Corpo, Politica e Experiência (arquivo em formato

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Corpo, Politica e Experiência (arquivo em formato
CORPO, POLÍTICA E EXPERIÊNCIA
por Luana Navarro
Um performer não apenas coloca propositalmente
pedras em seu sapato, mas usa sapatos de pedra para
que outros fluxos e outras maneiras de percepção e
relação possam circular.
Eleonora Fabião
De uns anos para cá as classificações sobre o corpo se estenderam cada vez mais, fala-se em
corpo político, corpo biocibertnético, corpo feminino, corpo masculino, corpo simulado, corpoimagem, corpo-máquina e nas mais diversas áreas ele tem sido objeto de estudos e debates. A
pergunta por trás destas classificações parece ser de uma ordem ontológica, afinal, o que é corpo?
Sem a intenção de tentar definir o corpo ou criar mais uma categoria para ele, pretende-se
neste texto discutir dois aspectos a partir do corpo colocado pela artista Regina José Galindo em
suas performances. O primeiro é o corpo tomado como dispositivo político e o segundo é a idéia de
experiência, tratada por Jorge Larrosa Bondía no texto Notas sobre a experiência e o saber da
experiência1.
Em 2009 o MAC-USP promoveu um ciclo de exposições chamado Mulheres Artistas e a
Contemporaneidade que apresentou em diversas exposições trabalhos de jovens artistas. Uma das
exposições integrantes do ciclo, apresentada em outubro do mesmo ano, intitulada Corpos
Estranhos trazia os trabalhos da brasileira Laura Lima, da espanhola Pilar Albarracín e da
guatemalteca Regina José Galindo. Os trabalhos apresentados por esta última artista é que interessa
neste texto.
Dos trabalhos incluídos na exposição destaca-se quatro deles:¿Quién puede borrar las
huellas? (2003), Perra (2005), Limpieza Social (2006) e Reconocimiento de un cuerpo (2008).
REGINA JOSÉ GALINDO E AS INTERMITÊNCIAS DO CORPO
Em 2003 Regina José Galindo caminha até o Palácio Nacional da Guatemala deixando
pegadas feitas com sangue humano em referência a guerra civil guatemalteca, na qual estima-se que
mais de 200.000 pessoas tenham sido mortas, dentre elas estudantes, ativistas políticos e sobretudo
indígenas da etnia Maya.
1
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. (Palestra proferida no 13COLE
Congresso de Leitura do Brasil, realizado na Unicamp, Campinas/SP, no período de 17 a 20 de julho de 2001)
A performance ¿Quién puede
borrar las huellas? (em português
“Quem pode apagar as marcas?) foi
motivada pela permissão dada pela
Suprema Corte ao ex-ditador e general
Efraín Ríos Montt de concorrer à
presidência. Montt governou o pais
durante 14 meses entre 1982 e 1983 e seu
governo foi considerado o mais violento
na Guatemala. Durante seu mandato,
mais de 400 vilarejos indígenas foram
queimados, mulheres e crianças violadas
e mortas brutalmente. O genocídio da
população indígena da Guatemala nos 34 anos de guerra civil (1962-1994) é apenas comparável ao
período de conquista da ilha pelos espanhóis.
Este fato histórico e outras problemáticas atuais da Guatemala estão frequentemente
presentes nos trabalhos produzidos por Regina José Galindo, como é o caso de Perra (2005),
performance em que a artista inscreve com uma faca a palavra Perra em sua perna. Nesta obra a
artista ao marcar o seu corpo expõe não somente a matéria que está além da superfície da pele, mas
problematiza uma certa posição que a mulher na Guatemala ocupa.
O sofrimento do corte leva o corpo da artista ao limite da dor e ao limite do próprio corpo, é
o dentro e fora sendo expostos. No entanto, o mais violento não é o ato em si de se cortar, de
inscrever a palavra com a faca, mas sim a escrita da palavra Perra que se torna extremamente
violenta e que é carregada de significações. Perra (em português cadela) é uma palavra que
frequentemente é encontrada em corpos de mulheres assassinadas e violentadas na Guatemala. A
posição e os conflitos vividos pelas mulheres guatemaltecas são recorrentes em suas performances e
são sem dúvida um dispositivo para suas perfomances, como aponta a própria artista2:
Yo hablo como mujer y mi trabajo está invadido de mi condición, ya que es inevitable. El
ser mujer latina, mujer guatemalteca, claro que me marcó y me hizo lo que soy ahora.
Todos somos resultado de nuestra historia y nuestro contexto, del espacio y el ambiente en
donde nos desarrollamos. Yo solamente he vivido en Guatemala con una problemática muy
grande de violencia en general y una violencia de género fuera de todo ímite. Durante el
conflicto armado, el daño a la población femenina era parte de la estrategia de guerra para
2
Declaração de Regina José Galindo em entrevista a Eli Neira, publicada na Revista Escaner Cultural. Acesso em
20/02/2010
http://64.233.163.132/search?q=cache:0IJoMJTNylYJ:revista.escaner.cl/node/917+entrevitsa+con+Regina+jos%C3%A
9+Galindo&cd=7&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
infundir temor en la población, porque al matar a una mujer se mataba también la
posibilidad de vida. En la actualidad, desde hace unos años, esto ha vuelto a ser parte de la
realidad guatemalteca, solo que a mayores índices. Diariamente son asesinadas mujeres de
las formas más brutales. Generalmente los cuerpos de los hombres aparecen degollados,
con un tiro de gracia, apuñalados, asfixiados, pero el de las mujeres presentan evidencias de
haber sido violadas y torturadas, previamente a ser asesinadas.
O contexto histórico-social para a
artista é de extrema importância tanto para
as ações que ela propõe quanto para a forma
como utiliza o corpo nestas ações, ela
compreende que o sujeito é intrinsecamente
composto,
dentre
outras
coisas,
pelo
ambiente que habita. Para o filósofo japonês
Tetsurô Watsuji (1889-1960) “o homem
nunca está separado do ambiente onde vive
e dificilmente pode ser compreendido sem
uma atenção especial ás relações que aí se
organizam” 3.
Os
outros
dois
trabalhos
apresentados na exposição Limpieza social (2006) e Reconocimiento de un cuerpo(2008)
novamente trazem o corpo da artista em estado de vulnerabilidade.
No primeiro ela se dispõe nua frente a uma parede e é alvejada por um jato de água, como os
utilizados para dissipar manifestações nas ruas. No segundo trabalho a artista aparece deitada sobre
uma mesa e coberta por um lençol branco, os espectadores podem, ou não levantar o lençol e olhar
a artista deitada. Esta ação remete explicitamente ao reconhecimento de um corpo de um sujeito
3
GREINER, Christine. O corpo – pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
sem vida. Nesta obra a artista evidencia que só olhamos para o corpo do outro afim de reconhece-lo
enquanto sujeito quando este já está morto.
CORPO POLÍTICO / CORPO INDISCIPLINADO
O corpo é um dispositivo político. É com os olhos voltados para os artistas da década de 60
que podemos perceber a intensidade com que ele vai ser tomado como dispositivo capaz de colocar
em xeque comportamentos instituídos pela sociedade e a performance é o gênero nas artes visuais
que com maior força trata esta questão. Se tomarmos como referência os trabalhos dos Acionistas
Vienenses, que em uma sociedade marcada pelo nazismo e por um senso de moralidade acentuado,
expuseram e questionaram não só as regras sociais, mas também o ambiente artístico da época,
podemos ter uma base de quão catártico pode ser a experiência da performance. Os trabalhos deste
grupo de artistas eram radicais e tentavam levar o corpo a um estado primário quase instintivo, eles
lidavam com o nu, o sexo e os excrementos do corpo como tentativa de resposta a uma condição na
qual estavam inseridos, e a performance como aponta Eleonora Fabião tem um caráter de resposta
momentânea:
“Cada performance é uma resposta momentânea para questões recorrentes: o que é corpo?
(pergunta ontológica); o que move corpo? (pergunta cinética, afetiva e energética); o quê o
corpo pode mover? (pergunta performativa); quê corpo pode mover? (pergunta bio-poética
e bio-política).4
Tomando o conceito de Foucault de corpo dócil ou corpo disciplinado, abordado
principalmente na terceira parte do livro Vigiar e Punir em que o autor afirma que “o individuo é
sem dúvida o átomo fictício de uma representação ideológica da sociedade; mas é também uma
realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a disciplina”5 podemos
pontuar que as ações propostas pelos Acionistas Vienenses, bem como as propostas de Regina José
Galindo tomam o corpo de maneira indisciplinada já que as ações destes artistas se opõe ao
comportamento previsto ou exigido. Para Foucault, “a disciplina fabrica indivíduos; ela é a técnica
específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos
de seu exercício” 6 e uma das formas de exercício da disciplina é tomar o corpo como um “símbolo
ou metáfora para a ordem política e social”7
Em oposição a esta suposta ordem a performance parece acentuar a potencialidade de
4
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Pág. 4. Artigo publicado na
Revista Sala Preta, ECA-USP.
5
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 36 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
6
Idem. P. 164
7
HEIDT, Erhard U. Cuerpo y Cultura: la construcción del cuerpo humano. In: David Pérez (ed.). La certeza vulnerable
embate de um corpo com o seu contexto e para Eleonora Fabião ela se apresenta como uma
possibilidade de questionamento e resistência:
“turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu contexto; do
vivente com o tempo, o espaço,o corpo, o outro, o consigo. Esta é a potencia da
performance: desabituar, dês-mecanizar, escovar à contra-pêlo. Trata-se de buscar maneiras
alternativas de lidar com o estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de
criar situações que disseminam dissonâncias diversas: dissonâncias de ordem econômica,
emocional, biológica, ideológica, psicológica, espiritual, identitária, sexual, política,
estética, social, racial...” 8
A EXPERIÊNCIA E O SUJEITO DA EXPERIÊNCIA
No contexto performático a experiência do corpo é fundamental e a partir deste sentido
gostaria de propor uma leitura complementar sobre as performances realizadas por Regina José
Galindo, que expõe estratégias para o confronto cotidiano e as questões referentes ao corpo, frente
às diferentes relações de poder na sociedade, como veremos a seguir.
A palavra experiência se traduzida para o espanhol quer dizer aquilo me passa, e em
português pode ser entendida como aquilo que me acontece e esse acontecimento passa pelo corpo.
Bondía aponta que “a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidade de
experiência” 9. Neste sentido Regina José Galindo trabalha com fatos que nos são informados, seja
a ocorrência de mais uma morte violenta de uma mulher em algum lugar na Guatemala seja os
números assustadores sobre os mortos durante o período ditatorial, no entanto, ela subverte a apatia
da informação ao se propor a experiência daquilo que é informado, ela se propõe a ser tocada pela
experiência colocando seu corpo em determinadas situações. É importante destacar que seus
trabalhos não operam no âmbito da representação e sim da experiência a qual ela submete seu
corpo.
Outra questão tocada pela artista é a memória de determinados fatos e que estão
relacionados a idéia de experiência. Para Bondía, “ao sujeito do estímulo, da vivencia pontual, tudo
o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso a velocidade e
o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória, é também inimiga mortal da experiência” 10. Ao
se colocar como sujeito da experiência e reinventar situações que remetem a acontecimentos
passados Regina José Galindo abre a possibilidade para uma leitura que não se fecha ao fato
histórico e que pode se expandir para o universo particular e cultural de cada espectador.
– cuerpo y fotografia em el siglo XXI. Barcelona: Gustavo Gilli.
FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Artigo publicado na Revista
Sala Preta, ECA-USP.
9
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. (Palestra proferida no 13COLE
Congresso de Leitura do BRasil, realizado na Unicamp, Campinas/SP, no período de 17 a 20 de julho de 2001)
10
Idem.
8
“Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como
espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua
passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura... O sujeito da
experiência é um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é
nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a o-posição (nossa maneira de opormos),
nem a im-posição (nossa maneira de impormos), nem a pro-posição (nossa maneira de
propormos), mas a exposição, nossa maneira de ex-pormos, com tudo o que isso tem de
vulnerabilidade e de risco” 11
Nos trabalhos aqui citados Regina José Galindo trás a idéia de experiência ao propor que seu
corpo vivencie determinadas situações, algumas delas já conhecidas e até já vividas por outras
pessoas, assim sendo ela toma o seu corpo de maneira política e escancara não só a fragilidade da
carne, mas a vulnerabilidade do corpo. A experiência como aponta Bondia é aquilo que me passa, e
sem dúvida a violência, que ocorre como instrumento legítimo de ação política, em graus e
intensidades diferentes, nos passa, nos acontece sem que percebamos.
11
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. (Palestra proferida no 13COLE
Congresso de Leitura do Brasil, realizado na Unicamp, Campinas/SP, no período de 17 a 20 de julho de 2001)

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