o baile de eros em “dão-lalalão1”: o projeto estético da

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o baile de eros em “dão-lalalão1”: o projeto estético da
O BAILE DE EROS EM “DÃO-LALALÃO1”:
O PROJETO ESTÉTICO DA NOVELA ROSEANA
Elissandro Lopes Araújo 2
Centro de Letras e Comunicação Social, Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas,
Universidade Federal do Pará, Bolsista PIBIC/CNPq.
Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda
Centro de Letras e Comunicação Social, Departamento de Língua e Literaturas Vernáculas,
Universidade Federal do Pará.
RESUMO
No segundo volume de Corpo de Baile (1956) e, posteriormente, em Noites do Sertão
(1964), encontra-se a novela “Dão-Lalalão”, a quinta das sete narrativas na ordem da
primeira edição e peça de um único volume, junto a “Buriti”, no segundo livro da tríade em
que se dividiu a obra. A estória de um ex-boiadeiro e de uma ex-prostituta, inevitavelmente,
chama a atenção do leitor à temática amorosa na obra de Guimarães Rosa. Permeada de
passagens lascivas, sustentadas por um fino enlace entre a linguagem poética e a pulsão
erótica, a narrativa centra-se no retorno de Soropita, ex-boiadeiro e valentão, ao vilarejo do
Ão, onde o espera Doralda, esposa de ímpar sensualidade. No presente trabalho, a partir de
uma hipótese que toma por pulsão da novela a tônica erótica da obra roseana, examina-se a
recepção crítica de Guimarães Rosa assinalada nos textos de Benedito Nunes e Bento Prado
Jr. Na edificação ficcional de “Dão-Lalalão”, ambiciona-se explorar as diversas referências
eruditas que perpassam a narrativa e elucidam as múltiplas formas de eros, que age como
pulso principal na construção de uma experiência estética da vida, na qual articulam-se
memória e poesia.
ABSTRACT
“Dão-Lalalão” is a novel placed in the second volume of Corpo de Baile (1956) and,
later, in Noites do Sertão, the second book of three in which Corpo de Baile was divided. It is
a story about an ex-cowboy and an ex-prostitute that undoubtedly catches the reader’s
attention to the theme of love in Guimarães Rosa’s works. The novel is full of lascivious
passages that are sustained by a narrow fusion of poetical language and eroticism. The
narrative tells the Soropita’s return to Ão, where Doralda, his voluptuous wife, waits for him.
The article analyses, based on the Reception Theory formulated by Hans Robert Jauss (19211997), the theme of love in the critic reception in the essays of Benedito Nunes and Bento
Prado Jr. In the fictional structure of “Dão-Lalalão”, the article aims to explore the variety of
1
O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico — CNPq.
2
Graduando de Licenciatura em Língua Portuguesa e bolsista do Projeto de Pesquisa: Estudos Estéticorecepcionais acerca da Literatura em Língua Portuguesa: Guimarães Rosa (EELLIP)
erudite references that are present in the narrative and explain the various personifications of
Eros, who acts as the main strength in the building of life’s aesthetic experience, in which
memory and poetry are articulated.
INTRODUÇÃO
No segundo volume de Corpo de Baile (1956) e, posteriormente, em Noites do Sertão
(1969), encontra-se a novela “Dão-Lalalão”, a quinta das sete narrativas na ordem da
primeira edição e peça de um único volume, junto a “Buriti”, no segundo livro da tríade em
que se dividiu a obra. A estória de Soropita e Doralda, inevitavelmente, chama a atenção do
leitor à temática amorosa na obra de Guimarães Rosa. Permeada de passagens lascivas,
sustentadas por um fino enlace entre a linguagem poética e a pulsão erótica, a narrativa
centra-se no retorno de Soropita ao Ão, lugarejo “num vão, num saco da Serra dos Gerais3”,
onde o espera Doralda, esposa de ímpar sensualidade. No caminho da volta de Andrequicé,
onde fora escutar a radionovela, Soropita segue um trajeto conhecido de tantas outras viagens
e, montado em Caboclim, deixa-se envolver numa atmosfera de sonho e devaneio, na qual
revive os momentos importantes de sua vida.
A leve letargia da recapitulação dos episódios passados e o atento testemunhar dos
ruídos e movimentos fortuitos do campo constroem uma textura de apreensão da realidade,
que se ativa por meio do rememorar as lembranças e, permeada por construções metafóricas,
se realiza na tessitura de toda uma imagética e experiência poética focada na vivência
sensível do mundo, em suas diferentes dimensões. Em “Dão-Lalalão”, a fundação da palavra
e o conhecer das coisas centram-se não somente nas sensações externas do corpo, o frio, o
nojo, a excitação, a dor, entre outras; mas também, e principalmente, nas emanações
potenciais de eros nas esferas mais íntimas do homem. Na narrativa de Guimarães Rosa, a
fina elaboração da linguagem permite a leitura que toma por norte a pulsão erótica em enlace
com a construção de um conhecer e viver poético do sertão, como representação do mundo.
Distante das ferozes batalhas e fatigantes andanças bélicas de Riobaldo e seu bando, o
ciclo de novelas de Corpo de Baile escreve-se num horizonte mais taciturno, menos suspenso
pela expectativa de um assalto. Em contraste com o tom épico da saga de Riobaldo e
Diadorim, a desditosa peleja do homem nas diversas fundações de sua existência e de seu
destino; o ciclo de novelas de 1956 nos revela um cenário de lirismo, no qual as temáticas
fundamentais da obra de Guimarães Rosa, tais como: a demanda poética da palavra, a
memória, o narrar e o conhecer o mundo, são alçados aos estratos mais internos do homem,
sejam as sensações físicas da natureza, sejam os movimentos e estados da alma. No entanto, é
necessário frisar que este contraste é apenas hipotético, não há uma fronteira bem marcada
entre as obras; ressalvadas pequenas observações, em Corpo de Baile e Grande Sertão:
Veredas, os temas, o tom da narrativa e os aspectos temporais entrelaçam-se no âmbito da
escritura roseana, visto que algumas das principais leituras sobre o romance de Riobaldo são
assinaladas também no ciclo de novelas, já outras não abrangem as duas obras.
A diferença de tom entre os volumes faz com que algumas chaves de leitura se
direcionem melhor a uma determinada obra, por exemplo, em Grande Sertão: Veredas,
dentre as várias facetas da narrativa de Riobaldo, destaca-se a hipótese de uma novela de
cavalaria, a qual estabelece um diálogo entre a obra de Guimarães Rosa com as novelas do
3
ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile. v. 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 470. Todas as
citações da obra correspondem a esta edição, sendo assinaladas somente as iniciais CB seguidas do número da
página.
ciclo arthuriano, segundo Cavalcanti Proença4. Em outro horizonte, a natureza ambígua do
sertão e das peripécias que relata o jagunço é o marco de análise da obra: a ambigüidade da
amizade, do nome, da própria essência de Diadorim e da saga pelo sertão, entre outras
imprecisões sertanejas, foi abarcada pelo princípio de reversibilidade, forjado por Antonio
Candido5, que abrange o conjunto da obra roseana. Em suma, muitas das leituras dirigidas ao
monólogo de Riobaldo estão relacionadas também às narrativas de Corpo de Baile, todavia, é
preciso avaliar as peculiaridades estéticas das narrativas deste ciclo6.
Em ambos os livros, as estórias e personagens freqüentemente evocam as mais
variadas referências literárias e filosóficas, urdidas numa arquitetura estética que mescla o
erudito e o popular, o documental e o fictício. Na edificação ficcional de “Dão-Lalalão”,
ambiciona-se explorar a hipótese de leitura que elege a veia erótica e poética como pulsão à
tessitura estética da narrativa e, conforme a problemática lançada sobre a novela, de que
forma esta leitura se enquadra na hermenêutica dos estudos roseanos.
A VEIA ERÓTICA E MINEMÔNICA DA ESTÉTICA ROSEANA
Na viagem de Soropita, a memória é a primeira instância a mover o pensamento do
boiadeiro, lançando-o num monólogo interior em que rememora a paisagem sertaneja, os
mimos e qualidades de sua esposa, assim como, o acre passado que vivera antes de assentarse no vilarejo do Ão. Bento Prado Jr., em “O destino cifrado: linguagem e existência em
Guimarães Rosa7”, remete-se à importância da memória no repensar a existência de sertanejo,
característica da obra do autor mineiro já apreciada por Antonio Candido, conforme afirma o
ensaísta: “o homem do sertão se retira na memória e tenta laboriosamente reconstruir a
sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço comovedor, em descobrir a
lógica das coisas8”; assim, oferecendo-nos o mote para examinar-se o papel de mnemosine na
novela.
No labor de reconstruir as razões de sua existência, Soropita, entrega-se ao ruminar
das sensações que lhe advêm do campo. O testemunho mais atento do que é hodierno,
comum, é o ensejo da elaboração de uma cadeia de construções metafóricas que revelam a
atmosfera do imaginar de Soropita. Os perfumes das flores, arbustos e ervas, o vôo dos
pássaros, os campos de milho, os canaviais, os riachos e tantas outras cenas cotidianas do
sertão são apreendidos numa série imagética que reescreve a realidade sertaneja e lhe insinua
uma outra dimensão, na qual o sertão assume uma roupagem poética.
Conhecia de cór o caminho, cada ponto e cada volta, e no comum não punha
maior atenção nas coisas de todo tempo: o campo, a concha do céu, o gado nos
pastos — os canaviais, o milho maduro — o nhenhar alto de um gavião — os
longos resmungos da jurití jururú — a mata preta de um capão velho — os
papagaios que passam no mole e batido vôo silencioso — um morro azul depois
de morros verdes — o papelão pardo dos marimbondos pendurado dum galho, no
4
PROENÇA, M. Cavalcanti. Augusto dos Anjos e outros ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro: Grifo; Brasília:
INL, 1973. 240p. Vale ressaltar que esta leitura foi alvo de críticas, pois aproximar a obra roseana do ciclo
arthuriano implica esvaziá-la de toda sua modernidade enguanto obra literária.
5
CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. In: Tese e antítese. São Paulo: Nacional, 1964. p. 119-40.
6
Para outras leituras da obra de Guimarães Rosa cf. O Dorso do Tigre. NUNES, Benedito. (1976); As
formas de falso. GALVÃO, Walnice Nogueira. (1972); O Brasil de Rosa. RONCARI, Luis. (2004); entre
outros.
7
PRADO JR, Bento. O destino cifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa. In: Alguns ensaios.
São Paulo: Max Limonad, 1985. p. 195-226.
8
Idem, ibidem. p. 201.
cerrado — as borboletas que são indecisos pedacinhos brancos piscando-se — o
roxoxol de poente ou oriente — o deslim de um riacho. Só cismoso, ia entrado
em si, em meio-sonhada ruminação9.
A memória é um dos princípios fundamentais do fazer poético, a ressignificação da
realidade. Os sentidos apurados de Soropita o tornam uma espécie de exemplo da percepção e
sensibilidade que requer a urdidura de versos. No voltear de pensamentos, o cavaleiro
reconstrói os elementos ao seu redor locando-os num foco perceptivo que mescla as
sensações e sentidos do homem, suscitando uma atmosfera que funde corporalidade à
essência natural do ambiente. A realidade é alçada a uma outra dimensão, na qual se externa
uma nova rede de razões que irão fundamentar a existência do sertanejo, em confronto com o
ditado comum e de lei geral na sociedade. Em “Dão-Lalalão”, mnemosine movimenta-se sob
a regência do signo poético, marca indelével da escritura roseana, que, por sua vez, tece uma
experiência estética galgada na vivência interna do Sertão.
Segundo Bento Prado Jr, Soropita, desde do princípio da narrativa “é visado e descrito
como uma consciência que se demora na recapitulação de sua existência: viagem interna no
tempo, que se desenvolve paralelamente à viagem exterior, (...)10”. As dimensões de espaço e
tempo estão de tal forma emparelhadas que se confundem as fronteiras entre uma e outra, à
disposição da realidade tátil, concreta, sobrepõe-se a abstração das sensações invocadas pelas
lembranças do cavaleiro. Sob esta premissa, em “Dão-Lalalão”, a fronteira entre o real e o
sonho, a imaginação, é afetada pelas oscilações de temporalidade da memória, assim como, a
percepção e apreensão do mundo são efetuadas no estrato interno do homem. Os elementos
estilísticos como as metáforas, a sinestesia e a verbalização onomatopaica, próprios da
escritura roseana, são empregados no intuito de materializar esta experiência estética que vive
o protagonista de “Dão-Lalalão”.
O estado de meio-sonhar de Soropita e o cerne estético de seu pensamento permitem
entrever, como hipótese de leitura, uma referência ao ofício do poeta e à natureza própria da
poesia em contraponto à realidade, um panorama que abrangeria desde da poesia épica de
Homero até os poetas modernos. Esta hipótese que, de maneira geral, pode ser escrita como a
demanda da palavra, é notada com menos veemência em “Dão-Lalalão”, mas alcança maior
expressividade em outras novelas de Corpo de Baile, como “Cara-de-Bronze” e “Recado do
Morro”, nas quais a palavra é o fundamento do destino das personagens, assim como, em
Grande Sertão: Veredas, no qual esta hipótese metaliterária é um dos pilares de leitura do
colóquio de Riobaldo com o visitante inominado, no qual o ato mesmo de narrar é eleito à
boca de cena do romance, como diz o jagunço: “A qualquer narração dessas depõe em falso,
porque o extenso de todo sofrido se escapole da memória11”.
Este prólogo construído num primeiro momento cerca a leitura que se empreenderá
sobre a narrativa, o monólogo interior de Soropita tem como centro de gravidade a figura de
sua esposa, Doralda. O cenário exterior e os encalços do trajeto de vida do casal são
depurados pelo enleio amoroso que envolve o imaginar do boiadeiro, que se excita no
rememorar os perfumes e qualidades do corpo da cônjuge. Assim, na latência da
corporalidade da memória, no âmbito poético preescrito pela experiência estética, a atsmofera
do sertão é atomizada de sensualidade, pois a libido do cavaleiro o estimula a reviver as
passagens eróticas de sua vida, por mais que este tente não lembrá-las. Bento Prado Jr. não
deixa de observar esta característica da narrativa, entrelaçada ao estado de meio sonho do
cavaleiro.
9
CB, p. 470.
PRADO JR, Bento. O destino cifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa. In: Alguns
ensaios. São Paulo: Max Limonad, 1985. p. 202.
11
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. p.
10
(...) é o quase-sonho de Soropita, ruminação de si mesmo, que permite a
ruminação da paisagem, que passa a latejar no corpo-próprio. É esse sonho que
dissolve o perfil nítido das coisas, dispersando-as em poeira vaporosa, em odor e
gosto, fazendo a representação se diluir em pura afecção. O espaço se faz calmo e
a percepção assume estilo erótico12.
A questão do amor na ficção roseana condensa uma gama de tradições
epistemológicas e literárias que se articulam de maneira a instaurar o tom lírico, porque
intrínseco à temática amorosa, das narrativas. Em “O amor na obra de Guimarães Rosa”, o
crítico e ensaísta Benedito Nunes demonstra como o viés erótico do escritor mineiro é
intrínseco à natureza poética de suas estórias. Mesmo direcionando sua atenção sobre Grande
Sertão: Veredas, a sustentação teórica e a leitura proposta projetam-se ainda sobre a novela
em questão, “Dão-Lalalão”, e outras obras como Primeiras estórias, pois revela peças
fundamentais da constituição estética das narrativas de Corpo de Baile.
Segundo o mestre paraense, a concepção de amor em Guimarães Rosa é perpassada
por uma heterodoxa tradição de pensamento, na qual se delineiam três espécies distintas de
amor vividas por Riobaldo: a imagem pura e apaziguadora de Otacília, a “paixão equívoca”
pelo companheiro Diadorim e o voluptuoso afeto de Nhorinhá; a natureza de cada um desses
amores e a maneira como se entrelaçam no romance é a problemática a nortear a
interpretação de Benedito Nunes, que constrói sua hipótese central num ponto chave da
tradição platônica, a dialética ascensional, na qual Eros figura como pulsão central da
sublimação dos estágios sensíveis ao estrato do inteligível, do ideal. No entanto, a perspectiva
torna-se heterodoxa porque se une a este conceito basilar do platonismo, o compêndio
simbólico da tradição alquímica e da mística, fonte de toda uma farta rede de insígnias
amorosas.
a tematização do amor, na obra de Guimarães Rosa, repousa principalmente nessa
idéia mestra do platonismo, colocada, porém, numa perspectiva mística
heterodoxa, que se harmoniza com a tradição hermética e alquímica, fonte de toda
uma rica simbologia amorosa, que exprime, em linguagem mítico-poética, situada
no extremo limite do profano com o sagrado, a conversão do amor humano em
amor divino, do erótico em místico. Tal seria a síntese da visão erótica da vida
entranhada na criação literária de Guimarães Rosa13.
Ao tratar da figura de Nhorinhá, Benedito Nunes, relaciona-a com o princípio carnal
de eros, em contraposição a Otacília, moça pura e recatada que encarna a instância mais
elevada do amor, o nível supra-sensível do ser, a nobreza castelã. Esta diferença ontológica,
até mesmo de ascêndencia familiar, a primeira, filha da feiticeira Ana Duzuza e a outra
herdeira de Sor Amadeu, dono da Fazenda Santa Catarina, no entanto, parece ser suprimida
nas recordações de Riobaldo. As qualidades de cada uma confundem-se no rememorar do
jagunço, mas ainda mantêm seus atributos originais, como se observa no dizer o nome de
uma pequena flor branca, parecida com um lírio.
De propósito plantam, para resposta e pergunta. Eu nem sabia. Indaguei o nome
da flôr.
“Casa-comigo...” — Otacília baixinho me atendeu. E, no dizer, tirou de mim os
12
PRADO JR, Bento.Op. cit. p. 203.
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1976. p. 145.
13
olhos; mas o tiritozinho de sua voz eu guardei e recebi, porque era de sentimento.
(...). E o nome da flôr era o dito, tal, se chamava — mas para os namorados
respondido sòmente. Consoante, outras, as mulheres livres, dadas, respondem: —
“Dorme-comigo...” Assim era que devia de haver de ter de me dizer aquela linda
môça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também gostou
de mim e eu dela gostei. Ah, a flôr do amor tem muitos nomes14.
É na tensão entre estas personagens que se flagra uma das principais características de
eros e um dos fundamentos da poiesis, a união de elementos díspares. De acordo com a
matriz de pensamento platônica, a qual se remete o mestre Benedito, a sucessão de um
estágio do ser a outro, necessariamente, não suprime totalmente os atributos de seu
precurssor, pelo contrário, na escala dos estados do ser, a diáletica ascensional conserva as
características do estágio anterior, carnal, superando-as, no sentido de completá-las, no estado
de plenitude, do inteligível. Por meio deste processo diáletico, naturezas tão díspares na
graduação do impulso erótico encontram uma harmonia e unicidade. Na novela “DãoLalalão” repousa em Doralda esta polaridade, a esposa de Soropita guarda ainda os encantos
de sua antiga profissão em Montes Claros, mas, ao mesmo tempo, encarna o amor
apaixonado das bodas do matrimônio versado no Cântico dos Cânticos e, assim, a deseja o
esposo, Soropita, que a compara a um pássaro “voável” de muitas cores e brilhos, mas que é
preso no vilarejo do Ão.
Assim, segundo Benedito Nunes, “a harmonia final das tensões opostas, dos
contrários aparentemente inconciliáveis que se repudiam, mas que geram, pela sua oposição
recíproca, uma forma superior e mais completa, é a dominante da erótica de Guimarães
Rosa15”. Na silhueta de Doralda, a tônica amorosa da narrativa encontra sua súmula e pulsão.
De meretriz requisitada na casa de Clema ao amor incondicional que dedica a Soropita, a
metamorfose de Doralda assimila-se as múltiplas formas e facetas de eros em sua dança. Em
determinado momento da narrativa, ao anoitecer e se retirar ao quarto, Soropita, pede que a
esposa se dispa diante dele, devagar, pois gostaria de apreciar as belezas do corpo desejado.
A descrição da cena e a posição em que se fixa Doralda, aparentemente se referem ao quadro
“O Nascimento de Vênus”, de Boticelli.
O cheiro da aglaia e da bela-emília passava pelas gretas da janela, parava
devagaroso no quarto. Doralda já não estava rideira. Só a simples, com mão e
mão, se tapava os seios, o sexo. Seus olhos desciam. Seu cabelo se despenteava16.
Mais que uma referência erudita ao artista italiano, esta passagem, alude à dicotomia
ontológica da personagem. Vênus, deusa do amor, é reconhecida na mitologia por sua
natureza selvagem e promíscua, mas ao mesmo tempo é uma divindade e como tal manifestase, também, em seu manto divino. Existem outras referências que comungam com esta
perspectiva, em correspondência com seu tradutor italiano, Edoardo Bizarri, o autor aponta a
relação da novela com um dos livros da Bíblia. “Diluídas, aliás, nas páginas (...), perpassa
uma espécie de paráfrase do ‘Cântico dos Cânticos’17”. Provavelmente, da autoria de
Salomão, este livro sapiencial celebra, numa série de poemas, o amor mútuo de um Amado e
de uma Amada que se unem e se perdem, se buscam e se encontram. Seus versículos, na
14
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 8. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1976. p. 147.
16
CB, p. 542.
17
ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano: Edoardo Bizarri. 3. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. p. 80.
15
verdade, abduzido o sentido litúrgico, melhor denominados como versos, exaltam a
fidelidade no matrimônio e retomam, de forma análoga, os temas dos cânticos nupciais
árabes da Síria, da Palestina e do Egito Antigo.
Apesar das interpretações alegóricas, assinaladas pela religião, de que o livro dos
cânticos seria uma alegoria do amor de Cristo pela sua noiva, a Igreja, os poemas nada
sinalizam à interpretação litúrgica do texto, ou ainda, a uma leitura que se refira à união
mística da alma com Deus. Não há traços que sugiram uma decodificação de alegorias que
estejam nas entrelinhas, pelo contrário, o sentido decorre naturalmente dos versos: é uma
coleção de cantos que exaltam o matrimônio, mas o tema não é totalmente profano, visto que
Deus abençoou o casamento, concebido antes como a associação harmônica e afetuosa entre
o homem e a mulher do que como um meio de procriação. Na novela em questão, o trecho
em que o Amado descreve sua companheira é parafraseado nas palavras de Soropita:
4:1
4:2
4:3
Como és bela, minha amada,
como és bela!...
São pombas
teus olhos escondidos sob o véu.
Teu cabelo... um rebanho de cabras
ondulando pelas faldas de Galaad.
Teus dentes... um rebanho tosquiado
subindo após o banho,
cada ovelha com seus gêmeos,
nenhuma delas sem cria.
Teus lábios são fita vermelha,
tua fala melodiosa;
metades de romã são teus seis
mergulhados sob o véu18.
Não simplesmente uma paráfrase do livro bíblico, a incorporação do “Cântico dos
Cânticos”, a referência a Boticelli e as fontes epistemológicas apontadas por Benedito Nunes,
surgem a propósito do projeto estético da novela. Cabe, antes, expor o trecho parafraseado
em “Dão-Lalalão”, em seu leito, numa noite de prazeres, o cavaleiro do Ão emprega palavras
semelhantes às do Amado para expressar a beleza de Doralda.
Ao fôgo dos olhos de Soropita, as pontas de seus seios oscilaram.
Soropita recostado, repousado, como num capim de campo.
— “Tu é bela!...” O vôo e o arrulho dos olhos. Os cabelos, cabriol. A como as
boiadas fogem no chapadão, nas chapadas... A boca — traço que tem a cor como
as flores. Os dentes, brancura dos carneirinhos. Donde a romã das faces. O
pescoço, no colar, para se querer com sinos e altos, de se variar de ver. Os doces,
18
1191.
4:1 quam pulchra es amica mea quam pulchra es oculi tui
columbarum absque eo quod intrinsecus latet capilli tui sicut
greges caprarum quae ascenderunt de monte Galaad
4:2 dentes tui sicut greges tonsarum quae ascenderunt de lavacro
omnes gemellis fetibus et sterilis non est inter eas
4:3 sicut vitta coccinea labia tua et eloquium tuum dulce sicut
fragmen mali punici ita genae tuae absque eo quod intrinsecus latet. (Vulgata)
Cf. BÍBLIA. Cântico dos Cânticos. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulus, 2000. p.
da voz, quando ela falava, o cuspe. Doralda — deixava seu perfume se fazer19.
Há ainda, dentro da hipótese hermenêutica proposta no princípio deste texto, um outro
aspecto a ser observado. A pulsão sôfrega e universal de eros veste outras formas, quando
foca-se a figura de Soropita. O tom lírico, evocado pela natureza amorosa da leitura
empreendida, repousa na figura do cavaleiro, na experiência que este vive em sua viajem. O
molde poético que cerca o estado ébrio do boiadeiro, no qual interagem memória e poesia, à
luz da veia erótica de Guimarães Rosa, revela ainda outras feições da tessitura estética de
“Dão-Lalalão”. As lembranças, rememoradas pelo cavaleiro, trazem a tona os momentos
lúbricos da vida sertaneja em oposição à dura lida da boiada e do campo, mesmo contra sua
vontade, Soropita se deixa envolver pelas fortes sensações que cercam o tônus sensual do
sertão. Em seu interior, o desejo reavivado na oscilação do pensamento toma corporalidade
por meio das sensações:
Vinham através de um malhador de pasto, a poeira vaporosa do esterco bovino
chamava do sangue de Soropita um latejo melhor, um tempero de aconchêgo.
Com o calor que o coxim da sela lhe passava para o fundo-das-costas — um calor
grosso, brando, derramável, que subia às virilhas e se espalhava e enrijava — o
bem do corpo tomava mais parte no pensado, o torneio das imagens se
espessava20.
O revolver de pensamentos e sensações de Soropita é perpassado por diferentes
tradições epistemológicas que se complementam na estética desta novela roseana. A natureza
ficcional desta personagem aponta uma contigüidade entre a narrativa e a matriz de
pensamento neoplatônica representada por Plotino, considerado o fundador do
neoplatonismo, preocupou-se em afirmar o exercício da razão no rigor conceitual de seus
escritos, posteriormente reunidos por seu discípulo Porfírio nas Enéadas. Carregado de
imagens poéticas, o pensamento de Plotino é uma leitura mística do idealismo de Platão,
utilizando-se da matriz dialética da transcendência, o sistema plotiniano, imprime uma
dimensão cósmica ao pensamento platônico, embasando-se em seu propósito fundamental de
estabelecer a relação entre o princípio mítico da realidade, o Uno, e os eventos engendrados
por este. Segundo Plotino, o Uno seria o berço incognoscível e transcendente a definições que
se manifesta através de sucessivas e diferentes emanações. Sendo assim, o mundo
fenomênico e humano encontra-se entre duas extremidades: numa estaria o divino, o Uno
primordial, na outra a matéria, onde haveria a ausência momentânea de luz divina, onde os
raios parcamente iluminariam sua superfície; no intervalo entre estes dois pólos se situariam
as diferentes dimensões do homem e da realidade alinhavadas em círculos concêntricos que
gradativamente afastam-se do centro. A escola de Plotino visava ensinar ao homem, através
da filosofia, a integrar-se numa realidade mais abrangente, através de uma experiência
transpessoal que, em último grau, resultaria na união mística do homem com o Uno, assim, o
intelecto pouco valeria, seria pouco útil e pleno, diante da experimentação supra-sensorial.
Das sete epígrafes que constam em Corpo de Baile (1956), quatro contêm as palavras
deste filósofo. Em “Dão-Lalalão”, a empreitada de Soropita alcança diferentes dimensões
relativas à natureza humana, além da mudança ordinária de status e figura social, de meretriz
a esposa e de boiadeiro a minifundiário, a expressividade erótica da novela molda-se na
dimensão sensitiva do homem, a estância mais afastada do Uno, como o quer Plotino, no
entanto, semelhante ao processo dialético de Platão, eros age como pulsão à ascensão da alma
19
20
CB, p. 544.
CB, p. 484.
a um nível mais próximo da natureza divina. Conforme afirma o mestre Benedito Nunes,
“Essa vontade de restituição manifesta-se no élan amoroso e na ascese mística, duas vias de
retorno que se equivalem, pois o homem tenta vencer, por meio delas, a alteridade, identificando-se com outrem no amor ou com a divindade, na culminância do êxtase21”. Todavia,
nesta novela roseana, o contemplativo não foge ao sensível; a paisagem sertaneja e a beleza
de Doralda, principais focos de visão, são antes sentidos na corporalidade do ser envolvido
numa atmosfera erotizada e abstrata, entre o onírico e o real, e posteriormente expressos
numa linguagem poética, que atinge uma imagem algo epifânica no momento em que
Soropita observa Doralda no meio da sala, a cena delineada em seu pensamento é uma
imagem grandiosa e violenta, uma visão próxima aos signos e ao êxtase divinos.
Soropita, podia se penetrar de ânsias, só de a olhar. Sobre de pé, no meio da sala,
era uma visão: Doralda vestida de vermelho, em cima das Sete Serras, recoberta
de muitas jóias, que retiniam, muitas pérolas, ouro, copo na mão, copo de vinhos
e ela como se esmiasse e latisse, anéis de ouro naquelas especiosas mãos, por
tantos sugiladas tanto, Doralda vinha montada numa mula vermelha, se sentar nua
na beira das águas da Lagoa da Laóla, ela estava bêbada; e em volta aqueles
sujeitos valentões, todos mortos, ele Soropita aqueles corpos não queria ver...22
Na veia erótica de Guimarães Rosa a idéia chave do platonismo, a ascensão dialética,
e a concepção mística neoplatônica, de maneira heterodoxa confluem às teses do escritor
italiano Dante Alighieri. Em primeiro lugar, deve-se ressalvar a diferença entre a postura
teórica de Aristóteles, sustentáculo das palavras do italiano, e a de Platão e Plotino. Para estes
últimos, a alma é uma entidade mediadora, pois reflete em parte a unidade primordial do
universo, a qual anseia retornar, mas, ao mesmo tempo, coabita com a fragmentariedade do
plano sensível; para aquele a alma é e possui em si todos os elementos da experiência
sensitiva e do plano inteligível. Contudo, na ficção roseana a duplicidade da natureza da alma
é retratada em toda sua plenitude, ou seja, na novela em questão perfilam-se as diferentes
facetas da experiência amorosa. Dante Alighieri, no Il Convívio, ao examinar a natureza do
homem em relação ao amor, personalizado na sua musa inspiradora, Beatriz, alegoria da
Sabedoria, embasado nas doutrinas teológico-filosóficas do pensamento escolástico e na
natureza da relação entre as causas e os efeitos analisada por Aristóteles, o autor da Divina
Comédia, afirma que a natureza humana descende de Deus e, por este motivo, visto que Deus
é a causa prima do universo, o homem é capaz de reunir todas as espécies de amor: do carnal
e sensível ao espiritual e inteligível. Pois todo efeito não pode conter algo a mais que a sua
respectiva causa, mesmo que ao homem não seja possível assemelhar-se a Deus, pela
nobreza de sua origem divina, a natureza humana é capaz de sentir e reter as diferentes
facetas do amor e sofrer as metamorfoses proporcionadas pela pulsão universal de eros:
“E visto que o homem (embora uma única substância seja tôda sua forma) pela sua nobreza
de cada uma destas coisas, pode ter todos êstes amôres, e todos os tem23”.
A concepção de amor que domina na elaboração literária de Guimarães Rosa possui,
sem dúvida, afinidades com os versos da Divina Comédia e com os tratados do Il Convívio. O
teor filosófico contido na viagem, de Soropita ao Ão, de Dante ao Paraíso, é perpassado pelo
mesmo conceito platônico da dialética ascensional, no entanto, este é traduzido em diferentes
21
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1976. p. 153.
22
CB, p. 533-534.
23
ALIGUIERI, Dante. O Banquete (Il convívio). Trad. Pe.Vicente Pedroso. São Paulo: Ed. das
Américas, s.d. p. 186 : “E peroche l’ uomo (avvegnachè una sola sustanza sia tutta sua forma) per la sua nobiltà
a in sè della natura di ognuma di queste cose, tutti questi amori puote avere, e tutti gli ha”. p. 413.
dimensões. Os conceitos de Platão, o sistema de Plotino, entre outras referências filosóficas e,
também, metafísicas, relacionadas ao amor e a outros temas são reelaboradas na produção, ao
mesmo tempo, tradução artística de Guimarães Rosa que é direcionada ao microcosmo do
homem, este sim, o principal tema da ficção roseana, fascinada pelo mítico e universal da
vida; diferentemente do pensamento de Dante, ao conceber os cantos da Divina Comédia e a
exposição no Il Convívio à luz do ideal cristão de ascensão ao Paraíso e da teologia
escolástica do século XIII, em que eros se despe de sua sensualidade e configura-se como o
amor ágape da beatitude, ou ainda, como virtude normativa para a compreensão e acesso a
Sabedoria.
Esta diferença fundamental entre as obras é, sumariamente, expressa na natureza das
suas personagens femininas. Beatriz é a alegoria da Sabedoria, uma beleza de luz e matéria
divina que apaixona o poeta italiano e estimula-o no árduo trajeto que percorre pelo Inferno,
Purgatório e Paraíso; já Doralda é uma beleza que tem cheiro, suor e calor, é a personificação
da noiva, da Sulamita, da amada fiel ao laço conjugal, mas, em segredo, desejada pela
lascívia promiscua da prostituta. Outro aspecto relevante é a virilidade que perpassa a novela,
em diferentes momentos uma série de valores tipicamente varonis são postos em destaque, a
perda do respeito e o despautério perante os outros homens e a comunidade estão diretamente
associados ao fraquejo masculino e conseguinte adultério da esposa, a estória do seo
Quincôrno, mais também com a perda do prazer e do desejo pela vida, como bem o
demonstra a reação de Soropita quando fraquejara.
Tinha não podido, não, leso, leso, e forcejava por mandar em si, um frio que o
molhava, chorava quase, tascava os freios. Doralda, bôazinha, dizia que às vezes
era mesmo assim, não tinha importância, que nenhum homem não estava livre de
padecer um dissabor desse, momentão; passava as mãos nele, carinhosa, pegava
nele, Soropita, como se brinca. Mas ele não aceitava de ficar ali, fechando os
olhos, num aporreado inteiro, pavoroso fosse mandraca, podia durar sempre
assim, mas então ele suicidava;
Do ambiente tranqüilo e benfazejo no recordar as belezas da amada a novela assume
uma atmosfera sinuosa e tempestiva, não se pode desconsiderar que o matrimônio de Soropita
e Doralda não é uma situação aceitável para a sociedade, por isso eles se refugiam no vilarejo
do Ão e há uma tensão quando algo pode vir a delatar o passado como Sucena, a desejada da
rua dos Patos, e do homicida Surrupita.
Tudo que o Ão representa para Soropita é ameaçado no encontro, a algumas léguas
de casa, com o comboio de vaqueiros que segue com Dalberto, antigo e apreciado amigo do
ex-boiadeiro. Cercado por aqueles homens, com a exceção daquela amizade, desconhecidos,
Soropita, aguça seus sentidos e rapidamente observa-os para uma avaliação da situação. Mas,
de antemão, cria antipatia pelo negro, pois este carrega uma ave ensangüentada; avesso a
sangue desgostara-o a cena.
O preto, com espingarda e capanga, remexia: tinha ali uma codorna, sapecada de
pólvora, preta e sangrenta; Soropita desviou o olhar. Mas vigiava-os, de sosla: os
em volta, mais afastados, fechando meia roda. O rapaz no cavalinho queimado,
com chapéu-de-couro redondo, do feitio de Carinhanha. Um de roupa clara. Um
de terno de couro, novo, dos comprados em Montes Claros. Gente de paz, em seu
serviço, mas gente bem armada.24
24
CB, p. 494.
Acompanhado de Dalberto, um pouco à frente dos outros, Soropita, segue o restante
do caminho conversando com o amigo, muito vivo, bom prosador, a conversa se estende aos
tempos de condutor de boiadas, Dalberto, relembra os limites e os nomes das fazendas e dos
seus respectivos donos, dos prazeres de Montes Claros, da afeição que tinha por uma das
meninas, lembra estórias insólitas e conta anedotas, pergunta sobre o antigo e o novo, quer
saber o que ocorrera depois de tantos anos decorrido. Soropita se sente desconfortável com
sua posição, tinha certeza que os outros falavam dele na traseira. Mesmo assim, por bons
modos, convida-os para jantar em sua casa. Dalberto aceita, despensa os vaqueiros do convite
e recomenda que o encontrem, pela manhã, em outro local, no Azedo. Mas, perto de casa,
Soropita é assaltado por uma dúvida:
Só o triz de um relance, se acendeu aquela idéia, de pancada, ele se debateu
contra o pensamento, como boi em laço; como boi cai com tontura do cabelouro,
porretado atrás do chifre. Senseou oco, o espírito coagulado, nem podia doer de
pensar em nada, sabia que tinha o queixo trêmulo, podia ser que ia morrer, cair;
não respirava. (...) Mas a idéia o sufocava: quem sabe o Dalberto conhecia
Doralda, de Montes Claros, de qualquer tempo, sabia de onde ela tinha vindo, a
vida que antes levara?25
Da calmaria que vinha sendo, até o momento, a viagem transtorna-se em horrível
confusão e dualidade. A dúvida, surgida às portas de casa, dispõe o pensamento de Soropita
em volteios intermináveis, por um lado, nada lhe seria mais desagradável do que assistir à
ruína da harmonia que encontrou no Ão, ver seu nome jogado na lama, se o amigo delatasse o
passado de Doralda em Montes Claros; por outro, tem muito apreço por Dalberto e não se
dispõe de forças para erguer mão de morte contra aquela querida amizade, todavia, de tudo é
capaz para defender seu pequeno éden. De forma análoga a Divina Comédia, Soropita
encontra aqui, ao seu modo, o inferno dos lussuriosi, que tem o desfecho apoteótico, após a
fatídica noite do jantar em que Dalberto é absolvido da sentença mortal do amigo. No
entanto, paira ainda a insegurança e o rancor contido de Soropita sobre o negro Iládio, que na
sua imaginação violenta Doralda.
Na manhã sequinte, o grupo que viera com Dalberto aparece e reclama da ausência do
chefe, este partira cedo e, por outro caminho, em decidida resolução, toda aquela vida de
boiadeiro foi deixado para trás, juntamente com o bando. Arredio, mas sem manifestar maior
comoção, o sertanejo recebe-os e até oferece café, mas o encontro é rápido. No último
instante, concentrado na figura do negro, que tanto lhe provocara asco e rancor, Soropita
ouve deste vaqueiro umas palavras não compreendidas, que são tomadas como injúrias por
deduzirem uma familiaridade não aceitável. “E falou uma coisa? — falou uma coisa — que
não deu para se entender; e que seriam umas injurias... 26”. A partir deste ponto, quando o exboiadeiro perde o controle da situação e sente-se carregado por um estouro de maus
pensamentos, Soropita vive o seu inferno. O estado de espírito do sertanejo torna-se
semelhante à condição das almas condenadas ao segundo círculo do Inferno, cuja condenação
é descrita no “Canto V” da Divina Comédia, no inferno dos luxuriosos.
Mas, o sofrimento no espírito, descido um funil estava nas profundezas do demo,
o menos, o diabo rangendo dentes enrolava e repassava, duas voltas, o rabo na
cintura? A essa escuridão: o sol calasse a boca... Levantou-se. — “O preto me
ofendeu, esse preto me insultou!” 27.
25
CB, p. 515.
CB, p. 553.
27
CB, p. 553.
26
O sertanejo lança-se no segundo degrau do funil infernal, na entrada onde se encontra
Minós, o demônio grotesco que ouve as confissões dos pecadores e os designa aos
respectivos círculos do inferno, de acordo com o número de vezes que se envolve na longa
cauda.
Così discesi del cerchio primaio
giù nel secondo, che men loco cinghia
e tanto più dolor, che punge a guaio.
1
Stavvi Minòs orribilmente, e ringhia:
essamina le colpe ne l'
intrata;
giudica e manda secondo ch'
avvinghia.
4
Dico che quando l'
anima mal nata
li vien dinanzi, tutta si confessa;
e quel conoscitor de le peccata
7
vede qual loco d'
inferno è da essa;
cignesi con la coda tante volte
quantunque gradi vuol che giù sia messa28.
10
A condenação dos lussuriosi consiste num eterno redemoinho violento que, a toda
hora, os lança contra as rochas, entre as blasfêmias contra a ordem divina as almas
condenadas têm por única e incerta esperança um momento de alívio em meio ao perpétuo
sofrimento. Espécie de pena que reflete o ímpeto e desnorteio natural aos que se entregam
plenamente às paixões humanas.
La bufera infernal, che mai non resta,
mena li spirti con la sua rapina;
voltando e percotendo li molesta.
.................................
di qua, di là, di giù, di sù li mena;
nulla speranza li conforta mai,
non che di posa, ma di minor pena29.
31
43
28
ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Inferno V. Trad. de J. P. Xavier Pinheiro. São Paulo: Martin
Claret, 2004. p. 45.
1
Desci destarte ao circulo segundo,
Que o espaço menos largo compreendia,
Onde o pungir da dor é mais profundo.
4
Lá estava Minos e feroz rangia:
Examinava as culpas deste a entrada,
Dava a sentença como ilhais cingia:
7
Ante ele quando uma alma desditada
Vem, seus crimes confessa-lhe em chegando,
Com perícia em pecados consumada.
10
Lugar no inferno, Minos, lhe adaptando,
Do abismo o círculo arbitra, a que pertença,
Pelas voltas da cauda graduando.
29
ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Inferno V. Trad. de J. P. Xavier Pinheiro. São Paulo: Martin
Claret, 2004. p. 46.
31
Da tormenta o furor, nunca abatido,
Soropita é envolvido na ventania maligna e no estorvar de grunidos semelhantes ao de
bandos de estorninhos, segundo descreve Dante, que o transtorna em rodeios intermináveis
envolvendo-o numa sensação de desespero e morte que o impele, em armas, contra a
provável ofensa de Iládio. Assim, eros manisfesta sua faceta mais feroz e labiríntica, a
violenta graça do amor torna o, até então, estado de meio sonhada ruminação numa caudalosa
torrente de augouros.
Vento mau o sacudia, jogava-o, de cá, de lá, em pontas de pedras, naquele trovôo
de morte, gente com gritos de dores, chorando e falando, muitos guinchos
redobrados, no vento varredor?30.
No segundo círculo do Inferno, Dante reconhece a puniçao àqueles que submeteram
as faculdades da razão aos apetites do desejo e encontra diversas personagens da
Antiguidade, Helena, Páris, Aquiles, entre outras, mas, chama sua atenção um casal que
mesmo em tamanho tormento se mantém unido, Francesca e Paolo Malatesta, os cunhados
adúlteros que tiveram o amor revelado por meio da leitura do romance de Lancelot e
Guinevere, tal é a compaixão e piedade que a história do casal desperta no poeta italiano que
este cai “come corpo morte cade”. Apesar da condenação infernal, perdura ainda o elo afetivo
entre as duas almas, é esta aliança eterna que comove o poeta, mesmo num ambiente
tenebroso e atormentador é possível encontrar um vestígio da beleza amorosa.
Em “Dão-Lalalão”, o belo é expresso e admirado nas suas diferentes dimensões tanto
na experiencia sensível, no tato do corpo, quanto na visão contemplativa, no mirar dos olhos,
a estética roseana busca por meio de uma linguagem elaborada que exprime a corporalidade
do ser e das coisas projetar uma vivência e representação poética do homem e do mundo.
Sendo assim, em conluio com o que experimentou o italiano em sua viagem metafísica, em
determinado trecho de “Dão-Lalalão”, Soropita divaga: “E ainda mais forte sutil do que o
pedido do corpo, era aquela saudade sem peso, precisão de achar o poder de um direito bonito
no avesso das coisas mais feias31”.
A obra ficcional de João Guimarães Rosa enfrenta um desafio que se impôs a toda
grande obra literária: interpretar a vida ou um recorte desta em toda sua plenitude. Para tanto,
no conjunto da obra roseana é possível ler-se uma concepção estética do mundo e do homem.
A dimensão mítica, obscura e essencial, da realidade e da natureza humana, mais também a
experiência sensível de mundo consumam o horizonte no qual se projeta a novela “DãoLalalão”, assim como, a obra em que está inserida, Corpo de Baile. Esta projeção ficcional e
poética aproxima-se dos versos do grande poeta alemão Goethe, em seu “Palavras-mães.
Poema Órfico” (Urworte. Orphisch) de 1817, no qual está concentrado a maturidade e o
melhor da sabedoria destes poeta. Nas cinco estâncias que marcam as estrofes, segundo as
palavras de Goethe, “Procurou-se concentrar aqui e apresentar sob forma lacónica, poéticacompendiosa, o que nos foi transmitido das antigas e modernas doutrinas órficas32”.
Contrariado pelas amarras da tyche, os labirintos da casualidade, daímon, a individualidade,
encontra amparo no seio amoroso de eros, em que “está incluído tudo que se possa imaginar,
Perpetuamente as almas torce, agita,
Molesta, em seus embates recrescido.
..............................................
43
Ao capricho do vento, que as trazia.
De pausa não, de menos dor a esp’rança
Conforto lhes não dá nessa agonia.
30
CB, p. 553.
31
CB, p. 509.
32
QUINTELA, Paulo. Obras Completas — Traduções II. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. p. 248.
desde a mais leve inclinação à mais apaixonada loucura; aqui se unem o demónio individual e
a tyche sedutora33”, assim o élan sensual requer “abraçar um segundo ser como a si mesmo
com uma inclinação eterna, indestrutível. (...); duas almas devem unir-se num só corpo, dois
corpos numa só alma,34” para, assim, viver-se a plena liberdade e o prazer da vida.
Ou então, aquilo que Doralda tinha falado, mais de uma vez, muito falava: —
“Bem, eu acho que só ficava sossegada de tu nunca me deixar, era se eu pudesse
estar grudada em você, de carne, calor e sangue, costurados nós dois juntos...”
Isso, ele gostava. Sem Doralda, nem podia imaginar — era como se ele estando
sem seus olhos, se perdido cego neste mundo.
Na estância órfica de eros vislumbram-se alguns aspectos que perpassam por toda a
narrativa, a tensão dialética entre extremos opostos e a hesitação de pensamento podem ser
referenciados por este poema, assim como, alguns outros elementos que funcionam como
denominadores comuns numa leitura comparativa.
, O AMOR
E a chama vem! — Do céu se precipita,
De lá onde ele subira do deserto antigo,
Eis se aproxima em asa aérea, e infinita
Primavera traz na fronte e peito amigo;
Parece ora fugir, ora volta, ora hesita,
E na dor há prazer, mel e medo traz consigo.
Muito coração no geral se dissipa,
Mas o mais nobre só a um se dedica35.
Sendo assim, o poema órfico de Goethe oferece, em certa medida, um sumário poético
de alguns elementos da novela “Dão-Lalalão”. A obra roseana, rica nas mais variadas
referências literárias, filosóficas, entre outras, sustentada por um linguagem elaborada, edifica
ficcionalmente uma concepção de mundo que abarca os paradoxos da natureza humana diante
da beleza e do místerio da vida.
PALAVRAS-CHAVE
Guimarães Rosa, “Dão-Lalalão”, projeto estético.
33
Idem, ibidem. p. 249.
Idem, ibidem.p. 249.
35
Idem, ibidem. p. 136.
Erôs, Liebe
Die bleibt nicht aus ! — Er stürzt vom Himmel nieder,
Wohin er sich aus alter Öde schwang,
Er schwebt heran auf luftigem Gefieder
Um Stirn und Brust den Frühlingstag entlang,
Scheint jetzt zu fliehn, vom Fliehen kehrt er wieder,
Da wird ein Wohl im Weh, so sü un bang.
Gar manches Herz verchwebt im Allgemeinen,
Doch widmet sich das edelste dem Einem.
34
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar a Deus, por me conceder a dádiva da vida.
Ao Prof. Dr. Sílvio Holanda, cuja orientação sábia ilumina os caminhos de meu aprendizado.
Aos meus pais, pela confiança e educação.
Aos meus amigos Prof. Everton Teixeira, Prof. Carlos Dias, Francisco Ewerton e Ingred
Pereira pelos sorrisos e pela felicidade no compartilhar um pouco desta longa saga
acadêmica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Inferno V. Trad. de J. P. Xavier Pinheiro. São Paulo:
Martin Claret, 2004.
ALIGHIERI, Dante. O Banquete (Il convívio). Trad. Pe.Vicente Pedroso. São Paulo: Ed. das
Américas, s.d.
BÍBLIA. Cântico dos Cânticos. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulus, 2000.
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: O dorso do tigre. 2. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1976.
PRADO JR, Bento. O destino cifrado: linguagem e existência em Guimarães Rosa.
In: Alguns ensaios. São Paulo: Max Limonad, 1985. p. 195-226.
QUINTELA, Paulo. Obras Completas — Traduções II. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 2v.
ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 2v.
ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano: Edoardo Bizarri. 3. ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 8. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. 594p.

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