentais, houve
pouco espaço dado às manifestações.
Palavras-Chave: Jornadas de Junho. Manifestações sociais. Imprensa. Redes
sociais. Internet.
Abstract: In June 2013, demonstrations took to the streets of the country. A
phenomenon not seen for more than two decades, since the “caras pintadas”.
In the recent demonstrations, organized by the Movimento Passe Livre, the
protesting was initially against the increase in public transport fare, but new
claims arose and the number of adherents to the movement grew. With this case
in question, the objective of this study was to explore the current communication
ambience of the internet, through an exploratory study in the light of the
communicative act of three actors: the MPL/SP, the mainstream press and the
executive branch. Therefore, their respective performances were analyzed during
the June Days, in their efforts in digital social networks to disseminate their
views on the phenomenon that was lived. The obtained impressions were that the
demonstrations had relevance to the MPL/SP, due to the vast achieved visibility.
For the mainstream media, the facts had high value news. In government bodies,
there was little space given to the demonstrations.
Keywords: Journeys of June. Social events. Media. Social network. Internet.
1. Mestranda em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB). [email protected]
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Keila C. G. Rosa
INTRODUÇÃO
UPONHA QUE o articulista de um importante jornal publicasse o seguinte trecho
S
em seu artigo de domingo:
(...) um novo estilo de mobilização e contestação social, bastante diferente da prática política
da esquerda tradicional, (...), pegando a crítica e o próprio sistema de surpresa e transformando a juventude, enquanto grupo, num novo foco de contestação radical. O que estava
acontecendo? Falava-se de uma nova consciência, de uma nova era, enfim, de novos tempos.
De que ‘tempos’ estamos falando? Se a publicação não datasse de 1986, escrita em
livro pelo Prof. Carlos Pereira, poderíamos dizer que o trecho acima referia-se aos acontecimentos de junho de 2013 no Brasil. No entanto, a descrição do professor é parte de
um texto que discutia outra época, os anos 1960. Período em que “inúmeros analistas
afirmaram que houve uma grande revolução cultural e comportamental nos costumes e
hábitos de uma geração que estava muito além de seus pais e antepassados, no sentido
de anseios por um novo modo de vida” (GOHN, 2013, p.13).
Do mesmo modo, junho de 2013 tem sido tratado como um marco, por constituir-se em fenômeno inesperado, que levou mais de um milhão de pessoas às ruas em um
único dia. As manifestações ficaram conhecidas como Jornadas de Junho. O fenômeno
iniciou-se a partir da demanda pública pela revogação de aumento da tarifa do transporte urbano na capital paulista, mas rápido transformou-se em algo maior e as razões
passaram a ser muitas.
O assunto tem demandado muita reflexão nas ciências sociais, porquanto pode
significar uma transformação na cultura política, ensejando novas experiências aos
atores sociais no modelo político representativo do Brasil republicano. No campo da
comunicação, com foco nas modernas tecnologias da comunicação e com referências ao
agir comunicativo pensado por Habermas, a nossa intenção é alimentar o discurso em
torno da pergunta: como comportaram-se o poder executivo, o Movimento Passe Livre e
imprensa tradicional frente às manifestações populares? Assim, este trabalho pretende
realizar um estudo exploratório, a partir de interações nas redes sociais digitais e na
mídia realizadas por três atores das Jornadas de Junho. De outro modo, pretende-se
avaliar como estes atores se utilizaram-se de argumentos para externar seus pontos de
vista relativos ao fenômeno vivido.
Por se tratar de atores com perfis e atuações díspares na sociedade, constituímos
um corpus de estudo que especifica os meios, no intervalo de dias entre 5 e 20 de junho
de 2013. Para vislumbrar as abordagens do MPL/SP em face do evento, exploramos o
seu perfil no Facebook e o site da organização. A imprensa foi examinada a partir dos
jornais Folha de São Paulo (Folha) e O Estado de São Paulo (Estadão) e da TV Globo.
E para observar a visão do Poder Executivo, consideramos os portais na internet da
Prefeitura e do Governo Estadual de São Paulo, além dos perfis de Fernando Haddad
e Geraldo Alkmin no Facebook.
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
Em junho de 2013, alguns atores sociais foram protagonistas, na ambiência comunicacional na internet, durante as Jornadas de Junho. Pensando na relação que estes
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atores protagonizaram junto à sociedade, que por sua vez participou nas ruas e nas
redes sociais on line, buscamos aproximar esta interação com a teoria do agir comunicativo de Habermas.
O conceito do agir comunicativo traz em seu bojo a interação com o outro, onde, a
partir do ato de fala, utiliza-se da prática argumentativa para chegar a um consenso.
Neste caso, nos atos de fala “os conteúdos associam-se a pretensões de validade e fundamentam relações intersubjetivas que constituem realidades sociais factuais, que podem
ser empiricamente conferidas” (LEO MARR, 2014, p.15). Podendo o ouvinte contestar os
argumentos que não atendem os aspectos de validade do ato falado, sendo que “o significado de cada ato de fala não pode ser desconectado do complexo horizonte de sentido
do mundo da vida; ele permanece entrelaçado com o saber de fundo, intuitivamente
presente, dos participantes da interação” (HABERMAS, 2000, p. 485).
Desta forma, o estudo habermasiano retrata ainda duas categorias importantes para
entender o agir comunicativo. A primeira, trata-se de um ‘mundo objetivo’ relacionado a um agir estratégico e movido pelos interesses individuais, sobretudo econômico
propícia à coerção entre os atores da fala, o que elimina a ideia de consenso. A segunda
categoria é o ‘mundo da vida’, constituído por um “saber intuitivo ao qual se domina
por viver numa mesma cultura e compartilhar uma mesma experiência. Ele é um pano
de fundo de coisas desde sempre sabidas que torna possível a comunicação entre os
falantes”. Este último, para o autor, é condição para o agir comunicativo.
Todos estes conceitos levantados por Habermas tornam-se importantes para percebermos a validade do agir comunicativo, ou mesmo a existência dele, na interação
dos atores sociais que estiveram no cerne das manifestações que aconteceram em São
Paulo em junho de 2013.
Atrelado ao nosso trabalho, ainda levamos em consideração o conceito de redes
sociais por Recuero (2014, p. 403) onde “as redes socais são estruturas que representam
processos de conversação, fluxos de informações e seus reflexos no campo social”. Entendendo que o processo de conversação é um modo de interação que permite interlocutores
utilizarem-se do ato da fala para concretizar a relação nas redes e também nas ruas.
Não menos importante para pensar o ato comunicativo a partir das redes sociais
on line, o conceito de ‘interação’ permite vislumbrar os atos de fala relacionados aos
atores sociais presentes neste estudo. Neste sentido, optamos pela definição proposta
por Thompson (2014, p. 119), que antes de mais nada relembra que
“Durante a maior parte da história humana, a grande maioria das interações sociais foram
face a face. Os indivíduos se relacionavam entre si principalmente na aproximação e no
intercâmbio de formas simbólicas, ou se ocupavam de outros tipos de ação dentro de um
ambiente físico compartilhado”
No entanto, hoje na era da sociedade da informação, com “o desenvolvimento dos
meios de comunicação cria novas formas de ação e de interação e novos tipos de relacionamentos sociais” (THOMPSON, 2014, p. 119). Sendo assim, o autor divide a interação em
três formas distintas, de acordo com o meio de comunicação utilizado. A primeira forma
é a interação ‘face a face’, onde é compartilhado o mesmo espaço físico durante a troca
simbólica. De outra forma, há um diálogo presencial. Em seguida, temos a ‘interação
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mediada’, ou seja, necessita-se de recursos técnicos para que o diálogo se materialize,
como por exemplo, em nosso caso de estudo, o computador e a internet, sobretudo
pelos sites de redes sociais, dentre outros dispositivos comunicacionais. E por último,
a ‘quase-interação mediada’, também colocada em tela por meio da imprensa. Neste
caso a autor defende ser uma mediação ‘predominantemente de sentido único’. Porém,
permite um “certo tipo de situação social na qual os indivíduos se ligam uns aos outros
num processo de comunicação e intercâmbio simbólico” (THOMPSON, 2014, p.122).
Desta forma, entendemos que veículos de comunicação como a TV e o jornal, também
são meios que permitem a interação entre atores, por isso, nosso olhar sobre eles. Além
disso, com a disponibilidade do conteúdo jornalístico em dispositivos móveis e com
as ferramentas de comunicação disponíveis por meio da conectividade, proporcionada
pela internet, estes meios de comunicação deixam de estar em um ambiente monólogo
da comunicação mediada. Em nosso entender, as novas tecnologias da comunicação
permitem a interação e a uma troca simbólica regrada por normas sociais com a pretensão de validade, seja ela mediada ou quase-mediada.
Nessa esteira, no campo da imprensa, bebemos na fonte de Park (2008, p.51) para
pensar o resultado de uma interação, onde tomamos que
“A notícia, como algo que faz as pessoas falarem, tende a possuir o caráter de um documento
público e está limitada de um modo característico a eventos que causam mudanças súbitas
e decisivas. (...) A função da notícia é orientar o homem e a sociedade no mundo real”.
Desta forma os acontecimentos compartilhados, durante as Jornadas de Junho, e
construídos por uma sociedade envolvida no diálogo, podem ser consequências do agir
comunicativo frente uma possível transformação na cultura política, ensejando novas
experiências aos atuais atores sociais.
O Movimento social
Ao que tudo indica, as Jornadas de Junho, inicialmente, tiveram, como protagonista,
o Movimento Passe Livre - São Paulo (MPL/SP), um movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente. O movimento social caracteriza-se por um modelo
de organização ativa, designada a atuar no campo político e social em nome de seus
princípios, que, em regra, utiliza meios não institucionalizados em grande escala para
resistir ou produzir mudanças sociais. Na maioria das vezes, este modelo de instituição
tem como tática a realização de manifestações massivas, boicotes, podendo, às vezes,
agir com violência. (RODRÍGUEZ, 2003, p. 241).
Com o olhar sobre as interações via página oficial do MPL/SP na internet e em seu
perfil no Facebook, fizemos aqui, uma descrição não linear dos fatos, mas seguindo
uma cronologia que permitisse enxergar um panorama da comunicação em torno das
manifestações.
Desta forma, em 5 de junho de 2013, um grupo de estudantes e alguns intelectuais2
se reuniram, em evento público, com objetivo de debater os problemas de mobilidade
2. Foram convidados, como debatedores, o Prof. Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da UNICAMP,
o Prof. José Arbex Jr., da PUC-SP e representantes da União dos Movimentos de Moradia (UMM).
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urbana da cidade. Tratava-se de um de encontro organizado pelo MPL/SP. Chamou-nos
a atenção, além da participação de pesquisadores acadêmicos, a interação feita por meio
das redes sociais digitais, com o intuito de mobilizar pessoas para o encontro. Observamos, todavia, a página deste evento no Facebook, onde os dados demonstram que 4,2
mil pessoas foram convidadas e dentre elas 209 confirmaram presença e 165 sinalizaram
como “talvez”. Naturalmente, os modernos dispositivos móveis de comunicação, como
celulares smartphones, notebook e tablets, conectados em rede, facilitaram a convocação
e mobilização, não apenas pela mobilidade e fácil acesso, bem como pela questão de
tempo e espaço diminuídos pelas tecnologias disponíveis.
Já em 6 de junho de 2013, aconteceu um protesto contra o aumento das passagens
de ônibus na capital paulista. O protesto foi chamado de 1º Grande Ato pelos organizadores. Apesar da denominação, as manifestações que reivindicavam melhoras nas
condições de mobilidade urbana não tiveram início em junho de 2013, como recordou
Erica de Oliveira, membro do MPL/SP em entrevista à Revista Caros Amigos (2013)3.
Ainda foi possível tomar conhecimento de que em outras cidades, como Taboão
da Serra/SP e Porto Alegre/RS, também houve reajuste na tarifa do transporte público
e que, através de protestos e manifestações sociais, a população conseguiu a revogação do aumento das passagens. Em consequência, no entendimento do MPL/SP, se
em tais cidades a demanda foi atendida, logo, em São Paulo a reivindicação também
poderia ser.
Outras informações disponíveis revelaram alguns eventos que ocorreram antes do
dia 6 de junho. Acreditamos que essas ocorrências faziam parte da estratégia do MPL/
SP para interagir com outros atores políticos que reconheciam a luta do movimento
como legítima, configurando competência interativa e demonstrando aptidão discursiva
e comunicativa. Para ilustrar, uma reunião pública realizada na Câmara Municipal de
São Paulo, no dia 27 de maio, organizada pelo Diretório Municipal do PSOL, convidou
o MPL/SP. A pauta da reunião envolvia temas como plano de mobilidade para a cidade,
aumento das tarifas e renovação dos contratos de concessão com as empresas de ônibus. Outro evento foi um ato de vigília contra o aumento da passagem que aconteceu
em frente à prefeitura de São Paulo, no dia 28 de maio. Ocasião em que, mais uma vez,
destacamos o uso das redes sociais digitais para o chamamento. Os organizadores
criaram uma página do evento no Facebook e convidaram simultaneamente 26.800
pessoas, das quais 1.100 confirmaram a participação e 794 se manifestaram indecisos.
Neste caso, o MPL/SP foi convidado a apoiar o evento. Em paralelo, desde o dia 12 de
maio, circulavam nas redes sociais as intenções do MPL/SP em ‘parar’ a cidade no dia 6
de junho. O fato estava explícito em sua página na internet em uma peça de divulgação:
“Se a tarifa aumentar, São Paulo vai parar!”. Tratava-se de mais uma peça na estratégia
de mobilização para o primeiro grande ato.
3. Segundo ela, o MPL desenvolve trabalhos de base desde 2005. Para outro membro: “As revoltas de
junho de 2013, desencadeadas pela luta organizada pelo MPL/SP contra o aumento das tarifas, não são
algo inteiramente novo. Para começar a compreender esse processo é preciso que voltemos a, no mínimo,
2003, quando, em resposta ao aumento das passagens, iniciou-se em Salvador uma série de manifestações
que se estenderam por todo o mês de agosto daquele ano, que ficou conhecida como a Revolta do Buzu.”
(MPL/SP, 2013).
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No mesmo sentido, durante os protestos do 1º Grande Ato, verificou-se que membros do MPL/SP interagiam com seus seguidores virtuais em sua página no Facebook.
As falas publicadas no espaço aberto ao público diziam: “Um passeio pelo centro não
revoga o aumento!”, “São Paulo começa a parar!” e “23 de Maio tomada pela população!”.
Para ilustrar a intensidade desta interação nas redes sociais on line, levantamos alguns
números. Uma imagem do ato, publicada durante o seu acontecimento, foi compartilhada por 246 pessoas, ou seja, recebida e multiplicada na rede centenas de vezes por
(inter) locutores, demonstrando concordância com a mensagem. Mais, neste dia, oito
mensagens, resultaram em 1.583 curtidas, 149 comentários e 975 compartilhamentos.
Muito importante, portanto, foi a interação em tempo real, compartilhada por quem
era a própria notícia. Estes números auxiliam no estudo da competência interativa do
movimento social.
Dando sequência, no dia 7 de junho, as trocas de mensagens, sobre as ocorrências do
protesto do dia anterior, aconteceram de maneira vasta pelas redes sociais. E também na
grande imprensa (comentaremos à frente). O conteúdo das falas que se destacavam era a
violenta ação policial sobre os manifestantes, um público que, segundo MPL/SP, alcançava
cinco mil pessoas. Interessante foi observar que, aproveitando a cobertura jornalística dos
grandes veículos de comunicação, o MPL/SP convocou uma nova manifestação. A ação
foi coroada de êxito, uma vez que, a grande visibilidade dada ao movimento, multiplicou
o poder de mobilização através dos sites de redes sociais. Assim, mais uma vez, o fluxo
de conteúdo na página do MPL/SP no Facebook cresceu. Ao considerarmos os números
de interações no primeiro e no segundo dia de protesto, ou seja, entre os 6 e 7 de junho,
notamos o crescimento de 423,7% em compartilhamento de mensagens.
Após os eventos de 5, 6 e 7 de junho, houve uma rápida difusão das notícias sobre
as manifestações e a ausência de resposta por parte dos governos Estadual e Municipal. Nesta perspectiva o MPL/SP mudou seu discurso nas redes e o ato de fala vinha
acompanhado da mensagem: “amanhã vai ser maior”. Logo, as manifestações não se
expandiram só pelas ruas, elas se proliferaram também pelas redes digitais. O número
de adeptos aos protestos crescera. Ao que tudo indica, fruto de interações sociais, com
mútuos interesses.
Em suma, foram sete atos organizados pelo MPL/SP na capital. O último aconteceu
dia 20 junho, logo após o anúncio da revogação do aumento da passagem. Após esta
data, o MPL/SP retirou-se da arena, mas outros protestos persistiram, porém com pautas
e demandas que não eram comuns às do movimento.
De forma breve, o levantamento dos acontecimentos das Jornadas de Junho nos
permitiu observar que havia um ambiente comunicacional diferente dos movimentos
sociais passados. Este ambiente está formalizado no espaço virtual, marcadamente em
sites de redes sociais que atuaram como suporte para as interações que constituem as
redes sociais (Recuero, 2014, p.103). Observando essas ideias, cabe perguntar se estamos passando por uma mutação nos processos comunicativos e, como reflexo, novas
experiências políticas estão sendo experimentadas? Como afirma Virilio (1996, p. 15),
“(...) ninguém ignora que a capacidade de comunicar é para o homem, como para toda
espécie viva, a condição indispensável de seu estar no mundo, ou seja, de sua sobrevivência” e os eventos de junho sugerem que essa capacidade foi alterada e potencializada.
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A GRANDE IMPRENSA E O FENÔMENO DAS RUAS
Consideramos a cobertura midiática de acontecimentos com vasto valor social,
como foram as Jornadas de Junho, importante no que tange as mediações e interações
do evento com uma coletividade. Neste sentido, tem relevo a imprensa, considerada
quarto poder diante de um Estado democrático, devido a sua posição de ‘contra poder’
exercido quando abusos ofendem os demais poderes legítimos da democracia: Executivo, Legislativo e Judiciário. No caso do Brasil, o quarto poder está concentrado em
grandes, porém, poucos grupos privados. Esta imprensa tradicional formada por estes
poucos grupos vem desempenhando um papel importante de formador da opinião
pública. Além disso,
“O jornalismo se constitui como lugar de articulação de discursos sociais, com base no
diálogo de interesse público e, consequentemente, agente mediador entre o mundo dos
fatos e a instância da recepção” (DALMON, 2010, p.216)
Assim sendo, nossa investigação observou à forma de interação da imprensa e o
uso das funções de linguagem: representativa, interativa e expressiva. O estudo focou
os telejornais da Tv Globo, além dos jornais Folha e Estadão, por serem veículos de
comunicação de maior audiência na capital paulista. Para observar de perto, destacamos
algumas publicações da imprensa, enquanto locutor no processo de interação, neste
caso, a ‘quase-interação’.
Com relação ao 1º Grande Ato, por exemplo, o noticiário nacional na TV falou:
“Em São Paulo, manifestantes que protestavam contra o aumento no preço das passagens de ônibus entraram em confronto com a polícia, na noite desta quinta-feira (6), na
Avenida Paulista.” (JN, TV Globo, 6/06/2013). E na Folha, a mensagem em destaque na
capa era: “Protesto contra o aumento de ônibus tem confronto e vandalismo em S.P”
(Folha de S. Paulo, Cotidiano, 7/06/2013). Além destes destaques, um comentário sobre
as manifestações, feito pelo apresentador do telejornal Bom Dia SP (TV Globo), causou
polêmica nas redes sociais e também virou notícia. Ou seja, uma notícia virou notícia,
pois sua mensagem foi contestada em sua verdade. Uma publicação no portal Folha
noticiava o problema:
(...) ao vivo, a jornalista Patrícia Bringel explicou que alguns manifestantes já estavam liberados após pagarem fiança, com valores que variavam de um salário mínimo até R$ 3 mil.
Ao fim da explicação, o apresentador se manifestou: ‘Alguns deles não tem R$ 3,20 ou 20
centavos a mais para pagar a passagem de ônibus, mas têm R$ 3 mil para pagar a fiança.’
(...) Alguns internautas reclamaram do comentário, mas houve quem elogiasse. Em sua
conta no Twitter, Bocardi agradeceu um internauta que achou a frase “sensacional. (Folha
de S. Paulo, online, F5, 7/06/2013)
E nessa esteira, outro jornal local, enfatizava a situação dos protestos como:
A manifestação deixou rastro de destruição e sujeira na Avenida Paulista. Ato organizado
por estudantes critica o aumento das passagens do transporte público. Movimento Passe
Livre (MPL/SP) promete fazer novo protesto nesta sexta-feira (7) em Pinheiros. (SPTV, TV
Globo, 2013)
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Também, no primeiro dia de protesto, um jornal impresso afirmava na capa: “Protesto contra tarifa acaba em depredação e caos em SP: manifestantes fecharam avenidas,
invadiram shopping e deixaram rastro de destruição” (O Estado de São Paulo, Capa,
7/06/2013).
Diante do posicionamento negativo da grande imprensa, frente aos acontecimentos,
o MPL/SP divulgou uma nota de esclarecimento, informando que as cinco mil pessoas que participavam do evento, saíram em caminhada pelas ruas da cidade de forma
pacífica e foram surpreendidas por forte repressão policial (com armas e bombas), o que
provocou revolta e violência. E reforçou: “As imagens dessa repressão brutal podem ser
vistas em toda a imprensa e em vídeos nas redes sociais” (MPL/SP, 2013).
No segundo dia de protesto, 7 de junho, a mensagem na TV era: “Protesto contra
aumento de passagens causa nova confusão em São Paulo” (JN, TV GLOBO, 07/06/2013).
E, pelo segundo dia consecutivo, as manifestações ganharam a capa dos principais
jornais da capital paulista. O Estadão destacou: “Protesto fecha a Marginal e a lentidão
chega a 226 km” e no primeiro caderno publica uma entrevista exclusiva com o prefeito
sob o título: “Haddad vai pedir ajuda de Dilma para baixar passagem”. A partir destas
mensagens e analisando a reação dos interlocutores nas redes sociais, percebemos que
a ação da imprensa pode ser considerada coerciva, ao levarmos em consideração os
desencontros das trocas simbólicas por meio do ato de fala dos principais atores.
No dia 10 de junho, o MPL/SP resolveu contrapor-se à imprensa. O movimento
divulgou uma segunda nota, desta vez, com o intuito foi informar sobre as prisões que
ocorreram no primeiro grande ato, já que a grande imprensa não estava sendo claro em
suas declarações e nem se aprofundava nas verdadeiras questões sociais das manifestações. A visão do MPL/SP era reforçada pelas interações do movimento com seus ativistas
no Facebook, onde uma ativista trouxe para o cenário a seguinte fala: “Precisamos nos
unir para dar notícias verdadeiras, porque, para a imprensa, não passam de baderneiros”.
Em seguida aconteceu o 3º Grande Ato, dia 11. O Jornal Nacional narrou: “Houve
tensão e confronto na região central. Os lojistas fecharam suas portas e ficaram com
muito medo. A polícia reagiu com bombas e gás... tropa de choque se posicionando para
enfrentar a 3ª manifestação do MPL/SP (...)” (JN, Tv Globo, 2013). Neste dia, a emissora
dedicou o tempo de 1 minuto e 33 segundos ao assunto com cobertura ao vivo. O editorial da notícia era: “(...) os manifestantes usaram barricadas. Um grande número de
policiais foi chamado para o local do protesto. Durante a tarde desta terça (11) houve
confrontos e tumulto.” (JN, 11/06/13). Apenas para contextualizar, neste dia, jornalistas
e ativistas foram detidos pela polícia e houve mais de 100 feridos. Bens públicos e privados sofreram danos (GOHN, 2014, p. 27).
No dia seguinte, as manifestações receberam ainda maior atenção da imprensa. O
Jornal Nacional dedicou 03 minutos e 28 segundos ao tema. No discurso da emissora,
a ideia de que atos de vandalismo tomavam conta da manifestação: “o protesto que
começou com manifestantes caminhando ao lado de policiais, virou uma batalha nas
ruas (...) em menos de uma semana foi o terceiro e mais violento (...)” (JN, 12/06/2013).
Nesta perspectiva, concordamos com Gohn (2014), quando afirma que as manifestações
passaram por um momento de desqualificação e descaso. Além disso, na interpretação
da autora, “a criminalização dos movimentos foi a forma mais fácil que muitos dirigentes
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encontraram para responder à situação e revelar também um desconhecimento dos fatos
que estavam se articulando” (GOHN, 2014, p. 22).
Após 13 de junho, as imagens da violência estampadas nas capas dos jornais e
revistas, encontravam-se enquadradas de forma diferente em relação aos primeiros
protestos. Uma imagem brutal foi publicada, onde uma repórter aparece com um tiro
de bala de borracha no olho (Folha de S. Paulo, Capa, 14/06/2013). Outra foto destacada, que nos permite perceber a mudança de enquadramento da imprensa, foi a de um
casal que estava em um bar na Avenida Paulista e foi brutalmente expulso do local pela
polícia. Para a imprensa, naquele momento, a polícia foi protagonista da violência nas
manifestações, diferente do que vimos nas notícias anteriores. Diante da alteração da
postura da imprensa, questionamos sua função social, marcadamente na ambiência
comunicacional. Ressalta-se, porém, que “é inegável que ela desempenha claramente
um papel-chave na batalha para ganhar os corações e mentes dos segmentos sociais
que, no Brasil ao menos, formam o que se chama opinião pública” (ROSSI, 2007, p.8). De
qualquer forma, houve forma coerciva na comunicação. Houve um interesse obnubilado
nas interações da imprensa com seu público, que não o senso comum.
Avançando para os estudos das notícias do quinto ato, 17 de junho, foi divulgado
que 50 mil pessoas se reuniram em frente na Praça da Sé (Centro) e saíram em protesto
pela cidade. O Jornal Nacional (JN), logo após o seu usual boa noite, iniciou o programa da seguinte forma: “Depois de uma segunda-feira histórica marcada por protestos
pacíficos na sua imensa maioria, manifestantes voltaram às ruas de diversas cidades
brasileiras hoje” e continuou, “(...) no início da noite houve um tumulto em frente a Prefeitura promovido por uma minoria mais exaltada” (JN, TV Globo, 18/06/2013). Diante
disso, só em 19 de junho, os governos municipal e estadual de São Paulo anunciaram a
revogação do aumento das passagens.
Em suma, no início das manifestações, a imprensa se comunicava com tom de
reprovação, retratando o ocorrido como atos de vandalismo, sem se aprofundar nas
questões que levaram tantas pessoas às ruas da cidade. Depois posicionou-se favoravelmente ao movimento, apoiando os protestos, alterando sua fala e posicionamento
argumentativo sem motivo claro.
A PRESENÇA GOVERNAMENTAL NA INTERNET
A busca pela presença governamental na internet tem intenção de enriquecer o debate
na ambiência comunicacional em torno das Jornadas de Junho. Ajuda ainda, a vislumbrar
como as instituições usaram os recursos disponíveis na rede mundial de computadores
para interagir com a sociedade durante as manifestações como meio de comunicação.
Desta forma, visitamos as páginas oficiais na internet do Governo de Estado e da Prefeitura de São Paulo. Acreditamos que estes estudos exploratórios podem oferecer pistas
sobre a presença do ato comunicativo destas instituições nas manifestações.
A Prefeitura
Sobre a Prefeitura, exploramos primeiramente, no que consideramos ser o meio de
comunicação oficial da instituição, o Portal www.capital.sp.gov.br. E para nossa surpresa
não encontramos relatos sobre os eventos de junho de 2013. Para chegar a esta conclusão
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utilizamos o mecanismo de busca, disponibilizado na página principal do Portal. Buscamos informações por meio do indexador ‘junho 2013’. Continuamos a busca, desta vez
por meio do indexador ‘2013’, que poderia nos trazer quaisquer notícias deste ano, porém
o resultado encontrado demonstrou um gargalo, entre dezembro de 2012 e setembro
de 2013, não há nenhuma informação publicada. No mesmo do Portal, por meio de um
link disponível, fomos para o canal-vídeo da instituição no Youtube. Neste espaço, foi
possível observar que a Prefeitura conta com 920 inscrições, isto é, a quantidade de
pessoas que acompanham os vídeos publicados pela instituição. O canal foi criado em
janeiro de 2013 e dentre os conteúdos, encontramos uma entrevista do Prefeito sobre o
tema em foco e o vídeo de uma reunião promovida pela instituição entre o Conselho
da Cidade e o Movimento Passe Livre.
Partimos, então, em busca de informações no perfil da Prefeitura de São Paulo no
Facebook. O resultado foi uma página criada em julho de 2014, mais de um ano após as
manifestações. Alternativamente, procuramos o perfil do prefeito Fernando Haddad. De
acordo, com as informações do site, o perfil foi criado em fevereiro de 2013, no entanto,
o acesso às informações não são públicas. Concluímos que a comunicação é feita apenas
por meio da instituição Prefeitura.
O Governo Estadual
Passando para instancias estaduais, tivemos como resultado da pesquisa com o
indexador ‘junho 2013’, no mecanismo de busca dentro do Portal do Governo estadual,
diversas notícias, mas nenhuma específica sobre as manifestações de 2013. No entanto,
a partir da página principal do Portal acessamos um link que nos levou ao canal de
vídeos da Instituição no Youtube. No canal, criado em março de 2009, encontramos um
vídeo com a declaração, na íntegra, do Governador Geraldo Alkmin sobre o anúncio
da revogação do aumento da tarifa do transporte público na capital paulista. O vídeo
foi publicado 19 de junho de 2013. Percebemos nesta publicação que o dispositivo que
permite aos visitantes escrever comentários, encontrava-se desabilitado, ou seja, não era
permitido comentários naquele espaço sobre os vídeos da instituição em tela.
Continuamos a pesquisa no Facebook em busca de interações do governo estadual.
Neste espaço, fizemos uma busca entre os dias 6 e 20 de junho de 2013 por publicações sobre as manifestações. Os resultados são: 1) no dia 11/06 havia a publicação de
vídeo com o título “Em Paris, Alckmin destaca expansão do metrô de São Paulo”; 2) no
dia 16/06, outro vídeo “Secretaria de segurança convida manifestantes para reunião”,
seguido do comentário de uma usuária da rede social “Como assim? Quem repreende
os manifestantes são os policiais. Não tem essa. A reunião é necessária com os responsáveis da Policia Militar do Estado de São Paulo, que parecem estar vivendo em um
regime em que não se possa manifestar dignamente”; 3) em 17/06 a chamada “Governo
convida manifestantes para definir trajeto e garantir manifestação pacífica.” Seguida
de um vídeo “PM define estratégias para manifestações desta segunda” e 4) no dia
19/06 – outro vídeo sob o título “Declaração da revogação do aumento das passagens”.
Em suma, diante desta rápida exploração nos canais de comunicação das instâncias
governamentais, percebemos que houve pouca interação e as vezes nenhuma, com a
sociedade e que o discurso muitas vezes repetia o que ouvíamos da imprensa. Neste
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
914
Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo
Keila C. G. Rosa
sentido, torna-se relevante lembrar que “as redes de comunicação são fontes decisivas
na construção do poder” (CASTELLS, 2013, p. 12). E diante das novas tecnologias da
comunicação disponíveis hoje à sociedade, principalmente no que diz respeito às redes
sociais, as instituições governamentais, demonstraram ainda não utiliza-las em grande
potencial. Um dado importante divulgado pelo Instituto Data Folha diz que as redes
digitais são a segunda maior fonte de notícias, segundo os usuários da internet, no estado
de São Paulo. Esta informação pode ser um estímulo para os atores em tela e constitui
um objeto de estudo nas ciências sociais. Além disso, diante das Jornadas de Junho
...a mídia escrita, TV, som/rádio e internet foi muito mais que veículo de transmissão dos
acontecimentos. Foi parte agente da construção dos eventos, quer seja noticiando as manifestações com destaque, manchetes diárias, divulgando as convocações; quer seja transmitindo
os atos em tempo real. (GOHN, 2014, p. 72)
Desta forma, percebemos ainda que as manifestações que ocorreram em junho de
2013, demonstraram que há um processo comunicativo complexo por trás do fenômeno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das informações levantas e as impressões obtidas neste estudo exploratório,
concluímos que as manifestações tiveram valores sociais elevados, levando-se em consideração uma possível transformação na cultura política, a partir de novas experiências
vividas pelos atores sociais no modelo político representativo do Brasil. Isso porque
as manifestações provocaram uma interação múltipla e em rede entre os vários atores
sociais. Apesar de uma demanda central - a revogação do reajuste do transporte público
urbano -, sucedeu-se dispersões nas intenções de fala dos interlocutores, aparentemente
produzido pela interação da imprensa com o público, como destacado neste trabalho.
Ao mesmo tempo, o consenso, ato pretendido no agir comunicativo, parecia estar subliminarmente no desejo de que o fenômeno fosse um evento pacífico, sem violência.
Acreditamos, todavia, que o pressuposto da coerção, presente no conceito de ‘mundo
objetivo’ estava presente quase, ou quiçá, em todas as interações dos atores envolvidos
efetivamente nas manifestações.
Deste modo, para o MPL/SP, enquanto movimento social, as Jornadas de Junho,
foram um fenômeno importante devido à vasta visibilidade alcançada, juntamente com
ampliação de seus adeptos, além de uma certa reputação, o que pode caracterizar um
objetivo individual da organização. Para a grande imprensa, representada pelos jornais
e TV’s selecionados, foram fatos de grande valor noticioso, com vasta repercussão e
audiência, a ponto de mudar a programação normal dos veículos em prol da transmissão
dos acontecimentos. Ou seja, a preocupação em ganhar pontos de audiência, reflexo de
interesses econômicos, estava à frente dos interesses sociais comuns aos envolvidos.
Já para as instâncias governamentais, pouco foi o espaço dado às manifestações em
seus canais de comunicação na internet. Isso, em nosso entender, está relacionado à
baixa prioridade dispensada ao evento dentro das políticas de comunicação do poder
executivo.
Assim, como inspiração para um futuro estudo nas questões comunicacionais e
sociais participativas, destacamos Antônio Candido que, em uma de suas contribuições
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Ato comunicativo nas “jornadas de junho”? O MPL, a grande imprensa e o Poder Executivo
Keila C. G. Rosa
sobre Raízes do Brasil, afirmou que a camada dos oprimidos seria a única parcela da
população capaz de revitalizar a sociedade e dar um novo sentido à vida política. Esta
visão permite olhar as manifestações de 2013 como de pistas de uma nova experiência
política, a partir das tecnologias da comunicação.
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Entre Identidade e Cidadania:
o discurso dos sujeitos-indivíduos
Between Identity and Citizenship:
the discourse of individuals-subjects
M a r c i a P e r e n c i n To n d a t o 1
Resumo: aqui trago discursos de sujeitos-indivíduos urbanos entendidos como
narrativas de identificação e pertencimento, interpretadas no âmbito da intersecção consumo-cidadania. Exploro a cidadania modificada pela globalização,
indo além da dimensão geopolítica e das possibilidades tecnológicas. Analiso
isso na intersecção com o consumo como lugar de circulação dos sentidos, em
movimentos de exclusões e legitimações, entendendo que nas sociedades democráticas capitalistas a cultura do consumo acontece em um contexto de “cidadania” e que na relação mídia-sociedade-sujeito é preciso compreendê-la como um
“processo”, determinado e limitado às práticas e pertencimentos. Empiricamente,
discuto resultados de pesquisa de campo realizada no Distrito Federal, junto a
16 entrevistados, a partir do que se percebe a compreensão da cidadania como
um aspecto que permite que as pessoas sejam “aceitas” na cidade, na sociedade
onde convivem, mas que, em parte, depende de ações “externas”, do Estado,
no caso. Fica claro também uma relação ‘naturalizada’, mas não reconhecida
verbalmente, entre cidadania e consumo na medida em que para “ser aceito”,
reconhecido nos seus direitos de “ir e vir”, para entrar nas lojas, em instituições
públicas e privadas, é preciso “estar apresentável”.
Palavras-Chave: Comunicação. Consumo. Cidadania. Identidade. Discurso.
Abstract: I bring here speeches by urbane subject-individuals understood
as narratives of identification, interpreted in the context of the intersection
consumption-citizenship. I explore citizenship as a concept modified by
globalization, going beyond geopolitical dimension and technological resources.
I analyze that in the intersection with consumption understood as a place
of circulation of meanings, in movements of exclusions and legitimations,
understanding that the culture of consumption happens in a context of
“citizenship” in the capitalist democratic societies, understood as a “process”,
determined and limited by social practices of geographical belonging. Empirically,
I discuss about field findings resulted from work carried out at Distrito Federal,
where I interviewed 16 people, from what we can infer that the subjects
understand citizenship as something that allows people to be “accepted” in the
city, in the society where they live, but that it is partially dependent on external
actions, by the State, in the case. A ‘naturalized’ relation between citizenship and
consumption is also pointed out, but not verbally acknowledged, in so far as “to
be accepted”, to be recognized in one’s rights of “going and coming”, entering
in the shops, public and private institutions, it is necessary “to be well-dressed”.
Keywords: Communication. Consumption. Citizenship. Identity. Discourse.
1. Doutora em Comunicação pela ECA-USP, professora titular PPGCom-ESPM, [email protected]
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Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos
Marcia Perencin Tondato
O
ASSUNTO DESTE estudo são as narrativas de identificação e pertencimento dos
sujeitos-indivíduos urbanos entendidas como decorrentes das identidades sociais
que numa sociedade pós-tradicional “tem de ser construídas pelos indivíduos
– pois não são dadas nem atribuídas” na medida em que “nas circunstâncias mais desnorteantes possíveis: não só a posição da pessoa deixou de ser fixa na ordem do status,
como a própria ordem é instável e cambiante e é representada por produtos e imagens,
igualmente cambiantes” (Slater, 2002, p. 37).
Exploro a cidadania modificada pela globalização, indo além da dimensão geopolítica
e das possibilidades tecnológicas, num contexto rico de cruzamentos e interações que se
refletem nas práticas sociais e culturais. Isso é analisado na intersecção com o consumo
como lugar de circulação dos sentidos de distinção, em movimentos de exclusões e
legitimações. Como princípio, entendo que, nas sociedades democráticas capitalistas, a
cultura do consumo acontece em um contexto de “cidadania”, um conceito que na relação
mídia-sociedade-sujeito é preciso ser compreendido como um “processo”, determinado
e limitado à práticas e pertencimentos.
Com vistas a discutir as interlocuções referentes à cidadania e o viver em sociedade,
trago resultados de pesquisa de campo realizada no Distrito Federal, hoje constituído
por 31 Regiões Administrativas, originadas da construção de Brasília, que nos seus 54
anos (até 2014) extrapolou o plano inicial. Junto a seus habitantes, brasileiros vindos de
praticamente todos os estados da nação, busquei concepções de consumo e cidadania
na expressão de suas práticas de consumo midiático e material, que ocorrem no
entrelaçamento de uma diversidade de culturas e valores.
Entendendo que consumo interseciona as relações sociais como “cenário de
objetivação de desejos”, sendo também o lugar de circulação de sentidos e significados,
a proposta é problematizar a transposição de conceitos caracterizados pelo tempo e
espaço lineares, para a compreensão de práticas promovidas por dinâmicas constituídas
de transformações no entendimento da cidadania tendo em vista a passagem da condição
de trabalhadores para cidadãos e finalmente consumidores.
É no consumo que diversos aspectos da vida em sociedade se integram, na medida
em que realiza a apropriação e usos dos produtos, transformando “desejos em demandas
e em atos socialmente regulados”, sendo que “o desejo de possuir ‘o novo’ não atua como
algo irracional ou independente da cultura coletiva a que se pertence” (Garcia Canclini,
1996, p. 59-60). Uma cultura que acontece principalmente nas sociedades democráticas
capitalistas em um contexto de “cidadania” sujeito a condições que se alternam, e/ou
sobrepõem, conforme as demandas do sistema em curso. Nesse mesmo espaço também
ocorre o consumo, integrando diversos aspectos da vida em sociedade, fazendo parte
constituinte da própria cultura.
CAMINHOS DA DESCOBERTA
No âmbito da recepção trago discursos sobre cidadania pensados na dimensão
do simbólico cultural e do imaginário social, resultado de leituras convergentes e
divergentes possibilitadas pela interação social no contexto hegemônico do cotidiano,
midiatizado e mediado na intersecção com os processos de significação e ressignificação
inerentes ao viver social citadino. A partir de entrevistas em profundidade, faço reflexões
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos
Marcia Perencin Tondato
referenciadas no consumo como constituição das identidades e na cidadania como espaço
de participação do indivíduo comum nos destinos da sociedade, ciente e agente de seu
direito ao consumo simbólico e cultural, definido também pelo consumo material.
Para o campo empírico, partindo do entendimento de que a intersecção das práticas
de consumo midiático e material, em correspondência com o exercício da cidadania, é
parte constituinte da identidade do indivíduo-sujeito, tomei os moradores de Brasília
como universo por tratar-se esta cidade de um espaço de intersecção de culturas onde,
eventualmente, se concretiza uma identidade “brasileira”. Pela segmentação da ocupação
espacial, característica de Brasília, foi possível atingir a diversidade planejada com
uma amostra melhor qualificada. Diversidade que, buscada entre os brasilienses, com
formação educacional básica, média e superior, permitiu alcançar o todo, identificado
nas formações discursivas das falas dos respondentes.
Brasília, uma cidade planejada, voltada ao espaço público. A não consideração de
um desenvolvimento impactado pelas contingências características da vida que se vive
“no dia a dia” resultou no crescimento periférico desordenado, originando a maioria das
cidades satélites (ou Regiões Administrativas – RAs – denominação oficial). Nelas mora a
maioria dos descendentes dos “candangos”, que vivem da prestação de serviço no PlanoPiloto, habitado majoritariamente por funcionários públicos. Entretanto, os dois grupos
têm algo em comum: a origem em outros estados, de onde levaram uma diversidade de
culturas, valores e até formas de expressão. Regionalismos que foram/são abrandados
em uma cidade em contínua “construção”, mais do que em metrópoles como São Paulo,
Rio de Janeiro, Porto Alegre, para onde a migração se deu por “ondas”, integrando os
“chegantes” a uma “identidade” já constituída, ainda que tenham encontrado seus
“pares” em bairros já estabelecidos, onde foram acolhidos, mas também onde sofrem
exclusões na medida em que se tornam “mundos à parte” da dinâmica cosmopolita.
Brasília aqui representa o melting pot brasileiro.
DISCURSOS E INTERPRETAÇÕES
Foram entrevistadas 16 pessoas (9M e 7H), 12 migrantes de outros estados (os
próprios ou com os pais), especialmente do Nordeste (5 – Ceará, Maranhã, Paraíba,
Piauí), Sudeste/Sul (5 – Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul) e
dois do Centro-Oeste. Dos quatro entrevistados nascidos em Brasília, seus os pais eram
do Sudeste e Nordeste. A média de idade dos que não nasceram em Brasília é de 47
anos, com média de tempo de moradia em Brasília igual a 31 anos. A média de idade
dos brasilienses natos é 40 anos, a mais jovem com 29 anos.
A maioria dos entrevistados exerce atividade remunerada, característica considerada
na seleção intencional da amostra. Pelas próprias características da cidade, metade
é funcionário público e os demais exercem atividades de administração na Feira de
Ceilândia (cargo efetivado pela experiência e interação com os comerciantes do local,
mas sem formação específica), vendedor de rua, enfermeiro e diarista. Quatro das
entrevistadas são donas-de-casa, entre elas uma funcionária pública aposentada.
A descrição do perfil dos entrevistados é relevante na medida em que a pesquisa
conduzida teve o discurso como princípio de trabalho metodológico, fosse pelo olhar
das representações do sujeito coletivo, fosse pela análise de discurso de linha francesa.
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Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos
Marcia Perencin Tondato
Nesse processo, o interesse foi a “passagem da superfície linguística para o objeto
discursivo”, avaliando-se a “materialidade linguística: o como se diz, o que o diz, em
que circunstâncias [...] e o processo de enunciação (em que o sujeito se marca no que
diz)”, isso nos “fornecendo pistas para compreendermos o modo como o discurso que
pesquisamos se textualiza [...] em função de formações imaginárias, em suas relações
de sentido e de forças, através dos vestígios que deixam no fio do discurso” (Orlandi,
2001, p. 65).
Na interpretação a seguir, também levo em conta que “os sentidos resultam de
relações: um discurso aponta para outros que o sustentam”, sendo que “segundo o
mecanismo da antecipação, todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor,
de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor ‘ouve’”, um mecanismo que regula a
argumentação (Orlandi, 2001, p. 39). No caso do discurso em questão, ainda que tenha
sido explicada a finalidade da pesquisa às pessoas entrevistadas, necessariamente não
fica claro o processo completo, o que será feito com o que elas dizem, daí a suposição
de que seus discursos carreguem a preocupação de “impressionar” o interlocutor, ou o
receio de declarar fielmente seus hábitos, opiniões e sentimentos.
Antes de apresentar o tema central deste artigo, as significações dadas ao conceito
de “ser cidadão” e interpretações disso no contexto de uma identidade de pertencimento,
é importante comentar as opiniões sobre o “viver em Brasília” como contextualização
tendo por princípio que para que a comunicação, como produção de sentido que é, se
efetive, fazem-se necessários o discurso, a subjetividade e o contexto (Baccega, 1998) e a
abordagem qualitativa é a que melhor dá conta da captação e interpretação deste processo.
Além disso, o essencial para estudarmos o processo de decodificação (a recepção) não
consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto
preciso, compreender sua significação numa enunciação particular.
Entendendo que a percepção que temos do lugar onde vivemos carrega elementos
da nossa identidade coletiva de pertencimento, começo retomando Hall (2006, p. 71)
quando diz que
a moldagem e a remodelagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas
de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e
representadas. [...] Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos.
Elas têm aquilo que Edward Said chama de suas “geografias imaginárias”, suas “paisagens”
características, seu senso de “lugar”, de casa/lar, de heimat, bem como suas localizações no
tempo – nas tradições inventadas que ligam passado e presente, em mitos de origem que
projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o indivíduo
a eventos históricos nacionais mais amplos, mais importantes.
Embora se referindo ao estado do indivíduo no contexto das nações-estado num
mundo globalizado, tal citação é adequada à situação dos moradores de Brasília na
medida em que para a maioria a mudança para o Distrito Federal se deu em um contexto
essencialmente de busca por melhores condições de sobrevivência. Ou seja, ainda que
originários de regiões do mesmo território nacional, no DF se encontraram diferentes
culturas, tradições e valores, que hoje ainda estão em vias de constituir uma identidade
brasiliense, talvez não aos moldes do que ocorreu em São Paulo e outras regiões
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Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos
Marcia Perencin Tondato
receptoras de migrantes, mas ainda assim passando por processos de estranhamento
e identificação, que eventualmente resultam em novas identidades de pertencimento e
concepções de cidadania.
Decorrente disso, como era de se esperar e tendo ocorrido, os entrevistados manifestaram grande satisfação em morar em Brasília, nem tanto pelo que a cidade lhes oferece
em termos de serviços públicos, mas pelas oportunidades encontradas de sobrevivência
e progresso (material), especialmente em uma época, como historicamente sabemos, em
que o Nordeste sofria as agruras das secas. Nestas falas é possível desvelar elementos
que nos levam a uma cidadania como representação social resultante do compartilhamento de ideias, o que viabiliza as sociedades. As “identidades de pertencimento” que
permeiam estas falas trazem as marcas da interação social vivida e exigida por estas
pessoas quando da chegada a este lugar, então estranho, inóspito, longe de referências
biológicas e culturais familiares.
Brasília [...] uma cidade que me deu tudo o que sou hoje, [...] me deu as condições de buscar
os conhecimentos. [...] aqui dá pra gente viver feliz, principalmente pra trabalhar. [...] catar
papelão dá dinheiro, catar latinha dá dinheiro, vender garrafa, vender ferro velho. (Compilação de algumas falas dos entrevistados)
Numa perspectiva macro de interpretação, tais declarações refletem uma visão
limitada, mas muito realista, das possibilidades de inserção cidadã, de consideraremse indivíduos de direitos em uma sociedade, que se diz, fundamentada na igualdade e
democracia. Isso nos remete com mais ênfase à necessidade de uma maior reflexão sobre
os processos de significação da recepção e apropriação dos conteúdos e simbolismos
que preenchem os cotidianos na sociedade midiatizada do consumo.
Os sentimentos de viver bem se relacionam com “ter conforto”, “comodidade”,
ainda que condicionados às condições de acesso material. Quando isso não é possível, a
gratidão por um lugar que os acolheu é mais forte do que o reconhecimento de ser Brasília
uma cidade construída para abrigar o poder, estatal e financeiro, cuja construção e
funcionamento dependeram e dependem de um contingente de migrantes. Reconhecem
as dificuldades, mas não se colocam como seus pacientes, os problemas apontados são
comentados como se afetassem apenas aos outros, a quem não conhecem.
Entrevistados com escolaridade de nível superior, ocupando cargos públicos
concursados de relevância hierárquica, consideram-se acima das necessidades. Falam
de direitos de cidadão referindo-se a quem não tem recursos materiais, pois para eles,
que têm plano médico particular, moradia, condições de escolha de lugar de compra e
lazer, não há necessidade de maior atenção do Estado. Quem precisa de ações do governo
(relacionando à cidadania) é quem não tem.
O custo (de vida) é muito alto, mas boa parte dos salários de Brasília cobre isso. [...] tem a
facilidade de ganhar dinheiro só que o aluguel aqui é muito caro. [...] as coisas aqui no Plano
são mais caras, e você encontra mais barato nas cidades satélites. [...] Alimentação eu acho
caro, moradia eu acho caro, transporte é caro.
Não adianta você pensar que vai se divertir dependendo do transporte público, porque
deu meia-noite, acabou. [...] transporte público em Brasília muito inacessível, muito caro,
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Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos
Marcia Perencin Tondato
muito ruim de horário. [...] A saúde pública de Brasília está bem ruim. [...] (nas RAs)2 tá
muito difícil, não tem pronto socorro, não tem médico. [...] Saúde pra quem, como nós, tem
planos de saúde, tá tranquilo. [...] Assalto demais. De noite é perigoso, principalmente lá
onde eu moro, na Ceilândia. [...] Nós moramos aqui num setor que é mais no centro, acho
que os governantes se preocupam mais em dar mais segurança pra gente. (Compilação de
algumas falas dos entrevistados)
O resultado é uma aceitação de uma situação que exclui, que limita, que seleciona
quem pode e quem não pode transitar, consumir, viver no Plano, como é designada a
área em que está situada Brasília propriamente dita, o “avião”, com seu Eixo Monumental
atravessando de Leste (onde fica a residência presidencial) a Oeste (o Memorial JK
abrindo-se para as rodovias de ligação com as RAs mais urbanizadas e desenvolvidas
(Núcleo Bandeirantes, Taguatinga, Ceilândia) (Prado, 2012), separando a Asa Norte da
Asa Sul com suas quadras, superquadras e entrequadras.
Pra compras aqui (Paranoá) é muito bom, tem um comercio bem farto, os preços também
é (são) compatível(ies) com a renda da gente, se comparando ao Plano Piloto. [...] Eu prefiro
morar aqui no centro de Brasília, é um pouco mais caro, mas aí é o custo benefício, né, eu
tenho a comodidade de ir pro meu trabalho que é daqui 5 minutos, economizo o meu tempo,
meu combustível, meu carro.
Agora sobre esse negócio de mercado, eu faço aqui, Tem padaria, tem mercado pra tudo
quanto é lado. [...] O nosso comércio é muito rico, que gera muita renda. Existem vários
ambulantes, existe o cara que vende churrasquinho e que sobrevive disso, cria famílias, paga
a faculdade do filho vendendo churrasquinho [...] tem uma vivência muito forte, as pessoas
convivem muito e ela tem um comércio muito fortalecido você acaba tendo as grandes lojas
que você tem na área central de Brasília você tem também nas cidades satélite. [...] Aqui a
gente já conhece todo mundo. Quase todo mundo que mora aqui ainda é daqueles tempos
que receberam as casas. (Compilação de algumas falas dos entrevistados)
O que se percebe é a relativização do bem-estar. Aqueles com maior acesso material
falam das necessidades do “outro”, apontam aspectos negativos da parte dos governantes, das autoridades, mas sempre relativizando, pois a maioria é funcionário público e,
por ética ou receio (afinal eu era uma desconhecida entrando em suas casas e fazendo
perguntas sobre suas vidas). Já as pessoas com menos acesso material relativizam no
âmbito da necessidade de cada uma buscar o que é de seu interesse, procurar, reconhecendo a carência do que lhe é fornecido, compensando com uma relativa facilidade
de acesso com quem tem o poder, condições de encaminhar as demandas, ainda que
as soluções sejam na maioria encaminhadas ao particular e não ao coletivo, como era
de se esperar. Ou seja, conseguir atender as necessidades, o mínimo pelo menos, fica
por conta do indivíduo, sendo assim atendido. A quem tem pouca expressão material,
resta o apelo individual.
[...] eu sinto o desrespeito no trânsito [...] A gente tem o Hospital de Base, que era referência no
país. [...] construíram novos leitos e tal, pra Copa. [...] Nesse ponto eu me sinto desrespeitada.
2. Regiões Administrativas. RAs de moradia dos entrevistados: Paranoá, Taguatinga, Ceilândia, Cruzeiro.
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Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos
Marcia Perencin Tondato
[...] tem muitos direitos que a gente consegue buscar e alcançar [...] aqui no Distrito Federal,
percebo que as pessoas escutam muito a gente [...] e aqui em Brasília é muito bom porque
a gente tem contato às vezes com as pessoas que estão diretamente lá mexendo com o
governo. [...] eu procuro com quem eu possa falar pra que ela me dê atenção. (Compilação
de algumas falas dos entrevistados)
Por outro lado, um dos entrevistados, vendedor de açaí e salada de fruta na rua,
relata situações e diversidades que atribui a sua condição financeira, diz que só quem
tem dinheiro é respeitado como cidadão, atendido devidamente, tanto em locais públicos
(hospitais, departamentos públicos, por exemplo) ou privados (bancos, academias).
Percebe-se nestes discursos a compreensão da cidadania como um fenômeno a partir
do qual as pessoas são “aceitas” na cidade, na sociedade onde convivem, mas também
em parte dependente de ações “externas”, do Estado, no caso. Fica claro também a relação
‘naturalizada’, portanto, não reconhecida verbalmente, entre cidadania e consumo. A
análise preliminar já nos aponta que para ser cidadão, reconhecido nos seus direitos
de “ir e vir”, entrar nas lojas, nas instituições públicas e privadas, é preciso “estar
apresentável” (de terno e gravata), sem mencionar as dificuldades de acesso geográfico
ao lazer e à cultura, visto que os grandes eventos culturais, públicos ou privados, são
realizados no centro, no caso, no Plano Piloto.
Ao discutir a relação cidade-cidadania, Santana (2000) lembra que em Henri Lefebvre
ser cidadão é ter direito à cidade e que a cidade deveria ser o lugar de efetivação de
direitos e deveres. A cidade é o lugar do cidadão, entretanto não é necessariamente o
que acontece, pois a segregação, tanto social quanto espacial, vem aumentando de forma
extraordinária. “Os sinais da cidadania, da igualdade de condições, de acessos, de direitos
e deveres comuns a todos deveriam estar inscritos por toda parte e serem reconhecidos
em todos os pontos” (Santana, 2000). A cidadania desenhada pelos entrevistados se
aproxima disso ao que complemento dizendo que é aquela da qual fala Hall (2006, p. 49)
quando explica que na impossibilidade de sobreviver onde nasceram, assumem Brasília
como o local onde constroem uma identidade de cidadão, onde se sentem amparados.
A cidadania brasiliense é complicada de se adquirir porque a maioria não nasceu aqui [...]
Você tem que ver a prática: veio para trabalhar, trabalhe, amizade, se der, é segundo plano.
[...] você ter um poder de consumo, você ter condições de comprar as coisas pra sua casa ou
para os seus filhos. [...] bolsa família [...] extremamente importante, mas o poder da compra
é totalmente atrelado à cidadania. [...] Sim claro, pode você chegar no hospital e ser atendido. Você se sente cidadã, cidadão, você não se sente um mendigo implorando por uma
obrigação do governo. [...] eu acho que o poder de compra realmente dá uma autonomia
bem bacana pra pessoa, ela trabalhar, ela ter seu emprego e poder ir lá e comprar o que ela
quiser e onde ela quiser. (Compilação de algumas falas dos entrevistados)
Na percepção dos entrevistados, a autonomia faz parte da cidadania e por autonomia
entendem “poder escolher”, não só o que comprar e onde, mas também em relação ao uso
fruto dos serviços públicos – saúde, educação, lazer. Nesse sentido, ser obrigado a recorrer
a um posto de saúde específico, ter que esperar para ser atendido, não ter transporte
público em quantidade e horários suficientes para o trabalho e para o lazer é não ser
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
923
Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos
Marcia Perencin Tondato
respeitado nos direitos de cidadão. Por outro lado, ter a oportunidade de participar
da gestão da escola, do orçamento público, com vistas a atender as demandas mais
prementes, que me verdade deveriam ser atendidas sem necessidade de reivindicações,
é ser reconhecido como membro efetivo da sociedade.
[...] a gente tem que fazer valer o direito da gente assim como os deveres então tem que
buscar os direitos. A gente também tem que dar muita opinião. [...] a gente vai num posto
de saúde e não consegue ou não tem uma vaga pra tal coisa, a gente busca o ministério
público e ele de imediato vai arrumar uma UTI pra pôr o seu parente [...] tem que ir para o
orçamento participativo e a gente tem que ir lá votar.
A nossa escola é participativa. [...] Eu acho que isso faz parte da cidadania. [...] A gente procura fazer uma parceria com os pais que é um ato de cidadania tanto da gente quanto do pai
participar da vida escolar do filho [...] Eu acho que uma coisa que faz parte da cidadania pra
mim e que tá faltando nas pessoas é se preocupar com o próximo, tentar ajudar de alguma
forma. [...] “ah eu vou votar se o cara me arrumar um emprego”. Eu já acho isso errado.
Eu tinha que ter a minha casa própria pra eu me sentir uma verdadeira cidadã, e eu não
tenho então como se diz eu não me considero uma cidadã porque eu não consegui até hoje
ter minha...
[...] Eu sei que é ajudar na limpeza da cidade, é participar de alguma coisa que tiver pra
cidade para o bem da comunidade, é você ser cidadã. Ajudar o próximo. [...] Tem muita
gente que ajuda e faz essa parte assim mais cidadã que não aparece, tem muita gente ajuda
creches, lar de velhinhos, então eu acho assim que o pessoal é bem, é bem. (Compilação de
algumas falas dos entrevistados)
No ambiente do liberalismo, o centro da teoria social é a escolha individual: “as
instituições sociais são decorrentes da maneira pela qual os indivíduos formulam seus
interesses privados, autodeterminados como demandas sociais, [...] as escolhas são feitas pelos indivíduos exclusivamente como parte da busca da satisfação de sua agenda”
(Slater, 2002, p. 46). Neste contexto, a identidade só pode nascer da escolha, tendo o
indivíduo que “negociar identidades múltiplas e contraditórias à medida que percorre
diferentes esferas públicas e privadas, cada qual com seus diferentes papéis, normas”. “A
verdade é contextual; a autoridade e os conhecimentos especializados são provisórios”
(Giddens apud Slater, 2002, p. 86).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na síntese desta busca junto a 16 entrevistados enfatizo que a compreensão da
cidadania se dá a partir da aceitação na vida em sociedade, de circular pelos espaços
públicos, participar da vida comercial e cultural da cidade. A compreensão sobre
“ser cidadão” ainda não abrange a condição política, restringindo-se ao social – o
assistencialismo –, e ao comunicacional – ter conhecimento das pendências sociais
– casos de exclusão, impunidade, fragilidade. Assim como as identidades (Tondato,
2011, p. 159), as ações coletivas só subsistem quando há espaço para ações individuais.
Por mais que estejamos ‘expostos’ a interesses dominantes, a lutas simbólicas, e reais,
na complexidade que se tornou a sociedade, criam-se, ou buscam-se, brechas para a
expressão dos sujeitos transformados em agentes nos seus cotidianos.
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Entre Identidade e Cidadania: o discurso dos sujeitos-indivíduos
Marcia Perencin Tondato
As pessoas ainda não se sentem parte de um todo, por ele responsáveis. Acreditam
que suas ações não tenham repercussão, o que dá espaço para as infindáveis campanhas
de mobilização às quais somos expostos com frequência, porém sem resultados efetivos
de mudanças. Ter pensado as relações apontadas a partir da comunicação utilizando
o Discurso do Sujeito Coletivo me aproximou da noção de cidadania entendida como
uma representação social resultante do compartilhamento de ideias, a partir do que as
sociedades são viabilizadas. Entretanto, dificilmente chegaremos a um conhecimento
consistente, que atenda às necessidades de conceituação e compreensão com vistas à
práxis se não houver uma forte disposição para reformulações e reinvenções, de novas
possibilidades de expressão e conhecimento.
Para tanto, é necessário um movimento que trabalhe a educação com a mídia e
a partir desta, não apenas como objeto de motivação ao estudo, mas como objeto de
reflexão, inserindo seus assuntos e argumentações no discurso efetivo das salas de
aula e discussões sociais. Por outro lado, é nesse contexto hegemônico que devemos
procurar e entender os novos referentes conceituais de cidadania e consumo, procurando
ultrapassar as relações parciais e precárias com as quais nos defrontamos no fazer das
reflexões. Num contexto em que as identidades “explodem” a partir da multiplicação de
referentes “desde aqueles com os quais o sujeito se identifica como tal, [...] mas também
dos indivíduos, que agora vivem uma integração parcial e precária das múltiplas
dimensões que os conformam” (Martin-Barbero, 2006, p. 60).
REFERÊNCIAS
Baccega, M. A.. (1998) Comunicação e linguagem – discursos e ciência, São Paulo: Moderna.
Garcia Canclini, N.. (1996) Consumidores e cidadãos - conflitos multiculturais da globalização.
Rio de Janeiro: UFRJ.
Hall, S.. (2006) A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª edição. Rio de Janeiro: DP&A.
Martin-Barbero, J.. (2006) “Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades
da comunicação no novo século” In Moraes D. de (Org.). (2006) Sociedade midiatizada.
Rio de Janeiro: Mauad X.
Orlandi, E. P. (2001) Análise de Discurso - princípios e procedimentos. 3ª edição. São Paulo:
Pontes.
Prado, L. F. do. (2012) “A ocupação irregular de terras no Distrito Federal e o impacto
ambiental”. Bacharelado em Direito, 2012. 63 p. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação) - Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Centro Universitário
de Brasília – UniCEUB, 2012. Disponível em: <http://repositorio.uniceub.br/bitstream/123456789/607/3/20768492_Lindalva%20Prado.pdf>, acesso em março, 2015.
Santana, M. A.. (2000) Memória, cidade e cidadania. In: Costa, I. T. M. & Gondar, J. (Orgs.)
Memória e espaço. Rio de Janeiro: 7 Letras. Slater, D.. (2002) Cultura do consumo & modernidade. São Paulo: Nobel.
Tondato, M. P.. (2011) Identidades múltiplas: meios de comunicação e a atribuição de sentido no âmbito do consumo. In: Temer, A. C. R. P. (Org.). (2011) Mídia, Cidadania e Poder.
Goiânia: Facomb/FUNAPE, p. 153-174.
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação
militar do conjunto de favelas da Maré
R enata
da
S i lva S o u z a 1
Resumo: A Maré, conjunto de favelas localizado na zona norte do Rio de Janeiro,
foi ocupada em abril de 2014 por forças militares de pacificação. A engenhosa
operação, que envolveu um total de 2.700 militares, composta por 2.050 homens
do Exército, 450 fuzileiros navais, e 200 policiais militares com 20 tanques blindados, além de jipes e metralhadoras, foi transmitida ao vivo por diversos veículos
de comunicação. Assim, o artigo que se apresenta toma como objeto a cobertura
midiática desta ocupação militar e utiliza como método a análise das reportagens
publicadas em tempo real à invasão. A ideia é esboçar as tensões entre o discurso
dito oficial angariado pelos meios de comunicação e as estratégias informativas
engendradas através das redes sociais por narradores comunitários da Maré.
Observa-se que tais iniciativas podem colocar em disputada novas versões dos
fatos. Para tanto, serão traçadas abordagens teóricas que deem conta da análise
a respeito da ordem do discurso, a partir de Foucault, e de uma breve reflexão
sobre o discurso do sofrimento. Busca-se compreender como se forja o discurso
midiático sobre a favela, como este reafirma estereótipos e legitima intervenções autoritárias do Estado. Cabe observar que a autora é moradora da Maré e
acompanhou a ação como telespectadora.
Palavras-Chave: Maré, favela, discurso, midiático, milirarização.
Abstract: The Complexo da Maré, a group of 16 slums in North Rio de Janeiro,
was occupied in April 2014 by Federal troops. The ingenious operation, which
involved a total of 2,700 military, consisting of 2,050 men from the Army’s Parachute
Brigade, 450 Marines, and 200 Military Police officers rely on 20 armored tanks, plus
machine-gun jeeps was broadcast live by several medias. Thus, this article presents
the dimension of media coverage of this military occupation using as method the
analysis the headlines in real time. The idea is to describe the tensions between
the official discourse of public power absorbed by the mainstream media and
informational strategies produced through social networks by community narrators.
These initiatives may present new versions of the events, playing the narrative to
the official discourse. Therefore, theoretical approaches will be drawn analyzing the
order of discourse, from Foucault, and a brief reflection on the discourse of suffering.
This article seeks to understand how the mainstream media forge a speech about
the slums that consequently reaffirms stereotypes and legitimizes authoritarian
1. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (ECO/UFRJ), mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ. Jornalista e Publicitária formada pela
PUC-Rio, é pesquisadora do LECC – Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária da UFRJ. Em sua
dissertação de mestrado, concluído em 2011, a doutoranda explorou o tema “O Cidadão: uma década de experiência ideológica, pedagógica e política de comunicação comunitária”. E-mail: [email protected].
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré
Renata da Silva Souza
actions of the state in peripheral areas of the city. It should be noted that the author
is a resident of Complexo da Maré and followed the occupation as spectator.
Keywords: Maré, slums, discourse, media, military.
A ORDEM DO DISCURSO
FABRICAÇÃO DO discurso, de acordo com Michel Foucault (2012), obedece uma
A
série de procedimentos. Com o objetivo de limitar seus poderes e perigos, essa
produção é controlada, selecionada, organizada e redistribuída. Desse modo, em
nossa sociedade, há mecanismos de exclusão que se revela na interdição do direito de
dizer tudo. É descabido falar sobre tudo, no entanto, é facultado o direito de fala a alguns
privilegiados, os sujeitos de fala. Nesse sentido, nas áreas relativas à sexualidade e à
política, o discurso se caracteriza por sua obscuridade e sua relação com as interdições
ligadas ao desejo e ao poder. É onde se processa o poder ilimitado sobre o corpo social.
Foucault identifica três sistemas de exclusão, que se valem da separação e rejeição,
que concedem capilaridade e organizam o discurso, são eles: a palavra proibida, que se
caracteriza pela fala do louco expondo a oposição entre razão e loucura; a segregação da
loucura; e a vontade de verdade, capitaneada pela dicotomia entre verdadeiro e falso. O
autor rememora que os poetas gregos, no século VI, se valiam do discurso verdadeiro
para pronunciar o futuro. Tal atividade provocava a adesão da população em um espetáculo completamente ritualizado. No século VII, no entanto, o sofista perde seu reinado,
já que o discurso de verdade se afastou do ato ritualizado de enunciação e se estabeleceu
no próprio enunciado. Ao se estabelecer uma separação entre Hesíodo e Platão, houve
consequentemente a dicotomia entre discurso verdadeiro e discurso falso. O discurso
verdadeiro deixa de ser desejável, porque se distanciou do discurso ligado ao poder.
O discurso ganha outros contornos na dimensão do acontecimento e do acaso, classificada por Foucault como procedimento interno de controle e delimitação do discurso.
São elas o comentário e o autor. O comentário articula o acaso do discurso, uma vez
que relaciona o texto primeiro com o texto segundo e permite construir novos discursos, uma possibilidade aberta de fala. Já o autor corresponde ao, mais que o indivíduo
falante ou escritor, princípio de unidade do discurso e sua coerência. “O comentário
limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição
e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade
que tem a forma da individualidade do eu” (FOUCAULT, 2012, p. 28).
Outro princípio de limitação do discurso é a disciplina, que se opõe tanto aos princípios do comentário e do autor. A disciplina, diferente do princípio do autor, se caracteriza
pelo domínio da técnica e de métodos. Em oposição ao comentário, a disciplina não
pressupõe um ponto de partida, já que prenuncia a construção de novos enunciados e
formulações indefinidamente. A disciplina fixa os limites do discurso através do jogo
de uma identidade, que precisa ser constantemente reatualizada obedecendo as regras
impostas pela própria disciplina. Há ainda outro grupo de procedimento que, ao determinar as condições de funcionamento de controle do discurso, promove a “rarefação
dos sujeitos que falam”. Para se ter acesso à ordem do discurso é necessário dominar
determinadas regras e atender a certas exigências.
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré
Renata da Silva Souza
As doutrinas, sejam elas religiosas, políticas ou filosóficas, se qualificam como o
inverso de uma “sociedade de discurso”, uma vez que tende a difundir-se. No entanto,
esta realiza uma dupla sujeição tanto relativa ao sujeito que fala o discurso como dos
discursos ao grupo. Em uma escala mais ampla, há a apropriação social do discurso
realizada, por exemplo, pelo sistema de educação. Este é uma ferramenta política capaz
de manter ou modificar a apropriação do discurso, uma vez que detém saberes e poderes
específicos.
Para Foucault, o discurso filosófico “nada mais é do que a reverberação de uma
verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e quando tudo pode, enfim, tomar a
forma do discurso (...) isso se dá porque todas as coisas podem voltar à interioridade
silenciosa da consciência de si” (FOUCAULT, 2012, p. 46). Sendo assim, “os discursos
devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também
se ignoram ou se excluem” (Idem, p. 50). “O discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o
poder do qual nos queremos apoderar” (Ibid., p. 10).
Desse modo, não há surpresa sobre a dominação de um discurso midiático que
se revela como hegemônico na manutenção do poder daqueles que detém o direito de
fala. Ou seja, as elites formulam seus discursos para sustentar seus privilégios e disseminar através de seus meios de comunicação o discurso hegemônico que identifica
os despossuídos financeiramente como inimigos, como classe perigosa que deve ser
controlada e vigiada.
O DISCURSO MIDIÁTICO SOBRE A FAVELA
O discurso hegemônico sobre a favela, angariado pelo discurso midiático, a delimita
como um espaço dominado pelo tráfico de drogas, pela violência e falta de condições
humanas de sobrevivência. Em uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (Cesec), em 2004, um dos
consensos encontrados entre os jornalistas é o reconhecimento de que os veículos em que
trabalham são os responsáveis pela caracterização das favelas como espaços privativos
da violência. Isto porque a pauta prioritária dá conta das operações policiais, dos tiroteios, execuções, etc. Alguns argumentam a falta de “fontes legítimas” ou mesmo uma
recepção negativa por parte da população. Ao que a pesquisa indagou corretamente:
“Será que os repórteres estão limitando a sua presença nas favelas ao acompanhamento
de ações policiais por causa da hostilidade da população ou passaram a encontrar uma
recepção hostil por só acompanharem as ações policiais?” (RAMOS; PAIVA, 2007, p. 77).
A pesquisa relaciona a abordagem monotemática à elitização das redações, desde a
década de 70, quando o diploma universitário passou a ser obrigatório para o exercício
da profissão. Isto caracterizaria o aumento do apuro técnico em detrimento de uma
aproximação mais orgânica do repórter com o cotidiano dos moradores de favela, algo
já experimentado pelos “jornalistas da antiga”. Outra hipótese seria o reduzido número
de pessoas negras e/ou ligadas às comunidades dentro das redações. No entanto, conclui
que não se deve creditar a cobertura estigmatizante sobre a favela apenas ao repórter.
As pautas seguem uma linha editorial previamente defina pelo veículo de comunicação
que prioriza a cobertura dos bairros nobres, aonde estão seus leitores que “não gostam
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré
Renata da Silva Souza
muito de favela”, como afirmou uma das jornalistas entrevistadas. Aliado a tudo isso, está
a suposta sensação de insegurança gerada nos repórteres após a execução do jornalista
da TV Globo, Tim Lopes, no Complexo do Alemão.
Uma das jornalistas entrevistadas pela pesquisa, Roberta Pennafort, alertou para a
falta de sensibilidade de seus colegas ao cobrirem o sofrimento dos moradores de favela.
Ela narrou que em uma cobertura sobre um deslizamento de terra em um morro, que
havia vitimado três crianças, uma repórter fazia perguntas completamente alheias à
dor da família. Pennaforte garante que os repórteres, em geral, na apuração in loco de
tragédias dramáticas com famílias da classe média ou alta costumam ser mais respeitosos
e chegam a compartilhar da dor do outro.
Tal relato reforça a percepção empírica de que os discursos de sofrimento na construção midiática não se qualificam por uma neutralidade social. Quando a vítima que
sofre, por exemplo, é um morador de favela que fora atingido por um tiro de “bala perdida” durante conflito entre policiais e traficantes, a vítima já é vista com desconfiança.
Ainda mais se corporificar características do perfil de um suposto criminoso, ou seja,
jovem, pobre e negro. Se processa uma ambiguidade sobre a vítima, que muitas vezes
precisa provar sua inocência. Quando a vítima é atingida de forma fatal, sua família
encabeça uma luta inglória para provar sua inocência post mortem. Isto ocorre porque,
dificilmente, os meios de comunicação tradicionais articulam o direito ao contraditório
em suas coberturas jornalísticas. A palavra final é dada pela “fonte oficial”, a própria
polícia. Como se observa na manchete: “Delegado diz que DG estava ao lado de traficantes durante o confronto com a polícia” (R7 – 26/4/2014), sobre a morte do dançarino
do programa “Esquenta”, Douglas Rafael da Silva, no morro Pavão-Pavãozinho. É como
se o fato de ele estar na favela ao lado de um suposto traficante o levasse a justificada
morte. Se o fato ocorresse a 100 metros do morro, em Copacabana, e a vítima fosse um
jovem, branco de classe média, haveria uma comoção geral sem levantar suspeitas sobre
a índole da vítima.
A criminalização da vítima faz parte de uma estratégia de construção de supostos
inimigos violentos e delimita os que seriam as vítimas inocentes. Paulo Vaz qualificou
os moradores de favela, por sua conexão espacial e midiática com os traficantes, como
“criminosos virtuais”. Menospreza-se sua dor e sofrimento. “Se duvidarmos mais da
versão da polícia do que de sua inocência, ainda assim poderemos pacificar nossa
indignação pensando que toda ‘guerra’ implica sacrifícios” (VAZ, 2005, p. 20). Cabe
ressaltar, no entanto, que sendo a vítima culpada ou inocente, o código de ética do
jornalista prevê a defesa intransigente dos direitos humanos. No entanto, tais discursos
revelam a distinção entre a vida que vale mais e a que vale menos. Entre o extermínio
justificado e aceito, e a morte inaceitável e injustificada.
O jornalista, no papel de observador nato, ignora o sofrimento real, já que não há
uma empatia ou identificação com a vítima da favela. Uma vez que esta não é reconhecida
como igual, a diferença econômica e de cor lhe causam indiferença. É o preconceito
moral que o impede de reconhecer o sofrimento. E, muitas vezes, diante de crimes que
interrompem uma suposta calmaria dos indivíduos comuns e da ineficácia de ação
do Estado, se revelam inquisidores, uma vez que uma espécie de sofrimento torna-se
contingente. A consequente busca por bodes expiatórios se dá como “crítica moral da
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré
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política e legitima a vingança como modo de lidar com todos aqueles que a moralidade
constrói como monstros” (VAZ, 2010, p. 163).
O surgimento de tabloides a baixo custo destinados às classes C, D e E também
não diminuiu o universo de abordagens estereotipadas sobre as comunidades, pelo
contrário, aumentou o sensacionalismo sobre a cobertura policial. Desse modo, além
de notícias esporádicas sobre os espetáculos artísticos promovidos por organizações
não-governamentais, o que vira notícia sobre a favela é aquilo que pode ser qualificado
como exótico, como a manchete “Único padre exorcista do Rio é da Maré”, publicado
no jornal O Dia (7/4/2014).
MARÉ MILITARIZADA E MIDIATIZADA
A cobertura midiática sobre a ocupação militar da Maré, um conjunto de 16 favelas
localizadas na zona norte do Rio de Janeiro, ocorrida no final de março de 2014, expõe
concretamente o investimento em abordagem policialesca sobre as comunidades antes
e durante ao fato ocorrido. Com a manchete “Complexo da Maré terá um militar para
cada 55 moradores” (O Dia – 25/3/14). A reportagem antecipa com detalhes a operação
e forja uma expectativa que gera sofrimento anterior à própria ação do Estado. Assim,
segue o texto que qualifica, já em sua primeira linha, como “O pedido de socorro do
estado ao governo federal para enfrentar os criminosos responsáveis pelos ataques em
série a bases de UPPs”. O lide desconsidera o desmentido, descrito no corpo do texto,
em que o próprio secretário de Segurança afirma que tal inciativa não teria relação com
os ataques que ocorreram às UPPs em diferentes favelas da cidade. No entanto, o texto
continua articulado nessa mesma hipótese. A matéria segue com uma imagem aérea
panorâmica em que a Maré aparece margeando as linhas vermelha e amarela, além
da Avenida Brasil. A reportagem também oferece um infográfico em que o leitor pode
analisar o mapa do conjunto de favelas.
Os mapas e infográficos não são expostos aleatoriamente para ilustrar a reportagem.
Os mapas não são reflexos de uma espacialidade exterior, como revela De Certeau
(2008). Eles representam atos de fala que organizam o território com seus possíveis
rumos. Sendo assim, o mapa “faz ver” os locais e delimita as trajetórias permitidas, em
contraposição aquelas que são proibidas. Portanto, não é difícil concluir que o mapa “faz
ver” a favela para o interlocutor que não a conhece e demonstra o caminho que não se
deve seguir, já que ali o perigo é iminente. Ao mesmo tempo, tais notícias midiáticas
justificam qualquer ato inconstitucional em um território favelado. Vide a manchete
“Justiça expede mandado coletivo e polícia pode fazer buscas em todas as casas do
Parque União e da Nova Holanda” (Extra – 29/3/14). A reportagem se limitou à notícia
em si e não se propôs em problematizar a aberração “legal” de um mandado coletivo. Já
está previamente legitimado o poder da própria Justiça e das forças policiais em violar
“legalmente” as casas dos favelados. É sabido que a Constituição Brasileira, em seu Art.
5º - XI – determina que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo
penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre”2.
2. Constituição da República Federativa do Brasil. Título II – Dos direitos e garantias fundamentais.
Capítulo I – Dos direitos e deveres individuais e coletivos. Art. 5º - XI. Disponível em http://www.
observatoriodainfancia.com.br/IMG/pdf/doc-47.pdf Acesso em 30 de abril de 2014.
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré
Renata da Silva Souza
“Ocupação no Complexo da Maré é concluída em apenas 15 minutos” (Extra –
30/3/14). A imagem selecionada para ilustrar a reportagem estampa agentes das forças
policiais fortemente armados ao lado de uma senhora que passeia com o seu cão e com
uma sacola na mão. E o texto segue com a descrição sobre o funcionamento normal do
comércio e o elogio de uma moradora, que não quis se identificar, dizendo que estava
adorando a ação. A cobertura televisiva foi feita ao vivo pela principal emissora do Rio
de Janeiro, a Rede Globo. A programação teve sua grade alterada e ao invés de exibir o
“Globo Rural”, foi transmitida a ocupação da Maré. As imagens exibidas deram conta
da movimentação ostensiva das tropas, de mais de 2 mil homens, com seus tangues de
guerras terrestres e helicópteros blindados. Enquanto as forças de segurança ocupavam o
local, jornalistas os seguiam com suas câmeras audiovisuais e equipamentos fotográficos.
A interpretação quase que imediata das imagens, sem o áudio, revela uma tropa de
homens exageradamente armados que dão cobertura à invasão dos profissionais de
mídia a uma favela. Além dessas cenas de ação, as câmeras se voltam para o tradicional
ritual do Estado em ocupação de um território considerado hostil. Em uma praça pública,
policiais da cavalaria trotam em seus animais e ensaiam uma aproximação amistosa
com a população. Crianças, jovens e idosos são convidados a montarem os cavalos
da tropa, em um clima pacífico. Logo depois, o ritual se encerra com a cerimônia de
hasteamento das bandeiras do Brasil e do estado do Rio de Janeiro. O “grand finale” fica
por conta da soltura de pombas brancas no território teoricamente pacificado pelas forças
de segurança. Uma cobertura coerente à tentativa de pacificação das tensões sociais.
Em paralelo a esta abordagem midiática, moradores usaram as redes sociais
para comentar a ocupação. Com a criação de uma comunidade virtual no facebook
denominada Maré Vive e a utilização de #hastegs como #MaréVive #OquetemnaMaré
#DedentrodaMaré, esses moradores protagonizam o papel de narradores das mazelas
do Estado de dentro do front. A rede social encarnou o espaço de disputa de versões
e discursos sobre esse episódio na Maré. Um dos comentários de moradores dizia:
“Mandados coletivos de busca? Traduzindo, todos que moram na favela são previamente
suspeitos de serem criminosos. Vai ver se tem mandado coletivo nos condomínios de
luxo, onde o tráfico corre solto?”. A proximidade entre a data da ação na Maré e o dia
em que se remomora os 50 anos da Ditadura Militar gerou inúmeras conexões. Parte
dos moradores qualicaram a ocupação militar como estado de sítio e de excessão em
plena democracia.
A comunidade virtual “Maré Vive” divulgou inúmeros casos de abusos de autoridade
que não foram veiculados nas mídias tradicionais. Segue um dos relatos: “Senti uma
respiração forte e ofegante com um hálito quente em meu rosto. Meio sonolenta, abro os
olhos e me deparo com um cão e homens de preto a minha volta. Susto, medo e revolta.
Meu quarto tomado por desconhecidos da lei e perguntas que não sei responder. Todos
os dias eles vêm na minha casa. Já não durmo de camisola, porque essa visita pela manhã
virou rotina e tenho que estar preparada para recebê-los. Hoje já entraram duas vezes.
Minha casa virou o Batalhão da Polícia Militar”.
No mundo real, um profissional mais atento e preocupado com as mazelas sociais
não deixaria uma comunidade virtual como esta passar despercebida. São quase 10 mil
seguidores, entre moradores e curiosos, que fazem relatos diários sobre a situação na
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré
Renata da Silva Souza
Maré. Ou seja, ignora-se uma fonte legítima. Isto porque tais moradores se autodeclaram
envolvidos com a luta pelos direitos humanos fundamentais dos cidadãos que vivem
em favelas e estão dispostos a denunciar casos de abusos ocorridos com familiares e
vizinhos. Mas, a opção midiática em cobrir a ocupação privilegiando as fontes ditas
oficiais não passa despercebida pela própria comunidade. Em uma nota pública,
veicula no dia 1º de abril de 2014, a comunidade questiona a promoção de notícias que
qualificam a “invasão militar” como o maior sucesso dos últimos tempos. Segundo
eles, contrariamente ao espetáculo midiático, são recorrentes os relatos sobre violações
e abusos. “Policiais entrando nas casas sem mandado; com ‘toca ninja’ e ameaçando
moradores de morte; depedrando bens e roubando eletrodomésticos sem nota fiscal;
tratando moradores com violência verbal e apontando armas e fuzis para os seus rostos;
constrangendo e agredindo crianças”3.
Em outra nota, publicada em 11 de abril, a comunidade afirma que um Estado que
utiliza tanques de guerra contra a população não busca o diálogo e não se preocupa
com a manutenção de direitos. Uma das principais estratégias da página é a utilização
de um discurso irônico sobre a cobertura midiática, como se verifica na Figura 1.
Figura 1.
Figura 1. A comunidade de facebook “Maré Vive” compartilha comentário da pagína “Favela Fiscal”
que ironiza a manchete do jornal O Dia sobre o resgate da cidadania perdida da Maré
Em outro post, a comunidade critica a tentativa da linha editorial do jornal O Globo
em criminalizar os moradores que protestam contra as arbitrariedades cometidas pelas
forças de pacificação. Como revela a Figura 2.
3. “Manifesto e Nota pública acerca da resistência popular contra a ditadura militar na Maré” (Maré Vive
– Abril de 2014). Disponível em http://marevive.wordpress.com/ . Acesso em 20 de julho de 2014.
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré
Renata da Silva Souza
Figura 2.
Figura 2. A comunidade “Maré Vive” questiona a linha editorial do jornal
O Globo que a partir de sua manchete criminaliza os protestos protagonizados
por moradores contra a militarização da favela
CONSIDERANDO QUE A “MARÉ VIVE”
Entre as propostas de soluções apontadas pela pesquisa do Cesec para uma cobertura
mais plural sobre as favelas está a criação de novos canais de diálogo com a população
das comunidades. Uma das formas de acesso mais interessante seria a interlocução
com organizações não-governamentais e entidades de direitos humanos. No entanto,
é inadequada e descabida a sugestão de “promover encontros sistemáticos com suas
lideranças, a exemplo do que vem fazendo até instituições mais fechadas, como a Polícia
Militar” (RAMOS; PAIVA, 2007, p. 86). Mesmo reconhecendo que o livro foi editado
antes da política de pacificação das favelas, não é aconselhável a reprodução de qualquer
estratégia já pensada e executada pela Polícia Militar para ter acesso à comunidade.
Esses encontros com as forças militares são geridos de maneira autoritária e intensifica a
relação conflituosa, de desconfiança e insegurança com relação aos órgãos de Segurança
Pública e da própria imprensa.
Além disso, a análise do discurso midiático sobre a ocupação militar da Maré
não deixa dúvidas sobre a tentativa de pacificação das relações sociais. A principal
característica dessa iniciativa se revela na abordagem jornalística em que se expressa,
no primeiro momento, uma ideia de que tal processo se deu com sucesso e aceitação
popular. Logo, as notícias que se seguem relatam a morte de um adolescente horas após
à ocupação e próximo ao local onde fora hasteada a bandeira do Brasil. As reportagens
revelam apenas a versão das forças policiais de que o menino teria sido vítima de uma
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré
Renata da Silva Souza
guerra entre facções. Não se questionou em nenhum momento como um adolescente
foi assassinado em plena luz do dia no mesmo instante em que a favela acabara de ser
ocupada por mais de 2 mil homens da Segurança Pública. Isso demonstra que, além de
pacificar os conflitos ali existentes, o discurso midiático forja a naturalização da perda
de vidas em um processo dito de pacificação, o efeito collateral, a morte do jovem, já
está antecipadamente justicada.
Sendo assim, a construção de possibilidades de novas versões sobre os fatos não
pode ser negligenciada. Uma iniciativa como a comunidade virtual Maré Viva é capaz
de pôr em xeque os discursos cristalizados que direcionam às favelas todo tipo de
estereótipos e preconceitos. Tal disputa é sem dúvida inglória, uma vez que a opinião
pública não é tão penetrável como se imagina. Mas, como bem expressou a Maré Vive,
na Figura 2, o universo 2.0 é um espaço que cabe probabilidades infinitas que ainda não
foram exploradas e experimentadas ao seu máximo. É nesses espaços, seja na internet
ou em meios físicos como as rádios, jornais e tvs comunitárias, que a favela reivindica
e realiza o seu direito de fala.
BIBLIOGRAFIA
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Janeiro. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2011.
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FOUCALT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2
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itG_A&sig2=kGArwZTWiKgRKqMkgr36GQ. Acesso em 10 de junho de 2014.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Maré sitiada: o discurso midiático sobre a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré
Renata da Silva Souza
Reportagens
COSTA, Bernardo. “Ocupação no Complexo da Maré é concluída em apenas 15 minutos” (EXTRA
– 30/3/13). Disponível em http://extra.globo.com/casos-de-policia/ocupacao-no-complexo-da-mare-concluida-em-apenas-15-minutos-12033951.html. Acesso em 15 de julho
de 2014.
MARÉ VIVE. “Manifesto e Nota pública acerca da resistência popular contra a ditadura militar
na Maré” (Maré Vive – Abril de 2014). Disponível em http://marevive.wordpress.com/
. Acesso em 20 de julho de 2014.
NASCIMENTO, Christiane et al. “Complexo da Maré terá um militar para cada 55 moradores” (O
DIA – 25/3/14). Disponível em http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-03-25/
complexo-da-mare-tera-um-militar-para-cada-55-moradores.html. Acesso em 15 de
junho de 2014.
SOARES, Rafael. “Justiça expede mandado coletivo e polícia pode fazer buscas em todas as casas
do Parque União e da Nova Holanda” (Extra – 29/3/14). Disponível em http://extra.globo.
com/casos-de-policia/justica-expede-mandado-coletivo-policia-pode-fazer-buscas-em-todas-as-casas-do-parque-uniao-da-nova-holanda-12026896.html. Acesso em 15 de
junho de 2014.
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
Press, citizenship and emancipatory initiatives
Jorge K anehide Ijuim 1
Resumo: Ao auxiliar a identificar os objetivos da comunidade, ajudando-a a
defini-la, a imprensa tem como uma de suas finalidades a promoção da cidadania (Kovach e Rosenstiel, 2004). A proposta deste ensaio é discutir a relação
entre o jornalismo e a cidadania. Esta reflexão parte da questão perturbadora:
Por que no Brasil há tantas organizações – e seus veículos virtuais – que atuam
em defesa das minorias e dos excluídos? Esta inquietação desperta o olhar para
eventuais lacunas da mídia no cumprimento do seu papel de promover a cidadania. Por isso, trago ao debate uma leitura histórico-cultural sobre a cidadania,
assim como exponho porque o Pensamento Moderno transformou os esforços
de emancipação em esforços de regulação (Santos, 2002), o que atribuiu ao seu
conceito um caráter reducionista. Ao final, apresento algumas constatações que
me levam a argumentar que segmentos da imprensa, como reflexo da própria
sociedade brasileira, trata as minorias com descaso, como também condena
grupos sociais à exclusão. Em outros termos, têm negligenciado uma de suas
importantes missões.
Palavras-Chave: Jornalismo. Jornalismo, cultura e sociedade. Cidadania.
Abstract: When the press helps to identify and to define the community goals it
has, as one of its purposes, the promotion of the citizenship (Kovach and Rosenstiel, 2004). The focus of this essay is to discuss the relation between journalism
and citizenship. This reflection starts from a disturbing question: Why there
are so many organizations in Brazil - and their specific virtual vehicles - that
act in defense of minorities and excluded persons? This question raises the look
for possible gaps of the media in the role of promoting citizenship. So, I bring
to the debate a historical-cultural reading of citizenship, as well as I expose the
reasons why Modern Thought turned the emancipation efforts in regulatory
efforts (Santos, 2002), which attributed to his concept a reductionist character.
Finally, I present some discoveries that lead me to argue that some segments of
the press, as a reflection of the Brazilian society, treat minorities with contempt.
In other words, they have been neglecting this important mission.
Keywords: Journalism. Journalism, culture and society. Citizenship.
1. Doutor em Ciências da Comunicação/Jornalismo pela ECA/USP; Universidade Federal de Santa Catarina/
Brasil; e-mail [email protected] , com a colaboração das pesquisadoras Suzana Rosendo e Criselli Montipó.
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
Jorge Kanehide Ijuim
1. INTRODUÇÃO
DECLARAÇÃO UNIVERSAL dos Direitos Humanos visa sintetizar os anseios de
A
bem-estar do cidadão, ao ressaltar as garantias de seus direitos civis, políticos
e sociais. Já na primeira afirmação, no Artigo I, evidencia: “Todas as pessoas
nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Em seguida, explicita a capacidade
de qualquer pessoa para gozar os direitos e as liberdades, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Ao sublinhar o direito a uma nacionalidade, esta também enfatiza a igualdade perante a lei e o
direito de proteção contra qualquer forma de discriminação. Além do direito ao trabalho
e remuneração adequada, a Declaração assegura que toda pessoa tem igual direito de
acesso ao serviço público do seu país. Tais preceitos parecem ser incontestáveis no plano da comunicação. Na academia
como entre profissionais, o espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos está
nos códigos de ética e deontológicos dos jornalistas como na bibliografia da área. O
Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (Fenaj, 2007), em dois artigos, destaca alguns
compromissos relevantes:
XI - defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais
e coletivas, em especial as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias;
XIV - combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos,
políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou
de qualquer outra natureza.
Os jornalistas lusitanos igualmente expressam tais preocupações no Artigo 8º do seu
Código Deontológico, quando ressaltam que “o jornalista deve rejeitar o tratamento
discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacionalidade ou sexo”. A
Sociedade dos Jornalistas Profissionais dos Estados Unidos da América encoraja seus
filiados a “evitar estereótipos de raça, gênero, idade, religião, etnia, geografia, orientação
sexual, deficiência, aparência física ou status social”. Em ampla consulta a profissionais e à população, Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2004)
procuraram identificar a opinião de especialistas e do público sobre a questão “Para
que serve o jornalismo?” A primeira constatação confirmou o sentimento considerado
uma pedra angular para os norte-americanos, qual seja, as garantias de direito de livreexpressão, embasado no princípio de que o público tem direito de ser informado. Este
fato determinou que aqueles estudiosos afirmassem:
A principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações de que necessitam para serem livres e se autogovernar. (Kovach e Rosenstiel, 2004: 31).
A par desta percepção, no entanto, os pesquisadores sentiram nos depoimentos o
que consideraram uma “obrigação [do jornalismo] para com a cidadania”. Esta abriga
várias formas, como identificar os objetivos da comunidade, como também oferecer voz
aos esquecidos ou desamparados.
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
Jorge Kanehide Ijuim
Veículos de comunicação brasileiros têm explicitado sua missão de promover a
cidadania, a exemplo da revista Brasileiros, como veremos no decorrer deste texto. Mas
que cidadania? Como a imprensa entende a cidadania? Como se comporta, de fato, na
busca dessa cidadania?
Diante dessas considerações iniciais, devo esclarecer que este trabalho, de caráter
ensaístico, propõe uma reflexão teórica sobre as relações entre o Jornalismo e a Cidadania.
Para tanto, apresento nas próximas linhas uma discussão sobre a evolução do conceito de
cidadania (Marshall, 1967) e um questionamento que aponta um eventual reducionismo
a tal conceito (Santos, 2002). No intento de aprofundar as observações desta relação entre
Jornalismo e Cidadania, parto de uma pergunta perturbadora:
- Por que no Brasil há tantas organizações – e seus veículos virtuais específicos – que atuam
em defesa das minorias e dos excluídos?
Ao descrever e analisar os espaços virtuais de uma amostra de organizações de
defesa de minorias e de grupos sociais excluídos, e confrontar este quadro com alguns
episódios tratados pela imprensa, aponto fragilidades que representam lacunas nesta
missão de promoção da cidadania. Para esta tarefa, recorri aos recursos da análise crítica
de mídia com base em Isabel Ferin Cunha (2012) e Luiz Gonzaga Motta (2013).
2. QUE CIDADANIA?
A expressão cidadania tem sua origem no latim civitas, que signifi­ca “cidade”. Desde
a Antiguidade, as ideias evoluíram de modo a estabelecer um caráter de pertencimento
a uma comunida­de politicamente articulada, que lhe atribui um conjunto de direitos e
obri­gações. As noções contemporâneas sobre cidadania advêm da Modernidade com a
estruturação do conceito de estado-nação, ao conferir ao cidadão a posse de direitos civis,
políticos e sociais. Em seu texto clássico “Cidadania e classe social”, o sociólogo britânico
T.H. Marshall (1967) salienta que na Idade Média esses três direitos eram fundidos
porque as próprias instituições eram amalgamadas. Ao longo de quatro séculos, entre
XVII e XIX, as ideias sobre a cidadania sofreram um processo de fusão e separação ao
que Marshall observou um distanciamento entre esses três direitos e logo pareceram
elementos estranhos entre si.
As transformações extraordinárias que aconteceram na Europa naquele período
envolveram os aspectos político, econômico e social, entre outros. As revoluções científica e industrial, a criação dos estados-nação, a emergência da burguesia contribuíram
para o processo a que Marshall se refere. Com a queda do absolutismo implantou-se
as novas formas de governo e de administração pública; a burguesia em ascensão fez
valer seus interesses capitalistas. As primeiras consequências foram o surgimento de
uma administração burocratizada encarregada da cobrança de impostos e a criação
dos tribunais que regulamentassem os novos modos de vida de uma sociedade mais
urbanizada.
Se o direito ao trabalho e à propriedade tornou-se símbolo dos direitos civis, os
direitos políticos foram marcados pela possibilidade de participação na vida pública.
Na opinião de Marshall, estes dois elementos foram fundidos ao longo desses séculos,
em detrimento da separação da noção de direitos sociais. Estes últimos passaram a
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
Jorge Kanehide Ijuim
ser esboçados no século XIX com a conquista do direito à instrução. As garantias de
acesso aos serviços públicos só evoluiu efetivamente no século XX, em especial após a 2ª
Guerra Mundial, o que coincide com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948.
Boaventura de Sousa Santos (1997, 2002, 2010) analisa este período e este processo
por outros parâmetros e faz considerações igualmente interessantes. O sociólogo
português observa que o conflito entre o ideário iluminista e os interesses capitalistas
da burguesia gerou algumas tensões. A mais importante é que a criação do estado
de direito transformou os esforços de emancipação em esforços de regulação, o que
estabeleceu uma lógica que supervalorizou o Estado em sua atuação sobre os negócios,
no legislar e no mundo do direito. Esse superestado controlador chamou para si várias
responsabilidades constituindo um estado providência e, centralizador, negligenciou
o atendimento de serviços mais básicos da sociedade.
Simultaneamente a estas considerações, Santos aponta pelo menos mais dois fatores
que marcam os conflitos da Modernidade, quais sejam, o predomínio de uma “razão
indolente” (Santos, 2002) e o desenvolvimento de um “pensamento abissal” (Santos,
2012). A razão indolente instalou-se com a consolidação do Estado-liberal na Europa e na
América do Norte, as revoluções industriais e a escalada capitalista. Estas constituíram
um contexto sociopolítico também favorável ao colonialismo e ao imperialismo.
A indolência desta razão tem vários vieses, mas vou me concentrar na crítica que
Santos chama de “razão metonímica”, por ser a mais adequada a esta discussão. Esta
razão metonímica é obcecada pela ideia de totalidade sob a forma de ordem. Fruto da
compreensão cartesiana sobre o universal e o particular, por ser uma razão arrogante,
dita que “não há compreensão nem ação que não seja referida a um todo, e o todo tem
absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compõem” (Santos, 2002: 241-242).
Assim, o todo é uma das partes transformada em termos de referência para as demais
[falsa generalização?]. Por isso mesmo, o homem ideal – europeu, branco, letrado, burguês
– impõe-se ao mundo como modelo a ser seguido. Tal imposição denota a forma mais
acabada dessa falsa totalidade – a dicotomia. Por ser parcial e seletiva, gera hierarquias
e distinções, como conhecimento científico/conhecimento tradicional, homem/mulher,
civilizado/primitivo, capital/trabalho, branco/negro, Norte/Sul, Ocidente/Oriente.
Assim, não é capaz de aceitar que a compreensão do mundo é muito mais do que a
compreensão ocidental de mundo.
Por outro lado, como enfatiza Santos, um processo que vem desde a era dos
descobrimentos e os primeiros tratados de amizade, ganhou força e apoio desta razão
moderna. Para ele, “o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal” (Santos,
2012: 23). Este consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis de modo a dividir
a realidade social em dois universos: O deste lado da linha e o do outro lado da linha.
“A divisão é tal que o outro lado da linha desaparece enquanto realidade, torna-se
inexistente [...] Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou
compreensível” (idem: 23). A crueldade do pensamento abissal está justamente em não
reconhecer, nem se interessar, e desprezar qualquer componente do “outro lado da linha”.
Este quadro constitui o que Santos chama de Epistemologias do Sul. O autor alerta,
no entanto, que esta caracterização não é mais geográfica (hemisférios norte e sul), mas
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
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uma metáfora que denuncia o sistema de distinções aqui debatidos. Portanto, há um
norte e um sul em Lisboa, como em Portugal, como na própria Europa. Há visíveis e
invisíveis em Nova Iorque como nos Estados Unidos. Há existentes e inexistentes no
Rio de Janeiro ou em São Paulo, no Brasil ou na América Latina.
Como síntese deste momento da discussão, podemos inferir que:
a) O conceito de cidadania transformou-se durante quatro séculos, evidenciando os
direitos civis, políticos e sociais. Estas conquistas decorreram das tensões Sociedade e
Estado. Os direitos civis e políticos sofreram um processo de fusão e uma desvalorização
dos direitos sociais.
b) A instalação de uma razão indolente e o desenvolvimento de um pensamento
abissal colaboraram para o aumento das distinções, primeiro na própria Europa e depois
estas ganharam escala global.
c) A conjugação destes fatores contribui para o estabelecimento de uma versão
reducionista ao conceito de cidadania. Na forma popular, parece que cidadania está
restrita aos diretos de qualquer pessoa de participar da vida pública. O direito de
usufruir dos serviços essenciais, o direito de buscar e assegurar a emancipação social
são noções pouco lembradas – pela população e pelos órgãos de imprensa.
3. JORNALISMO E EMANCIPAÇÃO
Cremilda Medina (1988, 2008) já alertara que o jornalismo moderno teve suas bases
estabelecidas no século XIX, quando a imprensa deixou de ser atividade artesanal para
constituir-se como indústria de informação e adotou os mesmos métodos e processos
de uma fábrica. Assim também, essas novas organizações incorporaram o pensamento
predominante – o pensamento positivista. O crescimento econômico, a expansão
populacional, o aumento do número de pessoas alfabetizadas, aliados à efervescência
cultural naquele período, exigiram dos meios de comunicação não só maior produção
de notícias, mas também agilidade na disponibilização de seu produto no mercado.
Nestas circunstâncias, os modelos jornalísticos foram construídos de modo a
atender uma demanda ansiosa e crescente. Para corresponder a tais exigências, as
empresas jornalísticas adequaram processos de fabricação a fórmulas para a observação
da realidade. Prescrições positivistas como a necessidade de comprovação, o trato da
realidade “como ela é” ecoam no pensar e no fazer jornalístico. Se o “estado positivo”
de Comte era a única base possível dos conhecimentos acessíveis à verdade, as técnicas
de reportagem garantiram a presença do profissional nas ruas em sua busca por
informações. Assim, a imprensa ganhou com o espírito de investigação, como também
em precisão, diversificação de fontes e pluralidade de opiniões.
Mas a imprensa também agregou características que representam riscos. Como
produto e consequência da era moderna, as empresas de comunicação – criadas e geridas
pela lógica capitalista – assimilaram as “razões modernistas”, que impõem sistemas
de seleção, hierarquização, distinções. Também com os riscos de reduzir o conceito de
cidadania aos direitos civis e políticos, em detrimento à atenção aos direitos sociais.
A imprensa enquanto instituição chega ao século XXI com equipamentos e técnicas
extraordinários que atendem às necessidades deste momento acelerado da história.
As tecnologias de informação e comunicação proporcionam condições de agilidade
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
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e abrangência como nunca se viu. Mas a essência dos modelos e processos parece
ser mantida. Como os veículos de comunicação se comportam diante dos anseios de
emancipação social?
Em sua dissertação, a pesquisadora Criselli Montipó observou que a revista Brasileiros
assumiu em seus editoriais, desde a sua criação, em 2007, o compromisso com a promoção
da cidadania. Na primeira edição, Hélio Campos Melo assinava o editorial declarando
essa escolha como uma postura ideológica sobre a prática jornalística.
Ao examinar 48 edições entre 2007 e 2011, Criselli selecionou uma amostra de
reportagens em que pode constatar alguns dados interessantes. A Brasileiros cumpriu sua
proposta de pluralidade ao focar histórias de pessoas de todas as idades – velhos, adultos,
adolescentes e crianças; como também nas referências de gênero – homens, mulheres,
travestis; abordou temas de todas as regiões do país. Assim, atendeu seu compromisso
de abordar temas que correspondam à diversidade nacional. As reportagens de perfil
e as histórias de vida foram uma marca neste período e, em geral, também estiveram
atentas ao propósito de Brasileiros de procurar mostrar os brasileiros – sem distinção
de sexo, idade, cor, classe socioeconômica – cujas histórias poderiam ser exemplos,
pessoas que constituem modelos de luta por seus espaços na sociedade, de busca por
seus direitos. Em todas as reportagens denota-se o respeito às diferenças, como também
não se verifica prejulgamentos de abordagens estereotipadas.
Uma inferência relevante da pesquisadora é a de que o compromisso de promoção
de cidadania da revista Brasileiros traz, no fundo, é a defesa de um cidadão idealizado
por seus editores. Esta idealização, no entanto, comporta os desejos, a visão de mundo,
as crenças político-ideológicas desses editores. Este fato nos coloca em dúvida se, ao
propor um “cidadão modelo”, na verdade a revista intenciona mostrar um “país que
dá certo”, lembrando que a Brasileiros, pela linha editorial e pelo material que produz,
é reconhecida como simpatizante do ex-presidente Lula.
A iniciativa e as intenções desta publicação, se praticadas em sua totalidade ou não,
ainda parecem louváveis. Há setores da grande imprensa brasileira, no entanto, que não
agem com tal preocupação. A imprensa brasileira, originalmente de resistência, teve
atuação decisiva em movimentos emancipatórios como o abolicionismo e a conquista
da república. No Século XX, transformou-se em empresa de comunicação. Em especial
a partir da Era Vargas (1930), esta passa a ser mais que veículo de informação para
tornar-se instrumento com relações íntimas com os poderes políticos e econômicos
(Sodré, 2011). Os programas desenvolvimentistas, desde Getúlio Vargas (1930-1945 e
1951-1954), passando por Juscelino Kubitschek (1956-1961) e da Ditadura Militar (19641985) favoreceram a sedimentação do regime capitalista e, no campo da comunicação,
facilitaram a formação de grandes conglomerados de informação – muitos deles com
estreitas relações com o poder constituído. Por isso mesmo, estes grupos têm atuado,
com raras exceções, de maneira a conservar o status quo e os interesses mercantis.
Os setores da imprensa a que me refiro refletem o conservadorismo da própria
sociedade brasileira, ajudando a naturalizar posturas discricionárias e preconceituosas,
não só tratando com descaso as minorias e grupos sociais excluídos, como também
envida minimizar movimentos emancipatórios. Algumas dessas posturas podem ser
notadas nos casos a seguir:
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
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Exclusão - A pesquisadora Suzana Rozendo, em sua dissertação de mestrado, descreveu a vida de pessoas em situação de rua (a nomenclatura mais aceita para essas pessoas).
Assim também narrou as diversas formas com que são tratadas pela população e por
veículos de comunicação. Ao consultar o estudo de Cleisa Rosa, mostrou um levantamento
das expressões comuns na imprensa por várias décadas em São Paulo. O tratamento da
população e, consequentemente dos jornais, aludiam a essas pessoas termos como desabrigados, vadios, indigentes, mendigos e marginalizados. Depois, o vocabulário passou
por moradores de rua, sem-teto, doentes mentais, bandidos, contraventores e marginais.
Por fim, eram correntes habitantes de rua, maloqueiros, desocupados, desempregados,
andarilhos, loucos de rua, desassistidos, excluídos, fauna de deserdados, flagelados, e
velhos de rua. Nota-se, portanto, que todas as formas de tratamento ganhavam conotação
de algo mau, o tom pejorativo que desqualifica o ser humano.
Ainda que tenham surgido expressões mais amenas, Suzana Rozendo relata que o
tom negativo permanece nestes primeiros anos do século XXI. A exclusão de um sem
número de pessoas em grandes centros urbanos que vivem nessa situação é reforçada
pelos estereótipos aqui mencionados. E os órgãos de comunicação, por sua vez, têm
se encarregado de amplificar tais preconceitos que, pela persistência desse discurso
classificatório, ao invés de promover o diálogo, afasta cada vez mais os diferentes.
Essa visão discriminatória e excludente é fruto de uma cultura conservadora e
moralista de segmentos sociais. Na instância parlamentar, esta postura é observada e
tem ajudado a naturalizar os preconceitos aqui denunciados, como se pode notar nos
fragmentos a seguir:
José Paulo Carvalho Oliveira (PT do B), em discurso na Câmara Municipal de Piraí/RJ,
defendeu que morador de rua não deveria votar e declarou que “mendigo tinha que virar
ração de peixe”. (O Globo, 30/10/2013).
A vereadora Leila do Flamengo afirmou ser hipocrisia dizer que moradores de rua têm os
mesmos direitos dos cidadãos e defendeu que um abrigo de animais do município passasse
a receber os mendigos, pois eles tiravam a tranquilidade dos moradores da zona sul. (O
Globo, 2/11/2013)
Esta naturalização ganha ênfase de modo que órgãos de imprensa, deliberadamente
ou não, cometam deslizes como a notícia veiculada pelo Globo Esporte:
Ex-menino de rua, Alan Patrick passou fome, foi engraxate, hoje luta no UFC (Globo Esporte
– 16/06/2014) (grifos meus)
Por mais que os editores quisessem valorizar a superação de Patrick, ao recorrer
a expressões estigmatizadas acaba por reforçar o preconceito a grupos culturalmente
excluídos.
Inconvenientes – Naturais da terra muito antes da colonização europeia, os
indígenas foram dizimados e encurralados em reservas. A presença europeizante nas
Américas atribuiu às nações indígenas vários estigmas, como o da preguiça, da vida
despreocupada, do pouco gosto pelo trabalho. Os conflitos pelas demarcações de reservas
e a defesa de ecossistemas em territórios próximos de obras de infraestrutura, como a
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
942
Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
Jorge Kanehide Ijuim
duplicação da BR-101, próxima a reserva do Morro dos Cavalos (SC), ou a precariedade
do modo de vida em aldeias são temas recorrentes nos meios de comunicação brasileiros.
Setores da imprensa mais influentes têm privilegiado noticiar os conflitos e, em geral,
caracterizando os indígenas como inconvenientes – invasores ou agressores. Em breve
levantamento na imprensa regional de Santa Catarina, observa-se que o tom das matérias
coloca os moradores da reserva Guarani como empecilho para a conclusão das obras de
ampliação da principal rodovia federal da região sul. O projeto prevê que a duplicação
ocupe uma faixa do território indígena, o que ainda não permitiu consenso entre Funai
e outras autoridades envolvidas.
Esta mesma comunidade indígena já foi alvo da grande imprensa, como a revista
Veja que, em 2007, publicou ampla reportagem visando desqualificar e a colocar sob
suspeita a origem dos índios daquela reserva. A reportagem (Made in Paraguai) chegou
a denunciar, sem qualquer fundamento, que aquela população teria sido transposta da
Argentina e do Paraguai para justificar a demarcação daquelas terras.
O desrespeito aos povos indígenas também podem se apresentar de forma sutil,
como nos títulos de reportagens:
Terenas invadem outra fazenda na região do Pantanal
(OESP 1/06/2013)
Índios quebram acordo e invadem outra fazenda em MS
(Folha de S. Paulo 02/06/2013)
Índios pataxós invadem cinco fazendas no sul da Bahia
(Agência Brasil 15/04/2012) (grifos meus)
As disputas pela terra acontecem em várias partes do país. Após a Constituição
Federal de 1988 ter determinado prazo para a demarcação dos territórios indígenas essas
tensões foram acentuadas. O embate entre índios e proprietários rurais é noticiado em
matérias como estas. Note-se que não se trata de simples questão semântica – a expressão
invasão denota a postura desses órgãos de imprensa diante dos conflitos.
Por essas razões, percebe-se que o discurso construído pela mídia privilegia e reforça
o ponto de vista defendido pelos grupos econômicos, de que “as reservas abrigam poucos
índios em grandes extensões territoriais”. Por isso mesmo, o índio é uma inconveniência
ao “progresso”.
Visibilidade dos invisíveis – Um episódio que chocou o país em março de 2014
foi o de Cláudia Silva Ferreira, de 38 anos, baleada em ação da Polícia Militar na zona
norte do Rio de Janeiro. Ao socorrer a vítima, policiais a colocaram no porta-malas da
viatura para transportá-la ao hospital; no trajeto, o porta-malas se abriu e Cláudia foi
arrastada por 350 metros e morreu. É impressionante constatar como toda a imprensa
se referiu ao acontecimento, como nesses títulos:
Polícia vai ouvir outros 3 PMs no caso de mulher arrastada no Rio
(G1-RJ - 20/03/2014)
Mulher arrastada por carro da PM foi morta por tiro, aponta laudo (Folha de S. Paulo
– 18/03/2014)
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
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Sérgio Cabral recebe nesta quarta família de mulher arrastada por viatura
(OESP - 19 de março de 2014) (grifos meus)
A “ladainha” da mídia foi exatamente esta: “mulher, moradora, morta, arrastada,
arrastada, arrastada... filha de arrastada, enterro de arrastada, viúvo da mulher arrastada”.
Sem nome, sem identidade, sem humanidade, apenas mais um cadáver. Cláudia da Silva
Ferreira era negra, trabalhadora, pobre e moradora de comunidade carente e, por isso
mesmo, invisível. E esta foi a maneira que a imprensa deu visibilidade a esta invisível.
Pelos exemplos aqui apresentados, devo considerar que setores conservadores
da imprensa brasileira, por um lado, cometem deslizes éticos graves. Por outro, têm
colaborado para a naturalização de estereótipos e para reforçar preconceitos a minorias
e grupos sociais já tradicionalmente excluídos. Ao invés de dedicar esforços para a
emancipação social desses grupos, contribuem para ressaltar as distinções, ampliar o
foço de desigualdades que ainda caracteriza o país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
INICIATIVAS EMANCIPATÓRIAS
O Governo Federal Brasileiro instituiu, em 1977, a Secretaria de Direitos Humanos,
vinculada ao Ministério da Justiça. Em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a
elevou ao status de ministério. Esta é responsável pela articulação interministerial e
intersetorial das políticas de promoção e proteção aos Direitos Humanos. No mesmo
ano, foi criada a Secretaria de Políticas para as Mulheres, encarregada de promover a
igualdade entre homens e mulheres e combater o preconceito e a discriminação, assim
como atuar pela valorização e a inclusão da mulher no processo de desenvolvimento
social, econômico, político e cultural. A Presidência constituiu ainda a Secretaria
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que se preocupa com a formulação,
coordenação e articulação de políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial,
além de coordenar e avaliar as políticas públicas afirmativas de promoção da igualdade
e da proteção dos direitos de indivíduos e grupos étnicos, afetados por discriminação
racial e intolerância. Entre outras finalidades, esta Secretaria também é responsável pelo
planejamento, coordenação da execução e avaliação do Programa Nacional de Ações
Afirmativas, que estabelece uma política para o acesso de afrodescendentes e pessoas
de baixa renda às universidades públicas.
Sobre as ações governamentais que visam o respeito aos direitos humanos e a
minimização das desigualdades, pode-se destacar ainda a aprovação de dois estatutos,
quais sejam, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, e o Estatuto do
Idoso, em 2003. Na essência, estes garantem os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana.
De fato, esses adventos parecem ter colaborado para o aumento do debate popular
e a elevação da consciência coletiva sobre a vivência efetiva dos direitos humanos. Estes
também incentivaram a criação e a sedimentação de organizações e entidades que se
propõem a orientar e proteger minorias e grupos sociais excluídos. Vale a pena conhecer
o trabalho de algumas delas.
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
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A ANDI foi criada em 1993, inicialmente como uma agência de notícias dos direitos
da infância. Há poucos anos, ampliou seu raio de ação para abranger mais dois grandes
temas – Inclusão e sustentabilidade, e Políticas de comunicação – quando passou a ser
chamada de ANDI – Comunicação e Direito. Constitui-se como uma organização sem
fins lucrativos que articula ações em mídia para o desenvolvimento. Suas estratégias
visam promover e fortalecer um diálogo profissional entre as redações, as escolas de
comunicação e de outros campos do conhecimento, os poderes públicos e as entidades
relacionadas à agenda do desenvolvimento sustentável e dos direitos humanos.
Entre suas ações relevantes está o monitoramento de mídia, pelo qual identifica
eventuais incorreções ou abusos da imprensa. Assim, orienta e propõe posturas
apropriadas a jornalistas e empresas de comunicação. O monitor de mídia também
oferece pautas [agendas de imprensa] e sugere fontes de informação visando enriquecer
e fundamentar reportagens. Este trabalho já ajudou a provocar mudanças de hábitos
significativos na prática profissional. Não faz muito tempo que era comum ver no
noticiário expressões como “menor”, “delinquente”, “menino de rua”. Esta atuação da
ANDI em defesa da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente foi de fundamental
importância nesse sentido.
Ao se preocupar com a formação “na base”, a organização tem levado programas
às escolas de jornalismo, através de concursos, por exemplo, que têm promovido o
aumento da discussão de temas que valorizem o ser humano. A iniciativa da ANDI
fez nascer em várias partes do país instituições congêneres, como o Girassolidário, o
IBIS - Instituto Brasileiro de Igualdade Social e a ASBRAD – Associação Brasileira de
Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude, que também têm cumprido o papel de
contribuir com a elevação da consciência de jornalistas e população em geral.
No mesmo sentido, podem ser encontradas no Brasil muitas outras organizações
que se propõem a mobilização popular e atuar em favor dos direitos humanos, como o
MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que traz como lema “Construindo a
resistência urbana”; O Racismo Brasil, de caráter eminentemente educativo. De forma
pouco diversa, algumas publicações especializadas buscam a valorização humana e
a difusão de ideias anti-discriminatórias, como a revista Raça Brasil, e publicações
que oferecem uma versão alternativa à grande imprensa, como o Brasil de fato e o
Portal Desacato.
Num país em que as desigualdades são extraordinárias, em que apenas 10% de
pessoas concentram 42% da riqueza, conforme relatório do IBGE de 2012, e pela amostra
de reportagens aqui criticadas, organizações como estas aqui citadas parecem se fazer
necessárias. Estas realizam um trabalho de vigilância pela emancipação social, em
outros termos a vigilância para se resguardar e evoluir a cidadania. Na ausência de
um “marco regulatório da mídia”, tais instituições – ainda que de forma limitada
– respondem ao desafio de sensibilizar a imprensa para que cumpra seu papel de
promoção da cidadania.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
Jorge Kanehide Ijuim
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Declarações de Leila do Flamengo sobre mendigos irritam vereadores
O Globo 1/11/2013 - http://oglobo.globo.com/rio/declaracoes-de-leila-do-flamengo-sobre-mendigos-irritam-vereadores-10666241#ixzz2jafQ8ETg .
Ex-menino de rua, Alan Patrick passou fome, foi engraxate, hoje luta no UFC
Globo Esporte – 16/06/2014 - http://globoesporte.globo.com/programas/esporte-espetacular/
noticia/2014/03/ex-menino-de-rua-alan-patrick-passou-fome-foi-engraxate-hoje-luta-no-ufc.html .
Made in Paraguai
Revista Veja 14/03/2007 - http://veja.abril.com.br/140307/p_056.shtml
Terenas invadem outra fazenda na região do Pantanal
OESP 1/06/2013 - http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,terenas-invadem-outra-fazenda-na-regiao-do-pantanal,1037653,0.htm
Índios quebram acordo e invadem outra fazenda em MS
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Imprensa, cidadania e iniciativas emancipatórias
Jorge Kanehide Ijuim
Folha de S. Paulo 02/06/2013 - http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1288727-indios-quebram-acordo-e-invadem-outra-fazenda-em-ms.shtml
Índios pataxós invadem cinco fazendas no sul da Bahia
Agência Brasil - 15/04/2012 –
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/04/15/indios-pataxos-invadem-cinco-fazendas-no-sul-da-bahia.htm
Polícia vai ouvir outros 3 PMs no caso de mulher arrastada no Rio
G1-RJ - 20/03/2014 - http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/policia-vai-ouviroutros-3-pms-no-caso-de-mulher-arrastada-no-rio.html
Mulher arrastada por carro da PM foi morta por tiro, aponta laudo
Folha de S. Paulo 18/03/2014 - http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/03/1427471-mulher-arrastada-por-carro-da-pm-foi-morta-por-tiro-aponta-laudo.shtml
Sérgio Cabral recebe nesta quarta família de mulher arrastada por viatura
OESP - 19 de março de 2014 - http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,sergio-cabral-recebe-nesta-quarta-familia-de-mulher-arrastada-por-viatura,1142555,0.htm
Organizações consultadas:
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Sindicato dos Jornalistas. Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses (1993). http://
www.jornalistas.eu/
Society of professional journalists. SPJ Code of Ethics http://www.spj.org/ethicscode.asp .
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR): http://www.sdh.
gov.br/
Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR): http://
www.spm.gov.br/
Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR-PR): http://www.seppir.
gov.br/ .
Andi – Comunicação e Direitos - http://www.andi.org.br/
IBIS/MG – Instituto Brasileiro de Igualdade Social - http://www.ibismg.org.br/
Girassolidário - Agência em Defesa da Infância e Adolescência (MS) –
http://www.girasolidario.org.br/home
ASBRAD – Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude –
http://www.asbrad.com.br/
MTST - Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - http://www.mtst.org/
Racismo no Brasil - http://racismo-no-brasil.info/
Revista Raça Brasil - http://racabrasil.uol.com.br/index.asp
Brasil de fato - http://www.brasildefato.com.br/ - http://www.brasildefato.com.br/node/11605
Portal Desacato - http://desacato.info/santa-catarina/ .
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O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e
como criação de redes de interlocução cultural e política
Wi lq Vic en t e
dos
Santos 1
Resumo: Hoje o audiovisual é visto cada vez mais como um setor não restrito
ao dito cinema de mercado e à indústria cultural, e também como instrumento
no interior de ações culturais e sociais.
Palavras-Chave: Audiovisual. Políticas Públicas. Cultura. Vídeo Popular 4.
Abstract: Today the audiovisual is increasingly seen as an unrestricted sector
to said film market and the cultural industry, and also as a tool within cultural
and social activities.
Keywords: Audiovisual. Public Policy. Culture. Video Popular.
N
A GRAMÁTICA de nosso espaço, para fazer inteligíveis quaisquer fenômenos
atuais das cidades brasileiras, centro e periferia são flexões fundamentais. O
centro não é apenas um lugar, há muito já não coincide apenas com a centralidade
geográfica, é uma construção, uma operação que mobiliza recursos e políticas públicas
para além das imensas especulações e capitais privados para edificar enclaves, espaços
de circulação restrita a uma minoria da população.
As quebradas são muitas e se espalham por todas as direções. Aparentemente, o
único vínculo entre elas seria o centro que as une, na forma de um espelho que reflete,
em locais de trabalho, estudo ou diversão. Há, certamente, muitas maneiras de pensar os
questionamentos e enfrentamentos culturais marcados pela oposição centro/quebrada
e de utilizá-los como instrumento de reflexão e criação.
Entre essas diversas possibilidades, uma maneira ainda muito comum é aquela em
que o centro é o lugar natural de tudo aquilo que faltaria à longínqua quebrada: trabalho, lei, informação, cultura e política. Seria o destino necessário de toda periferia, que
por sua vez carrega o peso de um mal necessário, como mero resquício de um passado
a ser superado pela via de uma missão civilizadora que, no entanto, nunca chega a se
concretizar.
Todavia, na última década, outra maneira de articular essa relação ganhou enorme
força. Com ela, a posição “periferia” já aparece ligada a um conjunto de elementos positivos, como cultura, cinema e vídeo. Exemplo maior disso é que ela já não tem tanto o
sentido de um lugar marcado pela ausência de acesso à “informação” e “cultura”, mas
uma fonte poderosa e inovadora de produção e reprodução de informações e de uma
rica diversidade cultural. Dessa diversidade, compartilhando problemas crônicos de
1. Mestrando do Programa de Estudos Culturais. Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade
de São Paulo/USP. Emails: [email protected] ou [email protected].
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O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política
Wilq Vicente dos Santos
infraestrutura urbana ou moradia precária, surge uma identidade que se reflete em
uma, hoje cultuada, “cultura da periferia”, “da quebrada”.
Presenciamos atualmente o momento em que essa cultura chega aos formatos do
cinema e do vídeo. “Cinema de quebrada”, “vídeo comunitário”, “vídeo popular”, “vídeo
periférico” e “vídeo militante” são algumas das maneiras pelas quais produtores e
pesquisadores nomeiam a atividade, articulando um discurso audiovisual próprio e
externando disputas, tensões e reflexões permanentes sobre as implicações políticas de
diferentes modos de atuação. Diversas concepções e reflexões se apresentam, no entanto, ainda há um caminho a trilhar para que se possa, como postula Antonio Gramsci,
“encontrar a identidade real sob a diferenciação e contradição aparente, e encontrar a
diversidade substancial sob a identidade aparente” (GRAMSCI, 1977, p. 2268).
Hoje o audiovisual é visto cada vez mais como um setor que não está restrito ao
dito cinema de mercado e à indústria cultural, e também como um instrumento no
interior de ações culturais e sociais. Diversas políticas públicas buscaram contemplar
esse setor do audiovisual nos últimos anos, enfatizando o papel formativo e social e o
estímulo à diversidade cultural. Essa noção já vinha fazendo parte da agenda política
internacional desde meados da década de 1990, sendo a Unesco a principal protagonista
na formulação e difusão do conceito, através do relatório Nossa Diversidade Criadora,
em que aparece como motor para o desenvolvimento humano e sustentável, viabilizando
o respeito às diferenças e a tolerância entre os povos.
Esse estímulo acaba por atingir também a posição central da relação centro/quebrada. Se o centro não dispõe mais da velha exclusividade quando se trata de produção
cultural (para não falar da produção econômica em geral), desponta agora a periferia
como polo de investimento e atenção. É necessário dizer, porém, que tais iniciativas
não se traduzem em alterações estruturais das políticas de investimento do Estado e
na regulação do mercado. No fundo, a política da diversidade tem feito parte de um
esforço em construir uma representação ideológica do Estado em que ele não aparece
como um organismo de classe, mas como expressão de todas as energias nacionais.
No que se refere aos aspectos político-culturais, o princípio da diversidade, fortalecido nas últimas décadas, se traduz na defesa do respeito à pluralidade das culturas
e pelo reconhecimento das identidades culturais. A ideia de diversidade é mobilizada
como um vetor que pode proporcionar um equilíbrio no mercado de bens culturais,
que, por sua vez, é marcado por fortes desigualdades e concentração nas mãos de poucos, tanto no âmbito da produção e difusão como no do consumo de bens e serviços
culturais. Tal perspectiva da diversidade vem sendo utilizada na interlocução entre o
Estado e os agentes culturais que pressionam por políticas públicas para o setor, sob a
ótica do direito à cultura. Nesse contexto, em que se abre campo para tais políticas, mas
timidamente ainda, parte da atuação dos grupos de produção audiovisual popular foi
a de reivindicar a ampliação de determinadas políticas pelo Estado.
Apesar desse contexto, é possível dizer que há sempre espaço para que as contradições inerentes a esses aspectos do atual panorama político-cultural brasileiro criem,
a depender da organização e formulação interna de determinados grupos, condições
para algum grau de instabilidade política que possam motivar modificações. A cultura,
então, aparece como um elemento fundamental na organização das classes populares,
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O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política
Wilq Vicente dos Santos
capaz de abrir caminhos para a construção de uma força coletiva, contrapondo-se às
concepções de mundo oficiais.
Nessa encruzilhada estão presentes produtores audiovisuais que, sempre entre o
tempo obrigatório do trabalho e o necessário descanso, encontram cada vez mais na
produção cultural seus instrumentos de luta e espaços de rara liberdade e coletividade.
Mais do que o mero reconhecimento de algum “centro”, mais do que por vezes se
espera com as novas “oportunidades” que estes lhes oferecem, na prática esses produtores e seus coletivos parecem estar justamente questionando e reinventando os
termos do binômio centro/quebrada de uma maneira que seria improvável ao mercado
audiovisual hoje.
Mas, para além do olhar sobre os aspectos socioculturais de tais iniciativas, hoje
podemos olhar para essa produção tal como criações artísticas. Compartilhando da
ideia de André Costa,
“[…] queremos questionar se o que estamos contemplando aqui não pode ser compreendido
como a produção de uma experiência estética gerada por um conjunto de saberes, técnicas e
atividades específicas. Esse conjunto de instrumentos (videoteca, mostras, debates, formas
de vídeo participativo) não comporia um aparato técnico (e tecnológico) para uma imersão
de certo público no campo estético?” (Costa, 2007, p. 78).
A criação e a experiência estéticas nesse caso são indissociáveis da experiência e da
ação política. Parte fundamental da expressão dessa cultura “da periferia” ou “popular”
é o audiovisual como instrumento de mudança na cidade, como instrumento de criação
de redes de interlocução política e cultural, por vezes articulando uma postura de luta
de classes, por vezes buscando uma inserção ainda que marginal em um “mercado”
audiovisual, tensão permanente nas disputas pelo significado desse campo. Os vídeos,
em geral, refletem esse contexto e são pensados como instrumentos de luta por transformação, que abarcam diversos problemas sociais que a periferia escancara com mais
força – a discriminação do negro, a luta por moradia, por saúde, educação e cultura são
algumas das questões proeminentes.
É importante destacar, porém, a necessidade de se olhar para esse conjunto para
além de um “reflexo” ou “expressão” de determinada realidade. A ideia de “mediação”,
tal como proposta por Raymond Williams aponta para a necessidade de se reconhecer
na produção cultural um processo ativo de relação entre sociedade, arte e política. Para
usar as palavras de Gramsci, há que se reconhecer que esse é um processo “longo, difícil,
cheio de contradições, de avanços e de recuos, de desdobramentos e reagrupamentos”
(GRAMSCI, 1999, p. 104).
A pesquisadora Rose Satiko Hikiji, em texto de 20112, aponta para as transformações
ocorridas na perspectiva dos grupos de São Paulo ao longo da década de 2000, vislumbrando o crescimento do engajamento político e social. Em suma, o processo pelo qual
passaram alguns desses grupos explicita a procura por construir um discurso contra-hegemônico, a partir do reconhecimento de uma identidade com as classes subalternas.
2. Rose Satiko Gitirana. “Imagens da Quebrada”, Seminário Estéticas das Periferias – Arte e Cultura nas Bordas
da Metrópole, 2011.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O audiovisual como instrumento de mudança na cidade e como criação de redes de interlocução cultural e política
Wilq Vicente dos Santos
Essa recente produção de filmes, além de continuar a servir como instrumento nas
lutas socioculturais, tem se diferenciado pela adoção de um regime colaborativo e formativo sob o qual são realizadas de maneira alternativa todas as etapas que definem a
cadeia de produção audiovisual, desde a formação de pessoas à distribuição e difusão
dos produtos. Hoje, impulsionado pelo aumento do acesso aos instrumentos digitais,
esse crescimento trouxe consigo uma nova agenda de demandas para o setor cultural
e político. Certamente, dentro de um novo contexto social, político e tecnológico.
APONTAMENTOS DE UM PERCURSO NA CIDADE DE SÃO PAULO
Após a proliferação de movimentos sociais na década de 1980 e um contexto de
enxugamento do Estado na década de 1990, as organizações não governamentais (ONGs)
foram fortalecidas como forma importante de organização da sociedade civil. Temas
como inclusão social, educação, diversidade cultural, infância e adolescência, grupos
étnicos e de gênero não hegemônicos, ecologia, entre outros, passaram a figurar entre os
principais campos de atuação das ONGs. Diferente dos movimentos sociais, em vez de
organizar para reivindicar do Estado políticas e direitos, parte significativa das ONGs
passaram a ocupar elas próprias o papel do Estado, atendendo pontualmente a algumas
demandas em campos que estão fora do interesse do mercado e nos quais o Estado era
ineficiente para atuar – ainda assim sem o acesso universal que é característico do Estado
de direito. Inicialmente apoiadas por recursos de organismos internacionais e empresas
privadas, a partir dos anos 2000 intensificou-se a utilização de recursos estatais. Ações
culturais e educacionais de algumas ONGs se fortaleceram especialmente no início
dessa década. Algumas organizações passaram a realizar oficinas de cinema, vídeo e
novas mídias, principalmente com jovens de baixa-renda da periferia, com o apelo do
“desenvolvimento cidadão”.
Em São Paulo, em 2005, no contexto de implantação da recém-criada Coordenadoria
da Juventude da Secretaria de Participação e Parceria da Prefeitura Municipal, foram
criados alguns fóruns voltados para o diálogo do poder público com diferentes setores
culturais da juventude, dentre eles o Fórum de Hip Hop, de Artes na Rua e de Cinema
Comunitário. O Fórum de Cinema Comunitário inicialmente reuniu algumas das ONGs
que ofertavam oficinas de audiovisual na cidade de São Paulo, além de participantes
destas oficinas.
Dentre as ONGs que compuseram o Fórum de Cinema Comunitário em seu início
estavam Associação Cultural Kinoforum, Ação Educativa, Projeto Arrastão, Gol de Letra,
Instituto Criar, Projeto Casulo. Também participaram das reuniões do fórum filiados
da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD-SP), além de alunos do Curso de
Audiovisual da USP. Dentre os jovens participantes, alguns deles integravam o fórum
representando seus núcleos de produção criados posteriormente às oficinas, dentre eles
Arroz, Feijão, Cinema e Vídeo, Joinha Filmes, Filmagens Periféricas, NERAMA, MUCCA,
além de participantes do projeto Vídeo, Cultura e Trabalho. A maior parte desses jovens
já tinha concluído as oficinas e desejavam produzir “cinema”, mas não viam estruturados caminhos institucionais de apoio para a continuidade dos trabalhos. Seguiam
com a realização de vídeo, atividades de exibição e formação em suas comunidades,
organizados em coletivos independentes. As ONGs logo demonstraram a limitação de
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seu campo de atuação, não tendo como atender à demanda criada no ambiente de suas
oficinas. Os realizadores passaram a buscar maior autonomia das ONGs e o fortalecimento político daquele grupo.
O Fórum de Cinema Comunitário se constituiu como um conjunto de reuniões
permanentes que visava multiplicar, ampliar, dar visibilidade e acesso aos meios de
produção por realizadores da periferia. Um dos diagnósticos descritos pelos participantes do fórum identificava ao menos três demandas: 1) ocupar os espaços públicos
de exibição; 2) viabilizar o acesso a meios e recursos para produção; 3) multiplicar e
ampliar as possibilidades de formação técnica na área do audiovisual.
Depois de um período de diálogo, o Fórum organizou a I Mostra Cinema de Quebrada,
(outubro e novembro de 2005), em parceria com Centro Cultural São Paulo (CCSP), com
o propósito de divulgar os vídeos realizados por produtores das quebradas, aprofundar
e publicizar o debate que vinha ocorrendo em reuniões. Entre as atividades programadas, foram realizadas conversas entre representantes da esfera pública, educadores do
audiovisual, realizadores, universidades e demais interessados e parceiros. A iniciativa
pretendeu discutir demandas e soluções de continuidade para a recém-estruturada rede
de agentes, envolvendo o poder público municipal e tendo em vista a participação de
outras esferas públicas e organizações da sociedade civil.
Foi a partir dessa mostra que o então Fórum de Cinema Comunitário passou a ser
conhecido como Fórum de Cinema de Quebrada, termo que acabou permanecendo
entre alguns participantes do fórum naquela fase e no meio acadêmico, por conta da
aproximação de alguns pesquisadores naquele período.
Em 2006 o fórum deixou de se encontrar com frequência. Entre os fatores, o custo e
o tempo de locomoção dos integrantes das periferias até o centro da cidade, divergências
de perspectiva, reminiscências da tutoria das ONGs, a inexistência de soluções imediatas para as demandas e a ausência de um projeto político claro do grupo. É também
nesse período que alguns coletivos que integravam o fórum aprovaram seus projetos
no Programa para Valorização das Iniciativas Culturais (VAI)3 da Secretaria Municipal
de Cultura de São Paulo, recém-implantado. Sancionado como lei municipal em 2003,
teve seus primeiros projetos aprovados em 2005, contemplando neste e nos anos subsequentes diversos projetos de grupos participantes do fórum, entre outros projetos
ligados ao audiovisual, dando novo fôlego a essa produção e revelando a contundência
das iniciativas naquele contexto da produção cultural nas quebradas.
Apesar de pouca movimentação do fórum, em 2007 os coletivos tocavam os trabalhos
em suas comunidades, tentando se manter ativos quando não havia o apoio do VAI,
naquele momento a única modalidade de apoio existente. Cada coletivo atuava segundo
uma dinâmica própria, variando as formas de atuação, dentre elas produção, formação
e exibição, sendo que alguns grupos trabalhavam nas três frentes.
Em meados de 2007 houve uma tentativa de rearticulação entre alguns grupos, já
fora do ambiente da Coordenadoria de Juventude e das ONGs. Nesse momento houve
3. O Programa para Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) foi criado pela lei 13.540 (de autoria do vereador
Nabil Bonduki) e regulamentado pelo decreto 43.823/2003, com a finalidade de apoiar financeiramente, por
meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda do Município de
São Paulo de regiões desprovidas de recursos e equipamentos culturais.
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uma busca pelo avanço em relação aos conceitos de “cinema comunitário” e “cinema de
quebrada”, visando rever o projeto político do fórum. Não se conseguiu ali chegar em
um conceito mais apropriado, mas uma nova lista de e-mails, chamada Audiovisual SP,
foi criada com o propósito de rearticulação do fórum, agora em outros termos.
Em 2008 o grupo conseguiu apoio da Secretaria Municipal de Cultura para participar
do II FEPA – Fórum de Experiências Populares em Audiovisual, encontro ligado ao Festival
Visões Periféricas, realizado no Rio de Janeiro pela ONG Observatório de Favelas e que
reuniu grupos e ONGs de boa parte do Brasil. Entre as discussões, figurava o encaminhamento de uma proposta de um edital de apoio à Secretaria do Audiovisual (SAV),
que teve como resultado um edital destinado a integrantes de projeto sociais.
Em 2008, foi feito um levantamento que identificou 38 núcleos de audiovisual apenas na cidade de São Paulo.4 A reivindicação propunha a extensão dos editais da SAV
para além das produtoras de audiovisual formalmente constituídas, com profissionais
estabelecidos no mercado, visando o atendimento de núcleos populares de produção e
formação audiovisual, tais como os grupos e coletivos que se via em São Paulo e outras
cidades. A organização do encontro também propunha a eleição de um representante
ao final dos trabalhos que seria o interlocutor do grupo com a SAV.
Após embates no encontro, já assinando como Coletivo de Vídeo Popular, o grupo
de São Paulo apresentou, em meados de 2009, uma “Carta de posicionamento e desligamento do FEPA”. Discordava-se, então, que houvesse unidade do grupo para que
fosse legítima uma representação. Particularmente era clara a diferença entre o posicionamento institucional da maioria das ONGs (predominantemente do Rio de Janeiro)
e dos coletivos de São Paulo.
O Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo atuou em articulações de exibição, formação de público, difusão e prática de vídeos realizados por grupos de várias localidades do
Brasil. O coletivo caminhava em busca de fortalecer os trabalhos, criar ações conjuntas
entre diversos grupos, trocar experiências e pensar políticas públicas para esse setor
do audiovisual. Nos anos de 2008 a 2011, o Coletivo atuou de forma mais sistematizada, com ações conjuntas de grupos na distribuição de pacotes de DVDs, publicação da
Revista do Vídeo Popular e realização de algumas edições da Semana do Vídeo Popular,
para destacar algumas atividades. O Circuito de Exibição de Vídeos Populares, além
de programação mensal no Cine Olido, tinha inserção de seus programas também na
Rede TVT, em canal UHF.
O Coletivo de Vídeo Popular surgiu a partir de um resgate, feito por esse grupo
que tinha suas origens no fórum de 2005, do histórico da Associação Brasileira de Vídeo
Popular (ABVP). Criada em 1984, a ABVP visava atividades de formação, produção e
distribuição de vídeos junto a movimentos sociais, tendo sido uma das mais expressivas
experiências de comunicação alternativa na época. A entidade chegou reunir cerca de
250 organizações não governamentais, produtores independentes e usuários de diversas
regiões do país, tendo produzido e distribuído em torno de 500 vídeos que versam sobre
temas como educação popular, reforma agrária, sexualidade, gênero, saúde, questões
4. Wilq Vicente, “Atores sociais e o audiovisual comunitário jovem,” Relatório de Iniciação Científica,
Universidade de Mogi das Cruzes, 2008.
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étnicas e raciais, meio ambiente, greves e organização dos trabalhadores, entre outros. A
mudança de nome do fórum para Coletivo de Vídeo Popular sinalizava uma mudança
de projeto político e um amadurecimento organizativo.
A ideia de um “vídeo popular” não se dá em torno de uma concepção estética unitária da produção, mas está ancorada na participação das camadas populares no processo
de feitura e no engajamento que o vídeo pode agregar às lutas sociais e às reivindicações políticas. Sem o glamour do cinema, os vídeos produzidos nos revelam dimensões
conflitivas, mobilizações sociais, entre outros temas do cotidiano das classes populares.
Para compreender o sentido desse resgate histórico, bem como para destacar semelhanças e diferenças entre as experiências, vale debruçar-se sobre o contexto de criação da
ABVP. A análise dos dois distintos períodos poderá, ainda, iluminar aspectos importantes das transformações da produção cultural, popular e audiovisual nas últimas décadas.
APONTAMENTOS DE UM REGASTE HISTÓRICO
A década de 1980 foi uma “década perdida”, segundo alguns estudiosos, em relação ao desenvolvimento dos países latino-americanos e à sua inserção na nova ordem
internacional. Estagnação econômica, dívida externa, concentração de renda, descaso com a cultura, entre outros. O projeto de modelo neoliberal, implantado de forma
desigual pelo continente, consolidou as desigualdades internas e regionais entre os
países do bloco, dificultou a igualdade de direitos e aumentou os desequilíbrios sociais,
colocando a América Latina frente ao mundo internacional com uma vulnerabilidade
profunda. Soma-se a isso a excessiva concentração no campo da produção e difusão
audiovisual, o que atravancou profundamente o processo de democratização dos países
latino-americanos.
Essa demasiada concentração econômica e do controle político dos meios de comunicação de massa no continente impossibilitaram que esses meios servissem como canais
de expressão e de participação popular, o que é considerado, por Regina Festa, “o pior
entrave ideológico que a comunicação impõe à sociedade, definindo e estabelecendo
a temática e as áreas do discurso social” (FESTA, 1986, p. 11). Em meio ao empecilho
constante de uma infraestrutura acanhada e subdesenvolvimento econômico, eclodiu
por todo o bloco vias alternativas de comunicação – jornais independentes, revistas
universitárias, rádios comunitárias, teatro alternativo, além da produção de vídeo.
É nesse contexto, com grande pressão social por mudanças, que surge a produção
do que veio a ser chamado de “vídeo popular”, expressão que passou a identificar o conjunto das produções e dos modos de atuação de grupos de vídeo junto aos movimentos
sociais e populares no Brasil durante a década de 1980. A produção estava então ligada
aos anseios de participação e, portanto, de voz da população, que passou a ver no vídeo
um canal de comunicação para ecoar suas demandas e reivindicações, entre as quais
estavam aquelas de ordem política, econômica, social, e logo, também por mudanças
do sistema de comunicação. Esta última particularmente impulsionada pelas novas
tecnologias de comunicação da época, mais acessíveis à população em geral. O vídeo
cresceu e desenvolveu-se, então, nesse momento, no âmbito da chamada comunicação
alternativa. Segundo a professora Cicilia Peruzzo:
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“A comunicação popular representa uma forma alternativa de comunicação e tem sua origem
nos movimentos populares dos anos de 1970 e 1980, no Brasil e na América Latina como um
todo. Ela não se caracteriza como um tipo qualquer de mídia, mas como um processo de
comunicação que emerge da ação dos grupos populares. Essa ação tem caráter mobilizador
coletivo na figura dos movimentos e organizações populares, que perpassa e é perpassada
por canais próprios de comunicação” (Peruzzo, 2006, p. 2).
Essa nova fase da realização audiovisual, via vídeo, agora nas mãos de determinados movimentos populares, teve seu início a partir de 1982, em meio ao processo de
abertura democrática, contando inicialmente com o apoio de alguns setores da igreja
católica (Projeto Audiovisual da Diocese de Teixeira de Freitas – BA), de centros de
educação popular (Centro de Documentação e Memória Popular – RN) e de direitos
humanos e ONGs (Centro de Comunicação de São Miguel – SP e Centro de Criação da
Imagem Popular – CECIP – RJ).
Assim, durante certo período, alguns cineastas e produtores audiovisuais forneceram diversas oficinas que buscavam capacitar os quadros dos movimentos sociais a fim
de utilizarem o vídeo como estratégia de mobilização e difusão das lutas.
De modo geral, os realizadores buscavam uma linguagem mais apropriada às condições precárias de produção e que fosse de encontro com o cotidiano da população
em geral. “O vídeo passou a ser entendido como um novo meio de comunicação, capaz
de permitir a confecção de programas para os movimentos, não considerando mais o
público como uma massa indiferenciada, mas como uma soma de grupos de interesse”.
(SANTORO, 1989, p. 25). Pretendia se diferenciar do entretenimento, não sendo produzida com a finalidade de servir ao lazer, e do noticiário diário dos grandes meios de
comunicação. Os realizadores de vídeo passaram a problematizar temporalidades e
espacialidades por meio da imagem videográfica, trazendo temas, questões, cenários e
personagens ausentes nos veículos de “massa”. A produção de vídeo popular desenhou
um projeto político audiovisual crítico e “conscientizador” no Brasil.
No entanto, Machado provoca: “ao herdar da televisão seu aparato tecnológico, o
vídeo acabou por herdar também uma certa postura parasitária em relação ao outros
meios, uma certa facilidade em se deixar reduzir a simples veículo de outros processos
de significação” (MACHADO, 1997, p. 188) . É difícil de identificar na produção do que
se convencionou chamar de vídeo popular a procura de uma linguagem específica, de
maneira que a produção em grande parte foi concentrada e praticada mais como “forma
de registro ou de documentação” ou “veículo do cinema” e menos como “sistema de
expressão próprio”.
Os vídeos sustentavam seu apelo na densidade da situação enfocada – miséria, fome,
desemprego, insegurança no trabalho, organização popular etc. Tratando de buscar uma
ruptura com as narrativas tradicionais, seja televisiva ou cinematográfica, o chamado
vídeo popular introduziu o “olho amador” que, fora do campo artístico, proporcionou
o acesso popular ao olho da câmera, a “câmera caneta” – aquela que escreve a história.
O vídeo tornou-se acessível ao sujeito mais comum. Machado aborda:
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“O cinema novo brasileiro, herdeiro político de uma longa tradição de populismo que marcou a história do Brasil por cerca de meio século, jamais conseguiu dar palavra ao povo de
cujos problemas ele tratava paternalisticamente. A multidão reduzida a uma condição de
miséria era encenada pelos cineastas como uma massa amorfa, destituída de interior e de
vontade (nos filmes de Ruy Guerra e Glauber Rocha, por exemplo), ou como uma coleção de
indivíduos reduzidos a um estado de animalidade pura e simples (em filmes do tipo Vidas
Secas/1963). Jamais passaria pela cabeça dos cineastas dos tempos utópicos do cinema novo
que as pessoas simples e humilhadas pudessem ser dotadas de riqueza interior e capazes de
colocar questões que muitas vezes nos deixam emudecidos” (Machado, 2001, pp. 266-267).
É natural que os vídeos produzidos no período se preocupassem com a interferência
e a relação direta com os processos em curso de mobilização social popular, de lutas por
demandas concretas, incorporando a utilização do vídeo como tática de intervenção. Era
natural que o vídeo deixasse de lado suas “especificidades de linguagem” para tomar
parte direta nas lutas, que estavam no cerne do horizonte da preocupação de determinados grupos sociais. A ficção e o romance, naquele momento, não faziam tanto sentido
para os realizadores de vídeo popular. Por outro lado, deu-se um passo em relação ao
vínculo social com o povo que o cinema novo pretendeu estabelecer.
Como afirma Jean-Claude Bernardet,
“Em meados da década de 1960, algumas experiências cinematográficas ousavam não tratar
do povo apenas enquanto temática e/ou realidade a ser documentada, apostando na participação de sujeitos provenientes das classes populares em algumas etapas da realização
fílmica [...] o trabalho em película implicava em altos custos para a atividade cinematográfica,
de maneira que o controle da representação raramente estava nas mãos do povo pobre”
(Bernardet, 2003).
O vídeo popular não herdou, em grande medida, a problematização estética do
cinema novo, colocando-se como um “meio menor”, sem explorar todas as potencialidades artísticas do aparato. O dispositivo tecnológico da época conferia à imagem
“uma definição precária […] que não aceita detalhamentos minuciosos e na qual a
profundidade de campo é continuamente desmantelada pelas linhas de varredura. [...]
O vídeo é uma tela de dimensões pequenas […] uma tela em que se pode colocar pouca quantidade de informação” (MACHADO, 1997, pp. 193-194).5 O vídeo popular teve
pouco espaço para a exploração de linguagem. A mensagem social era mais importante
e tinha contundência imediata.
Mesmo assim, o vídeo se tornou um dispositivo da maior importância nas mãos
dos grupos e movimentos autônomos, ao mesmo tempo que potencializou as atividades de registro e de memória, viabilizou a produção e difusão das mensagens. Nesses
vídeos, as histórias de vida, experiências e o conhecimento dos entrevistados tecem as
produções; por instantes, a fala de cada narração toma a cena e se transforma em tema
5. Multidões em plano geral são motivos pouco adequados ao vídeo, assim como são inadequados os cenários
amplos e as decorações muito minuciosas, pois todos esses motivos se reduzem a manchas disformes
quando inseridos na tela pequena. Em decorrência da baixa definição da imagem videográfica, a maneira
mais adequada e mais comunicativa de trabalhar com ela é pela decomposição analítica dos motivos.
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principal. A opção por essa abordagem busca abrir o microfone e a câmera para que
os protagonistas (atores sociais) deem sua visão dos fatos. Nesse sentido, o vídeo surge
antes como uma prática social do que como linguagem. Esse diferencial não decorria
apenas do seu conteúdo, mas dependia de vínculos que eram estabelecidos com as
comunidades populares enfocadas nas produções e com o público que os assistia.
A noção de pertencimento, no sentido mais amplo, compreendia a participação
da coletividade na transformação das suas próprias condições de existência. Algumas
dessas perspectivas foram resgatadas pelo Coletivo de Vídeo Popular no momento de
sua constituição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após um enfraquecimento em meados da década de 1990, desde dos anos 2000,
constatamos uma crescente popularização da prática do vídeo. Protagonizado hoje por
uma nova geração e impulsionado pelo acesso aos instrumentos de produção, bem como
por um conjunto disperso de iniciativas públicas e privadas pontuais, esse crescimento
atual do vídeo, agora digital, traz consigo uma nova agenda de demandas para o setor
cultural e político. Essas novas manifestações podem ser identificadas, em especial, por
meio de novos atores sociais, movimentos culturais que partem da periferia dos grandes
centros urbanos, em pequenas comunidades populares, e que lutam pela ampliação
de sua representatividade. Como característica dessas duas fases (1980-1990 e, mais
recente, 2000-2014), a apropriação do dispositivo vídeo enquanto processo. De modo
geral, os realizadores assumem uma trajetória comum: emitem a condição crítica da
experiência cotidiana.
Essa “retomada”, possibilitada pelo desenvolvimento da tecnologia da imagem digital e da viabilização da edição em computadores pessoais, transforma as possibilidades
do fazer vídeo. Uma retomada, contudo, com ares de reinvenção, na medida em que se
dá em um novo contexto social, político e tecnológico que favorece maior descentralização dos processos de produção e difusão. Do cinema para o VHS, do VHS para a
câmera digital e, hoje, a multiplicação dos dispositivos de vídeo em aparelhos móveis.
A pesquisa de Clarisse Alvarenga, Vídeo e experimentação social, de 2004, analisa a
experiência de vídeos produzidos no âmbito de oficinas ministradas por ONGs, utilizando a noção de “vídeo comunitário”, propondo que esse tipo de experiência ao longo
da história “substituiu” o legado do “vídeo popular”. Mas atualmente talvez seja possível usar os dois termos para denominar distintas vertentes, desenvolvidas dentro de
diferentes contextos organizativos, institucionais e com outras perspectivas políticas.
Desde o Fórum de Cinema Comunitário e o Fórum de Cinema de Quebrada, era
premente a necessidade de se avançar na conceituação que o nome e a estrutura organizativa expressava. Era necessário avançar para que a prática e a fundamentação do
grupo não se limitasse a uma política de autorrepresentação, na qual a legitimidade do
discurso se coloca em uma relação de pertencimento ao universo retratado. O resgate da
história da Associação Brasileira de Vídeo Popular, a estruturação como coletivo (voltado
para ações e não mais para uma estrutura de diálogo institucional) e o compromisso
com uma classe (para além da identidade de origem) são alguns dos elementos que
revelam alguns conflitos no atual campo cultural.
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A produção de vídeo dos anos 2000 acontece em um momento de crescimento de um
discurso em torno da diversidade cultural e do direito à cultura. Tais conceitos conseguem
aglutinar em torno de si, por um lado o discurso oficial do Estado, por outro a sociedade
civil na figura dos movimentos sociais e de cultura de hoje, mas também das ONGs. Essa
ambiguidade permite que distintas perspectivas muitas vezes apareçam aglutinadas dentro das mesmas denominações, ainda que estejam dentro de um campo de grande tensão.
A produção de vídeo dos anos 1980 e 1990 construiu-se em um momento de elaboração do discurso da democratização e do direito à comunicação, que, sem ter ganhado
espaço para além dos circuitos militantes e sem ter implicado em mudanças estruturais
nos anos posteriores, apesar de ter resultado em uma série de iniciativas práticas em
todo o Brasil, recrudesceu e perdeu espaço para novas ideias e conceitos, como estes
que ganham força nos anos 2000.
O que está em jogo aqui, portanto, é um processo amplo de acesso das formas de
democratização, que envolve não apenas a redemocratização do Estado brasileiro, mas
de toda a sociedade.
Se por um lado é possível ver um recrudescimento recente das atividades dos grupos
que fizeram parte do Cinema de Quebrada e do Coletivo de Vídeo Popular, por outro
lado é possível notar, paralelamente, por parte do poder público, certa preocupação com
esse setor do audiovisual. E nesse sentido, apesar da fragilidade desse coletivo especificamente, é possível pensar que novos cenários de produção e articulação estejam sendo
gestados com espírito semelhante.
Nesse âmbito, um dos programas importantes é os Pontos de Cultura, ligado à
Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do MinC, no qual a sociedade civil
passa a ser executora de ações culturais com incentivo do Ministério, enfatizando a
parceria do Estado com entidades privadas de interesse público sem fins lucrativos.
Esse novo tipo de programa de parceria entre Estado e a sociedade civil é tributária
da visão de que a atuação de interesse público não pode ser meramente estabelecida
pelo Estado. Nota-se também certo investimento em atividades de formação, como nos
projetos Revelando os Brasis – Concurso Nacional de Histórias, Nós na Tela ou Olhar
Brasil, todos projetos da SAV.
O audiovisual na gestão petista é visto cada vez mais como uma área que não é
limitada ao dito “cinemão”, pois, além de contemplar grandes produtores, começou a
integrar outros segmentos da sociedade, tais como cineclubes, coletivos e associações
culturais, grupos de jovens, movimentos sociais e festivais. Ainda assim, a política cultural nos últimos anos busca construir o fortalecimento de uma indústria de cinema,
uma das áreas prioritárias do investimento do governo. Também não parece razoável,
no contexto político atual, a revisão mais séria de seu mecanismo chave que é a renúncia
fiscal, tão forte é o lobby de produtores e investidores. Não sendo possível reestruturar
o sistema de financiamento à cultura no Brasil, o caminho pelo qual se pode avançar
foi o da política de editais voltados para a diversidade cultural (edital de Egressos de
Projetos Sociais, Curta Afirmativo, Carmen Santos Cinema de Mulheres, entre outros).
Avança também a ideia de uma política fortemente ligada à inserção no mercado, por
meio do empreendedorismo sociocultural e/ou da capacitação e formação profissional,
Eixo 2 do Programa Brasil de Todas as Telas (Pronatec).
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Chico Oliveira, no artigo “Hegemonia às avessas”, de 2007, questiona sobre a implicação da suposta tomada de “direção moral” da sociedade por parte das classes populares
representada por Lula e sua política contra a pobreza e a desigualdade. Para Oliveira, a
eleição e reeleição de Lula fez despontar “o mito da capacidade popular para vencer seu
temível adversário, enquanto legitima a desenfreada exploração pelo capitalismo mais
impiedoso” (OLIVEIRA, 2007, pp. 55-56). Dessa maneira atenta para a crescente complicação da política de representação das classes populares e para novas configurações
na política de dominação, na qual a inserção na esfera política, midiática ou econômica
desempenha um papel central.
Reconhece-se que, no aparecimento dessa produção audiovisual da periferia em
um cenário cultural da cidade, há um processo de restituir a essa parcela da população
a fala historicamente negada na esfera pública. E se nesse processo surgem produções
audiovisuais autênticas, é necessário porém tentar ir além da política de autorrepresentação e de autenticidade. A cultura da periferia passa a ser valorizada como símbolo da
abertura à diversidade cultural, que se coloca como valor no mundo contemporâneo,
bem como símbolo da desigualdade e, portanto, de enfrentamento da realidade social.
No entanto, como aponta Shohat e Stam, a defesa do multiculturalismo que não põe em
relevo os processos históricos de dominação também não contribui para a desarticulação
das hegemonias de poder que conformam a opressão e desigualdade, e assim “corre o
risco de se transformar em um shopping center de culturas do mundo [...], corre o risco
de simplesmente inverter as hierarquias existentes ao invés de repensá-las de modo
profundo” (SHOHAT E STAM, 2006, p. 474).
REFERÊNCIAS
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comunitário contemporâneo no Brasil. Dissertação de mestrado, Instituto de Artes da
Unicamp, 2004.
Bernardet, Jean Claude. Cineastas e imagens do povo. 2a ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
Costa, Andre. “Videografias no espaço.” Caderno Sesc Videobrasil 3, 3, São Paulo, (2007).
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São Paulo: Paulinas, 1986.
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a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro:
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www.esteticasdaperiferia.org.br (na seção artigos).
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______ . “A experiência do vídeo no Brasil.” In Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. 3a ed. São Paulo: Edusp, 2001.
______ . Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 1997.
Oliveira, Chico de. “Hegemonia às avessas.” Revista Piauí 4 (jan. 2007).
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Oliveira, Luiz Henrique Pereira. “Transformações no vídeo popular.” Revista Sinopse de
Cinema 7, 3, (2001).
Peruzzo, Cicilia Maria Krohling. Comunicação nos movimentos populares: A participação na
construção da cidadania. Petropólis: Vozes, 1998.
______. “Revisitando os conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária,” XXIX
Intercom, Brasília, set. 2006.
Santoro, Luiz Fernando. A imagem nas mãos: o vídeo popular no Brasil. São Paulo: Summus, 1989.
Shohat, Ella, e Stam, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
Vicente, Wilq. “Atores sociais e o audiovisual comunitário jovem.” Relatório de Iniciação
Científica, Universidade de Mogi das Cruzes, 2008.
Williams, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Jornalismo Audiovisual Alternativo:
um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré”
Alternative Journalism In Audiovisual:
a semiotic look about the mini-documentary “Morri na Maré”
K a m i l a B o ssato Fe r na n de s 1
Resumo: Mudanças recentes nas práticas jornalísticas fizeram com que fossem
inclusos, entre os produtores de informação, grupos independentes que atuam
em clara posição contra-hegemônica em relação aos media tradicionais. Contudo,
até que ponto o viés político assumido por essas produções joga luz sobre aspectos
minimizados pelos meios tradicionais? Neste artigo, proponho uma reflexão
sobre a atuação da Agência Pública, um meio de comunicação alternativo, a partir
de uma análise sobre o minidocumentário Morri na Maré. Análise feita sob um
olhar semiótico (LANDOWSKI, 1998, 2004, IASBECK, 2012). Percebe-se que a
busca por se diferenciar do jornalismo tradicional não o exclui de tal produção.
Por outro lado, ao dar voz e nome a pessoas que, nas reportagens tradicionais,
aparecem normalmente como personagens secundários, o minidocumentário
dá relevo ao sensível, numa busca por empatia e adesão.
Palavras-Chave: Jornalismo alternativo. Documentário Audiovisual. Produção
de sentido. Semiótica do sensível.
Abstract: Recent changes in journalistic practices included, as information
producers, independent groups operating in clear counter-hegemonic position
against to the traditional media. However, whither does the political bias made
by these productions focus on aspects minimized by traditional media? This
paper offers a reflection on the performance of the Agência Pública, an alternative
communication media, from an analysis of the mini-documentary “Morri Maré”.
Analysis under a semiotic look (LANDOWSKI, 1998, 2004, IASBECK, 2012). It´s
noticed that the search of the alternative media to differentiate its work from
the traditional journalism does not exclude it of this production. On the other
hand, by giving voice and name to people whom, in traditional stories, usually
appears as minor characters, the mini-documentary gives relief to sensitive, in
a search for empathy and adherence.
Keywords: Alternative journalism. Audiovisual documentary. Meaning
production. Sensitive semiotics.
1. Mestre em Sociologia, professora assistente do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará,
tutora do Programa de Educação Tutorial da Comunicação Social. Email: [email protected].
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Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré”
Kamila Bossato Fernandes
INTRODUÇÃO
DISSEMINAÇÃO DE dispositivos tecnológicos que propiciam a captação e a difu-
A
são de imagens de maneira quase instantânea fez com que a ideia de que todos
podem ser não só consumidores de informação, mas também produtores, fosse
difundida com grande intensidade nos últimos anos. Concepção possível a partir da
visibilidade propiciada pelas redes sociais – em especial Facebook e Twitter –, que permitem que usuários, a partir de sua atuação virtual, passem a se constituir como fontes
legitimadas de informação ou de opinião por “seguidores” que decidem acompanhar e
até mesmo compartilhar o que eles produzem.
Assim, a partir do uso de equipamentos móveis, como telefones celulares e tablets,
com câmeras de vídeo e acesso à internet banda larga, usuários passaram a se constituir
como novas fontes de notícias – as chamadas “mídias alternativas” –, com direito até
mesmo a transmissões em tempo real (ao vivo).
No Brasil, as mídias alternativas ganharam visibilidade durante as manifestações
de junho de 2013 no país, durante a realização dos jogos da Copa das Confederações
da Fifa. Ao mostrar esses protestos do ponto de vista de quem estava se manifestando,
essas novas mídias se contrapuseram diretamente aos meios tradicionais, que
mostraram os acontecimentos do alto de helicópteros, parcialmente e classificando
os participantes entre “pacíficos” e “ordeiros” contra os “vândalos” e “mascarados”.
Enquanto câmeras trêmulas, entre os manifestantes, mostravam a desproporcional ação
policial, com bombas de efeito moral e balas de borracha, contra jovens desarmados,
os media tradicionais seguiam pelo discurso inverso, de que a polícia apenas reagia à
violência dos protestos (PERUZZO, 2013, FERNANDES, 2014a). E essa contraposição de
enquadramentos, claramente opostos, mesmo se tratando do mesmo acontecimento, fez
com as próprias manifestações se voltassem contra os grandes veículos de comunicação –
em todo o país, profissionais da imprensa foram hostilizados e até agredidos, sobretudo
os vinculados à Rede Globo, maior conglomerado comunicacional do país. Tensão
evidenciada até por veículos de outros países, como o site Deutsche Welle (www.
dw.de), da Alemanha, que publicou matéria em 1º de agosto de 2013, em sua versão em
língua portuguesa, com o título “Ascensão da Mídia Ninja põe em questão imprensa
tradicional no Brasil”2.
Contudo, até que ponto o viés político (ainda que não partidário) assumido
pelas produções alternativas ou independentes joga luz sobre aspectos normalmente
minimizados pelos meios tradicionais? Ou esse viés pode obscurecer certos enlaces do
acontecimento? A partir desses questionamentos, proponho neste artigo uma reflexão
inicial sobre a atuação da Agência Pública, um portal (www.apublica.org) que se
autodenomina uma “agência de reportagens e jornalismo investigativo”. Tal reflexão
se dá mais especificamente sobre o minidocumentário “Morri na Maré”, disponibilizado
em 11 de março de 2014 no site da agência, que busca retratar o olhar de jovens sobre
a violência policial no Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro. A análise se
dará sob um olhar semiótico (LANDOWSKI, 1992, 1998, 2004, IASBECK, 2012), de modo
a evidenciar as tramas de sentido contidas no vídeo, a partir de uma descrição densa
2. Disponível em http://dw.de/p/19HrQ.
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Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré”
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e transversal, que mire não apenas nas marcas discursivas aparentes, mas também no
que não é evidenciado.
Nesse percurso, proponho uma discussão sobre a construção do discurso midiático,
a partir da proposta de Charaudeau (2006) e Fairclough (2001), de modo a problematizar
a relação entre as estratégias discursivas e a busca por certos efeitos de sentido de
cunho ideológico, como prática política. A perspectiva apresentada pela sociossemiótica
(LANDOWSKI, 1992, 1998) também irá contribuir como base teórico-metodológica desta
discussão.
DISCURSO MIDIÁTICO E PRODUÇÃO DE SENTIDO
Já não é de hoje que, tanto no meio acadêmico, como nas redações, admite-se que
“não há grau zero da informação” (CHARAUDEAU, 2006), derrubando-se, pelo menos
em parte, os mitos da objetividade e da imparcialidade jornalísticos. Conceitos como
o de enquadramento e discurso tornaram bem mais complexo o olhar sobre a produção de notícias, seja em que ambiente midiático for. Isso porque informar é enunciar,
ato comunicativo que depende “do campo de conhecimentos que o circunscreve, da
situação de enunciação na qual se insere e do dispositivo no qual é posto em funcionamento” (CHARAUDEAU, 2006, p. 36). Mais do que isso, enunciar é um ato discursivo,
composto pelo que está dito e pelo que não está dito, além das formas utilizadas para
enunciar, que indicam determinadas intenções com fins a certos efeitos. Assim, como
ressalta o autor, torna-se fundamental, em qualquer análise da produção de sentido,
levar em conta as condições de produção do discurso, tanto pelo lado do produtor/
enunciador como do receptor/coenunciador, já que a compreensão da fala só se dá a
partir das interações – ainda que seja de cunho predominantemente assimétrico, toda
produção midiática supõe um interlocutor “ideal”, e é a partir dele que a enunciação
se constitui em ato.
No caso do discurso midiático informativo, afirma Charaudeau (2006), há uma
busca não por transpor o acontecimento tal qual ele se deu, mas sim por produzir
um efeito de verdade, a partir das imagens captadas e do texto construído, de modo a
conquistar credibilidade e fidelidade do público-alvo, o que é de grande interesse da
empresa midiática, já que a notícia se constitui em um produto gerador de audiência e,
consequentemente, de lucro. Esse efeito de verdade passa por um saber de crença muito
mais do que por uma comprovação ou uma constatação científica. De acordo com o
autor, o que se dá é mais o fazer crer, a partir da combinação de imagens e de um relato
narrado a partir de determinados preceitos definidos em um contrato de comunicação
entre o produto midiático e sua plateia.
Princípios que valem tanto para o discurso jornalístico tradicional como para
o alternativo, como demonstrado em análise comparativa de um mesmo evento
noticioso por esses dois tipos de meios (FERNANDES, 2014b). Ambos partem de
contratos de comunicação que delimitam parâmetros entre o que propõem fazer e
o que seu público espera, com base sobretudo na verossimilhança, mas a partir de
diferentes estratégias discursivas. No caso da produção jornalística independente, ficam
pressupostos a defesa de grupos tidos como minoritários e a captação de informações
que contraponham o que os media tradicionais mostram. O que, para Fairclough (2001),
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denota uma das características de qualquer discurso, o qual é composto por restrições e
componentes delimitados pela própria estrutura social, a qual também é moldada pela
difusão discursiva, numa relação dialética. “O discurso é uma prática, não apenas de
representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o
mundo em significado” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Sob esse pressuposto, o autor propõe
três funções da linguagem, as quais correspondem também a diferentes dimensões de
sentido que norteiam todo discurso: a função identitária (que se refere às representações
das identidades sociais dos participantes do discurso, que são estabelecidas e negociadas
no ato de fala), a relacional (que se refere à maneira como as próprias relações sociais
são representadas no discurso) e a ideacional (que trata do modo como o mundo e seus
processos, entidades e relações são referenciados no texto). Prática social que se dá a
partir de diferentes orientações, de acordo com os valores compartilhados tanto pelos
produtores do discurso como pelos que se apropriam dele, o ressignificam e o difundem,
especialmente sob o aspecto político e ideológico, como reforça Fairclough (2001). Tanto
para manter estruturas de poder, como para transformá-las.
Como se trata de um produto multimodal na sua essência, que explora linguagem
verbal e imagética na composição de sua estratégia discursiva, o minidocumentário em
questão será analisado a partir de um olhar semiótico, já que esta perspectiva teóricometodológica tem, cada vez mais, se debruçado sobre as complexas e dinâmicas relações
que compõem o discurso (IASBECK, 2013). Mais especificamente a partir dos parâmetros
da sociossemiótica defendidos por Landowski (1992), a partir de uma semiótica das
experiências sensíveis, a qual se preocupa com o sentido constituído a partir das relações
sociais em si e com o próprio mundo enquanto “mundo significante”, como explica
Fechine (2008, p. 15).
Landowski propõe uma definição das construções discursivas a partir de dois
esquemas: os narrativos (actanciais e modais), que organizam as relações de direito e de
poder a partir de certas configurações pré-estabelecidas, e as estratégias de enunciação,
em que tais esquemas narrativos são colocados em prática em um ato comunicativo
propriamente dito. O que significa que tais discursos, assim como tantos outros, são
pontuados a partir de determinadas formas, ou tipos, constituídos culturalmente,
assumindo certas estratégias na busca por consolidar efeitos. Tudo isso a partir de
intencionalidades – tanto do enunciador como do enunciatário.
Com a força de verossimilhança perpetrada pela imagem, construções midiáticas em
audiovisual passam a protagonizar, cada vez com maior intensidade, as representações
das relações sociais, cumprindo um papel social e político “como meio de formação
de um consenso difuso sobre a própria construção dos fatos e definição de valores”
(LANDOWSKI, 2004, p. 32), o que aumenta a importância em se analisar discursos
midiáticos seja de que natureza forem. Em sua obra, Landowski salienta a relevância de
a semiótica se ater sobretudo à gramática (sintaxe) que acaba por envolver cada tipo de
discurso, num plano estrutural, de modo a “dar conta dos discursos enquanto totalidades
significantes” (1992, p. 205). Neste artigo, de modo algum terei a pretensão de esmiuçar
uma gramática da produção jornalística alternativa em audiovisual de maneira ampla,
o que demandaria um esforço bem maior, sobre um corpus mais significativo, para que
fosse possível vislumbrar regularidades que traçassem um percurso semiótico relevante.
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A intenção é tão somente dar relevo a certas características desta produção singular, o
minidocumentário “Morri na Maré”, com vistas ao sentido produzido como resultado
final de sua composição. Também não se pretende aqui dar uma interpretação definitiva
sobre tal produção: como reforçam Rossini e Pinel (2009), citando Landowski, o sentido
só se realiza “em ato”, o que significa que só se efetiva em interação, o que nos leva a
concluir que não exista um sentido único e inquestionável.
OBJETO
A Agência Pública foi criada em 2011 e se autointitula uma “agência de reportagem
e jornalismo investigativo”, que atua de forma independente – sem apoio de governos
ou empresas –, num sistema que mistura financiamento por organizações nãogovernamentais e arrecadação de recursos via crowdfunding (doações virtuais feitas
por seu público). Toda a produção é difundida pelo site da agência, www.apublica.org,
mas também por parceiros (tanto outras agências de comunicação sem fins lucrativos3
como veículos de grande porte, nos mais diferentes suportes), que não precisam pagar
para exibir a reportagem, apenas indicar sua origem. A agência tem uma equipe própria,
mas também fomenta o trabalho de equipes independentes, ao promover editais de
financiamento a reportagens por todo o país.
Como seu canal de difusão preferencial é a internet, as reportagens publicizadas
geralmente possuem características multimídia, com texto longo e inserções de vídeo,
áudio, documentos inclusos como anexo, fotografias e infográficos, animados ou não.
Há as reportagens que enfatizam o texto escrito, enquanto outras são norteadas por
vídeos entre 10 e 20 minutos, chamados de Minidocs, ou minidocumentários. Tais vídeos
são complementados por texto, em que os produtores acrescentam informações ou dão
detalhes da própria experiência de realizar o filme.
Os Minidocs são alojados tanto entre as reportagens como em uma aba específica
nomeada “Vídeos”, podendo ser visualizados por ordem cronológica de publicação.
As temáticas são as mais diversas: a relação entre empregadas domésticas e patroas; a
remoção de famílias pobres pelo poder público para a construção de obras da Copa do
Mundo; a mudança na vida de mulheres pobres depois da instituição do programa de
renda mínima Bolsa Família. Em comum, todos partem de um enquadramento que visa
expor um conflito que existe, ou existia, numa relação de poder assimétrica. Com isso, tais
reportagens em audiovisual buscam denunciar abusos de poder, ao construir narrativas
com informações que dão sobretudo visibilidade às pessoas ou grupos subjugados.
Realiza, assim, um jornalismo politicamente engajado. E esses trabalhos têm conquistado
legitimidade social, ao serem contemplados com prêmios de jornalismo, alguns deles de
grande valor internacional, como o Premio Gabriel García Marques e o Latinoamericano
de Periodismo de Investigación, da Fundación Instituto Prensa y Sociedad.
Especificamente o filme “Morri na Maré”4 foi realizado por dois jornalistas franceses
radicados no Rio de Janeiro, Marie Naudascher e Patrick Vanier, a partir de financiamento
3. No site da Agência Pública, são listados 55 republicadores, entre eles Adital, Agência Nacional das
Favelas e Ecodebate, meios também considerados independentes, e UOL, IG e EBC (Empresa Brasileira de
Comunicação, canal institucional do Governo Federal brasileiro), meios de grande porte.
4. Disponível em http://apublica.org/2014/03/morri-na-mare-assista-ao-minidoc/
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coletivo. O vídeo tem 16 minutos e 22 segundos e foi hospedado no portal de compartilhamento de vídeos Vimeo. De acordo com as estatísticas do portal, até o dia 16 de
março de 2015, o filme teve 9.780 visualizações, com 53 “likes” e dois comentários.
Como ponto de partida, os dois jornalistas relatam, no texto inserido em anexo ao
minidocumentário, que tinham a intenção de colocar em foco a violência sofrida por
crianças na Comunidade da Maré, área onde não havia a ação de uma UPP (Unidade
de Polícia Pacificadora, ação policial de combate ao crime organizado) e que era então
dominada por três facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas, além de milícias
(grupos paramilitares que atuam contra o tráfico, mas que também submetem a
população à violência). O fato que desencadeou as gravações foi um confronto entre
policiais e traficantes, que resultou na morte de 13 pessoas, no dia 25 de junho de 2013.
Acontecimento com grande repercussão midiática, em que se discutiu, entre outras
coisas, se houve violência contra os moradores não envolvidos com crimes.
Segundo o relato dos jornalistas, feito em primeira pessoa, como forma de trazer
à tona aspectos dos bastidores da produção, a intenção do vídeo era mostrar como as
próprias crianças percebiam a violência sofrida por elas naquele ambiente. E o foco não
se restringia à violência policial:
São tantas violências: a violência urbana, do crime, cuja manifestação mais forte são os
tiroteios; a violência doméstica, que acontece dentro de casa e é lembrada por crianças em
situação de rua, que contam ter fugido de casa apesar de ter família na Maré; e a violência
do preconceito, que é mas “invisível”, mas acaba marcando as crianças e adolescentes. (...)
Essa violência pouco aparece na mídia brasileira. Mas é essa violência que faz com que a
pessoa se auto-imponha limites geográficos e acabe não indo em alguns lugares da cidade
para “não ter problemas”. (NAUDASCHER & VANIER, 2014)
Os jornalistas franceses afirmam ainda que decidiram fazer uma imersão em uma
escola da comunidade para ganhar a confiança das crianças e que houve um momento
em que a coordenadora do local pediu para que cessassem as conversas sobre violência,
para não “dar problemas” (o que não foi explicado). No texto, ainda buscou-se demonstrar
uma preocupação em preservar a identidade e a segurança das crianças, o que denotaria
uma responsabilidade social e o respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)5.
No vídeo, porém, não foi o que aconteceu, como veremos adiante.
O minidocumentário pode ser dividido em cinco momentos, distribuídos de maneira
desigual. No primeiro, são exibidas cenas de protestos contra a violência, iniciando em
uma praia, com o mar pintado de vermelho por um artista plástico, e depois em meio a
moradores da Comunidade da Maré, que denunciavam a violência imposta durante a
ocupação da favela, pela Polícia Militar, no dia anterior, 25 de março de 2013, em que 13
pessoas foram mortas, além de dezenas de feridos; na segunda parte, buscou-se ouvir
personagens desse dia de violência: um pai de família atingido por um tiro durante
essa ocupação, sua mulher e seus filhos, com relatos sobre o momento da ação e suas
consequências; na terceiro ato, as cenas foram gravadas no Projeto Uerê, que atende
5. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre a proteção integral a crianças e adolescentes. Pode ser
acessada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.
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crianças da comunidade para dar apoio escolar, com foco em entrevistas e na gravação
de cenas livres; já na quarta parte, focou-se apenas em uma criança, mostrando suas
brincadeiras e falas a respeito da violência; por fim, a quinta parte tratou de um protesto,
realizado no Centro do Rio de Janeiro, por uma organização não-governamental que
tinha como meta denunciar a violência sofrida por crianças de rua.
Nesta análise, buscarei me deter à estrutura básica proposta por Landowski (1992),
a partir 1º) dos esquemas narrativos e 2º) das estratégias de enunciação.
ANÁLISE
Esquemas narrativos
Ao falar de uma produção em audiovisual, é preciso evidenciar primeiro os
interlocutores que o envolvem, o que inclui produtores, personagens/actantes do filme
e destinatários/receptores. Interações que se dão, em alguns casos, virtualmente, sem
que haja co-presença, mas que estabelece o próprio sentido do ato comunicativo.
No caso, os produtores do minidocumentário são apresentados como os jornalistas
franceses Marie Naudascher e Patrick Vanier. Apenas a voz e a face de Marie aparecem no
vídeo em dois momentos diferentes, mas a presença de ambos é sentida em todo o vídeo,
já que eles modulam as falas captadas, direcionando toda a interlocução à questão central
trabalhada pelo minidocumentário, que é a violência policial sofrida pelos moradores
da Comunidade da Maré. A onipresença deles é reafirmada nos enquadramentos
das entrevistas, em primeiro plano, em que os entrevistados ora olham para cima,
ora miram em diagonal, na busca do olhar e da compreensão dos entrevistadores.
Além de conduzirem as interlocuções em busca de um objetivo claro, os produtores se
caracterizam pelo estranhamento sócio-histórico e cultural em relação àquela situação
retratada. Uma postura vista com frequência no jornalismo tradicional – que assume
como pauta contar a história “do outro” como meio de seu público, também estranho a
tal acontecimento, ter a chance de conhecê-la e até compreendê-la melhor. O que reforça
o perfil jornalístico do documentário.
Entre os personagens/actantes que compõem o filme, temos três níveis de sujeitos,
a partir de uma hierarquização modulada no próprio documentário: 1) enunciadores
autorizados/legitimados, por ocupar postos de comando em organizações ou instituições
envolvidas com a luta pelos direitos humanos e em favor de crianças e adolescentes
vítimas da violência; 2) sujeitos que vivenciaram diretamente a violência; e 3) crianças
e adolescentes. Não foram ouvidas autoridades ligadas ao Estado – policiais ou gestores
de governo, recorrentemente preferenciais nas reportagens dos meios tradicionais.
Os primeiros são tratados pelo nome e sobrenome estampados em uma legenda, e
aparecem em falas como sujeitos portadores de autoridade para condenar a violência
policial e demonstrar o que de fato acontece naquela comunidade. Servem, sobretudo,
para legitimar a própria produção audiovisual que ali se constituía, ressaltando a
omissão do poder público e dos media tradicionais diante de toda a violência vivida
naquela região, sem que ninguém tome qualquer atitude. O papel social desses atores,
em si, já denota uma preocupação diferenciada, reforçando os ethé6 de solidariedade e
6. Plural de ethos, conceito que se refere à construção de si no discurso.
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justiça social, que se opõem frontalmente à não-ação de órgãos oficiais, o que eleva sua
atuação não apenas ao papel de cidadãos, mas à de heróis, que agem independentemente
de interesses pessoais, mas pelo bem dos mais vulneráveis. Valores tais que se estendem
ao próprio vídeo.
Já os segundos, sujeitos que vivenciaram situações de violência, são chamados como
exemplos, reforçando a própria narrativa, pelo efeito de factualidade que representam.
Foi escolhido um casal, que relatou o dia em que o homem foi atingido pelo tiro de um
policial, as dificuldades relacionadas ao socorro e o medo sentido após o acontecimento.
Marido e mulher são apresentados com nome e sobrenome (sem situar a profissão), o
que já não acontece com o filho do casal e um amigo, adolescentes, apresentados apenas
pelo primeiro nome e a idade, na legenda. Ambos são questionados especificamente
sobre o sentimento que tiveram após o ato de violência, com espaço para expor opinião
crítica sobre o preconceito que vivenciam por morarem em uma comunidade pobre.
Por fim, há o foco em crianças e adolescentes. Todos aparecem sem ter seus nomes
identificados em legenda, mas a maioria tem seus rostos e falas focados em primeiro
plano. Parte das crianças aparece vinculada a uma instituição – Projeto Uerê –, de onde
elas falam e realizam atividades sob os olhos de adultos (professoras e produtores do
vídeo). Nada espontaneamente: as crianças são levadas, pelos jornalistas, a falar sobre
o medo que sentem da violência, um após o outro, o que leva a repetições após frases
curtas; depois, são orientadas a realizar uma atividade em que desenham cenas da
Maré, mostrando o que há de bom e o que há de ruim na localidade. Contudo, todas
as imagens mostradas no vídeo referem-se a cenas negativas, como venda de drogas,
mortes, presença policial fortemente armada, conflitos.
Há também crianças que aparecem sem vínculos institucionais, como um menino,
ainda na primeira infância (aparentemente com 4 ou 5 anos), cujo nome e idade não
foram expostos, mas que protagonizou o filme por cerca de 4 minutos, sem ter seu
rosto protegido – pelo contrário, quase o tempo todo o menino foi captado em primeiro
plano (close) ou em superclose. Sem outros adultos por perto, o menino aparece brincando
espontaneamente de bola, no quarto de uma casa, mas em seguida começa a ser guiado
pelos jornalistas em uma conversa em que ele fala sobre uma possível namorada, e
depois sobre violência – a jornalista pergunta se ele já havia matado um policial, e o
menino respondeu que sim. O trecho segue com imagens do menino com uma arma de
brinquedo, que ele lança com força sobre o chão, com golpes repetidos, até que ele fala
“já matei”. A jornalista segue com essa “entrevista” perguntando ao menino “quantos”
ele já havia matado, e a criança responde “três”. Em seguida, ela busca desfazer a fala do
garoto, ao dizer que parecia mentira, mas o menino reafirma sua versão. Cabe reforçar
que, em entrevistas, constitui-se uma interação com uma intencionalidade previamente
concebida (pelo menos por parte do entrevistador), que buscava tratar da relação das
crianças que vivem na Comunidade da Maré com a violência. Relação em grande
parte assimétrica, já que o produtor conhece previamente as perguntas, enquanto
o entrevistado, não (assimetria que, muitas vezes, é minimizada pela constituição
do próprio sujeito que está sendo entrevistado, detentor de conhecimentos e de
autoridade). Neste caso, constituiu-se uma situação em que o entrevistado não tinha
sequer discernimento suficiente para tratar o assunto, e mesmo uma possível tentativa,
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por parte dos produtores, de mostrar como uma criança pequena espontaneamente
se apropria da violência até em suas brincadeiras não foi bem-sucedida, já que toda a
situação pareceu forjada, artificializada. Acima de tudo, houve a exposição indevida
da criança, relacionando-a a uma situação de grave vulnerabilidade social, o que vai
de encontro com o que rege o ECA, legislação máxima no Brasil que trata dos direitos
relacionados a esse setor da sociedade.
Os únicos que tiveram não só os nomes, mas a face protegida no documentário
foram crianças de rua que aparecem no final da produção, durante manifestação contra
a violência policial. Com falas curtas e entrecortadas pelos demais, meninos e meninos
relatam como é difícil a vida na rua e mostram cicatrizes espalhadas pelo corpo causadas
por essa violência. Quase nenhum deles é focalizado em separado: em grande parte,
eles aparecem de modo coletivo, embaçado, de modo que não é possível diferenciar
suas histórias de vida. Apenas no encerramento do documentário um desses meninos
aparece sozinho, como se estivesse deitado no chão, de braços abertos, olhar mirando
diretamente a câmera, mas de cabeça para baixo. Ele apareceu sob uma luz avermelhada,
da iluminação pública, mas é possível ver bem seu rosto, já que não houve qualquer
intervenção da edição para descaracterizá-lo – mais uma infração ao ECA.
Entre os actantes, ainda que de forma implícita, é possível situar ainda os media
tradicionais, presentes tanto como entidade a ser criticada, por não mostrar o que de
fato acontece em tais comunidades, como no papel de referência e meta da própria
comunidade para se sentir representada. Esse aspecto é perceptível no momento em que
uma professora do Projeto Uerê mostra uma foto feita na escola durante um tiroteio na
Comunidade, em que as crianças se deitaram no chão para se proteger. A foto mostrada
havia sido tirada por ela, mas a professora acabou por mostrar a versão publicada em
um site de notícias vinculado à Rede Globo, como modo de reforçar o quão grave foi
aquela situação – já que até um veículo jornalístico tradicional o publicizou. Figuram
ainda, em um pano de fundo, autoridades policiais como os principais culpados por toda
a violência vivida pelos mais pobres ali retratados – não se incrimina o próprio crime.
Já os destinatários/receptores inscritos discursivamente podem ser percebidos
também em dois níveis: 1) pessoas e grupos ligados a direitos humanos e movimentos
sociais; 2) pessoas e grupos ligados à prática comunicacional alternativa. Ambos setores
bastante próximos, mas que se diferenciam pelas intencionalidades. Em relação aos
primeiros, busca-se travar uma comunicação com foco na legitimidade dos relatos, de
modo que a narrativa reforce uma opinião, não se restrinja a uma descrição relatorial;
já aqueles vinculados à comunicação alternativa se interessam sobretudo pelos relatos
de tom emocional, usados para “humanizar” as vivências ali retratadas e atrair a
atenção do público, a partir de uma ética e de uma estética diferenciadas em relação
aos media tradicionais – focados em dados e na fala oficial de enunciadores autorizados.
A partir das marcas discursivas ali presentes, não é possível, no entanto, perceber entre
os possíveis destinatários idealizados as próprias autoridades policiais ou mesmo o
Ministério Público, já que a produção não apresentou um caráter investigativo ao ponto
de inserir dados e provas que levassem, por exemplo, à abertura de uma investigação
oficial contra os policiais envolvidos na operação que resultou em tanta violência. Em
nenhum momento essa intenção ficou inscrita no discurso.
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Estratégias de enunciação
Quanto à forma, cabe ressaltar o caráter híbrido da produção, já que esta foi motivada
por critérios de noticiabilidade jornalística – atualidade, quantidade, intensidade –,
porém o tratamento dado foi o de um documentário cinematográfico, num formato mais
próximo do que Nichols (2009) chama de modelo observativo, em que o fato é exposto
tal qual acontece, sem interferência de uma narração em off, mas mesclado ao modelo
participativo, já que os produtores deixam claro que guiam as entrevistas, chegando a
manter sua voz em alguns trechos. Com isso, construiu-se uma história narrada pelas
próprias vozes dos entrevistados, os quais seguem apresentando relatos e ações a partir
da proposição dos produtores do vídeo. As únicas interferências às falas são textos
dispostos como legendas, usados tanto para nomear os entrevistados, como para situar
o local e a data dos fatos ali narrados.
Os produtores também se eximem de inserir sons externos ao ambiente (background
ou BG), mantendo o som ambiente. Assim como evitou-se o uso de iluminação artificial – o
que ficou evidenciado na cena em que as luzes do carro de polícia, vermelhas, alteravam
todo o ambiente, o que contribuiu para dramatizar a situação narrada. Tais estratégias
denotam uma busca por demonstrar um baixo nível de interferência dos produtores
na realidade. Contudo, a produção se distancia de um cinema verdade ao optar pela
edição de imagens e vozes, com cortes e sobreposição de falas sobre cenas captadas em
momentos diferentes, com o intuito de reforçar o que estava sendo dito. Assim, ao inserir imagens de policiais fortemente armados caminhando pelas ruas cheias de lixo da
Comunidade da Maré, ao longo da fala do jovem Cleiton, de 15 anos, que denunciava a
violência sofrida pelo pai e por outros jovens da comunidade, a produção enfatizou o papel
exclusivamente negativo do poder público sobre aquela comunidade, produzindo, assim,
um efeito condenatório sobre a atuação de qualquer agente público, generalizadamente.
CONCLUSÕES
Como dito anteriormente, esta análise não pretende ser definitiva tampouco única e
absoluta, já que a produção de sentido se faz em ato, e este depende de inúmeros fatores,
tanto internos como externos ao discurso. De todo modo, segue relevante, por trazer à tona
marcas e estratégias discursivas significativas, que precisam ser expostas e debatidas na
busca por compreender a comunicação e as representações que têm sido produzidas sob
a aura do “alternativo” ou “independente”. É importante também para propor um olhar
mais crítico sobre a forma como tais produções contra-hegemônicas produzem de fato
novas representações. Afinal, trata-se de um olhar diferenciado, que busca desconstruir
estigmas e reconstruir identidades a partir de uma perspectiva favorável a grupos que
não se sentem contemplados pelas representações midiáticas tradicionais.
Nesta análise inicial, percebe-se que a busca por se diferenciar do jornalismo
tradicional não o exclui de tal produção, pelo contrário: estabelece-se, na busca por
constituir efeitos de verdade por um ultrarrealismo presente nas imagens e nas entrevistas
com baixo nível de intervenções (sem uma narração em off e sem a inclusão de dados
colhidos por outros meios), um diálogo direto com o jornalismo broadcast, o que fragiliza
o caráter informativo do vídeo. Afinal, para compreender exatamente o que estava
sendo ali exposto, fazia-se necessário buscar o que tinha sido informado pelos meios
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
970
Jornalismo Audiovisual Alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré”
Kamila Bossato Fernandes
tradicionais, o que ficou inscrito ora implicitamente, ora explicitamente – sobretudo pela
ausência de certas informações, entre elas a versão da Polícia sobre a operação, assim
como dados referentes aos mortos e feridos, que não foram explicitados. Por outro lado,
ao dar voz e nome a pessoas que, nas reportagens tradicionais, aparecem normalmente
como testemunhas ou personagens secundárias (quando muito), o minidocumentário
dá relevo ao sensível, numa busca por empatia e adesão na troca comunicacional. Com
isso, sobressaiu-se a busca por emocionar, não por informar, o que, por sua vez, demarca
uma diferenciação relevante em relação às práticas jornalísticas comuns.
A escolha por realizar uma produção engajada politicamente em favor da causa de
vítimas da violência policial, sem a preocupação de produzir uma comunicação massiva
– que tem em vista falar a um público bem mais abrangente, tanto numericamente quanto
qualitativamente –, não exime os produtores alternativos de preservar identidades e a
situação de grupos e pessoas que vivenciam, no cotidiano, uma forte vulnerabilidade
social, com riscos de virem a sofrer violência física e até a morte. Tais produções precisam
ter em vista que a busca por desempenhar um papel social diferenciado precisa estar
presente não só nas intenções, mas sobretudo ao se colocar em prática a partir dos
dispositivos enunciativos e narrativos, enfim, no ato da enunciação.
REFERÊNCIAS
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971
Jornalismo Público no âmbito local:
uma alternativa para a notícia ambiental
Public Journalism at local range:
an alternative to environmental news
Ana Carolina
de
A r a ú j o S i lva 1
Resumo: O grande desafio do jornalismo ambiental é mostrar aos cidadãos o
quanto cada atitude individual influencia na preservação do planeta. A conscientização e adesão da população aos temas ambientais é também um objetivo
dos jornalistas que trabalham com este tema. Mas ainda não há uma fórmula
pronta para atingir esses objetivos. Este artigo discute uma alternativa: o jornalismo ambiental embasado nos conceitos e técnicas do jornalismo público,
com notícias de temas locais e regionais. A concepção seguida no artigo é a do
jornalismo de proximidade, que desperta no cidadão o interesse pela discussão
dos problemas que atingem o seu entorno, com o objetivo final de conscientizá-lo
para uma visão sistêmica da conservação ambiental, que leva a um resultado
geral, que é a preservação da vida no planeta. O artigo não tem como objetivo
apontar alternativas conceituais para tal produção, com base em bibliografia
pertinente sobre o tema.
Palavras-Chave: Jornalismo público. Comunicação regional. Comunicação local.
Jornalismo ambiental.
Abstract: The challenge of environmental journalism is to show citizens how
each individual attitude influences the preservation of the planet. Awareness
and adherence of the population to environmental issues is also a goal of the
journalists who work with this theme. But there is still no set formula for
achieving these goals. This paper discusses an alternative: environmental
journalism grounded in the concepts and techniques of public journalism, with
local and regional news. The ideation followed in the paper is the one about
journalism of proximity, which awakes the citizen interest to the discussion of
issues that affect their environment, with the final goal of raising awareness
for a system view of environmental conservation, which leads to a general
result, which is the preservation of life on the planet. The article aims to point
conceptual alternatives for such production, based on relevant literature on
the subject.
Keywords: Public Journalism. Regional Communication. Local Communication.
Environmental Journalism.
1. Doutoranda em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), docente do curso de
Jornalismo da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). E-mail: [email protected].
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
972
Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental
Ana Carolina de Araújo Silva
INTRODUÇÃO
M DOS principais objetivos do jornalismo ambiental é a conscientização da
U
população. A notícia sobre meio ambiente, além de informar, deveria promover
o debate, sugerir mudanças de hábito, chamar a atenção para a preservação
do planeta e o desenvolvimento sustentável com o objetivo final de preservar a vida
na Terra. Pareceria simples se não fosse um objetivo tão amplo. E quanto mais geral a
informação veiculada, mais distante do público ela fica.
Este artigo discute uma alternativa para esse dilema: como o jornalismo pode
tratar de um assunto tão amplo como meio ambiente e, ao mesmo tempo, chamar a
atenção da população para que a mudança de atitudes se dê no âmbito de cada casa, da
individualidade? Uma das soluções que será discutida aqui é a veiculação de notícias
sobre meio ambiente em veículos locais e regionais, com apoio nos objetivos e técnicas
do chamado jornalismo público. Para tanto, o artigo traz uma breve conceituação do
jornalismo ambiental e seus principais objetivos e características, tratando em seguida
do jornalismo público e os conceitos desta vertente que devem nortear a concepção da
informação jornalística sobre meio ambiente. Por fim, o trabalho traz uma discussão
sobre jornalismo local e regional e a importância da inserção da notícia ambiental
neste noticiário.
O artigo não tem como objetivo traçar uma análise do jornalismo ambiental
produzido em âmbito local e regional, mas antes apontar alternativas conceituais para
tal produção, com base em bibliografia pertinente sobre o tema.
JORNALISMO AMBIENTAL: CONCEITUAÇÃO
Como o tema central deste artigo é a notícia sobre meio ambiente, antes é importante
que seja delimitada a concepção de jornalismo que será utilizada neste trabalho. Wilson
Bueno (2008) faz uma importante e esclarecedora diferenciação entre comunicação
ambiental e jornalismo ambiental.
Vamos assumir a Comunicação Ambiental como todo o conjunto de ações, estratégias, produtos, planos e esforços de comunicação destinados a promover a divulgação/promoção da
causa ambiental, enquanto o Jornalismo ambiental, ainda que uma instância importante
da Comunicação Ambiental, tem uma restrição importante: diz respeito exclusivamente às
manifestações jornalísticas (BUENO, 2008, p. 105).
Bueno (2008) também acrescenta que o jornalismo ambiental é caracterizado por
produtos – que podem ser jornais, revistas, sites etc. – que decorrem do trabalho de
profissionais de imprensa. Além disso, diferencia-se também da comunicação ambiental
por ter o compromisso com a atualidade e a periodicidade. Um folheto de conscientização
sobre o uso racional da água, por exemplo, é um produto da área da comunicação
ambiental e pode ser distribuído uma única vez, sem nem ter passado pelo crivo de
um profissional da imprensa. Já um programa de televisão que veicule reportagens
sobre meio ambiente está inserido no conjunto de produtos do jornalismo ambiental,
provavelmente realizado por profissionais da imprensa e disponível na TV em dias
e horários específicos em determinado canal. Bueno (2008) também apresenta sua
conceituação de jornalismo ambiental.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
973
Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental
Ana Carolina de Araújo Silva
Podemos conceituar o Jornalismo Ambiental como o processo de captação, produção, edição
e circulação de informações (conhecimentos, saberes, resultados de pesquisas, etc.) comprometidas com a temática ambiental e que se destinam a um público leigo, não especializado
(BUENO, 2008, p. 109).
Frome (2008) lembra que o Jornalismo Ambiental é deferente do que ele chama que
jornalismo tradicional. Segundo o autor, o jornalismo ambiental
[...] É jogado segundo regras baseadas em uma consciência diferente daquela predominante na sociedade. Ele é mais do que uma forma de fazer reportagens e escrever, mas uma
forma de viver, de olhar para o mundo e para si próprio. Ele começa com um conceito de
serviço social, dá voz à luta e às demandas e se expressa com honestidade, credibilidade e
finalidade (FROME, 2008, p. 60).
Esse engajamento, “essa forma de viver” diferenciada, também é apontada por
Bueno (2008) e Dornelles (2008). Beatriz Dornelles, em especial, publicou um artigo que
trata essencialmente sobre uma proposta de jornalismo ambiental pautado no fim da
objetividade e da neutralidade. Ela assim justifica sua proposta:
Estou convencida de que precisamos adotar um novo estilo de jornalismo, especialmente
para o acompanhamento das questões ambientais no âmbito da sociedade. Primeiro, porque precisamos pensar não só em manter a população informada sobre os acontecimentos,
especialmente sobre a ação dos homens na natureza e seus efeitos, mas porque também
precisamos educá-la para que, vivendo em democracia, possa se organizar e se mobilizar
para exigir ações que levem em consideração o futuro de nossos filhos e netos e de toda
nossa geração (DORNELLES, 2008, p. 121).
O objetivo desse novo estilo de jornalismo, segundo Dornelles, é justamente envolver
a população no debate sobre as questões ambientais.
O que queremos dizer é que a pauta ambiental precisa fundamentalmente desempenhar
uma função pedagógica, sistematizando conceitos, disseminando informações, conhecimentos e vivências, ou seja, dando condições para que o cidadão comum participe do debate
(DORNELLES, 2008, p. 122).
Esse posicionamento é ratificado por Bueno (2008, p. 112), que chama a atenção para
as diversas organizações e grupos de interesse que procuram influenciar esse tipo de
informação. Para lidar com esse jogo tão complicado, o autor defende que o trabalho de
formação do jornalista ambiental deve começar nas escolas de jornalismo, para que esse
profissional do futuro tenha um compromisso com a humanidade, um compromisso
que se estende além da jornada de trabalho. “Consciente e capacitado, ele será militante
sempre” (BUENO, 2008, p. 112).
Frome (2008) salienta que a este profissional não basta a competência e o domínio das
técnicas jornalísticas. Para justificar tal posicionamento, ele cita T.H. Watkins, professor
da Montana State University, que tem muitos anos de experiência em jornalismo e edição
em assuntos ambientais.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
974
Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental
Ana Carolina de Araújo Silva
Não tente entrar nesse campo a não ser que – e até que – você o sinta em sua carne. Ele não
é como contabilidade, ou vendas, ou programação de computadores (apesar de eu achar que
um bom contabilista, vendedor ou programador também tenha que ter empenho pessoal
em alguma medida). Parece-se mais com uma cruzada, um compromisso. Se você não se
importa profundamente com o destino do mundo não-humano (uma fé que não exclui o
mundo humano, mas que meramente torna cidadãs por igual todas as espécies de vida,
como afirmou Leopold2), nenhuma arte ou truque pode compensar o que falta a você
(WATKINS, 1997 apud FROME, 2008, p. 75).
Frome (2008, p. 81) não condena as rotinas de produção jornalística no dia-a-dia
do profissional que faz a cobertura sobre meio ambiente. Mas ressalta que é preciso ir
além da objetividade e dos limites do profissionalismo, se utilizando dessas técnicas
não para ser devorado por um sistema desgastado, mas para servir à sociedade, mesmo
que isso signifique desafiar o sistema.
O jornalismo ambientalista quer encontrar e sentir a Boa Nova e espalhá-la como o evangelho. É a maneira de exercer o poder em sua vida, o poder de se juntar à definição de políticas públicas e o curso da história. Com esse poder, vem uma nova consciência de direitos
humanos, de liberdade política e pessoal (FROME, 2008, p. 80).
No tópico a seguir, será discutido como todo esse engajamento proposto pelos
estudiosos do jornalismo ambiental pode encontrar fundamentação nos preceitos do
jornalismo público ou cívico.
O JORNALISMO PÚBLICO E A NOTÍCIA SOBRE MEIO AMBIENTE
Como foi apontado no tópico anterior, o jornalismo ambiental engajado tem como
principal objetivo promover o debate das questões ambientais e a conscientização da
população para a mudança de hábitos e conseqüente preservação da vida no planeta. Tal
objetivo atribui à notícia ambiental um caráter cívico, com vistas ao incentivo do exercício
da cidadania. É sob esse aspecto que o jornalismo ambiental se aproxima do jornalismo
público. Wilson Bueno ressalta essa característica da notícia sobre meio ambiente ao
salientar que “o jornalismo ambiental é, antes de tudo, jornalismo” (BUENO, 2008, p.
111). Com esta afirmação, fica explícito que os preceitos éticos do jornalismo ambiental
são os mesmos de qualquer outra área do jornalismo, em especial o caráter público que a
informação toma ao ser transformada em uma matéria jornalística. Segundo Bueno (2008,
p; 111), assim como o jornalismo de uma maneira geral, o jornalismo ambiental deve ter
comprometimento com o interesse público, com a democratização do conhecimento e
com a ampliação do debate. “Não pode ser utilizado como porta-voz de segmentos da
sociedade para legitimar poderes e privilégios” (BUENO, 2008, p. 111).
Para explicitar tal relação, resumiremos aqui as origens, conceitos, características
e objetivos do jornalismo público, que assume também diversas outras denominações,
como jornalismo cívico, jornalismo cidadão, jornalismo de serviço público, jornalismo
de desenvolvimento e outras muitas expressões empregadas por estudiosos do tema.
2. Watkins refere-se a Aldo Leonard (1887-1948), ecologista e ambientalista pioneiro norte-americano que exerceu
uma grande influência no desenvolvimento da ética ambiental moderna. (N. do T. In FROME, 2008, p. 75)
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
975
Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental
Ana Carolina de Araújo Silva
Quanto à origem do jornalismo público, há referências diferentes. Segundo Traquina
(2003, p. 10), a primeira experiência desse novo tipo de jornalismo se deu em 1988, quando
o jornal americano Columbus Ledger Enquirer, do Estado da Geórgia, “abandonou o seu
papel tradicional de observador desligado e assumiu um papel de ativista na tentativa
de melhorar a qualidade de vida na comunidade” (TRAQUINA, 2008, p. 10).
Danilo Rothberg (2011) e Arquimedes Pessoni (2005), em trabalhos diferentes que
tratam aspectos do jornalismo público, também apontam o ano de 1988 como definitivo
para o início dessa prática. Os preceitos do jornalismo público procuraram, na época,
desmontar uma tendência da cobertura das eleições de 1988 nos Estados Unidos, que
tomavam um enquadramento de jogo. “A cobertura não teria abrangido quais propostas
ou temas estavam em discussão na campanha, mas teria apenas enfocado como e por que
motivo cada candidato teria mais ou menos chances de ganhar a eleição” (ROTHBERG,
2011, p. 154). Pessoni (2005), no entanto, lembra que Davis Merrit, um dos líderes do
movimento, escreveu que o filósofo e jornalista Walter Lippmann, no início do século
passado, guiou muitos jornalistas a ver a si mesmos como parte de uma elite, uma visão
desconectada dos cidadãos normais. “Ao questionar essa conduta, Lippmann lançou
dúvidas sobre o papel do jornalista como mediador nas causas públicas” (PESSONI,
2005, p. 60).
Porém, se considerarmos o jornalismo público como uma vertente do jornalismo
de desenvolvimento, sua origem não é os EUA. Kunczik (2002) aponta que
a expressão jornalismo de desenvolvimento como tal foi criada e introduzida no foro internacional na universidade filipina de Los Baños e teve maior impulso depois da formação da
Fundação Jornalística da Ásia, em 1967. [...] Nora Quebral (1975, p.2), da Universidade de Los
Baños, uma das criadoras desse conceito, acha que a missão do jornalismo de desenvolvimento é a emancipação dos grupos marginais, como os pobres urbanos, os camponeses, as
mulheres etc., e ajudá-los ativamente a participar no processo político, o que influenciará
ativamente seus destinos (KUNCZIK, 2002, p. 134-135).
Apesar das divergências sobre a origem do jornalismo público, os autores estudados
concordam em um aspecto: o jornalismo público nasceu de uma necessidade de mudança
na forma de se produzir notícia. Jay Rosen, um dos principais teóricos do jornalismo
público, aponta seis grandes crises na imprensa americana que acabaram por gerar um
movimento de mudança: econômica (jornais vendiam pouco, com queda nos índices
de leitura), tecnológica (avanços tecnológicos aumentaram a oferta de informação por
outros meios), política (a partir da péssima cobertura das eleições de 1988), trabalhista
(jornalistas desvalorizados, querendo abandonar a profissão), espiritual (qual o sentido
de se fazer jornalismo) e intelectual (interpretação e análise fracas na produção das
notícias) (ROSEN apud TEIJEIRO, 2000, p. 200-201).
E foi para romper com essa realidade que uma série de projetos foi colocada em
prática por diversos meios de comunicação. Todos com um objetivo em comum: fazer
do jornalismo um propulsor de discussões de temas que afetam a população, indo além
da missão de transmitir notícias.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental
Ana Carolina de Araújo Silva
O jornalismo público procura enfrentar sérias rupturas na esfera cívica e o decorrente declínio no engajamento dos cidadãos nos processos democráticos. De acordo com seus principais
defensores, os jornalistas têm a responsabilidade de alimentar o compromisso cívico e a
participação dos cidadãos; o jornalismo deveria promover, e até mesmo ajudar a ampliar,
a qualidade da vida pública (HAAS; STEINER, 2002, p. 325 apud ROTHBERG, 2011, p. 156).
Nas palavras de Davis Merrit, pode-se definir o jornalismo público como o
“jornalismo feito de forma que estimule e incentive os cidadãos a voltarem a se envolver
na vida democrática” [tradução nossa] (MERRIT apud TEIJEIRO, 2000, p. 210).3
Tal definição traz implícita a crise de participação política pela qual passava a
humanidade na década de 80. A falta de interesse pelos assuntos da coletividade fez
jornalistas repensarem o papel da imprensa. E essa não era uma discussão nova, como já
foi apontado no início deste tópico. E várias dessas discussões e experiências resultaram
em uma série de princípios do jornalismo público, que defende que os jornalistas
[a] cubram assuntos de natureza cívica e envolvam o público na definição dos assuntos que
serão objeto de reportagem [...] [b] estimulem a deliberação pública e a discussão sobre tais
assuntos em todos os segmentos da população [...] [c] dêem suporte e assistência ao público
na procura de soluções para os problemas da comunidade (EUROPEAN JOURNALISM
CENTRE apud ROTHBERG, 2011, p. 162).
Não se discute a necessidade de colocar tais princípios em prática. Mas a principal
dúvida nas redações é como fazê-lo. As primeiras iniciativas nortearam as práticas
de jornalismo público. O próprio Davis Merrit foi um dos pioneiros da aplicação
das teorias que defendia. Traquina (2008) relata que no jornal dirigido por Merrit, o
Wichita Eagle, foi lançado em 1990 um projeto de jornalismo cívico intitulado “Voter
Project”. “Em consórcio com uma estação radiofônica e um operador televisivo, o jornal
utilizou sondagens de opinião e focus groups para identificar as questões principais que
preocupavam os cidadãos” (TRAQUINA, 2008, p. 11).
As técnicas foram aperfeiçoadas, mas Rothberg (2011, p. 162-163) lembra que as
ações efetivas de projetos de jornalismo público contam, até hoje, com a utilização de
pesquisas de opinião a respeito de quais assuntos devem ser cobertos pelos meios de
comunicação, estudos qualitativos com grupos focais, reuniões periódicas com grupos
temáticos de discussão e provisão de especialistas, “geralmente com o envolvimento de
universidades e institutos de pesquisa locais, para liderar encontros com representantes
de segmentos sociais” (ROTHBERG, 2001, p. 163).
Um dos diferenciais, então, do jornalismo público em comparação ao jornalismo
tradicional, é a maneira como as pautas surgem. No jornalismo público, as notícias são
pautadas no interesse público, com a participação ativa dos cidadãos na discussão das
temáticas. Tal técnica, no entanto, já suscitou inúmeras críticas, principalmente no que
diz respeito aos grupos de pressão infiltrados nas consultas públicas. O que teria grande
potencial para suscitar uma discussão ampla pode, muitas vezes, acabar ficando restrito
3. Se podría definir al Public Journalism como periodismo hecho de forma tal que estimule y aliente a los
ciudadanos a volver a involucrarse en la vida democrática. [texto original]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental
Ana Carolina de Araújo Silva
a interesses particulares ou de grupos específicos. Porém, não se pode negar que trazer
as discussões da redação para a população é uma alternativa ao modo de produção
tradicional do jornalismo, normalmente baseado em critérios de noticiabilidade definidos
dentro das redações. O jornalismo público resgata, então, um dos papéis principais da
imprensa, que surgiu com as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII.
[...] os jornalistas são especialmente apropriados para ajudar a constituir públicos vitais para
a deliberação de assuntos complexos e o engajamento em atividades de solução de problemas
coletivos. Assim, o jornalismo público se compromete a ajudar membros do público a se
verem como cidadãos e a se tornarem responsáveis para lidar com toda a complexidade de
temas e atuar como participantes na sociedade civil, ao invés de se portarem como meros
espectadores dela (NICHOLS et al., 2006, p. 78 apud ROTHBERG, 2011, p. 159).
E não há, na atualidade, tema que mereça maior destaque nas pautas de discussão
coletiva do que a questão ambiental. As mudanças pelas quais o planeta passa atingem, sem
exceções, a todos os seres humanos que habitam a Terra. Desastres ambientais, mudanças
climáticas, superpopulação, desperdício e excesso de lixo, miséria e esgotamento das
fontes de energia são alguns dos temas que permeiam todas as editorias dos jornais,
da capa aos cadernos de economia. Mas a falta do aprofundamento sobre as causas
de tais problemas sempre relegam o jornalismo ambiental a uma editoria secundária.
O jornalismo público, ao tratar das questões ambientais, traria para perto do cidadão
uma discussão mais aprofundada sobre como as ações individuais de preservação
interferem de modo definitivo na coletividade. Quando se trata da questão ambiental,
não há ação mais eficaz que a conscientização do cidadão e o envolvimento efetivo de
cada ser humano para a preservação da vida no planeta. E o jornalismo público poderia
ser o catalisador desse movimento.
JORNALISMO AMBIENTAL LOCAL E REGIONAL:
UMA ALTERNATIVA PARA A CONSCIENTIZAÇÃO
No tópico anterior, esclarecemos como o jornalismo público e o jornalismo ambiental
podem se complementar na conscientização do cidadão para a melhoria da qualidade
de vida no planeta. No entanto, uma questão ainda permeia esta discussão: como
sensibilizar a população para este fim? Como aproximar questões que parecem distantes
do cotidiano do cidadão? Como conscientizar, por exemplo, moradores do interior de
Mato Grosso de que suas ações com relação ao meio ambiente podem interferir no
descongelamento de geleiras nos pólos? Não há solução mágica, mas com base nas
leituras que realizamos, podemos dizer que o caminho para a conscientização ambiental
aponta para o jornalismo local e regional. A razão é simples: o ser humano tende a
importar-se mais com o que acontece ao seu redor, próximo de seu local de convivência
cotidiana. E essa seria a via mais eficaz de discussão das questões ambientais. Partindo
do local, o global fará mais sentido.
Mas antes de discutirmos o jornalismo ambiental na imprensa local e regional,
entendamos os conceitos de local e regional. Quando se trata de tais conceitos, o senso
comum os associa imediatamente a limitações geográficas. No entanto, Bourdin (2001)
nos aponta outra concepção de localidade, que vai além dos limites de território.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental
Ana Carolina de Araújo Silva
A localidade às vezes não passa de uma circunscrição projetada por uma autoridade, em
razão de princípios que vão desde a história a critérios puramente técnicos. Em outros casos,
ela exprime a proximidade, o encontro diário, em outro ainda, a existência de um conjunto
de especificidades sociais, culturais bem partilhadas (BOURDIN, 2001, p. 25).
Logo, o conceito de local e regional não está restrito somente a limites geográficos. O
sentimento de pertença a determinado grupo social, cidade, cultura também especificam
a abrangência e um determinado local. Um indivíduo pode viver em outro país e se
interessar pelas questões de uma determinada cidade ou região brasileira. Bourdin
(2001) também escreve sobre esse espaço de pertença:
Toda espacialidade exprime a pertença a um nós, que se constrói e se manifesta em recortes
territoriais. O espaço de pertença resulta do conjunto dos recortes “que especificam a posição
de um ator social e a inserção de seu grupo de pertença num lugar”, o espaço de referências
define o sistema de valores espaciais em que se inserem esses recortes e organiza a relação
do aqui com o alhures (BOURDIN, 2001, p. 33).
Esse sentimento de pertença também tem a ver com identidade. Traços culturais,
hereditários, históricos e muitos outros constroem a identidade do indivíduo com
determinado local ou grupo. E Hall (1987) salienta que a identidade não é estática,
determinada e imutável. “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida
historicamente, e não biologicamente” (HALL, 2006, p. 12-13). E isso acontece justamente
porque, ao longo da história, as pessoas e o contexto social em que vivem mudam. Com
elas, as identidades e, conseqüentemente, o sentimento de pertença.
Segundo Peruzzo (2005), a mídia local tem como foco esse território de pertença e
identidade e não apenas uma localidade específica. Não há um padrão fechado e pronto
a ser seguido e sua atuação depende, inclusive, da política editorial de cada meio de
comunicação.
A mídia local se ancora na informação gerada dentro do território de pertença e de identidade em uma dada localidade ou região. Porém, ela não é monolítica. Não há uniformidade
no tipo de vínculo dos meios de comunicação em suas regiões, pois a inserção (mais ou
menos) comprometida localmente depende da política editorial de cada veículo (PERUZZO,
2005, p. 75).
O principal diferencial da mídia local, que atrai o interesse do público, é a proximidade
das informações veiculadas. Essa informação de proximidade, cada vez mais rara em
grandes veículos de comunicação, atualiza o cidadão sobre os acontecimentos de seu
cotidiano ou daquele local que lhe suscita interesse. Peruzzo (2005) define informação
de proximidade da seguinte forma:
Entendemos por informação de proximidade aquela que expressa as especificidades de
uma dada localidade, que retrate, portanto, os acontecimentos orgânicos a uma determinada região e seja capaz de ouvir e externar os diferentes pontos de vista, principalmente
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental
Ana Carolina de Araújo Silva
a partir dos cidadãos, das organizações e dos diferentes segmentos sociais. Enfim, a mídia
de proximidade caracteriza-se por vínculos de pertença, enraizados na vivência e refletidos
num compromisso com o lugar e com a informação de qualidade e não apenas com as forças
políticas e econômicas no exercício do poder (PERUZZO, 2005, p. 81).
A informação de proximidade expressa as especificidades de uma dada localidade,
mas não é direcionada apenas a quem vive nessa localidade. É neste aspecto que a mídia
local e regional pode atingir não só os cidadãos que compartilham uma mesma região
geográfica, mas também indivíduos que tenham um sentimento de pertença com relação
a essa localidade e aos assuntos que dizem respeito a ela. E, como já explanamos aqui,
esse sentimento é mutável, assim como as identidades. Camponez (2002) resume essa
concepção, ressaltando que o conceito de proximidade não é físico, concreto.
[...] o conceito de proximidade resulta de uma geometria variável: é mais uma geometria
da identidade [...] do que uma identidade geográfica propriamente dita. Por isso, o território revela-se, e cada vez mais na actualidade (sic), insuficiente para, por si só [...] explicar
a imprensa regional e local. [...] A proximidade já não se mede em metros. Devemos estar
preparados para conceber a produção de conteúdos que, embora longe de nossas casas,
nos são próximos, bem como para assistir à produção das regiões de conteúdos tão homogeneizantes e massificadores quanto os das grandes corporações de media (CAMPONEZ,
2002, p. 128-129).
É desta concepção de proximidade que o jornalismo ambiental pode se valer para
buscar a atenção e adesão dos cidadãos. Ao promover a discussão sobre meio-ambiente
no âmbito local ou regional, a imprensa local e regional começa por estimular o cidadão
à mudança de atitudes, a pensar sobre o problema. Um exemplo claro é a questão do lixo.
Números grandiosos são divulgados, de tempos em tempos, sobre a geração de lixo no
planeta, no país. Mas é uma informação distante, geral. No entanto, se o jornal local tratar
sobre o mau cheiro do lixão em determinada cidade, o tema torna-se mais interessante
para o leitor. A partir da notícia, com base nos preceitos do jornalismo ambiental, outras
pautas e ações podem surgir, como o estímulo à coleta seletiva de lixo, por exemplo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O jornalismo público surgiu a partir de uma crise do jornalismo. Há uma longa
discussão sobre o momento histórico desse surgimento, assim como dos seus objetivos e
técnicas. Uma dessas discussões diz respeito às bases do jornalismo público: o estímulo
do cidadão para o exercício da democracia e a busca por pautas que surjam das questões
e problemas levantados pela própria população. Mas essas não seriam missões do jornalismo em si? As rotinas de produção, ao longo dos anos, apagaram esses pressupostos?
Assim, entendemos que o movimento a partir do qual surgiu o jornalismo público é
um movimento de retomada das bases do jornalismo nas sociedades democráticas.
E é neste ensejo que o jornalismo ambiental se insere. Promover a discussão
sobre os rumos da vida no planeta é obrigação de um jornalismo responsável, ético e
compromissado com os cidadãos. Pois não se trata de um assunto secundário, como
vem sendo tratado. A questão ambiental agrava-se a cada dia e a indiferença frente aos
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
980
Jornalismo Público no âmbito local: uma alternativa para a notícia ambiental
Ana Carolina de Araújo Silva
problemas que se apresentam é preocupante. Por isso a imprensa local é importantíssima
como recurso para o estímulo a essa conscientização. Camponez (2002), ao discutir as
idéias do jornalista francês Dominique Gerbaud sobre as funções da imprensa local,
enfatiza essa vocação da mídia neste âmbito.
A imprensa local tem, assim, por função, manter e promover uma saudável vida democrática, permitindo a troca de idéias, favorecendo o debate e procurando fazer com que seus
leitores se interessem pelo ambiente que os rodeia, por forma a levá-los a assumir uma
atitude participativa do ponto de vista social (CAMPONEZ, 2002, p. 122).
Entendemos, então, que a imprensa local e regional, sob a ótica do jornalismo
público, tem papel preponderante na conscientização dos cidadãos acerca da preservação
ambiental e outros temas que dizem respeito ao ambiente em que vivemos. São questões
que focam a permanência da vida na Terra. E isso atinge, universalmente e sem exceções,
a todos os seres humanos.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre
o PLC 7633/2014 no website Vote na Web
Citizenship and on-line deliberation: the debate about
the project 7633/2014 at the website Vote na Web
C a rolin e K r aus Lu vizot to 1
Daniel e Fer r eir a Seridório 2
Resumo: A expansão e inerência do ambiente on-line possibilitaram às assembleias de praça pública alcançar fóruns, sites e outras plataformas digitais de
interação. Para o processo deliberativo foi cunhado um novo termo, a deliberação on-line. Neste contexto, este artigo pretende refletir sobre a deliberação
on-line e os processos comunicativos e interativos que a envolvem para analisar
a inclusividade no website Vote na Web e concluir a respeito do seu potencial
deliberativo. Para a análise empírica escolhemos o debate em torno do projeto
de lei complementar 7633/2014, que diz respeito ao parto humanizado. Apesar
das limitações do website, fazendo parte da cultura da participação, acreditamos
que o Vote na Web possa ser um passo de participação cidadã para um posterior
engajamento cívico, por isso, pensamos que iniciativas como essa são fundamentais no exercício da cidadania e na discussão política no Brasil.
Palavras-Chave: Participação Política. Deliberação On-line. Inclusividade. Vote
na Web.
Abstract: The expansion and the inherence of the cyberspace helped the
public places assemblies to reach forums, sites and other digital interaction
platforms. To the deliberative term it was built a new perspective, the on-line
deliberation. In this context, this article aims to discuss about on-line deliberation
and the communicative and interactive process that it involves, to analyses the
inclusivity at Vote na Web and conclude about it deliberative potential. To the
analyses we choose the debate about the law project 7633/2014, which talks
about humanitarian labor. Even though the website’s limitations, being part
of the participation culture, we believe that Vote na Web can be one step into
the citizen participation of the way to civil engagement , that’s why, we think
initiatives like that are fundamental in the citizen exercise and in the political
discussion in Brazil.
Keywords: Political Participation. On-line Deliberation. Inclusivity. Vote na Web.
1. Doutora em Ciência Sociais. Docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e do Departamento
de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp – Universidade Estadual
Paulista, Campus de Bauru. Email: [email protected]
2. Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação
da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp – Universidade Estadual Paulista, Campus
de Bauru. [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web
Caroline Kraus Luvizotto • Daniele Ferreira Seridório
INTRODUÇÃO
MINISTÉRIO DA Saúde e a Agência Nacional da Saúde Suplementar (ANS) imple-
O
mentaram a resolução normativa 368 de 6 de janeiro de 2015, estabelecendo que
os planos de saúde devem informar às gestantes o histórico de cesarianas do
médico, da operadora e do hospital, ampliando o acesso a informações essenciais na
decisão da mulher. A resolução retoma a discussão a respeito do elevado número de
partos cirúrgicos realizados no Brasil. Segundos dados da pesquisa Nascer no Brasil3
52% dos partos realizados no país são cirúrgico – sendo 46% no setor público de saúde
e 88% no setor privado. A recomendação da Organização mundial da Saúde (OMS) é
que a taxa de cesarianas não ultrapasse os 15%.
Desde 2014 tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei complementar (PLC)
7633/2014, que dispõe da humanização do atendimento à gestante e ao neonato, estabelecendo diretrizes para o atendimento médico durante a gestação e após o nascimento
do bebê. O texto, ainda prevê coibir a violência obstétrica. Neste cenário, é fundamental
ouvir a voz das mulheres em relação a essas medidas que diretamente lhe são destinadas.
No site da Câmara dos Deputados, o PLC 7633/2014 entrou para participação popular
por uma enquete – os usuários poderiam optar se concordavam ou não com a proposta.
O site traz a seguinte pergunta “Você concorda com a proposta que limita o número de
cesarianas no país à média recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS),
atualmente de 15% dos partos?”. A enquete ainda está ativa, mas até 12 de março de
2015, mais de 58% afirmaram que sim, 40% que não e 1% não tem opinião formada.
Apesar de a enquete ser uma forma de participação popular, não é possível ter dados
a respeito de quantas mulheres votaram, e o espaço destinado aos comentários é pouco
interativo, não permitindo que um usuário responda ao outro, propondo um debate.
Então, para conhecer a percepção das mulheres e conhecer argumentos em torno deste
debate faz-se necessário analisar a discussão em outra plataforma.
Neste contexto, temos o website Vote na Web, que traz os projetos que estão em
tramitação nas assembleias legislativas para votação popular, propondo um espaço de
debate e com dados a respeito do gênero, da idade e a qual unidade da federação reside
o usuário que votou em determinado fórum.
Portanto, a análise da inclusividade da mulher na votação do referido website traz
resultados relevantes para discussão a respeito da comunicação mediada pelo computador
como meio para participação política e estabelecimento de processo deliberativos on-line.
“Em uma sociedade na qual a informação se torna essencial para a criação e manutenção
de estratégias que visem a uma sociedade mais justa e à efetivação da democracia, a
internet se apresenta como um dos principais canais de comunicação” entre os atores
sociais (ROTHBERG et al, 2014: 231).
Este artigo pretende refletir sobre a deliberação on-line e os processos comunicativos
e interativos que a envolvem para analisar a inclusividade no website Vote na Web e
concluir a respeito do seu potencial deliberativo. Para a análise empírica escolhemos
o debate em torno do projeto de lei complementar 7633/2014, que diz respeito ao parto
humanizado.
3. A pesquisa foi coordenada pela Escola Nacional de Saúde Pública. Mais detalhes em: http://www6.
ensp.fiocruz.br/nascerbrasil/
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Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web
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PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E DELIBERAÇÃO ON-LINE
Essa expansão e inerência do ambiente on-line chegaram às assembléias de praça
pública e levaram-nas para fóruns, sites e outras plataformas digitais de interação.
Para o processo deliberativo (HABERMAS 1997; DRYZEK, 2007) foi cunhado um novo
termo, a deliberação on-line (JANSSEN e KIES, 2005; SAMPAIO, et al, 2012) e emergiram
pesquisadores e estudos que concentram seus esforços em discutir e analisar a qualidade
deliberativa dessas arenas on-line de comunicação, participação e interação. Essas arenas
virtuais, além de proporcionarem espaço para o debate, dão visibilidade para questões
que antes encontravam pouco espaço nas mídias tradicionais, ou que eram discutidas
com baixa pluralidade de opiniões e atores.
Além disso, por estarem na internet essas plataformas devem ser pensadas e
programadas de maneira que auxiliem as interações reativas e mútuas (PRIMO, 2008).
Portanto, além de permitir a livre conversação entre usuários, elas devem fornecer
ferramentas que auxiliem no processo de participação e deliberação. Essas ferramentas
relacionam-se intimamente com a arquitetura do site e com a informação disponibilizada
para fomentar o debate, já que o participante também precisa ter acesso a informações
que permitam a crítica e a tomada de decisão.
O desenvolvimento das tecnologias digitais e interativas de comunicação introduziu
o conceito de democracia deliberativa nos estudos de Comunicação, analisando e discutindo a maneira que esses meios podem reforçar a participação dos cidadãos na democracia contemporânea. As tecnologias da web 2.0 são grande atrativo para a articulação
de ações individuais ou coletivas, como a dos movimentos sociais, pois a partir dessas
tecnologias é possível a interação por intermédio de websites e redes formadas em torno
de interesses específicos, podendo apoiar causas e discutir temas individuais ou temas
de relevância coletiva, levando assim a opinião pública a reflexão e a disseminação de
informações políticas e sociais (VALENTE; MATAR, 2007).
Com a internet as formas de comunicação e consumo de informação se modificaram
e deixaram de ser unilaterais – marca dos meios de comunicação de massa – sendo mais
participativas e democráticas. Devido à interatividade, com a criação das redes sociais e
blogs, por exemplo, a internet proporciona aos seus usuários a capacidade de produzir
informação, ao invés de somente consumi-la. Observa-se que as plataformas on-line da
web 2.0 foram tomadas por discussões e debates dos mais variados temas. Entende-se que,
mesmo que de maneira limitada devido à sua infraestrutura de conectividade e a aspectos
relativos como a arquitetura da informação do website, como por exemplo a acessibilidade
e a usabilidade, a internet possibilita participação e interação real entre seus usuários,
sendo uma forma de comunicação rápida, prática e sem barreiras geográficas e temporais.
Atualmente, inúmeros sujeitos sociais articulam suas ações por meio das redes
sociais na internet, um tipo de participação que se configura como ativismo social online.
A infraestrutura de conectividade da rede revela-se um aparato tecnológico que permite
a comunicação de atores sociais no processo de criação, organização e disseminação de
demandas políticas e sociais. Esta estrutura possibilita a articulação dos atores sociais de
modo inter e correlacionado. Esse novo paradigma tem, segundo Castells (2006, p. 108109), certas características essenciais: “a informação é sua matéria-prima, os efeitos das
novas tecnologias tem alta penetrabilidade, predomínio da lógica de redes, flexibilidade,
crescente convergência de tecnologias”.
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Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web
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As redes que integram essa lógica possuem potencial articulador e mobilizador e,
segundo Scherer-Warren (2006, p. 115), “por serem multiformes, aproximam atores sociais
diversificados – dos níveis locais aos mais globais, de diferentes tipos de organizações
– e possibilitam o diálogo da diversidade de interesses e valores”.
A participação está ligada à atividade e ao engajamento. A participação seria inata
ao ser humano devido às suas necessidades criativa e racional e a democracia seria um
estado da participação (BORDENAVE, 1983). Nesse sentido, podemos afirmar que o
exercício da cidadania passa diretamente pela participação de um povo e suas demandas.
Potencializada a participação, a deliberação também alcançou outros níveis com o
advento da internet. Os textos de Habermas (1997, 2005) representam a base da discussão
sobre deliberação e as relações sociais que a envolvem, já que esse filósofo propõe um
modelo de democracia que ao mesmo tempo em que não abdica de uma interação forte
entre cidadãos e representantes para a formação da opinião, não deixa de reconhecer
direitos, liberdades e reivindicações individuais (SAMPAIO, et al, 2012).
Por mais que Habermas compreenda a fundamentação da deliberação como uma
ação comunicativa, o que mostra sua qualidade como referencial teórico para os estudos
dos processos comunicativos da deliberação, ele próprio já reconheceu os esforços de
outros teóricos para ampliar e adequar seus conceitos em busca de métodos empíricos
que avaliem a qualidade do ambiente deliberativo.
O que ocorre, segundo o autor, é que ao mesmo tempo em que a deliberação exige
a participação, a participação massiva de um determinado grupo – ou ponto de vista
– mitiga a consideração da participação e dos argumentos de outro grupo. Ressalta-se,
portanto, que por mais que a participação seja essencial à deliberação, é preciso que o
mecanismo de avaliação de experiências empíricas separe um do outro. Principalmente
quando o ambiente deliberativo está on-line, já que o ciberespaço fornece diversas
possibilidades de interação, relação e conversação.
Inúmeras potencialidades são atribuídas à internet e suas características mais
representativas para o processo deliberativo “vão desde a possibilidade de autoexpressão
e estabelecimento da comunicação sem coerções, passando pela sua enorme capacidade
interativa e de instantaneidade, ate a memória e a capacidade de armazenamento de
informação” (SAMPAIO, et al, 2012, p. 474). No ambiente on-line são os processos de
interação mediada por computador que vão guiar a participação e a deliberação.
Existem inúmeros pontos de discussão a respeito da deliberação on-line, sendo
necessário que pesquisas empíricas continuem a corroborar e a questionar a teoria a
respeito do assunto, principalmente no Brasil, onde a pesquisa na área ainda é escassa.
Portanto, para ilustrar a questão teórica discutida, partiremos da análise empírica de
um website que se apresenta como um espaço deliberativo on-line, o Vote na Web.
O VOTE NA WEB
O Vote na Web se apresenta como um site de engajamento cívico e apartidário, que
tem como objetivos aumentar a polarização da sociedade, e se compromete em levar os
resultados da participação civil ao Congresso4.
4. Fonte: http://www.votenaweb.com.br/sobre
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Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web
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Uma das principais características do Vote na Web são os resumos apresentados, formulados por analistas – a partir do texto do projeto de lei original – que buscam traduzir
os termos utilizados para uma linguagem mais próxima a do público. Quando a lei passa
por votação na Câmara e no Senado o site apresenta uma comparação entre o voto dos
legisladores e dos usuários. Outros aspectos da arquitetura do referido site podem ser
citados, como por exemplo, a divisão dos projetos de lei apresentados em categorias, como,
economia, saúde, trabalho, cidades, cultura, esporte, transporte, entre outras. No site, também há duas ferramentas de busca, por filtros pré-estabelecidos, ou por palavras-chave.
Para este artigo, no entanto, o ponto mais importante da arquitetura do webiste Vote
na Web é que ele permite que se visualize a computação dos votos em um parâmetro
geral dos usuários, mas também divididos em categorias de gênero, idade e estado. Deste
modo, é possível ter dados da votação considerando somente a população de mulheres,
podendo concluir a respeito da inclusão e do posicionamento desses indivíduos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O projeto de lei complementar (PLC) 7633/2014 dispõe sobre a humanização do
atendimento à gestante e ao neonato e estabelece diretrizes para o atendimento médico
durante a gestação e após o nascimento do bebê. O texto, ainda prevê coibir a violência
obstétrica. A coleta de dados foi feita de maneira sistemática no dia 18 de janeiro de
2015. As informações que procuramos foram as seguintes quantidades: mulheres que
votaram; homens que votaram; habitantes de cada um dos estados de federação que
votaram; e usuários por de cada faixa etária que votaram. Consideramos as faixas de 0
a 19 anos; 20 a 34 anos; 35 a 59 anos; 60 anos ou mais. Depois de coletados, os dados
foram organizados em tabelas e gráficos e comparados aos números da pesquisa Censo
2010, realizada pelo Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística (IBGE). A figura 1
apresenta a votação geral do PLC 7633/2014 no website Vote na Web5:
Figura 1. Votação geral do PLC 7633/2014 no website Vote na Web. Fonte: Vote na Web/2015
5. Mais informações sobre o PLC 7633/2014 no Vote na Web podem ser acessadas em http://www.votenaweb.
com.br/projetos/plc-7633-2014
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Cidadania e deliberação on-line: o debate sobre o PLC 7633/2014 no website Vote na Web
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Apenas 34% dos usuários que votaram se identificaram como mulher, 52% declaram-se homens e 14% não escolherem entre as opções possíveis – homem ou mulher
(gráfico 1).
Gráfico 1. Inclusividade na votação avaliada. Fonte: Autoria Própria/2015
Quando comparamos esse resultado aos dados da pesquisa Censo de 2010, realizada
pelo IBGE, percebemos que esses números indicam baixa inclusividade das mulheres
na votação. Dos mais de 190 milhões de habitantes do Brasil – residentes em domicílios
- 97.348.809 são mulheres (gráfico 2).
Gráfico 2. Dados do IBGE. Fonte: Autoria Própria/2015
Mesmo que todos os usuários que não escolheram opção de gênero fossem mulheres
a taxa de inclusão ainda não atingiria um parâmetro ideal frente à realidade nacional,
porém se aproximaria muito disso – 48%.
Ainda podemos discutir o reflexo desta baixa inclusão no resultado da votação (gráfico 3). Quando separamos os resultados entre os votantes que se consideram homens
(gráfico 4) e entre os votantes que se consideram mulheres (gráfico 5) temos os seguintes
resultados:
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Gráfico 3. Votação do projeto analisado considerando todos os
usuários que votaram. Fonte: autoria própria/2015
Gráfico 4. Votação do projeto analisado considerando somente os
usuários homens que votaram. Fonte: autoria própria/2015
Gráfico 5. Votação do projeto analisado considerando somente os
usuários mulheres que votaram. Fonte: autoria própria/2015
Isso mostra que na discussão de um projeto de lei que atinge diretamente às mulheres, se somente homens ou mulheres estivessem votando, a diferença entre os que optaram pelo “sim” ou pelo “não” chega a 10%. Outro resultado relevante a ser considerado
é a grande porcentagem de usuários que não se identificaram como homens ou como
mulheres – 14%. A própria pesquisa do IBGE não permite outra identificação.
Outro resultado analisado foi a inclusividade por estados da federação (tabela 1).
Nesta categoria, observamos que quatro estados tiveram a mesma participação percentual
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na votação e na composição da população brasileira, eles são: Paraíba (2%); Paraná (5%);
Santa Catarina (3%); e Sergipe (1%). O estado com a menor inclusividade é a Bahia; sua
população representa 7% dos habitantes no país, porém na votação no Vote na web,
representa apenas 2% dos usuários. E as unidades da federação que desequilibram a
votação – ou seja, tem maior representatividade no site – são: São Paulo; Rio de Janeiro
e Distrito Federal.
O número de usuários que não identificaram o gênero foi o mesmo que não
identificou o estado. Muito estados não chegam a atingir 1% de participação nem no
vote na Web e nem na população brasileira, por isso, consideramos para essas unidades
da federação percentual menor que 0.
Tabela 1. Comparação entre a participação dos estados no Vote na Web
e na população brasileira. Fonte: Autoria própria/2015
Participação no Vote na Web
Estado
Participação na população brasileira
0% (0,1%)
Acre
0% (0,3%)
1%
Alagoas
2%
0% (0,08%)
Amapá
0% (0,3%)
1%
Amazonas
2%
2%
Bahia
7%
2%
Ceará
4%
3%
Distrito Federal
1%
1%
Espírito Santo
2%
1%
Goiás
3%
0% (0,4%)
Maranhão
3%
1%
Mato Grosso
2%
0% (0,1%)
Mato Grosso do Sul
1%
9%
Minas Gerais
10%
1%
Pará
4%
2%
Paraíba
2%
5%
Paraná
5%
2%
Pernambuco
5%
0% (0,3%)
Piauí
2%
13%
Rio de Janeiro
8%
1%
Rio Grande do Norte
2%
5%
Rio Grande do Sul
6%
0% (0,2%)
Rondônia
1%
0% (0,04%)
Roraima
0% (0,2%)
3%
Santa Catarina
3%
29%
São Paulo
22%
1%
Sergipe
1%
0% (0,4%)
Tocantins
1%
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CONCLUSÕES
O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação e a própria
configuração em rede da internet promoveram profundas mudanças na sociedade,
desde a própria reorganização do capital para bens imateriais de informação e conhecimento – fenômeno que caracteriza a Sociedade da Informação – até a maneira como
os indivíduos se comunicam e produzem mídia. A sociedade apropriou-se dessas
tecnologias e formou-se uma rede que utiliza esse aparato tecnológico para interagir,
comunicar-se e participar.
Concluímos a partir da nossa análise que baixa inclusividade é um reflexo de dois
principais fatores: inclusão digital no Brasil; diversidade e baixa aderência do website
analisado. A inclusão digital é um desafio para o Brasil, e não podemos considerar
somente a quantidade de aceso, mas as habilidades necessárias para manusear um
computador e utilizar a internet como um meio de participação política.
Dados do Comitê Gestor de Internet mostram que, em 2013, 48% dos lares brasileiros
tinham acesso à internet. A maior parcela da população não é, portanto, incluída nas
discussões que ocorrem na internet. Por mais que a internet seja uma plataforma com
potencial para participação política e deliberação, a pequena penetrabilidade desse meio
nos lares brasileiros não permite que esse potencial seja transformado em ações efetivas.
Enquanto computadores com internet não chegam aos domicílios, observa-se no
Brasil um fenômeno de grande adesão aos dispositivos móveis. Dados da Agência
Nacional de Telecomunicação (Anatel) mostraram que o Brasil fechou o ano de 2013
com 103,11 milhões de acessos à banda larga móvel, e de janeiro a dezembro daquele
ano a quantidade de acesso à rede 3G cresceu mai de 75% e a de 4G mais de 8%. Então,
para que os sites que propõem um espaço de participação e deliberação política sejam
mais inclusivos, é preciso explorar plataformas compatíveis aos dispositivos móveis. A
empresa webcitizen desenvolveu, a partir do Vote na Web, o aplicativo para dispositivos
móveis “Papo de Bouteco”.
A análise deste ambiente de comunicação é fundamental para o fomento da discussão de uma democracia mais igualitária. Afinal, são discutidos projetos que podem vir
a se tornar lei no país. Ademais, o Vote na Web representa um ambiente comunicacional
independente, onde o fluxo parte da esfera civil, debatendo temas que em uma esfera
pública eram de discussão exclusiva dos estadistas.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
991
Comunicação pública em portais eletrônicos de governo:
a qualidade da informação sobre os direitos da
pessoa com deficiência na região Nordeste
\Public communication in e-government web pages:
the quality of information on the rights of people
with disability in the Northeast States
M a r i a n y Gr a nato 1
Resumo: O presente artigo revisa conceitos de comunicação pública, capital social,
relações públicas com o objetivo de caracterizar informações presentes nos portais
eletrônicos da região Nordeste, em 2013, relativas aos direitos da pessoa com deficiência. Foram analisados os sites das secretarias estaduais que cuidam do tema
na ausência de uma pasta específica para a pessoa com deficiência. A metodologia utilizada foi análise de conteúdo para sustentar a indicação de 18 categorias
consideradas necessárias para que o conteúdo da página web tivesse sucesso na
qualidade da informação. Dentre o material analisando, segundo a bibliografia
utilizada, ainda existe espaço para melhorias nas informações veiculadas.
Palavras chave: comunicação pública; cidadania; democracia digital; aliança
intersetorial; relações públicas.
Abstract: This paper reviews concepts of public communication , social capital
, public relations with the objective of characterizing information present in the
homepages of the Northeast in 2013 on the rights of people with disabilities .
The websites of state departments were analyzed who care about the issue in the
absence of a specific folder for the disabled person . The methodology used was
content analysis to support the appointment of 18 categories deemed necessary
for the web page content to succeed in the quality of information. Among the
material analyzed , according to the bibliography used , there is still room for
improvement to the spread information.
Keywords: public communication ; citizenship; digital democracy; intersectoral
alliance ; public relations.
COMUNICAÇÃO PÚBLICA
CONCEITO DA comunicação pública, considerada direito do cidadão, permeia
O
definições focadas, em sua maioria, no processo em si e não na interação entre
os indivíduos envolvidos. Presente em sociedades democráticas, a comunicação
pública tem como função primordial a transmissão de mensagens públicas, oriundas,
principalmente, de fontes como o governo ou grupos de interesse para a sociedade.
1. Mestranda bolsista CAPES do programa de Comunicação Unesp. Bacharel em Comunicação Social:
Relações Públicas Unesp.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
992
Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste
Mariany Granato
Segundo Duarte (2009) o termo comunicação prevê o diálogo entre os atores sociais
instrumentalizados em processos como o de comunicação informal ou canais que estimulem o exercício da cidadania em prol da mudança motivada pelo interesse comum,
tornando os cidadãos sujeitos do processo de transformação social, materializados nos
fóruns de consulta, conselhos setoriais, serviços de atendimento ao cidadão e consultas
públicas. Além disso, é possível classificar instrumentos de comunicação como: massivos; segmentados e diretos.
A comunicação de massa é baseada no princípio de disseminação da informação
para o maior número possível de pessoas, que, por sua vez, formam um grupo heterogêneo. O ponto forte deste processo é a capacidade de estabelecer agendas na mídia e
a fraqueza é a não abertura para o diálogo entre atores sociais.
Para se alcançar maior domínio sobre o conteúdo e foco na parcela populacional
que se deseja atingir, a comunicação segmentada é a mais indicada para a comunicação
pública. A participação e o diálogo entre os atores envolvidos apontam para maiores
possibilidades neste tipo de comunicação por meio do uso de ferramentas como os sites,
blogs, eventos, exposições ou reuniões.
Quanto à comunicação direta, o contato é face à face e personalizado, isto posto,
o atendimento tanto online quanto presencial passa a ser marcado pela facilidade de
interação, troca de informações e possíveis esclarecimentos às dúvidas.
Antes de avançarmos para as definições de comunicação pública é necessário
diferenciar o conceito de comunicação e informação. Duarte (2009) vê a possibilidade
de existência dos seguintes grupos de informação: institucionais, no que se refere à
projeção da imagem e identidade de instituições por meio de responsabilidades e
políticas; de gestão, relativo ao processo de decisão e ação dos que trabalham com
temas de interesse público, como os discursos dos agentes; de utilidade pública, temas
relacionados aos serviços e orientações do dia à dia individualmente, como horários
de funcionamento, campanhas de saúde, entre outros; o mercadológico, com produtos
e serviços ofertados no mercado pela concorrência; a prestação de contas, informações
referentes a decisões sobre determinadas políticas e uso de recursos públicos e, por fim,
os dados públicos, controlados pelo Estado, como documentos históricos, estatísticas
e legislações.
Para Brandão (2009) a comunicação pública está intrinsecamente relacionada ao
processo de cidadania e instâncias que trabalham com informações direcionadas à
maioria populacional de determinada comunidade ou espaço físico. Tais como os órgãos
públicos dentre associações e organizações ou empresas privadas ligadas a questões de
serviço público, por exemplo.
ALIANÇA INTERSETORIAL E RELAÇÕES PÚBLICAS
No ambiente social brasileiro Oliveira (2009) coloca como obstáculos à crença no
sistema público o cenário de violência, desigualdade, descrença política, corrupção e
desconfiança generalizada. O profissional de relações públicas tem como uma de suas
atribuições atuar na contribuição para a conscientização de diferentes públicos que
constituem sistemas formados em instituições privadas ou públicas sobre a importância
do exercício de cidadania com o intuito de estabelecer uma política social consistente.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
993
Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste
Mariany Granato
Alianças intersetoriais são, também, responsáveis pela união do primeiro, segundo e
terceiro setor em prol de ações conjuntas com a sociedade civil. Para tornar a ação social
efetiva os conflitos entre setores devem ser sanados. O reconhecimento do papel de cada
setor, suas limitações e cultura são necessários para que se estabeleça uma relação de
confiança e ética. Desta forma, o profissional de relações públicas visa assessorar e propor
políticas públicas referentes às organizações. Dentre as táticas utilizadas para favorecer
a criação de alianças setoriais, Oliveira (2009) destaca o lobby e as audiências públicas.
O lobby, atividade característica de regimes democráticos, exerce pressão, influência
ou persuasão para obter atitude favorável a seu posicionamento, como por exemplo, com
as políticas públicas. Para Nassar (2012) o lobby é algo natural exercido pelo ser humano
ao utilizar o convencimento como estratégia para atingir o objetivo, e fazê-lo é utilizar a
ética na transparência de argumentos. Esta ferramenta refere-se ao processo pelo qual
instituições, grupos, associações tentam influenciar a formação de políticas públicas,
decisões do governo, legislação e regulação (Galan, 2012).
A segunda tática refere-se às audiências públicas, previstas na Constituição Federal de 1988, ou reuniões que permitam a participação cidadã em assuntos de interesse
público, ferramenta facilitadora na coleta de dados para que a tomada de decisão com
subsídio nas questões debatidas ocorra e encontre na possibilidade do diálogo aberto
com a sociedade o entendimento e apoio em alterações de ambiente que podem modificar a vida da comunidade, por exemplo.
O profissional de relações públicas, ao atuar nesta área, desenvolve a função de
assegurar a participação dos cidadãos no debate, como mediador e fomentador de diálogo plural: “As audiências públicas têm, portanto, caráter democrático, participativo
e de corresponsabilidade pelas decisões, envolvendo intimamente a opinião pública”
(OLIVEIRA, 2009, p.480).
As duas ferramentas citadas permeiam a atividade deste profissional, pois exerce
função organizacional e atividade alinhadas à legitimação do interesse público (SIMÕES,
1995). Toda ação organizacional ou institucional é consequência de decisões tomadas
anteriormente, de normativas pré-estabelecidas, portanto cabe ao profissional alinhado
aos interesses do público e da empresa definir as escolhas perante o cenário existente.
Ao atuar frente a instituições governamentais, o profissional de relações públicas
apresenta-se como recurso estratégico na disponibilização de canais para mediar o
relacionamento estabelecido entre públicos. Para Novelli (2009) o diferencial da profissão está pautado em quatro principais objetivos: promover a compreensão pública
adequada a respeito das funções das esferas governamentais; fornecer informações sobre
atividades da administração pública de maneira contínua; criar e disponibilizar meios
para oferecer ao cidadão a possibilidade de interferir e influenciar ações políticas e de
governo; e estabelecer canais de comunicação pelos quais o cidadão possa ser atingido
pelos gestores da administração pública.
O interesse público é objetivo de todo processo de comunicação e pressuposto da
atuação das relações públicas governamentais, que buscam práticas descentralizadas de
comunicação para resgatar o componente político do processo comunicativo na esfera
do governo em embates e negociações entre população e governo que podem garantir
a eficiência na gestão pública caso entrem em consenso, e que o indivíduo note a sua
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
994
Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste
Mariany Granato
função política dentro da sociedade durante toda a vida, não somente em momentos
pontuais, como acontece com as eleições (NOVELLI, 2009).
Apesar da área não ser trabalhada com intensidade e a maioria das ações relacionadas à comunicação e governo estarem centradas em publicidade de ações políticas e
organização de eventos, a área de relações públicas governamentais tem potencial para
expandir a atividade da comunicação pública a favor da disponibilização de canais e
instrumentos de comunicação que possibilitem a melhoria do fluxo de relacionamento
entre governo em seus níveis federal, estadual e municipal e sociedade.
Assim, divulgar informações relacionadas às atribuições de cada um dos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário, para que as ações sejam cobradas diretamente do
canal correto e que confusões em relação ao modelo de democracia brasileiro deixem de
fazer parte do repertório do cidadão é atividade importante. Mesmo que aos poucos, a
comunicação pública governamental, representada pelo profissional de relações públicas,
apresenta potencial para realizar a atividade em conjunto com governo e sociedade, por
meio de desenvolvimento de programas de comunicação que não se limitem à assessoria
de imprensa e invadam o campo de propostas estratégicas e ininterruptas, independente
da troca de governo a cada quatro anos, possibilitando, assim, transparência das ações
tomadas para a esfera pública.
METODOLOGIA
A seleção das palavras e expressões, categorizadas na análise realizada pela pesquisa
demonstram a intenção, na inserção ou exclusão de termos, de produzir significações
acerca da mensagem exposta nos portais eletrônicos de governo, para assim, inferir
interpretações sobre os resultados obtidos por meio da análise de conteúdo aplicada
à amostra selecionada com o objetivo de identificar os enquadramentos simbólicos
das notícias sobre os direitos da pessoa com deficiência analisadas, favorecendo ou
prejudicando a consolidação do atendimento deste público.
O corpus de análise da pesquisa concentra-se nos portais eletrônicos das 27 unidades
federativas e da Secretaria Nacional da Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência,
durante o ano de 2013. Para qualificar o material coletado nesta pesquisa optou-se pela
utilização da análise de conteúdo com planilhas eletrônicas criadas especificamente para
o tema. Cada coluna da tabela desenvolvida representa uma página web com notícias
sobre políticas públicas para pessoas com deficiência e cada linha pertence às dezoito
categorias iniciais desenvolvidas para analisar o material coletado.
Pelo fato de análises que abordem a qualidade da informação disponibilizada em
portais eletrônicos de governo ser baixa, as categorias de análise foram desenvolvidas a
partir de critérios encontrados na literatura de Trevisan & van Bellen (2008), Faria (2005),
Costa & Castanhar (2003), Carvalho (2003), Souza (2003) e Arretche (1998). Os critérios
aplicados para observar a disponibilização de informações são baseados nos objetivos
da pesquisa, de maneira a gerar um Índice de Qualidade de Informação (IQI) presente
nos portais analisados.
A existência ou ausência de dados relacionados às dezoito categorias iniciais de
avaliação foram relacionadas em planilhas eletrônicas por meio da atribuição de um
ponto (1) para a presença de informação e de nenhum ponto (0) para a ausência. Assim,
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
995
Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste
Mariany Granato
uma página web analisada com o máximo possível de informações obteria 18 pontos.
O percentual do IQI obtido por estado e região brasileira foi calculado com base nas
categorias obtidas sobre o total esperado em relação ao número de páginas analisadas,
demonstrando, assim, o nível de excelência na profundidade e abrangência da informação.
Para Costa e Castanhar (2003) a lista de critérios utilizados na avaliação de políticas
públicas pode ser extensa e depende da intenção de cada pesquisa, do que se deseja avaliar. Os autores afirmam na metodologia de análise e avaliação dos programas sociais o
envolvimento da escolha de um conjunto de critérios e indicadores, para assim, realizar
o julgamento eficaz sobre o desempenho de programas.
As dezoito categorias iniciais de análise de conteúdo aplicadas aos portais eletrônicos selecionados para a pesquisa são:
1. Antecedentes – Nessa categoria a análise é feita mediante as condições explícitas
no texto que incentivaram a criação e execução da política pública.
2. Diagnósticos – Nessa categoria a análise é feita entre a oferta de informação e
o diagnóstico que teria fundamentado a política pública.
3. Objetivos – Essa categoria envolve informações sobre os propósitos de uma
política pública, expostos de maneira não caracterizada.
4. Metas – As informações nesta categoria devem se referir às expectativas reais
e palpáveis do programa desenvolvido.
5. Recursos atuais – As informações analisadas nessa categoria fazem referência
aos recursos disponíveis (financeiro, humano ou material) para executar uma
política ou programa de governo.
6. Ações atuais – As informações analisadas nessa categoria referem-se às ações
realizadas ou em andamento para a realização da política pública, muitas vezes,
amparada por parcerias entre secretarias de governo ou outras instituições civis.
7. Recursos planejados – Esta categoria envolve informações sobre os recursos que
seriam aplicados na execução de uma política pública ou programa de governo
em um futuro determinado, com marcação temporal.
8. Ações planejadas – Essa categoria envolve informações sobre as ações programadas para o futuro determinado, com marcação temporal.
9. Eficiência – Essa categoria refere-se à avaliação da relação entre o esforço empregado e os resultados alcançados.
10. Eficácia – É a avaliação da relação entre os objetivos e instrumentos explícitos
de um dado programa e seus resultados efetivos, pode ser acompanhado de
estatísticas.
11. Impacto (efetividade) – Essa categoria de análise envolve informações sobre a
relação entre a execução de uma política pública e seus impactos ou resultados.
12.Custo-efetividade – Essa categoria de análise observa a relação entre o que
foi investido e o realizado, comparando formas da ação social e os impactos
desejáveis.
13. Satisfação do usuário– Essa categoria de envolve informações sobre a qualidade
do serviço prestado sob a ótica do usuário. Os instrumentos para a realização
deste quesito podem ser a pesquisa de satisfação, entrevistas com o público,
enquetes ou por retorno espontâneo.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste
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14. Equidade – Essa categoria de análise trata de informações sobre o grau em que os
benefícios foram distribuídos de maneira justa e compatível com a necessidade
do usuário.
15. Públicos beneficiados – Essa categoria envolve informações sobre quem se beneficiou com a política ou ação do governo.
16. Informações legais – São observadas as leis ou decretos utilizados como base
para a origem de uma política pública ou programa.
17. Cenário político/ parcerias – Essa categoria envolve informações sobre as parcerias políticas, entre secretarias, instituições para realizar a política pública.
18.Informação operacional – Essa categoria envolve informações sobre a forma de
se atingir a política pública, local de cadastramento, horários disponíveis, entre
outras informações pertinentes ao acesso.
ANÁLISE E RESULTADOS
Na região Nordeste (Apêndice I), durante o ano de 2013, observa-se que de 40% a
80% das páginas analisadas apresentaram informações classificadas nas categorias ‘ações
atuais’; ‘objetivos’; e ‘cenário político’. Informações sobre ‘ações planejadas’; ‘antecedentes’;
‘públicos beneficiados’; ‘informações operacionais’; ‘diagnósticos’; ‘recursos atuais’; e
‘impacto’ estão presentes em 15% a 35% da amostra de pesquisa. As categorias ‘recursos
planejados’; ‘informações legais’; ‘eficácia’; ‘equidade’; e ‘satisfação do usuário’ foram
identificadas em 7% a 13%. Entre 0,86% e 5% estão as categorias ‘metas’; ‘custo efetividade’;
e ‘eficiência’ (Gráfico II).
Gráfico II. Percentuais de páginas web observados segundo categorias de análise
de conteúdo nos portais eletrônicos dos estados da região Nordeste do Brasil
Fonte: elaboração própria
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Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste
Mariany Granato
As categorias mais presentes na análise realizada são ‘objetivos’ e ‘ações atuais’, o
que indica a maioria das páginas web verificadas possuírem essencialmente informações
sobre os propósitos da política e ações objetivas através de parcerias ou não, tornando-se, assim, as características mais frequentes. A representação simbólica associada à alta
frequência de manifestações dessas categorias, dentre o material analisado, demonstra
a insistência entre os governos estaduais e nacional quanto a reafirmação na divulgação
de políticas sob o olhar prioritariamente focado em ações primárias, e na ausência dos
níveis elevados de discussão pública sobre atitude a ser tomada pela representação
governamental do Estado.
Para Matos (2009) uma das funções da internet está relacionada à formação do
capital social. No entanto, para que seja produzido, é necessário que esta ferramenta
seja utilizada para transformar o espaço e diminuir a distância entre governo e cidadão,
aproximando sujeitos com objetivos comuns. Mas, para isso, o indivíduo deve ser bem
informado sobre ações e práticas governamentais, para que, assim, consigam estabelecer
pontes densas entre a fala e ação a favor da participação cívica. A amostra analisada nos
permite inferir a falta de criação de capital social a partir da premissa de que a maioria
das informações privilegiada refere-se à ‘objetivos’ e ‘ações atuais’ de forma rasa, ausente
de estruturas mais complexas de pensamento interligando causas e consequências de
atos governamentais.
Já a reduzida presença de informações nas categorias ‘eficiência’ e ‘satisfação do
usuário’ indica escassez de preocupação dos gestores de conteúdo quanto à informação
comparativa entre os recursos empregados para desenvolver a política e os resultados
obtidos, assim como a ausência de informação sobre o feedback da política pública pelo
público alvo. A representação da política com escassa informação relativa a estas categorias não contribui para o aprofundamento da comunicação pública digital como ambiente
proveniente de informações relevantes e subsidiadas por características favoráveis ao
debate pelo público no que se refere aos direitos da pessoa com deficiência.
A categoria ‘equidade’ somente teve destaque no portal eletrônico da Secretaria
Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. A falta de informação
sobre a efetivação da comunicação pública por meio de atitudes que visem trazer a
participação dos cidadãos diante de processos estabelecidos previamente de ferramentas de participação pode enfraquecer a implementação de ações públicas a favor
da pessoa com deficiência. Esta informação deve estar presente para fomentar a participação cidadã e o possível engajamento em ações a favor dos direitos da pessoa
com deficiência.
O governo deve trabalhar a favor da criação de espaços públicos, e a comunicação
pública pode ser utilizada como ferramenta para atingir este objetivo. Por espaço público
pode-se prever a existência de troca de informações e mediação entre cidadãos. No
entanto, percebe-se que a presença de informações na categoria ‘satisfação dos usuários’
é baixa. Pode-se concluir deste dado, a partir da reflexão realizada por Novelli (2011), que
pode haver uma crise de representatividade vivenciada por sociedades democráticas
contemporâneas. A disfunção da comunicação no seu papel de intermediária entre
sociedade e governo ou representantes e representados pode levar ao distanciamento
entre indivíduo e máquina pública.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Comunicação pública em portais eletrônicos de governo: a qualidade da informação sobre os direitos da pessoa com deficiência na região Nordeste
Mariany Granato
Pesquisas de opinião e demais ferramentas que estimulem o diálogo entre essas
esferas tendem a minimizar e ocupar os espaços criados pela democracia representativa
atual. Muito pode ser feito para se melhorar o ambiente compartilhado pela pessoa com
deficiência a favor da garantia de seus direitos ao abrir o canal de comunicação para
se entender a opinião pública acerca de determinado serviço oferecido. A categoria
‘satisfação do usuário’ prevê a informação coletada do cidadão sobre a política executada
pelo governo. Com a baixa presença de inserções deste tipo de informação na amostra
pesquisada, a população pode distanciar-se do fazer política e não se sentir representada.
Abrir o canal de diálogo e colocar o governo como ouvinte no processo pode tornar o
cidadão mais autônomo e menos submisso às ações previamente direcionadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os profissionais da área de comunicação, o relações públicas é capacitado
para criar relações intersetoriais como afirma Oliveira (2009) entre Estado, governo e
sociedade, habilitado a atuar na administração pública no provimento de informações
referentes aos públicos e governo. Para Matos (2009) o conceito de comunicação pública
está ligado intrinsecamente aos agentes envolvidos no processo comunicacional além
de exigir a participação cidadã e todos os segmentos sociais como produtores ativos do
processo de construção da democracia.
Para Matos (2009) a comunicação pública deve ser observada como meio de alterar
o comportamento do público a fim de envolvê-lo em tarefas, neste sentido a qualidade
da informação prestada por agentes públicos, materializada nesta pesquisa em portais
eletrônicos é interpretada como fator indissociável de sua realização.
A caracterização do material coletado e as etapas concluídas nos permitiram perceber e inferir a necessidade de melhoria em relação à coleta de informações do público
alvo a favor da inserção do indivíduo na política, minimizando o espaço entre governo
e sociedade, a partir da consciência do papel exercido pelo poder público nas ações
voltadas para a população, que, por sua vez, deve assumir o papel de cidadão. Desta
forma, a comunicação pública é fator indissociável e necessário à efetivação do espaço
público como meio de interação entre cidadãos bem informados e governo.
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Apêndice I
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1000
Notas sobre expressões coletivas ameríndias
em redes sociais da internet
Notes on Amerindian collective expressions
in internet social networks
Car mem R ejane Antunes P ereir a 1
Resumo: O artigo traz apontamentos de pesquisa em andamento sobre configurações identitárias ameríndias considerando as expressões coletivas geradas em
redes sociais na Internet. Os apontamentos situam as múltiplas configurações do
movimento indígena, a expansão das tecnologias de comunicação e a construção
de identidades cidadãs nas ambiguidades de uma esfera pública midiatizada.
A pesquisa parte dos referenciais teóricos e metodológicos dos estudos dos
usos e apropriações das mídias, levando em conta a popularização da Internet,
e utiliza a observação on-line para mapear perfis indígenas em redes sociais
e refletir processos relacionados à visibilidade social ameríndia, à identidade
e à memória, a partir de um conjunto de mediações comunicacionais, sociais,
culturais e políticas no âmbito desses processos.
Palavras-Chave: Movimento indígena. Expressões coletivas. Usos e apropriações
das mídias.
Abstract: The article presents notes of an ongoing research about the amerindian
identity configurations considering the collective expressions generated in social
networks on the internet. The notes locate the multiple configurations of the
indigenous movement, the expansion of the communication technologies and
the construction of citizen identities in the ambiguities of a mediatized public
sphere.The research starts from the theoretical and methodological references
of the studies about the uses and appropriations of media, taking into account
the popularity of the Internet, and uses online observation to map indigenous
profiles in social networks and reflect processes related to amerindian social
visibility, identity and memory, from a set of communicational, social, cultural
and political mediations in such processes.
Keywords: Indigenous movement. Collective expressions. Media uses and
appropriations.
INTRODUÇÃO
O ESPAÇO desse trabalho procuramos trazer apontamentos sobre configurações
N
identitárias ameríndias considerando os perfis em redes sociais na Internet como
geradores de expressões coletivas construídas por internautas indígenas. Os
apontamentos estão situados no andamento de pesquisa que investiga a visibilidade/
1. Pós-Doutoranda no PPGICH-UFSC/Brasil, NAVI/ /UFSC; Processocom/UNISINOS e Red AMLAT.
e-mail: [email protected]
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expressão movimento indígena na Internet e os sentidos construídos pelos sujeitos
que participam da rede social étnica nas ambiguidades da esfera pública midiatizada.
Tal fenômeno implica situar a expansão das mídias e das tecnologias de comunicação
como sistema e aparato que atravessam a produção simbólica das práticas culturais,
conformando uma nova forma de atuar, em um vasto conjunto global, mas ainda em
grande parte diversificado.
A pesquisa parte dos referenciais teóricos e metodológicos dos estudos dos usos e
apropriações das mídias, levando em conta a popularização da Internet e tendo como
cenário de observação os perfis indígenas em site de redes sociais como o Facebook. Com
a observação desses perfis, em perspectiva etnográfica, se procura pensar as expressões
coletivas ameríndias em um conjunto de mediações comunicacionais, sociais, culturais,
políticas e de matrizes ancestrais e contemporâneas no âmbito desses processos.
Para essa reflexão procuramos, em um primeiro momento, resgatar marcos históricos
do Movimento Indígena no Brasil, os quais são abordados em pesquisas que situam
suas múltiplas configurações contemporâneas.
Em um segundo momento, apontamos aspectos de pesquisa que sugerem uma noção
de imagem indígena como autorepresentação dos grupos exotizados e marginalizados
pelas mídias hegemônicas de massa ao longo do século XX até nossos dias, bem como os
ensaios de construção da imagem ameríndia, advindos com a expansão das tecnologias
de comunicação e as reconfigurações dos públicos, nos processos de visibilidade social
na ambiência comunicacional contemporânea, por onde emergem as discussões sobre
possibilidades de configurações de identidades cidadãs.
Tais possibilidades são pensadas no âmbito da participação indígena nas construções
das redes sociais étnicas e das suas expressões coletivas, considerando um conjunto de
mediações tais como a organização política, a escolaridade e também o gênero, além
da memória étnica dinamizada pela história, entre outras.
CONFIGURAÇÕES HISTÓRICAS DO MOVIMENTO INDÍGENA NO BRASIL
Configurações históricas do Movimento Indígena no Brasil vêm sendo entendidas
a partir de abordagens sobre o protagonismo indígena e as relações interétnicas na
sociedade nacional, situando nesse processo a expansão de organizações, a heterogeneidade das comunidades, demandas e lideranças que compõem uma realidade na qual
convivem mais de duzentos e quarenta povos, com especificidades culturais, linguísticas,
geográficas e organizacionais2.
Sem desconsiderar a densidade histórica das lutas e resistências dos povos indígenas
ao longo da colonização e dos processos de formação da sociedade nacional, Santos
Bicalho (2011) aponta que o movimento indígena, como consciência coletiva, começou
a tomar forma nos anos 70 do século XX, sendo resultado de mudanças ocorridas em
um passado recente, tanto no Brasil como na América Latina, através dos processos
de ruptura lentos e graduais de culturas políticas autoritárias rumo à construção de
sociedades e Estados democráticos.
2. Fonte: Instituto Socioambiental (ISA)
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Na primeira etapa de construção do protagonismo indígena, Santos Bicalho (2011)
registra como acontecimento fundador as assembleias indígenas apoiadas por setores
progressistas de igrejas cristãs e outras entidades da sociedade civil, as quais criaram as
bases para uma identidade coletiva fortalecedora da autoestima e pela atuação consciente
da necessidade da luta social pelos direitos indígenas no Brasil, numa perspectiva de
legalidade e legitimidade. Nesse período, o movimento assume um caráter pan-indígena
assim definido: “Tomar para si a consciência política da condição de minoria implicou no
reconhecimento indígena de que, apesar de suas diferenças étnicas, compartilhavam uma
história e um destino comuns dentro do Estado brasileiro” (Ortolan Matos, 2006, p. 40).
Segundo e relevante acontecimento fundador, a Constituição Federal de 1988
garantiu o reconhecimento legal da organização social indígena e do direito dos índios,
suas comunidades e organizações de ingressarem, como partes legítimas, em juízo
em defesa de seus direitos e interesses (Artigos 231 e 232, Capítulo VIII - Dos Índios),
o que provocou mudanças de orientação na atuação política dos indígenas no campo
das relações interétnicas.
Com o direito à terra assegurado, constitucionalmente, abriu-se espaço para outras
reivindicações como a proteção dos territórios e a sustentabilidade socioambiental
dos grupos indígenas na sociedade nacional (etnodesenvolvimento); além de várias
demandas à esfera das políticas públicas, como, por exemplo, aquelas voltadas à educação
e à saúde diferenciadas para as populações indígenas.
Ainda na década de 90, o advento de uma macropolítica planetária levou as áreas
indígenas a serem vistas como unidades de conservação; criam-se novos sentidos
para mobilizar a população através de programas e projetos sociais, muitos dos quais
apresentados totalmente formulados pelas agências financiadoras para atender pequenas
parcelas da população (Gohn, 2011).
Nesse contexto ocorre uma proliferação de organizações indígenas de natureza
distinta: nacionais, regionais, locais, associações de categorias sociais e econômicas,
organizações pluriétnicas ou étnicas, de caráter político e de caráter econômico, etc.
Essa proliferação será vista como uma nova fase da política indígena, no cenário atual
dos processos de globalização e das mudanças de retórica e de critérios dos organismos
transnacionais e multilaterais (Oliveira, 2010, p.42). Nesse período, a Fundação Nacional
do Índio perde sua exclusividade na definição e execução da política indigenista oficial,
sendo suas responsabilidades repartidas entre diversos órgãos governamentais.
Com essas novas configurações, o que vem sendo discutido como Movimento
Indígena, também passa a ser vinculado à categoria de novos movimentos sociais nos
contextos políticos específicos da América Latina, cuja especificidade dirigiu-se às
questões étnicas, de gênero, etc.. Além de serem mais propositivos do que reivindicativos
também passaram a ser avaliados pela atuação em redes locais, regionais, nacionais e
internacionais, utilizando-se dos novos meios de comunicação e informação (Gohn, 2011).
As novas incumbências das organizações indígenas, entretanto, atuando menos
como articuladoras políticas e mais como gestoras e executoras de ações, provocaram
uma reavaliação de lideranças e associações indígenas para retomar seu papel
político de representação indígena e sua função de controle social das ações estatais,
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especialmente em anos recentes, para fazer frente às ameaças aos direitos indígenas
no Congresso Nacional.
Assim, se o protagonismo indígena é uma realidade que vem se fortalecendo
desde as últimas décadas do século passado, este se elabora num “contexto de relações
interculturais assimétricas” (Secchi, 2007, p.15 citado por Santos Bicalho, 2011), em que
“a predominância da cultura ocidental sugere a necessidade de mudanças nas relações
entre Estado, sociedade e povos indígenas – de modo que a cultura e a vivência destes
últimos sejam verdadeiramente respeitadas” (Santos Bicalho, 2011, p. 10).
Tais relações podem ser melhores compreendidas no momento em que a pauta do
direito à terra volta a ocupar destaque nas estratégias de ação coletiva indígena, em
nível nacional, para fazer frente às ameaças a esses direitos, assim como para pressionar
o Governo a criar instrumentos que possibilitem a formulação da política indigenista,
visando normatizar e coordenar as ações indigenistas governamentais, atualmente
dispersas entre vários instâncias ministeriais.
Desse modo, pode se entender que o Movimento Indígena não tem apenas uma
configuração; que ele se revela em distintos atores e contextos históricos e culturais,
abrange escalas locais e globais, redes de alianças, ações coletivas de enfrentamento
direto contra a autoridade estatal, e a disposição de se construir como força social no
âmbito do poder estatal para atuar nas definições e execuções da política indigenista.
VISIBILIDADE INDÍGENA E AMBIÊNCIA
COMUNICACIONAL CONTEMPORÂNEA
Considerar a multiplicidade do movimento indígena é importante para evitar “a
noção simplificadora de uma voz indígena” (Oliveira, 2010, p. 45), e também estimula
a refletir “expressões coletivas” oriundas da construção dos perfis indígenas nas redes
sociais, levando em conta condições tecnológicas e parâmetros culturais que provocam
mudanças em termos de projeção de imagem ameríndia, nas últimas décadas.
Das primeiras imagens que retratavam os indígenas para fins de estudos
comparativos, no final do século XIX, os registros imagéticos das culturas indígenas
passaram a compor arquivos oriundos de estratégias de interiorização do Estado
brasileiro, das missões religiosas, assim como etnografias realizadas por antropólogos
em diversas modalidades. Contaminada pelo exotismo, a fotografia que deu base
para a construção da imagem do índio no Brasil também foi reforçada nos meios de
comunicação, como observa Tacca (2011).
Ao final do século XX, quando a imagem fotográfica adquire novas dimensões
na sua forma de reprodutibilidade técnica, abrem-se novas possibilidades para pelo
menos pensar outras formas de representação indígena, a partir de um espaço público
marcado pela expansão das tecnologias de comunicação e ampliação do uso da Internet.
Isso não significa que as representações “convencionais” do indígena deixaram de ser
construídas pelas mídias hegemônicas de massa, ou ainda por muitos especialistas
de mídia que atuam na Internet, como se observa em reportagens recorrentes que
procuram questionar os direitos indígenas, especialmente no âmbito dos seus territórios,
relacionando a sua caracterização como consumidor de bens culturais, comuns entre
a população não indígena.
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Dessa forma, ao investigar configurações identitárias ameríndias em redes sociais
procura-se compreender a participação/intervenção das diversas culturas no espaço
público midiatizado e os modos pelos quais essa participação expressa a historicidade
dos públicos. Isto é, o modo e as condições de inserção do sujeito em uma ambiência
construída pelas mídias, buscando promover a visibilidade indígena, frente a um
contexto de relações interculturais assimétricas e aos processos de inclusões excludentes
de uma sociedade multicultural e desigual (Santos, 2006).
Trata-se, então, de pensar possibilidades, sem descurar das limitações significativas
nos processos que estruturam uma ambiência comunicativa dinamizada pela
globalização, onde as mídias exercem uma ação peculiar; porém regidas por lógicas
econômicas, políticas e culturais que demarcam a nova configuração societária, em que
existem novos e velhos padrões de acumulação, de exclusão e inclusão, novas formas
de pensar, agir, sentir e fabular o mundo (Ianni, 2003).
Maldonado (2013) reflete esse momento como “ensaio de possibilidades”, considerando as tendências de aumento da população mundial que usufrui dos ambientes
digitais3 e apontando a expansão de uma “cultura midiática informatizada digital”, em
um momento em que:
A grande mídia enuncia o mundo repetindo clichês, fórmulas, receitas para fabricar seu
próprio mundo dinâmico (ao mesmo tempo estático, na sua essência), em mudança simbólica, trabalhando a voluptuosidade das formas (Barthes, 1979). Produzir um campo de
efeitos simbólicos é uma necessidade estrutural do sistema de consumo para a mudança,
atualização, renovação e transformação das economias em crise. Não obstante, e simultaneamente a esse processo, é significativa a popularização e consequente socialização de
práticas sociais de produção tecnológica de comunicação, que expressam culturas diversas
em busca de um lugar na história contemporânea (Maldonado, 2013, p.38)
Nesse contexto, Tacca (2011) aponta novas possibilidades de representação da
imagem indígena, de onde emerge a noção de produção endógena para pensar a
produção fotográfica, das próprias etnias e culturas, “que conduz a práticas efetivas de
identidades e, também dá visibilidade a outros olhares distantes”, podendo também
alimentar um imaginário sedento dessas imagens míticas (Tacca, 2011).
A noção é profícua para pensar a visibilidade do mundo indígena, na medida em
que as imagens – e aí não somente a fotografia, mas também um conjunto de produção
audiovisual4 são “feitos”, seja com valores espontâneos ou de forma organizada, pelos
próprios “índios”; entretanto, além disso, pode-se pensar em uma gama de conteúdos
publicizados mediante estratégias diversas, que podem ser voltadas a divulgação
das culturas, mobilização, denúncia, socialização do conhecimento ou ainda como
compartilhamento da memória, seja ela entendida como étnica, política, histórica ou
comunitária, em sites indígenas e redes sociais.
3. Maldonado (2013, p.36) aponta que mais de 30% da população mundial usufrui dos ambientes digitais,
sendo que entre 2006 e 2011, o número de internautas duplicou-se, conforme dados da União Internacional
e Telecomunicações (UIT-ONU - Relatório Anual de 2011). Em relação à população indígena no Brasil,
Renesse (2011), em levantamento parcial realizado até este ano, registrou 77 mídias eletrônicas com acesso
público na web e 113 pontos de acesso à Internet em comunidades indígenas.
4. Nesse caso é importante citar o acervo de mais de 70 filmes documentários produzidos pela ONG Vídeo
nas Aldeias.
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Sobre essa questão, atenta-se para o fato de que a memória social é um fenômeno que
faz referência aos grupos e abarca uma multiplicidade de categorias tais como lugares
(Nora, 1993), marcos, identidades, culturas, interesses, atores, instituições, apagamentos
e ressurgimentos (Pollack, 1992), que se enfrentam na esfera pública, competindo pela
hegemonia de discursos plausíveis e relevantes dentro do conjunto da sociedade
(Montesperelli, 2004, p. 15).
Nesse aspecto, Martín-Barbero (2006) oferece uma contribuição ao pensar as novas
figuras de cidadania para além das utopias que promovem a sociedade em rede como
uma totalidade (Castells, 2002) - e o processo de reconfiguração dos públicos em meio à
ambígua mediação das imagens e do uso de tecnologias informáticas na esfera pública.
Pois se é certo que a crescente presença das imagens (...) na ação política epetaculariza esse
mundo até confundi-lo como da farsa, dos reinados de beleza ou das igrejas eletrônicas,
também é certo que pelas imagens passa uma construção visual do social, na qual essa
visibilidade toma o deslocamento da luta pela representação da demanda de reconhecimento. O que os novos movimentos sociais e as minorias (...) demandam não é tanto ser
reapresentados, mas, sim, reconhecidos. (Martín-Barbero, 2006, p. 68).
Assim, atenta-se para um conjunto de elementos textuais, imagéticos ou audiovisuais
que o/a internauta, como mantenedor de um perfil, utiliza para construir expressões
coletivas na rede social étnica. Embora o termo internauta possa ser redutor em relação “a
dinâmica da complexificação do processo comunicacional, no contexto de uma sociedade
em rede” (Cogo; Brignol, 2010) ele aqui se refere ao usuário da internet, considerando
para isso a sua trajetória como integrante de públicos diferenciados, o que significa
refletir que “os públicos não nascem, mas se formam”, conforme a época em que são
gerados (García-Canclini, 2008), assim como na sua historicidade (Pereira, 2010) não se
reduzem a uma modalidade absoluta do meio5.
OS PERFIS, AS EXPRESSÕES COLETIVAS E
ALGUMAS MEDIAÇÕES RELEVANTES
Para mapear os perfis indígenas desenvolvemos observação on-line com perspectiva
etnográfica desde agosto de 2013. Essa perspectiva tem como propósito situar-se em
um cenário social comunicativo (Geertz, 1978), observar a participação dos internautas
(Fragoso, Recuero & Amaral, 2012) através da atuação de perfis e identificar mediações
relevantes para compreensão das suas configurações identitárias e das expressões
coletivas, assim compreendidas enquanto uma expressão indígena pública em tempos
de rede sociais6. Os procedimentos de observação têm, assim, um caráter exploratório
e operativo que permite pensar a própria imersão da pesquisadora nesse cenário e
as dimensões de uma rede social étnica, a partir de vários elos que correspondem às
5. Isso significa que o internauta pode ser ao mesmo tempo, leitor, ouvinte e telespectador o qual se apropria
da Internet, para diversas finalidades, gerando expressões coletivas, as quais são consideradas a partir de
um contexto pessoal, social, grupal, político, territorial, geográfico, isto é, um sujeito historicamente situado.
6. Consideramos aqui apontamentos de Madianou e Miller (2012) sobre a inserção das redes sociais na
vida cotidiana e de Lacerda (2013) sobre as distorções que algumas denominações de métodos provocam,
especialmente quando se busca uma descrição aprofundada das significações e práticas comunicacionais
dos sujeitos que navegam na rede mundial de computadores.
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inúmeras relações dos atores nos seus modos de construir e se construir nas redes sociais,
o que leva a pensar na possibilidade de uma rede social étnica, apenas como forma de
apreender significações em um cenário que apresenta diversas modalidades de uso.
Assim, ao fazer referência à rede social étnica como elemento aglutinador de
sentidos nas ambiguidades da esfera pública contemporânea, não se alude a um grupo
fechado ou único e sim às marcas de um sujeito comunicacional que também se utiliza
da internet para construir sentidos ‘enquanto’ rede social étnica. Nessa perspectiva,
procuramos tais pistas através do Facebook7, reconhecendo a sua popularização no
Brasil e sem ignorar os obstáculos de acesso que caracterizam os processos de inclusão
digital no país.
Para essa busca consideramos a Internet em seus aspectos de banco de dados,
como mídia e como ambiente de relacionamento que permite pensá-la como produto
e parte da cultura contemporânea (Cogo, Brignol, 2010) para potencializar o estudo
da recepção em tempos de redes sociais. Dessa forma, nesta investigação, os perfis se
tornam um elemento de observação significativo na medida em que eles permitem a
configuração do ator de forma personalizada, visibilizam uma lista de contatos com
outros usuários que na linguagem do site podem implicar uma analogia com a amizade
off-line, porém, nesse contexto, podem ser entendidos como parceiros e parentes entre
várias etnias ali localizadas. Além disso, em virtude das ações de compartihamento
de conteúdo produzido ou selecionado, da publicização de narrativas endógenas, das
projeções identitárias, entre outros aspectos.
Dessa forma, a preocupação é ampliar o conhecimento sobre os usos da Internet e
as apropriações das mídias nas múltiplas significações do sujeito indígena procurando
compreender suas expressões coletivas e as mediações que as constituem. O que implica
articular a observação de redes sociais a partir da vivência comunicacional mediada pelos
meios, através da conjunção de metodologias apropriadas, como navegação interessada
no cenário on-line e entrevistas em profundidade, tematização de conteúdos, por exemplo,
no contexto off-line.
Nesse sentido é importante registrar que os perfis também podem ser contextualizados no espaço geográfico que denominamos de Sul do Brasil. O contexto geográfico,
nas fronteiras internas brasileiras, corresponde aos estados do Paraná, Santa Catarina
e Rio Grande do Sul, onde estão situadas comunidades Kaingang, Guaranis, Xockleng,
Charruas, além de poucos descendentes do Povo Xetá. O aspecto geográfico é aqui
destacado para referir-se a continuidade da pesquisa em uma perspectiva mais ampla,
através da história das vivências comunicacionais de sujeitos que participam da rede
social étnica.
Para essa fase de mapeamento utilizamos como critério as relações de “amizade”
dos internautas com organizações indígenas sulistas, entre elas a Articulação dos
Povos Indígenas do Sul do Brasil (ARPINSUL), com sede em Curitiba (PR), vinculada a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) instância de aglutinação e referência
nacional, criada pelo Acampamento Terra Livre (ATL) de 2005, evento este avaliado como
7. Facebook é um site de redes sociais, fundado em 2004, e atualmente o mais popular do mundo.
Em 2013 registrava 65 milhões de usuários no Brasil cf. http://www.statista.com/statistics/244936/
number-of-facebook-users-in-brazil
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processo fundador que serviu para renovar tradições e dar continuidade ao Movimento
Indígena (Santos Bicalho, 2011).
Entretanto, além desse critério, também consideramos outros elementos. Nesse caso,
se encontram os perfis das “lideranças indígenas”, os quais ampliam a rede social étnica,
através do estabelecimento de relações entre diferentes etnias, as quais dependendo da
sua expressão e aglutinação política apresentam outras configurações do que se tem
entendido por organizações indígenas, tais como os conselhos e comissões que realizam
encontros nacionais e estaduais de deliberação coletiva.
Importante apontar que a navegação pela rede social étnica, assim denominada como
forma de pensar uma participação peculiar nas redes sociais digitais, permitiu observar
a amplitude de grupos virtuais, isto é, criados a partir das próprias ferramentas da rede
social, os quais nem sempre correspondem à estruturação de uma organização indígena.
Inconstantes ou estáveis, essas aglutinações expressam campanhas ou questões ligadas
aos territórios, à educação, à literatura, mas também se referem à política partidária ou
ainda mensagens de cunho religioso evangélico.
Desse modo, o mapeamento de perfis indígenas é realizado a partir de pistas
oferecidas pela rede de relações, tornadas públicas pelos internautas, no âmbito dos
seus vínculos com as organizações, formais ou informais, mas também daquelas que
acontecem fora desse espectro, através de alguns atores com maior visibilidade, ou
por terem atuado na coordenação de organizações, ou por serem reconhecidos como
lideranças.
Embora as organizações possam ser compreendidas como uma das principais
construtoras de expressões coletivas indígenas, especialmente no que diz respeito ao
contexto de mobilizações, também se considerou as entidades indigenistas; entretanto
deu-se prioridade aos perfis pessoais caracterizados pela identificação étnica apresentada
no nome (utilizando ou não o referencial em português) e em informações sobre a
procedência ou residência. Dessa forma, sem descurar os perfis das organizações, nas
suas diversas modalidades, focalizamos o olhar para os perfis, podendo ser ou não
caracterizadas como lideranças, e que, ao construírem e se construírem como expressões
coletivas, remetem às múltiplas configurações do Movimento Indígena.
No conjunto de mediações que temos identificado através dos perfis e suas expressões
coletivas considera-se relevante a faixa etária e a formação acadêmica, levando em
conta ainda a presença de estudantes universitárias ou profissionais com diferentes
níveis de formação acadêmica. As posições e atribuições dos perfis femininos são, desse
modo, importantes para pensar a configuração de vozes empoderadas das mulheres,
relacionado a outros lugares e esferas de organizações internacionais. Desse modo, o
gênero também comparece como mediação relevante para pensar as configurações
dos relatos e imagens que circulam na rede social étnica como manifestação das vozes
indígenas, em sua dimensão informativa e gestual.
A memória étnica, contudo, é uma das principais mediações a ser considerada nesse
espaço mediado pelas tecnologias de comunicação, apropriadas pelos internautas em
processos que demarcam sinais de diferentes temporalidades presentes nas práticas
dos atores para produzir informações alternativas àquelas das mídias hegemônicas, ou
àquela que é apagada nos domínios espaços da esfera pública.
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Ainda é possível identificar essa mediação ao se observar como o conhecimento
mobilizado pelo uso das tradições, seja na reprodução dos relatos míticos ou na defesa
do patrimônio cultural imaterial, também comparecem nas construções das expressões
coletivas indígenas. Nesse processo atenta-se para os realces identitários complementados
por imagens que permitem pensar as redes sociais como um espaço, entre outros, para
veicular, de forma autônoma, valores sociais e étnicos de grupos ativos.
A memória étnica, como mediação, também transfigura os relatos que constroem os
chamamentos à reflexão e a auto-reflexão dos atores que atuam com maior visibilidade
e com reconhecimento entre os grupos ou as organizações. É o que se observa em
mensagens que abordam a conjuntura das lutas indígenas e ao mesmo tempo reforçam
o a herança étnica, expressada como um gesto do sentimento indígena em um contexto
de denúncias e mobilizações desencadeadas no Brasil nos últimos anos.
Na atuação dos perfis como construtores das expressões coletivas, o trabalho de
organização da memória étnica é dinamizada pela história, por meio de compartilhamento
de filmes que abordam as retomadas de terras indígenas e servem como base para situar
processos que dão origem aos movimentos indígenas. Essa modalidade de uso da rede
social étnica é significativa para observar e refletir sobre a ampliação dos lugares de
memórias, a mobilização dos marcos de memória e a memória compartilhada, além
da socialização de arquivos relevantes, como relatórios e vídeos que documentam as
atrocidades e os massacres sofridos pelos indígenas durante a ditadura militar no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até aqui procuramos refletir sobre o uso da Internet por internautas indígenas,
tendo como base observações da rede social étnica e os perfis construtores de expressões
coletivas indígenas. Para essa reflexão julgamos importante resgatar alguns marcos
históricos sobre o Movimento Indígena, abordados em pesquisas que situam suas
múltiplas configurações contemporâneas. Também abordamos aspectos de pesquisa
que sugerem uma noção de imagem indígena como autorepresentação dos grupos
marginalizados pelas mídias hegemônicas de massa ao longo do século XX até nossos
dias. A intenção foi refletir esses processos históricos no âmbito das mudanças provocadas
pela globalização em suas configurações recentes, entre as quais aquelas que situam a
expansão das tecnologias de comunicação e a produção simbólica das práticas culturais,
em um vasto conjunto global, mas ainda em grande parte diversificado.
Nesse contexto, situamos as redes sociais étnicas, com parte dessa configuração societária, tomando os perfis como objeto empírico e as expressões coletivas como espécie de
construto para compreender as vozes indígenas em uma multiplicidade de mediações que
estruturam sentidos aos conteúdos publicizados. Nesse trajeto, não se descurou que a sua
atuação também implica uma linguagem oriunda de valores próprios das redes sociais,
a circulação de discursos com amplos significados públicos, bem como espaço para trocas afetivas. Atentamos, entretanto, para uma variedade de conteúdos (texto, som, vídeo,
imagens) que sugerem a possibilidade de refletir configurações liminares de uma esfera
pública, fortalecida pelos atores que atuam na rede social étnica, buscando a propagação
de demandas, direitos e valores sociais étnicos, nas confrontações históricas com o estado
e com os domínios da esfera pública e nos momentos de fortalecimento da memória étnica.
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Assim, considera-se o espaço público midiatizado como uma ambiência comunicacional heterogênea, ambígua e atravessada por relações de poder que dificultam o acesso,
estruturam domínios e esmaecem as características da própria tecnologia. Entretanto,
pensamos que o estudo dos perfis indígenas nas redes sociais étnicas pode contribuir
para o estudo sistemático dos processos comunicacionais que dão origem e fortalecem
a visibilidade social indígena na sua perspectiva cidadã, como também no âmbito das
ambiguidades da esfera pública midiatizada e ampliada pelos usos da Internet em suas
múltiplas modalidades.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
1010
Notas sobre expressões coletivas ameríndias em redes sociais da internet
Carmem Rejane Antunes Pereira
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=pt&nrm=iso
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme
do Viaduto de Madureira como um disseminador das
contribuições do baile em termos de cidadania
Entertainment citizen: the Baile Charme do
Viaduto de Madureira Facebook as a disseminator
of contributions in terms of citizenship
Cyn t h ia M aci el D ua rt e 1
Resumo: este artigo é apresenta um estudo de caso feito no Facebook do Baile
Charme do Viaduto de Madureira que evidenciem contribuições sociais do
ambiente. Trata-se de um estudo inicial que é parte de pesquisa desenvolvida
no curso de Doutorado da PUC Rio.
Palavras-chave: Facebook, black music, cidadania, rede social
Abstract: this paper presents a case study on Baile Charme do Viaduto de Madureira Facebook evidencing social contributions of the environment. This is an initial
study that is part of research carried out in the course of Doctorate of PUC Rio.
Keywords: Facebook, black music, citizenship, social network
INTRODUÇÃO
A
S REDES eletrônicas têm ocupado cada vez mais espaço na sociedade e na vida
dos indivíduos. Conforme afirma Castells (2005, p. 18), “as redes de comunicação digital são a coluna vertebral da sociedade em rede”. As redes digitais
oferecem ao cidadão, em termos técnicos, uma possibilidade maior de participação
social e exercício da cidadania, assim como têm feito eventos de música realizados em
espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro, segundo Herschmann e Fernandes (p.
2 e 3, 2014a). Esses autores afirmam que eventos organizados em espaços públicos da
cidade podem estar contribuindo com a constituição de encontros em torno da música
que impulsionam uma série de outras atividades ligadas a aspectos culturais, sociais
e econômicos, fazendo com que mais atores tenham papel importante na cidade. E as
tecnologias digitais podem representar um aspecto importante dessa atuação, pois têm,
dentre outras características, a capacidade de dar voz a um número maior de pessoas e
potencializar o alcance dessas informações, não as restringindo aos frequentadores dos
eventos e assim viabilizando o envolvimento de um número maior de atores sociais.
Nesse contexto, o evento escolhido é o Baile Charme do Viaduto de Madureira. Conhecido não apenas pela música, mas pela preocupação em contribuir com a
sociedade, por meio, dentre outras ações, de oficinas e palestras promovidas por seus
1. Graduada em Relações Públicas e Jornalismo e mestre em Comunicação Social pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – Uerj, especialista em Mídia, tecnologia e educação e Doutoranda em Comunicação
Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
1012
Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania
Cynthia Maciel Duarte
organizadores e apoiadores, o Baile é um dos mais antigos eventos de música com atividade ininterrupta realizados em espaço público da cidade do Rio de Janeiro. Criado
há mais de 20 anos, a partir dos anos 2000 tornou-se um point da black music carioca.
Todo sábado à noite, o evento transforma uma área conhecida como local de passagem
e comércio - embaixo de um viaduto, tradicionalmente identificado por abrigar camelôs
- em um espaço de lazer, troca de afetos, valorização da dança e da moda black e geração
de renda pela atividade cultural.
O Baile Charme do Viaduto de Madureira2 foi criado em 1993, então denominado
Charme na Rua, idealizado pelo produtor de eventos Cesar Ataíde e realizado com a
ajuda de camelôs da região. Hoje, Dutão3, como o Baile também é conhecido entre os
frequentadores, reúne cerca de duas mil pessoas na noite de sábado para domingo sob
o viaduto Negrão de Lima, entre as duas rampas de carros que dão acesso ao Viaduto
(MAPA DE CULTURA, 2014a). Mas, seu alcance e o das atividades a ele relacionadas,
pode estar sendo muito maior, graças à internet.
Desde 2012, o Baile conta com a página no Facebook, objeto deste estudo, acessada
pelo endereço www.facebook.com/viadutomadureira. Atualmente, tem mais de 53
mil fãs. Em conformidade com uma das características do Baile, além de auxiliar na
divulgação de suas atividades, a página também abriga informações de temática social,
envolvendo política, identidade e campanhas beneficentes.
Para estudar a página no Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira está
sendo feito um esforço de seguir as pistas dos próprios atores (GEERTZ, 2012; LATOUR,
2012). Segundo Wasserman e Faust (1994) e Degenne e Forse (1999), rede social é um
conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos, que são os nós da
rede) e suas conexões, ou seja, suas interações. Logo, rede é uma metáfora para se referir
à conexão de um grupo social. Estudar redes sociais na internet é tentar compreender
como se estabelecem as estruturas sociais e suas especificidades quando a comunicação
se dá através do computador.
Seguindo essa lógica, é importante observar que os sites de redes sociais, em si, não
são redes sociais. São apenas sistemas. São os atores sociais que usam as redes que de
fato a compõem. Portanto, o estudo das redes sociais deve considerar em especial os
atores, não exclusivamente o ambiente que serve de base. São os atores que estabelecem
conexões sociais, aumentadas significativamente em redes sociais, que, segundo Recuero
“amplificam a expressão da rede social e a conectividade dos grupos sociais” (2009, p. 108).
Raquel Recuero afirma que não se pode simplesmente esperar as mesmas interações
da “vida real” no “mundo virtual” (RECUERO, 2005, Introdução). Esse aspecto, no
entanto, não é sinônimo de isolamento. Wellman, Boase e Chen (RECUERO, 2009, p. 43),
em estudo sobre vizinhos, detectaram que a internet contribuiu com o relacionamento
2. Tendo inspirado um baile charme na novela Avenida Brasil, exibida na Rede Globo em 2012, no ano
seguinte, o Baile Charme foi cadastrado como bem cultural e registrado como Patrimônio Cultural Carioca
de natureza imaterial pelo Decreto nº 36.803, de 27 de fevereiro de 2013. Em 2000, a área em que o evento é
realizado já tinha recebido a denominação Espaço Cultural Hip Hop Charme pela Lei nº 3087, de 8 de agosto
de 2000. Atualmente, está em tramitação na Câmara Municipal do Rio de Janeiro o Projeto de Lei Nº 877/2014,
que inclui o Dia do Charme no calendário oficial da cidade do Rio de Janeiro, a ser celebrado em 12 de agosto.
3. Na verdade, Dutão é o apelido do viaduto sob o qual o Baile é realizado, mas o termo muitas vezes é
empregado como sinônimo do Baile.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
1013
Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania
Cynthia Maciel Duarte
entre as pessoas, aumentando e facilitando as relações entre as que moravam mais
distante, aumentando o conhecimento entre os vizinhos e a frequência de contato entre
eles. Ou seja, os laços virtuais eram mantidos também no espaço off-line. Welman,
segundo Recuero (2009, p. 44), chama a atenção para o fato de que muitas redes sociais
na internet funcionam conectando vizinhos. Mas é importante ressaltar também o fato
de que as relações pela internet mostraram às pessoas que é possível manter laços fortes
mesmo a distância.
Este estudo também considera os conceitos de laços fortes e fracos, de Mardens &
Campbell e Granovetter. Esses conceitos podem ajudar a explicar o que faz os internautas
curtirem, compartilharem, comentarem na página do Baile Charme do Viaduto de
Madureira no Facebook e se envolverem em suas atividades. Uma das possíveis
respostas é o fato das interações na web envolverem vínculos relacionais. É possível
que o ciberespaço possibilite aos sujeitos o estabelecimento ou a retomada de laços
fortes, determinados principalmente pela proximidade afetiva e intensidade emocional
que nutrem relações de amizade entre pessoas que pertencem ao mesmo círculo social
(MARDENS & CAMPBELL, 1984).
Mas, a web é feita também, e principalmente, de uma rede de laços fracos (GRANOVETTER, 1973; 1984). Trata-se de vínculos relacionais menos densos, mais superficiais,
porosos e assimétricos, mas indispensáveis para as oportunidades dos indivíduos e
para a sua integração na comunidade porque permitem que o fluxo de ideias, inovações,
influências e informações socialmente distantes cheguem a pessoas que, de outro modo,
estariam encapsuladas em seus grupos primários, nos nós da rede. Tal característica
de ponte colabora com a integração dos indivíduos e dos pequenos grupos à estrutura
social maior. Kaufman (2012, p. 216) também coloca que a força dos laços fracos no
ambiente do ciberespaço consiste na sua potência para criar capital social, porque amplia
as possibilidades de conexão e a interação entre pessoas e a consequente circulação de
conhecimentos, sejam eles diversificados ou especializados, “gerando um ativo intangível
valioso na sociedade e em suas organizações”.
Muniz Sodré (2001) também traz importantes contribuições. O autor tem se
preocupado em desenvolver uma teoria da comunicação que explique “como se dá o
vínculo, a atração social, como é que as pessoas se mantêm unidas, juntas socialmente”.
Para o autor, “vinculação social” é o mesmo que “compromisso social”, “laço atrativo”
que mantém os sujeitos unidos na vida em sociedade. Sodré defende que a comunicação
envolve afeto, o sensível, uma motivação que nos leva a organizar as informações que
fluem no seio da comunidade. “Nós nos comunicamos por disposição afetiva. É isso que
nos move” (SODRÉ, 2013). Para ele, é o afeto, essa capacidade de fazer os seres entrarem
efetivamente em contato, obrigando-os à relação, que faz do vínculo a força motriz da
sociabilidade, agenciador da coexistência, do entendimento de comunidade (com toda
a sua violência, tensão, suas lutas) e comunicação (com todo o seu poder dialógico, com
sua capacidade aproximativa e diferenciadora) (PAIVA, 2013).
Outros subsídios importantes vêm de Raquel Recuero (2009), que coloca que a
internet e as redes sociais têm modificado profundamente as formas de organização,
identidade, conversação e mobilização social. A autora defende que a internet não
proporciona apenas contato, mas conexão entre as pessoas. Casos de disseminação de
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Cynthia Maciel Duarte
informações sobre grandes eventos, catástrofes ou campanhas eleitorais são exemplos
de mobilizações feitas pela web. A autora, no entanto, salienta que o fenômeno das
redes não é causado pela internet, tendo sido assunto no campo científico durante todo
o século XX. A diferença neste momento não é a rede, e sim a rede no mundo digital,
mais especificamente, as redes sociais digitais.
Nesse contexto, justifica-se a opção por considerar não apenas as postagens feitas
pelos administradores da página, mas também os comentários dos fãs. Estudar os comentários auxilia na compreensão acerca da própria caracterização do ambiente como rede
social, identificando se, diferente de outras páginas de organizações (DUARTE, 2011),
este ambiente digital pode de fato promover a interação entre os atores, contribuindo
com relações de pertença e reconhecimento. Muitos comentários são responsáveis pela
inclusão de determinada postagem em uma categoria, devido às questões que levanta e
que não estão necessariamente relacionadas à publicação inicial dos administradores da
página. A consideração dos comentários está relacionada ainda ao esforço de estudar a
página no Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira a partir dos próprios atores.
ESTUDO DE CASO
Figura 1. Posts analisados.
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Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania
Cynthia Maciel Duarte
Tabela 1 - Análise do Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira - 7 de janeiro de 2011 a 7 de janeiro de 2012
Ao todo, foram analisadas 131 Quantidade
postagens e seus comentários, feitas no período de
Identificação dos Posts
Detalhamento da categoria
de posts
1, 5, 6,da
7, 9, 10,
11, 12, 14,
um ano, desde a criação
página,
em 7 de janeiro de 2011, até 7 de janeiro de 2012.
15, 16, 21, 22, 23, 25, 29,
35, 37, 40, 45, 49, 50, 53,
As postagens foram
analisadas tanto em função dos assuntos dos posts feitos pelos
54, 60, 66, 67, 68, 69, 72,
75, 80, 81, 87, 98, 99, 100,
administradores da página
quanto
em relação
aosagenda,
comentários
nesses
posts
pelos
Fotos dos bailes,
enquetes sobre artistasfeitos
para se apresentarem
no baile,
atividades
101, 103, 105,
110, 113,
oferecidas nos bailes (como telão para assistir a luta do Anderson Silva), esclarecimentos sobre
115, 117, 121, 124, 128,
que não fazem parte
Charme do
de Madureira
129, 130
Informações
o baile foram reunidos
49 bailes
fãs.
Ossobre
posts
em categorias,
descritas
nado Baile
tabela
1 Viaduto
a seguir.
Os comentários
28, 30, 44, 46, 51, 52, 64,
Eventos musicais ou não, com a marca do Viaduto ou não, anunciados na página, mas que são
91, 92, 100, 109, 111, 119,
realizados fora do Viaduto, como shows no Parque Madureira, peça de teatro no Parque das Ruínas,
relacionados
com os assuntos
tratados 17neste
trabalho são apresentados na tabela 2. As
122, 125, 126, 127
DJs do Viaduto tocando na Ladeira dos Tabajaras, copa graffiti na Cinelândia
Eventos em outros espaços
55, 56, 57, 58, 59, 61, 63,
cores idênticas nas duas
73, 84,tabelas
95, 97, 106, 107,evidenciam os assuntos em comum.
Categoria da postagem do administrador
Vídeos de músicas que tocam no baile
118
14
2, 3, 8, 17, 18, 19, 20, 26,
32, 38, 65, 78, 79, 93, 94,
123
Relação com a imprensa
Informações sobre artistas e ritmos musicais 47, 48, 62, 74, 77, 82, 86,
relacionados à black music
88, 96, 102
Saudações aos internautas e brincadeiras
90, 112, 114, 116
16
10
4
Informações sobre colaboradores e parceiros 76, 89, 104, 120
Comentários sobre a própria página no
24, 33, 41, 42
Facebook
4
Aparição de DJs e dançarinos do baile em programas de TV, relação do baile com a novela Avenida
Brasil, da Rede Globo, gravações no Viaduto, cantores de black music no The Voice, entrevista sobre
a vizibilidade do baile com a novela Avenida Brasil, matéria sobre o estilo dos frequentadores do
baile em blog. Em função da novela Avenida Brasil, o Baile foi visto por alguns como deturpado pela
mídia. Outros exaltam a divulgação. Fãs também reivindicam mais prestígio por parte da mídia,
reclamando, por exemplo, sobre pouco tempo da matéria a respeito do Baile no Fantástico,
inclusive enfatizando que isso é comum quando se trata do baile charme, diferente do funk. Também
há reclamações sobre suposto descaso do apresentador Gugu quando um bailarino do Baile que
estava se apresentando no programa teve ataque epilético no ar. Há a solicitação dos
administradores da página de que informem sobre pessoas que passaram a frequentar o Baile
depois da novela Avenida Brasil.
Morte de Michael Clarke Duncan, aniversário de Beyoncé, perfil dos Racionais MCs, a origem do hiphop, foto de Michael e Janet Jackson, foto de capa de disco de black music
Mensagem de bom dia, fotos apontando semelhanças entre rostos de cantores e cachorros,
agradecimento aos frequentadores do baile, , mensagem de aniversário para o DJ Michel, meme
feito no Baile
Divulgação da página da fotógrafa do Baile no Facebook, solicitação de colaboradores para os
canais do Baile na internet, divulgação da grife DNG (Dnegro)
Conquistas e superações
34, 71, 83, 108, 131
Campanhas de doação
Outros veículos de comunicação do baile,
como internet e rádio
31, 36, 70
4 Informações sobre números de curtidas
Divulgação de notícia informando que negros já são 80% da classe média, divulgação de
documentário sobre os bastidores do filme Cidade de Deus e o que os atores, que eram moradores
de comunidade, fazem atualmente, atleta que conquistou boa colocação nos 100m rasos, post que
5 fala um pouco da história de Keith Sweat.
Desconto de 50% no ingresso do baile em troca da doação de 1 agasalho, doação para o programa
de TV Mundo Negro, patrocinado por doações coletivas, divulgação de financiamento coletivo para
3 produção de filme.
27, 43
2 Divulgação do Canal no YouTube, de matérias do blog.
Informações sobre outros eventos no Viaduto 4, 13
Promoções para fãs da página e de outros
canais
TOTAL
2 Outros eventos realizados no Viaduto que não sejam o Baile Charme.
85
1 Promoções para fãs do Youtube ou do Twitter.
131
Tabela 2 - Comentários
Postagem
Posts 08, 18, 19 e 93
Posts 26, 40, 65
Post 31
Posts 36 e 126
Post 79
Posts 80, 101 e 104
Comentários pertinentes para a análise
Categoria
Quantidade
de posts
Comentários sobre matéria muito curta a respeito do Baile no Fantástico, inclusive enfatizando que isso é Relações com a imprensa
comum quando se trata de baile charme, diferente do funk. Comentário sobre o caso do bailarino que teve
ataque epilético no Gugu. Fãs afirmam, que, se fosse alguém famoso, o apresentador teria dado mais
atenção quando o rapaz passou mal no ar. Em um dos comentários há um posicionamento criticando
aqueles que afirmam que o baile charme está sendo explorado pela mídia. Reclamação de que não tocou
charme na novela Avenida Brasil, apesar de usarem esse nome no programa televisivo. Posicionamento de
fãs e dos administradores da página afirmando que, mesmo não tocando charme, a novela ajudou a
divulgar o Baile e que pessoas que foram conhecer o evento por causa da novela, não identificaram o que
passa na novela com o Baile, mas gostaram mais do Baile do que do que foi mostrado na novela.
4
Em um dos comentários, uma fã afirma que o baile é um lugar em que ela se sente ela mesma. Outro fã
chama o Baile de seu mundo. Há também comentários sobre rixas entre rapers do Rio. Um fã afirma que os
rapers deveriam se unir, não se separar. O administrador da página explica que há incômodo com os
"modinha" e em seguida explica que são aqueles que não viveram em favelas, mas que cantam como se o
tivessem feito. Outro fã coloca a importância do rap para se pensar no que acontece no mundo e ressalta a
diferença do rap feito por quem conhece a favela e do que só ouviu falar.
Os comentários incluem uma mensagem de apoio de uma fã em relação ao post, que divulga uma
campanha de doação de agasalhos no Baile, convidando os frequentadores do Baile a fazerem sua parte em
relação à campanha.
Comentários sobre a afirmação do negro na sociedade. Um fã afirmou que os próprios negros não se
impõem devido a preconceito ou por receio de críticas. Outro incentivou que os negros continuem lutando,
sem desistir. Em um comentário, fã pede que outros fãs ajudem a denunciar uma determinada página do
Facebook sob a acusação de racismo.
Fã afirma que gravadoras consideram não ser comercialmente viável apostar no segmento black music.
Questões de identificação pessoal
3
Campanhas de doação
1
Questões sobre o negro na sociedade
2
Questão econômica sobre black music
1
Relação do Baile com a cidade do Rio de
Janeiro
3
Uma fã comenta sobre a relação do Baile Charme com a cidade: "SOMOS UM RIO". Fã coloca o Baile como
lugar do "povão do Rio" se "sentir feliz". O Baile é descrito por um fã como representante de um Rio de
Janeiro como "100%" suburbano.
Total
14
Foram criadas 13 categorias: Informações sobre o baile, Eventos em outros espaços,
Vídeos de músicas que tocam no Baile, Relação com a imprensa, Informações sobre
artistas e ritmos musicais relacionados à black music, Saudações aos internautas e
brincadeiras, Informações sobre colaboradores e parceiros, Comentários sobre a própria
página no Facebook, Conquistas e superações, Campanhas de doação, Outros veículos
de comunicação do baile, como internet e rádio, Informações sobre outros eventos no
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Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania
Cynthia Maciel Duarte
Viaduto e Promoções para fãs da página e de outros canais. Dessas, interessam para
esse estudo, devido à sua possibilidade de suscitar discussões sobre questões sociais,
as três categorias descritas a seguir.
Relação com a imprensa
A categoria é formada por 16 posts que incluem assuntos como a aparição de DJs e
dançarinos do baile em programas de TV; relação do baile com a novela Avenida Brasil,
da Rede Globo; gravações no Viaduto; cantores de black music no programa The Voice;
entrevista sobre a visibilidade do baile com a novela Avenida Brasil; matéria sobre o
estilo dos frequentadores do baile em blog.
Conquistas e superações
Formada por cinco posts. Nessa categoria consta, por exemplo, um post sobre
a divulgação de uma notícia informando que os negros já são 80% da classe média.
Também consta a divulgação de um documentário sobre os bastidores do filme Cidade
de Deus e o que os atores, que eram moradores de comunidade, fazem atualmente, assim
como uma atleta que conquistou boa colocação nos 100m rasos e um post que conta um
pouco da história de superação de Keith Sweat.
Campanhas de doação
Os três posts dão conta de desconto de 50% no ingresso do baile em troca da doação
de um agasalho, doação para o programa de TV Mundo Negro, patrocinado por doações
coletivas, divulgação de financiamento coletivo para produção de filme.
As respostas dos administradores da página aos comentários dos fãs também
precisam ser consideradas, pois mostram que o ambiente de fato tem uma das principais
características de rede social: a interação entre os atores. Dos 131 posts analisados, 22
traziam em seus comentários posts dos administradores da página com respostas aos
fãs sobre nomes de músicas postadas na página, valor do ingresso, esclarecimentos
sobre dançarinos do Baile em eventos externos, posicionamento sobre os cantores da
atualidade, dentre outros assuntos.
Em relação aos comentários, esses foram reunidos em seis categorias, descritas
a seguir.
Relações com a imprensa
A categoria envolveu comentários em quatro posts. Há comentários com reclamações
sobre a duração da matéria a respeito do Baile no Fantástico, considerada muito curta,
inclusive enfatizando que esse procedimento é comum quando se trata de baile charme,
diferente do funk. Outro assunto é o caso do bailarino que teve um ataque epilético no
programa do Gugu, na Record. Fãs afirmam, que, se fosse alguém famoso, o apresentador
teria dado mais atenção quando o rapaz passou mal no ar.
Em um dos comentários há um posicionamento criticando aqueles que afirmam que o
Baile Charme está sendo explorado pela mídia. Também há reclamação sobre não ter tocado
charme na novela Avenida Brasil, apesar de usarem esse nome no programa televisivo.
Nesse ponto, há ainda o posicionamento de fãs e dos administradores da página afirmando
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Entretenimento cidadão: o Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira como um disseminador das contribuições do baile em termos de cidadania
Cynthia Maciel Duarte
que, mesmo não tocando charme, a novela ajudou a divulgar o Baile e que pessoas que
foram conhecer o evento por causa da novela de fato não identificaram o que passa na
novela com o Baile, mas gostaram mais do Baile do que do que foi mostrado na ficção.
Questões de identificação pessoal
Os comentários foram feitos em três posts. Em um dos comentários, uma fã afirma
que o Baile é um lugar em que ela se sente ela mesma. Outro fã chama o Baile de seu
mundo. Há também comentários sobre rixas entre rappers do Rio, pois um fã afirma
que os rappers deveriam se unir, não se separar. Esse comentário suscitou um posicionamento do administrador da página, que destaca a existência de um incômodo com os
“modinha” e em seguida explica que são aqueles que não viveram em favelas, mas que
cantam como se lá vivessem. Sobre isso, outro fã coloca a importância do rap para se
pensar no que acontece no mundo e ressalta a diferença do rap feito por quem conhece
a favela e do que só ouviu falar.
Campanha de doação
Em um post sobre uma campanha de doação de agasalho no Baile, uma fã escreve
uma mensagem de apoio, convidando os frequentadores do Baile a fazerem sua parte
em relação à campanha.
Questões sobre o negro na sociedade
Comentários em dois posts suscitaram a necessidade de afirmação do negro na sociedade. Um fã expressou que os próprios negros não se impõem devido a preconceito ou
por receio de críticas. Outro incentivou que os negros continuem lutando, sem desistir.
Em um comentário, um fã pede que outros fãs ajudem a denunciar uma determinada
página do Facebook sob a acusação de racismo.
Questão econômica sobre black music
Comentando um post, uma fã afirma que as gravadoras consideram não ser
comercialmente viável apostar no segmento black music.
Relação do Baile com a cidade do Rio de Janeiro
O assunto foi colocado em três posts. Uma fã comenta, por exemplo, sobre a relação
do Baile Charme com a cidade do Rio de Janeiro: “SOMOS UM RIO”. Outra fã coloca
o Baile como lugar do “povão do Rio” se “sentir feliz”. O Baile é descrito ainda como
representante de um Rio de Janeiro que é “100%” suburbano.
CONSIDERAÇÕES
O Brasil vive um momento de importantes transformações. O maior uso do direito
constitucional à manifestação evidencia um novo estágio da democracia. O governo se
vangloria da mudança no perfil socioeconômico e da emergência de uma nova classe
média, conforme destacado no site da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE, 2012).
No entanto, o acesso a ambientes digitais ainda é um desafio. No Brasil, iniciativas como
o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), o Programa Cidades Digitais, os Programas
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Cynthia Maciel Duarte
de Telecentros, o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (Proinfo) e o Programa
Banda Larga nas Escolas (PBLE) têm ajudado na inclusão digital. Mesmo assim, menos da
metade da população brasileira, 49,8%, está conectada à rede mundial de computadores
(DUARTE, 2014, p. 107).
Além do acesso, outro desafio é a qualidade da conexão. A possibilidade de ouvir
música e visualizar vídeos, por exemplo, está relacionada à velocidade de transmissão
de dados. Segundo o relatório The state of the internet (O estado da internet), da empresa
de tecnologia Akamai (2013, p. 3), apesar de aumentar constantemente, a velocidade
média de conexão no Brasil é de 2,4 Mbps, abaixo da média global, que está em 3.3 Mbps.
Apenas 15% das conexões brasileiras são feitas por banda larga e 0,7% por banda larga
de alta velocidade (DUARTE, 2014, p. 108).
Apesar dos desafios, cada vez mais brasileiros têm usado a rede mundial de
computadores. A maior parte dos usuários de internet do Brasil tem entre 16 e 24 anos
e usa a internet para se comunicar, especialmente por meio de redes sociais, como
Facebook e LinkedIn, segundo a pesquisa TIC Domicílios e Usuários 2012, do Centro
de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (DUARTE, 2014, p.
108). O Brasil ocupa a terceira posição entre os maiores usuários do Facebook, atrás de
Estados Unidos e Índia, segundo o site de métricas digitais Social Bakers (DUARTE,
2014, p. 109). Em outubro de 2014, a rede social foi a segunda página mais acessada no
país, atrás apenas do buscador Google, de acordo com a empresa de informações sobre
a web Alexa, que reúne dados do último mês (ALEXA, 2014).
Mas, apesar das atividades de entretenimento serem as mais desempenhadas,
também é possível encontrar ações de ativismo via web ou incentivadas no ambiente
digital e desenvolvidas fora dele. Segundo Clay Shirky (2010), as novas tecnologias
viabilizam a criação em conjunto, a baixo custo e de forma extremamente fácil. Segundo
Shirky, é possível encontrar cidadãos digitais hoje que se caracterizam por proatividade,
protagonismo e busca de autonomia. São indivíduos motivados não por retorno
financeiro, mas pela contribuição com algo que seja útil a outras pessoas. Grupos com
afinidades que se reúnem em tarefas coletivas.
O engajamento social também parece ser um aspecto importante da página no
Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira. A análise das postagens evidencia
que assuntos envolvendo a música black, o negro na sociedade e as classes sociais
economicamente menos favorecidas são suscitados pelos próprios administradores
da página, fazendo-a um espaço privilegiado para a colocação de questões que nem
sempre ganham evidência, especialmente na dita grande imprensa. Mas, além disso,
é possível identificar fãs que veem na página um ambiente aberto ao tratamento de
assuntos que consideram dignas de pontuação, como a identificação que a música feita
por conhecedores de favelas suscita em contraste com aqueles que não conhecem essa
realidade, questões econômicas envolvendo a indústria fonográfica, como a percepção
de que a black music não seria privilegiada pelas gravadoras, e a relação do baile charme
com subúrbios e com o Rio de Janeiro. Na página, os fãs têm a liberdade de colocar esses
assuntos e de fazer com que sejam vistos por um grande número de pessoas. A análise
da página prosseguirá, considerando os demais posts do ambiente. Mas esse estudo
inicial já aponta que o espaço compreende muito mais do que informações sobre o Baile.
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Cynthia Maciel Duarte
Conforme colocado inicialmente, este trabalho evidencia uma análise inicial da
página no Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira, parte de uma pesquisa
mais ampla em que se pretende seguir a proposta de Martín-Barbero em Ofício de
Cartógrafo (2004, p. 12), ou seja, rejeitar os “mapas sínteses” e construir um mapa cognitivo
do tipo “arquipélago”, com “ilhas múltiplas e diversas, que se interconectam”. A proposta
é fazer um “mapa noturno”, a partir das “brechas” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 18).
Um mapa que ajude a reconhecer a situação considerando as mediações e os sujeitos.
Por meio de pesquisa de campo, com entrevistas em profundidade e observação
participante, a pesquisa contará também com trabalho etnográfico, que terá como
base a teoria ator-rede, de Bruno Latour (2012), e a postura da percepção do outro
como interlocutor, de Geertz (2012). Desse modo, a investigação procurará identificar
as diversas redes envolvidas, tentando perceber os sentidos imanentes dos lugares,
seguindo as pistas dadas pelos próprios atores (LATOUR, 2012) para pensar “criativa e
imaginativamente com eles” (GEERTZ, 2012, p. 17).
Objetiva-se identificar as diversas associações realizadas em torno da página do
Facebook do Baile Charme do Viaduto de Madureira tecendo suas redes, sem a pretensão
de esgotar todas as instâncias envolvidas, mas empenhando-se em compreender ao
máximo sua composição a partir dos próprios atores. Tendo consciência da limitação
da atividade de pesquisa, pretende-se estudar na escala da formiga, seguindo os atores,
rastreando e descrevendo associações.
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção
de sentidos na Cidade Imperial
Roda Viva: urban art, conflict and sense
production in the Imperial City
Ja r l en e Rodr igu es R eis 1
D en i se da Co sta O l i v ei r a Siqu ei r a 2
Frederico Ferreira
de
Oliveira3
Resumo: A Roda Viva do Centro de Cultura é uma manifestação ligada ao
hip hop que ocorre em Petrópolis, organizada por jovens com apoio da
prefeitura. O evento congrega performances de artistas de rua como músicos,
grafiteiros, poetas e malabaristas. Neste artigo analisamos o papel da Roda como
manifestação de arte urbana, investigando os elementos que concorrem para
sua construção de forma coletiva, mas também os conflitos decorrentes de sua
realização. Leituras de Becker, Simmel, Maffesoli e Le Breton formam o quadro
teórico sobre juventude e conflitos nos espaços urbanos. Referências do campo da
comunicação sobre movimentos sociais, mídias sociais e cidadania completam
o referencial. Foi realizada observação participante da Roda em 2014; análise da
página do evento em uma rede social e entrevistas com organizadores.
Palavras-Chave: Juventude. Produção de sentidos. Roda Viva. Petrópolis. Conflito.
Abstract: The “Roda Viva” from the Cultural Center is a hip hop manifestation
that happens in Petrópolis, organized by young people and supported by
the city hall. The event brings together performances of street artists such as
musicians, graffiti artists, poets and jugglers. In this article we analyze the role
that Roda Viva plays as an urban art manifestation, investigating the factors
which contribute to its construction in a collective way, but also the conflicts
related to its realization. The reading of Becker, Simmel, Maffesoli and Le Breton
are the theoretical framework on the youth and the conflicts in urban areas.
References from the communication field, on social movements, social media
and on citizenship complete the picture. A participant observation of the Roda
was conducted in 2014; the event page in a social network was analysed as well
as the interviews with the organizers were made.
Keywords: Youth. Sense production. Roda Viva. Petrópolis. Conflict.
1. Professora do Curso Superior de Tecnologia em Gestão de Turismo do CEFET/RJ – UnED Petrópolis.
Mestre em Administração pela UFMG. E-mail: [email protected]
2. Professora Associada do Programa de pós-graduação em comunicação da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Doutora em ciências da comunicação pela ECA/USP, desenvolveu pós-doc na Université
Paris-Descartes. E-mail: [email protected]
3. Professor do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) - UnED
Petrópolis. Mestre em Administração e em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local. E-mail:
[email protected]
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
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INTRODUÇÃO
ANIFESTAÇÕES CULTURAIS, palcos, cidadania e comunicação se cruzam nas
M
grandes metrópoles contemporâneas. Transgredindo ou reforçando valores,
o palco se mostra espaço pleno de possibilidades. As manifestações artísticas
e culturais podem se configurar como instigante espaço para se observar dissidências,
pensamento crítico, inovador, político, mesmo se em certos períodos a história do espetáculo mostre que teatro, dança e música foram empregados pelo Estado ou por outras
instituições sociais como veículos para mensagens e propaganda.
Considerando a política elemento presente na vida cotidiana e as manifestações
artísticas e culturais parte desse cotidiano, a dança, a música, o teatro também podem
ser formas de manifestação política, de construção de cidadania e meios de comunicação.
Pensadores e artistas como Boal buscaram “conquistar identidade e cidadania” através do
teatro (Boal, 2003, p.156), contudo, apenas se consideraram cidadãos ao serem “[...] capazes
de intervir na sociedade e transformá-la naquela que desejamos” (Boal, 2003, p. 156).
Neste trabalho buscamos estudar a Roda Viva do Centro de Cultura de Petrópolis
(CDC), uma manifestação cultural urbana organizada por jovens ligados ao movimento
hip hop, com apoio da Prefeitura Municipal. O evento, que vem acontecendo desde 2014
na cidade serrana do estado do Rio de Janeiro, congrega performances de artistas de
rua como músicos, grafiteiros, poetas e malabaristas no gramado da Praça Visconde de
Mauá, no Centro Histórico do município.
Nosso objetivo é analisar o papel da Roda Viva como manifestação cultural urbana,
investigando os elementos que concorrem para sua construção coletiva, bem como os
conflitos decorrentes de sua realização. Leituras de Becker (1977), Simmel (1983; 2005),
Maffesoli (2000) e Le Breton (2002) formam o quadro teórico sobre juventude e conflitos
nos espaços urbanos. Referências do campo da comunicação sobre movimentos sociais,
mídias sociais e cidadania completam o referencial (Peruzzo, 2013; Cogo, 2004).
Em termos metodológicos, após a revisão de literatura, foi realizada observação
de edições da Roda Viva durante o segundo semestre de 2014 e posteriormente
acompanhamento e análise da página do evento em duas redes sociais. Finalmente,
realizaram-se duas entrevistas com organizadores do evento. Esse procedimento teve
como intento levar a conhecer o movimento, entender seus conflitos e a produção de
sentidos sobre a juventude construída a partir da realização da Roda.
A pesquisa possibilitou observar que a Roda Viva representa para seus participantes uma plataforma coletiva de manifestação de anseios artísticos e sociais. Ao mesmo
tempo, pode-se constatar a constituição de uma relação conflituosa entre os participantes
da manifestação e os moradores e frequentadores da região nobre do Centro Histórico
da “Cidade Imperial”.
É importante destacar que Petrópolis é reconhecida por sua tradição artística
associada principalmente a corais locais (Canarinhos de Petrópolis e Meninas Cantoras
de Petrópolis), grupos folclóricos de dança alemã e eventos como o Festival de Inverno
e o Petrópolis Jazz & Blues Festival. A Roda Viva do CDC surge como iniciativa de
diversificação e de criação de atrações para públicos mais jovens em espaços públicos
da cidade. Essa criação não vem sem conflitos, porém constata-se o potencial da Roda
Viva como elemento catalisador de divergências capaz de gerar a busca por construção
de cidadania por parte de jovens.
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
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JUVENTUDE E MOVIMENTOS SOCIAIS
No contexto contemporâneo em que se observa o declínio de comportamentos
políticos institucionalizados e burocratizados entre as novas gerações (Castro, 2008), a
expressão da cidadania parece ser cada vez mais pautada em experiências caracterizadas
pelo pertencimento a múltiplas identidades e redes sociais, bem como à associação de
matrizes clássicas e inovadoras de comunicação (Cogo, 2004).
Maffesoli, em seu livro O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades
pós-modernas, já havia escrito que a construção das identidades na pós-modernidade se
dá, em grande parte, fundada por marcas como o estar-junto, o pertencimento a grupos
sociais de laço intenso mesmo que efêmero, e a uma revivescência do reencantamento
do mundo. Nesse sentido, «le quotidien et ses rituels, les émotions et passions collectives,
symbolisées par l’hédonisme de Dionysos, l’importance du corps en spectacle et de la jouissance
contemplative, la reviviscence du nomadisme contemporain, voilà tout ce qui fait cortège au
tribalisme postmoderne» (2000, p. III). Isso a que o sociólogo chama de neotribalismo
pós-moderno é, em grande parte, marcado pelo agrupamento ou comunhão de jovens
em torno de causas ou interesses em comum, no lugar da adesão a comportamentos
políticos institucionalizados.
A observação que Maffesoli construiu a partir da experiência francesa encontra ecos
também na realidade brasileira. Para Telles (2004), a redefinição das relações entre Estado,
economia e sociedade no Brasil gerou a possibilidade de uma nova contratualidade,
sendo deslocadas as práticas autoritárias que agora dão lugar a outras formas de mediar
conflitos e legitimar as demandas sociais. Essas demandas, por sua vez, são manifestas
e configuradas de diversas maneiras, refletindo uma variedade de possibilidades de
organização dos agentes sociais envolvidos nesse contexto (Cogo, 2004).
Nesse processo de reorientação da cidadania, os movimentos sociais populares
se destacam como estruturas de primeira ordem para que ocorram as transformações
sociais, não obstante outros fatores sejam somados para que tais mudanças se efetivem.
Ora atuando junto aos Estados em projetos participativos, ora mobilizando a sociedade
na contestação de projetos que lhes são antagônicos, os movimentos sociais constituem
importantes elementos na organização de significados, a partir da confluência de
identidades que podem ser classificadas como legitimadoras (criadas por atores que
buscam preservar a dominação vigente), identidades de projeto (concebidas por atores
que almejam a construção de uma nova identidade social e a redefinição de sua posição
na sociedade) ou de resistência (proposta por atores que se sentem ameaçados pela
estrutura de dominação) (Peruzzo, 2013).
No âmbito de muitos movimentos sociais encontra-se, a construção de identidades
coletivas que apresentam alto grau de complexidade. Nesse sentido, a juventude ocupa
uma posição delicada, considerando-se ser essa uma fase em que se buscam elementos
de pertencimento e responsabilização, a fim de que o jovem possa se assumir e encontrar
seu papel dentro do contexto social. Nesse “momento de passagem” faz-se necessário
encontrar novas formas de identificação com objetivos coletivos, por um lado, além do
engajamento do jovem em ações e movimentos com os outros, possibilitando novas
dinâmicas sociais (Castro, 2008).
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
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O desinteresse dos jovens pela política tradicional, além de estar associado a mudanças
de valores entre as novas gerações (Castro, 2008), pode ser relacionado ainda ao posicionamento ambíguo do Estado em relação às demandas dessa faixa etária da população. Por
vezes, os jovens são vistos como um problema, uma ameaça à ordem social e, em outras
perspectivas, são considerados como sujeitos sociais que precisam de atenção. Como
resultado dessa ambigüidade, as políticas sociais para a juventude são muitas vezes marcadas por ações dispersas, escassas e sem claro direcionamento (Sposito; Carrano, 2003).
Ciente de sua força transformadora e engajada em processos que possam diminuir
as distâncias sociais, quebrar barreiras, fazer sair do estado de alienação e apatia, a
juventude produz novos espaços sociais. Para Novaes e Vital (2005), esses espaços não
são organizados nos moldes tidos como clássicos ou tradicionais, mas sim em novos
espaços participativos e democráticos nos quais possam exercer seu protagonismo e
a apresentação de suas demandas à sociedade civil, buscando estabelecer agendas de
discussão em prol dos direitos com caminhos para o alcance de sua cidadania.
Importante destacar que consideramos a multiplicidade e toda a gama de diferenças
sociais, econômicas, culturais que o termo juventude carrega. Como Le Breton,
entendemos que “la jeunesse n’est pas une, elle est multiple à l’image de la population adulte”
(2002, p. 50). Nesse sentido, ao estudar as rodas, estamos estudando, na realidade, uma
parcela da juventude.
ARTE COLETIVA, CONFLITO E HIP HOP
O entendimento da produção artística como algo que depende de elos cooperativos
e de estruturas que se constroem coletivamente deve muito ao pensamento de Becker
(1977), que analisa ainda a divisão do trabalho e o estabelecimento das convenções
artísticas no âmbito das ações coletivas. Para o autor, o trabalho do artista é realizado,
em parte, por outras pessoas ao seu redor, criando-se então uma cadeia composta de
profissionais de diversas especialidades. O grupo e seus interesses também determinam
o tipo de arte que se produz.
Becker ressalta que essas relações de cooperação influenciam a criação artística a
partir do estabelecimento de convenções às quais tanto o público quanto os próprios
artistas se referem para a compreensão de um trabalho. Entretanto, o desenvolvimento
artístico em seus diversos formatos demonstra muitas vezes a quebra ou a contestação
dessas convenções, em ocasiões em que o artista prefere se afastar das práticas usuais,
mesmo que isso resulte em redução da circulação de sua obra. Becker chama a atenção
para a resistência causada por esse tipo de movimento entre os defensores das práticas
convencionais, que se sentem ameaçados pela novidade. Segundo o autor, “um ataque
a uma convenção torna-se um ataque à estética a ela relacionada. [...] um ataque a uma
convenção e a uma estética é também um ataque a uma moralidade” (Becker, 1977, p.
218). Nesse sentido, contrariar uma convenção artística implica um movimento que
carrega, por si só, grande potencial de geração de conflitos entre o apego ao status quo
e a urgência da renovação.
A existência de conflitos, entretanto, embora seja comumente interpretada sob uma
perspectiva negativa, é fundamental na resolução de dualismos e na manutenção de
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
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uma forma de unidade, constituindo-se como força integradora de um grupo social
(Simmel, 1983).
Simmel trabalha com o entendimento de que « Si toute interaction entre les hommes est
une socialisation, alors le conflit, que est l’une des formes de socialisation les plus actives, qu’il est
logiquement impossible de réduire à un seul élément, doit absolument être considéré comme une
socialisation » (2003, p. 19). Elemento de sociação, o conflito é importante na constituição
das sociedades, no seu desenvolvimento e na sua transformação. É na dialética dos
interesses em conflito que os grupos sociais se estruturam, se reorganizam e mesmo,
buscam a paz.
No âmbito dos movimentos sociais, é o conflito que vai possibilitar a mudança de
paradigmas, a divisão dos poderes entre os diferentes grupos. No sentido político, a
repressão ao conflito resulta em estratégia anti-democrática. Mas não será apenas por
meio da política institucionalizada, partidária, que a busca por mudança vai se dar.
A arte, as manifestações culturais são espaço que podem gerar conflito. Ou melhor: o
conflito encontra nas manifestações culturais espaço para fala.
A juventude articulada e participativa dos movimentos de hip hop expressa por meio
do rap, da breakdance, de rimas e grafites suas vulnerabilidades sociais: escolarização,
acesso a postos de trabalho, remuneração justa, segurança, consumo de bens e serviços
culturais (Menezes; Costa, 2013). Por meio do hip hop, a juventude engajada no movimento
expressa a contestação historicamente ligada à luta racial, à reivindicação de direitos
civis e à melhoria das condições de existência e cidadania na sociedade.
SOBRE AS RODAS CULTURAIS DO RIO DE JANEIRO
As rodas culturais como forma de manifestação da juventude no espaço urbano
não encontram na literatura acadêmica brasileira ou internacional um histórico de suas
origens e de suas inspirações, sejam elas artísticas ou conceituais (Ribeiro, 2006; Tavares,
2010; Gonçalves; Carvalho, 2014). Contudo diversos autores que discutem o hip hop no
Brasil situam o Rio de Janeiro como cenário principal de realizações que envolvem
apresentações artísticas e culturais características do movimento hip hop, destacandose nesse contexto a criação do Circuito Carioca de Música e Poesia (CCRP)4. No CCRP
se destaca a participação e a construção de identidades de jovens artistas motivados
a expressar sua arte e ativismo em espaços públicos diversos no município do Rio de
Janeiro (Gonçalves; Carvalho, 2014).
No Rio de Janeiro encontram-se rodas culturais da Zona Norte à Zona Sul, podendo
ser citadas as rodas do Méier, de Botafogo, do Recreio e da Lapa (Roda, 2014). O
movimento hip hop na cidade apresenta reflexos também em iniciativas de outras cidades
do estado. Nesse contexto, outras rodas culturais se apresentam como manifestações do
enfrentamento e da contestação da juventude, tanto em relação à sua própria condição
cidadã como também no que se refere ao acesso a novos espaços e expressões culturais,
não inscritas nos padrões estéticos.
4. O conjunto das rodas culturais de hip hop da cidade do Rio de Janeiro formam o Circuito Carioca de Ritmo
e Poesia – CCRP, rede independente de produção cultural, regida pelo Decreto nº 36.201, de 06 de setembro
de 2012, em especial no Art. 3º, modificado pelo decreto nº 38.266, de 17 de Janeiro de 2014 (Diário..., 2014).
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
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O município de Petrópolis, na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro, apresentase como relevante cenário para tais manifestações de arte urbana, destacando-se a
realização semanal da Roda Cultural do CDC, bem como a Roda Viva, dimensão
institucionalizada desse movimento. Discutiremos agora os elementos que caracterizam
a Roda do CDC em Petrópolis como manifestação coletiva de arte urbana, conflito e
produção cultural da juventude.
A RODA VIVA DO CDC
Criada em 2007, a Roda Cultural do CDC é um acontecimento semanal de caráter
independente que reúne hip hop, rap, grafite, skate e outras vertentes da chamada “cultura
de rua” ou das culturas urbanas no Centro Histórico de Petrópolis.
Organizado pelo movimento “Nação Hip Hop”, o evento acontece nas noites de
quinta-feira, na Praça Visconde de Mauá, conhecida como Praça da Águia, ao lado de
dois tradicionais prédios de Petrópolis: o Centro de Cultura Raul de Leoni (CDC) e a
Câmara Municipal (Palácio Amarelo), ambos espaços que compõem a agenda turística do
município, situando-se próximos ao Museu Imperial, um dos principais atrativos locais.
A Roda do CDC agrupa uma diversidade de expressões artísticas que vão desde
performances de artistas de rua como músicos, grafiteiros, poetas e malabaristas, com
a apresentação de batalhas de rima, versos de improviso ou freestyle, além de músicas
de estilo variados, mantendo viva a cultura hip hop na tradicional cidade de Petrópolis
(Roda, 2014).
Um sábado por mês a Roda se transforma na “Roda Viva”, iniciativa que resultou
do apoio da Fundação de Cultura e Turismo ao movimento da Roda Cultural, a partir
do ano de 2014. Nessas ocasiões, a estrutura da Roda é incrementada com sonorização
e montagem de palco, elementos que não fazem parte da Roda Cultural que acontece
às quintas-feiras, sempre de modo acústico e caracterizada pelo improviso. Com
programação eclética, a Roda Viva atrai principalmente jovens.
Fotografia 1. Batalha de MC’s durante uma edição da Roda Cultural do CDC
Fonte: Arquivo do Curso Superior de Tecnologia em Gestão de Turismo – UnED Petrópolis
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira
A Roda Viva tem lugar durante o período da tarde, um sábado ao mês, fazendo parte
do calendário de eventos da cidade. Além das atrações musicais, do grafite, do skate e
das batalhas de MC’s, no evento acontece a Biblioteca da Roda Cultural, projeto paralelo
à Roda Viva, com o intuito de promover entre os participantes o empréstimo e a troca
de livros. O ponto alto da Roda consiste na Batalha “Di Versos”, também chamada de
Batalha de MC’s, quando vários competidores recitam versos improvisados em ritmo
de rap desafiando seus opositores nas respostas e dividindo o público participante na
torcida por cada MC.
No intuito de compreender o papel da Roda Viva em termos daquilo que ela
representa como arte, movimento social e resistência entre a juventude petropolitana,
foram coletados fragmentos de publicações sobre o evento em duas redes sociais
(Facebook e Youtube) durante o segundo semestre de 2014. No mesmo período realizouse observação participante de duas edições da Roda Cultural e da Roda Viva. Além disso,
foram realizadas duas entrevistas com um dos organizadores do evento, o MC Marcelo
Moraes, o “Durangokid”. Em seguida apresentamos nossa análise dos dados coletados
- que também são produzidos pela interação entre o pesquisador e os entrevistados.
JUVENTUDE, CIDADANIA E CONFLITOS NA RODA VIVA DO CDC
Observando a organização da Roda Viva percebem-se facilmente alguns elementos
que caracterizam sua realização como evento e, ao mesmo tempo, como movimento
de manifestação da arte urbana em Petrópolis. Ao londo dos dias em que acontece a
Roda Cultural ou a Roda Viva, é fácil encontrar, na Praça Visconde de Mauá, vários
jovens que participam ou organizam o evento. De modo geral, os envolvidos trabalham
voluntariamente atendendo às demandas que surgem a cada momento, a exemplo da
organização da programação, da recepção de convidados especiais e da orientação aos
participantes da Roda.
Nesse sentido, a dinâmica de organização da Roda Viva e da Roda Cultural pode
ser entendida à luz do pensamento de Becker (1977), à medida em que ali se identificam
relações que convergem para a cooperação como elemento integrador e identificador
dos atores sociais envolvidos em sua realização. Essa característica fica clara quando
se analisam, inclusive, as falas de Durangokid ao se referir à forma de organização da
Roda: “[...] a gente queria que cada um contribuísse com [...] seu peso social, com sua
experiência, mas para um bem maior, para que a gente conseguisse de repente o que
está conseguindo agora”5.
A idéia de coletividade está presente ainda nos bordões utilizados nos comentários
de organizadores e participantes da Roda nas redes sociais: “Isso aqui é nosso, é por nós,
sempre por nós, acima de qualquer parada é por nós. É noiss” (Comentário em rede social).
Além da característica de organização coletiva, é importante observar a presença
de uma conotação militante em boa parte das falas e dos comentários analisados, o que
permite interpreter a Roda Viva como algo que extrapola a simples realização de um
evento que reúne a juventude do hip hop em Petrópolis. Nesse sentido, Durangokid
ressalta que:
5. Entrevista concedida aos autores em 21 de janeiro de 2015.
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira
Eu acho que a melhor classificação dela seria movimento, porque... ela não é assim, um
evento. A gente não tem uma distinção de artista e público e... E aí você... às vezes você
vai lá também pra encontrar um amigo sabe, e trocar uma idéia. Mas às vezes você vai lá
porque você está querendo trocar expressão né... [...] A gente procura tornar essa coisa...
tornar a Roda mais do que só um momento de lazer assim, sacou, mas de reflexão e de
expressão. A gente ocupa ali, em frente à Câmara dos Vereadores. Então, a gente montar
um monte de cartolina colorida e tal, falando o que a gente pensa, também é uma manifestação política, né?6
Da mesma forma, na página da rede social Facebook, a Roda Cultural é descrita
como “movimento cultural que reúne jovens da cidade de Petrópolis e que incentiva a
liberdade de expressão, a troca de conhecimento e o incentivo à cultura”. Essa liberdade
de expressão é associada, por sua vez, à manifestação de demandas da juventude de
Petrópolis, tais como o acesso a espaços públicos de lazer e cidadania. Nesse contexto, o
hip hop exerce o papel de agente agregador para a juventude petropolitana proveniente
de famílias com baixa renda, a qual não possui espaço, atividade ou política pública
instituída para a promoção de atividades artísticas e de lazer.
A expressão da juventude ligada à realização da Roda Viva é caracterizada ainda
pela oposição aos elementos considerados símbolos artístico-culturais de Petrópolis, a
exemplo de eventos tradicionais como a Bauernfest e a Serra Serata. Nesse sentido, os
dados analisados demonstram um sentimento de inconformidade para com os padrões
estéticos petropolitanos e, por outro lado, as formas inovadoras de interação entre os
participantes da Roda:
Sou petropolitano e a Bauernfest não me representa!
A gente vem aqui para as pessoas se encontrarem, trocarem idéias, trocarem músicas, trocarem arte... tá ligado? Trocarem cultura, se conhecerem, se envolverem. Quantas pessoas
nunca ouviram um cara falar uma poesia na vida, sacou? Foram ouvir na Roda, tá ligado?
Quantas pessoas nunca viram uma obra de arte na vida foram ver grafite na Roda, desafio
na Roda... (Comentários em redes sociais).
Ao se oporem aos elementos legitimados pela tradição cultural local, propondo novas
formas de manifestação e expressão, os jovens participantes da Roda Viva configuram
uma plataforma alternativa de participação política e de construção de cidadania, em
conformidade com o que afirmam Castro (2008) e Cogo (2004). Dessa forma, percebe-se
que as demandas dessa parcela da juventude já não são mais expressas por meio dos
canais tradicionais de manifestação política, mas se comunicam em formatos que são
construídos a partir da dinâmica do próprio grupo, seja nas frases expostas nos varais
culturais, nas poesias declamadas durante a Roda ou nas letras das músicas de hip hop.
A caracterização da Roda Viva como movimento cultural da juventude petropolitana
e veículo para sua expressão cultural precisa ser analisada ainda sob o ponto de vista
da produção de conflitos, os quais resultam em parte do posicionamento oposicionista
dos participantes da Roda. Nesse sentido, resgatando a perspectiva de Peruzzo (2013)
6. Entrevista concedida aos autores em 21 de janeiro de 2015.
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira
seria coerente situar a Roda Viva como expressão de um movimento de confluência de
identidades de resistência, considerando-se o sentimento frequentemente presente nas
opiniões dos particiantes da Roda:
[...] Entre os dois anos de atuação da Roda do CDC já vivemos alguns episódios desagradáveis, porém continuamos sempre na luta e resistência pelos nossos direitos. (Comentário
em rede social)
Pô, resistência a essa... sei lá, de repente à indústria cultural, ao modelo cultural que nos é
imposto, não só pela cidade, pelo colégio, pela televisão, né... assim, o hip hop, ele é contracultura por essência, né... (Durangokid)
Entretanto, ao se manifestarem de forma opositora e resistente aos elementos
socioculturais típicos da cidade, os jovens da Roda Viva se posicionam no centro de
uma série de conflitos e enfrentamentos, sejam eles relacionados ao modo como se
comportam e se expressam, como também ligados à ocupação do espaço utilizado
para a realização da Roda. Convém destacar que, no caso da Roda de Petrópolis, os
atores sociais atuantes no cenário do hip hop não buscaram locais públicos considerados
marginais ou de pouca visibilidade, ao contrário do que ocorre em outras localidades.
Nesse sentido, a resistência parece estar relacionada também à escolha de um espaço
que não só é central na cidade, mas que também é parte da agenda turística local:
Então assim, ali no Centro de Cultura, quando a gente começou com a Roda, também a gente
foi tomando um pouco mais de consciência de realmente o que viria a ser aquilo e que a gente
está não só num... não é só um ponto turístico, mas é um ponto político também... a gente
está na frente da Câmara dos Vereadores e na frente do Centro de Cultura (Durangokid).
O apoio da Prefeitura Municipal aos organizadores da Roda, após diversos conflitos
envolvendo a repressão policial e a hostilidade de moradores próximos à Praça Visconde de Mauá, resultou na consolidação da Roda Viva, que hoje consta no Calendário de
Eventos de Petrópolis. Contudo, apesar de legitimada pelo poder público local, a Roda
continua não sendo bem aceita pela sociedade civil que, por vezes, insiste em caracterizá-la como apologia às drogas e ao mau comportamento entre os jovens.
Nesse contexto, o apoio da Prefeitura pode estar associado a uma forma de manipulação e de controle, como afirma Simmel (1983, p. 133):
A oposição certamente se fortalece com essa política; elementos que de outra maneira ficariam afastados são a ela trazidos pelo novo equilíbrio; mas, ao mesmo tempo, a oposição
fica assim dentro de certos limites. Ao fortalecê-la, aparentemente de propósito, o governo
na verdade a modera, através dessa medida conciliadora.
Valendo-nos das idéias de Simmel, é possível considerar o potencial desse conflito
como gerador de uma espécie de equilíbrio social. Dessa forma devem-se levar em conta
não somente as forças de “resistência” e de “contra-resistência”, como também alguns
mecanismos de institucionalização desses elementos, os quais por vezes se configuram
como forças de controle.
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As manifestações culturais contemporâneas representadas pelas rodas culturais
servem como espaço para a inclusão dos jovens ligados ao movimento hip hop, que
não são ainda bem vistos por alguns segmentos da sociedade civil, promovendo tanto
movimentos de contestação e enfrentamento como o desenvolvimento de linguagens
para uma nova forma de cidadania e engajamento político.
Por meio desta pesquisa, observou-se que a Roda Viva (assim como a Roda Cultural do CDC) não é considerada somente um momento para performances artísticas e
estéticas alternativas, mas, sobretudo, um espaço de caráter mais amplo e que objetiva,
segundo seus organizadores, a promoção de reflexões e discussões sobre temáticas
relacionadas à cidadania e à inserção social dos jovens petropolitanos.
As rodas culturais, de maneira geral, convergem para a transformação e abertura
de consciência a outras estéticas e expressões culturais diferentes daquelas cristalizadas
dentro de um contexto social. Dessa forma, a compreensão da Roda Viva como forma de
se manifestar artística e coletivamente, contestando convenções e linguagens instituídas
(Becker, 1977) se mostra adequada, uma vez que o movimento é proposto como plataforma para a apresentação de uma série de idéias e práticas artísticas de contracultura.
Entretanto, como pondera Becker, um estilo ou proposta estética que ataque as
convenções vigentes pode se legitimar após algum tempo. No caso da Roda Viva,
esse processo vem se consolidando como um ato de afirmação e posicionamento da
juventude local à luz do pensamento e das demandas dos novos movimentos sociais
no contexto brasileiro. A realização da Roda Viva representa a legitimação desse posicionamento a partir do apoio da Prefeitura Municipal e da inclusão do evento no
calendário oficial da cidade.
Contudo os mecanismos de legitimação e reconhecimento da Roda Viva não esgotam
os anseios de seus participantes e não abrandam por completo a insatisfação daqueles
que se opõem à sua realização. Talvez seja esse o maior mérito da Roda Viva: gerar a
necessidade do equilíbrio a partir do conflito, precisando seus participantes aprimorarem suas práticas e demandando, por outro lado, que seus “opositores” também se
reinventem a todo momento. Partindo do pressuposto de que em Petrópolis idéias e
correntes opostas, em suas condições peculiares, fornecem oportunidades de conflito,
unificação e desenvolvimento das divergências, para Simmel (2005), não cabe a qualquer
um de nós o papel de julgar, mas somente o de compreender. Para quem quiser entender,
a juventude da Roda Viva promete se manter resistente e atuante por um bom tempo.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
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Roda Viva: arte urbana, conflito e produção de sentidos na Cidade Imperial
Jarlene Rodrigues Reis • Denise da Costa Oliveira Siqueira • Frederico Ferreira de Oliveira
Entrevistas realizadas
Durangokid. Entrevista concedida a Jarlene Rodrigues Reis em 15 de Novembro de
2014, na Praça Visconde de Mauá, em Petrópolis.
Durangokid. Entrevista concedida a Jarlene Rodrigues Reis e Frederico Ferreira de
Oliveira em 23 de Janeiro de 2015, no CEFET/RJ – UnED Petrópolis.
Redes sociais
Roda Cultural do CDC. Perfil Facebook. [S. l.], 2012. Disponível em <https://
www.facebook.com/groups/331317010244232/>. Acesso em 29 Dez. 2014.
Roda Cultural do CDC. (2013) Filmagem e edição: Beatriz Ohana. Petrópolis, 07’04’’.
Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=-tS-u9e7mj0>. Acesso em 23 Nov.
2014.
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Música, território e comunidade
Maria Lívia
de
Sá Roriz Aguiar 1
Resumo: O objetivo do artigo é analisar as significações e sentidos de comunidade que aparecem em algumas letras de músicas compostas por sambistas
cariocas nas décadas de 1960 e 1970, percebendo como esse era relacionado à
noção de cidade na sua dimensão simbólica. A cidade nas letras se constrói como
um território híbrido de gestos e significações, fragmentada, se transformando
no que poderíamos denominar uma comunidade do sensível. Para o desenvolvimento do trabalho, analisamos letras das músicas de sambistas cariocas,
residentes nos morros do Rio de Janeiro e pouco conhecidos do público. Como
se trata de um estudo exploratório, serão referenciadas entre 10 composições.
Palavras-Chave: Comunidade – Música - Cidade.
Abstract: The objective of this article is to analyze the meanings and community
senses that appear in some letters of songs composed by Rio samba dancers in
the 1960s and 1970s, realizing how this was related to the city of notion in their
symbolis. The city is built in the lyrics as a hybrid territory of gestures and
meanings , fragmented , becoming what we might term a community - sensitive.
To develop the study, we analyzed lyrics of Rio samba dancers, residents in the
hills of Rio de Janeiro and little known to the public. Since this is an exploratory
study will be referred between 10 compositions.
Keywords: Community - Music - City.
INTRODUÇÃO
PROPÓSITO DO artigo é analisar as significações e sentidos de comunidade que
O
aparecem em algumas letras de músicas compostas por sambistas cariocas nas
décadas de 1960 e 1970, percebendo como esse sentido era relacionado a noção de
cidade na sua dimensão simbólica. A cidade nas letras se constrói como um território
híbrido de gestos e significações, fragmentada, se transformando no que poderíamos
denominar uma comunidade do sensível.
Os sentidos de comunidade recorrentes não se constituem apenas como algo físico
mas também subjetivo. Sendo comunidade um aspecto da constituição do indivíduo,
tendo uma relação vinculativa, ela só existe porque há um Outro. Para a construção de
uma comunidade mais do que um território físico é preciso haver um território simbólico,
que faz emergir o tempo vivido (Paiva e Sodré, 2013).
1. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da ECO-UFRJ. E-mail:
[email protected]
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Música, território e comunidade
Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
Nas letras, ao contrário da ênfase ao isolamento marca distintiva da contemporaneidade, as situações descritas estão sempre em relação a um Outro. Há referências
constantes ao modo subjetivo de vida nas cidades, às relações construídas, aos seus ritos.
Atravessada pelos aparatos tecnológicos daquela época, as redes de relação mostram uma
cidade dividida entre aqueles que vivem com intensidade as transformações e outros que
se ressentem delas. A cidade aparece distinguida em dois territórios: um que é atravessado por vinculações (Sodré, 2011) e outro, estranho, atravessado por outras vivências.
Refletir sobre comunidade e sua vinculação com o território significa também pensar
em novas relações que se constituem na cidade. Caracterizando esse processo, Paiva
e Sodré (2013, p. 52) afirmam que o relacionamento do sujeito com a realidade obriga
a refletir sobre a tecnologia e seus modos de realização, que fornecem os principais
cenários da identidade. Os autores salientam que apesar do consumo excessivo, uma
sociedade tecnológica não suporta um cidadão passivo e, em contraponto, discorre sobre
uma “sensibilidade cidadã” (2013, pp.54-55).
E “uma das formas de contornar a sentença da razão hegemônica sobre o ‘outrodo-eu’ – ou seja, o impessoal, o natural e o sensível, figuras de um cosmos rejeitado pelo
logos da modernidade ocidental – é recuperar toda essa dimensão do sensível como algo
íntimo da individualidade humana”. É nesse sentido que os autores cogitam a sensibilidade
cidadã, proveniente do campo dos afetos ou da dimensão do sensível que, segundo eles,
“sempre esteve aí, com os artistas, os poetas, os amantes, os visionários” (p.55).
Os poetas do morro com as letras de sua música vão apresentando territórios que
se qualificam como comunidade, entrando em lugares proibidos, aguçando a dimensão
sensível da sua própria criação, se aproximando e se distanciando do Outro. Aspectos
da individualidade caracterizados por afetos e pelo sensível pontilham suas criações, a
uma cidade como um lugar praticado (Certeau, 1994). O morro torna-se lugar habitado
pelo cotidiano, lugar dos afetos ou da dimensão do sensível (Sodré, 2006), encravado
na cidade. Nesse lugar desenvolve-se uma arquitetura peculiar, na qual se destacam
gestos de comunicação.
Para o desenvolvimento do trabalho, analisaremos letras das músicas de sambistas
cariocas, residentes nos morros do Rio de Janeiro e pouco conhecidos do público, que
construíram suas produções na década de 1960. Como critério de seleção, evidencia-se
as produções que têm como temática central a referencia à cidade do Rio de Janeiro.
Como se trata de um estudo exploratório, serão referenciadas entre 10 composições.
Duas dimensões que são frequentes nas letras das músicas – os sentimentos expressos
e as ações realizadas – no nosso entendimento deixam ver o sentido de comunidade
expresso pelo ato humano (as ações) de viver o comum e os sentimentos decorrentes
dessa vivencia. A comunidade, nesse sentido, mescla sentimentos e ações na busca de
uma partilha do sensível (Sodré, 2006).
COMUNIDADE E SENSIBILIDADE CIDADÃ
Tomando como referência a conceituação de Paiva e Sodré (2013) sobre a comunidade
é preciso percebê-la como um aspecto da constituição do indivíduo, a partir da relação
vinculativa que só existe porque há um Outro. Nessa relação, a individualidade cede a
vez para o commus, o comum do Outro.
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Música, território e comunidade
Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
Percebida dessa forma a definição de comunidade amplia-se, na sua interpelação
não apenas com a questão econômica ou social, mas considerando a constituição de
cada um e do comum através da relação com o Outro.
Portanto, para os autores, mais do que um território físico a existência da comunidade
pressupõe um território simbólico, subjetivo, que permite a eclosão da experiência, do
tempo vivido. Entretanto, se acrescentarmos nessa percepção a forma como se vive as
relações atravessadas pelas transformações tecnológicas que marcam a vida nas cidades
desde os anos 1960/70, há que se considerar o valor atribuído às transformações. É nesse
sentido que os Paiva e Sodré (2013) enfatizam a construção do isolamento e da tecnologia
como marca distintiva de novas ações. No texto, os autores também se referem a questão
do consumo.
Em relação, ao momento que estamos vendo emergir nas letras das músicas um
determinado sentido de comunicação como construção ativa e diálogo em relação ao
Outro (expresso muitas vezes pelos sentimentos que afloram nos letras das músicas) a
questão do consumo não se faz tão presente, mas já se pode observar uma incipiente
transformação tecnológica.
Ainda que muitas das letras que consideramos neste trabalho para analisar os
atravessamos dos fluxos nos territórios descritos se referiam a um mundo que existia
nas décadas de 1960/1970, podemos observar a construção de uma narrativa que apela
a valores partilhados num grupo – o dos sambistas – que se caracteriza pelo aspecto
gregário e não pelo isolamento. Assim a comunidade que emerge das letras dos sambas,
falam de um território visível para poucos e também de um cotidiano que existe pela
experiência partilhada.
Para Roberto Esposito o conceito de comunidade constitui-se numa outra perspectiva:
comunidade “como fenômeno vinculativo humano e não absolutamente como formação
histórico-social particular.” (Yamamoto, 2014, p.441). A comunidade que mais do que
um território físico, se encontra na subjetividade, no simbólico. É a palavra Communitas
que permite a Esposito pensar a comunidade como um vínculo, afetação.
(...) Esposito deixa bem claro que a comunidade não é um ente, nem um sujeito coletivo, mas
uma relação, o limiar em que se encontram sujeitos individuais. Sua formulação é preciosa:
‘a comunidade não é o entre do ser, mas o ser como entre: numa relação que modela o ser,
mas o próprio ser com a relação. (SODRÉ, 2007, p.7)
A comunidade entendida aqui não como seu significado tão caro à sociologia, isto
é, sua ligação com as aldeias, a família, a escola; mas uma comunidade imaterial, onde
será o vínculo o elemento capaz de materializar. Nesse sentido, o pertencimento a mesma
comunidade se faz pelos vínculos e afetos que unem os que ali habitam no sentido pleno.
Para filósofo Esposito “a comunidade é a exteriorização do interior” e é nesse
sentido que se constitui como lugar de partida, já que é local da compartilhamento e
do pertencimento.
A comunidade é a exteriorização do interior. Por isto – porque oposto à ideia de interiorização, ou, principalmente, de internamento – o entre da comunidade só pode ligar
exterioridades ou ‘exílios’, sujeitos debruçados sobre seu próprio fora. Este movimento de
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Música, território e comunidade
Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
descentramento é reconhecível na mesma ideia de ‘divisão’- que se reporta conjuntamente
a ‘compartilhamento’ e ‘pertencimento’: a comunidade não é nunca um lugar de chegada,
mas sempre de partida. É assim a própria partida em direção àquilo que não nos pertence
e não poderá nunca nos pertencer (ESPÓSITO, 2007, p. 20).
Assim, a questão da vinculação é central na construção do conceito. Estar em
comunidade é estar em dívida com esse Outro. E as vinculações ocorrem por essas
dívidas. Mas como remarca Muniz Sodré (2001) o vínculo depende fundamentalmente
do compromisso com esse Outro. Pertencer a comunidade é, enfim, ser devedor desse
Outro. Atos e atitudes que perpassam também o subjetivo.
Pertencer a uma comunidade é, portanto, construir em relação ao Outro a permissão
de um descentramento, sair do interno e ser levado ao externo através das vinculações,
compartilhamentos de ações e sentimentos. É partilhar materialidades e imaterialidades.
No quadro a seguir em que procuramos, a partir do desmembramento das letras
dos sambas construídos por compositores cariocas, perceber os sentimentos e as ações
que estão expressas nesses textos, vemos emergir sempre um outro que está numa dupla
relação. Com o sambista, o poeta que chama o Outro para o diálogo, mas ao mesmo
tempo particulariza aqueles que, como ele, habitam o mesmo território de afetações. Na
primeira coluna, separamos as frases que dizem respeito aos sentimentos possíveis de
serem construídos através dos vínculos comunitários existentes nesses territórios encravados nos morros da cidade. Na segunda coluna, destacamos as ações, pois o pressuposto
central é que esses vínculos e vinculações são tributários de um desejo de transformação
que se expressa por ações possíveis desses sujeitos que vivem uma vida em comum.
Tabela 1. Comunidade: sentimentos e ações
SENTIMENTOS
AÇÕES
“E tive uma grande decepção” (Decepção de um autor,
Padeirinho)
“Desci do morro com meu samba pra cidade” (Decepção de um autor, Padeirinho)
“Crianças sem futuro e sem escola
Se não der sorte na bola
Vai sofrer a vida inteira
Morro, o teu samba foi minado
Ficou tão sofisticado, já não é tradicional”
(Encanto da paisagem, Nelson Sargento)
“E assim a região Sofre modificação Fica sendo chamada de a nova aquarela E é aí que o lugar Então passa a se chamar favela”(Favela, Padeirinho)
“Cada pobre que passa por ali Só pensa em construir seu lar E quando o primeiro começa Os outros depressa procuram marcar Seu pedacinho de terra pra morar” (Favela, Padeirinho)
“Você diz que me conhece
Mas que agora se esquece
Deve ser de algum lugar”
(Rua das casas, Padeirinho)
“Estou em casa aos domingos
É tão fácil me encontrar”
(Rua das casas, Padeirinho)
“E tem gente pra cachorro
Que já quer se estourar
É só você levar um papo com a Etelvina Sobre o caso da
Marina pra ver o rolo que dá
Ela vai dizer que está por fora E quem está por dentro agora
É Vandeia com Naná” (Fofoca no morro, Padeirinho)
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Música, território e comunidade
Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
SENTIMENTOS
AÇÕES
“A situação do Escurinho está ruim como quê!
O Zé Pretinho diz que quer saber
Da mulher que ele carregou
Ah meu Deus que horror!”
(Situação do Escurinho, Padeirinho)
“Pois o bamba espera chegar sua vez Lá no Morro do
Pinto
A moçada que faz samba o mês inteirinho
Está esperando que o tal Escurinho
Vá lá novamente fazer o que fez.” (Situação do
escurinho, Padeirinho)
“Se manda Mané
Que daqui a pouco os “homi” vem aí
E quem ficar de touca, não escapulir
Vai entrar em cana se não se mandar
(Não sou eu que vou ficar...)”
(Se manda Mané, Padeirinho)
“Como será o morro sem os barracões?
Como será o Rio sem as tradições?
Será que no ano 2000 as escolas de samba irão desfilar?”
(Como será o ano 200º, Padeirinho)
Fonte: Letras dos sambas Decepção do autor, de Padeirinho; Se manda Mané, de Padeirinho; Situação do
Escurinho, de Padeirinho; Como será o ano 2000, de Padeirinho; Rua das Casas, de Padeirinho; Favela, de
Paderinho; Fofoca no morro, de Padeirinho e Encanto da Paisagem, de Nelson Sargento.
No quadro anterior, os personagens que habitam o morro e se transformam em
comunidade pelos vínculos estabelecidos aparecem claramente nominados e são sempre
grupos, tribos, pessoas que vivem em relação. Na letra das músicas são personagens
fixados na sua pluralidade, tanto numérica como gramatical: são as crianças, a moçada,
gente, etc.
Na coluna “ações” pode-se observar o desejo de futuro que se expressa claramente
em muitas das letras. Mas é um futuro que só poderá ser alcançado com uma ação conjunta. O sonho da casa ou a visão da cidade do futuro depende das ações que são produzidas em relação, de um com o Outro. E mesmo quando o personagem é apresentado
na sua individualidade, a ação solidária se faz pelo grupo que avisa, por exemplo, que o
Mané deve escapulir, pois os homens (ou seja, a polícia) está prestes a invadir o morro.
CIDADE: TERRITÓRIO E COTIDIANO.
Em relação às músicas selecionadas observamos também que ao falar do cotidiano
da cidade as relações entre os sujeitos se destacam. Aparece também as transformações
ocorridas naquele momento no território musical. A construção de palavras e sons dos
sambas estavam sendo ultrapassadas por novos ritmos e melodias de um tempo que se
transformava. A bossa nova, os ritmos sincopados para dançar, a não mais existência
de “samba de ritmo quente” levara “agora tudo a ser diferente” na concepção do autor
(Modificado/Padeirinho)2.
As três músicas que têm como foco central caracterizar o território musical – destacando as transformações a que o samba estava submetido – fazem também referencia
à cidade. Observamos também a supremacia das temáticas relacionadas diretamente
2. “Vejo o samba tão modificado/Que eu também fui obrigado/A fazer modificação/Espero que vocês não me
censurem/O que eu quero é que todos procurem/Ver se eu não tenho razão/Já não se fala mais no sincopado/
Desde quando o desafinado/Aqui teve grande aceitação/E até eu também gostei daquilo/Modificando o estilo/
Do meu samba tradição/Gosto de um samba ritmado pra sambar/Também gosto de um sincopado pra dançar/
Mas agora tudo é diferente/Já não se fala mais naquele samba de ritmo quente” (“Modificado”, Padeirinho).
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Música, território e comunidade
Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
ao cotidiano. Percorrendo as letras é possível localizar precisamente lugares existentes e significados pelas imagens construídas pelo compositor. Em Itacuruça ficava o
terreiro; no Morro do Pinto e no Morro do Macaco as brigas presenciadas e no Morro
da Mangueira, a música. Na tendinha do Adelino o lugar da pausa necessária para a
atividade da fofoca.
A cidade vista nas letras desses sambas se constrói como território híbrido de gestos
e significações, fragmentada, se transformando no que poderíamos denominar uma
comunidade do sensível. São as ações dos sujeitos vividas no cotidiano que vão significando o território e dando a ele outra dimensão. Do Morro da Mangueira somos
transportados para o Morro do Macaco, para o Morro do Pinto ou para o Terreiro em
Itacuruça3. Não há próximo, nem distante, são lugares intercambiáveis e que são significados pelos gestos que os produzem sempre em relação a um Outro. Os sentidos
de comunidade se constitui não apenas como algo físico mas também como subjetivo,
como já dissemos.
Ainda que a questão das transformações tecnológicas produzindo mudanças na
construção do vínculo da comunidade esteja presente nas letras, o isolamento destacado
por Paiva e Sodré (2013) também aqui não se faz presente por razões históricas da
constituição desses lugares de pertencimento. Da mesma forma é a época (anos 1960)
que produz o silenciamento em relação ao consumo.
As situações são descritas sempre em relação a um Outro, há referencias constantes
ao modo subjetivo de vida na cidade, às relações construídas, aos seus ritos. Atravessada
pelos aparatos tecnológicos daquele momento – o rádio e a televisão – as redes de
relação mostram uma cidade dividida entre aqueles que vivem com intensidade essas
transformações e outros que se recentem delas. Nas letras se percebe que o autor divide
a cidade em dois territórios distintos: um que é atravessado por vinculações (Sodré,
2011) e outro, estranho, atravessado por outras vivências.
Desci do morro com meu samba pra cidade
E tive uma grande decepção
No meio da alta sociedade
Desfizeram da minha composição
Infelizmente quem compõe no morro
Não tem direito a gravação
(Sem razão)
Enquanto o compositor do morro
Pede socorro
E não encontra proteção
Existem os que vivem no apogeu
As custas de melodias de autores como eu (“Decepção de um autor.” Padeirinho)
3. “Me chamaram compadre /Pra ir a um terreiro /Em Itacuruçá /Veja o senhor o que eu fui arrumar /
Mas tem uma coisa: /Eu nunca mais vou lá /Em Itacuruçá /Andei a noite inteira /Comendo poeira /Foi de
amargar /Só de madrugada é que eu cheguei lá /No tal terreiro de Itacuruçá /Ao chegar no terreiro /O tal de
cambono mandou me avisar /Eu sei que o senhor tem que ir no congá /Pedir Preto Velho pra lhe consultar
/E dizer saravá /Justamente na hora /Em que eu estava salvando /A polícia chegou /Prendeu todo mundo
/Eu fui logo o primeiro /Só o macumbeiro /Foi quem não entrou” (“Terreiro de Itacuruça”, Padeirinho).
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Música, território e comunidade
Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
Observando a repetição das situações cotidianas dos morros nas letras dos sambas,
Padeirinho vai construindo uma espécie de território em rede – rede de vinculações –
que se instituem como comunidades. As situações se repetem, não importam os lugares
físicos, se na Mangueira, no Pinto ou no Macaco. São atos vinculativos que produzem
um sentido de comunidade que extrapola o território físico.
O poeta do morro com as letras de sua música vai percorrendo a cidade, entrando em
lugares proibidos, aguçando a dimensão sensível da sua própria criação, se aproximando
e se distanciando do Outro. Aspectos da individualidade caracterizados por afetos e
pelo sensível pontilham suas criações, construindo uma caracterização da cidade como
lugar praticado (Certeau, 1994). O morro torna-se lugar habitado pelo cotidiano, lugar
dos afetos ou da dimensão do sensível (Sodré, 2006), que encravado na cidade, nela não
é situado pelo compositor. Nesse lugar desenvolve-se uma arquitetura peculiar, na qual
se destacam gestos de comunicação.
Na letra do samba Favela, é a habitação do espaço que torna possível a sua nomeação.
Numa vasta extensão
Onde não há plantação
Nem ninguém morando lá
Cada pobre que passa por ali
Só pensa em construir seu lar
E quando o primeiro começa
Os outros depressa procuram marcar
Seu pedacinho de terra pra morar
E assim a região
Sofre modificação
Fica sendo chamada de a nova aquarela
E é aí que o lugar
Então passa a se chamar favela (“Favela”, Padeirinho)
Reconhecendo as limitações do lugar, percebendo as relações complexas que ai
se desenvolvem e evidenciando as práticas cotidianas de um local sem demarcações
normativas fixas (os números das casas, por exemplo), vai qualificando o território a
partir dos vínculos que estabelece com o lugar habitado.
Interessante
Você diz que me conhece
Mas que agora se esquece
Deve ser de algum lugar
(vê se dá pra lembrar)
O meu nome é aquele
Que você escuta
Por aí chamar
Moro na rua das casas
No lado oposto
Do número par
Já lhe dei meu endereço
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Música, território e comunidade
Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
Quando quiser apareça
Anota bem, meu telefone
Por favor não se esqueça
Estou em casa aos domingos
É tão fácil me encontrar
Moro na rua das casas
No lado oposto
Do número par (“Rua das casas”, Padeirinho)
Na letra do samba “Rua das casas” a construção do espaço físico – no caso a casa onde
o compositor mora – como emocional e afetivo fica patente na tentativa de localização
do lugar a partir de índices de subjetividades, no caso, o morro e a rua como local de
pertencimento. A rua é ao mesmo tempo uma conjunção física, concreta, mas é também
um lugar humano e que revela ao mesmo tempo a “alma da cidade”. O autor mora na
“rua das casas”, “no lado oposto do número par”. As localizações espaciais são fluidas,
imprecisas, revelando um lugar subjetivo.
O que as letras de Padeirinho mostram é mais do que a vida da cidade: são as
vinculações que permitem o diálogo com um Outro. A fofoca, os amantes, o terreiro,
os lugares de rumores, tudo está lá, pronto para ser resignificado. Mostrando lugares
de encontro, as letras revelam espaços repletos de vida e de formas de olhar.
Mais uma fofoca lá no morro
E tem gente pra cachorro
Que já quer se estourar
É só você levar um papo com a Etelvina
Sobre o caso da Marina pra ver o rolo que dá
Ela vai dizer que está por fora
E quem está por dentro agora
É Vandeia com Naná
Mas é tudo papo da Etelvina
É que o caso da Marina tem um para acertar
Sei que na tendinha do Adelino
Quem chegou com “Baratino”
Foi a Rosa e a Neném
Mas o que não está dando pra entender
É que nesse fuzuê o seu nome figura também
Pergunte a Neném (“Fofoca no morro”, Padeirinho)
A letra da música Fofoca no morro talvez seja a que melhor materialize a definição
de comunidade não a partir dos tradicionais laços de parentesco, consanguíneos,
territoriais ou mesmo legais, como remarca Paiva (2012, p. 70). Aquí fica evidente que
o que transforma os personagens citados e os que não aparecem explícitamente na
música são as vinculações afetivas que os amálgama num territorio sensivel e de diálogo
permanente com um Outro que vive a relação em relação.
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Música, território e comunidade
Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas letras do samba de Padeirinho observamos que não é somente a profundidade
do passado, há uma ideia de antecipar a cidade. No samba “como será o ano 2000”, o
compositor alude a uma ideia de futuro, uma preocupação com os tempos que virão.
Inquietação sobre a manutenção das tradições (“Como será o Rio sem as tradições?/Será
que no ano 2000 as escolas de samba irão desfilar?/será que haverá carnaval?/Será?”).
Com o morro, território físico, único lugar que aparece demarcado nessa perspectiva
de futuro (“Como será o morro sem barracões?”).
A partir dos sambas percorremos a cidade do seu passado até o futuro. Visitando um
território mais simbólico, emotivo que físico. Nos aprofundando na cidade, no cotidiano
desse sambista que nos apresentou o Rio de Janeiro a partir da sua sensibilidade cidadã.
Mas sobretudo procuramos refletir sobre “o ser-em-comum da comunidade como
partilha de realizações e não como mera substância”. Não é o território dos morros, não é
o território da música, não é o patilhamento de laços consanguíneos que os transformam
numa comunidade, mas as trocas (SODRÉ, 2002, p. 224) que se evidenciam nos textos
que fixam uma imagem simbólica de si mesmo num passado em direção ao futuro
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Juliana dos Santos. Padeirinho da Mangueira: a estética da linguagem do morro.
Cadernos do CNLF, Vol. XIX, n. 4, t. 4, 2010, p. 3132-3142.
BRUM, Mario Sergio. Cidade Alta: História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em História Social/PPGH-UFF,
Niterói, 2011.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
DURÁN, María-Ángeles. La ciudad compartida. Conocimiento, afecto y uso. Santiago: Ediciones Sur, 2008.
EPÓSITO, ROBERTO. Niilismo e comunidade. In: PAIVA, Raquel (org.) O retorno da comunidade: os novos caminhos do social. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007: 15-30.
HILLMAN, James. Cidade e alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
PAIVA, Raquel. Novas formas de comunitarismo no cenário da visibilidade tota: a comunidde do afeto. In: MATRIzes. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Universidade de São Paulo. São Paulo: Ano 6; n. 1; pp.63-75.
PAIVA, Raquel e SODRÉ, Muniz. Afetos e mobilidade nas megacidades: o comum e as alternativas de comunicação. In: BARBOSA, Marialva e MORAIS, Osvando. Comunicação
em tempo de redes sociais: afetos, emoções, subjetividades. São Paulo: INTERCOM, 2013.
PAULINO, Franco. Padeirinho da Mangueira: retrato sincopado de um artista. São Paulo:
Hedra, 2005.
SODRÉ, Muniz. A ciência do comum. Notas para o método comunicacional. Petrópolis: Vozes,
2014.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2011.
SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. Afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Petrópolis: Vozes, 2011.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
1042
Música, território e comunidade
Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
SODRÉ, Muniz. Prefácio. In: PAIVA, Raquel (org.) O retorno da comunidade: os novos caminhos
do social. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007: pp.7-12.
SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. Afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006.
YAMAMOTO, Eduardo Yuji. Comunidade é periferia? In: Trajectos. Revista de Comunicação,
cultura e educação. Vol. 2, n. 1, outubro de 2013, Lisboa, pp. 113-122.
YAMAMOTO, Eduardo Yuji. O conceito de comunidade na Comuncação. In: FAMECOS.
REVISTA do Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Vol.21, n.2, maio-agosto 2014.
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A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos
terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil
Communication in radio and web radio as therapeutic
device for people in mental treatment in Brazil
R eginaldo Moreir a 1
Resumo: O artigo apresenta o conceito da comunicação terapeutizante. O termo
é fruto da investigação da aplicabilidade da comunicação em rádio e web rádio,
vivenciadas pelos usuários da saúde mental, participantes do Projeto Maluco
Beleza, localizado no Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, no Brasil, na cidade
de Campinas, interior do Estado de São Paulo. A experiência tem se revelado uma
importante ferramenta de (re)significação de sentido de vida para os portadores
de sofrimento mental. Por meio da participação, os usuários se capacitam para
a comunicação, para expressarem suas ideias. Esse processo os incentiva a
retomarem as redes de conexão que estavam esquecidas ou não acionadas, e
restabelecerem novos meios de convívio social, estimulando e desenvolvendo a
cidadania. O objetivo da pesquisa foi averiguar a comunicação em rádio e web
rádio como direito e possibilidade alternativa e complementar aos cuidados
da saúde mental, para a construção de uma vida digna e cidadã. Os resultados
apresentados são diversos e provocam o deslocamento do estigma das pessoas
participantes, que demonstram uma nova postura diante dos desafios. Percebeuse no projeto um compromisso com a verdade, que faça sentido na vida dos
participantes envolvidos, que transformam suas trajetórias.
Palavras-Chave: Comunicação terapeutizante. Saúde Mental. Rádio. Web Rádio.
Cândido Ferreira.
Abstract: The paper presents the concept of communication therapeutic. The
term is the result of communication applicability of research in radio and
web radio, experienced by users of mental health, participants Maluco Beleza
Project located in Dr. Cândido Ferreira Health Service, in Brazil, in the city of
Campinas, of São Paulo State. The experience has become an important tool of
(re) signification of meaning of life for sufferers of mental disorders. Through
participation, users are empowered to communicate, to express their ideas.
This process encourages them to resume the connection networks that were
forgotten or not taken, and restore new means of social interaction, stimulating
and developing citizenship. The aim of the research was to determine the radio
communication and web radio as a right and complementary and alternative
1. Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/
USP); Docente do Departamento de Comunicação, da Universidade Estadual de Londrina (UEL); email:
[email protected].
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1044
A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil
Reginaldo Moreira
possibility to mental health care, to build a decent life and citizen. The results
are different and cause the stigma of displacement of people participating, which
demonstrate a new approach to the challenges. It was noticed in the project a
commitment to the truth, that makes sense in the lives of participants involved,
that transform their trajectories.
Keywords: Communication Therapeutic. Mental helth. Radio.Web radio. Cândido
Ferreira.
E
STE ARTIGO é parte da tese de doutorado “Projeto Maluco Beleza: a comunicação
como dispositivo terapeutizante de (re)significação de sentido de vida, no contexto
da reforma psiquiátrica”, por mim defendida no ano de 2011, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)2.
A comunicação em rádio e web rádio tem se apresentado aos usuários3 do Serviço
de Saúde Dr. Cândido Ferreira4, instituição psiquiátrica em transformação, localizada
na cidade de Campinas, interior de São Paulo. A aplicabilidade de comunicação nasceu
do trabalho de assessoria de imprensa desenvolvido na entidade, num projeto mais
amplo de comunicação e cultura, denominado Maluco Beleza. Fazer rádio e web rádio
em saúde mental, da forma como foi pensado o projeto, é uma tecnologia distinta de
comunicação alternativa, pois essa comunicação está aplicada no campo da saúde mental,
cujo objetivo principal é a promoção da saúde.
No ano de 2002, nasce a proposta de parceria entre a instituição e a Rádio Educativa
Municipal, que nos ofereceu espaço mensal para a realização de um programa de rádio
protagonizado pelos usuários. Um projeto de uma revista eletrônica foi idealizado, com
apresentação de diversos quadros, em que os usuários do serviço de saúde pudessem
expressar seus pontos de vista para a sociedade, seus talentos, suas opiniões. Em maio
do ano daquele ano foi ao ar o primeiro programa de rádio, denominado Maluco Beleza,
o qual continua a ser produzido e veiculado até o momento, ou seja, há treze anos.
Com o passar dos anos, os participantes do projeto sentiram a necessidade de
uma emissora própria, na qual pudessem expressar seus pensamentos e formatar seus
programas de forma mais diversa e singular, tanto do ponto de vista estético, como
do pronto de vista do conteúdo, sem que os mesmos sofressem interferência da linha
editorial de uma emissora veiculadora. Dessa forma, é inaugurada no mês de setembro,
no ano de 2010, a Rádio online Maluco Beleza.
2. A tese pode ser encontrada na Biblioteca Digital da USP, pelo endereço: http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/27/27154/tde-23092011-203323/pt-br.php
3. O termo usuário de saúde mental substitui a palavra “louco”, doente mental, paciente psiquiátrico, ou
qualquer outra terminologia. Esse novo termo de referenciação é uma exigência do Movimento da Luta
Antimanicomial e dos demais participantes do II Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, ocorrido
em novembro de 1995, em Belo Horizonte/MG. Apesar de atualmente existirem várias críticas com relação
a essa denominação, ainda não há consenso para uma nova nomenclatura.
4. O Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira é o primeiro hospital psiquiátrico filantrópico do Estado de
São Paulo. Sua fundação se dá no ano de 1924, como solução ao abandono que se encontravam as pessoas
trancafiadas nos porões da Cadeia Pública de Campinas, desde que os ditos loucos e desocupados foram
recolhidos, por ocasião da prática higienista adotada na implementação da República Federativa do Brasil,
num período em que os negros recém libertos da escravidão ocupavam as ruas à procura de trabalho.
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A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil
Reginaldo Moreira
O presente artigo mostra a produção singular da comunicação em rádio pelas pessoas em tratamento e os caminhos que os levaram à criação de uma web emissora,
revelando um novo aspecto à aplicabilidade da comunicação, aqui conceituada como
terapeutizante. Devido à complexidade da pesquisa, tanto pelo encontro teórico entre
a área da comunicação e da saúde, quanto pelas transformações da vida dos participantes e as novas conexões que se fizeram a partir desses processos comunicacionais
alternativos; encontrou na metodologia cartográfica, de Deleuze e Guattari (2005), uma
visão mais integradora, teórica-pragmático-poética (Rolnik, 2007), que desse conta das
subjetividades da nova estética do viver. A comunicação em rádio, utilizada pelo Projeto
Maluco Beleza, revelou-se uma importante forma de cuidado complementar alternativo
no campo da saúde mental.
PRODUÇÃO COLETIVA DO PROGRAMA DE RÁDIO VEICULADO
NA EMISSORA EDUCATIVA
Todo o processo de criação do programa de rádio é construído de maneira coletiva,
a partir da apropriação dos significados dos saberes técnicos sobre rádio e jornalismo,
pelos participantes. Além da apropriação cotidiana, algumas oficinas são oferecidas,
para que os participantes possam criar novos repertórios para encararem os desafios
inerentes à atividade de radialista.
A forma participativa vem da comunicação popular e comunitária, que tem a
democracia como norteador para resolução dos impasses. A cada situação de conflito
ou escolha, o grupo se reúne e vota nas propostas, para que as decisões sejam as mais
próximas do desejo da maioria.
A participação popular implica uma decisão política e o emprego de metodologias operacionais que o favoreçam. Em matéria de comunicação, não basta incentivar o envolvimento.
É necessário criar canais para tanto e mantê-los desobstruídos. Isso tem a ver com objetivos
estratégicos, ou seja, aonde se quer chegar. (Peruzzo, 1998, p. 276)
A participação, de forma efetiva e cotidiana, criou uma dinâmica de escolhas a partir
de proposições e votos, em que os participantes argumentam e escolhem, colocando em
prática o processo democrático no projeto. As decisões nem sempre agradam a todos; na
falta de consenso, as escolhas por meio do voto se fazem eficazes, colocando em pauta a
aceitação do desejo da maioria. No início era mais traumático para os participantes que
não tinham seu desejo contemplado num momento de impasse, mas com a prática, hoje
há uma maior aceitação e respeito sobre as decisões tomadas diante do desejo da maioria.
Muitos instrumentos podem ser utilizados. Aqui vamos os prender aos meios de comunicação popular ou comunitários, que requerem uma metodologia condizente com a práxis
da comunidade enquanto sujeito de um projeto emancipatório. (Peruzzo, 1998, p. 288)
Enquanto alguns participantes não manifestam o desejo por produzir algum quadro
do programa, outros gostariam de fazer o programa sozinhos. Há sempre a necessidade
de lembrá-los de que todos devem participar da forma mais igualitária possível. Assim,
é conduzida a produção das pautas, no tocante à distribuição das tarefas: para os que
têm muita ânsia de participação, o limite; aos que se mantêm pacatos, o estímulo.
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A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil
Reginaldo Moreira
O “FAZER COM” É MUITO MAIS COMPLEXO E RICO QUE O
“FAZER PARA” E O “FAZER POR”
No início do projeto, os profissionais do projeto é quem elaboravam os textos
e os roteiros para os usuários, para que fossem gravados pelos loucutores, como se
autodenominam, pois ainda não era sabido se os participantes apresentariam capacitação
suficiente para essa elaboração. Essa participação reduzida nos processo de criação de
conteúdo, muitas vezes tornavam os usuários reprodutores de pautas e textos elaborados
por profissionais de comunicação da instituição de saúde. Foi a partir da participação
do III Fórum Social Mundial, em 2003, após a exibição do filme “Uma onda no ar”, de
Helvécio Ratton, que retrata a trajetória da Rádio Favela, de Belo Horizonte/MG, que se
teve a percepção do quanto se poderia delegar a produção do programa nas mãos dos
participantes. A partir de então, coordenadores e usuários ficaram convencidos de que
o programa poderia ficar cada vez mais à cargo dos usuários, com pautas pesquisadas
e desenvolvidas por eles, com menor interferência, ou nenhuma, dos profissionais.
Assim a experiência tem sido conduzida e tem funcionado muito bem. Com o tempo,
deu-se conta de que o grande desafio era o já indicado por Paulo Freire, de se “fazer
com”, ao invés de se “fazer por” ou “fazer para”. O “fazer com” muda todo sentido de
produção do programa, aumentando os desafios, e estimulando a superá-los. “Fazer
com” é um processo muito mais demorado, muito mais complexo e transversal, o que
tem dado sentido ao projeto, pois valoriza o saber do outro, a sua alteridade, colocando,
também, a contribuição dos profissionais envolvidos, numa via de mão dupla, de forma
horizontalizada. O “fazer com” exige um exercício contínuo de usuários e profissionais
envolvidos com o projeto, no sentido que um contribua com o outro, para a elaboração
de um conteúdo coletivo mais ampliado e democrático.
PONTO DE CULTURA
Desde 2008, o projeto Maluco Beleza foi reconhecido pelo Ministério da Cultura
como um dos Pontos de Cultura do Brasil. A iniciativa do governo federal foi de
revelar manifestações culturais produzidas nas comunidades brasileiras, revelando a
diversidade do povo deste país e investindo na continuidade dos projetos. O projeto foi
um dos escolhidos para receber os investimentos federais. Desde então, as ações de rádio
se ampliaram. Além de vários cursos de capacitação destinados aos usuários da saúde
mental e da comunidade, um estúdio e uma sala de inclusão digital foram instalados
nas dependências da instituição.
A partir de então, o projeto abriu-se para a comunidade, o que possibilitou novas
formas de convívio. O Ponto de Cultura Maluco Beleza já ofereceu várias oficinas de
capacitação aos participantes, usuários da saúde mental e pessoas da comunidade.
Todos os cursos são gratuitos, o que acabou atraindo diversas pessoas da comunidade
para o projeto.
Essa abertura para outras pessoas da comunidade enriqueceu a diversidade, pois
deixou de ser voltado especificamente para usuários da saúde mental. Tal integração tem
uma via de mão dupla que enriquece tanto as pessoas que fazem tratamento mental e
outras pessoas da comunidade. Hoje o projeto não exige que se possua um diagnóstico
psiquiátrico para participação, anteriormente. O diagnóstico aqui perdeu definitivamente
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a sua função primeira de categorizar as pessoas. A pesquisa junto aos participantes
não apresentou os seus diagnósticos, uma vez que no Maluco Beleza o foco não está na
doença, como na maioria dos modos de cuidar ainda percebidos nos tratamentos dos
serviços de saúde.
A WEB RÁDIO COMO NOVA POSSIBILIDADE TECNOLÓGICA
DE DEMOCRATIZAÇÃO DOS MEIOS
Dia 1 de setembro de 2010, a Rádio online Maluco Beleza foi inaugurada no Ponto
de Cultura. O sonho de possuir a própria estação de rádio deu-se por meio da web. O
projeto, inédito no Brasil, reuniu cerca de 28 programas realizados por usuários da saúde
mental, familiares, funcionários, outros projetos sociais e pessoas da comunidade. A
rádio fica 24 horas no ar pelo site www.radiomalucobeleza.org.br.
A inauguração da rádio online foi um momento histórico para a Saúde Mental,
marcando uma importante conquista dos usuários. Os programas da rádio web não
são diretamente ligados à saúde mental, mas estão, impreterivelmente, relacionados à
promoção dos direitos humanos e da cidadania. A rádio online é diversa, contemplando
programas feitos por idosos, crianças, crianças em situação de rua, artistas populares,
profissionais e usuários da saúde mental. Os programas abordam os mais variados
temas e são voltados a diferentes públicos. O Programa Maluco Beleza, inspirador de
todo projeto, também faz parte da grade de programação e é reapresentado em diversos
horários.
A rádio web não interferiu e nem interrompeu a parceria com a Rádio Educativa
da cidade. A produção mensal dos programas continua a ser realizada. O programa de
rádio Maluco Beleza continua a ser produzido e veiculado, sendo o projeto inspirador
de outras ações que surgiram por meio dele.
Os participantes do programa desejam que todas as pessoas de seus bairros tenham
a possibilidade de ouvir suas mensagens pela Rádio Educativa, que é mais acessível, uma
vez que a acessibilidade a computadores ainda é restrita. Se por um lado a acessibilidade
à Internet ainda é pequena no país, por outro, a criação de uma rádio online possibilitou
que as mensagens extrapolassem as barreiras da cidade de Campinas, inaugurando
uma nova fase de veiculação dos programas, que atinjam outros lugares distantes e
inesperados, que possibilitem outras trocas.
A inauguração da rádio online foi um momento histórico para a Saúde Mental
da cidade, marcando uma importante conquista no cenário nacional. Quem poderia
imaginar há algum tempo que uma instituição psiquiátrica pudesse transformar-se
de tal forma, que as pessoas em tratamento no serviço conseguissem protagonizar a
inauguração de uma emissora de rádio? A Maluco Beleza online visa a anunciar boas
notícias e ser um canal de comunicação dos direitos do homem e das possibilidades
de transformações, criando novos modelos de comunicação em rádio para toda a
sociedade.
LOUCU-TORES: DOIS SIGNIFICADOS NUMA MESMA IDENTIDADE
No programa Maluco Beleza, observa-se, por exemplo, que alguns participantes se
autoreferenciam como loucutores. Nota-se um direcionamento de discurso do “louco”,
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historicamente estigmatizado por sua alienação, periculosidade e incapacidade, para
uma busca de outra identidade. Associado à referência de nominação daquilo que por
anos foi a sua única característica - o louco - para a referencialidade de - locutor - um
profissional de rádio. Assim, nota-se que a associação do termo louco com o locutor
(e seus significados) gera uma terceira denominação: o loucutor. O loucutor traz uma
soma de significados que pode representar uma busca de identidade profissional, que
permita ao usuário colocar-se socialmente num outro papel, que não o de usuário da
saúde mental, de paciente, ou mais estigmatizado ainda, o de louco. A autodenominação
por parte dos participantes do Maluco Beleza brinca com o próprio sofrimento mental,
com o próprio estigma. O projeto pesquisado transforma o discurso de vítima e sofredor,
muitas vezes ainda encontrado como únicos elementos de discurso da pessoa portadora
de sofrimento mental. No projeto, a lamentação acaba dando lugar ao movimento de
busca por um novo discurso, pois o participante encontra espaço adequado e qualificado
para essa proposta de transformação de postura diante da vida. O usuário participante
do projeto possui um diagnóstico e, na realidade, na maioria das vezes, o tem. Porém,
ele também possui seu potencial como comunicador, como locutor de um programa
de rádio, veiculado por emissoras com abrangência municipal, pela rádio educativa, e
mundial, pela Internet.
O termo loucutor indica a busca por uma nova referencialidade do discurso de
vítima, sofredor, morador de um manicômio, para a transformação de um discurso numa
nova ordem, num outro espaço: de louco, a locutor; de morador de manicômio, a locutor
de uma rádio; de um sujeito, que erroneamente já foi visto somente como portador de
um diagnóstico mental, para um sujeito que pode transpor a barreira do diagnóstico e
ter fazeres profissionais que extrapolem os estigmas.
Esse movimento, que a própria denominação traz em si - loucutor - parece indicar as
possibilidades de (re)significação de trajetória de vida possíveis que o fazer do radialista
possibilita. O termo traz em si não a negação de sua condição de portador de sofrimento
mental, mas o reconhecimento desse lugar, porém não estagnado no próprio sofrimento.
Observa-se que a associação do “louco” com o “locutor” é que torna possível o projeto de
comunicação em saúde mental, fazendo-se viáveis os programas produzidos. É provável
que, sem o diagnóstico da doença mental essas pessoas talvez não estivessem atuando
num programa de rádio. No projeto pesquisado, o diagnóstico traz a possibilidade do
dispositivo da comunicação.
A COMUNICAÇÃO COMO DISPOSITIVO TERAPEUTIZANTE
No trabalho desenvolvido pelo Projeto Maluco Beleza, a comunicação é a principal
ferramenta, o meio, para que pessoas que estão em tratamento mental, e recentemente,
também pessoas da comunidade, possam produzir e expressar seus pensamentos por
meio do rádio e da web rádio. Para a construção desse conceito proposto por este estudo,
investigou-se a comunicação aplicada no projeto. O referencial teórico utilizado para a
construção desse conceito, advém do livro Saúde: a cartografia do trabalho vivo, de autoria
de Emerson Elias Merhy, 2002, Hucitec, e no texto Da repetição à diferença: construindo
sentidos com o outro no mundo do cuidado, de autoria de Emerson Elias Merhy, Laura
Camargo Macruz Feuerwerker e Maria Paula Cerqueira.
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A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil
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Toda a comunicação aplicada no trabalho de produção dos programas de rádio,
tem como objetivo final a realização dos programas de rádio, seja para veiculação na
Rádio Educativa FM, seja para veiculação na Rádio Maluco Beleza online. Esse objetivo,
demarcado pela ação, prevê um produto. Também esse ato produtivo, aplicado no sentido
de chegar a um produto final, faz da ação um produto tecnológico.
O projeto Maluco Beleza usa o emprego da comunicação, usa o fazer rádio e web
rádio, no contexto da saúde mental, porque possui um efeito para a geração de saúde,
ligado ao lugar onde é produzido o ato. A comunicação contribui para o cuidado em
saúde mental, para o seu tratamento. O programa e todas as ações produzidas pelo
projeto Maluco Beleza são meios e não fim, pois o produto que interessa para o projeto
não é um programa de rádio desenvolvido com o rigor das exigências técnicas de um
outro produto jornalístico ou radiofônico de mercado. Ao contrário, o foco principal
desse ato produtivo da comunicação em saúde é o usuário participante, não o programa.
Os saberes técnicos aplicados na realização dos programas, desde a pauta, passando
pela pesquisa, a produção, a escolha das músicas, até sua gravação e edição, respeitam as
necessidades e as capacidades específicas de cada usuário participante. No projeto, ele
acaba descobrindo a forma mais adequada para expressar suas ideias, seus talentos, sua
sabedoria, suas opiniões, por meio do seu instrumento disponível na comunicação em
rádio. O jeito peculiar como cada um estrutura seu pensamento, em busca de expressá-lo,
é respeitado. A regra entre os participantes é não inibir, ou diminuir, ou não considerar
a expressão do outro, mas ao contrário, acolhê-la e qualificá-la da melhor forma possível,
uma vez que a consideramos única, sendo o valor de cada contribuição essencial para a
realização do todo, pois enriquece o conjunto simbólico heterogêneo formado em cada
programa finalizado.
A edição dos programas busca manter o resultado mais próximo possível das
gravações captadas, para que a expressão do loucutor não se perca pulverizada pela
tecnologia, que pode equalizar, recortar, interferir de tal modo, que a comunicação ali
produzida, interferiria na perda da sua originalidade, que denota o território singular
de produção e subjetividades: o campo da saúde mental . A grande preocupação com
uma plástica perfeita para os padrões radiofônicos poderia incidir num grave erro da
perda da originalidade da forma e do conteúdo ali expressados, o que poderia levar o
próprio loucutor a não se reconhecer com aquilo que produziu, ao ouvir o programa
editado. A busca feita pelo Maluco Beleza é de reconhecimento e identidade, por meio da
valorização da expressão singular de cada participante, que, ao apresentar os quadros do
programa, acaba por compor um mosaico revelador de uma identidade coletiva, plural,
que se revela a cada programa, cada um de uma forma diferenciada, pois os muitos
“eus” (Rolnik, 2007) que habitam em cada um dos usuários participantes também estão
em mutação e podem revelar as mais diversas facetas, em momentos distintos.
O projeto Maluco Beleza é uma experiência de um modo de ação de comunicação
aplicada à saúde mental por meio do uso do rádio como canal de expressão de conteúdos
de usuários da saúde mental, numa emissora educativa e pela rádio online, sob frequência
modulada e pela rede mundial de computadores, que veiculam as mensagens produzidas
por meio de ondas eletromagnéticas, pela web, utilizando-se dos aparatos tecnológicos
necessários.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil
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Esse processo de produção do programa captura saberes acumulados pelo mundo,
por meio das tecnologias e técnicas radiofônicas e jornalísticas, devora-os, numa dinâmica
antropofágica, como aponta Deleuze e Guatarri (1995). Ao devorar esses saberes, emprega
outros advindos do campo da saúde mental, tornando-se um novo meio de aplicabilidade
da comunicação como alternativa para a criação de novos sentidos de vida.
Percebemos que o processo de produção do programa Maluco Beleza se utiliza
de técnicas e tecnologias inerentes ao sistema de radiodifusão e à comunicação, no
sentido de dar formato para a expressão do pensamento produzido pelos participantes,
transformando o conteúdo numa radiorrevista mensal e conteúdos adequados para
veiculação tanto na emissora educativa, quanto na web rádio. A tecnologia empregada
prioriza a expressão dos usuários participantes, pois para cada fala há uma escuta que
considera e qualifica o que o outro traz para a cena. O projeto funciona de maneira
horizontal, permitindo que o participante protagonize a produção dos programas, a
partir dos seus desejos.
Esse projeto de comunicação no campo da saúde mental, em que o ato produtivo da
comunicação em saúde tem como produto o usuário participante, pode ser considerado
terapêutico ou terapeutizante? Em primeiro lugar, compreendamos que a ação terapêutica
pressupõe um diagnóstico. Todas as ações advindas de um projeto terapêutico visam a
eliminar os sintomas de um determinado diagnóstico. Enquanto que o que consideramos
terapeutizante possui um efeito terapêutico, mas como efeito secundário, pois ele não
é indicado, prescrito para isso.
Uma das principais participantes cartografada na pesquisa, por exemplo, participa
do projeto Maluco Beleza desde o ano de 2002. Inseriu-se no projeto sem prescrição
terapêutica, sem indicação médica. Veio participar do projeto porque achou interessante,
porque tinha talentos para comunicação e viu no projeto um meio de expressá-los. Depois
desses anos de participação no projeto, o Maluco Beleza possui um efeito valorativo para
a sua vida. Em julho e janeiro, quando o projeto faz uma pausa, ela diz, por exemplo,
vou tirar férias do Maluco Beleza. Tirar férias indica a característica teraupeutizante
do projeto. Nenhum usuário participante diz: vou tirar férias dos medicamentos.
Impossível. Os medicamentos estão prescritos de acordo com o seu diagnóstico e exigem
uso continuado. Mas com relação ao Projeto Maluco Beleza eles podem tirar férias, pois
é um modo de viver, e não um projeto terapêutico. O projeto nasceu dentro do contexto
de saúde mental, da reforma psiquiátrica, mas nem por isso é considerado terapêutico.
O terapêutico é uma ação tecnológica específica que visa a um tratamento, a uma cura.
Apesar disso, podemos encontrar várias ações terapêuticas que não são terapeutizantes,
como, historicamente, o uso da camisa de força, do eletrochoque; ou na atualidade, uma
ação terapêutica que indique uma mediação que não funcione adequadamente. Por outro
lado, existem muitas ações terapeutizantes, sem que sejam terapêuticas, como um passeio,
uma ida ao cinema, o dançar num baile, entre outros. Essas ações não foram prescritas,
mas podem fazer um bem muito grande na vida dos usuários. O Maluco Beleza pode
ser terapêutico se for prescrito por um profissional, mas ainda, possui potencialidades
ampliadas que vão além e podem trazer sentidos terapeutizantes. Se o projeto Maluco
Beleza fosse reduzido somente a um projeto terapêutico, poderia não funcionar. Tal
prescrição poderia não ser positiva.
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A abordagem e a ação do terapêutico e do terapeutizante são diferentes. Citemos
outro exemplo: um usuário pode chegar ao grupo do Maluco Beleza e dizer que é um
cantor, mesmo que isso seja um delírio. Nesse grupo sua palavra terá validade e ele
será convidado a cantar uma música no programa. O usuário vai, grava e nunca mais
aparece. Vencido o seu delírio, o usuário percebe que nunca foi um cantor, que nem
canta tão bem assim, e não volta ao Maluco Beleza. Mas, naquele momento de curta
duração, o projeto pode ter sido importante para aquele usuário, que pôde se expresser:
foi terapeutizante para ele.
A ação terapêutica baseia-se no diagnóstico, prevendo a eliminação dos sintomas.
Por outro lado, o Projeto Maluco Beleza não prevê a eliminação dos sintomas, apesar
de eles poderem até diminuir por meio da participação do usuário no projeto, mas isso
nunca se sabe a priori. No projeto, só sabemos, a posteriori, se a comunicação funciona
ou não para aquele usuário, portanto é terapeutizante.
Os programas de rádio e todas as ações das quais ele se utiliza, seja o Ponto de
Cultura, as oficinas de capacitação, a veiculação na Rádio Educativa, a Rádio online; sejam
os eventos que produz ou de que participa, e até os passeios que realiza, são dispositivos
de encontro para aumentar as redes de conexão dos participantes, de busca de novos
sentidos de vida, de novas (re)significações para existência do usuário participante, de
sua trajetória, despertado por meio do emprego da comunicação no contexto de reforma
psiquiátrica. O objetivo da comunicação terapeutizante é produzir mais vida, mais redes
de conexão, mais plasticidade das redes, transformando sua estética de viver.
Como exemplo, pode-se notar na vida de uma das participantes do projeto
cartografada na pesquisa que, a partir de sua participação no Maluco Beleza abriramse muitas outras redes de conexão em sua vida, que ainda não estavam acionadas. Hoje
essa participante tem uma plasticidade maior de conexões, pois transita pelo Ponto
de Cultura, faz conexões com ouvintes da rádio online, com os outros produtores da
rádio online, com os entrevistados dos programas da Educativa e online, estabelece
conexões com outras instituições que convidado para proferir palestras, faz conexões
com os ouvintes de suas palestras, faz conexões com a militância do Movimento da
Luta Antimanicomial, com o movimento cultural da cidade, com outras instituições
de direitos humanos, com a mídia. Torna-se um referencial de fonte para os veículos
de comunicação, faz conexões com os colegas que estão em tratamento mental na
instituição em que se encontra como também com usuários de outras instituições
psiquiátricas, pois transita mais facilmente entre eles, tornando-se reconhecida pelo
projeto de comunicação em rádio. Faz conexões com os profissionais da saúde mental,
estabelece uma relação de amizade com muitos funcionários, instaurando, inclusive,
uma conexão diferenciada com a própria médica psiquiatra, a qual possui o telefone
celular e a considera uma amiga.
O efeito terapeutizante não está restrito às medicinas, mas, sim, às relações, no
modo como a vida se produz, nas opções ético-políticas do que a vida significa para
nós. A vida deve produzir vida no processo das relações que se fazem no cotidiano,
que vão dando sentido à trajetória das pessoas. Quanto maiores as redes de conexão,
maior plasticidade e sentido de vida podemos possuir.
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A comunicação em rádio e web rádio como dispositivos terapeutizantes para pessoas em tratamento mental no Brasil
Reginaldo Moreira
REFERÊNCIAS:
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, Volume 1, Magia e Técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COELHO NETO, Armando. Rádio Comunitária não é crime, direito de antena: o espectro eletromagnético como bem difuso. São Paulo: Ícone, 2002.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix; Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol 1. São Paulo:
Ed. 34, 1995, tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa.
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
FOCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 2003.
MERHY, Emerson Elias. O conhecer militante do sujeito implicado: o desafio em reconhecê-lo
como saber válido. In: Túlio Batista Franco; Marco Aurélio de Anselmo Peres; Marlene
Madalena Possan Foschiera et al. Acolher Chapecó: uma experiência de mudança do modelo
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2004.
PASSOS, Benedito da Cruz. Retrospécto da Vida do Sanatório Dr. Cândido Ferreira (Ex-Hospital
de Dementes de Campinas). Campinas, Empresa Gráfica e Editora Palmeiras Ltda, 1975.
ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto
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TURINO. Célio. Ponto de Cultura: o Brasil de baixo pra cima. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010.
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Webrádios de comunidades migrantes:
práticas transacionais, cidadania global e as TICs
Webradios of migrant communities:
transnational practices, global citizenship and the ICTs
M o h a mm e d E l H a jj i 1
J o ã o Pa u l o M a l e r b a 2
Resumo: O fenômeno migratório atual experimenta excepcional intensificação.
Além das causas sociais, econômicas e políticas, contribuem fatores tecnológicos
e simbólico-subjetivos. O desejo e a necessidade de produção de narrativa
própria, que auxilie na manutenção dos vínculos do migrante para com a
comunidade de origem e de diáspora, encontram amparo em recursos midiáticos
inovadores, agrupados sob a noção de ‘webdiáspora’. Dentre eles, destacamos as
webrádios comunitárias dos grupos migrantes – objeto do presente estudo, no
afã de apreender algumas das modalidades de organização das comunidades
migrantes, suas estratégias de conquista de cidadania global e de atuação
nos espaços transnacionais. O que significa ser migrante e de que modo tal
condição leva a buscar um lugar próprio de produção de sentido, mobilização e
negociação do poder simbólico, superando e desconstruindo noções de cidadania,
pertencimento etc.? Temos hoje uma indissociabilidade do fenômeno migratório
das TICs. Tendo como baliza o estudo de caso de webrádios de comunidades
migrantes, buscamos evidenciar as potencialidades e os limites da webdiáspora
para a democratização dos meios e os desafios teóricos e conceituais que tais
mudanças representam para os estudos de comunicação comunitária.
Palavras-Chave: Webrádios comunitárias. Comunicação Comunitária. TICs.
Abstract: The current migration phenomenon has experiencing outstanding
intensification. Beyond its social, economic and political reasons, there are
technological, symbolic and subjective issues influencing it. The will and the
need of producing its own narrative in order to help the conservation of its ties
with its original and diaspora communities are finding support in innovative
media initiatives, clustered under the notion of ‘webdiaspora’. Among them,
we highlight the webradios of migrant communities – object of our study,
where we intend to apprehend some of the modes of organization of migrants
communities, its strategies for acquiring global citizenship and its actuation in
transnational spaces. What does it mean to be a migrant? How this condition does
1. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ (com pós-doutorado pela UNISINOS); professor Associado
da ECO-UFRJ e do PPGCOM da UFRJ; [email protected].
2. Doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ; mestre pelo PPGCOM da UFRJ; joaopaulorj@yahoo.
com.br.
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Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs
Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba
induce them to achieve their own place of production of meaning, mobilization
and negotiation of symbolic power in order to overcome and deconstruct
notions like citizenship, belonging etc.? There is an inseparability between the
migration phenomenon and ICTs. Through the study of webradios of migrant
communities we intend to evidence the potential and weaknesses of webdiaspora
to the democratization of communication and the conceptual and theoretical
challenges for the community communication studies.
Keywords: Community webradios. Community Communication. ICTs.
1. MIGRANTES
S MIGRAÇÕES são constitutivas da experiência civilizacional e até existencial
A
da espécie humana: não somos migrantes por opção, mas sim por natureza. A
própria epopeia humana iniciou-se no impulso de ampliar seus horizontes espaciais e mentais, multiplicar suas possibilidades de vencer as adversidades do espaço e
do tempo e dar forma e sentido à sua jornada real e imaginada (ELHAJJI, 2012).
Migrações, transumâncias, peregrinações, mobilidade em geral e deslocamentos
de todo tipo refletem a propensão humana em conhecer, descobrir, ir ao encontro do
desconhecido, compartilhar com o diferente... comunicar, em suma. Mas, se desde as
origens da sociedade humana não há como dissociar o fato migratório do ato comunicativo, com a chegada da modernidade a relação já íntima se tornou francamente
simbiótica. Sendo a noção de comunicação aqui entendida em suas acepções materiais
e simbólicas: meios de transporte, de aceleração da produção, de controle social e de
difusão e troca de ideias.
Trata-se de uma reconfiguração radical que não poupou nenhum dos aspectos da
vida em sociedade, nos planos locais, regionais, nacionais e globais. Além das consequências sociais, terá também efeitos de ordem subjetiva e psicológica sobre o indivíduo
moderno, ampliando sua capacidade autorreflexiva e reforçando a vontade de autonomia
e liberdade.
No nível macrossociológico, os séculos XIX e XX registraram contínuos deslocamentos populacionais rumo ao centro e às regiões mais ricas do planeta. As migrações
humanas chegaram ao seu ápice, entrando numa fase de planejamento e administração
verdadeiramente industriais, espelhando as técnicas de produção em massa, os ideais do
fordismo e dos meios de comunicação de massa. Porém, é no plano micro e molecular e/
ou a partir de perspectivas sociológicas de proximidade que se pode realmente acessar
os registros subjetivos do fenômeno – aqueles que traduzem com maior fidelidade a
realidade e vivência imediata do ator principal do fato migratório: o migrante.
Mas o que é um migrante? Não há dúvida que a essência do sujeito migrante
reside, antes de tudo na sua estrangeiridade. Além da constatação jurídica que define a
situação legal do imigrante a partir de sua condição negativa de não nacional, há de se
concordar que são a diferença, a alteridade e a externalidade do forasteiro que servem
de indicadores e parâmetros para situá-lo e lhe dar sentido aos olhos da sociedade na
qual se encontra e dos grupos majoritários e/ou hegemônicos que o cercam: o estrangeiro
é “o exterior e contrário” da sociedade e grupos dominantes (SIMMEL, 2005, p. 265).
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Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs
Mohammed ElHajji • João Paulo Malerba
O migrante se revela, então, um perfeito reflexo diferencial da maioria e ‘normalidade’;
um catalisador da diferença da / na estrangeiridade e da própria diferença, até então
despercebida, daqueles que se colocam ou se veem como norma ou medida. A presença
do estrangeiro tem esse potencial de provocar no observador estranheza e estranhamento;
seja de modo positivo: maravilhamento e fascínio ou negativo: repulsa e medo.
A estrangeiridade, enquanto signo e sintoma, tem o mérito de anular as fantasias
de absolutismo e indiferença do sujeito central e nele insuflar o germe do relativismo
crítico: “a diferença desse rosto revela um paroxismo que qualquer rosto deveria revelar
ao olhar atento: a inexistência da banalidade entre os seres humanos” (KRISTEVA,
1994, p. 12). Do amor ao ódio, a presença do estrangeiro nos obriga a mostrar a nossa
verdadeira natureza e revelar nosso modo verdadeiro de encarar o mundo.
2. MINORIAS
Em regra geral, os migrantes são minoritários; quantitativamente menores com
relação aos grupos nacionais, étnicos ou culturais que dominam numérica e politicamente
a sociedade de acolhimento. Debilidade ou precariedade quantitativa que resulta,
muitas vezes, em condição e/ou estatuto social e político de subalternidade. O que, não
raramente, resulta em diversas formas de discriminação, racismo, xenofobia, opressão
ou estigmatização do grupo minoritário e seus membros.
As minorias, segundo Appadurai (2009), são uma categoria social e demográfica
recente, “essencialmente vinculadas a ideias sobre nação, população, representação e
enumeração, que não têm mais de que alguns séculos de idade” e se deve ao aprimoramento contemporâneo das “técnicas de contar e classificar e de participação política”
intrínsecas a época moderna (p. 45). A figura minoritária do migrante corresponde, de
certo modo, à noção de “pequeno número”, proposta por Appadurai e que se refere a
formas contemporâneas de negativação simbólica de grupos indesejados da sociedade,
a fim de positivar a totalidade da comunidade.
Mas, a “pequenez” do número não se reduz ao seu aspecto formal, quantitativo
e concreto. A minoria, segundo Sodré (in PAIVA e BARBALHO, 2005), se caracteriza,
dentre outros aspectos, por sua vulnerabilidade jurídico-social, na medida em que o
grupo minoritário, tal como é o caso dos migrantes, “não é institucionalizado pelas
regras do ordenamento jurídico-social vigente” (p. 13). Do ponto de vista jurídico, o
termo estrangeiro designa o indivíduo ou conjunto de indivíduos que, embora estejam
vivendo num determinado Estado, “não pertencem ao círculo daquelas pessoas que
possuem a nacionalidade desse Estado”. Trata-se, portanto, de um referencial negativo.
Estatuto jurídico e social excepcional do migrante, apontado por Sayad (1998) como
principal fonte das discriminações e injustiças por ele sofridas. Condição de não nacional
que frisa o estado de não sujeito ou sujeito mínimo, dotado de direitos mínimos, no
limite do não humano; apenas o necessário para garantir a sua sobrevivência imediata,
sem dignidade ou expectativas a médio ou longo prazo. “Um imigrante só tem razão
de ser no modo do provisório e com a condição de que se conforme ao que se espera
dele”. (1998, p. 55) As consequências desse estado, todavia, não se limitam ao campo
político administrativo; pelo contrário. Trata-se, na verdade, de um longo trabalho
de despojo do sujeito migrante de sua própria humanidade, subjetividade e direito
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Webrádios de comunidades migrantes: práticas transacionais, cidadania global e as TICs
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à dignidade que se dá de modo gradativo e através de uma complexa engrenagem
retórica e simbólica.
Mezzadra (2012), por sua vez, considera as migrações enquanto movimento social
global que não pode ser dissociado do conjunto de movimentos sociais que ocorrem
pelo planeta. Radicalizando a dimensão autonomista da multidão, ele refuta as
abordagens vitimizantes da figura do migrante; antes, ele adota o princípio de produção
de subjetividade no capitalismo como perspectiva metodológica e conceitual. Assim,
paralelamente aos dispositivos de dominação e exploração da nossa fase do capitalismo,
novas práticas de emancipação e igualdade são experimentadas.
O próprio princípio de cidadania, entendido pelas abordagens clássicas enquanto
estatuto jurídico formal, é reinterpretado na perspectiva autonomista a partir de seus
atributos combativos. A mobilização social, política e cultural dos migrantes é considerada, em si, como uma ação cidadã concreta e prática, fundada no supremo “direito
de reivindicar direitos” (p. 28). Ação que acaba transformando, na prática, as noções de
democracia e cidadania, e transbordando os limites do Estado-nação, para se inscrever na
tradição humanista que não dissocia o ideal democrático dos direitos humanos universais.
Além da vulnerabilidade jurídico-social, já exposta, Sodré (2005) qualifica os grupos
minoritários pela sua identidade incompleta ou não reconhecida, a obrigação de travar
lutas contra-hegemônicas e a necessidade de se organizar discursivamente para negociar
seus status social político e simbólico. Luta e organização que se dão, hoje, principalmente
nos espaços midiáticos, em torno e em função dos meios de comunicação. O que nos
leva à questão da comunidade e da comunicação comunitária – de modo geral e no caso
específico das migrações transnacionais.
3. DAS COMUNIDADES TRANSNACIONAIS À WEBDIÁSPORA
No Brasil, duas autoras em especial têm trazido valiosas contribuições ao debate em
torno da questão comunitária. Para Peruzzo (2002), os grupos sociais humanos precisam,
para serem definidos enquanto comunidades, preencher alguns requisitos de ordem objetiva e subjetiva, tais como a existência, no seu âmbito, de uma cultura comum; sentimento
de pertencimento; objetivos comuns, identidade natural e espontânea entre os interesses
dos seus membros; relações e interações significativas; a participação ativa na vida da
comunidade; uma língua comum; um território comum, etc. (PERUZZO et al, 2002).
Já Paiva (2003), apreende a comunidade enquanto instrumento de transformação
social e de autonomização dos grupos minoritários ou marginalizados. Ao mesmo tempo em que considera a comunidade, na sua forma original e tradicional, incompatível
com os regimes de consumismo e individualismo que predominam em nossa época,
Paiva enfatiza a sua pregnância semiótica mobilizadora. Meio de resgate da cidadania,
a comunidade precisa, antes, se reinventar para se adequar ao quadro social e político
atual; notadamente através de sua ação comunicativa, indissociável da própria organização comunitária.
Na verdade, comunidade e comunicação remetem à mesma raiz etimológica e apontam para o mesmo horizonte filosófico. Comunicar, formar uma comunidade ou entrar
em comunhão implicam no mesmo gesto existencial de troca, partilha, participação,
contribuição, aproximação e vinculação. Uma comunidade é, portanto, uma comunidade
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de sentidos, o lugar (físico / territorial ou simbólico / imaginário) onde é produzido,
veiculado e compartilhado o sentido comum ao corpo do grupo na sua totalidade reflexiva. Se a comunicação é um processo de produção de sentido, a comunidade é o locus
em que esse sentido é construído, transmitido, trocado, codificado e decodificado.
Assim, há de lembrar que, dentre as principais atribuições de natureza social e
política intrínsecas à comunicação comunitária está, em primeiro lugar, o seu caráter
discursivo responsável pela enunciação e manutenção da identidade do grupo ao qual
pertence. No entanto, o discurso (identitário, político e social) que atravessa os meios de
comunicação comunitários não é destinado exclusivamente às estruturas organizacionais do grupo, nem é recebido apenas por seus membros. Pelo contrário, as instâncias
sociais e políticas extracomunitárias são igualmente alvo da mídia comunitária. Não há
dúvida, pois, que um dos principais objetivos da comunicação comunitária é permitir
aos membros da comunidade de se expressarem e participarem dos debates políticos
que ocorrem dentro da esfera pública, no afã de fazer ouvir as suas vozes e fazer valer
seus pontos de vista.
No caso específico das comunidades migrantes, o espaço migratório não pode ser
reduzido à sua dimensão física tradicional: o espaço migratório se destaca, antes, pela
multiplicidade dos modos de sua ‘produção’ social e simbólica (LEFEVBRE, 1974) e a
natureza intrinsecamente multiterritorial tanto da sociabilidade como da subjetividade
do migrante.
Territórios que podem ser tanto reais e materiais como também ou apenas subjetivos,
imaginários e existenciais (Cf. GUATTARI, 1992), produzidos a partir dos processos e
dispositivos de enunciação da identidade coletiva do grupo ou comunidade. O que
significa, em primeiro lugar, que a cartografia deste espaço não corresponde fielmente a
um determinado ‘espaço social nacional’, nem pode se restringir a seus recortes estatais
nacionais conhecidos e/ou suas instâncias político-administrativamente reconhecidas.
Dois conceitos são centrais para essa discussão: transnacionalismo e sociedade
em rede. Conforme já desenvolvido em estudos anteriores, acreditamos que a ideia
de transnacionalismo deve ser examinada à luz das recentes transformações históricas responsáveis pela reconfiguração do conjunto das paisagens sociopolíticas da
nossa época. Nossa definição do conceito remete aos modos de organização e ação das
comunidades humanas inseridas em mais de um quadro social nacional estatal, tendo referenciais culturais, territoriais e/ou linguísticos originais comuns, e conectadas
através de redes sociais transnacionais que garantem algum grau de solidariedade ou
identificação além das fronteiras formais de seus respectivos países de destino. Trata-se,
portanto, de um fenômeno ‘pós-estado-nacional’ inerente à realidade social e política
que caracteriza o mundo contemporâneo, sendo a diversidade cultural e identitária, os
pluripertencimentos, a multiterritorialidade e as formações diaspóricas cada vez mais
a norma (ELHAJJI, 2013a).
A característica mais importante desse quadro acima descrito é, todavia, a
centralidade dos processos e tecnologias de comunicação na sua ordenação; efetivando
modalidades culturais e modos de enunciação identitários propriamente transnacionais.
Com o barateamento e a popularização das tecnologias de comunicação e, ao mesmo
tempo a sua sofisticação, ampliação de seu campo de ação, aumento de sua acessibilidade,
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banalização de seu manuseio e sua definitiva universalização, se pode notar que a maioria
das comunidades diaspóricas espalhadas pelo mundo dispõem de um impressionante
arsenal de meios de comunicação comunitária – tanto local como transnacional.
Consequentemente, ainda que não seja regra absoluta, as composições identitárias
diaspóricas tendem a se reformular e se afirmar cada vez mais numa perspectiva
propriamente transnacional.
Se, originalmente, a noção de ‘diáspora’ remetia à ‘dispersão dos judeus ao longo dos
séculos’, hoje, seu uso é admitido para traduzir a realidade social, cultural e política de
“qualquer pessoa ou população étnica que abandona a pátria tradicional da sua etnia,
estando dispersa por outras partes do mundo (OIM, 2009, p.18)”. Coincidindo com o
aumento do poder da internet, no fim dos anos 1990, a questão da diáspora desencadeou o
desenvolvimento de uma ampla literatura cada vez mais voltada para as relações tecidas
pelas comunidades de migrantes através das TICs. O que vai acabar configurando, ao
longo da década, o conceito de ‘webdiáspora’.
Hoje, aceitam-se como sinônimos de ‘webdiáspora’, noções como ‘e-diáspora’, ‘web
diaspórica’, ‘diáspora networks’, ‘diáspora digital’, entre outras. Entretanto, pondera
Claire Scopsi (2009, p.91) que “a publicação de sites por membros de uma comunidade
transnacional não pode ser vista como um critério único de classificação de webdiáspora,
(...) critérios de coesão e reivindicação identitária nos ajudam a sair desse ciclo vicioso”.
Assim, ela propõe como definição da ‘webdiáspora’, referências claras a:
Sites produzidos pelas comunidades transnacionais a partir de um dos lugares de dispersão,
organizados em torno de um ou mais elementos culturais compartilhados (língua, religião,
etnia), destinado explicitamente a membros da comunidade espalhados pelo mundo pela
migração e, eventualmente, à população que se manteve na terra natal, contribuindo para
a consciência de uma ligação identitária, sua afirmação pública e sua implementação por
ações de reivindicação, representação e desenvolvimento econômico e cultural em benefício
de seus membros (SCOPSI, 2009, p.92).
Em termos práticos, se pode definir a webdiáspora a partir da reapropriação das
TICs pelos imigrantes e os usos sociais e subjetivos delas decorrentes.
4. ONDAS COMUNITÁRIAS
A década de 1980 é a que marca a redemocratização no Brasil. Depois de mais de 20
anos de ditadura militar, a luta pela volta de eleições diretas e o processo constituinte
foram importantes elementos de fortalecimento da sociedade civil brasileira. Destaca-se
aí o protagonismo da comunicação popular (cf. BARBOSA, 2013). É essa mesma década
que marca a consolidação de um movimento nacional e internacional de organização
e apoio à luta das rádios comunitárias. É que a maioria dos países – inclusive o Brasil
– não previa em suas legislações qualquer reserva de espectro para a radiodifusão não
comercial ou não estatal de baixa potência. Com isso, iniciou-se um processo – ainda em
curso – de fechamento sistemático de rádios sem outorga, muitas vezes com truculência
policial e violação de direitos civis.
No Brasil, esse movimento culminou na legalização das rádios comunitárias em
fevereiro de 1998, em meio a um governo neoliberal e fruto de um Congresso zeloso
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pelo tema: dos parlamentares membros da Comissão de Comunicação, Tecnologia
e Informática, responsável pela aprovação do projeto de lei que regulamentaria a
radiodifusão comunitária no Brasil, 70% eram donos ou tinham interesses indiretos
em empresas de rádio e televisão. (COSTA E HERMANN JUNIOR, 2002). O resultado foi
uma lei que limita o pleno desenvolvimento das comunitárias legalizadas, hoje 4.6413 em
todo o país. Um estudo nosso (MALERBA, 2012), demonstra que, dentre todos os países
da América do Sul, o Brasil tem a lei mais restritiva de radiodifusão comunitária no que
concerne: definição legal das rádios comunitárias, potência e alcance de transmissão,
reserva de espectro, possibilidades de sustentabilidade e prazo de outorga. Um elemento
importante para a presente análise é o próprio entendimento de rádio comunitária
em nossa legislação: ao estabelecer logo em seu primeiro artigo que o funcionamento
da emissora está restrito “ao atendimento de determinada comunidade de um bairro
e/ou vila”, a lei atende somente comunidades geográficas excluindo as chamadas
comunidades de interesse, reconhecida em leis congêneres de países vizinhos como
Argentina, Equador e Uruguai. Tal restrição é reforçada com a potência de transmissão
limitada a 25 watts de potência e em FM (modulação típica para transmissões locais).
Com isso, no Brasil, comunidades etnolinguísticas e migrantes que não se conformam
em comunidades geográficas ficam impedidas de constituir meios eletrônicos próprios
de comunicação. De acordo com os princípios de universalidade de meios e sujeitos
estabelecidos no Sistema Interamericano de Direitos Humanos para o exercício do
direito à liberdade de expressão, tais limitações configuram uma violação de direitos
em que setores sociais estão privados de aceder a todos os meios possíveis de expressão
e informação. Além disso, a elevada burocracia e a ineficiência do Estado em conceder
outorgas arrastam muitas rádios comunitárias para a ilegalidade. De acordo com os
dados levantados pela ONG Artigo 19 relativos a 2011, durante um período de quatro
anos, o Ministério das Comunicações acumulou 11.842 processos pendentes para análise,
dando conta de somente 30% dos casos (5.322 de um total de 17.164) (ARTIGO 19, AMARC
e MNRC, 2013). Com isso, a espera pela outorga pode chegar a 10 anos. A outra face
desse processo é o fechamento permanente de rádios sem outorga e condenação de
seus comunicadores populares, cifra que ultrapassa sistematicamente o número de
concessões (cf. idem).
Porém, sob ausências legais, leis restritivas ou favoráveis, em todo o mundo, as
rádios comunitárias seguem relevantes na luta pelos direitos humanos, em geral, e pelo
direito à comunicação, em particular. Além do mais, inauguram um novo capítulo, ao
acompanharem a tendência geral de hibridização, digitalização e convergência midiática.
5. DO HERTZ AOS BITS
Com a digitalização e a irreversível tendência de hibridação e convergência midiática, aquele que é considerado o primeiro meio eletrônico de comunicação verdadeiramente
massivo passa hoje por um interessante (novo) processo de reinvenção de suas técnicas
e ampliação de suas potencialidades. Para permanecer relevante e inovador, o rádio
vai incorporando técnicas, adapta sua linguagem e inaugura possibilidades no diálogo
3. Dados obtidos no site do Ministério das Comunicações, última atualização em 30.09.2014.
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com outras mídias. O resultado tem sido a ampliação de sua presença, tornando-se um
veículo cada vez mais híbrido. Por conta de espaço e foco, iremos destacar três transformações que afetam mais diretamente as rádios comunitárias (e a própria Comunicação
Comunitária): a digitalização do rádio, o surgimento dos podcasts e as webrádios.
O chamado rádio digital faz uso do espectro eletromagnético (da mesma forma
que o chamado rádio analógico, o que tradicionalmente conhecemos) para, através
de ondas eletromagnéticas, transmitir informação audiofônica (e outras) em sinais
digitais (bits). Entre as muitas vantagens dessa tecnologia destacam-se: a possibilidade
de melhoria da qualidade do som (rádio FM com qualidade de CD e rádio AM com
qualidade de FM); a incorporação de serviços adicionais, como imagens e textos a partir
de letreiros digitais nos receptores, com informações como notícias, previsão do tempo
e publicidade, o que implica; possibilidades de novos modelos de negócios e maior
participação no mercado publicitário; dependendo do modelo e do marco regulatório
correspondente, há um uso mais eficiente do espectro, o que poderia favorecer a
pluralidade de emissoras, ampliando a participação de rádios comunitárias, educativas,
associativas, comerciais etc.; possibilidade de interatividade; menor consumo de energia
elétrica; e; possibilidade de multiprogramação (mais de uma estação transmitindo na
mesma frequência do dial).
Mas o que parece um mar de vantagens esconde custos, disputas políticas, comerciais e industriais, além da difícil mudança no hábito do receptor. Para adequar-se a
digitalização do rádio as emissoras têm de mudar seus equipamentos de transmissão.
Da mesma forma, para escutar uma emissão de rádio digital é necessário ter um aparelho receptor de sinais digitais. Tanto na transmissão quanto na recepção, os custos
dependerão muito do modelo que se adote em cada país e também o desenvolvimento
da indústria local. Em 2005, o Brasil iniciou os primeiros testes com dois dos quatro
modelos existentes: a escolha está entre o europeu DRM (Digital Radio Mondiale) e
o americano HD Radio\IBOC (High Definition Radio/In-Band-On-Channell). Porém,
entre idas e vindas, passados 10 anos desde os primeiros testes, até hoje não se encontrou definição.
Para as rádios comunitárias brasileiras, o rádio digital apresenta possibilidades e
muitos riscos. Como já foi dito, com o melhor aproveitamento do dial, o hoje reduzido
espaço para as comunitárias (um canal por região, ou seja, cerca de 2% do total) poderia
ser ampliado sem a desculpa da escassez de espectro. Por outro lado, como afirma
Arthur William, membro da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC
Brasil) e integrante do Conselho Consultivo do Rádio Digital, “como não há permissão
para publicidade do comércio local e fundo público para financiamento das rádios, as
comunitárias não têm condições de se digitalizarem. Os equipamentos de transmissão
são caros e, sem mecanismos de sustentabilidade, será impossível uma migração
tecnológica para essas estações” (2013). Além disso, há incompatibilidade tanto dos testes
realizados pelo Ministério das Comunicações quanto nos próprios padrões em disputa
com a realidade legal atual das rádios comunitárias. Como foi dito, a Lei 9.612 estabelece
25 Watts de potência: “como no digital a potência é bem menor que a analógica, ruídos
urbanos podem gerar um verdadeiro ‘apagão’ das rádios comunitárias que já operam
em muita baixa potência nas transmissões analógicas”.
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Criado em 2004, também chamado de audiocast (PRADO, 2008), o podcast é uma
modalidade assincrônica (emissor e receptor não compartilham a simultaneidade
da emissão e recepção) de radiodifusão sob demanda, cujo nome resulta da junção
da expressão public on demand + casting. Tratam-se de programas radiofônicos, de
diferentes gêneros (jornalísticos, artísticos, musicais, científicos etc.), normalmente
gravados em formato mp3 para serem facilmente baixados da internet e escutados
em mp3 players, celulares ou mesmo no computador à escolha do receptor. O uso é
majoritariamente amador, mas mesmo as estações de rádio aderiram, oferecendo em
seus sites programas específicos de suas grades em formato de podcast.
Quanto ao nosso tema, é interessante notar podcasts de temática ligada aos direitos
humanos profusamente encontrados na rede. Na maioria das vezes, tratam-se de
iniciativas individuais e pontuais de ativistas (ou seja, iniciativas não comunitárias,
na acepção usual do termo), mas não são incomuns rádios comunitárias hertzianas
e webrádios comunitárias que já disponibilizam parte da sua programação sob essa
modalidade. Vemos aí interessantes tensionamentos sobre o entendimento clássico
de rádio comunitária, ao mesmo tempo em que presenciamos seu dinamismo em
acompanhar as inovações tecnológicas com inovações sociais.
Tensionamento similar presenciamos numa modalidade de rádio existente desde
o início da popularização da internet, em meados da década de 1990: as webrádios.
6. RADIOSCOPIA DO RADIOWEBCOMUNITARISMO
Webrádios, rádios virtuais, e-radio, rádio via internet, rádio online: diferentes
denominações para o serviço de transmissão de áudio via internet com a tecnologia
streaming gerando áudio em tempo real. Assim como no rádio hertziano, aos ouvintes
se apresenta uma programação continuada (sem a possibilidade de pausa ou replay),
o que diferencia a webrádio do podcasting (que envolve download e não streaming).
A transmissão é ao vivo, sincrônica, em caráter mundial, mas o sinal das emissoras é
transmitido por quaisquer que sejam as formas de conexão à internet.
As primeiras webrádios datam do início da popularização da internet, em meados
dos anos 90. Segundo a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert),
os internautas dispunham, já em setembro de 1997, de 29 rádios virtuais nacionais
(KISCHINHEVSKY, 2007, p. 78). Desde então o seu crescimento tem sido exponencial.
O que atinge também as rádios comerciais que buscam a abrangência da web: em 2012,
84,1% das comerciais hertzianas brasileiras já transmitiam seus programas pela internet4.
Ainda não temos números atualizados sobre a utilização da webrádio por rádios
comunitárias brasileiras5. Em 20066, realizamos uma pesquisa com 100 emissoras
no intuito de aferir o nível de apropriação das novas tecnologias. Naquele momento,
4. Disponível em http://www.telesintese.com.br/sem-padrao-digital-definido-radios-usam-internet-parasobreviver/. Acesso em 19.3.2014.
5. Esse é um dos objetivos de nossa pesquisa de doutoramento intitulada Rádios comunitárias no limite,
que analisa as recentes transformações sociais, políticas e tecnológicas por que tem passados as rádios
comunitárias brasileiras, com o apoio do CNPq. Uma pesquisa quantitativa com 100 rádios comunitárias
(de diversos tipos) e uma pesquisa qualitativa com 10 emissoras pretende, entre outros objetivos, averiguar
o nível de apropriação tecnológica (e suas inovações técnicas e sociais) desses atores sociais.
6. Cf. Malerba, 2006.
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verificamos que quase um quarto (23%) afirmava já transmitir on-line e 67% declaravam a
intenção de fazer tal uso da Internet (somente 5% acreditavam não haver importância em
transmitir via web): ou seja, 90% das emissoras em questão já transmitiam ou pretendiam
transmitir on-line. Em 2005, a professora Cicília Peruzzo realizou com 94 emissoras
que disponibilizavam site na internet (2005, p. 2). Ao fim da análise, conclui-se que a
presença das rádios comunitárias na internet ainda é modesta, sem um “apoderamento
total da tecnologia digital, de modo a usufruir todos os recursos que ela oferece” (p.
14). A entrada tímida, mas promissora das rádios comunitárias no mundo virtual se
figura como uma ampliação da cidadania através do exercício do direito humano à
comunicação e inaugura mais uma alternativa de as rádios comunitárias driblarem
restrições legais através das possibilidades tecnológicas contemporâneas. A autora afirma
também que a pesquisa revelou que a maioria das emissoras analisadas evidencia fortes
laços comunitários com suas localidades de origem, apesar de os maiores beneficiários
de tal apropriação serem os próprios realizadores de tais iniciativas.
Num primeiro momento, apesar de tecnicamente simples, manter uma webrádio no
ar era algo caro: é preciso pagar uma taxa mensal a um servidor de streaming dedicado,
cujo valor depende da qualidade de transmissão e da quantidade de ouvintes simultâneos.
Normalmente a emissora estabelece um teto máximo e, passado esse número, o ouvinte
seguinte não consegue acessar a webrádio. Primeiramente, é preciso destacar que esse
valor caiu expressivamente nos últimos anos. Além disso, em se tratando de nosso foco
de análise, há projetos com o intuito de democratizar a comunicação que fornecem
gratuitamente o serviço de servidor dedicado.7
Quanto às suas características, a webrádio coloca em xeque alguns dos pressupostos
clássicos do veículo rádio: 1) Trata-se de um meio essencialmente desterritorializado e não
massivo: o webrádio tem, potencialmente, audiência mundial e seu público tende a
atender mais a uma comunidade de interesse que a uma comunidade geográfica; 2) atende
um público bastante segmentado; 3) Ampliação da interatividade; 4) convergência midiática; 5)
Permite a recepção a partir de qualquer parte do mundo: ligado a sua desterritorialidade, tal
característica pode beneficiar diretamente populações migrantes ou demais comunidades
de interesse fisicamente dispersas; 6) Desregulamentação: enquanto que para realizar
legalmente o serviço de radiodifusão sonora é necessário obter uma concessão do Estado,
qualquer pessoa pode ter uma rádio pela internet, sem burocracia ou constrangimento
legal. Há um eminente potencial democratizante na webrádio.
A webrádio se apresenta como uma alternativa viável para uma série de atores
sociais que se sentem excluídos do cenário midiático e que encontram dificuldades para
acessar legalmente as outorgas de radiodifusão. Como já tivemos a oportunidade de
analisar em outros momentos (MALERBA, 2013, 2012, 2009), há uma série de restrições
na atual lei brasileira de radiodifusão comunitária que, entre outras coisas, dificulta
seu acesso por comunidades de interesse e mesmo comunidades geográficas de grande
extensão:
7. É o caso do Projeto Dissonante (http://www.dissonante.org), uma iniciativa de estudantes e entusiastas
do rádio livre da Universidade de Brasília. Surgido em 2007, trata-se de um braço de ação do Programa
de Extensão Comunicação Comunitária (FAC/UnB) ainda que gerido por um coletivo que atua de forma
colaborativa e voluntária. Tem como foco facilitar que rádios comunitárias, organizações sociais, grupos
de ativistas etc., ou seja, coletivos acedam ao serviço de webradiodifusão.
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1) Lei vinculada à comunidade territorial. Como foi tratado no tópico 4, o serviço de
radiodifusão comunitária no Brasil está direcionado para comunidades geográficas, o
que se reforça com a limitação de 25 watts de potência e transmissão exclusivamente em
FM. Isso exclui uma série de atores coletivos, como migrantes e demais comunidades
de interesse que se organizam para além do território;
2) Impossibilidade de estrangeiros acederem ao espectro eletromagnético. Somente
“brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos” podem ser dirigentes de
rádios comunitárias. Retomando a discussão empreendida no tópico 2, sob a pretensa
proteção dos interesses nacionais, tal limitação acaba por avigorar o estatuto social e
político de subalternidade do migrante;
3) Obrigatoriedade do Português nas emissoras. Existem previsões sobre a veiculação
de conteúdos em português nas concessões de radiodifusão (Norma de Acessibilidade e
alguns contratos para a prestação do serviço entre emissoras e União), o que virtualmente
impede comunidades migrantes de acederem integralmente sua língua originária nas
ondas hertzianas. Há aqui toda uma discussão sobre a artificialidade da ideia de nação,
reforçada pela língua;
4) Restrições de financiamento. As rádios comunitárias estão impedidas de realizar
qualquer tipo de publicidade comercial, mesmo que seu retorno seja para a própria emissora
(tendo em vista que, por princípio, são entidades sem fins de lucro), apenas podendo
aceder apoio cultural e doações. Ora, isso atinge o calcanhar de Aquiles das comunitárias,
normalmente direcionadas a grupos social, política e economicamente desfavorecidos.
No caso de comunidades migrantes vemos a dificuldades de autofinanciamento para
um grupo normalmente estigmatizado e com carências econômicas.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente às dificuldades para se obter uma outorga, às restrições acima expostas da
radiodifusão comunitária hertziana e às incertezas do futuro do rádio digital no Brasil,
possibilidades tecnológicas radiofônicas como a webrádio e o podcast oferecem-se como
alternativas para comunidades excluídas pelo cenário atual. No caso das comunidades
migrantes, rompem-se as próprias limitações técnicas que impedem o alcance necessário
para seus membros que se encontram (normalmente) dispersos geograficamente, além
de darem conta de uma maior abrangência de atores e espaços (geográficos, simbólicos,
políticos) interessantes de serem sincronizados com suas lutas. A perspectiva da transnacionalidade e da disputa por uma cidadania global veem aqui um horizonte de ação.
Por outro lado, vislumbram-se desafios inéditos para a área de estudo da comunicação
comunitária e para a própria luta pelo direito humano à comunicação, um dos elementos
centrais para os meios ditos comunitários. Tal guinada tecnológica tem um impacto
profundo sobre o futuro e identidade das rádios comunitárias e da comunicação
comunitária em geral. Uma das consequências diretas é o próprio questionamento da
noção de indispensabilidade do elemento espacial e territorial, considerado uma condição
se ne qua non para a existência e sobrevivência das comunidades e da comunicação
comunitária. Tanto fica difícil considerar o conceito de comunidade e de seus meios
de comunicação em uma perspectiva exclusivamente espacial e local, quanto há de se
considerar o surgimento de comunidades transnacionais e diaspóricas que já não se
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reconhecem em um único quadro social, político e afetivo. É preciso, então, conjugar
as duas constatações anteriores ao fato essencial e fundamental que é a convergência
dos meios de comunicação.
Outro elemento é que webrádios e podcasts muitas vezes são o resultado de
determinação e de iniciativas pessoais de indivíduos isolados, e não, como é geralmente
o caso nas rádios comunitárias tradicionais, a consequência de decisões institucionais
tomadas por instâncias representativas. Da nossa parte, acreditamos que a característica
individual destas ações, todavia, não deve ser interpretada enquanto indicador de
declínio ou enfraquecimento do espírito comunitário, mas sim como fato revelador do
potencial de empoderamento (empowerment) político e social do sujeito comunicante,
inerente às novas tecnologias. De todo modo, isso não impede o risco de personalismos
e impedimentos participativos como já vimos acontecer nas comunitárias hertzianas.
Para os estudos de comunicação comunitária apresenta-se o desafio de dar conta
de objetos novos ao escopo inicial de seus estudos: manter a perspectiva crítica, mas
aberta para iniciativas pontuais e inovadoras, porém de viés cidadão. Para tal, vemos
a necessidade de buscar novos e renovar antigos marcos conceituais para dar conta
desse novo ambiente.
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Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos
sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas”
Disire and Sexuality: Imperatives Representative
on Black Women in “Sexo e as Negas”
E m a n u e l ly S i lva F a l q u e t o 1
Resumo: As representações são construções estruturadas sobre a realidade, por
mais que sejam fidedignas portam apenas efeitos de verdade. As produções
audiovisuais midiáticas mesmo diante do avanço técnico das câmeras,
por permitirem capturar as imagens idênticas, também são construções
representativas, pois, estão sendo enquadradas conforme a perspectiva e objetivos
de quem estão produzindo aquele vídeo. Partindo dessas discussões propomos
a investigação sobre o vídeo de divulgação do seriado “Sexo e as Negas” que
veiculou no canal da Rede Globo de Televisão nas primeiras semanas do mês de
setembro deste ano. Para analisar e avaliar as representações midiáticas sobre as
mulheres negras, buscando identificar os sentidos e os estereótipos contidos no
discurso do vídeo. Ancorados nos pensamentos que problematizam a questão
das representações midiáticas audiovisuais, encontramos no objeto de análise
construções representativas sobre as mulheres negras que apontam para uma
sexualidade e desejo exacerbados.
Palavras-Chave: Representações Audiovisuais. Estereótiopo. Análise Televisual.
Mulher Negra.
Abstract: The representations are structured constructions of reality, even if
they are reliable only carry real effects.The media audiovisual productions in
the face of technical progress, for enabled capture images identical to what we
see, are also representative buildings, because that images are being framed
as the perspective and objectives of those who are producing that video. From
these discussions we propose the investigation of the video to promote the show
“Sexo e as Negas” that aired on channel Globo TV on first weeks of September
in this year. To analyze and evaluate the media representations of black women,
searching to identify the meanings and stereotypes contained in the speech in
the video. Anchored in the thoughts that question the issue of audiovisual media
representations, we find in the object of analysis representation buildings about
black women pointing to an sexuality and exacerbated desire
Keywords: Audiovisual representations. Stereotype. Televisual Analysis. Black
woman.
1. Mestranda no Programa de Pós-Graduação Comunicação Midiática da Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (UNESP) sob orientação do professor Dr. Murilo Cesar Soares. E-mail: manufalqueto@
gmail.com.
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Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas”
Emanuelly Silva Falqueto
INTRODUÇÃO
STAMOS EM meio ao “regime de visibilidade” (BECKER, 2012), as imagens estão
E
enraizadas nas nossas vidas, nas nossas relações e cada dia ocupam mais espaços,
nos fornecendo significados sobre uma diversidade de assuntos, e estabelecendo
formas de comunicação. O pesquisador Jesús Martín-Barbero (1999, p.17) argumenta
que os “(...) latino-americanos estão se incorporando à modernidade não através do
livro, mas a partir dos discursos e narrativas, dos conhecimentos e da linguagem, da
indústria e da experiência audiovisual”.
E, apesar de os veículos de comunicação se apresentar como “transmissores da
realidade social” (ALSINA, 2009, p.9), eles mediam a realidade, selecionando os acontecimentos a serem veiculados para nos fornecerem discursos sobre aquilo que nos
afeta pessoal, local e internacionalmente. Por vezes os veículos de comunicação são os
primeiros fornecedores de referenciais, noções, ou seja, representações para podermos
formular nossos significados sobre assuntos que não temos acesso direto. A partir das
representações que nos circundam, interpretamos e elaboramos nossos significados que
são construídos guiados por nossa bagagem de vida e cultural. “O conhecimento nunca
é reflexo ou espelho da realidade, é sempre uma tradução, seguida de uma reconstrução”
(BECKER, 2012, p.235).
Não é somente das coisas que nunca tivemos a chance de entrar em contato diretamente que a mídia nos apresenta informações, mas também a respeito das coisas e
pessoas que conhecemos, até sobre nós mesmos, sobre as noções de corpo, do significado
de homem e mulher. Por isso, propomos a investigação das representações midiáticas veiculadas sobre a mulher negra na nossa sociedade a partir da análise do teaser
audiovisual do seriado “Sexo e as Negas”, produzido e transmitido pela Rede Globo de
televisão. O teaser é uma peça promocional de algum produto que ainda não foi lançando, feito para divulgar e criar uma expectativa no público a fim de que ele compre,
assista ou se interesse. No caso, analisaremos o teaser de divulgação do seriado “Sexo
e as Negas”. O programa estreou no dia 16 de setembro de 2014 e contou a história de
quatro personagens negras, Zulma, Lia, Tilde e Soraia, moradoras da Cidade Alta de
Cordovil, subúrbio do Rio de Janeiro pela perspectiva narrativa da personagem Jesuína,
branca, que é dona de um bar freqüentado pelas quatro mulheres.
O interesse em pesquisar o vídeo promocional do seriado para observar as representações midiáticas e suas construções de significados sobre a mulher negra deveu-se
a polêmica de quando os teaser foram veiculados no início de setembro de 2014 nos
intervalos comerciais da programação da Rede Globo para convocar os telespectadores
a assistirem o seriado que estrearia. Antes mesmo da exibição do primeiro episódio,
movimentos contra racismo e discriminação postaram em blogs, sites e perfis de redes
sociais digitais denúncias sobre o caráter preconceituoso da produção audiovisual. Todo
esse cenário despertou a vontade de compreender e desvelar as mensagens explícitas e
latentes contidas nesta produção audiovisual. Para tanto selecionamos aleatoriamente
um desses vídeos de promoção que foram lançados.
Os objetivos desse trabalho foram levantar o debate crítico sobre a mediação realizada pelos veículos de comunicação audiovisuais com representações sobre as mulheres negras brasileiras, problematizando as ideologias, as mensagens, os preconceitos
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Emanuelly Silva Falqueto
presentes nessas representações. Para tanto amparamos nosso trabalho nos pensamentos
sobre a as representações visuais e audiovisuais midiáticas como construções baseadas
na realidade com efeitos de verdade que contem sentidos direcionados.
A forma de analisar o produto audiovisual foi guiada pelo percurso estabelecido
por Becker (2012) composto de três etapas: a primeira a descrição do objeto de estudo; a
segunda a Análise televisual com o processamento quantitativo e qualitativo dos dados
audiovisuais; e, por fim a interpretação dos resultados. “Esta opção metodológica procura dar conta das etapas de descrição do objeto de estudo, de uma análise quantitativa
e qualitativa dos formatos e dos conteúdos de relatos jornalísticos e de outros gêneros
que utilizam a linguagem audiovisual” (...) (BECKER, 2012, p.240).
A fase da Análise televisual quantitativa foi realizada por meio da observação de
seis categorias: a estrutura do texto onde descrevemos o formato, o estilo de narração,
a duração do produto audiovisual e seu contexto de produção e distribuição; a categoria temática para apresentarmos os conteúdos e os temas abordados; a categoria dos
enunciadores onde observamos os diálogos, os depoimentos as várias vozes trazidas
pelo produto audiovisual; a visualidade que “(...) permite considerar as instâncias cênico-visuais e a maneira como são constituídos os cenários, os figurinos e os recursos gráficos
e multimídia etc.” (BECKER, 2012, p.243); os aspectos do som identificando as trilhas,
ruídos que integram a narrativa audiovisual; e, a categoria da edição para percebermos
como foi feita a montagem da produção audiovisual.
Na fase qualitativa da análise televisual são considerados três aspectos: a fragmentação da produção observando a duração do vídeo em relação ao aprofundamento e a
superficialidade no tratamento dos temas; a dramatização para procurarmos desvendar
o caráter dramático usado para envolver emocionalmente o telespectador; e a definição
de identidades e valores que “(...) permite conhecer as marcas enunciativas da narrativa
audiovisual referentes aos valores atribuídos a problemas e conflitos locais e globais e
os modos como são julgados e qualificados” (BECKER, 2012, p.244).
REPRESENTAÇÕES E ESTEREÓTIPOS
As mediações realizadas pela mídia são representações. Os discursos midiáticos
são representações da realidade, onde o emissor (o veículo de comunicação) tenta representar algo da forma mais fidedigna, então, o receptor (telespectador, leitor, audiência)
lida com as mensagens transmitidas desvendando-a segundo suas práticas significantes construídas ao longo dos discursos vivenciados. “O único sentimento que alguém
pode ter acerca de um evento que ele não vivenciou é o sentimento provocado por sua
imagem mental daquele evento” (LIPPMANN, 2008, p.29). As representações realizadas
pela mídia acabam criando novas representações baseadas no mundo sensível. Mesmo
sendo éticas e coerentes, as representações, como Santos (2008) elucida são recriações
de determinados conteúdo:
[...] todo ato comunicacional pode ser definido com uma forma de recriação de uma dada
realidade captada por aqueles que se comunicam, a partir de seus próprios conceitos e
preconceitos. Quando alguém formula e transmite uma mensagem, uma informação, faz
um recorte da realidade e a recria de acordo com seus princípios. (Santos, 2008, p.16)
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Soares (2009) analisa as representações, colocando que elas “(...) fazem parte do
ambiente cultural em que se dão o pensamento, julgamento e ações dos seres humanos”
(p. 26). As representações fornecidas pela mediação dos meios de comunicação contêm
sentidos embutidos que podem nos revelar construções significativas além do que está
evidente. “A representação feita pela mídia da realidade vão muito além da própria
realidade que se pode perceber” (ALSINA, 2009, p.129). Então, cabe perguntarmos qual
o sentido que tendem as representações do produto audiovisual em questão?
Lembrando que é necessário um esforço interpretativo para decodificar os textos,
e consciência que esta analise é uma visão, outras análises com outros instrumentos
investigativos teórico-metodológicos podem nos mostrar outros resultados, “(...) não
extrairemos representações acabadas, mas possibilidades de significação, ou seja, possibilidades de leitura dos enunciados e das visualidades (...)” (BECKER, 2012, p.238).
Assim, não negligenciarmos a complexidade dos processos comunicativos e suas relações
com os componentes histórico-sociais, “(...) precisamos considerar que os fenômenos de
mídia se encontram em permanente mudança, ensejando o aparecimento contínuo de
problemas e exigências cada vez mais variados e complexos (...)” (RÜDIGER, 2009, p.53).
Dessa maneira buscamos desvendar as representações midiáticas para não encararmos como natural algo que é construído. Pois, existem representações concebidas para
simbolizar categorias/classes inteiras, como por exemplo, de determinados tipos humanos, determinados grupos étnico e seus costumes, que empregam conceitos generalizados, baseadas em crenças pré-concebidas. Lippman (2008) considera tais representações
como estereótipos, por serem elaboradas julgando um todo por meio de generalizações
baseadas em cima da visão de uma parte
Todas estas generalizações são tiradas de amostras, mas as amostras são selecionadas por
um método que estatisticamente é totalmente não confiável. (...) A tendência da mente casual
é pegar ou achar por acaso uma amostra que confirme ou desafie seus preconceitos, e então
fazê-la representativa de toda uma classe. (p.141)
O estereotipo é uma falsificação que emerge diante da complexidade de trazer à tona
todas as nuances e diversidades do mundo e dos seres humanos. “Estou argumentando
que o padrão dos estereótipos no centro de nossos códigos determina largamente que
grupo dos fatos nós veremos, e sob que luz nós o enxergaremos” (LIPPMANN, 2008,
p.120). Por isso, na análise procuraremos interpretar nosso objeto de estudo considerando as características estereotipadas sobre mulher negra. As representações trazem
textos que evocam diversos sentidos podendo enfatizar diferenças e similaridades. E,
conforme viemos argumentando até o momento “(...) a veiculação das representações
pelos meios de comunicação têm um inegável impacto destes na construção social dos
significados partilhados (...)” (SOARES, 2009, p.7).
REPRESENTAÇÕES AUDIOVISUAIS
Apesar do caráter aparentemente objetivo das imagens, durante muito tempo acreditou-se que as inovações técnicas permitiram a captura de um pedaço da realidade/
verdade através das fotografias e dos vídeos, mas as imagens também são representações,
“(...) não são conjuntos de símbolos com significados inequívocos, como o são as cifras:
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não são ‘denotativas’. Imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo
(...)” (FLUSSER, 2002, p.8). Como representações são produto da mediação, o que inclui
a seleção de certos elementos em detrimento de outros. Por mais que as construções
imagéticas representativas tenham efeitos de verdade dependendo dos objetivos dos
enunciadores as
(...) imagens não falam por si sós, mas expressam e dialogam constantemente com modos de
vida típicos da sociedade que as produz. Nesse diálogo elas se referem a questões culturais
e políticas fundamentais, expressando a diversidade de grupos e ideologias presentes em
determinados momentos históricos (Novaes, 2005, p. 110).
Empregando os recursos expressivos, como imagem em movimento, som, edição,
grafismos, linguagens verbais, que os vídeos conseguem contar sua história. Cada elemento usado integra o sentido do texto audiovisual. Machado (2011) nos orienta para
considerarmos os processos de escrita que constroem representações nos produtos
audiovisuais, pois, o vídeo é “(...) para ser encarado como um sistema de expressão
pelo qual é possível forjar discursos sobre o real (e sobre o irreal). Em outras palavras,
o caráter textual, o caráter de escritura do vídeo, sobrepõe-se lentamente à sua função
mais elementar de registro” (p.173). Assim, cabe seguir o processo de interpretarmos
os significados apresentados pelas representações audiovisuais “(...) desvendando suas
características enunciativas, seus modos de construir sentidos, inclusive porque, nas
sociedades contemporâneas, a competência comunicativa passa por um domínio dos
códigos audiovisuais” (BECKER, 2012, p.235).
DESCRIÇÃO DO OBJETO DE ANÁLISE
O teaser é um recurso publicitário que tem entre suas características e funções uma
duração curta e o objetivo de fornecer ao telespectador a noção geral sobre o que será
abordado no programa, série, jornal ou qualquer outra produção audiovisual. O teaser
em questão veiculou nas primeiras semanas do mês de setembro do ano de 2014, para
divulgar, apresentar e simultaneamente convidar o público a assistir o seriado “Sexo e
as Negas” da Rede Globo.
A peça inicia apresentando uma área com prédios, que nos lembra os conjuntos
habitacionais, por meio de um grande plano geral, aquele que temos uma visão panorâmica, depois, vai aproximando até chegar a uma rua que está entre aqueles prédios
mostrados na primeira imagem. Nesta primeira sequência vamos do geral para o particular através do uso dos planos. Além da iluminação, com a presença de tons amarelos
e laranjas ser similar a luz do pôr-do-sol. Então, tem-se a imagem de quatros mulheres
negras, vestidas com roupas coloridas e curtas e inicia a narração que apresenta cada
uma das personagens.
A narração é feita por uma voz masculina e diz: “Estas quatro amigas querem tudo
de melhor...”, enquanto isso é narrado aparece uma sequência de imagens das personagens: sendo beijada na mão, um homem puxando outra personagem para junto de seu
corpo e outra beijando veemente um homem, essas cenas são cortadas conforme o ritmo
da trilha sonora, uma espécie de batida. Então, a narração retorna e diz “diversão” e
mostra o rosto de uma personagem e surge sobre a imagem a palavra Tilde, o nome dela.
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O fundo dessa imagem foi saturado para ficar na cor roxa o que confere mais destaque
ao rosto da personagem. Em seguida aparece a personagem Tilde falando “Eu não posso
ficar fugindo de você todo o tempo” para um homem que a olha.
A narração retorna com a imagem de outro rosto em close-up, a personagem é Soraia,
há repetição do fundo da imagem em roxo e o nome Soraia aparece escrito sobreposto
na imagem. A narração é a seguinte: “Gente falando bem”, depois corta para imagens
desta personagem abraçando e beijando outro homem contra uma parede, demonstrando
desejo. A próxima cena mostra os dois, Soraia e o homem, se olhando, então, ela diz
“Gosta tanto do meu cabelo assim?”. E, segue a ação: ele tentando beijá-la, ela se afasta,
ele sai da cena e ela vai atrás dele.
A sequência seguinte é a imagem em close-up com fundo na cor roxa da terceira personagem, Zulma, enquanto o narrador diz “um cara bacana”. Corta para a personagem
falando para um homem que pode ser algum parente ou conhecido, por estar sentado
e ser o primeiro homem que aparece distante do corpo da personagem, ele se vira para
olhá-la quando ela fala “Eu vou arrumar um homem possível pra mim”. A próxima
cena é ela em um ambiente escuro olhando e gesticulando diretamente para a câmera.
Corta para a introdução da última personagem que é mostrada dançando com um
homem e a narração diz: “Se não for pedir demais”. Corta para imagem da personagem
andando apressada enquanto o homem a segue tentando acompanhá-la e pergunta “Que
pressa é essa?”, ao que ela responde: “Desculpa, tenho que resolver um problema”. Esse
cenário que a personagem está andando é um corredor com vários casais se beijando
encostados em ambas as paredes. Então, aparece a imagem close-up do rosto dela, também com o fundo na cor roxa e o texto que é o nome da personagem (Lia) enquanto
o narrador diz: “uma boa pegada”. Seguida pela cena do homem que estava atrás da
personagem a colocando contra a parede e dizendo “Também tenho um problema que
eu tenho que resolver” e a beija. A sequência finaliza com uma criança vestida de pijama
que se aproxima da personagem Lia, e diz “Vó?”, e o homem que a estava beijando se
afasta e fala com espanto na voz: “Vó!”.
A trilha sonora começa cantando “Nega, agora é...” sobre o plano geral em panorâmica dos prédios que apareceram na primeira imagem do vídeo, só que agora está
de noite. Então, sobre a imagem de outro plano geral que mostra uma rua e a cidade
também de noite, a narração retorna e a trilha sonora tem seu volume diminuído,
falando “Agora é tudo...”. Corta para close-up que trás um quadril feminino dançando
e requebrando e o narrador repete “Agora é tudo...”. Corta para o rosto de uma das
personagens, Lia, que está colado com o rosto de um homem enquanto dançam e o
narrador fala “... do jeito delas”. Segue a imagem da personagem Soraia apontando o
dedo para um homem e dizendo “Se liga que agora o papo é reto”. Então, retorna para
o enquadramento mostrando as quatro personagens em pé uma ao lado da outra, com
outra voz masculina narrando “Vem aí”. Corta para uma imagem de um homem sem
camisa dentro de um carro segurando e beijando a perna de uma mulher. Então, mostra
um fundo rosa com logomarca do título do seriado “Sexo e as Negas” e um segundo
narrador diz o nome do programa. Corta para a imagem da personagem Soraia falando: “Agora eu quero é ser feliz”. Finaliza com um fundo branco com a logomarca da
Rede Globo em rosa.
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ANÁLISE TELEVISUAL QUANTITATIVA
Considerando a categoria da estrutura do texto observamos que o vídeo tem duração de 40 segundos, contem elementos dinâmicos, abusando de cortes rápidos que
combinam perfeitamente com o ritmo ditado pela trilha sonora tanto música quanto os
efeitos sonoros. O vídeo inicia ambientando o local onde acontece a ação, e conforme
mostra a rotina ou como o narrador diz o que desejam as personagens vai aproximando
as imagens do ambiente e das personagens usando enquadramentos mais próximos.
A narração é intercalada com ações das personagens para mostrar o que é mencionado. O tom de voz e o estilo de narrar é descontraído, com a interpretação das
emoções que as palavras evocam, por exemplo, na hora que diz “Uma boa pegada” a
voz transforma-se trazendo força e vontade/desejo para a entonação.
Para a análise temática criamos categorias conforme a recorrência de assuntos
similares, próximos e/ou idênticos, agrupando os conteúdos em: Desejo associado ao
querer relacionamentos, beijos, sexo aparecem doze vezes menção a esses temas; outro
grupo estruturado em torno da ideia de querer homens para namorar mencionado dez
vezes; a categoria diversão, festa, baile e dança é mostrada oito vezes; e a questão da
família e amizade figura quatro vezes. Consideramos para o agrupamento as imagens,
as palavras que apareciam, as falas das personagens, os textos narrados e a trilha musical. Interessante notar que as três primeiras categorias do desejo sexual, do desejo por
homens e da diversão aparecem juntas, na mesma cena.
Na análise dos enunciadores, ou seja, a observação das vozes, diálogos presentes e
ausentes identificamos a ausência de uma narradora feminina, o produto têm apenas
dois narradores homens apesar de ser um programa sobre mulheres. E, ao aplicarmos
a categoria da visualidade observamos que as personagens vestem roupas coloridas e
curtas na maioria das vezes; a paleta de cores trabalhada nos cenários, figurinos, é composta por cores quentes como laranja, amarelo, vermelho, rosa, dourado, roxo, bronze.
Ainda destacando a visualidade do vídeo percebemos que tirando os dois segundos
iniciais, a ação se passa toda em cenários com pouca iluminação, escuros e de noite, o que
dificulta enxergarmos as personagens por elas terem a pele negra, portanto, fundem-se
com as áreas escuras das imagens.
Os elementos sonoros do vídeo foram todos estruturados de forma sincrônica com
as imagens, os cortes as mudanças de expressão e conteúdo do teaser. Foi um processo
de elaboração meticuloso a construção da trilha sonora por meio de uma edição que
não deixou escapar nada sem o uso do som, seja como fundo musical ou efeitos sonoros,
tudo casado para enfatizar as expressões e ações da narrativa. Concluindo percebemos
que o vídeo foi editado de forma a chamar a atenção. A edição priorizou pelo movimento e dinamismo, pois, em 40 segundos de vídeo temos 46 cortes o que dá mais de um
corte por segundo, a montagem da trilha sonora também acompanha essa velocidade.
Gerando uma peça audiovisual dinâmica, atrativa que explorou os recursos das cores,
movimentos e com uma narrativa estruturada em torno do nome do seriado.
ANÁLISE TELEVISUAL QUALITATIVA
Na observação do princípio da enunciação dramática vemos que o caráter ficcional
é explícito no texto audiovisual, pois, a apresentação do conteúdo não segue a forma
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tradicional que notícias e matérias são apresentadas pelos telejornais com o apresentador aparecendo por trás do balcão sentado ou de pé. Apesar da informação do produto
ser um seriado aparecer apenas no final do vídeo a produção inicia com imagens e
movimentos de câmera que não são típicos da linguagem audiovisual do jornalismo e
emprega uma trilha sonora com um ritmo animado.
O processo usado para envolver o telespectador com o enredo é trabalhado desde
as primeiras cenas. Pois, o vídeo inicia fornecendo a vista panorâmica de um conjunto
de prédios faz um movimento de aproximação, e a imagem seguinte é uma parte desses
prédios, outro movimento de câmera que nos leva para mais perto, e vemos uma rua
com carros, motos e pessoas andando, então, teremos um plano conjunto mostrando
dos pés a cabeças as quatro personagens uma do lado da outra, assim seguem imagens
delas com homens em um plano próximo onde vemos parte da cintura para cima até
chegarmos a aproximação total o close-up dos rostos de cada uma.
Essa edição e planos de câmera foram usados conjugados com a trilha sonora para
tentar trazer, chamar a atenção, do telespectador para a história o que acaba reforçando o
aspecto da dramatização através trilha sonora com seus picos e acelerações reforça a sensação de movimento para as imagens. A construção da narrativa deste texto audiovisual
é organizada com início, meio e fim. O início mostrando o lugar e dizendo que ali vivem
quatro amigas. O meio trazendo a afirmação que as quatro amigas querem tudo de melhor
da vida e aparecendo imagens delas se envolvendo ou querendo relacionamentos amorosos, esta parte é marcada pela apresentação das personagens. Então, temos o clímax que
é estruturado em torno do desejo sexual das personagens, o clímax é quando uma ação
interrompe o percurso crescente para inserir um entrave a obtenção do objeto de querer/
desejo, no caso, o objeto de querer é o sexo. As imagens a princípio mostram todas junto
com homens, nos levando a acreditar que elas conseguirão obter seu objeto de desejo,
mas a sequência da personagem Lia sendo beijada e a neta aparecendo para literalmente
“quebrar o clima” entre ela e o homem que a beijava, rompe a narrativa do vídeo. E, para
encerrar o enredo do teaser, temos a apresentação do nome do seriado seguida por uma
cena de sexo dentro de um veículo e a fala indicando que as personagens querem mesmo
é ser feliz, através da cena final da personagem Soraia dizendo isso.
No princípio enunciativo da definição de identidades constatamos como valores
almejados pelas personagens o desejo associado ao sexo e a diversão. Antes mesmo de
mostrar quem eram as personagens do seriado, temos a narração falando que quatro
amigas querem tudo de melhor na vida, e simultâneo a essa narração vemos imagens
de duas mulheres sendo beijadas, a primeira na mão e a segunda na boca, e uma outra
mulher sendo puxada por um homem para perto de seu corpo. Levando-nos a concluir
que o que representa querer tudo de bom para a vida é querer o acontece nas imagens,
deixando evidente o querer (desejo) sexo.
A ideia de diversão também é associada ao desejo por ter um homem, como mostra
a sequência de apresentação da personagem Tilde. A narração depois de dizer no início
“Essas quatro amigas querem tudo de melhor da vida...”, retorna sobre a imagem desta
personagem dizendo “... diversão” concomitante aparece a personagem falando para
um homem – em um ambiente que nos lembra uma festa/baile – que não pode ficar
fugindo dele o tempo todo. E, se a pessoa não quer fugir de algo significa que ela não
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deseja ficar longe, e o contrário de ficar longe é ficar perto, portanto depois da menção
da palavra diversão, aparece uma mulher dizendo que não pode ficar fugindo de um
homem, podemos relacionar ao sentido de diversão apresentado nesta parte da narrativa
do teaser como ficar perto de um homem.
E por fim, os temas abordados são desejo associado ao querer sexo, beijos, diversão
e ter um homem por perto. Mas, notamos que as cenas que trazem esses temas os apresentam como relacionados, nos indicando que se o desejo por sexo, homem e diversão,
por estarem sendo mostrados juntos, significa que a diversão é satisfeita tendo os outros
objetos referidos: o sexo, os beijos e homem por perto.
REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA AUDIOVISUAL DAS MULHERES NEGRAS
Agora podemos depreender algumas representações construídas acerca da mulher
negra. A primeira e mais notória é a que estabelece a mulher negra com um desejo sexual
exacerbado. Pois, se considerarmos a construção da narração dialogando com as cenas
das personagens, constatamos o destaque do desejo sexual por parte das mulheres
negras. Derivando desse desejo sexual por parte dessas personagens teremos a representação da mulher negra alegre, sempre com roupas coloridas, dançando e beijando.
Fortalecendo a noção do desejo sexual, afinal, a mulher negra está alegre por praticar
ações que podem levá-la ao ato sexual.
No vídeo analisado não há um momento que nos mostre alguma das personagens
trabalhando, ou conversando sobre outro assunto que não o desejo por sexo/relacionamento amorosos. Apesar de ser uma produção audiovisual de apenas 40 segundos,
há uma repetição que reforça e reitera a noção da mulher negra desejando sexo. São 46
imagens dentre as quais 21, ou seja, 45,6% do vídeo mostrando as personagens sendo
beijadas, abraçando, dançando com rosto e corpo colado a homens, ou fazendo referência
direta, como na cena sexo dentro do carro. Será que mesmo com o tempo reduzido, se
o vídeo teve a oportunidade de mostrar 21 cenas que remetem ao desejo por sexo, será
que não havia espaço para outros assuntos?
Tais representações dialogam com noções estereotipadas e preconceituosas construídas em torno da mulher negra ao longo da história do Brasil. Durante a escravidão,
as mulheres negras, por serem escravas, eram vistas como objetos para serem usufruídos pelos seus donos como nos fala Luciano Figueiredo, “(...) mulheres escravas elas
suportariam uma dupla exploração: sexual e econômica. A escravidão revelaria então
uma de suas faces mais perversas (2001, p.52).
A pesquisadora Rachel Soihet nos diz que as mulheres pobres do Brasil por não se
encaixarem no modelo de feminilidade brasileiro no século passado acabaram sendo
julgadas como mulheres que não mereciam o respeito de seus maridos e outros homens,
podendo sofrer violação do seu corpo e outras formas de violência por terem cometido
a indecência de saírem para trabalhar e algumas até ousando se defender de ofensas.
Elas não tinham autoridade sobre seus corpos. “Assim, permaneceriam as mulheres por
longo tempo sem poder dispor livremente de seu corpo, de sua sexualidade, violência
que se constituiu em fonte de múltiplas outras violências” (Soihet, 2001, p.390).
Considerando que o vídeo de divulgação do seriado “Sexo e as Negas” reforça o
estereotipo da mulher negra pobre, pois, os cenários são compatíveis com um local de
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moradia popular, os bailes apresentados são correspondentes ao bailes do estilo musical
funk característicos favelas do Rio de Janeiro, ou seja, nos indicando que as personagens
negras são pobres. Mas, o fato pejorativo de mostrar estas mulheres apenas considerando
seu desejo sexual pode ser interpretado sob outra perspectiva por apresentar mulheres
desejando sexo, quando no século passado sinônimo de mulher direita era mulher que
não sentisse prazer na relação sexual (PRIORE, 2001). Apesar, da maioria das cenas as
mulheres não serem portadoras da ação, apenas recebendo, pois, elas que estão sendo
beijadas, empurrada contra parede. As ações de tomar a iniciativa pelo princípio do
namoro/beijo/sexo, é do homem elas estão recebendo as ações dos homens, há uma
impressão ilusória de liberdade por mostrar as personagens querendo sexo quando no
passado isso era negado às mulheres, mas que é quebrada por não terem o poder da
ação, são submissas as ações dos homens que irão ou não realizar seus desejos.
E, como lembram Maria Izilda Matos e Rachel Soihet (2003), as mulheres negras
sempre foram vistas e associadas ao desejo e sensualidade, um exemplo disso foram a
representações das negras feitas pelos europeus, eram retratos de mulheres com tendência ao requebrado devido às danças praticadas dentro das senzalas pelos negros.
Portanto, o que poderia ser um mote de discussão para problematizar se nossa sociedade
ainda mantém os padrões de controle sobre a sexualidade e o prazer feminino é mais
uma reafirmação do estereotipo da mulher negra ser tipificada como hipersexualizada.
Para finalizar esses apontamentos iniciais sobre as representações do vídeo analisado, lembramos os sentidos contidos na expressão “negas” que evoca uma série de
significados pejorativos. A expressão “não sou tuas negas” normalmente empregada
para significar que a pessoa não quer ser tratada de maneira inferior ou com falta de
respeito. É uma ideia estruturada na escravidão, onde a negra podia e devia ser usada
como objeto para realização econômica e sexual ou como bem entendesse o escravocrata. Assim acaba-se resgatando um conceito mais discriminatório ainda, aquele que
difundia, inclusive através da religião, que os negros podiam ser escravizados, excluídos
dos direitos que todos os seres humanos tinham de liberdade, por terem a pele escura.
Portanto o adjetivo racista, “negas”, ao integrar o nome do seriado retoma todos esses
aspectos discriminatórios construídos historicamente.
APONTAMENTOS FINAIS
A analise aqui apresentada baseia-se apenas em um dos teaser de divulgação do
seriado “Sexo e as Negas”, produzido e veiculado na Rede Globo de Televisão. É apenas
uma amostra que foi tratada de forma qualitativa, e apresentou tantas representações
estereotipadas.Por isso, temos que estar atentos às representações midiáticas. Este é um
clamor que procuramos deixar nas conclusões deste trabalho. Pois, mesmo diante dos
novos espaços de fala advindos com a Internet, dando mais espaço para as manifestações das pessoas consumidoras dos produtos de comunicação. Ainda, temos discursos
repletos de signos e imagens preconceituosas sendo veiculados.
Não é perguntar qual representação é mais real, mas entender que algumas adquirem mais autoridade do óbvio, do senso comum, mas portando-se como extração da
realidade, de tal modo que se chega a esquecer seu status de representação, adquirindo
valores de verdade. Estamos em pleno século XXI, e nas mídias proliferam discursos
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
1076
Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas”
Emanuelly Silva Falqueto
sobre igualdade de gênero e racial, porém uma das maiores emissoras de televisão do
Brasil perpetua estereótipos que resgatam preconceitos e discriminações do tempo da
escravidão.
Comprometemo-nos com a leitura crítica dos produtos midiáticos é essencial para
colaborarmos com a construção de veículos de comunicação que promovam a cidadania
ao trazerem a diversidade e a pluralidade em suas representações. Afinal, analisar “(...)
como um grupo social é representado pode nos indicar o quanto esse grupo exercita
o poder; pode nos apontar quem mais frequentemente é ‘objeto’ ou é ‘sujeito de representação’” (LOURO, 2001, p.464-465).
As imagens, as representações audiovisuais estão em todos os lugares, os discursos
imagéticos estão presente e nos cercam com seus discursos repletos de sentidos. Portanto,
temos que ter o senso crítico, praticar pesquisas cientificas para desvendar as mensagens subliminares das representações, além de incentivar que a leitura crítica seja feita.
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1077
Desejo e Sexualidade: Imperativos Representativos sobre a Mulher Negra no “Sexo e as Negas”
Emanuelly Silva Falqueto
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
1078
Memórias em movimento: o vídeo comunitário
na fronteira entre realidade e representação
Memories in motion: the communitarian video in
the border between reality and representation
Juliana Oshim a Fr anco 1
Resumo: A investigação sobre as particularidades da imagem-som em movimento
reúne hoje um complexo arcabouço teórico marcado decisivamente pelas ideias de
realidade e representação. Sua natureza opaca ou transparente tem sido dilema
fundamental ao processo de desenvolvimento do audiovisual enquanto linguagem
artística e estratégia de representação, pondo em relevo sua importância cultural,
social e política. Tal dualidade também marcou o movimento do vídeo popular
e sua abertura ao vídeo comunitário contemporâneo, conceito que propõe novas
posturas e expectativas em relação ao potencial transformador do audiovisual.
Este artigo irá observar principalmente como, ao longo dessa passagem, o que
chamamos de posição fronteiriça entre realidade e representação se reafirma
enquanto traço singular do audiovisual, responsável por sua permanência e
sua força enquanto ferramenta estratégica de comunicação na atualidade. É
jogando com esse poder de tanto legitimar realidades, quanto construir discursos
e fabulações sobre o real, que o audiovisual se estabelece enquanto lugar de
processos colaborativos e experimentação de novas formas de interação social.
Palavras-Chave: Comunicação. Vídeo Comunitário. Vídeo Popular. Realidade.
Representação.
Abstract: The research on the particularities of image-sound in movement
brings together a complex theoretical framework decisively marked by the
ideas of reality and representation. Its opaque or transparent nature has been a
fundamental dilemma for the development of audiovisual as an artistic language
and a representation strategy, emphasizing its cultural, social and political
value. In Brazil, this duality also marked the popular video movement and its
openness to the contemporary communitarian video, a concept that proposes
new attitudes and expectations on the transforming potential of audiovisual.
This article will mainly observe how, over this passage, what we call a border
position between reality and representation will be revealed as a natural feature
of audiovisual, responsible for its permanence and its strength as a strategic tool
of communication. It is playing with this power to both legitimize realities and
build speeches and fables about the real, that the audiovisual is established as
a place of collaborative processes and new forms of social interaction.
Keywords: Communication. Communitarian Video. Popular Video. Reality.
Representation.
1. Jornalista, especialista em Comunicação Popular e Comunitária e mestre em Comunicação. É coordenadora
do curso de pós-graduação (lato sensu) em Linguagem Audiovisual e Cinema do UniCesumar, e também
professora colaboradora do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de
Maringá. E-mail: [email protected].
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
Juliana Oshima Franco
INTRODUÇÃO: AS TENSÕES ENTRE REALIDADE E REPRESENTAÇÃO
Qualquer estudo no campo da imagem se deparará, em algum momento, com
as ideias de realidade e de representação. As tensões entre estas duas noções têm
sido extremamente produtivas, e até determinantes para o desenvolvimento das
representações visuais, em especial da linguagem cinematográfica e audiovisual. Por
essas tensões, dispomos hoje de um importante acúmulo de propostas e experimentações
estéticas e discursivas, levadas a cabo por diferentes escolas e movimentos culturais e
políticos que, especialmente a partir do século XX, passaram a se apropriar da imagemsom em movimento para revelar e reinventar a forma como vemos e damos sentido às
coisas que vemos. Dos pré-cinemas aos pós-cinemas, ninguém passou incólume por
este debate (Machado, 1997; Xavier, 2005).
Entre presença e ausência, ciência e arte, real e imaginário, transparência e
opacidade, objetividade e subjetividade, não ficção e ficção, e tantos outros dilemas
possíveis, o cinema e todas as linguagens audiovisuais se fortaleceram, exercendo
imenso fascínio na sociedade moderna, e adquirindo cada vez mais poder e impacto
sobre os acontecimentos do mundo. Ao longo dos estudos da imagem, em especial no
campo do cinema e do audiovisual, boa parte dos fustigadores deste debate acabou por
assumir uma postura ou outra: ou defendendo seu objetivo realismo, ou denunciando
seu absoluto caráter de construção (representação). Mais recentemente, no entanto, a
questão passou a ganhar novos contornos: nem tantos esforços concentrados em eleger
uma ou outra vocação para o cinema ou o vídeo, e sim a necessidade de compreender
como essas suas duas potencialidades continuam sendo apropriadas e reativadas nas
estratégias de representação e expressão de quem os utiliza.
Em síntese, partimos do pressuposto que, como toda representação, o audiovisual
é tanto uma forma de registro, quanto um discurso, e não uma coisa ou outra. Ao
defendermos a posição fronteiriça entre realidade e representação como sua maior
especificidade, buscamos justamente observar que tal duplicidade é inerente a toda
imagem-som em movimento, e que mesmo a imagem mais realista carrega um ponto
de vista, assim como a imagem mais abstrata ou onírica busca estabelecer algum grau
de relação com isso que chamamos realidade. Em outras palavras, queremos justamente
demarcar, no emprego da palavra realidade, o aspecto objetivo e documental da imagem
audiovisual. E com representação, o caráter subjetivo, de construção simbólica que
coexiste nessas imagens. Não tratamos realidade e representação como termos opostos
ou excludentes, mas sim como ideias complementares que demarcam a coexistência de
aspectos objetivos e subjetivos em toda produção audiovisual, ou até, poderíamos dizer,
em todas as produções culturais e simbólicas2.
Tentamos trazer neste artigo um recorte da dissertação de mestrado (Franco,
2012) cujo objeto de estudo foi o projeto Roda Memória, iniciativa que, por meio da
realização de vídeo documentários com a participação de jovens de diferentes bairros
2. Temos consciência da complexidade que as ideias de realidade e representação colocam em termos
filosóficos e conceituais. Assim, remetemos ao importante trabalho de Berger e Luckmann (1985), para
os quais a compreensão disso que chamamos realidade passa pelo estudo das práticas comunicativas e
da produção de sentido delas decorrente, na medida em que o homem é um ser cuja sociabilidade está
diretamente vinculada à linguagem (e às representações, por conseguinte) como mediadora do mundo e
do conhecimento.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
Juliana Oshima Franco
de Londrina (PR), buscou valorizar memórias e histórias de vida, multiplicando olhares
sobre o passado da cidade. A pesquisa teve como motivação central compreender que
aspectos fazem do audiovisual uma ferramenta estratégica de representação de grupos
e comunidades diversas, investigando que traços desta linguagem poderiam estar
relacionados à sua crescente apropriação e disseminação na sociedade, em especial
no campo da comunicação comunitária. Ao longo do estudo, uma das etapas mais
importantes foi revisitar as discussões que marcaram o movimento do vídeo popular
no Brasil, e verificar que os dilemas que enfrentávamos na execução do projeto Roda
Memória a partir da vontade de “dar a voz ao outro”, tinham sido os mesmos a suscitar
o deslocamento do vídeo popular para o vídeo comunitário contemporâneo – passagem
igualmente marcada pelas tensões entre realidade e representação.
VÍDEO E DESCONSTRUÇÃO: A DESCOBERTA DE UMA VOCAÇÃO
Surgido em meados dos anos 1960, o vídeo3 parece ter sido projetado para
superar muitos dos impedimentos que faziam do cinema um meio de expressão para
poucos (seja por barreiras financeiras ou técnicas), demarcando a abertura de um novo
campo de expressão e experimentação no âmbito do audiovisual, que se seguiu às
inovações trazidas pelas câmeras 16 mm e Super-8 que, apesar de mais portáteis que
suas antecessoras, ainda se faziam reféns dos altos custos da produção em película.
Segundo Arlindo Machado (1997, pp.188-200), se inicialmente o vídeo assumiu uma
postura parasitária em relação a outros meios, especialmente ao cinema, suscitando
prognósticos fatalistas de que, junto à televisão, a imagem eletrônica poderia decretar
o fim da sétima arte, o que de fato pudemos observar foi que os diálogos entre cinema,
vídeo e televisão se mostraram muito mais profícuos e desafiadores para cada uma
das partes, estimulando a reinvenção de suas linguagens. Inicialmente envolto num
misto de expectativas de democratização dos meios de comunicação e desconfianças
sobre seu impacto sociocultural, o fenômeno do vídeo teria ganhado amplitude através
de movimentos como a nouvelle vague, o underground americano, o cinema novo e as
experimentações da videoarte, vindo a contar com importantes adeptos, nomes de
peso como Hitchcock, Godard, Fellini, Orson Welles, Scorsese e Rybczynski – apenas
alguns exemplos de cineastas que aproveitaram o fôlego criativo desta ferramenta para
experimentar e propor novos usos, formatos e estéticas.
Explorado por cineastas, publicitários, comunidades, artistas plásticos, jornalistas,
movimentos populares, universitários e tantos outros grupos e indivíduos, Machado
(1997) acredita que o vídeo conseguiu, ao extrapolar seu programa elementar de registro
documental da realidade (sua transparência), ganhar força como “sistema de expressão
pelo qual é possível forjar discursos sobre o real (e sobre o irreal)”. Seu surgimento teria
deflagrado uma verdadeira transformação perceptiva, “efeito de opacidade significante
a que muitos atribuem hoje um caráter apocalíptico”, como se ela “praticasse alguma
espécie de ‘desrealização’ do mundo visível” (p.209). O vídeo, na sua livre experimentação
3. O Betamax, da Sony, e o VHS (Video Home System), da JVC, foram os primeiros sistemas de gravação e
reprodução de áudio e vídeo lançados comercialmente entre as décadas de 1970 e 1980. A ideia de vídeo está
diretamente ligada a esses sistemas de matriz eletrônica e analógica, embora hoje abarque também os sistemas
digitais. Neste trabalho, consideramos vídeo um termo dinâmico, que designa tanto um produto audiovisual
quanto um processo de produção; tanto uma tecnologia, uma ferramenta, quanto um fenômeno cultural.
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
Juliana Oshima Franco
no terreno da manipulação do realismo de sua imagem, e revelando toda a magia por
traz de uma linguagem considerada até então inacessível, ganharia status de instrumento revolucionário. Os aparentes deméritos da imagem eletrônica em relação ao
cinema parecem não ter impedido que o vídeo se consolidasse como importante meio
de comunicação independente, uma vez que seu potencial enquanto ferramenta de
expressão versátil, de baixo custo e fácil operação sempre esteve acima do compromisso
com uma qualidade cinematográfica: a ideia de um instrumento “para todos”, em que
basta “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, sempre foi sua pedra de toque e um
de seus principais diferenciais.
As experiências em vídeo no Brasil comprovariam sua importante influência na
reconfiguração de padrões simbólicos consolidados, ao inserir práticas questionadoras
e autônomas num ambiente tipicamente formalista e perfeccionista, herdado do cinema.
Também tiveram grande impacto sobre a linguagem televisiva que, necessitando
reinventar-se, abriu-se para inovações e novas propostas estéticas que eram propostas
pelos videastas, e que buscavam questionar as convenções de representação e os modelos
iconográficos tradicionais, intervir criticamente na realidade do país e experimentar
novas formas de produção audiovisual (Machado, 2001). Para o autor, o vídeo teria
se consagrado, assim, como plataforma expressiva cuja vocação está amalgamada à
ideia de desconstruir: verdades, modelos, mitos, representações, discursos e padrões de
produção. E ao fazer a síntese da mais intensa experimentação vanguardista com a mais
arraigada representação realista, teria dissolvido as fronteiras entre imagens técnicas e
imagens artesanais, analógicas e digitais, objetivas ou subjetivas e perpetuando, deste
modo, sua “sintaxe visual híbrida” (Machado, 2007, pp.45-47).
A partir do exposto, é possível verificar que as dicotomias transparência/opacidade,
realidade/representação, não-ficção/ficção, incorporação/transgressão, também incidem
sobre o fenômeno cultural do vídeo. É por isso que insistimos, mais uma vez, que
o audiovisual, para além das diferenças teóricas e estéticas, é uma plataforma de
expressão cujo potencial parece permanecer na fronteira entre essas duas grandes
tendências, realidade e representação – ou seus conceitos correspondentes, a depender
do recorte preferido – paradoxo que emerge na constatação deste seu caráter híbrido
e múltiplo. Portanto, aprofundamos a seguir num nicho da produção audiovisual
em que todas as potencialidades do vídeo (fácil operação, baixo custo, portabilidade,
manipulabilidade, simultaneidade, transparência, opacidade, etc.) foram colocadas
a serviço da mobilização, transformação e organização da sociedade, geralmente
buscando romper os padrões hegemônicos de produção e distribuição dos produtos
audiovisuais: num primeiro momento, como forma de engajamento político, e num
segundo momento buscando reformular a própria pretensão de engajar o público.
Vídeo militante, alternativo, popular, independente ou comunitário – muitas alcunhas
para uma ferramenta multifacetada e paradoxal.
A PROMESSA DA IMAGEM NAS MÃOS: DO VÍDEO MILITANTE
AO VÍDEO POPULAR
Um dos primeiros esforços de estudo e reflexão sobre o vídeo popular no Brasil foi
empreendido por Luiz Fernando Santoro (1989). Como primeiro presidente da Associação
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
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Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), ele acompanhou de perto a ascensão, auge e desarticulação dessa entidade, cuja trajetória nos diz bastante sobre os objetivos e princípios
que nortearam essas produções, e que repercutem até hoje nas experiências e realizações
videográficas contemporâneas. O acontecimento histórico responsável por deflagrar o
que chamou de vídeo militante, antecessor do vídeo popular, teria sido uma declaração
de Godard feita no auge da contracultura no final da década de 1960, durante um evento
sobre cinema em Montreal. Ele teria incitado os estudantes a tomarem a imagem nas mãos
como forma de guerrilha contra a televisão de massa4:
No início da década de 70 o vídeo passa a ser entendido, por sua potencialidade, como instrumento da contra-informação, isto é, que pode opor à informação hegemônica, veiculada
pelos meios de comunicação de massa, uma outra verdade, uma outra informação que venha
a preencher a lacuna deixada por esses meios pela omissão ou tratamento superficial de
temas que questionem as relações de poder estabelecidas (Santoro, 1989, pp.22-23).
A contra informação, a partir da perspectiva da luta de classes, teria como linhas
básicas de ação a guerrilha receptiva (decodificação/leitura crítica dos meios); a utilização
dos meios de comunicação tradicionais para expressão de conteúdos não usuais ou
diferenciados; e a criação de circuitos específicos, de alcance reduzido – aspectos na
maioria das vezes presentes nas propostas de vídeo popular, evidenciando sua forte
relação com o vídeo militante (Baldelli citado por Santoro, 1989, p.23). A diferença
entre esses dois tipos de práticas é que o vídeo popular é considerado pelo autor aquele
que resulta especificamente da atuação de grupos de vídeo junto aos movimentos
populares (associações de bairro, sindicatos e demais grupos organizados), buscando
principalmente “uma maior participação política das classes populares em todos os
setores da sociedade”. Seriam produções de instituições ou grupos independentes,
voltadas para os interesses dos movimentos, de preferência com a participação dos
grupos populares, e diferentes, deste modo, do vídeo militante, aquele que não se faria
necessariamente a partir dos interesses das classes populares, abrangendo tanto a
videoarte quanto as realizações de produtoras independentes para a televisão (Santoro,
1989, pp.59-61).
Buscando identificar os motivos que imbuíam o vídeo deste seu caráter contraventor,
Santoro elencou como vantagens a facilidade operacional, o baixo custo de produção, a
circulação dirigida, a independência na produção, a facilidade de copiagem, a simultaneidade/monitoramento direto, o sincronismo de som e imagem num mesmo equipamento,
enfim, tudo contribuindo para que nele se depositasse a esperança de democratização
do acesso aos meios de produção audiovisual (até então monopolizados pelo cinema e
a televisão), como uma importante ferramenta de intervenção e transformação social.
Interessante notar, nesse sentido, que Santoro (1989), diferentemente de Machado, atribui
ao vídeo vocação para o realismo e a objetividade:
4. Godard teria tido: “Quero dizer ao público, inicialmente, que ele não possui esse instrumento de
comunicação – ainda na mão dos ‘notáveis’ –, mas que poderá servir-se dele se lhes derem oportunidade,
para dizer e ver o que quiser, e como quiser” (Gauthier citado por Santoro, 1989, p.22).
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
Juliana Oshima Franco
Outro elemento que diferencia fundamentalmente o filme do teipe é a idéia de “presença”
deste último, isto é, a sua “impressão de realidade”. A imagem de televisão, seja em videoteipe, seja numa transmissão “ao vivo”, possui brilho, contraste e definição característicos,
que a tornam aparentemente mais real do que a produzida por material cinematográfico, já que a
imagem é, em televisão, produzida eletronicamente, e não quimicamente, como no cinema.
A imagem fica “limpa”, sem ruídos, e este aspecto tem evidente vantagem numa cobertura
jornalística, em sua busca constante pelo realismo e pela objetividade, mesmo que relativos, no
tratamento de uma matéria (p.55, grifo nosso).
Observe-se que tanto o vídeo militante quanto o vídeo popular, a partir do objetivo
de desconstruir discursos e representações sobre, principalmente, o que viam como
problemas do mundo, acabaram encontrando no realismo e na objetividade inerentes
ao audiovisual, a estratégia necessária para construir suas novas/outras verdades. É
por isso que o gênero documentário acabou sendo a via escolhida por grande parte
dos grupos que se aventuraram neste terreno. E é por isso também que eles enfrentam
o dilema de dar a voz ao outro, que discutimos mais à frente.
O vídeo popular é fruto de um contexto histórico de luta por uma sociedade
mais justa e igualitária, que buscou nessa ferramenta uma forma de democratizar os
meios de comunicação, buscando tornar seus processos cada vez mais horizontais.
Fortaleceu-se ao longo dos anos 1970 e 1980 através da inserção de grupos sociais
no processo de produção e gestão de meios próprios, como forma de se contrapor à
verticalização da televisão que, além de abrir pouco espaço para programação local,
era acusada de manter distância dos movimentos populares, sempre distorcendo suas
lutas. Por assumir uma demanda específica dos movimentos sociais organizados – uma
demanda por autonomia e independência em seus processos comunicativos – é que
o vídeo popular, diferente do militante, não cabia na estrutura da mídia tradicional
(Santoro, 1989, p.62).
A ABVP – inicialmente chamada de Associação Brasileira de Vídeo no Movimento
Popular (ABVMP) – foi fundada em 1984, resultado de eventos e ações que vinham
promovendo a valorização do vídeo enquanto ferramenta de mobilização e intervenção
social, através de mostras, publicações, oficinas e debates sobre o assunto. Inicialmente
formada por cerca de 50 representantes de grupos ligados aos movimentos populares
ou indivíduos simpatizantes, sua constituição permitiu a organização e consolidação
das prioridades e diretrizes do movimento do vídeo popular, além de ter viabilizado
inúmeras iniciativas para a formação de multiplicadores e disseminação de sua
metodologia diferenciada de produção videográfica, voltada à produção e circulação
de conteúdos contra informativos (Santoro, 1989). A atuação da ABVP e o fortalecimento
do vídeo popular realizaram a consolidação de preceitos e diretrizes que permeiam
muitas iniciativas que, de forma geral, envolvem a defesa da democratização dos meios
de comunicação, especificamente através do vídeo, como estratégia de organização social
e mobilização, de circulação de novos conteúdos e representações. São ações pautadas
principalmente pela preocupação em “dar voz aos que não têm voz”, idealizando “a
imagem nas mãos” como forma de atingir não somente metas políticas, mas formas
renovadas de interação social.
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
Juliana Oshima Franco
Como dissemos, o aspecto fortemente contra informativo, essa postura de guerrilha,
que recusa inserir-se no contexto dos meios de comunicação de massa e busca construir
um aparato completo de formação, produção e exibição, marginal e independente da
mídia hegemônica, aponta para um contexto em que se pensava ser impossível viabilizar
o projeto político dos movimentos populares com o auxílio das instituições públicas ou
privadas, muito menos utilizando da estrutura comunicacional tradicional. Mas esse
cenário se transformou a partir da década de 1990.
O dilema de dar voz ao povo
De acordo com Henrique Luiz Pereira Oliveira (1999), o vídeo popular, na vontade
de superar a separação entre produtores, protagonistas e espectadores, apostou na
participação e na valorização do processo de envolvimento das comunidades nas
realizações, deixando para segundo plano, no entanto, a qualidade do produto final.
A defesa do vídeo-processo, com ênfase na formação de novos grupos de realizadores,
tinha como principal objetivo diminuir a dependência de profissionais especializados,
invertendo os padrões verticais de produção comunicativa. A participação idealizada
pelo movimento do vídeo popular não teria como fim somente inserir as comunidades
no processo de produção dos vídeos, mas pretendia, sobretudo, fortalecer o engajamento
dos grupos sociais na transformação de suas realidades, na mudança de suas próprias
condições de vida. Oliveira (2001a) ainda chama a atenção para a forma como, na
maior parte das experiências, esse engajamento foi trabalhado através dos recursos
videográficos ancorando-se, justamente, no traço documental do audiovisual:
Para um dado mundo se tornar perceptível (uma sociedade injusta ou uma sociedade melhor,
por exemplo) deve se constituir como seu correlato uma forma de percepção necessária à
apreensão deste mundo, o que implica em ativar a experiência de realidade dos espectadores
e em positivar determinados componentes da sua condição de agentes. A criação de um plano
de realidade capaz de incitar à ação requer a delimitação do campo de observação, centrando o
foco para um aspecto específico da existência, de modo a deixar patente o que está errado,
o problema. A materialização de uma realidade-problema freqüentemente é efetuada pela exploração
do caráter documental da imagem. A câmera é utilizada para expor a realidade na sua crueza,
de modo a produzir evidências “realistas” aptas a captar o interesse e a mobilizar vontade
de agir dos espectadores (pp.2-3, grifo nosso).
O autor ainda sublinha como característica típica do vídeo popular sua demanda
de convencer o espectador sobre a necessidade de transformar uma dada realidade,
tornando os indivíduos e grupos “agentes de uma ação transformadora” (p.5). Porém,
constata que o projeto de participação acabara por dar mais vazão à visão de mundo
dos realizadores (dos educadores, comunicadores, e outros profissionais responsáveis
pela formação dos alunos e condução das filmagens), do que aos ideais dos movimentos
sociais – ou do povo – de fato, vindo a promessa de “dar voz aos que não têm voz”
mostrar-se não somente utópica como frágil, o que teria arrefecido, por conseguinte, as
expectativas em relação ao potencial transformador do vídeo.
Jean-Claude Bernardet (1985) continua sendo uma das principais referências sobre
o dilema de dar voz ao povo que, entre as décadas de 1960 e 1980, teria abalado a crença
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
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no potencial de transformação social, não só do audiovisual, mas das artes e demais produções simbólicas em geral. Seu estudo tem o mérito de alertar para o potencial criador
que emergia dessa crise e de suas contradições, para a importância das transformações
estéticas e ideológicas que se sucederam a ela, e que repercutiram profundamente na
“forma” dos filmes brasileiros do período, em especial dos documentários5. Como advertiu o autor, “as imagens cinematográficas do povo não podem ser consideradas como a
sua expressão, e sim como a manifestação da relação que se estabelece nos filmes entre
os cineastas e o povo” (p.8) – relação esta que extrapolaria a temática social ou popular,
para acontecer principalmente no campo da linguagem. A preocupação principal do
crítico ao longo da análise de cerca de vinte curtas-metragens do período foi identificar
“quem era o dono do discurso”, mostrando como, apesar da pretensão de dar a voz ao
povo, e das diferentes formas e recursos da linguagem audiovisual experimentados
para atingir esse objetivo, tal pretensão vinha carregada de dilemas, e revelava não só
encontros como desencontros entre cineastas e povo.
A crise do que chamou de “modelo sociológico” de documentário – aquele que se
apresenta como um discurso inquestionável de uma dada realidade, em geral utilizando
do locutor onisciente, e de um sistema de generalização de dada verdade a partir do
fragmento (sistema particular-geral) – teria levado à experimentação de novas formas
de representação, que passaram a descentrar um olhar pretensioso sobre o outro para,
num movimento de “voltar para si mesmo”, questionarem a objetividade com que o
cinema vinha tratando as questões sociais. Como pressupõe Bernardet (1985, p.186),
o fato de os cineastas do modelo sociológico não conseguirem fazer emergir o outro
decorria das limitações da linguagem, a qual deveria ser “rompida”, transformando a
visão de realidade: não mais entendida como “produção material”, mas caracterizada
pelo imaginário e pela produção simbólica. Em termos de linguagem, essa passagem seria
assinalada por três movimentos:
(...) deixar de acreditar no cinema documentário como reprodução do real, tomá-lo como
discurso e exacerbá-lo enquanto tal; quebrar o fluxo da montagem audiovisual e desenvolver
uma linguagem baseada no fragmento e na justaposição; opor-se à univocidade e trabalhar
sobre a ambiguidade (Bernardet, 1985, p.189).
No entanto, nada disso teria sido o bastante para fazer emergir o outro. Isso porque,
de acordo com autor, essa possibilidade estaria diretamente vinculada à propriedade dos
meios de produção, de modo que, ao pretenderem-se “porta-vozes” do povo, mantendose sempre no comando da “palavra final”, os cineastas do período teriam, no máximo,
“emprestado” a palavra ao povo. Tal dificuldade estaria relacionada diretamente à crise
da esquerda e à constatação de que todos os esforços da intelectualidade teriam falhado
na compreensão da sociedade brasileira. Dilemas e questionamentos que acabaram sendo
abordados em diversos documentários, manifestando-se, sobretudo, na linguagem:
5. As tensões entre realidade e representação são ainda mais decisivas no campo do documentário, uma vez
ser ele o gênero audiovisual cuja vocação está diretamente relacionada ao tratamento (criativo) da realidade.
Toda a teoria e história do documentário gira em torno deste problema, havendo uma vasta bibliografia
produzida a partir de diferentes correntes teóricas, que não cabem neste texto, mas são fundamentais,
como Ramos (2008), Da-Rin (2006), e Nichols (2005).
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
Juliana Oshima Franco
ao invés de voltar-se para o registro da cultura e tradições populares, como forma de
definir verdades sobre a identidade nacional ou a realidade social, o documentário
brasileiro passa a ser utilizado para revelar a impossibilidade de executar essa tarefa,
investindo numa postura menos pretensiosa e mais reflexiva. A vontade de dar voz ao
outro, no período abordado por Bernardet, encontrou um grande empecilho quando
se constatou que, apesar de ser mostrado na tela, o povo continuava não “falando por
si mesmo”, nem possuía de fato a “imagem nas mãos”. De modo que outras soluções
precisavam ser pensadas – e experimentadas.
DO VÍDEO POPULAR AO VÍDEO COMUNITÁRIO CONTEMPORÂNEO
O fim do regime militar foi bastante decisivo para as transformações que aconteceram
no escopo do audiovisual militante, popular e comunitário. Em meados da década de
1980, já no período de abertura política, boa parte da conjuntura opressora e cerceadora
que alimentava a rebeldia contra informativa passou a ser substituída pela esperança
no regime democrático e sua promessa de liberdade, igualdade e participação popular.
Não por acaso, assistimos ao refluxo dos movimentos populares e ao fortalecimento do
terceiro setor após a redemocratização.
Segundo Henrique Luiz Pereira Oliveira (1999) tal conjuntura foi determinante
para a mudança de postura em relação à questão da participação no âmbito do vídeo
independente. Ele constatou que a dificuldade em definir consensos sobre a ação política ao longo da década de 1990, como reflexo da inserção de medidas neoliberais na
América Latina, levou à “fragmentação do povo”, o que aconteceu no mesmo momento
em que os acordos de cooperação financeira internacional recuaram, forçando a busca
de outras fontes de financiamento para a produção audiovisual contra hegemônica.
Tal reviravolta teria gerado “um impasse entre o compromisso social e necessidade
de autofinanciamento das ONGs” (p.150), impondo a aproximação dessas iniciativas a
modelos e grupos políticos e econômicos que tanto haviam sido combatidos. A deflagração desta “crise de identidade” teria contado ainda com o agravante da incorporação
do povo à televisão, a qual passou a utilizar a cultura popular como forma de ampliar
a audiência, vindo a simular, no mesmo sentido, a interatividade que parecia poder dar
fôlego à produção independente.
Assim, para galgar seu lugar no “novo espaço audiovisual latino-americano”, teria
ocorrido o deslocamento do vídeo popular típico para o que o autor define como “vídeo
com simulação de interatividade”, demarcando mudanças tanto na relação dos realizadores
audiovisuais com os movimentos populares, quanto na maneira como pretendiam influenciar a percepção do público. Como afirma Oliveira (2001a), “a forma e o conteúdo destes
vídeos incitam os espectadores a redefinir o modo de perceber a realidade” (p.14, grifo nosso).
A passagem do acento na participação durante o processo de produção, que permeou o
vídeo popular típico, para a ênfase na participação durante a recepção, característica dos
vídeos de interatividade, corresponde a um deslocamento da incitação às ações coletivas
para um exercício de desconstrução de conceitos e representações, implicando em uma
mudança no modo de engajar o espectador nos problemas enfocados pelos vídeos (Oliveira, 2001b,
p.441, grifo nosso).
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
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Essa transformação também é indicada por Clarisse Alvarenga (2004), que identifica
uma trajetória que parte do vídeo militante (anos 1960), passa pelo vídeo popular (1980) e
se transforma no que designou vídeo comunitário contemporâneo (a partir da segunda
metade da década de 1990). Observando uma intensa produção videográfica realizada
tanto da área urbana como rural, tanto nas periferias e centros urbanos, quanto nas
comunidades ribeirinhas e indígenas, a autora vincula o cenário à proliferação de
projetos envolvendo oficinas de vídeo, viabilizados pela versatilidade e acessibilidade
desta ferramenta comunicativa e também pela mesma utopia de dar voz ao outro que
impulsionara o vídeo popular, propondo, no entanto, soluções diferentes para lidar
com o nó da participação.
No mesmo sentido que Bernardet, ela constata quão pretensiosa era a vontade
de dar a voz ao outro, de modo que a superação deste dilema necessariamente teve
de voltar seus esforços para criação de novas formas de interação através do vídeo, a
partir, necessariamente, de novas posturas e expectativas em relação à sua utilização e
sua função social. Como vimos observando, a tendência de combater o ilusionismo da
imagem, apontando para opacidade da imagem-som em movimento, e para a relatividade
e obliquidade de toda representação, acaba por suscitar justamente esse reposicionamento em relação ao audiovisual, cujas expectativas acabam sendo mais “modestas”
e despretensiosas, evitando contrapor às representações dominantes outras formas de
representações unívocas, herméticas ou estáveis, que pretendam registrar o real ou
apreender identidades e verdades.
Buscando compreender o potencial de uma câmera arraigada numa comunidade,
Alvarenga (2004) notou que, apesar de tributário ao vídeo popular, o vídeo comunitário
contemporâneo ganhou força arriscando outros caminhos para a representação do povo,
os quais foram experimentados justamente no sentido de contribuir para que esses
grupos tivessem cada vez mais autonomia e liberdade no processo de produção. Neste
contexto, já não caberiam mais as mesmas expectativas, as mesmas posturas, nem as
mesmas concepções estéticas que impulsionaram a geração do vídeo popular – o que nos
parece uma transformação fundamental e determinante para a compreensão do nosso
objeto de pesquisa que, como dissemos, herdou os mesmos dilemas e se desenvolve na
mesma conjuntura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos observar como as tensões entre realidade e representação foram decisivas
para o desenvolvimento da linguagem audiovisual, e também para que o vídeo ganhasse
força como ferramenta de engajamento, conscientização, ação política e transformação
social. Vimos como, ao invés de uma postura contra informativa e uma linguagem
pretensiosa, como a que marcou o movimento do vídeo popular, caminhamos para
uma postura interativa e uma linguagem mais modesta e menos agressiva, que procura
equilibrar e relativizar as certezas e generalizações, aproveitando os espaços (e parceiros)
existentes para, de forma estratégica, efetivamente experimentar outras formas de
produção e interação através do audiovisual.
Enquanto no movimento do vídeo popular a ferramenta comunicativa era pensada
como estratégia de transformação da realidade – o que presumia um saber sobre aquela
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
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realidade e sobre suas necessidades, e pensava-se ser viabilizado dando voz ao povo
– no âmbito do vídeo comunitário contemporâneo passa a ser pensado como forma de
experimentação social e mecanismo de descentramento de olhares e representações objetivas. Se
o primeiro apoia-se numa postura política de confronto, contra informativa, o segundo
concentra-se na diversificação de perspectivas e numa postura de composição de diferentes
interesses. Enquanto o vídeo popular utiliza o efeito de realidade como estratégia de
mobilização através do documentário de temática social, o vídeo comunitário utiliza
modos mais fluidos, fragmentados e reflexivos para tratar seus temas, desconstruindo o
mito de dar voz ao outro para apostar numa forma híbrida, em que se pensa não numa
realidade objetiva, mas num constante devir de um estado a outro6.
As discussões aqui travadas repercutem a influência de um período de transição
paradigmática, que coloca em cheque muitas das nossas categorias analíticas. Não
por acaso estamos definindo uma posição de fronteira como aspecto distintivo do
audiovisual, o qual parece não estar preocupado em “sair de cima do muro”, pois é ali
que conseguiu se concretizar enquanto fenômeno cultural mutante, espetáculo para
as massas e estratégia de resistência. Nesse processo transitório, o vídeo parece ser
ao mesmo tempo causa e consequência, ação e reação, tanto a ser influenciado pela
conjuntura, quanto a transformá-la – ele joga para os dois lados. É nesse sentido que tantos
valorizam seu potencial contra hegemônico, político, experimental e estético, enquanto
outros alertam para o seu padrão de vigilância e banalização do visível. Ninguém está,
de maneira alguma, equivocado. Na fronteira entre realidade e representação, o vídeo,
também o vídeo comunitário contemporâneo, dá legitimidade a realidades e fabulações,
projeta-se como espetáculo e como denúncia social, serve para disseminar discursos
realistas e simulantes, reais e fictícios, pretensiosos e modestos, engajados e alienados,
objetivos e subjetivos, enfim, reinventa a realidade.
REFERÊNCIAS
Alvarenga, C.M.C. (2004). Vídeo e experimentação social: um estudo sobre o vídeo comunitário contemporâneo no Brasil. Dissertação (Mestrado em Multimeios) – Universidade
Estadual de Campinas. Campinas.
Berger, P. & Luckmann, T. (1985). A construção social da realidade. (7.ed). Petrópolis, RJ: Vozes.
Bernardet, J.C. (1985). Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense.
Da-Rin, S. (2006). Espelho Partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro:
Azougue Editorial.
Franco, J.O. (2012) Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade
e representação - um estudo do projeto Roda Memória. Dissertação (Mestrado em
Comunicação) - Universidade Estadual de Londrina. Londrina.
Machado, A. (1997). Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus.
Machado, A. (2001). As três gerações do vídeo brasileiro. Sinopse, 3(7), 22-33.
Machado, A. (Org.). (2007). Made in Brasil: três décadas de vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural.
6. Na bibliografia citada ao longo do texto, é possível conhecer a trajetória de inúmeras experiências e
iniciativas que demonstram o que afirmamos sobre a passagem do vídeo popular ao vídeo comunitário
contemporâneo. Só não abordamos essas histórias neste artigo por uma questão de espaço.
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Memórias em movimento: o vídeo comunitário na fronteira entre realidade e representação
Juliana Oshima Franco
Nichols, B. (2005). Introdução ao documentário. (Trad. Mônica Saddy Martins). Campinas, SP:
Papirus.
Oliveira, H.L.P. (1991). Da participação à interatividade: o vídeo popular no Brasil. Fronteiras:
Revista de História, 7(1), 137-151.
Oliveira, H.L.P. (2001a) Transformações no vídeo popular. Sinopse, 3(7), 1-14.
Oliveira, H.L.P. (2001b). Tecnologias audiovisuais e transformação social: o movimento de vídeo
popular no Brasil (1984-1995). Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade
Católica. São Paulo.
Ramos, F.P. (2008). Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac.
Santoro, L.F. (1989). A imagem nas mãos: o vídeo popular no Brasil. São Paulo: Summus.
Xavier, I. (2005). O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. (3.ed.) São Paulo:
Paz e Terra.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Social Watch the construction of world citizenship
M a x i m i l i a no M a rt ín Vic en t e 1
Resumo: O presente trabalho é o resultado de um estudo relacionado com a
questão da cidadania na atualidade. Para isso se discute, num primeiro momento,
o conceito de cidadania, a forma como foi entendia no transcorrer do tempo e
seus desdobramentos na atualidade. Como exemplo dessa nova concepção se
apresenta a Rede Social Watch, organização que congrega organizações não
governamentais preocupadas em avaliar as políticas públicas de cunho social
implementadas pelos poderes públicos instituídos.
Palavras-chave: Cidadania. Social Watch. Movimentos Sociais. Internet.
Abstract: This work is the result of a study related to the issue of citizenship
today. For it discusses, at first, the concept of citizenship, the way it was understood in the course of time and its consequences today. As an example of this
new design is presented the Social Watch Network, an organization that brings
together non-governmental organizations concerned with evaluating public
policies of a social nature implemented by the government.
Keywords: Citizenship. Social Watch. Social Movements. Internet
CIDADANIA UM CONCEITO EM CONSTRUÇÃO
CIDADANIA É um dos problemas mais complexos enfrentados pelos regimes
A
democráticos. Fórmulas absolutistas e autoritárias ignoraram os procedimentos
democráticos de governar nos quais a participação social nas questões públicas é
levada em consideração. Apenas na contemporaneidade, portanto muito recentemente,
num contexto de profundas mudanças culturais, jurídicas, éticas, políticas, econômicas
e sociais, se revertem os moldes conservadores de governar para uma pequena elite
em detrimento dos governados, vistos como entes passivos e incapazes de entender a
“coisa pública”.
Não existe um consenso em relação ao que se entende por cidadania. Numa
rápida passagem pelos autores preocupados com a questão da implementação das
práticas cidadãs na sociedade é possível identificar alguns momentos expressivos para
a compreensão do termo cidadania. Na visão liberal clássica, principalmente entre
seus representantes no século XIX, a preocupação com a cidadania se concentrou sobre
as diversas formas de evitar que o poder do Estado se sobrepusesse aos diretos dos
indivíduos. Dessa forma realizaram-se esforços significativos para dividir o poder estatal
além de promover a criação de instituições, tanto desde o Estado como da sociedade
1. Prof. Adjunto Maximiliano Martin Vicente. UNESP – FAAC. E-mail; [email protected]
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
civil, para garantir a efetividade das iniciativas dos cidadãos. Desde um posicionamento
oposto ao modelo liberal, o socialismo postulava que as mesmas formas que tinham
conseguido certa liberdade do homem pré-moderno criaram novas maneiras de opressão
das quais este só poderia liberar-se por uma emancipação social e humana, emancipação
essa que deveria chegar ao Estado, responsável final pela manutenção dos direitos sociais
alcançados pela luta da maioria da população.
Um autor referencial na conceituação da cidadania como foi Marshall pensava
que os direitos civis e os políticos, conquistados durante os séculos XVIII e XIX, não
tinham eliminado a contradição entre o princípio de igualdade e o de desigualdade.
(Marshall, 1967). Ademais, acreditava que os direitos sociais podiam estabelecer, de fato,
um processo de igualdade social suficientemente sólido capaz de minimizar os conflitos
de classe originados pelo capitalismo e a sociedade moderna por ele implantada.
Nos anos 1970 e 1980, iniciou-se outro debate de caráter filosófico sobre a natureza do
indivíduo e de seus direitos em relação ao Estado, à comunidade, à cultura e à questão
da ética e dos fundamentos da filosofia política, ou seja, sobre as múltiplas dimensões
que poderia adquirir a noção de cidadania (Dallari, 1998). A disputa congregou,
principalmente, duas correntes conhecidas como comunitarista e individualistas que
defendiam visões e pontos de vista antagônicos quando o assunto era a cidadania. Os
comunitaristas sustentavam que os vínculos sociais determinavam às pessoas e que a
única forma de entender a conduta humana seria relacioná-la a seus contextos sociais,
culturais e históricos. Os individualistas, por sua vez, propunham que a comunidade
se constituía a partir da cooperação para a obtenção de vantagens mútuas e que o
indivíduo portava a capacidade de atuar livremente, independente do lugar e da cultura
que tinham determinado sua existência.
Divergências à parte, o que nos interessa extrair desse confronto se encontra
na discussão criada sobre a maneira como o direito deve, ou não, regulamentar as
concepções inerentes à cidadania, por exemplo, como regulamentar a propriedade
privada e os bens individuais. Talvez essa seja uma das questões nevrálgicas mais
discutidas e pensadas pelos que se interessam pelo tema da cidadania. Afinal, sem
as garantidas para poder exercitar de maneira livre e desimpedida as manifestações
sociais não se pode falar em cidadania. Por sua vez alguns dos direitos garantidos
legalmente colocam entraves e limites para as reivindicações dos movimentos sociais.
Ao mediar o conflito o embate passa para o campo da lei e do direito motivo pelo qual
a cidadania adquire um status político.
Tal problemática tem despertado o interesse pelos estudos da cidadania neste começo
de século XXI, notadamente depois que as manifestações públicas, em praticamente
todos os países, evidenciaram os limites da democracia como forma política capaz de
dar respostas as demandas levantadas pelos movimentos sociais ativos pelas mais
diversas partes do planeta. Nesse sentido, a cidadania pode ser considerada como uma
construção de baixo para cima onde se utilizam as mais variadas formas de expressão,
sejam os modelos tradicionais como as tecnologias da informação e comunicação.
Mas, qual seria a lógica seguida pelos movimentos sociais para ampliar o conceito
de cidadania? Castells (2013), um dos pesquisadores preocupados com a sociedade
em rede e seus desdobramentos para a sociedade, entende que os movimentos sociais
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
contemporâneos se originam de forma espontânea, ou seja, não emanam do sistema
político ou de qualquer outra forma de entidade político-social como poderiam ser os
partidos ou os sindicatos. Via de regra o estopim é gerado pela veiculação de alguma
imagem que mostra a opressão ou a injustiça sofrida pela população. Tal imagem se
espalha rapidamente nas redes virtuais originando as manifestações no espaço público
onde afirmam sua presença e desafiam a ordem estabelecida procurando estabelecer
um diálogo com as autoridades constituídas. No âmbito local, com frequência, a causas
se direcionam na luta contra a corrupção, contra o sucateamento dos serviços públicos,
a indignação pelo desemprego e contra o apoio oficial aos especuladores financeiros.
Em outras ocasiões a movimentação se dá em função de assuntos de interesse mundial
como a ecologia, a questão da mulher ou os direitos da criança.
Castells destaca pontos em comum identificáveis nesses movimentos sociais na
luta pela implementação da cidadania. Enfatiza a importância das ferramentas digitais
e das redes sociais online (facebook, twitter, livestreaming e youtube) na mobilização
e difusão de informação necessária para alimentar os movimentos; em muitos deles
se percebe a ausência de um líder ou de uma corrente política especifica. Ao contrário,
ocorrem a aglutinação de diferentes correntes sociais unidas pelo desejo de radicalizar
a democracia e torná-la mais participativa e assim ampliar a cidadania. Acreditam que
que somente a partir da intervenção direta de suas ações poderão ter força necessária
para a promoção de mudanças sociais, econômicas e políticas.
Um aspecto importante estudado por Castells diz respeito à organização dos
movimentos. Se estruturam e organizam sem que exista uma liderança capaz de
controlar as ações de seus comandados. Na ausência de uma liderança permanente o
que vigora são os processos deliberativos onde se exercitam novas formas de democracia
e de cidadania. Dessa forma se criam e facilitam os laços de solidariedade pois instituem,
sobretudo, o sentimento de estar juntos. Basta estar ali para poder falar, não precisa de
filiação ou representação.
Nas palavras dele
O que muda atualmente é que os cidadãos têm um instrumento próprio de informação,
auto-organização e automobilização que não existia. Antes, se estavam descontentes, a única
coisa que podiam fazer era ir diretamente para uma manifestação de massa organizada por
partidos e sindicatos, que logo negociavam em nome das pessoas. Mas, agora, a capacidade
de auto-organização é espontânea. Isso é novo e isso são as redes sociais. E o virtual sempre
acaba no espaço público. Essa é a novidade. Sem depender das organizações, a sociedade tem
a capacidade de se organizar, debater e intervir no espaço público. (CASTELLS, 2013, p. 35)
Nessa mesma, mas com visão diferente, Boaventura de Souza Santos prefere
interpretar os atuais movimentos sociais como uma evidência do fracasso do modelo
atual de democracia uma vez que não solucionou os problemas sociais no transcorrer do
tempo, aliás é repetitivo nessa questão: O modelo de democracia liberal representativa
está perdendo a sua credibilidade e não funciona adequadamente para os desafios do
mundo atual. Por isso insiste que a grande luta que vivemos no mundo atual envolve
dois tipos de democracia: a de baixa intensidade, a que temos, e a outra de mais altas
intensidades, democracias tipo participativas.
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
Mas a questão da nova cidadania, para Santos, implica em condenar o modelo
atual capitalista, algo não muito claro na contribuição de Castells. Ao contrário do
que prometeu como igualdade e solidariedade o capitalismo provocou a separação
e segregação total da população. A clássica expressão “os ricos ficam mais ricos e os
pobres ficam mais pobre”, pode ser considerada como a melhor definição do capitalismo
globalizado no âmbito mundial. Salienta, o pensador português, a necessidade de se
olhar para as práticas dos movimentos sociais e das formas criativas como reinventam
o mundo no dia a dia. Obviamente algumas dessas práticas se encontram na rede mas é
bom ampliar a visão e descobrir outras formas de se exercitar a democracia e a cidadania
na atualidade. Um dos exemplos vivos seriam cooperativas que estão produzindo bens
seguindo uma lógica não capitalista. Seriam organizações que vão além da mera visão
econômica e propõem uma abordagem crítica da cultura e da própria política. Inclui,
dentro dessa questão econômica o comércio justo entendido como uma prática na qual
os bens que circulam pelo mercado devem de ter sido produzidos pagando um salário
justo, em condições ambientais dignas marcadas pelo respeito ao meio ambiente.
Uma grande novidade relacionada com a nova cidadania seria o que ele denomina
de cidadania multicultural, ponto não tocado em profundidade por Castells. De forma
contundente afirma que tanto o liberalismo como o socialismo apenas reconhecem a
igualdade e não a diferença. Nem todos os homens e mulheres são iguais. Questões
como o gênero, a diversidade cultural, as nuances de cada país ou região, determinam
comportamentos e valores que nem sempre podem ser considerados universais e válidos
por todas as sociedades. Esse respeito a diversidade gera o que Santos conceitua de
cidadania multicultural, na qual as minorias étnicas, os povos indígenas, o movimento
negro e outras múltiplas manifestações de diversidade devem ser respeitadas e ouvidas. As
pessoas querem pertencer, mas querem ser diferentes. É necessário um multiculturalismo
que crie novas formas de hibridização, de interação entre as diferentes culturas. Cada
cultura é que deve definir até onde quer se integrar.
A adoção dessas premissas no seu pensamento gera um conceito já consagrado e
que se define como sendo as Epistemologias do Sul. Por esse conceito Santos (2010, p.
7) entende um conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão
dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica
dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm
produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos.
A esse diálogo entre saberes chamamos ecologias de saberes.
Pode ser observado nessa definição alguns dos itens virais da obra de Santos e que já
traçamos brevemente nas linhas anteriores. Embora o mundo possa ser visto pela ótica
da multiculturalidade prevaleceram as versões que não respeitaram a diversidade e a
riqueza de povos tão diferentes espalhados pelo planeta. Com isso se tolheu qualquer
forma emergente de manifestação não permitida pela visão dominante. Entretanto,
sugere Santos, devemos entender o que esconde essa não proliferação das culturas e
seu reconhecimento. Nada mais seria que a predominância de mundo exercido pelo
mundo ocidental que precisou silenciar a humanidade diante de saberes emergentes.
Essa pratica seguida hegemônica proveniente da adoção da ciência moderna
executada pelo Ocidente é denomina por Santos de pensamentos abissal. Tal pensamento
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
é uma característica da modernidade ocidental, que consiste num sistema de distinções
visíveis e invisíveis que dividem a realidade social em dois universos ontologicamente
diferentes. O lado de cá da linha, correspondendo ao Norte imperial, colonial e
neocolonial, e o lado de lá da linha corresponde ao Sul colonizado, silenciado e oprimido.
Essa linha é tão abissal que torna invisível tudo que acontece do lado de lá da linha. Este
lado colonizado não tem realidade ou, se a tem, é em função dos interesses do Norte
operacionalizados na apropriação e na violência. O que caracteriza este pensamento
abissal é a impossibilidade de copresença entre os dois lados referidos. Como superar tal impasse? O pensador português indica um caminho bastante
claro e não menos radical: a ecologia de saberes. Por esse termo deve se entender
um conjunto de epistemologias que partem da possibilidade da diversidade e da globalização contra-hegemônicas e pretendem contribuir para as credibilizar e fortalecer. Assentam
em dois pressupostos: 1) não há epistemologias neutras e as que clama sê-lo são as menos
neutras; 2) a reflexão epistemológica deve incidir não nos conhecimentos em abstrato, mas
nas práticas de conhecimento e seus impactos noutras práticas sociais. (SANTOS, 2006: p.154).
De forma sucinta poderíamos dizer que na ecologia de saberes se encontram embutidos
alguns dos componentes fundamentais da proposta de Santos: o reconhecimento da
pluralidade de saberes heterogéneos. Mas não se aceitaria, apenas, o reconhecimento,
cada um deles deveria ser considerado autônomo e articulado com os que defendem
sua forma de atuação, criando, dessa forma um saber marcado pela horizontalidade e
respeito pelas diferenças sem o qual nem se pode falar em cidadania. Assim se chagaria
a uma emancipação desejada capaz de assentar novos parâmetros de atuação.
Evidentemente as classes populares ganham protagonismo dentro dessa ótica. As
colocações de Peruzzo sugerem uma outra forma de se expressar e que ela conceitua
como comunicação popular e alternativa - componentes fundamentais na adoção da
cidadania- entendida como
expressão das lutas populares por melhores condições de vida que ocorrem a partir dos
movimentos populares e representam um espaço para participação democrática do “povo”.
Possui conteúdo crítico-emancipador e reivindicativo e tem o “povo” como protagonista
principal, o que a torna um processo democrático e educativo. É um instrumento político
das classes subalternas para externar sua concepção de mundo, seu anseio e compromisso
na construção de uma sociedade igualitária e socialmente justa. (PERUZZ0, 2004, p. 4)
Implícita nessa afirmação se encontra, pelo menos, uma caraterística dos movimentos
populares. Os movimentos seriam forças autônomas agindo num espaço não coberto por
partidos e sindicatos e, com isso, adquirem relevância por se manifestarem não nos espaços
“permitidos” e regulamentados pelo poder oficial, embora possam, eventualmente, se
fazer presentes em alguns deles. E assim os movimentos sociais populares, apesar de
suas limitações, vão ocupando o seu lugar na sociedade, contribuindo para construir
a cidadania, mas uma cidadania emanada nas bases e promovida por agentes sociais
que atuam à margem do espaço público oficial. Trata-se de um processo que envolve a
diversidade, porque nossa sociedade é pluralista demais para afunilar-se sob a direção
de uma única organização político-partidária.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
Para Peruzzo, a comunicação popular, tal como apresentada anteriormente, representa
uma forma alternativa de comunicação que se origina, no Brasil, nos movimentos
populares dos anos de 1970 e 1980. Ela não se caracteriza como um tipo qualquer de
mídia, mas como um processo de comunicação que emerge da ação dos grupos populares.
Essa ação tem caráter mobilizador coletivo na figura dos movimentos e organizações
populares, que perpassa e é perpassada por canais próprios de comunicação. O sentido
político é o mesmo, ou seja, o fato de tratar-se de uma forma de expressão de segmentos
excluídos da população, mas em processo de mobilização visando atingir seus interesses
e suprir necessidades de sobrevivência e de participação política.
A cidadania na atualidade adquire uma dimensão multifacetal que não pode ignorar
as questões levantadas pelos autores anteriormente citados. A questão ultrapassa a
simples luta para conseguir e garantir direitos. Por um lado não podem ignorar os avanços
tecnológicos utilizados como ferramentas de divulgação e congregação dos movimentos
a favor de uma cidadania plena. Por outro lado, as questões culturais embutidas nas
práticas cotidianas da população precisam ser levadas em consideração também. Mais
ainda, devem ser decodificadas à luz da proposta de Boaventura dos Santos pois a
complexidade dos fenômenos culturais ultrapassa de longe a externalização das suas
manifestações. Assim, emerge a necessidade de se usar a tecnologia, a comunicação
popular e a diversidade cultural como componentes fundamentais para o exercício
crítico da cidadania que além de ser local tem repercussão e alcance global. Uma das
organizações, com espaço reservado para essas manifestações de cidadania é Social
Watch como veremos a seguir.
SOCIAL WATCH: UMA APROXIMAÇÃO À CIDADANIA GLOBAL.
Num mundo globalizado nada mais plausível do que podermos imaginar uma
ação coordenada mundialmente para defender os direitos da sociedade civil perante
a hegemonia das ações mundiais alinhadas com o modelo capitalista. Imbuídos desse
espírito nasceu, em 1995, depois de vários encontros e reuniões preparatórias, a rede
social Social Watch (www.socialwatch.org) concebida como um ponto de encontro para
as Organizações Não Governamentais (ONGs) preocupadas com o desenvolvimento
social e a discriminação de gênero e comprometidas com a monitorização das políticas
que visam combater a desigualdade entre as pessoas e o combate à pobreza.
Social Watch entende que a ação principal para atingir a erradicação da pobreza, a
igualdade de gênero e a justiça social ocorrem principalmente a nível local e nacional e,
portanto, suas atividades internacionais e suas estruturas estão ao serviço dos grupos
nacionais e locais, e não ao inverso. Assim, sua organização se baseia no caráter democrático-participativo e a tomada de decisões se fundamentam em princípios igualitários
e de respeito à autonomia de seus membros que se encontram presentes em mais de
sessenta países interligados via Web. A rede criada se estrutura em torno de três órgãos:
a Assembleia de Social Watch, o Comitê Coordenador e o Secretariado Internacional.
A Assembleia Geral é o máximo órgão de governo da rede Social Watch. É o
âmbito de debate político e de planejamento estratégico de médio e longo prazo, que
serve como um foro de tomada de decisões. Se realiza a cada dois ou três anos e a
única condição solicitada para que seus membros participem é que enviem relatórios
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
descrevendo as ações e resultados nacionais exercidas pela entidade. Dessa Assembleia
surgem as ações que deverão ser promovidas a médio e longo prazo além de eleger os
membros do Comitê Coordenador órgão que exerce as funções de coordenar todos os
intercâmbios realizados via Rede entre os membros participantes de Social Watch. Em
cada Assembleia Geral se definem os princípios norteadores para o triênio que deverão
fundamentar as ações dos associados.
Definidos os princípios a instituição colocou como prioridades de ação as seguintes
ações: reconhecer a ONU como instituição universal legítima para solucionar os conflitos; denunciar os países poderosos que insistem em aplicar de forma livre as finanças, o médio ambiente e o uso da força militar; apoiar a criação e o fortalecimento de
alternativas regionais que reflitam as aspirações das populações pobres e marginadas;
realizar alianças com sindicatos, organizações de agricultores, meios de comunicação
independentes, movimentos sociais e outras organizações e redes da sociedade civil,
em particular as que trabalhem em pró da defesa da justiça e da preservação do meio
ambiente; trabalhar em pró da defesa de fontes inovadoras de financiamento para a
erradicação da pobreza, incluindo impostos às transações financeiras, e a eliminação
da evasão fiscal internacional e da lavagem de dinheiro; agir contra a exclusão social
das comunidades migrantes e para a ratificação da Convenção Internacional sobre os
Direitos dos Migrantes e, finalmente, defender a autodeterminação das pessoas e o
pleno controle sobre seus recursos como uma forma crucial de proteger seus direitos
sociais e econômicos.
ANÁLISE DOS BOLETINS
No total foram publicados, em agosto de 2014, cinco boletins com periodicidade
semanal (dia: um, oito, quinze, vinte e dois e vinte e nove), com quinze notícias publicadas
numa média de três por boletim como pode ser verificado no endereço a seguir: (http://
www.socialwatch.org/es/taxonomy/term/461). Para realizar um estudo quantitativo e
qualitativo das mesmas nos inspiramos num método híbrido que congrega elementos
da teoria do enquadramento e da análise do conteúdo.
Em função do espaço não exploraremos esses dois métodos e sim apresentaremos
a definição e o entendimento de cada método seguido nas análises. Entman (1993, p.
52) um dos autores mais citados na hora de conceituar enquadramento o define da
seguinte maneira “enquadrar é selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida
e fazê-los mais salientes num texto comunicativo de forma a promover uma definição
particular do problema, uma interpretação causal, avaliação moral, e/ou a recomendação de tratamento”.
Enquadrar envolve o ato de selecionar (escolher dentre várias alternativas) e de tornar
saliente, distinguir, evidenciar aspectos relevantes das matérias. Por meio do enquadramento poderemos, portanto, definir problemas, diagnosticar causas, fazer julgamentos
e sugerir medidas reparadoras. Para definir um dado enquadramento é preciso realizar
análises que ponham em evidência de que forma os meios estão narrando determinado
acontecimento.
Já a análise de conteúdo, segundo Laurence Bardin (2009), uma das explicadoras
desse método seria um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter,
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das mensagens,
indicadores (qualitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos
às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. Como
menciona a autora, a análise de conteúdo não se baseia apenas em dados quantitativos.
A análise possui uma fase qualitativa, com a interpretação dos dados coletados, ou
seja, é possível fazer inferências nos materiais coletados. Para isso sugere que se criem
categorias que expliquem o sentido contido nas matérias analisadas. Essa definição das
categorias serviria para comprovar, ou não, se o conteúdo está coerente com os princípios
anunciados pelo produtor do texto a ser avaliado.
Uma leitura inicial dos boletins mostra os seguintes dados: das quinze matérias
publicadas nenhuma é proveniente de agências de notícias tradicionais encontradas nos
meios massivos. Predominam fontes alternativas notadamente ONGs filiadas a Social
Watch. Talvez por esse motivo, numa pesquisa mais detalhada conseguimos identificar,
apenas, 3 notícias veiculadas nos meios de comunicação massivos: uma relacionada aos
BRICS (criação do Novo Banco do Desenvolvimento), outra envolvendo a problemática
do Oriente Médio e, finalmente, a terceira ligada ao G-8 e sua preocupação em como
combater a fome na África. Na nossa busca, as outras 12 restantes circularam, apenas,
no Boletim de Social Watch.
Diante desse quadro é possível definir algumas categorias, tal como sugerido pela
metodologia utilizada, para avaliar mais analiticamente o conteúdo publicado nos
informes do mês de agosto de 2014 de social Watch. Estabelecemos duas categorias
por considerar que nelas se podem incluir todas as 15 matérias encontradas nos
cinco boletins: cidadania (conceitos e processos que visam fundamentar uma
política diferenciada, mais solidária, uma democracia mais vital, participativa,
com cidadãos ativos, engajados em favor do bem comum e da criação de uma
sociedade mais humana), pobreza e exclusão social (processo de mobilizações e
práticas destinadas a promover e impulsionar grupos e comunidades - no sentido de
seu crescimento, autonomia, melhora gradual e progressiva de suas vidas como seres
humanos dotados de uma visão crítica da realidade social). Salientamos que essas
categorias, em algumas ocasiões se entrecruzam mas como a intenção é ver como elas
refletem e seguem uma lógica identificada com as questões sociais de Social Watch, não
vemos que esse fator possa prejudicar a análise.
Cidadania
As notícias relacionadas com a cidadania trazem como protagonistas setores
minoritários pronunciando-se sobre questões próprias do bem-estar coletivo,
portanto, se posicionam claramente contra todo procedimento que não venha e leve
em consideração a totalidade. Um exemplo bem paradigmático dessa práxis se encontra
na matéria do Boletim de 22 de agosto de 2014, e que tem como tema a participação das
mulheres hondurenhas diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Não
encontramos na mídia convencional referência a essa participação. No entanto na notícia
se encontram elementos que consideramos chaves na questão da defesa da cidadania
e que passamos explicitar.
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
A participação é de coletivos hondurenhos (Foro de Mulheres pela Vida, CLADEM,
Centro de Estudos da Mulher Honduras CEM-H, a Rede Nacional das Defensoras,
Centro de Direitos de Mulheres CDM e de Sócias pelos Justo JASS) que tem por
preocupação a situação da mulher naquele país e não de expertos ou representantes
do poder instituído. As pautas levantadas envolvem desde questões pontuais como: o
aumento do femicídio; o alto nível de impunidade aos agressores das mulheres; o fracasso
das políticas de segurança; a pretensão de controlar o corpo das mulheres, negandolhes o direito a decidir sobre sua reprodução e sexualidade, como é o caso da proibição
das Pílulas de Anticoncepcionais, até a modificação das políticas públicas vigentes em
Honduras.
Dentre as alterações solicitadas pelo coletivo das mulheres destacam: O Estado tem
a obrigação de gerar mudanças estruturais profundos no sistema de justiça; mudar o
atual enfoque da política de segurança por um que privilegie os direitos e adotar as
medidas necessárias para garantir que os casos de violência contra as mulheres sejam
investigados com a devida diligência, que as pessoas responsáveis sejam castigadas e as
vítimas recebam reparações de acordo às recomendações além de, solicitar que o Estado
hondurenho deve proceder sem demora à anulação da proibição da anticoncepção de
emergência e à aprovação do projeto de Lei que legaliza seu uso e, finalmente, que o
Estado respeite os direitos humanos na sua totalidade.
O contraditório também se inclui na matéria veiculada no site social Watch. O
governo hondurenho representado por três pessoas (o Procurador de Direitos Humanos,
a embaixadora de Honduras em Guatemala, e o embaixador de Honduras em México,
local onde acontecia o evento) fez questão de citar os inúmeros projetos enviados ao
Congresso Nacional e que atenderiam, em parte, as demandas das associações das
feministas. Temas considerados vitais pelos coletivos feministas, como a distribuição
de anticoncepcionais, nem sequer foram mencionados pelos representantes do governo
hondurenho. O mesmo pode ser dito em relação aos crimes contra a mulher que seriam
incluídos no rol geral do combate a violência sem que se apresentasse um projeto
especifico do poder público em relação a esse tema concreto.
Pobreza e exclusão social
Esta categoria é, de longe, a mais citada em diversas notícias de Social Watch. Parte
da explicação para que isso ocorra é que por definição só podem fazer parte dessa
Associação organizações que trabalhem com grupos e entidades voltadas para o combate
à pobreza. Mesmo assim, com o intuito de verificar como se mostra apresentamos
algumas matérias com tal inquietação. No boletim do dia 29 de agosto um assunto
tratado diz respeito ao posicionamento do Congcoop guatemalteco no IV Congresso
Nacional, dos Povos e das Organizações para enfrentar os graves problemas que o país
enfrentava, mas via fortalecimento dos movimentos sociais.
No pronunciamento realizado se encontram como esse coletivo, que congregou 756
mulheres e homens, dirigentes sociais e populares, comunidades e 180 organizações de
Autoridades Ancestrais, mulheres/feministas, camponesas, juventude e ONGs, colocou
como base filosófica de atuação para alcançar o Bem viver coletivo que as decisões sejam
tomadas com a participação dos povos indígenas, mulheres, camponeses, organizações
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
sociais para que possam agir pensando na busca de soluções sem se esquecer dos
princípios da equidade, preocupação ambiental, respeito à coletividade e a divisão
igualitária das riquezas obtidas dentro desse parâmetros. Ainda reivindica o direito
a poder participar de lutas emancipatórias sem que sofram perseguição ou qualquer
outro tipo de retaliação.
Interessante observar a colocação da Congcoop. A preocupação não é, apenas, de
denunciar a pobreza, a corrupção, a fuga de capitais, a destruição do meio ambiente, o
desrespeito das comunidades e culturas locais. Sua demanda vai além na medida em
que o combate à pobreza e a exclusão se realizariam não só com a mudança estrutural
mas com a participação e inclusão de TODOS os cidadãos. Ressaltamos o termo todos
porque em momento algum se fala em deixar as elites, por exemplo, fora desse processo.
Ao contrário a sua inclusão deveria ser feita, mas baseada em outros moldes e princípios
claramente inclusivos.
No boletim do dia 15 de agosto ao se debruçar sobre os países árabes social Watch
abre espaço para recolher o informa das organizações da sociedade civil para estabelecer
uma sociedade menos injusta social e economicamente falando do mundo árabe. Os
procedimentos seguidos na matéria pouco diferem da anterior. Se faz um apelo veemente
para que, no pós-2015, toda a sociedade possa participar na elaboração das políticas
públicas que beneficiem a toda a sociedade. Para isso, conclama o respeito à tradição
árabe, na qual inclui, o elemento religioso. Ou seja, a inclusão social e o combate à pobreza
não podem ir muito distantes do respeito dos costumes e tradições locais.
CONCLUSÃO
As notícias apresentadas corroboram a ideia de que Social Watch pode ser considerado um site alternativo, promotor da cidadania, por hospedar organizações e entidades que agem à margem do poder instituído e que tem como finalidade principal
acompanhar e cobrar do poder público projetos destinados a fortalecer as demandas
dos setores excluídos e marginalizados na sociedade. Social Watch explora ao máximo
a possibilidade da Internet e cria uma rede global de entidades que se alimentam com
as experiências, projetos e conteúdos de outras de outras entidades criando assim uma
relação de horizontalidade no intercâmbio de experiências além de propor mudanças
estruturais na e da sociedade atual. Ao defender uma política alternativa e contra hegemônica do poder estabelecido privilegia as ações que promovem a cidadania ativa por
atuar demandando do poder público ações que promovam a justiça e equilíbrio social.
As notícias e os conteúdos publicados se baseiam numa atitude crítica para com
a realidade ao mesmo tempo que se tornam nos canais de expressão dos grupos
marginais e excluídos do sistema, bem como comporta materiais com sentido social
que não encontram espaço não agendados meios tradicionais. Basta lembrar que das
quinze notícias apenas três foram cobertas pelos meios de comunicação massivos. Dessa
maneira o que sobressai nas notícias publicadas e o que se encontra em comum a todas
elas é que são temas não usuais da mídia tradicional e oferecer uma ótica diferente pois
visam criar uma nova ordem mais justa e humana baseada no respeito à diversidade e
na inclusão de pautas relacionadas com o meio ambiente, a ecologia, direitos humanos,
minorias e questão do gênero.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Social Watch a construção da cidadania mundial
Maximiliano Martín Vicente
REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. (2009) Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal; Edições 70, LDA.
CASTELLS, Manuel. (2013) Redes de indignação e esperança: movimentos Sociais na era da Internet.
Rio de Janeiro: Zahar Editores.
DALLARI, Dalmo de Abreu. (1988) Cidadania e Direitos Humanos. São Paulo Brasiliense.
ENTMAN, Robert M. (1993) “Framing: Toward Clarification of Fractured Paradigm”. Journal
of Communication, 43 (4), p. 51- 58.
MARSHALL, Thomas Humprey. (1967) Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar.
PERUZZO, Cicilia Maria Krohling. (2004) Comunicação nos movimentos populares: a participação
na construção da cidadania. 3ª.ed. Petrópolis: Vozes.
SANTOS, Boaventura de Souza. (2006) A gramática do tempo: para uma nova cultura política.
São Paulo: Cortez.
SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). (2010) Epistemologias do Sul. Porto São Paulo: Cortez.
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O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
The Media Council and the civil participation
Pa u l a C e c í l i a
de
Mir anda M a rques 1
M a r i a Te r e s a M i c e l i K e r b a u y2
Resumo: A regulação da radiodifusão brasileira é alvo de críticas por seu modelo
de exploração comercial que propicia a homogenização da programação e dificulta
a integração e representação da sociedade nos meios de comunicação. Uma das
ferramentas existentes para efetivar a participação civil nos debates sobre a mídia
é o Conselho de Comunicação Social (CCS). Considerando esse cenário, o CCS
foi investigado para entender de que forma cumpre seu papel de representante
da sociedade. A metodologia de análises bibliográfica e documental, permite
compreender o contexto político – com forte influência econômica – das decisões
que formataram o Conselho. Assim, o artigo percorre as seguintes etapas: 1)
apresentação da regulação; 2) estudo do CCS; e 3) apontamentos sobre o potencial
inclusivo do órgão. Como resultado, foi possível aferir que os assuntos delegados
ao Conselho percorrem todas as temáticas abordadas pela CF, o que permitiria
ao órgão ser importante ambiente de discussão da comunicação nacional,
apesar de seu caráter consultivo. Entretanto, na prática, o CCS mostra-se um
apêndice burocrático que, em decorrência de negociações políticas e da influência
comercial, torna-se ineficaz.
Palavras-Chave: Conselho de Comunicação Social. Regulação. Radiodifusão.
Abstract: Regulation of Brazilian broadcasting is criticized for its commercial
exploitation model that provides the homogenization of programming and
hampers the integration and representation of the society in the media. One
of the existing tools to carry out the civil participation in the media debates
is the Media Council (CCS). Given this scenario, the CCS was investigated to
understand is fulfilled its role as representative of the society. The methodology
starts in bibliographical and documentary analysis in order to understand the
political context - with strong economic influence - decisions that originated
and directed the Council. Thus, the article goes through the following steps: 1)
presentation of the regulation; 2) CCS study; and 3) discussion about inclusive
organ potential. As a result, it was possible to determine that the matters
delegated to the Council offer all issues addressed by the CF, which would
allow the agency to be important national communication environment of
discussion, despite its advisory character. However, in practice, the CCS is shown
a bureaucratic appendage of the parliament as a result of political negotiations
and commercial influence, it becomes ineffective.
Keywords: Media Council. Regulation. Broadcasting.
1. Aluna do programa de mestrado em Comunicação, Unesp/ Bauru. E-mail: [email protected].
2. Orientadora do projeto. Professora do programa de pós-graduação em Comunicação, Unesp/ Bauru.
E-mail: [email protected].
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
1102
O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy
A REGULAÇÃO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL 3
A
RADIODIFUSÃO SURGIU como um serviço público, por ocupar o espectro de
frequência. A exploração dos canais tidos como bens públicos, segundo a Constituição Federal (1988), pode ser feita em três modelos distintos – público, estatal,
privado. De acordo com o decreto 52.795/63 que aprova o Regulamento dos Serviços de
Radiodifusão, todos esses sistemas devem respeitar o interesse nacional:
Os serviços de radiodifusão têm finalidade educativa e cultural, mesmo em seus aspectos
informativo e recreativo, e são considerados de interesse nacional, sendo permitida, apenas,
a exploração comercial dos mesmos, na medida em que não prejudique esse interesse e
aquela finalidade. (Art. 3º, Capítulo II.)
Contudo, a radiodifusão de sons e imagens no Brasil foi marcada pela busca de
audiência e retorno comercial, majoritariamente, conforme é demonstrando desde a
estruturação da regulação dos meios de comunicação eletrônica nos anos 1930, momento
em que optou-se por outorgar as concessões de rádio principalmente à iniciativa privada
(SPINILLO, 2011), até a aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) em
um frágil momento político (BOLAÑO, 2002).
Para garantir o interesse público e a finalidade educativa da radiodifusão, a regulação da comunicação no Brasil buscou estabelecer parâmetros para a programação das
emissoras. Com base na lei nº 4.117/62, que institui o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT) – ainda o principal instrumento regulador da radiodifusão no país, na
Constituição Federal de 1988 e no conjunto de leis e decretos posteriores que tratam da
regulação da radiodifusão, é possível identificar princípios para nortear a programação
de rádio e televisão e definir as obrigações legais e contratuais.
A lei maior que versa sobre a produção e programação de meios de comunicação
eletrônica é a Constituição Federal (CF), que em seu artigo 221 estabelece:
A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes
princípios:
I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que
objetive sua divulgação;
III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais
estabelecidos em lei;
IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. (CONSTITUIÇÃO, 1988)
Percebe-se pela redação do capítulo 221, que na Constituição brasileira há artigos
que tratam genericamente da Comunicação Social e sua abordagem. Assim, os direcionamentos apresentados pelo CBT são ainda importante ferramenta para o cumprimento
da CF, como por exemplo artigos que versam sobre: as finalidades da radiodifusão (CBT,
art. 38, d)); o tempo máximo de publicidade permitida (art. 124); o mínimo de conteúdo
informativo noticioso (art. 38). Além disso, a legislação estabelece limites à gestão de
concessões apenas para brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos (art. 38, a)),
3. Fragmentos deste item fazem parte da íntegra de texto apresentado em congresso regional em 2014.
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O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy
impede a administração de mais de uma concessionária por pessoa em cada localidade
(art. 38, g)), impede a gerência de concessionária por pessoa que goze de imunidade
parlamentar (art. 38, i)), entre outros.
Os parâmetros apresentados ainda são considerados bem “generosos” por Jambeiro
(2008, p.91). O autor destaca que, ao estipular valores como a cota mínima de conteúdo
noticioso, fica evidente que o objetivo é a maximização do lucro, contribuindo para a
homogeneização de conteúdos: “Pelos cânones deste modelo, temas complexos, ou que
desatendam ou questionem aqueles gostos e interesses devem ser evitados”.
Mesmo com as normativas estipuladas pelo governo também após a Constituição
que estipula claramente a pluralidade, a exploração de forma comercial desses espaços
abriu a possibilidade para que o cidadão fosse tratado como consumidor, uma vez que
este paga pela publicidade que sustenta as emissoras de rádio e televisão. Segundo
Miguel (2004, p. 141), esse modelo permite que informação e cultura sejam reduzidas
a elementos de disputa pela audiência, levando a uma padronização de conteúdos. A
homogeneização do que é produzido contraria a finalidade educativa e cultural, pois
é a diversificação que garantirá a presença de representações de cada segmento social
na mídia, com suas diferentes perspectivas.
Entende-se também que a padronização de conteúdos prejudica o exercício da cidadania, pois, ao mesmo tempo em que marginaliza as minorias, não permite à sociedade
acesso às informações distintas para que possa construir seu repertório, entender suas
possibilidades e ter ferramentas de transformação da realidade. Esse e outros temas
abordados pela regulação, assim como o incentivo da produção independente e regional, são diretrizes que não têm destaque nesse modelo de exploração, já que não geram
interesse do ponto de vista comercial. Outro aspecto importante é destacado por Lima
(2011) ao afirmar que a exploração comercial também contribuiu para a formação de
grupos empresariais familiares que “são também os mesmos grupos oligárquicos da
política regional e local” e que dominam os meios de comunicação. Miguel (2004, p.131)
alerta para a concentração das mídias nas mãos de um grupo de empresas, que “significa
que a difusão da informação é, em grande medida, controlada por um grupo de pessoas
com significativos interesses em comum”. Essas críticas convergem com o que Bolaño
(2002) destaca como as principais fraquezas da regulação: o modelo comercial privilegia
as ‘cabeças de rede’ em detrimento do regionalismo, favorecendo a concentração dos
meios de comunicação com oligarquias familiares explorando um bem público.
Jambeiro (2008) aponta como característica única da regulação brasileira o fato de ser
centralizada no poder executivo com aval do congresso nacional, enquanto em outros
países comissões criadas especificamente com esse fim são responsáveis pela regulação
da radiodifusão. Isso causa estranhamento combinado ao fato de que parlamentares
não são impedidos de ser concessionários4, a previsão legal apenas impede que estes
sejam diretores ou gerentes de meios de comunicação.
Bolaño e Brittos (2003, p.57) acrescentam que embora o Brasil tenha referências para
a produção de conteúdo de interesse público, essas diretrizes são frouxas, não havendo
4. Segundo Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica – SSCE, do Ministério das Comunicações,
em nota enviada ao Congresso em Foco.
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O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy
efetividade na cobrança do cumprimento dessas normativas. A atual regulação brasileira
impõe poucas obrigações sociais às corporações, sugerindo a influência do poder econômico nas relações político-institucionais. Faltaria à legislação o objetivo de controlar
o mercado, “não há, portanto, a suposta neutralidade do Estado, que seria delineada
pelos imperativos da globalização capitalista”.
Uma regulação das comunicações como pilar para o fortalecimento e avanço da
democracia brasileira é o que sugere Lima (2011) para evitar as falhas da mídia com a
sociedade. O autor aponta, ainda, que no governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, a partir de 2003, houve um discreto avanço das políticas públicas na área, com a
fundação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e com a Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom). Uma das grandes críticas do autor é com relação à falta de
influência da sociedade civil na Comunicação, classificando seus integrantes como “não
atores” do setor. A situação ideal seria a garantia da maior quantidade de atores sociais
com capacidade para difundir produções simbólicas.
Com isso, o debate que se estabelece é sobre a possibilidade de assegurar os interesses sociais, promovendo a participação mais ativa da sociedade, de forma a tornar a
mídia mais democrática. Porém, apesar de o governo sinalizar favoravelmente quanto
a uma regulação mais severa aos meios de comunicação, os detentores desses veículos
prontamente se blindam, afastando assim as propostas de retomar o tema, conforme
relata Pieranti (2008, p. 129), ao afirmar que, “quaisquer tentativas de regulação de conteúdo ou a ela relacionadas são, em geral, consideradas pelos meios de comunicação
práticas de censura”.
O CONSELHO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
Considerando a necessidade de incorporar a sociedade às discussões sobre a regulação no país, este item investigará o Conselho de Comunicação Social (CCS), órgão
previsto em Constituição Federal, como alternativa para inclusão social de modo que a
radiodifusão alcance seu propósito como bem público, ou seja, contemple os preceitos
de pluralidade, regionalismo e finalidade educativa e cultural.
Discussões para a criação do Conselho
No processo de formulação do capítulo Da Comunicação Social, da Constituição
Federal de 1988, a discussão foi polarizada entre conservadores – representados pela
Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) – e progressistas – representados pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). De um lado, a Abert defendia o
controle da radiodifusão pelo Poder Executivo e a exploração de concessões por empresas
privadas, de outro, a Fenaj propunha a exploração do espectro por entidades sem fins
lucrativos e a criação do Conselho de Comunicação Social (BOLAÑO, 2010; JAMBEIRO,
2000; SIMIS, 2010). “A ideia surgiu formalmente em encontro nacional de jornalistas
promovido pela Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), com o objetivo de discutir
propostas a serem apresentadas no processo constituinte, em 1986” (LIMA, 2012, p.199).
Da proposta inicial, o CCS seria um órgão fundamental, atuante e deliberativo, “com
poderes normativos e até coercitivos” (CHAGAS, 2012, p. 99); “o conselho operaria com o
objetivo de fazer reconhecer direitos à comunicação que não fossem apenas a liberdade
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O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy
de expressão.” (BIGLIAZZI, 2007, p. 30). Segundo o relatório ‘Por Políticas Democráticas
de Comunicação’, redigido pela deputada Cristina Tavares, seria um “instrumento de
ação social sobre os meios de comunicação”, e atenderia três princípios:
I – Promoção da cultura nacional em suas distintas manifestações, assegurada a regionalização da produção cultural nos meios de comunicação e na publicidade.
II – Garantia da pluralidade e de centralização vedada a concentração da propriedade dos
meios de comunicação.
III – Prioridade a entidades educativas, comunitárias, sindicais, culturais e outras sem fins
lucrativos na concessão de canais e exploração de serviços (ANC, 1987).
Idealizou-se um conselho com quinze membros que agrupasse atribuições desde
outorga e renovações até pareceres sobre a qualidade técnica da programação. Entre
os representantes, com mandatos de três anos, estariam membros da área de criação
cultural e escolhidos por empresas, sindicatos, comunidade científica, universidades,
Ministério da Cultura, Ministério das Comunicações, Senado e Câmara dos Deputados.
O relatório concluía a sua análise do papel democrático da comunicação social com uma
lembrança do que seriam, na opinião da relatora, as duas principais demandas sociais
apresentadas à Constituinte: “obter-se o maior controle da sociedade sobre os conteúdos
dos meios de comunicação que colocam em suas casas” e “agregar um caráter social ao uso
que se faz dos meios de comunicação, fazendo servir à população e ao seu real interesse”
(ANC, 1987, p. 285, apud BIGLIAZZI, 2007, p.34)
Tal caráter social esbarrava no interesse de exploração comercial do espectro, isso
faz com que haja pressão por parte das empresas para que essa proposta seja alterada.
Além da dificuldade de conciliação entre as propostas da Abert e da Fenaj, a regulação
do audiovisual no país também enfrentava o desafio de passar pelo poder legislativo.
A constituição de um conselho regulador representava a autoridade do órgão e a diminuição da autonomia do poder legislativo, muitas vezes com parlamentares envolvidos com concessões e exploração do serviço. Lima (2012, p.191) afirma que “Nunca foi
admitida, por exemplo, a criação de um órgão regulador autônomo, com poderes para
outorgar, renovar e cancelar concessões de rádio e televisão, a exemplo do que ocorre
em outros países”.
Devido às insatisfações com a proposta apresentada pela relatora, o deputado José
Carlos Martinez propôs uma emenda supressiva, retirando do texto o Conselho Nacional de Comunicação e dividindo as atribuições entre os poderes, substituindo, assim, o
Conselho pelo Congresso Nacional:
Gostaria de aproveitar a oportunidade para dizer que nós deveremos construir nesta Constituinte provavelmente uns cem conselhos, um conselho para mineração, um conselho
para tudo aquilo que a gente vai ter. Então entendo que o Congresso é a grande Casa para
dirimir essas dúvidas. Por isso, votei pela extinção do Conselho (ANC 1987e p. 162-163,
apud BIGLIAZZI, 2007).
Com isso, os parlamentares legislariam e regulariam um setor do qual muitos deles
se beneficiavam. A emenda Martinez, como ficou chamada, foi aprovada em meio a
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denúncias de troca de votos por concessões de rádio e televisão, provocando um desacordo da Comissão Técnica da Comunicação na Constituinte o que impediu que um
relatório final fosse aprovado (BIGLIAZZI, 2007; LIMA, 2012). Bigliazzi (2007) afirma
que a ausência do relatório final da comissão permitiu um “acordo de lideranças”, do
qual não constam registros, que resultou em uma mescla da emenda do deputado
Martinez com a proposta de Cristina Tavares: um conselho como órgão auxiliar do
Congresso Nacional, “que deveria ser ouvido apenas quando o Congresso Nacional
julgasse necessário” (LIMA, 2012, p. 191), “concessão máxima feita à ala progressista”
(BOLAÑO, 2010, p. 96).
Chagas (2012) revela um depoimento do jornalista Carlos Chagas5 em reunião no
CCS em março de 2004, que evidencia que não só os parlamentares motivaram a transformação do caráter autônomo do conselho:
Apesar da simpatia com que as bancadas constituintes receberam a sugestão […], uma única
frase percorreu o plenário e determinou, de forma súbita, senão o arquivamento, ao menos
a distorção dos objetivos do Conselho, finalmente transformado em apêndice da Mesa do
Congresso. A frase foi: ‘O dr. Roberto não gostou […].’ (CHAGAS, 2012, p.99).
Desse modo, a proposta inspirada no modelo norte americano da Federal Communications Commission (FCC), resultou na complementaridade dos sistemas público, estatal
e comercial (art. 223), concessões dadas pelo Executivo com aprovação do Legislativo e
a redação do artigo 224 da Constituição (LIMA, 2012): “Art. 224 - Para os efeitos do disposto neste Capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como órgão auxiliar, o Conselho
de Comunicação Social, na forma da lei.” (CF, 1988).
O artigo 224 foi regulamentado em 1991 com a Lei 8.389, sancionada pelo então
presidente Fernando Collor de Mello, que institui o Conselho e estabelece suas competências - pareceres e recomendações dos seguintes temas:
(a) liberdade de manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação; (b) propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos
e terapias nos meios de comunicação social; (c) diversões e espetáculos públicos; (d) produção e programação das emissoras de rádio e televisão; (e) monopólio ou oligopólio dos
meios de comunicação social; (f) finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas
da programação das emissoras de rádio e televisão; (g) promoção da cultura nacional e
regional, e estímulo à produção independente e à regionalização da produção cultural,
artística e jornalística; (h) complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de
radiodifusão; (i) defesa da pessoa e da família de programas ou programações de rádio e
televisão que contrariem o disposto na Constituição Federal; (j) propriedade de empresa
jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens; (l) outorga e renovação de concessão, permissão e autorização de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens;
(m) legislação complementar quanto aos dispositivos constitucionais que se referem à
comunicação social (Art. 2).
5. Carlos Chagas é jornalista, advogado e professor. Foi representante da sociedade civil no CCS entre os
anos de 2002 e 2004.
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O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
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Esta lei, projeto do senador Roberto Pompeu de Sousa Brasil, determina a composição do órgão auxiliar – deveria contar com treze membros titulares, além de treze
membros suplentes, ligados às empresas, aos sindicados e à sociedade civil, sem representação dos poderes Executivo ou Legislativo. Os membros do CCS teriam mandatos de dois anos, sendo permitida a recondução. O Senado Federal, de acordo com o
artigo 6, parágrafo I da mesma lei, deveria eleger os integrantes, com nomeação em
sessão conjunta no Congresso Nacional, sendo eles: 1 representante das empresas de
rádio; 1 representante das empresas de televisão; 1 das empresas de imprensa escrita; 1
engenheiro com notórios conhecimentos na área de comunicação social; 1 da categoria
profissional dos jornalistas; 1 da categoria profissional dos radialistas; 1 da categoria
profissional dos artistas; 1 das categorias profissionais de cinema e vídeo; 5 membros
representantes da sociedade civil.
Já em seu artigo 8, a Lei 8.389 determinou os prazos para seu cumprimento: até sessenta dias após a publicação (que ocorreu no dia 31 de dezembro de 1991) para a eleição
dos membros do CCS e de até mais trinta dias, a partir da eleição para a instalação do
Conselho. Entretanto, mesmo com os prazos claramente estipulados, a implantação do
Conselho só aconteceu onze anos depois. Simis (2010) credita o atraso ao desinteresse
de entidades representativas de algumas categorias, à resistência de parlamentares
detentores de concessões da radiodifusão e também ao contexto do país na década de
1990. No Brasil, essa década representou uma fase de liberdade total de conteúdo, de
modo que a programação televisiva do período, por exemplo, foi muito criticada, até
que a própria sociedade civil, organizada por meio de entidades no Fórum Nacional
pela Democratização da Comunicação, começou a pressionar para a criação de regulamentação do Conselho em 1991. (SIMIS, 2010).
O CCS receberia, ainda, algumas atribuições extras – a) em 1995, com a Lei 8.977/
1995, a Lei do Cabo, indicando o Conselho ‘como ator proeminente’ que deve ser ouvido
sobre os atos, regulamentos e normas para implementação da lei e prestação de serviços
do setor (BIGLIAZZI, 2007; BOLAÑO, 2010; LIMA, 2012); e, depois de sua implantação,
b) a última versão do regimento interno (2004), estipulava que o Conselho estudasse
também acordos internacionais e que fosse além da radiodifusão, abrigando as demais
mídias, incluindo as que surgissem após a CF; e c) em 2008, com a Lei da EBC, n. 11.652,
que estabelece que o Conselho Curador da empresa deveria encaminhar ao CCS todas
as decisões tomadas em suas reuniões (LIMA, 2012). Cabe ressaltar que, mesmo antes
de o Conselho ser instalado, a criação da Anatel em 19976 promoveu a transferência
das atribuições que a Lei do Cabo estipulou ao CCS para a Agência. (BOLAÑO, 2010).
Implantação do CCS
Em 2002, em um acordo para aprovação da Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) 05, que previa a legalização da entrada do capital estrangeiro na radiodifusão
nacional, o Conselho de Comunicação Social foi, por fim, estabelecido. Isso aconteceu,
pois, embora as empresas temessem pela concorrência possível promovida por essa
6. Com a Lei 9.472/1997, a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), a Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel) foi criada para assumir a regulação das telecomunicações e de serviços de televisão privada. Com
relação à radiodifusão, a Anatel ficou responsável apenas pela administração do espectro de frequência.
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O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
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abertura, as mesmas precisavam ter um aparato financeiro para fazer a transição para a
tecnologia digital, com a convergência de diferentes plataformas, que surgia à época. E
a Rede Globo, que sempre se posicionou contra a participação do capital internacional,
migrou de lado, ao precisar quitar sua dívida externa. Assim, a PEC que alterava o artigo
222 da CF foi aprovada, “[...] num ato magnânimo do Congresso, eles concederam, em
troca […] que fosse instalado o Conselho de Comunicação Social e regulado o artigo 221
da Constituição, que fala em regionalização e em produção independente” (ANDRADE,
2004, apud CHAGAS, 2012, p.101).
Com a viabilização e instalação do Conselho, após a indicação dos membros do
primeiro mandato em 05 de junho de 2002, o CCS contava com uma lista de designações
e deveres. No primeiro mandato, as dúvidas sobre as atribuições do Conselho foram
abordadas. Bigliazzi (2007) cita a discussão sobre como proceder com pedidos que fossem originados da sociedade civil ou de órgãos governamentais de fora do Congresso.
Nesse caso, a característica do CCS como órgão meramente auxiliar foi evidenciada, de
modo que as demandas externas deveriam passar pela presidência do Senado.
O Regimento Interno foi aprovado apenas no início de 2004 e trata, por exemplo,
da ausência de remuneração para membros do Conselho, das atribuições do CCS e da
necessidade de tomar decisões conclusivas sobre os assuntos tratados. Possibilita também, a fim de sistematizar as verificações dos temas elencados, que o CCS estruture até
cinco comissões temáticas para estudar o tema e produzir um relatório - atualmente o
Conselho conta com três comissões, são elas: Marco Regulatório, Liberdade de Expressão e Produção de Conteúdo. O regimento estipula ainda o calendário do Conselho,
definido com reuniões ordinárias mensais, cujas atas estão disponíveis em sítio do
governo7, além de reuniões extraordinárias que devem ser convocadas pelo poder
legislativo, com o intuito de discutir pautas específicas. Nesta primeira fase de atuação,
entre 2002 e 2006, o CCS passou por dois mandatos e realizou quarenta e cinco reuniões
ordinárias (LINS, 2012).
Bigliazzi (2007, p.56) critica a pouca relevância do órgão: “O Conselho não pode
se tornar competente para exercer o papel de protagonista porque o programa que
fundamentaria sua atuação imaginada […] começou a ser abortado ainda durante a
Constituinte e foi lentamente desativado após o encerramento da Assembléia”. Por outro
lado, Lima entende que, ainda que limitado o Conselho exerce incômodo:
Mesmo sendo apenas um órgão auxiliar, o CCS instalado demonstrou ser um espaço relativamente plural de debate de questões importantes do setor – concentração da propriedade,
outorga e renovação de concessões, regionalização da programação, TV digital, radiodifusão
comunitária etc (LIMA, 2012, p.192).
Lima (2012, p.192) explica que isso seria causado pelo fato de que muitos parlamentares são ligados às empresas concessionárias de rádio e televisão (de acordo com
Intervozes, em 2013, 25% dos senadores eram detentores de concessões8). “O CCS é um
7. Atas disponíveis em: <http://www.senado.gov.br/atividade/conselho/conselho.asp?con=767>.
8. Informaçãoextraída de notícia do site do Intervozes – coletivo Brasil de Comunicação Social, de 07 maio
2013. Disponível em: <http://intervozes.org.br/representacao-entregue-ao-mpf-questiona-concessoes-deradio-e-tv-para-parlamentares/>. Acesso em 23 out. 2014.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
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órgão que – insisto, mesmo sendo apenas auxiliar – discute questões que ameaçam os
interesses particulares desses parlamentares e dos empresários de comunicação, seus
aliados. Na verdade, eles não querem debater”.
Em 2006 depois do fim da segunda gestão do CCS, novos membros não foram
indicados e o Conselho permaneceu inativo até 2012, quando o presidente do Senado
José Sarney indicou os novos representantes. “Para muitos não há interesse na existência de um Conselho instalado dentro do parlamento capaz de cobrar e debater sobre
comunicação, ainda que apenas para a consulta e não é casual que desde 2007 o CCS
esteja inativo” (CHAGAS, 2012, p.102).
O fato de o Conselho de Comunicação Social passar mais tempo desativado que
atuante preocupa, pois, além de suas atribuições não serem cumpridas, órgãos como
a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) têm suas atividades prejudicadas por depender do Conselho. Lima (2012, p.195). argumenta que, nesse intervalo, a lei está sendo
descumprida e que a responsabilidade é do Congresso Nacional, pois o mesmo erra ao
não convocar o CCS, uma vez que deixa, desse modo, de servir ao interesse público: “o
Senado Federal se omite de suas responsabilidades e não se faz presente, nem mesmo
se utilizando dos instrumentos que a Constituição já coloca a seu dispor”.
Lima (2012, p.199) alerta ainda para o desinteresse da mídia em ver o órgão em
atividade: “Indefensável é a cumplicidade gritantemente silenciosa da grande mídia
e daqueles que nos lembram quase diariamente dos supostos riscos e ameaças que a
liberdade de expressão enfrenta no Brasil e em países vizinhos da América Latina”.
Após o hiato no funcionamento e uma representação da deputada Luiza Erundina
em 2009 questionando sobre a eleição de novos membros, houve a retomada do CCS,
que deveria trocar de representantes em 2014, entretanto, novamente o Conselho está
desativado.
CONSIDERAÇÕES
Baseado nesse breve histórico da proposição, implantação e atuação do Conselho de Comunicação Social, pode-se ressaltar o pouco comprometimento que o Poder
Legislativo demonstra com o órgão, haja visto que desde as primeiras discussões, as
negociações minaram o poder regulatório da ideia inspirada na Federal Communications Commission.
Com a descrição das atribuições do CCS, é possível perceber que os assuntos delegados ao Conselho percorrem todas as temáticas abordadas pela Constituição Federal,
o que permite que o órgão seja importante ambiente de discussão da comunicação
nacional. Apesar do caráter consultivo do Conselho, a construção dessa arena pública de
debates torna-se possibilidade promissora de participação pela representação, se aliada
às iniciativas populares de democratização da mídia, tais como os projetos apresentados pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e da Frente
Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação
Popular (Frentecom).
Contudo, é importante destacar o alerta feito por Lima (2012), sobre a falta de apoio
midiática na promoção de iniciativas democráticas para a radiodifusão. As empresas
de comunicação têm como seus representantes quase metade do CCS e isso dificulta a
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
Paula Cecília de Miranda Marques • Maria Teresa Miceli Kerbauy
tomada de decisões que estejam em desacordo com os princípios comerciais dos meios
de comunicação. Além disso, se, de fato, o Conselho de Comunicação Social incomoda
os setores ligados à comunicação, pode-se apreender que, mesmo consultivo, o órgão
ainda exerce alguma influência na regulação do setor e, por isso, deve ser preservado,
“para garantir um controle social que fiscalize e garanta o equilíbrio entre o público e
o privado, respeitando os direitos do cidadão” (SIMIS, 2010, p.70).
Acredita-se que seja possível ter uma sociedade civil cada vez mais presente nos
processos comunicativos, uma vez que dela é o espaço utilizado para a radiodifusão e é
a ela que a Constituição Federal privilegia ao defender a comunicação social de interesse
público. Por fim, cabe ressaltar que, atualmente, o CCS ainda não é eficaz na finalidade
de ampliar a participação social, devido ao seu caráter auxiliar e ao enfraquecimento
consequente das negociações políticas que o originaram.
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1111
O Conselho de Comunicação Social e a participação civil
Maria Teresa Miceli Kerbauy
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Acesso em 17 maio 2013.
Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais
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Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia
Notes on the Campaign #ForaCoronéisDaMídia
Gisel e Dan usa Sa lga do L esk e 1
Resumo: Esta pesquisa reflete acerca da manipulação e do oligopólio midiático no
Brasil, com base em teóricos de Sociologia e Comunicação como Abramo (2007),
Castells (2013) e Deuze (2013). Apresenta-se um breve estudo sobre a atuação da
Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação (ENECOS), do Coletivo
Intervozes e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) Instituições envolvidas na Campanha #ForaCoronéisDaMídia, para então analisar
campanha em questão e o portal Donos da Mídia (donosdamidia.com.br), o qual
apresenta um panorama nacional dos veículos e redes de comunicação e identifica
as relações ilegais entre políticos e os conglomerados de mídia do país. Lançada
em Julho de 2014, a campanha #ForaCoronéisDaMídia tem por objetivo combater
o coronelismo eletrônico no Brasil e teve seu auge na Semana Nacional pela
Democratização da Comunicação (SNDC), de 13 a 24 de Outubro, com a realização
de diversas atividades, incluindo protestos, debates e a coleta de assinaturas para o
Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática. A análise evidencia que
além de haver monopólio midiático, a radiodifusão de caráter privado e comercial
favorece o coronelismo eletrônico e desrespeita a Constituição Federal.
Palavras-Chave: Oligopólio midiático. Democratização da comunicação.
Intervozes. ENECOS. Donos da Mídia.
Abstract: This research reflects on handling and media oligopoly in Brazil, based
on theoretical sociology and communication as Abramo (2007), Castells (2013)
and Deuze (2013). We present a brief study on the performance of the National
Executive of the Communication Students (ENECOS), the Collective Intervozes
and the National Forum for Democratization of Communication (BDNF) Institutions involved in #ForaCoronéisDaMídia Campaign to then analyze the
campaign in question and the portal Donos da Mídia (donosdamidia.com.br),
which presents a national overview of vehicles and communication networks
and identifies the illegal relationship between politicians and the country’s media
conglomerates. Launched in July 2014, the campaign #ForaCoronéisDaMídia aims
to combat electronic control in Brazil and had its heyday in the National Week
for Democratization of Communication (SNDC), 13-24 October 2015, with the
completion of various activities, including protests, debates and the collection of
signatures for the People’s Initiative Bill Democratic Media. The analysis shows that
in addition to having media monopoly, broadcasting of private and commercial
character favors the electronic control and disrespects the Federal Constitution.
Keywords: Oligopoly media. Democratization of communication. Intervozes.
ENECOS. Media owners.
1. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade Federal de
Juiz de Fora, Juiz de Fora, Minas Gerais (UFJF). [email protected]
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Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia
Gisele Danusa Salgado Leske
MÍDIA E SOCIEDADE
MÍDIA SE faz presente em todos os âmbitos da vida contemporânea, e assim
A
se torna assunto de suma importância nos estudos sociais. É impossível, hoje,
estudar o comportamento humano sem considerar as relações permeadas pela
mídia e aquelas estabelecidas entre os indivíduos e a mídia de forma direta, pois ela nos
cerca de maneira imperceptível e a cada evolução tecnológica molda ainda mais a visão
que se tem do mundo. O professor da Universidade de Amsterdam, Mark Deuze (2010,
p. 141), pesquisa especificamente sobre a relação do indivíduo com a mídia e afirma
que “[as mídias] formam e estruturam a maneira como percebemos e compreendemos o
mundo à nossa volta”. De acordo com seus estudos acerca da invisibilidade e da imersão
midiática na contemporaneidade,
[...] é preciso deixar claro que se entende por mídia não apenas tipos de tecnologias e porções
de conteúdo que escolhemos e coletamos do mundo à nossa volta- uma visão que considera
as mídias como agentes externos que nos influenciam de variadas maneiras. De fato, hoje
temos de reconhecer como os usos e apropriações da mídia permeiam todos os aspectos
da vida contemporânea (DEUZE, BLANK e SPEERS, 2010, p.140).
Se anteriormente o contato com a mídia incluía unicamente a recepção, hoje, com
os avanços da rede mundial de computadores os usuários interagem a todo momento
com os conteúdos acessados e com outros usuários. O sociólogo Manuel Castells (2001,
p.19), considerado o principal pensador das sociedades em rede, reflete sobre as relações
entre internet, negócios e sociedade em sua obra A galáxia internet, na qual reconhece
que “as pessoas, as instituições, as empresas e a sociedade em geral, transformam a
tecnologia, apropriando-a, modificando-a e experimentando-a especialmente no caso
da Internet, por ser uma tecnologia da comunicação”. E, de fato, a internet proporciona
uma ampliação das possibilidades na busca de informação pelo usuário das redes, além,
é claro de maior interatividade e alcance das narrativas independentes.
Contudo, é preciso voltar a atenção para a televisão e o rádio que ainda representam
os principais meios de comunicação em nosso país e que influenciam direta ou indiretamente a maior parte da população brasileira por meio da transcrição dos acontecimentos
e transmissão de posicionamento ideológicos. Esses modelos constituem o sistema de
distribuição conhecido como radiodifusão, o qual compreende a transmissão de sons
(radiodifusão sonora) e a transmissão de sons e imagens (televisão) a serem direta e
livremente recebidas pelo público em geral (BRASIL, 1963).
O fato é que, no Brasil, muitas vezes o indivíduo só tem acesso à informação, além
de seu convívio pessoal, pelos meios de comunicação de massa que possibilitam contato
com histórias distantes de si no tempo e no espaço e assim, o receptor passa a acreditar
na mensagem que lhe é transmitida, considerando-a como uma verdade absoluta. É a
criação do que Perseu Abramo (2003, p. 24) classifica como “verdade midiática”, e uma
questão importante é atentar ao modo como essa mensagem é absorvida pelos receptores, pois de acordo com o jornalista e sociólogo, “o público – a sociedade – é cotidiana e
sistematicamente colocado diante de uma realidade artificialmente criada pela imprensa
e que se contradiz, se contrapõe e frequentemente se superpõe e domina a realidade
real que ele vive e conhece”.
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Apontamentos sobre a Campanha #ForaCoronéisDaMídia
Gisele Danusa Salgado Leske
Como bem disse Guy Debord (1997, p. 177) em sua obra A Sociedade do Espetáculo,
sobre a manipulação da mídia no sentido de selecionar o que tornar-se-á público e o
que será desconsiderado na produção de notícias: “o espetáculo organiza com habilidade a ignorância do que acontece e, logo a seguir, o esquecimento do que, apesar de
tudo, conseguiu ser conhecido. O mais importante é o mais oculto”. Sobre a o aumento
da quantidade de informação diária da contemporaneidade e a seletividade da mídia,
Marialva Barbosa afirma que
[...] por mais que tenhamos acesso a milhões de informações, há sempre no jogo de guardar
o ato de descartar. E entre guardar e descartar há também o poder sobre o que guardar e
o que descartar, colocando em destaque o poder de quem pode realizar o ato de produzir
memória (e esquecimento) pra o futuro (BARBOSA, 2013, p.344-345).
Percebe-se assim o poder dos meios de comunicação em influenciar a população
através da transmissão de notícias selecionadas e moldadas segundo as diretrizes editorias de cada veículo e do conglomerado a que este pertence, esquecendo-se por vezes
do dever de levar ao conhecimento geral o que é de interesse público, podendo inclusive,
alterar a memória social de determinada comunidade.
MÍDIA E PODER
Se a mídia constrói a realidade e molda a visão de mundo dos indivíduos a partir
de sua influência cotidiana quase imperceptível, torna-se imprescindível a reflexão
acerca de quem controla essa mídia. No Brasil, a expressão que melhor traduz a situação dos meios de comunicação é “oligopólio”. Trata-se da concentração de um serviço
ou produto por poucos fornecedores no intuito de atender às necessidades de muitos
consumidores, impondo uma relação de dependência desigual e desajustada, na qual
o fornecedor torna-se apto a realizar as transformações que lhe forem convenientes em
prol de seu próprio benefício.
Como a Internet é vista como um meio de comunicação que, em tese, possibilita
uma pluralidade de vozes e versões, esta pesquisa volta a atenção para a radiodifusão.
É importante ressaltar que este sistema de distribuição de informação é regulamentado pelo Decreto n. 52.795, de 31 de Outubro de 1963, o qual define que “Concessão é
a autorização outorgada2 pelo poder competente a entidades executoras de serviços
de radiodifusão sonora de caráter nacional ou regional e de televisão”. No Capítulo II,
§ 5o alínea b deste Decreto, no que refere-se às formalidades a serem preenchidas pelos
pretendentes à concessão para executar os serviços de radiodifusão, consta que deve
ser obrigatória a declaração de que “não estão no exercício de mandato eletivo que lhes
assegure imunidade parlamentar ou de cargo ou função do qual decorra foro especial”.
Percebe-se então que não podem candidatar-se às concessões de rádio e televisão,
todo e qualquer cidadão brasileiro que esteja cumprindo mandato ou candidatando-se
a cargos políticos. Além deste Decreto, a própria Constituição da República Federativa
do Brasil, Art. 54 e 55, afirma que:
2. Outorga significa conferir o direito de executar algo ou conceder um direito, refere-se à autorização para
executar um serviço público ou utilizar bens públicos para execução de determinado serviço.
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Art. 54: Os Deputados e Senadores não poderão [desde a expedição do diploma], a) firmar
ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública,
sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando
o contrato obedecer a cláusulas uniformes.
Art. 55: Perderá o mandato o Deputado ou Senador: I - que infringir qualquer das proibições
estabelecidas no artigo anterior (BRASIL, 1988, Art. 54).
Contudo, ao observar o estudo do Coletivo Intervozes sobre Concessões de rádio e
tv: onde a democracia não chegou, percebe-se que a lei não está sendo cumprida nem com
relação às outorgas e menos ainda no que diz respeito às consequências para os políticos
que desrespeitam a Constituição, pois neste documento do ano de 2007 afirma-se que
53 deputados possuem diretamente veículos de comunicação; 27 senadores possuem diretamente veículos de comunicação; 40 geradoras de televisão afiliadas e 705 retransmissoras
da Rede Globo estão nas mãos de políticos; 128 geradoras de televisão e 1765 retransmissoras estão nas mãos de políticos; Dos 80 membros da Comissão de Ciência e Tecnologia,
Comunicação e Informática, pelo menos 16 têm relação direta com emissoras de rádio ou
TV; Só em 2004, 10 deputados votaram na renovação de suas próprias concessões; Metade
das 2.205 autorizações dadas a rádios comunitárias entre 1999 e 2004 estão sob o controle
de grupos partidários (INTERVOZES, 2007, p 19).
Tanto a posse de meios de comunicação por parte de políticos quanto a candidatura
a cargos políticos por parte de indivíduos que possuam outorgas sobre a radiodifusão
desrespeitam o Decreto de Regulamentação da Radiodifusão e ainda infringem a Constituição Nacional, ferindo consequentemente o direito do cidadão a uma comunicação
democrática.
É importante salientar que a regulamentação da mídia, mais especificamente das
questões relacionadas a radiodifusão, tem por objetivo a proteção do direito à liberdade
de expressão e democratização da mídia, não apenas no que se refere a expor os próprios
posicionamentos mas, também, no sentido de receber informações que apresentem uma
pluralidade de opiniões. Então a consequência do não cumprimento deste Decreto, no
que tange aos detentores dos veículos de comunicação, é justamente a parcialidade da
mídia, visto que por pertencer a um político, o meio de comunicação passa a defender
seus interesses pessoais e não mais pode tratar os acontecimentos com o ideal jornalístico de imparcialidade.
Tamanha é a importância de regularizar a mídia que a questão assume amplitude
universal e é um dos temas de discussão da UNESCO, a qual elaborou em 2011 uma
cartilha especifica sobre liberdade de expressão e regulação da radiodifusão, na qual afirma que
A regulação da mídia caminha, portanto, pari passu com a garantia, promoção e proteção da
liberdade de expressão. Na verdade, regular a mídia deve sempre ter como objetivo último
proteger e aprofundar aquele direito fundamental. Não por outra razão, a matéria é tratada,
a partir de diferentes perspectivas, pelos mais importantes instrumentos internacionais de
direitos humanos: Carta das Nações Unidas, Declaração Universal dos Direitos Humanos,
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Convenções sobre os Direitos da Criança,
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sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, sobre a Eliminação
de todas as Formas de Discriminação Racial, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(UNESCO, 2011, p. 7).
No âmbito nacional, diversas entidades lutam diariamente pela Liberdade de Expressão; uma delas é o Coletivo Brasil de Comunicação, conhecido como Intervozes. Trata-se
de uma organização que “trabalha pela efetivação do direito humano à comunicação
no Brasil, considerando-o essencial para o exercício da cidadania e da democracia”, a
qual é formada por ativistas e profissionais da Comunicação Social (e de diversas áreas
de formação), no intuito de alcançar a Democratização da Comunicação e o direito a
voz para diversos setores da sociedade. Em relação às concessões de radiodifusão, o
coletivo elabora diversos materiais informativos além de eventos em todo o país no
intuito de esclarecer à população a importância do assunto e lutar, de fato, para que a
legislação seja cumprida, alegando que as questões burocráticas e a falta de zelo por
parte do Estado fazem com que
Somados, legislação ultrapassada, burocracia leniente e desvio conceitual do que é liberdade
de expressão transformam outorgas temporárias em capitanias hereditárias. O processo administrativo acoberta uma política de renovação automática das concessões, em que a sociedade
não é ouvida e o Estado abre mão de seu papel de avaliador das outorgas. (...) O volume de
processos e a falta de acompanhamento durante a vigência da concessão fazem com que não
haja uma análise cuidadosa sobre seu uso, tornando o sistema de renovação um processo
praticamente burocrático. A decisão é sempre pela renovação. (INTERVOZES, 2007, p 10)
Evidencia-se que o processo de manutenção das outorgas ocorre de maneira automática e sem alcançar o conhecimento público que deveria ter, ao passo que trata-se
de uma concessão pública que deve atender às necessidades da população e cumprir
com determinados requisitos que estão sendo subjugados, desrespeitando as leis e os
direitos do cidadão brasileiro.
Também empenhada por melhorias na área, a Executiva Nacional dos Estudantes
de Comunicação Social é uma entidade representativa que atua com o propósito de
organizar os estudantes de comunicação de todo o Brasil em torno de pautas em comum.
Criada oficialmente em 1991, atua em torno de três principais bandeiras: Democratização da Comunicação (Democom), Qualidade de Formação do Comunicador (QFC) e
Combate às Opressões. Em busca de um debate com os futuros comunicólogos do país,
a Executiva Nacional de Estudantes de Comunicação, levanta que
[...] as perguntas que devem ser feitas são: qual liberdade de expressão tem o trabalhador
da comunicação se a informação que é transferida para a sociedade reflete as vontades do
patrão? Como pode o jornalismo fiscalizar o poder, se quem está no poder político é dono
dos meios de comunicação? (ENECOS, 2009, p. 3)
Diante desta realidade, o mito de que o Jornalismo atuaria como um quarto poder,
no intuito de vigiar e cobrar resultados do Estado, torna-se volátil, ao passo que os
políticos detêm o poder sobre os meios de comunicação em nosso país e assim influenciam a opinião pública a seu favor e controlam os conteúdos transmitidos a milhares
de espectadores, que são também eleitores.
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Partindo do pressuposto de que “a democracia no Brasil não pode existir sem a
efetiva democratização dos meios de comunicação”, inicia-se já na década de 80 uma
congregação de entidades para bradar por melhorias na área. É um esforço coletivo
que dá origem em 1991 a um movimento social que em 1995 transforma-se em entidade
representativa: o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). A
entidade participou de diversos momentos historicamente importantes para o avanço
da comunicação no Brasil, inclusive na elaboração de documentos oficiais e publicações
referentes a Conferências Estaduais e à I Conferencia Nacional de Comunicação que
ocorreu em 2009 na cidade de Brasília. Além disso, o FNDC publicou uma pesquisa
referência sobre a concentração da mídia no Brasil: Os Donos da Mídia.
DONOS DA MÍDIA
A partir da preocupação com a produção e controle da mídia no Brasil, surge na
década de 80, inicialmente com o trabalho elaborado pelo jornalista Daniel Herz, o projeto Donos da Mídia que apresenta em sua plataforma digital artigos, gráficos e tabelas
relacionados aos detentores das outorgas de comunicação no país:
O Projeto Donos da Mídia reúne dados públicos e informações fornecidas pelos grupos
de mídia para montar um panorama completo da mídia no Brasil. Aqui estão detalhadas
diversas informações sobre os seguintes tipos de veículos: emissoras e retransmissoras
de TV; rádios AM, FM, Comunitárias, OT e OC; operadoras de TV a cabo, MMDS e DTH;
canais de TV por assinatura; e as principais revistas e jornais impressos (portal eletrônico
DONOS DA MIDIA, 2015).
A publicação do FNDC permite acesso a um panorama nacional estabelecido a
partir do cruzamento de dados elaborado pelos pesquisadores que, além de quantificar
os veículos e redes de comunicação (evidenciando o oligopólio nacional), identifica as
relações ilegais entre políticos e as redes de comunicação do país. Esta parte do portal
apresenta-se da seguinte forma:
Pessoas que aparecem neste site são necessariamente sócias ou dirigentes de algum veículo
de comunicação, grupos de mídia ou redes nacionais de televisão. Existem ainda senadores,
deputados, governadores, prefeitos ou vereadores que possuem em seu nome - contrariando
a Constituição Federal - outorgas de rádio e televisão. Aqui não está computada a relação
indireta, ou seja, familiares e sócios de políticos que controlam algum veículo (portal eletrônico DONOS DA MIDIA, 2008).
Referente às grandes redes privadas e nacionais de radiodifusão que compõe o Sistema
Central de Mídia no Brasil – em 2008 foram citadas Globo, Band, SBT, Record e Rede
TV! – o portal afirma que controlam de modo direto ou indireto, os principais veículos de comunicação do país: “Este controle não se dá totalmente de forma explícita ou
ilegal. Entretanto, se constituiu e se sustenta contrariando os princípios de qualquer
sociedade democrática, que tem no pluralismo das fontes de informação um de seus
pilares fundamentais”. Salienta-se que as cinco empresas citadas controlam cerca de
927 veículos de comunicação no país, enquanto a Empresa Brasileira de Comunicação
(EBC), comandada pelo Governo Federal controla 95 veículos. Com base em dados
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recolhidos até a eleição de 2008, o portal afirma que:
No Brasil, 271 políticos são sócios ou diretores de 324 veículos de comunicação. O Projeto
Donos da Mídia cruzou dados da Agência Nacional de Telecomunicações com a lista de
prefeitos, governadores, deputados e senadores de todo o país para mapear quais deles
são proprietários de veículo de comunicação (portal eletrônico DONOS DA MIDIA, 2015).
A prática de concentrar o poder relacionado aos meios de comunicação de massa
nas mãos de políticos é conhecida então como coronelismo eletrônico e,
A literatura política brasileira tem utilizado o termo coronelismo como uma forma peculiar
de manifestação do poder privado, com base no compromisso e na troca de proveitos com o
poder público. A ciência política trata como coronelismo a relação entre os coronéis locais,
líderes das oligarquias regionais, que buscavam tirar proveito do poder público, no século
XIX e início do século XX. Hoje, não há como deixar de se associar esse termo aos atuais
impérios de comunicação mantidos por chefes políticos oligárquicos, que têm, inclusive,
forte influência nacional. O compadrio, a patronagem, o clientelismo, e o patrimonialismo
ganharam, assim, no Brasil, a companhia dos mais sofisticados meios de extensão do poder
da fala até então inventados pelo homem: o rádio e a televisão (BAYMA, 2002).
Destes 270 políticos3 citados acima: 20 são senadores, 48 são deputados federais, 55
são deputados estaduais e os que mais estabelecem relações diretas com os meios de
comunicação são os prefeitos. Na época somava-se a quantia de 147 representantes
máximos dos municípios como sócios ou proprietários de veículos de comunicação,
conforme o gráfico a seguir:
Figura I. Políticos com relação direta com meios de comunicação
Fonte de dados: Portal eletrônico Donos da Mídia
3. Optou-se pelo número 270 para coincidir com a divisão apresentada pelo portal no que se refere aos cargos.
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O portal apresenta a possibilidade de pesquisar por: Redes, Grupos, Veículos, Lugares e Pessoas. No que diz respeito às redes, o portal as identifica como “Conjunto[s] de
emissoras de rádio ou de TV que transmitem, de forma simultânea ou não, uma mesma
programação gerada a partir de uma ou mais estações principais (cabeças-de-rede)”.
Destaca-se a rede pertencente à família Marinho, localizada no Rio de Janeiro:
Maior rede de televisão em operação no Brasil, a Rede Globo encabeça o Sistema Central de
Mídia nacional por vários motivos. Entre eles, sua contínua relação com empresas regionais
de comunicação desde 1965. São 35 grupos que controlam, ao todo, 340 veículos. E sua influência é forte não apenas sobre o setor de TV. A relação com empresas em todos os estados
permite que o conteúdo gerado pelos 69 veículos próprios do grupo carioca seja distribuído
por um sistema que inclui outros 33 jornais, 52 rádios AM, 76 FMs, 11 OCs4, 105 emissoras
de TV, 27 revistas, 17 canais e 9 operadoras de TV paga. Além disso, a penetração de sua rede
de televisão é reforçada por um sistema de retransmissão que inclui 3305 RTVs5 (portal
eletrônico DONOS DA MIDIA, 20015).
Evidencia-se que a produção midiática de uma única rede alcança consumidores
do país inteiro e com isso pode influenciar diretamente em suas percepções, crenças,
modos de vida e visões de mundo. Reconhecer que tamanho poder social está condicionado a uma empresa privada que visa o lucro, estabelece seus próprios padrões de
produção e transmissão, desrespeita ou contribui para o desrespeito à regularização da
mídia e à Constituição Federal traz imenso desconforto para as entidades se almejam
a Democratização da Comunicação. Cria-se então, num esforço coletivo a Campanha
#ForaCoronéisDaMídia.
CAMPANHA #FORACORONÉISDAMÍDIA
Lançada em Julho de 2014 – pela ENECOS, Coletivo Intervozes e FNDC – a campanha #ForaCoronéisDaMídia tem por objetivo combater o coronelismo eletrônico no
Brasil e mobilizar os mais diversos movimentos sociais para sensibilizar a sociedade e
as esferas de poder sobre o tema. Foi organizada nacionalmente, mas com ações regionais específicas para dar ênfase aos efeitos do coronelismo eletrônico de cada região,
possibilitando a identificação por parte do público local e maior entendimento sobre
as pautas levantadas.
O lançamento oficial da campanha foi realizado ao final do Encontro Nacional de
Estudantes de Comunicação, organizado pela ENECOS, em Alagoas e contou com apoio
da população porém não teve cobertura midiática, visto que ia contra os interesses
políticos da mídia ao criticar diretamente a prática ilegal do coronelismo na região. Consistiu em uma passeata com palavras de ordem sobre democratização da comunicação
e empoderamento popular e culminou com um atear fogo em um boneco de pano que
representava o senador (eleito pe