Anexo - Thesaurus Editora

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Anexo - Thesaurus Editora
INUTILIDADES
Jan Pavel
© by Jan Pavel – 2009
Ficha Técnica
Tradução
Martina Malechová de Andrade
Revisão
Menezes y Morais
Diagramação
Marconi Martins
Arte da capa
Marconi Martins
Supervisão
Victor Tagore
Impressão
Thesaurus Editora
Este livro foi publicado com o auxilio da
Embaixada da Repúbica Tcheca no Brasil
ISBN: 978-85-7062-906-7
P337i
Pavel, Jan, 1973
Inutilidades / Jean Pavel ; tradução de Martina Malechová
de Andrade. – Brasília : Thesaurus, 2009.
86 p.
CDU 82-3(437)
CDD 891
Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com a lei. Nenhuma
parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio,
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Internet: www.thesaurus.com.br
Composto e impresso no Brasil
Printed in Brazil
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Sumário
Menininhas
7
Sem medo
15
Primeira tentativa
25
Mães
33
Vida inútil
43
Impressão
53
Manchas
67
... e multiplicai-vos!
77
5
6
Menininhas
“T
ilim, Adelka1, tilim”, sempre diz o Jakub
quando vai embora. Como aquele velhinho
do conto de fadas. Tilinta com as florzinhas
e desaparece.
Jakub é meu pai e ele tem como esposa Eva,
minha mãe. Temos também a vovó, mas ela fica sempre
praguejando, só uma vez ou outra abraça a mim e a
mamãe e diz: “Eu amo vocês tanto, minhas putinhas
de merda...”
Só que Jakub deixou a gente uns dias atrás.
Eva vive dizendo: “Agora que se revelou, filho da
mãe, ora, pode se mandar.”
Mas, eu acho que Jakub volta logo pra gente..
A vovó vive sentada no sofá, dizendo: “Eu tinha
lhe avisado que todos eram iguais. Eu tinha avisado...”
Eva está enfurecida demais, e quando quero
alguma coisa, grita comigo para não ficar enchendo o
saco. É pra eu me enfiar nalgum canto e deixá-la em
paz. Não vejo a hora de Jakub vir me buscar. Ele me
1 – Diminutivo do nome próprio Adela. (NDT)
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J an P a v e l
prometeu isso. Quando nos deixou, no ano passado,
também tinha dito que vinha me buscar e nunca veio.
Em vez disso, em poucos dias, voltou de vez. Mas
disse que tinha sido só por mim. Fiquei feliz. Naquela
ocasião, Eva praguejava e atirava coisas mais do que
agora, talvez por ter sido a primeira vez. Naquela vez
Jakub me levou pra passear e me disse para não ficar
aflita: quando chegasse a hora, iria embora de novo e
Eva pintaria o diabo de novo. Também me disse que era
pra eu aguentar, que passaria logo e ela se acalmaria.
Não era pra eu dar bola pra ela.
De repente, Eva me deu um tapa porque eu estava
sem chinelos. Depois me puxou rápido pra perto dela e
disse: ”É um nojento, não um pai!”
Comecei a sentir dor de barriguinha; sempre fico,
quando alguma coisa acontece em casa. Sempre espero
o que vai se seguir, e tenho tanto medo que até sinto
vontade de vomitar.
“Não é nada, tudo vai ficar bem de novo”, disse Eva.
A vovó estava chorando. Eu sabia, as lágrimas da
Eva logo começariam a escorrer. Eu estava com pena da
gente e chorei também.
“Você não deve ligar pra isso não – disse Eva –
não vamos fazer teatro aqui por causa dele. Ele não vale
isso, canalha.”
“Todos são assim”, repetiu a vovó, enxugando os
olhos no lenço e depois se assoou nele. “E você não
deveria ter se lixado pra...”
“O quê? E o que eu deveria ter feito?!”
“Alguma coisa...”
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I n u ti l idades
“Tá muito sabida agora!”
“Por que tá gritando comigo?! Com quem você
pensa que tá falando?!”
“A vida toda estragada...”
A vovó estava sentada na cama, de camisola,
balançando a cabeça. Os seus olhos cadavéricos me
pareciam assustadores. Às vezes me metiam tanto
medo que eu passava o dia todo só pensando em
não encontrá-los por aí. Fugia de todos, tentando me
esconder o máximo para não entrar no caminho deles.
Uma vez, quando Jakub voltou tarde, cheirando a
cerveja e rum (eu gostava desse cheiro, me parecia que
havia nele o mundo lá fora), me disse que a vovó era uma
pessoa má. Desde então eu tenho medo dela, observei
que era verdade. Acho que Eva também tem medo dela,
toda vez que elas brigam, fica com uma expressão de
pavor e as mãos tremem. E ainda muito tempo depois
de a vovó ter começado a chorar, dizendo que pularia
debaixo dum trem, ela continua péssima.
Lembro dum conto de fadas que Jakub me contou
há pouco tempo, quando voltou tarde da noite para
casa “fedendo de longe”, como dizia a vovó.
Longe daqui existia um império, onde reinava
um imperador bom e sábio. E esse imperador tinha
uma filha chamada Adlinka2. Havia muito tempo
que não tinham a mamãe; ela morreu ao dar à luz a
princesa. Mesmo assim viviam felizes, até o momento
em que um dragão de duas cabeças instalou-se numa
caverna próxima ao castelo. O rei nem precisou
2 – Diminutivo do nome próprio Adela. (NDT)
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proclamar que quem matasse o dragão ganharia a
princesa e metade do reino, os cavalheiros começaram
a se reunir no castelo por si mesmos e sem convite.
Um após outro tomavam o rumo da floresta para
matar o dragão e conquistar a filha do rei. Mas, o
dragão era tão terrível que matou e devorou a todos,
sem exceção. Para o rei não havia alternativa senão
enfrentar o dragão de duas cabeças. Adlinka só
permitiu que ele fosse lutar com o dragão depois que
ele a convenceu que voltaria vivo, pois sabia que ele
sempre cumpria as promessas.
Quando o rei chegou, galopando o seu corcel perto
da caverna – onde o dragão vivia –, avistou uma pilha
de ossos humanos. Porém, não se assustou e gritou em
direção à caverna: “Saia daí, seu monstro!”
Cuspindo fogo e cheirando a enxofre, o imenso
dragão surgiu da caverna e as suas duas cabeças
atacaram o rei. Mas este não vacilou, deu um salto e, de
um só golpe de espada, decepou-lhe as duas cabeças.
Depois voltou para a sua adorada filha, esta o abraçou
feliz, não querendo soltá-lo jamais. E se não morreram,
estão vivendo lá até hoje...
Eva, de repente, atirou um prato ao chão, enquanto
enxugava a louça do almoço. Os cacos se espalharam
pela cozinha. Me arrepiei toda e voltei a sentir aquele
aperto.
“Não aguento mais...”
Sentou-se à mesa e começou a chorar. A vovó
levantou da cama, foi mancando até ela e começou a
acariciar-lhe o cabelo.
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“O que eu faço? Assim não dá... Eu não aguento
mais... O que vai acontecer?”
“Não chora, nada vai voltar atrás. Eu tinha te
falado na época”.
“O que eu podia ter feito? Eu teria denunciado
ele, numa boa, sem pestanejar! Mas, você imagina
como teria sido? A gente viveria sendo arrastada pelos
tribunais...”
As duas olharam pra mim. Não sei por quê, mas
acho que me observam assim há mais tempo. Ficam me
examinando e eu não entendo a causa. Quando é a Eva
que fica me examinando assim, sei que logo vem uma
bronca por alguma coisa e depois um castigo. Morro de
medo disso. Mas, depois, ela sempre compra alguma
coisa legal pra mim.
“Na época te falei, você deveria ter tirado.”
“Não me interessa o que você falou na época, eu
não sei o que fazer agora!”
“Se tivesse ido lá... Agora aguenta ela pro resto da
vida. Como eu...”
“Como você comigo, é?! Foi isso que quis
dizer?!”
Eu tenho um segredo, pensar nele me ajuda muito.
E tenho que pensar nele o tempo todo, nem consigo
dormir direito por causa disso. Ontem fui ver Jakub no
trabalho. Ele trabalha num jardim, onde planta umas
flores lindas. O porteiro me disse que Jakub estava lá
atrás, nas estufas, me esperando. Mas não consegui
achá-lo por lá e então entrei numa das estufas. Respirei
fundo aquele ar úmido. Sempre gostei daquilo. Gostava
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de ir ver Jakub no trabalho dele. Eva nunca queria
deixar, mas eu tinha combinado com Jakub que não
iríamos dizer a ela quando eu fosse lá. E agora, que ele
saiu da nossa casa, eu levaria uma surra se ela chegasse
a saber. Alguém me tapou os olhos.
“Quem é?”
Não tomei nenhum susto.
“Vem, te mostro uma coisa.”
Jakub me levou até uma mesa. Depois me olhou
longamente. Os olhos dele brilharam dum jeito
estranho. No meio da mesa havia um vaso e nele uma
florzinha de caule longo.
“Essa aí cultivei pra você...”
Olhei pra ele.
“Só pra você, menininha. Demorei quase doze
anos. Leva o teu nome: Adelária.”
O meu coração estava batendo tanto que devia
dar pra ouvir pela estufa toda.
“Ela também é tão rara. Como você. E tem que ser
bem cuidada. Enfim, uma florzinha delicada...”
Acariciou o meu rosto. Senti o sangue subindo à
minha cara.
Chegando em casa mais tarde, procurei ficar a
noite toda escondida, para que ninguém percebesse
nada. Por sorte Eva e a vovó passaram de novo a noite
toda chorando; as duas estavam com olhos tão cheios
de lágrimas que não poderiam perceber nada em
mim.
Hoje, Eva me mandou deitar cedo, eu ainda não
estava com vontade nenhuma. Passei muito tempo
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I n u ti l idades
rolando na cama, sem conseguir adormecer. Estava
pensando em quando voltaria a ver Jakub; ele tinha
prometido que seria logo.
E quando finalmente acabei adormecendo,
sonhei que estava deitada, amarrada na cama, papai
acariciava o meu cabelo, sorrindo, e balançava a cabeça
de aprovação. Do outro lado se aproximava a mamãe,
segurando um travesseiro nas mãos. Debruçava-se
sobre mim, colocando o travesseiro sobre a minha
cabeça. Eu respirava com dificuldade. Em um instante
vi uma enorme flor de Adelária se abrindo na minha
frente.
Havia um perfume agradável por toda parte e eu
fazia: “Tilim, Adelka, tilim...”
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