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CULTURA Tema: O Humor no Cinema Brasileiro Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse O gênero mais popular no cinema brasileiro é a comédia, criou subgêneros (a chanchada e a comédia erótica) e é um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema (Mazzaropi, Os Trapalhões). O que as comédias teriam a dizer sobre nós? O que os filmes cômicos em suas mais variadas épocas teriam a dizer sobre o Brasil? Nessa discussão serão abordados os filmes O Homem do Sputnik, de Carlos Manga, Jeca e seu Filho Preto, de Amacio Mazzaropi, Os Trapalhões na Serra Pelada, de JB Tanko e Se Eu Fosse Você, de Daniel Filho. Apresentação dos filmes e das questões O homem do Sputnik (Brasil, 1959), de Carlos Manga Um satélite soviético cai no telhado de Anastácio (Oscarito) e Cleci (Zezé Macedo) o que torna o simples casal em estrelas da mídia. Passam a ser perseguidos por espiões americanos, franceses e soviéticos que querem posse do satélite. O filme da Atlântida ironiza a guerra fria e, segundo Carlos Manga, a piada que fez com símbolos americanos frustrou uma futura carreira em Hollywood que naquele momento era planejada. Cena antológica é de Norma Bengel fazendo uma paródia de Brigitte Bardot. Jeca e seu filho preto (Brasil, 1978), de Pio Zamuner e Berilo Faccio Zé (Mazzaropi) e dona Bomba (Geny Prado) possuem dois filhos, Laurindo e Antenor. Acontece que Antenor é negro e o casal apesar de estranhar o fato o considera “coisa de Deus”. Antenor começa a namorar uma moça branca filha do empregador de seu pai, seu Cheiroso. Seu Cheiroso é contra o casamento e o casal fará de tudo para ficar junto. O crime no fim do filme revelará a verdadeira origem de Antenor. O filme teve oficialmente 2 milhões, 872 mil e 881 espectadores. Mazzaropi tentou relacionar alguns seus filmes a assuntos do momento. Se em Jeca Contra o Capeta ele embarcou na onda de “O exorcista”, aqui ele vai de encontro “liberação” negra dos anos 70, colocando a questão racial no seu universo caipira sertanejo, apesar de uma abordagem bastante anacrônica e até um pouco preconceituosa. Os Trapalhões na Serra Pelada (Brasil, 1982), de JB Tanko Essa aventura de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias foi realizada na época em que se falou muito do garimpo de Serra Pelada, no Pará, que era o maior garimpo a céu aberto do mundo e estimulou uma corrida do ouro moderna. Os quatro Trapalhões vão em busca de ouro na Serra Pelada, porém, a região é controlada pelo cruel estrangeiro Von Bermann. Sedento por poder, Von Bermann contrabandeia o ouro e tenta tomar posse das terras do brasileiro. O filme foi comercializado em Angola e Moçambique e levou mais de 5 milhões de pessoas aos cinemas. Apesar de nessa época os Trapalhões já terem um programa de esquetes na TV, o filme possui uma forma autônoma do formato televisivo. Essa distinção entre formato televisivo e forma cinematográfica iria se diluindo e nos anos 1990 os filmes da trupe se tornaram bastante dependentes do repertório da televisão. Se eu fosse você (Brasil, 2006), de Daniel Filho Se eu fosse você, de Daniel Filho, foi um marco nas comédias contemporâneas realizadas pela Globo Filmes ao ultrapassar os 3 milhões de espectadores, superada por suas sequência que fez o dobro de espectadores nos cinemas. A trama é simples: um casal que não se entende, por mágica, troca do corpo. O humor vem das contradições decorrentes dessa “troca”. O filme foi muito criticado por de calcar em uma forma dramatúrgica e estética próxima da teledramaturgia. Porém muitos, como o crítico Inácio Araújo, defendem o filme. O segundo filme repetiria a fórmula. Material Anexo A vez da retomédia – comédia da retomada A GLOBO FILMES troca de comando. Sai o diretor-­‐executivo Cadu Rodrigues. A boataria aposta no anúncio da substituição no final do mês. 2 Jorge Peregrino, ex-­‐UIP e Paramount Universal América Latina, que começou no antigo Instituto Nacional do Cinema, passou pela Embrafilme, Concine e pela Globo Vídeo, é o nome aventado. O deboche, uma tradição brasileira que vem de longe, inspirada ainda no Teatro de Revista, ganhou as telas, passou pela Chanchada, Oscarito, Mazzaropi, as Vedetes, Pornochanchada, Trapalhões, é retomado e faz sucesso graças ao Cadu. Na onda da Retomada, movimento de renascimento do cinema nacional depois do fim da Embrafilme graças a leis de incentivo, que começou em 1995 com… uma comédia [Carlota Joaquina], vemos um boom das RECOMÉDIAS. A RETOMÉDIA é um movimento que veio para ficar e dar lucro. Produtores tradicionais de outros gêneros, como Mariza Leão, focam agora neste filão; Mariza, que começou produzindo o marido Sérgio Rezende [Lamarca, O Homem da Capa Preta], levou recentemente ao cinema mais de 8,3 milhões de pessoas com sua “franquia” De Perna$ Pro Ar. Números atualizados: 2003 – Os Normais – O Filme [2,9 milhões de pessoas] 2003 – Lisbela e o Prisioneiro [3,1 milhões de pessoas] 2004 – Sexo, Amor e Traição [2,219 milhões de pessoas] 2006 – Se Eu Fosse Você [3,6 milhões de pessoas] 2009 – Mulher Invisível [2,523 milhões de pessoas] 2010 – De Pernas Pro Ar [3,5 milhões de pessoas] 2010 – Se Eu Fosse Você 2 [6,1 milhões de pessoas] 2011 – CiladaCom [3 milhões de pessoas] 2012 – E Aí… Comeu? [2,5 milhões de pessoas] 2012 – Até que a Sorte Nos Separe [3,4 milhões de pessoas] 2012 – De Pernas Pro Ar 2 [4, 818 milhões], já é o segundo em renda de 2013, perdendo apenas para João e Maria. Estes filmes estão no ranking dos 20 filmes brasileiros mais assistidos de 2000 pra cá [35 milhões de pessoas]. Não é fraco, não. Todos com parceria GLOBO FILMES [que entrou ou com grana, com participação, divulgação, foram produzidos, coproduzidos]. Dados do ano passado [Filme B]: 3 Recentemente, Cadu entrou numa atraente polêmica com o diretor pernambucano Kléber Mendonça Filho, de O Som ao Redor. Kléber tinha sugerido à FOLHA que qualquer filme com suporte da Globo Filmes faz sucesso de público: “Se meu vizinho lançar o vídeo do churrasco dele no esquema da Globo Filmes, ele fará 200 mil espectadores no primeiro final de semana.” O ex-­‐diretor-­‐executivo da Globo Filmes provocou o cineasta independente pernambucano no site da VEJA: “Desafio o cineasta Kléber Mendonça Filho a produzir e dirigir um filme e fazer 200 mil espectadores com todo apoio da Globo Filmes! Se fizer, nada do nosso trabalho será cobrado do filme dele. Se não fizer os 200 000 assume publicamente que, como diretor, ele é talvez um bom critico”. Em resposta à provocação de Cadu Rodrigues, Kléber postou no FACE: “Isso não me parece correto, pois o valor de um filme, ou de um artista, não deveria residir única e exclusivamente nos número$. Sobre ser crítico ou cineasta, atuei como ambos e meu discurso permanece o mesmo, e sempre foi colocado publicamente, e não apenas em mesas de bar: o sistema Globo Filmes faz mal à ideia de cultura no Brasil, atrofia o conceito de diversidade no cinema brasileiro e adestra um público cada vez mais dopado para reagir a um cinema institucional e morto.” Não acho correto questionar o estímulo do público, julgar sua reação. Soa pretensioso. O público de Os Normais é intelectualmente mais manobrável que o de O Som Ao Redor? A polêmica, que parece uma birra regionalista-­‐ afinal sempre tem um cineasta pernambucano envolvido-­‐, lembra as grandes discussões de Glauber sobre o papel do cinema e do Estado. 4 É atraente, pois nas entrelinhas está o repto levantado em 1922 no palco do Theatro Municipal de São Paulo: é possível fazer arte de bom nível pras massas? Kléber foi mais longe: “Devolvo outro desafio: Que a Globo Filmes, com todo o seu alcance e poder de comunicação, com a competência dos que a fazem, invista em pelo menos três projetos por ano que tenham a pretensão de ir além, projetos que não sumam do radar da cultura depois de três ou quatro meses cumprindo a meta de atrair alguns milhões de espectadores que não sabem nem exatamente o porquê de terem ido ver aquilo.” Esse desafio não entendi. Os 35 milhões citados não saberão por que foram ver o que viram, se esquecerão em meses do que viram, será digerido como um fast-­‐movie? Independente da polêmica, o filme de Kléber é dos melhores feitos no Brasil, surpreende, prende, é genial e ponto. Não só os filmes, mas a cultura de PERNAMBUCO faz um bem danado ao país, revela talentos, questiona a linguagem, emociona, nos faz pensar. E o legado de CADU não precisa de respaldo. Questionou o mercado viciado em leis de inventivo, cuja maioria dos filmes não se paga. Se levou a tela da TV para a tela do cinema, soube incentivar novos cômicos, uma nova geração de autores e atores, deu lucro, levou uma multidão aos cinemas e como capitalista fez jus ao cargo. Parabéns Kléber, parabéns Cadu. Obrigado a ambos. O cinema brasileiro vive um momento in$pirado e inspirador. Marcelo Rubens Paiva O Estado de S. Paulo – 10 de abril de 2013 Disponível em http://blogs.estadao.com.br/marcelo-­‐rubens-­‐paiva/a-­‐vez-­‐da-­‐retomedia-­‐
comedia-­‐da-­‐retomada/ Humor: trunfo sem requinte, mas com apelo popular O jornalista Franthiesco Ballerini analisa a produção nacional e atesta: temos que achar uma fórmula original O volume de comédias nacionais com relativo sucesso de bilheteria, em meio ao decepcionante número de espectadores de grandes produções, devolvem à pauta do dia uma velha conhecida de nosso humor: a crítica. Salvo raras e preciosas exceções, o cinema de humor brasileiro fez escola com produções de tom amadorístico, com baixa qualidade técnica, criações em série e personagem estereotipados. Produções que, via de regra, se lançavam sob olhar furioso de críticos e a aclamação do público. 5 Das chanchadas da década de 40, às suas versões pornográficas dos anos 1960 e 1970, passando por sucessos aclamados como "Macunaíma" e "Dona Flor e Seus Dois Maridos" e ainda pelo filmes em série de nomes como Os Trapalhões e Xuxa, que flertavam diretamente com produções televisivas em 1980, e pelo recente sucesso de filmes como "E Se eu Fosse Você" e "Muita Calma Nessa Hora", há que se tirar uma constatação: "Comédia, a gente produz bem e é bem recebido pelo público. É difícil fechar uma década em que isso não aconteça". Quem avalia é Franthiesco Ballerini, crítico de cinema e coordenador da Academia Internacional de Cinema. Para ele, independente da qualidade técnica das produções, o humor é um dos grandes trunfos do cinema brasileiro. "O Brasil é um dos países mais bem sucedidos em termos de comédia no mundo", analisa. O sucesso do gênero no País, explica, é anterior ao próprio cinema. A sétima arte teria herdado a tradição cômica de experiência já bem sucedida em outros meios, como o rádio e o teatro. "As pessoas acham que o sucesso da comédia no cinema se deve a experiência da Atlântida Cinematográfica, no anos 1940. Mas isso vem de antes. Veio do teatro no século XIX, passou pelo radio e o cinema incorporou", argumenta. Chanchadas Essa ligação dos filmes com produções de outros veículos, aponta o jornalista, acaba sendo uma das características das comédias brasileiras. "Em geral, o humor nacional é muito ligado ao que é feito na TV. Na época da chanchada tinha ligação com a Rádio Nacional e, desde 1960, com a TV" analisa. O humor escrachado, estilo "papelão", coloca o autor, é o resultado dessa tradição que atravessa as décadas e as mídias. Ainda que reconheça a má qualidade técnica de algumas produções, o jornalista pondera que a grande rejeição de críticos é influenciada mais por valores pré-­‐concebidos que por deméritos propriamente dito. "A grande maioria dos filmes, não há duvida que são roteiros pobres, menos elaborados. ´De Pernas Pro Ar´ é um roteiro que já vimos milhões de vezes em Hollywood. Mas se o texto talvez não seja tão bom, a interpretação dos atores dão força ao filme", diz. A rejeição da crítica à chamada comédia papelão, escrachada é uma regra de longa data e não é exclusiva do Brasil. "O Chaplin sofreu preconceito durante muitos anos, para só depois ser reconhecido. Não tenho duvida que daqui a alguns anos vão achar os Trapalhões ´cult´. Coisa que quando foram lançados era impensável, que o público considerava ´trash´", ilustra. E reforça, "São raras as comedias que ganharam grandes prêmios de Hollywood. Existe preconceito no mundo inteiro". 6 No Brasil, a rejeição é ainda mais pesada e generalizada à comédia, pela ausência de uma linha de humor sofisticado, "como os filmes de Wood Allen", complementa Franthiesco. A crítica acaba relegar a comédia a um plano menor da criação cinematográfica. Perspectivas Apesar de defender o gênero, o jornalista aponta, no entanto, uma necessidade urgente de renovação no formato das produções realizadas no País e critica, em especial, a forte vinculação com a televisão. "Temos que achar uma forma de fazer comédias originais para o cinema. Especialmente, em época de crise, o público vai dizer ´para quê ir no cinema, se posso assistir de graça na TV?´", argumenta. Franthiesco cita como exemplo produções bem sucedidas e que fogem ao padrão televisivo a comédia "Muita Calma Nessa Hora", de Bruno Mazzeo com Marcelo Adnet. Apenas o fato dos dois não estarem ainda vinculados à programas televisivos, aponta, é um passo para essa diferenciação. Em meio aos prós e contras do cinema nacional, às críticas e aos trunfos, um argumento em sua defesa é inquestionável, para Franthiesco Ballerini: "nos anos mais difíceis, as comédias mantem a boa participação do cinema brasileiro. Se não tivéssemos comédias, nossa produção seria ainda mais ínfima". Um século de riso e escracho O curta "Nhô Anastácio Chegou de Viagem", de Júlio Ferrez, rodado em 1908 no Rio de Janeiro, é apontado como a primeira tentativa humor do cinema nacional. Mudo e em preto e branco, o filme narrava as aventuras de um caipira desajeitado na cidade grande, que ao final, apanhava da mulher. O gênero, no entanto, só veio a se tornar efetivamente um sucesso de público na década de 1930, quando surgiram as primeiras chanchadas. Em 1936, "Alô, Alô, Carnaval" despontava como o maior sucesso da década, reunindo no elenco os cantores de grande sucesso da época, como Carmen Miranda e Francisco Alves, e preparando o terreno para as produções as chanchadas produzidas em série na década seguinte pela Atlântida Cinematográfica. A produtora é um marco do humor nacional, sedimentando a fórmula das chanchadas. Roteiros mais simples, que abordavam temas corriqueiros, temperados com muita música, um humor inocente e tipos populares estereotipados. 7 Com o filme "Tristezas não Pagam Dívidas" (1943), de Costa e José Carlos Burle, a produtora lançou ainda uma das parcerias mais bem sucedidas do cinema nacional Oscarito e Grande Otelo, produzindo juntos por mais de uma década. O formato foi sucesso absoluto até a década de 1960, quando houve a popularização da televisão. A fórmula inspiraria ainda nesta década o clássico "Macunaíma" (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, e em 1970, populares por misturar humor e erotismo. A década de 1950, 1960 e 1970 são ainda marcado pelos sucessos dos filmes de Amâncio Mazzaropi. Fábio Marques Interjornal Disponível em http://www.interjornal.com.br/noticia.kmf?canal=5&cod=19719282 Rindo à toa – a comédia à brasileira Rir tem sido o melhor remédio para o cinema brasileiro. Os números não mentem: ano passado, quatro dos cinco filmes nacionais mais vistos foram comédias Até que a Sorte nos Separe, E Aí…Comeu?, Os Penetras e As Aventuras de Agamenon). A única exceção foi a cinebiografia Gonzaga, de Pai Para Filho, sobre o relacionamento conflituoso entre o rei do baião Luiz Gonzaga e seu filho, o cantor e compositor Gonzaguinha. Na primeira semana de 2013, ainda em clima de ressaca do réveillon, mais uma comédia – De Pernas pro Ar 2– acaba de registrar a expressiva soma de 642 mil espectadores em apenas quatro dias de exibição, e já dispara na ponta da tabela. Caso mantenha o ritmo, tem tudo para se tornar o filme do verão. De Pernas pro Ar 2 é continuação de um dos cinco mais vistos em 2012. Já está prevista nova sequência, desta vez com a workaholic Alice, vivida por Ingrid Guimarães, expandindo sua rede de sex shops na França. No segundo filme, ela foi vender seus gadgets eróticos num dos destinos turísticos preferidos dos brazucas, Nova York. Em temporada baixa para a produção nacional (caiu da participação de 15% no mercado em 2011 para cerca de 10% em 2012), são as comédias que têm segurado a barra. São a salvação da lavoura? Mariza Leão, produtora de De Pernas Pro Ar, não vê qualquer novidade no fenômeno: “Espanta-­‐me essa percepção da imprensa sobre ser a comédia o novo ‘veio’ para atingir o público. Sempre foi assim. Da Atlântida a Mazzaropi, de Os Paqueras a Xica da Silva, do Auto da Compadecida a Se Eu Fosse Você, a comedia é gênero consagrado popularmente no Brasil e no mundo.” Certo. Mas esta atual concentração de comédias talvez seja digna de nota. Afinal, se conferirmos outra tabela, mais dilatada no tempo, a dos maiores sucessos brasileiros de 2000 a 2012, vamos encontrar as comédias, sim, mas diluídas junto a outros gêneros. A liderança fica com o drama policial Tropa de Elite 2,que se tornou o filme brasileiro mais visto de todos 8 os tempos, com mais de 11 milhões de espectadores. Aparecem também o drama carcerário Carandiru, o drama social Cidade de Deus, cinebiografias como 2 Filhos de Francisco,Cazuza e Olga, além do filão espírita representado por Nosso Lar. Ou seja, visto na continuidade do tempo, o gosto nacional parece mais diversificado. Agora concentrou-­‐se, como se as pessoas, ou a maior parte delas, só quisessem saber de comédias ligeiras e escrachadas, para rir e esquecer em seguida. Feitas, de modo geral, com elenco e estética televisivos, elas pouco diferem dos programas cômicos da Rede Globo, que na maior parte das vezes entra na coprodução através do seu braço cinematográfico, a Globo Filmes. Amadas por boa parcela do público, as comédias têm dificuldades de aceitação por parte da crítica. Estouram nas bilheterias, mas, em regra, não conseguem arrancar estrelinhas e elogios dos jornalistas especializados. “O que me chama a atenção é como a crítica brasileira curte mais as comédias estrangeiras do que as nacionais…”, alfineta Mariza “Lion”, como a chama, no filme, a atriz Ingrid Guimarães. Ok. Pode ser que parte da crítica seja colonizada. Mas sucesso de público não é sinônimo de qualidade artística ou prestígio autoral. Em qualquer tipo de manifestação artística, cinema, pintura, literatura ou música, existe a obra mais difícil, destinada a público mais restrito, e aquela de circulação mais fluida, mesmo porque mais redundante e de assimilação imediata. Por isso, o especialista em mercado e diretor da publicação Filme B (dedicada à análise dos números do circuito cinematográfico), o também cineasta Paulo Sérgio Almeida, embora feliz com o sucesso das novas comédias, lembra que “quem levantou a autoestima do cinema brasileiro foi o drama, seja culturalmente, seja mercadologicamente”. Ele cita filmes como Central do Brasil, de Walter Salles, Carandiru, de Hector Babenco, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, e Tropa de Elite, de José Padilha, que, além da ótima bilheteria interna, conseguiram repercussão cultural e representaram o Brasil em importantes festivais internacionais. Salles e Padilha venceram o prestigioso Urso de Ouro em Berlim. Meirelles brilhou em Cannes e estabeleceu um patamar de qualidade técnica. Dificilmente a comédia alcança esse status (embora Mario Monicelli tenha vencido o Festival de Veneza em 1950 com seu A Grande Guerra, uma comédia que termina em tragédia). No entanto, há casos de filmes de muito sucesso em seu tempo, desprezados pela crítica de arte, depois “recuperados” e agora tidos como exemplares importantes da cultura nacional. É, entre nós, o caso das chanchadas da Atlântida, que fizeram sucesso de público nos anos 40 e 50, mas não arrancavam suspiro (ou risos) de espectadores intelectualizados. Pelo menos em sua época. Hoje, quem seria capaz de negar talento a diretores como Carlos Manga ou José Carlos Burle, ou a atores como Grande Otelo e Oscarito, que formavam a mais famosa dupla cômica 9 daquele tempo? O importante crítico (e colunista do Sabático)Sérgio Augusto, escreveu, em 1989, Este Mundo É um Pandeiro, até hoje o mais influente estudo sobre o gênero da chanchada. Numa das epígrafes do livro lemos a frase de Machado de Assis que ilumina o fenômeno da chanchada, entre outros casos exemplares da arte popular: “O povo ama as coisas que o alegram”. Rir é bom. A chanchada soube somar várias coisas “que alegram o povo”. Entre elas, a música, o carnaval e a picardia nacional, que a levava a parodiar o cinemão dominante em filmes como Matar ou Correr, O Homem do Sputnik, Nem Sansão nem Dalila, etc. A gozação do Outro, a fruição, o riso e a música, ou a autoparódia macunaímica, garantiam o sucesso das chanchadas. A questão, portanto, não se resume em colocar um gênero na berlinda, a comédia, mas discutir a qualidade do que está sendo feito. Paulo Sérgio as defende: “Quem conseguiu assistir a E Aí…Comeu? sem preconceito assistiu a uma comédia de evolução dramática difícil de ser vista por aí”. Elogia também a evolução de De Pernas pro Ar 1 para o 2 e coloca Os Penetras na tradição da comédia de costumes do Rio, citando o carioquíssimo Hugo Carvana (de Vai Trabalhar, Vagabundo e Bar Esperança). Paulo Sérgio pensa na saúde da indústria, embora reconheça qualidades nos filmes: “Gente, é apenas o sucesso, sem ele não existe mercado, se não existe mercado não existe solução!”. E a qualidade? Paulo Sérgio entende que exigimos muito do cinema brasileiro: “Queremos ao mesmo tempo qualidade e que seja um grande sucesso de público. Isto não seria pedir demais?” É uma questão a ser discutida. Há quem se preocupe com o nível atual das comédias. O ensaísta e professor da USP Ismail Xavier, um dos mais respeitados pensadores de cinema do País, faz restrições: “Afora a experiência de Daniel Filho no eixo cinema-­‐TV, o bom momento de Jorge Furtado-­‐Guel Arraes e o cinema de grande talento e interesse feito pelo Domingos Oliveira, as coisas não andaram bem, apesar do sucesso do gênero”. Ismail lembra algo evidente, mas que precisa ser destacado: “O sucesso pode ocorrer com ou sem talento, como acontecia nos anos 50”. No tempo das chanchadas havia as ótimas e também as medíocres. As boas são lembradas. A questão é a qualidade, que determina a permanência. Para o cineasta Jorge Furtado (de Ilha das Flores e O Homem que Copiava, “dá para fazer comédia sem baixar o nível e atingir um grande público. Shakespeare e Chaplin fizeram, por que não podemos fazer?”, pergunta. Jorge não tem medo de sucesso e nem filma para meia dúzia de críticos-­‐cúmplices. Quer atingir o público. Sua empresa produz para a Globo e, há pouco, dirigiu (com Ana Luiza Azevedo) o especial de fim de ano Doce de Mãe, com Fernanda Montenegro, atingindo 24 pontos de ibope. Doce de Mãe é engraçado e terno. Jorge admite que se a comédia é o gênero preferido do brasileiro, é também o dele: “Gosto de comédias 10 tristes, como as de Ettore Scola, Mario Monicelli, Alain Resnais, Federico Fellini, Woody Allen, Domingos Oliveira”. E quem não gosta? Comédias são ótimas. Ou podem ser ótimas, desde que cozinhadas com inteligência, em respeito à capacidade mental do público. Não se trata de demonizar a nova comédia à brasileira, nem endeusá-­‐la porque dá certo na bilheteria, mas estimulá-­‐la a subir de nível. Dieta mais refinada não há de espantar o espectador, desde que servida com engenho e arte. Acomodar-­‐se ao sucesso pode lhe ser fatal. Tabela As 5 maiores bilheterias nacionais em 2012 * Até que a Sorte nos Separe: 3.427.000 E Aí…Comeu? : 2.600.000 Os Penetras: : 1.892.000 Gonzaga, de Pai para Filho: 1.463.000 As Aventuras de Agamenon: 1.132.000 Obs: Alguns desses filmes continuam em cartaz. Os números se referem à última semana de 2012 Fonte: Portal Filme B Luiz Zanin Oricchio O Estado de S. Paulo Disponível em http://blogs.estadao.com.br/luiz-­‐zanin/rindo-­‐a-­‐toa-­‐a-­‐comedia-­‐a-­‐brasileira/ Comédias são responsáveis por 96% da renda bruta do cinema nacional Gênero que leva às salas do país, em média, dois milhões de espectadores por lançamento gerou receita de R$ 500 milhões na última década. Quase 120 depois de os irmãos Lumière terem rodado ‘O regador regado’, considerado o primeiro filme de ficção do cinema, a comédia se afirma como o gênero mais popular e industrialmente poderoso do mundo. No Brasil, ela encontra território para alavancar a indústria nacional. A nova comédia brasileira, como o movimento tem sido chamado, leva – em média – dois milhões de espectadores ao cinema a cada lançamento. Nada menos que 96% de toda a renda 11 bruta do cinema nacional vêm hoje do humor. Na última década, geraram receita de R$ 500 milhões e, no ano passado, garantiram as cinco maiores bilheterias nacionais. O primeiro filme do gênero de que se tem notícia no Brasil é ‘Nhô Anastácio chegou de viagem’, dirigido por Mark Ferrez em 1908. Mas foi só a partir da década de 1930, com as chanchadas, que a comédia se tornou popular. Os longas-­‐metragens do movimento foram capazes de formar plateia e competir com as produções estrangeiras que sempre dominaram o mercado. É a esse período, que durou até os anos 1950, que a atual fase do cinema brasileiro vem sendo comparada, a ponte de ter surgido o termo ‘neochancada’, que soa mais como brincadeira do que consenso. “Quando a gente fala de neochanchada, a gente pode pensar sobre o viés ruim, de filmes mal feitos, sem ambição, ou sobre o viés positivo, de filmes que têm comunicação com o público, que fazem sucesso”, destaca Rafael de Luna, professor de história do cinema brasileiro da Universidade Federal Fluminense. Diretor de cinema e também da Filme B, maior banco de dados da indústria de cinema nacional, Paulo Sérgio Almeida chama atenção para as diferenças nas estruturas narrativas. “No tempo da chanchada, a comédia era baseada em um humor fácil. Hoje, é baseada em uma dramaturgia ou em novos roteiristas e diretores que estão construindo essa nova comédia”, avalia. O distribuidor Bruno Wainer é responsável pelo lançamento de 70% das comédias em cartaz entre 2012 e 2013. “A comédia é o gênero que sustenta a indústria do cinema no mundo. A principal razão para o sucesso é que foi o primeiro gênero que conseguiu se profissionalizar no cinema brasileiro, entrar em um ritmo industrial de produção”, acredita ele. Wainer aponta que o ator que protagoniza o filme é um ingrediente fundamental para o êxito nas bilheterias. “É uma geração de comediantes da televisão, do teatro, da stand-­‐up comedy e mesmo da internet que tem chegado aos primeiros filmes e há um certo desejo do público de ver no cinema esses jovens comediantes”, diz Rafael de Luna. Bruno Mazzeo (Foto: Globo News)Bruno Mazzeo é um dos destaques da nova geração de humoristas brasileiros. Ator e roteirista participa de sucessos de bilheteria como 'Cilada.com', 'E aí, comeu?' e 'Vai que dá certo' (Foto: Reprodução/Globo News) Se, por um lado, as comédias têm feito enorme sucesso e movimentado a indústria, por outro, muito se questiona sobre a qualidade dessas produções. “O que se critica é o viés conservador, a falta de experimentação, de ousadia, o fato de que essas comédias têm seguido essa fórmula da continuação”, enumera o professor de cinema brasileiro. No entanto, para Wainer, franquia é fundamental: “Elas fazem parte do modelo de cinematografia forte”. 12 O diretor Paulo Sérgio Almeida acredita que as comédias são uma espécie de porto seguro do cinema nacional em termos de mercado e podem garantir o futuro da indústria brasileira. “Os humoristas são jovens. O público adolescente está sendo conquistado. Esse público vai se tornar um jovem adulto. Temos um horizonte pela frente muito bom”, avalia. G1 – Globo News Disponível em http://g1.globo.com/globo-­‐news/noticia/2013/04/comedias-­‐sao-­‐responsaveis-­‐
por-­‐96-­‐da-­‐renda-­‐bruta-­‐do-­‐cinema-­‐nacional.html O que eram as chanchadas? As chanchadas foram um gênero de filme brasileiro que teve seu auge entre as décadas de 1930 e 1950. Elas eram comédias musicais, misturadas com elementos de filmes policiais e de ficção científica. Esse tipo de humor, porém, não pode ser considerado uma invenção brasileira, pois fitas assim também eram comuns em países como Itália, Portugal, México, Cuba e Argentina. Quando o gênero chegou por aqui, a crítica nacional o considerava um espetáculo vulgar, por isso ele foi apelidado de chanchada -­‐ palavra de origem controversa, mas que pode ter surgido na língua espanhola, significando "porcaria". A aversão dos críticos, no entanto, não prejudicou o sucesso de bilheteria desses filmes. "Com seu humor quase sempre ingênuo, às vezes malicioso e até picante, a chanchada se impôs como um entretenimento de massa", diz o jornalista Sérgio Augusto, autor do livro Este Mundo é um Pandeiro -­‐ a Chanchada de Getúlio a JK. Para conquistar o público, as primeiras produções apresentavam grandes astros do rádio, como Carmen Miranda e Francisco Alves. Mais tarde, a dupla de comediantes Oscarito e Grande Otelo iria se tornar a sensação dessas fitas. Apesar da influência do cinema americano, que volta e meia tinha filmes sendo parodiados, as chanchadas costumavam ser essencialmente brasileiras, tratando de problemas do cotidiano e fazendo humor com uma linguagem de fácil compreensão. Segundo o diretor Carlos Manga, um dos mais importantes do gênero, a estrutura das histórias era dividida em quatro partes: mocinho e mocinha se metem em apuros; cômico tenta protegê-­‐los; vilão leva vantagem; vilão é vencido. Mesmo com essa fórmula bastante simplista, o público lotou os cinemas brasileiros para assistir a chanchadas até meados da década de 50. O desenvolvimento da TV no país, o surgimento do cinema novo -­‐ um outro estilo de filme, mais politizado -­‐ e o desgaste natural do gênero fizeram com que as chanchadas fossem perdendo espaço. Mas elas entraram para história ao marcar um dos períodos mais produtivos do cinema nacional. Dez filmes marcantes Oscarito e Grande Otelo foram as grandes estrelas do gênero 13 1933 A Voz do Carnaval, De Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro Filme semidocumental, que mistura cenas reais com cenas gravadas. Estréia de Carmen Miranda no cinema 1935 Alô, Alô, CarnavalL!, De Adhemar Gonzaga Considerado um dos mais importantes musicais brasileiros. O filme traz grandes cantores da época, como Francisco Alves, Carmen Miranda e Mário Reis, soltando a voz 1949 Carnaval no Fogo, De Watson Macedo Um bandido (José Lewgoy) pretende dar um golpe em foliões durante o Carnaval. Com Oscarito e Grande Otelo, mistura ação, intriga policial, humor e música 1950 Aviso aos Navegantes, De Watson Macedo Oscarito embarca como clandestino num transatlântico. Durante a viagem, o comandante do navio recebe a notícia de que um espião internacional está a bordo 1952 Carnaval Atlântida, De José Carlos Burle História sobre as filmagens de um épico da Guerra de Tróia. Além das presenças de Grande Otelo e José Lewgoy, há um impagável Oscarito, travestido de Helena de Tróia 1954 Nem Sansão nem Dalila, De Carlos Manga Oscarito vive um barbeiro que, após um acidente de carro, vai parar no ano 1153 a.C., onde conhece Sansão e adquire os superpoderes desse personagem bíblico Matar ou Correr, De Carlos Manga Sátira ao clássico faroeste americano Matar ou Morrer (1952). Oscarito interpreta o pistoleiro Kid Bolha, que enfrenta Jesse Gordon (José Lewgoy) 1957 14 De Vento em Popa, De Carlos Manga Um rapaz (Cyll Farney) vai estudar física nuclear nos Estados Unidos para agradar seu pai, que sonha ver o filho construindo a primeira bomba atômica brasileira Absolutamente Certo, De Anselmo Duarte Anselmo Duarte trabalha na impressão de listas telefônicas e sabe todos os números de São Paulo. Ele testa sua memória num programa de auditório 1959 O Homem o Sputnik, De Carlos Manga Os camponeses Oscarito e Zezé Macedo encontram um objeto estranho, semelhante ao satélite russo Sputnik. Uma das primeiras comédias sobre a Guerra Fria Mundo Estranho Disponível em http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-­‐que-­‐eram-­‐as-­‐chanchadas Foco: Os Trapalhões Apresentação Com uma filmografia de 38 longa-­‐metragens e uma média de 3,9 milhões de espectadores por filme, a trupe formada por Didi e Dédé (inicialmente) e depois completa por Mussum e Zacarias, representa uma das trajetórias cinematográficas mais bem sucedidas comercialmente no Brasil, e uma das obras de maior impacto na formação cinematográfica das gerações de crianças e jovens das décadas de 70 e 80 no Brasil. Para além das estatísticas do sucesso, Os Trapalhões representam o mais recente (e um dos maiores) fenômeno de popularidade do cinema brasileiro, antes alcançado pelas chanchadas (Oscarito/Otelo) e pelos filmes de Mazzoropi (o Jeca), e por isso são um dos objetos de reflexão política-­‐dramática mais relevantes para uma proposição futura do que poderia ser o tão aguardado “reencontro” do público brasileiro com o cinema produzido por essas bandas. Dos pequenos filmes de atrações do início do século XX, passsando pelas figuras circenses de Oscarito/Otelo, pela ingenuidade brejeira de Mazzaropi, dialogando com o engajamento social das gerações sessentistas, e fechando um ciclo com sua relação direta com o universo de clichês televisivos, Os Trapalhões reúnem em um mesmo picadeiro paródico, traços culturais brasileiros que vão da mais arcaica feira do interior ao universo pop-­‐midiático pós-­‐abertura. Esse aglomerado de referências constrói, em torno de seus filmes, um universo que se assemelha aos espetáculos de variedades (comum nas tradicionais feiras de atrações das 15 décadas de 1900/10) e retomam em torno de enredos simples, a encenação circense realocada no contexto cinematográfico. Com seu auge na virada dos anos 70 para os 80, Os Trapalhões representam (ao lado do fenômeno das pornochanchadas) o único produto de uma “cultura popular das massas” que foi capaz, naquele momento, de ampliar espaço diante da invasão crescente do cinema norte-­‐
americano pós-­‐Guerra nas Estrelas (1977) e da cristalização final da Televisão como eixo central da vida audiovisual brasileira. Associados (a partir de 1973) a um projeto popular-­‐
populista, marca de uma grande gama de filmes da era Embrafilme, Os Trapalhões talvez tenham sido aqueles que melhor conseguiram driblar internamente o peso/rigidez do “cinema oficial brasileiro”, justamente por trabalharem uma dramaturgia do riso e do chulo, da paródia como forma de, em diferentes graus, manter-­‐se crítico diante da narrativa, tocando o melodrama social mas nunca se deixando conquistar por nenhum gênero específico (seja o musical, a ficção científica, o filme histórico, ou de aventura). Nesse sentido, os filmes dOs Trapalhões se tornaram ao longa da década de 70, o mais bem-­‐
sucedido conjunto de filmes articulados ao projeto de popularização de temáticas nacionais de então, através de narrativas que entrecruzavam o cotidiano do país (de questões sociais e temas urgentes ao impacto do pai de todos os blockbusters: Guerra nas Estrelas) com as tradições cinematográficas brasileiras do riso e da paródia, fazendo da representação do cotidiano das pessoas, uma grande brincadeira capaz de não se afogar completamente no populismo fácil e alegórico (que assolava a obra de diretores mais bem quistos pela crítica) e ainda manter links com ícones da cultura globalizada (Noé e o incrível Hulk foram alguns dos “adaptados”). Juntando o circo (Didi e Dedé) a um malandro do Samba carioca (Mussum) e à brejeirice mineira de um comediante de rádio (Zacarias), os quatro Trapalhões se articulavam como um painel de nossos estereótipos, dos anti-­‐heróis patéticos, do jogo de palavras inventadas, pantomimas e acrobacias, atravessando um mar de tradições populares do rádio e do cinema, e que agora se lançava, pela primeira vez, em franco diálogo com nosso maior agente cultural contemporâneo: a TV. Já em 1965 (no primeiro filme com a dupla original), Na Onda do Iê-­‐Iê-­‐Iê parodiava a ascensão social através dos concursos de calouros da televisão – entrecruzamento de universos que tornou uma marca do grupo até sua decadência, no final dos anos 80, quando as estrelas da Tv (A Princesa Xuxa e os Trapalhões é central nessa observação) já serviam de muletas midiáticas para a melhor divulgação dos filmes e seu sucesso certo, diante de enredos pouco inspirados. Com a cabeça baixa diante da necessidade de atrair o público através da aparição na tela de rostos do grande circo de “famosos” que se esboçava no Brasil, os últimos filmes do quarteto 16 já trazem um esmaecimento da constituição de suas personas, com seus papéis interativos já apagados, com Renato Aragão abandonando aos poucos a personagem Didi e assumindo o papel de um herói não mais inconsciente, mas justo e orgulhoso, que, sinal dos tempos, fica com a mocinha ao final de Princesa Xuxa e os Trapalhões (1989). Algo impensável ao vagabundo Didi original, e que marca o fim simbólico, não comercial é claro, mas da representatividade artística marcante que Os Trapalhões haviam trazido ao cinema brasileiro até meados da década de 80. * * * Hoje, quando os jornais e telejornais bradam aos quatro ventos a “subida do povo ao poder” e o meio cinematográfico se agita em torno do fenômeno de Cidade de Deus, parece indispensável que a crítica cinematográfica brasileira tire o atraso diante de seus preconceitos e saiba se lançar a um olhar analiticamente responsável sobre esse que foi o último dos grandes conjuntos de filmes produzidos pelo (esclerosado) projeto nacional-­‐positivista, de um “cinema para o povo”. Um trabalho cuidadoso (como o esboçado por Fatirmarlei Lunardelli em O Psit!-­‐ o cinema popular dos Trapalhões -­‐ ed. Artes e Ofícios), de uma reflexão meticulosa, que nos permita, hoje, pensar pesadamente sobre sua marcante representatividade no imaginário cinematográfico do público brasileiro: apontar suas limitações estéticas, seus vícios e suas fragilidade – assim como redescobrir sua tão bem talhada magia, seus gestos entre o improviso e a precisão, sua capacidade de comunicação grandiosa, seus personagens inesquecíveis. Se não uma homenagem, uma reverência – se não admirados... encantados. No total, são 10 títulos lançados em DVD pela som Livre/RA Produções – obras com diretores como J.B. Tanko, Adriano Stuart e a estrela global Daniel Filho (manda-­‐chuva do projeto de cinema popular da Globo Filmes, vale lembrar). As cópias digitalizadas não estão no mesmo padrão de preservação, algumas com falhas nas cópias em película, outras retiradas de masters originais em video, demonstram que a ignorância na preservação não tem fronteiras estéticas. Mesmo assim, os títulos escolhidos para a coleção são um precioso apanhado do que de mais marcante fez o quarteto (como atores, diretores e produtores – lembro), merecendo a nossa visita, nossa curiosidade analítica...e nossas indisfarçáveis lembranças infantis. Vamos aos filmes. Felipe Bragança Contracampo – revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/47/trapalhoesintro.htm 17 A Imagem Caipira No Cinema De Mazzaropi Refletir sobre o papel do cinema nacional principalmente a partir da década de 50 juntamente com suas dificuldades em mostrar nossa realidade social e cultural para o público brasileiro, foi um desafio diante a aquela que vinha de fora, pois fomos acostumados culturalmente a eleger padrões de cinema norte-­‐americano, e este nos parecia mais enriquecedor artisticamente pela qualidade sonora e visual. A imagem do Brasil caipira no cinema só seria aceitável logo após o país tornar-­‐se referência do moderno urbano-­‐industrial. O olhar da elite consumidora dos modernos valores importados se preocupava em não apresentarmos ao mundo uma imagem de índios, negros, caipiras e cangaceiros, sendo como indigno de ocupar espaço em nossa cinematografia que preconizava um fundamento de preconceito de classe social ao mostrar o país real, pois se tornara uma ameaça à nossa imagem diante do estrangeiro. Mazzaropi produziu 32 filmes, dos quais 21 foram escritos por ele, isso mostra seu considerável conhecimento sobre os problemas e ansiedades que os brasileiros enfrentavam diante do advento de uma agressiva cultura capitalista elitista. É evidente a todos os que assistiram a algum filme de Mazzaropi, demonstra seu interesse particular por algum grupo social, ou seja, os caipiras. Seu personagem mais bem-­‐sucedido, Jeca, pode ser visto como uma forma de representação de caipiras, bem como referência sobre cultura popular, como ele próprio afirma: O que eu entendo por cultura popular? As raízes do povo brasileiro. Assim, negar o caipira brasileiro é negar a própria raiz. Acho que cultura é justamente não esquecer o passado, não esquecer nossas tradições. O meu público está comigo há 40 anos e não me larga. Quer dizer que ele me entende [1]. O cinema de Mazzaropi, de linha cômica como apontam os ensaístas, foi objeto de um reduzido número de estudos. Os autores detectam o pouco interesse pelas películas brasileiras que constantemente alcançaram um bom número de espectadores e cópias comercializadas desse artista. A pesquisadora Eva Paulino Bueno é quem vai chamar atenção, no segmento de estudo sobre a cultura popular brasileira através de Mazzaropi. A história apresentada nos filmes de Mazzaropi não é também uma tentativa sistemática de proporcionar uma releitura de figuras-­‐chave brasileira. Já que Mazzaropi atua como personagem principal, e por causa do tipo físico e do caráter de Jeca a ele associados, seu protagonista não personifica da figura heróica tradicional. (...) De fato, embora a finalidade seja provocar o riso no público, seus filmes tratam de problemas básicos da história brasileira, ou seja, a existência da escravidão, o conflito entre as culturas urbana e rural, as profundas 18 diferenças regionais no Brasil, a luta para manter o Brasil livre de influências culturais norte-­‐
americanas e as ligações sentimentais com Portugal, entre outros. (Bueno, 1999, p. 107) Quanto ao público que prestigiava nosso ícone caipira, o crítico de cinema Jean-­‐Claude Bernardet descreveu que o cinema de Mazzaropi era reacionário e conservador, baseando seus filmes em problemas reais vividos pelo público, segundo ele: [...] as importantes discussões que se desenvolvem atualmente sobre o que seja cinema popular, não podem ignorar os filmes de Mazza. Não porque sejam produtos comerciais de grande audiência, nem porque, pensaria em imitar a linguagem desses filmes e enxertar nela mensagens não conservadoras, o que seria uma tolice. Mas, porque esses filmes só tem um efeito alienante, à medida que se comunicam com o público, a partir de seus problemas, canalizando sua tensão, dentro de uma sociedade de classe. (Bernardet, 1978, p. 11) A personagem de Mazzaropi repercutia o próprio desenvolvimento da civilização brasileira, sem, contudo, deixar escapar os elementos culturais que compunham a sua essência, ou, seja, com o passar do tempo não perdia a memória do que efetivamente é: a síntese das origens do povo brasileiro. Também o professor e pesquisador Nuno Cesar de Abreu observa que o público de Mazzaropi era formado sobretudo pelo contingente que migrou do campo para as cidades nas décadas de 1950 e 1960, período que coincide com o processo de desenvolvimento e modernização da cidade e com a industrialização e o crescimento econômico. Nesse contexto de negação do atraso, em que o rural surge como imagem do atrasado, a personagem de Mazzaropi vem representar para as novas massas urbanas o conservadorismo do campo. E foi através de uma figura literária de imensa ingenuidade representou o Brasil caipira: Jeca Tatu, personagem fruto da imaginação do escritor José Bento Monteiro Lobato, descreve em sua obra Urupês o caipira como algo improdutivo que estava em desarmonia com a natureza, citado como um 'piolho-­‐da-­‐terra', capiau sem vocação para nada, a não ser para a preguiça, incapaz de viver junto à civilização e adaptar-­‐se aos novos tempos. Mazzaropi astuto tirou proveito da fama criado pelo personagem Jeca, de Lobato, mas depois abandonou a idéia desse caipira franzino e aproximou-­‐se da essência de outro personagem de Lobato, Zé Brasil, que agora com o devido reconhecimento da importância da figura do caipira o autor observa com outro olhar ao compreender que as dificuldades vividas pelos lavradores brasileiros não existiam por opção, mas por imposição de um sistema econômico de exclusão 19 social e pela ausência de investimentos do Estado nesses trabalhadores que apenas sobrevivam do campo na condição de excluídos. Podemos relacionar esta conclusão de Monteiro Lobato com o que nos apresenta Antônio Cândido, em sua obra Parceiros do Rio Bonito, ao estabelecer o processo de mudança na ordem econômica do país: Um grupo que se sentia equilibrado e provido do necessário à vida, quando se equiparava aos demais grupos do mesmo teor, sente-­‐se bruscamente desajustado, mal aquinhoado, quando se equipara ao morador das cidades, cujos bens de consumo e equipamento material penetram hoje no recesso da sua vida, pela facilidade das comunicações, a multiplicidade dos contactos, a penetração dos novos estilos de viver. Em conseqüência muda, para o estudioso, o problema dos seus níveis de vida, que passam por nossos dias por uma crise aguda, já referida, em que a ampliação das necessidades não é compensada pelo aumento do poder aquisitivo. Colocando em face desta situação, o caipira reage de duas maneiras principais; rejeita em bloco as suas condições e emigra, proletarizando-­‐se; ou procura permanecer na lavoura, ajustando-­‐se como possível (Candido, 1998, p. 217) Candido ao pesquisar o homem pobre rural que vive com o mínimo indispensável e que tira da natureza apenas o necessário para sobreviver. Mas que a partir da década de 1950, a cultura do parceiro caipira está em fase de transformação com a pressão exercida pela modernização que cada vez mais a pressiona com o ritmo avassalador do homem do campo. Assim o autor vê que determinados elementos da cultura caipira foram se ajustando a uma nova conjuntura econômica, a uma nova sociedade e a urbanização crescente. Assim, com o processo de modernização do país, nosso cinema pode exibir sem restrições o 'Jeca' nas telas, como afirma a pesquisadora Célia Tolentino: Contudo, vale lembrar que se nos finais dos anos 50 o Jeca era reclamado como sinônimo de brasilidade, é porque alguma coisa mudara substancialmente: o caipira já podia constituir-­‐se em ficção. A industrialização brasileira já se mostrava como idéia dominante e como fato, assim como a urbanização galopante das cidades, e o Jeca não mais deporia contra a imagem do país, como décadas antes, quando fora rejeitado veemente. Em 1931 o país agrário queria ver-­‐se diferente nas telas, tal como fazia o nosso modelo, o cinema americano. (Tolentino, 2001, p. 22) 20 O caipira fílmico de Mazzaropi pode ser visto como uma representação caricatural do caipira, ele é indolente, simples e conformado, porém, manhoso e valente quando necessário, além de possuir valores de honestidade. Este caipira vive entre o mundo conservador rural com suas regras sociais claramente estabelecidas e o mundo moderno urbano, com seus novos processos de produção, circulação e consumo de bens criado pela moderna indústria nacional. Mazzaropi viveu um momento histórico do Brasil. Adaptando-­‐se a cada década, ele buscou representar as transformações sociais produzidas e impostas pelo sistema socioeconômico, ocasionadas pela desigual distribuição de renda no país, e superou a deficiência técnica, acreditando ao retratar as tradições populares por meio das imagens representativas dos modos de vida de brasileiros ao expor conflitos migratórios rural-­‐urbano, bem como a solidariedade, simplicidade, liberdade e desejo de justiça social. Referências Bibliográficas BUENO, Eva Paulino. O artista do povo: Mazzaropi e Jeca Tatu no cinema do Brasil. Maringá: Eduem, 1999. CANDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e as transformações de seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 1998. LOBATO, Monteiro. Urupês. 37. ed. Obras completas, São Paulo: Brasiliense, 2004. SILVA, Kleber Eliandro. Mazzaropi, um caipira-­‐cangaceiro, encontro de culturas no cinema brasileiro. Dissertação de mestrado São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007. TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Unesp, 2001. Periódicos [1] Mazzaropi, entrevista dada ao Folhetim da Folha de São Paulo, 02/07/78. [2] BERNARDET, Jean-­‐Claude."Nem pornô, nem policial: Mazzaropi". Jornal Última Hora, 22-­‐23 de julho de 1978, p. 11. Webartigos Disponível em http://www.webartigos.com/artigos/a-­‐imagem-­‐caipira-­‐no-­‐cinema-­‐de-­‐
mazzaropi/8189/#ixzz2QTKWM6OP O homem do Sputnik (1959), de Carlos Manga Um politicamente correto carregado de comentário político 21 Mestre no comando das populares chanchadas da Atlântida, e um dos maiores nomes do estúdio ao lado de Watson Macedo (1919-­‐1981), Carlos Manga investe mais uma vez no comediante Oscarito – que ele soube aproveitar como ninguém em filmes como Matar ou correr (1954) e Nem Sansão nem Dalila (1955), programa 178 da Programadora Brasil – nesta história cômica temperada de geopolítica, mas ao alcance de todos. O roteiro de José Cajado Filho inspira-­‐se na corrida espacial e na Guerra Fria que, no final dos anos 1950, mobilizavam a energia máxima das duas superpotências de então, os Estados Unidos e a União Soviética, para criar o cenário em que se desenvolve a comédia. Recheada de lances politicamente incorretos – especialmente no modo como retrata grã-­‐finos e estrangeiros –, sua malícia não disfarça uma cínica abordagem política. Anastácio Fortuna (Oscarito) e sua mulher, Cleci (Zezé Macedo), são os sitiantes humildes cuja vida sofre uma reviravolta com a queda de um suposto Sputnik, satélite russo, em seu galinheiro. O objeto dispara seus sonhos de melhoria de vida. Mas é mais confusão do que outra coisa o que aparece no caminho da família suburbana, quando representantes de três países – URSS, EUA e também a França – desembarcam no Rio dispostos a promover um verdadeiro leilão para se apoderar do satélite. Ao escolher esses três países para satirizar no imbróglio em torno do Sputnik, desenvolve-­‐se um comentário irônico sobre imperialismos diversos que se espalham por um Brasil em pleno desenvolvimentismo da era Juscelino Kubitschek, mas ainda encarado no exterior como mero quintal de interesses de nações mais ricas – especialmente pelos Estados Unidos, que, como admite um espião ianque (Jô Soares), só cumpre os acordos da política da boa vizinhança quando lhe convém. A acidez na sátira aos americanos valeu à inofensiva comédia alguns problemas com a censura, que condenou um close na águia-­‐
símbolo daquele país, desenhada numa garrafa de Coca-­‐Cola e emoldurada pelo cínico lema: “Usa e abusa”. Não que o perfil dos outros povos ficasse por menos. Os russos são pintados como carecas uniformizados, burocráticos e hipócritas, loucos para esconder bebidas ocidentais sob o fundo falso de uma estante. Entrando na história sob o clichê da pseudossofisticação – já que não usam métodos melhores do que seus concorrentes –, os franceses ganham, para sua “arma secreta”, a agente BB (Norma Bengell), uma divertida caricatura da diva francesa Brigitte Bardot. Não falta, igualmente, autocrítica. A inoperância das repartições públicas, mal crônico da república brasileira, é ironizada quando Cleci telefona a um certo Departamento de Pesquisas Interplanetárias, onde todo mundo foi tomar café, não havendo, portanto, ninguém a quem informar sobre o satélite. 22 Sobra munição também para o jornalismo, retratado como um meio dominado pela concorrência desleal e a manutenção de privilégios não merecidos. Certamente sem pretensão a um posicionamento político mais incisivo, a comédia, afinal, encaminha-­‐se para um final nonsense, que desmonta os esquemas mirabolantes dos sabichões e poderosos, mas também não reserva redenção à arraia miúda. Já se prenunciava, também, o fim iminente da Atlântida e de seu modelo cômico – por duas décadas bem-­‐sucedido –, mas que caminhava para ser sepultado pela televisão. Neusa Barbosa Programadora Brasil Disponível em http://www.programadorabrasil.org.br/programa/191/ Pondo os pingos nos is O Homem do Sputnik, de Carlos Manga (Brasil, 1959) A idéia pronta do "país sem memória" casa bem com os propósitos que caracterizam a Mostra de Cinema de Ouro Preto, que nesta sua 6a edição escolheu a chanchada e o cinema popular dos anos 50 como foco principal. Se a pretendida revisão histórica sempre acaba sendo, na prática, uma primeira visão, uma descoberta, o motivo é sempre o mesmo: estamos falando menos de um esquecimento e mais de uma ignorância, um desprezo, sobre o que produzimos artisticamente. É, também, uma falta de consciência histórica, pois essa "história" serve apenas como repertório de valoração. Um dos exemplos lapidares é o do Cinema Novo, depilado de suas complexidades e servindo como um "valor" para a burocracia, essa dos tecnocratas do poder e da produção cultural. É assim que a chanchada existiu como dado concreto (os filmes, a sua capacidade de imantar o público, a repercussão) aos que estiveram junto a ela nos anos 40, 50 e 60, mas foi se apagando ao ponto de hoje ser uma abstração. É nessas que se pode, de repente, pegá-­‐la e compará-­‐la às comédias de apelo popular da GloboFilmes, as denominadas neochanchadas. Uma apropriação indevida e imbecil, feita por quem não possui conhecimento de causa, por quem desconhece o que significa "popular". Ou os catequizantes filmes do CPC também não se pretendiam obras para um consumo mais largo? Essa neochanchada não foi assunto destrinchado nos debates da CineOP, mas nem precisou: o festival já teria cumprido seu papel na noite de abertura, quando exibiu O Homem do Sputnik, com a presença de seu diretor, Carlos Manga (foto, cedida pela Universo Produção), o homenageado deste ano. Na tela grande, fora do quadro exíguo da TV, longe dos preconceitos, e numa boa cópia em película, ficou mais fácil discernir o que é a chanchada _e o que não é. A tela do Cine Vila Rica poderia ser chamada de lousa. Ali estava uma pequena grande aula sobre 23 cinema narrativo, releitura, humor, olhar agudo sobre o mundo de 1959 e o uso devido do repertório de Hollywood e do teatro de revista. Em síntese, um olhar de cinema. O Homem do Sputnik contra a neochanchada Nesses primeiros minutos de CineOP, alguns dados substanciais antes do longa. Da resposta sardônica de Carlos Manga quando, em fala ensaiada, convidaram-­‐no a assistir a O Homem do Sputnik e ele disse "acho que eu já vi esse filme", meio fazendo sacudir toda a encenação empostada e ensaiada demais da cerimônia de abertura, extrai-­‐se a essência da chanchada segundo Manga, seu maior cineasta: a ironia e tenacidade crítica diante daquilo que está na frente (o mundo, inclusive). Minutos antes da resposta, houve o choro de um diretor que não raro emociona-­‐se, mas cujas lágrimas, ali, comentavam a surpresa de um realizador que fez "esse tipo de filme" em receber tal homenagem séria: para um país com tantos complexos e baixa alto estima, ser popular é demeritório, e a história do nosso cinema nos diz isso há tempos, da Vera Cruz e os defensores de um cinema cosmopolita no passado à tal "retomada" orientada por essa idéia do "bem-­‐feito". SputnikO papel que O Homem do Sputnik ganhou na grande noite não foi brinquedo: dar conta de toda uma filmografia, a de Manga, que seria a versão refinada da chanchada que outros, como José Carlos Burle e Watson Macedo, realizavam no mesmo momento. Também formal (Manga era quem melhor decupava a cena, impunha um ritmo azeitado à lógica cinematográfica e contava sempre com roteiros quase avant la letre), esse "refinamento" era político, de política da imagem: através da encenação. É aqui que o filme da noite, em chave mais "didática", se coloca. Antes do enredo, o artista: Oscarito. Também homenageado, in memoriam, pelo festival, este ator é o corpo único de uma série de cinemas. Falo mais sobre ele no outro texto. É nos braços de Oscarito, fazendo o simplório Anastácio Fortuna, que o filme mostrará sua iconoclastia, dessacralizando um grande símbolo da política mundial: o satélite soviético Sputnik, que cai em seu galinheiro. Na ignorância sobre o que é aquela peça esquisita (ridícula, parecida com um galo cata-­‐vento posto no telhado das casas campestres), Fortuna segue o impulso natural de ganhar uns trocados em cima, o que acaba motivando a disputa entre norte-­‐americanos, soviéticos e franceses. Norma Bengell fazendo troça a Brigitte Bardot é tão conhecido que mais vale citar o trio de russos, ou o americano infantilizado e bestalhão de Jô Soares. O longa, de modo geral, segue um dos mandamentos do Luz de O Bandido da Luz Vermelha (e da chanchada mais inteligente, ou seja, aquela que se leva a sério na realização e menos na fidelidade à matriz copiada) e avacalha. Anárquico à beça, antes de parodiar o cinema, O Homem do Sputnik parodia a ordem das coisas, o seu momento. Raras as vezes o Cinema Novo 24 alcançou um discurso tão político, e isso retornaria mais efetivamente, em chave similar, no Cinema Marginal. É a chanchada, já vista na época como sinônimo de precariedade técnica e crítica, antecipando aqui muita coisa que estaria no exercício dos cinemas novos mundiais a partir desse mesmo 1959. A neochanchada hoje e nunca SputnikO Homem do Sputnik, sozinho, desmantela a tese que aproxima a chanchada dessas comédias anos 2000. Lá, nos anos 50, sobretudo, o diálogo era com o cinema -­‐ e não à toa Carlos Manga foi para a televisão levando um olhar bastante cinematográfico. Sem dúvida, a TV puxou para si muita coisa da chanchada (basta ver o sexualíssimo Pintando o Sete, também de Manga, e ver de onde surgiu o desfile de casais das telenovelas, que converteram numa chave moral-­‐hipócrita). E esses filmes relacionavam-­‐se com o mundo. Os da GloboFilmes dialogam com a própria TV, ou seja, consigo próprios. Não são derivações anárquicas, mas sim repetições, extensões . A chanchada, quando mais comportada à matriz, pegava bastante de fora esses itens: o teatro de revista, os cantores do rádio, e traziam a novidade de revelar a imagem da voz. Ou seja, é uma questão de olhar: ou se mira no ao redor, no além do horizonte, ou se centraliza o foco no próprio umbigo. E o corpo da televisão brasileira está longe de ser dos mais interessantes. É uma questão, também, de evidência: as ótimas chanchadas dialogavam e faziam páreo com a ótima comédia norte-­‐americana, de um Oscarito remetendo ao circo, a Chaplin e a Jerry Lewis a um Carlos Manga até antecipando o que um cineasta como Billy Wilder faria anos depois (O Homem do Sputnik parece uma prévia de Cupido Não Tem Bandeira, de 1961); os filmes populares anos 2000 não chegam aos pés da ótima comédia americana atual, repetindo apenas a dramaturgia das telenovelas e programação noturna da Globo, em estética Malhação. Hoje, essa produção significa um mau uso da tela grande do cinema; um desperdício, pois o olhar é o da acomodação que a TV aberta brasileira não abre mão. A chanchada era anarquia, deboche, observação. Não é mérito, e sim um escândalo histórico transformá-­‐la num adjetivo, uma ferramenta para outro tipo de cinema cujo contexto de realização é outro. Isso que agora querem chamar de "neochanchada"é a repetição, como uma cadeia de fast-­‐food com suas filiais. Histórica e injustamente desprezadas, as produções da chanchada foram das mais felizes experiências de cinema narrativo do país. Paulo Santos Lima Revista Cinética Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/sputnik.htm 25 O Homem do Sputnik, de Carlos Manga Uma das principais ressalvas historicamente feitas às chanchadas da Atlântida é à sua suposta ingenuidade e à dita alienação – política, sociológica ou social. Isso não parece fazer muito sentido no contato com um filme como O Homem do Sputnik. O 12º longa-­‐metragem de Carlos Manga, lançado em 1959, faz, à sua maneira e dentro de uma estrutura de estúdio característica da época, uma potente sátira aos desdobramentos geopolíticos originários da Guerra Fria. No filme, há deboches e piadas despudoradas com soviéticos, norte-­‐americanos, franceses e, claro, brasileiros – em especial a insistente fascinação nacional com o que vem de fora. Esteticamente, e como quase toda chanchada, o visual não é dos mais elaborados. Manga até faz alguns planos mais bem cuidados, mas, no geral, interessa menos a criação visual do que o andamento rápido e rítmico da história. Como a base e o ganho central da Atlântida estavam na recepção do público, o importante era fazer a trama andar – e, por vezes, ela anda meio aos solavancos, ora em clima de esquete, ora com inserções autenticamente aventurescas. Tudo conflui para um máximo de piadas envolvendo política, economia, jornalismo, sociedade, cultura e piscadas para a própria realização cinematográfica e elementos de sua mítica (o maior deles sendo a sedução de uma Norma Bengell travestida de Brigitte Bardot). Se há alguma forma de ingenuidade, estaria num certo tom de utopia que parece emanar do filme. Manga faz aqui as suas brincadeiras com o que lhe incomodava e lhe assombrava, e fica evidente que ele não buscava uma reflexão aprofundada sobre aquilo. É como se estivéssemos assistindo a uma conversa de boteco sobre os rumos do mundo num determinado momento histórico – e, nessa conversa, os interlocutores fazem as melhores piadas e sabem exatamente onde e do que rir. Não é por acaso que o protagonista vivido por Oscarito, o matuto Anastácio, seja justamente um jeca rural tomando contato com a selvageria urbana e as maquinações para lhe tomarem o que ele tem de mais valoroso. O ator, um dos grandes monstros da comédia mundial, encarna na melhor medida esse sujeito ingênuo (ele, sim; não o filme) e atrapalhado, que se deixa atrair por um par de coxas femininas e só quer trocar um tesouro por uma chocadeira de ovos de galinha. O tipo de piadas disparadas ao longo de O Homem do Sputnik chega a surpreender para um trabalho feito no final dos anos 1950, num grande estúdio carioca e que mobilizou um quarto da população brasileira da época (15 milhões de espectadores). Mais ainda se pensamos que as comédias hoje campeãs de público no Brasil passam muito longe de qualquer provocação envolvendo o poder ou os desmandos diplomáticos ou financeiros de algum país. Não se trata, aqui, de nostalgia. É uma constatação. Um filme como O Homem do Sputnik não apenas não 26 poderia ser feito hoje como não seria tão bem visto. Daí sua importância histórica e a necessidade de ser constantemente relembrado pelo resultado que oferece. Marcelo Miranda Filmes Polvo Disponível em http://www.filmespolvo.com.br/site/eventos/cobertura/1203 Jeca e seu filho preto (1978), de Pio Zamuner e Berilo Faccio Jeca e seu Filho Preto (1978) Consta que, ao lançar Jeca e seu filho preto em abril de 1978, os críticos ficaram divididos. A audácia de Amácio Mazzaropi em discutir, à sua simplicidade, o racismo, não poderia passar despercebida aos olhos dos seus detratores mais xiitas. Mazzaropi já tinha encarado seu trabalho como veículo em Jeca contra o Capeta (1975), ao debater o projeto de lei do divórcio. Ou melhor, ele não debate, simplesmente o condena desde o início e a história simplesmente segue o caminho para justificar a negativa. É mais ou menos a mesma matéria de Jeca e seu Filho Preto, embora aborde o problema do racismo e o alia às diferenças sociais e culturais, ao insistir na personalidade maligna e retrógrada de Cheiroso. Zé (Mazzaropi) é um empregado de Cheiroso, e possui um filho negro, Antenor, que, apesar do amor e da educação que recebeu, ainda desperta desconfianças de ser realmente seu filho. Antenor namora desde criança a filha de Cheiroso, mas com o tempo, o que era brincadeira acaba tornando-­‐se coisa séria. Os dois não conseguem ocultar por tanto tempo, e ao revelar o namoro acabam sofrendo uma artilharia pesada de racismo e discriminação por parte de muitos, principalmente de Cheiroso. No final, se descobre que Cheiroso é pai de Antenor, fruto de um estupro. Ao morrer a mãe biológica de Antenor ainda no parto, a parteira usa de uma estratégia ridícula de dizer que era filho do Jeca. E é tratado como filho “natural” desde então. A “revelação bombástica” do final esvaziou e muito o potencial de discussão do tema. Ainda que torne a figura de Cheiroso um pouquinho só mais complexo que os vilões monotons da filmografia mazzaropiana – pois fica no ar: ele impediu o casamento da filha por mero racismo ou porque sabia que ele era seu filho? – ainda assim a consanguinidade, embora funcionasse como um interessante elemento dramático, fez demolir o alcance da abordagem do filme. 27 Mas a ousadia temática de Mazza merece ser aplaudida de pé, mesmo com suas escandalosas limitações técnicas, seu humor já cansado, e Hector Lagna Fietta aproveitando pedaços de trilhas de outros filmes e costurando-­‐os aleatoriamente, Mazzaropi consegue empurrar as massas à reflexão. Fernando Figura Cafés e Blá Blá Blá Disponível em http://cafeseblablablas.blogspot.com.br/2013/02/jeca-­‐e-­‐seu-­‐filho-­‐preto-­‐
1978.html Jeca e Seu Filho Preto, mais um êxito de bilheteria de Mazzaropi Mazzaropi é um dos cômicos brasileiros de maior penetração junto às camadas populares. Ano após ano vem produzindo e interpretando filmes que apresentam o maior sucesso de bilheteria. Seu público é fidelíssimo e ri ao menor gesto do Jeca. Não importa quão maniqueístas sejam suas histórias ou esquematizados seus personagens. O que interessa é o diálogo público/protagonista. Ele conversa com quem está na platéia e transmite ao espectador uma cumplicidade que prende a atenção. Enquanto o cinema brasileiro discute tanto a conquista do mercado e a necessidade de produtores independentes, para Mazzaropi isso deixou de ser problema. Seria muito simples considerar Jeca e Seu Filho Preto um filme ruim. Ele realmente não preenche determinados padrões que o consenso considera bom. Contudo, gostaria de manifestar publicamente minha impotência em lidar com verdades absolutas. Assisti o filme, sem olhar para o relógio de cinco em cinco minutos, o que me acontece freqüentemente quando certos embustes culturais são projetados na tela. A história do filme é exatamente a da sinopse. Jeca é alvo de curiosidades por ter um filho preto e outro branco, e o namoro do primeiro com a filha, do fazendeiro, seu patrão, faz com que sua família seja vítima de perseguições. A produção é caprichada e a direção inexistente, pois o importante no filme é a presença de Mazzaropi. Enfim, que me perdoe a intelligentzia, mas depois de ter me divertido com o humor sofisticado e dinâmico de Gene Wilder e de Marty Feldman em O Maior Amante do Mundo e A Mais Louca de Todas as Aventuras de Beau Geste chegou a vez do mesmo acontecer com o desengonçado o caipira Mazzaropi. Flávio R. Tambellini Jornal do Brasil -­‐ 4 de agosto de 1978 Disponível em http://www.museumazzaropi.com.br/sucesso/suc13.htm 28 Nem pornô, nem policial: Mazzaroppi Está aí o cinema de Mazzaropi atraindo multidões, as multidões que se identificam com os problemas colocados na tela: o trabalhador oprimido, as relações marido-­‐mulher, pais e filhos, religião, etc. Jeca e Seu Filho Preto, seu último lançamento, aborda o problema do racismo e o alia às diferenças sociais e culturais; mas esvazia a questão quando o racismo vira consangüinidade a impedir um casório. Mazzaropi fica assim: joga questões, tempera com humor, e o público ri até das impossibilidades de resolver qualquer coisa. Mas, verdade seja dita, é o dele o cinema mais popular feito por aqui. Não é à toa que Mazzaropi tem sucesso. Mazzaropi só tem sucesso porque seus filmes abordam problemas concretos, reais, que são vividos pelo imenso público que acorre a seus filmes. Não é só, porque é careteiro e tem um andar desengonçado. E porque põe na tela vivências e dificuldades de seus espectadores, e se assim não fosse, não teria o sucesso que tem. A temática de "Mazza" são problemas da terra, do camponês oprimido pelo latifundiário, dos intermediários entre o pequeno produtor agrícola e o mercado, das relações entre marido e mulher, pais e filhos, das religiões populares, etc. Há momentos claros e contundentes nos seus filmes. "Mazza" enfrenta delegados de polícia e fazendeiros. Neste último filme, Jeca e seu filho preto, cujo tema, como se sabe, é o racismo, ele declara, por exemplo, que o fazendeiro ganha no nosso trabalho e no aluguel de nossa casa. E o público do Art Palácio reage fortemente a afirmações desse teor. Essa temática possibilita uma projeção do público sobre os filmes. O tratamento cômico e o jeito desengonçado do Jeca permite que o público, ao mesmo tempo em que identifica seus problemas na tela, ria deles e se libere de uma certa tensão. Possibilita que o público ria até de sua impossibilidade de resolver os problemas colocados pelos filmes. E justamente este, me parece, o ponto chave da dramaturgia de "Mazza" e de seu sucesso: possibilitar a identificação dos problemas e esvaziar qualquer atitude crítica diante deles. Desse ponto de vista, Jeca e seu filho preto, como muitos outros filmes dele, é exemplar e tem até um valor didático, de tão esquemático que é. O fazendeiro quer impedir o casamento entre sua filha e o filho preto do Jeca. O problema do racismo está claramente vinculado no filme à uma relação entre classes sociais. Muitos diálogos ligam as dificuldades do preto na sociedade à pobreza, à falta de acesso à cultura. O problema é real e não tão mal colocado, mas já distorcido, pelo fato do racismo ser atribuído a um vilão -­‐ o mau fazendeiro -­‐ sendo que os outros personagens brancos e ricos não se opõem ao casamento. O racismo aparece assim como um problema que não diz respeito ao conjunto da sociedade, mas apenas a um mau-­‐caráter. E para evitar qualquer dúvida, bota-­‐se uma frase 29 sonora na boca do promotor público: "Preconceito racial é uma torpeza". E um primeiro esvaziamento da temática. O segundo esvaziamento ocorre na revelação final, quando se fica sabendo que os namorados, a moça branca e o rapaz preto, são de fato semi-­‐irmãos, resultado de uma "infidelidade" conjugal do fazendeiro. Conclusão: o fazendeiro queria impedir o casamento, não por racismo, mas devido a uma situação de consangüinidade dos noivos. Portanto, Jeca e seu filho preto acaba girando em torno de um problema que, em última instância, não existiu. Fica assim o dito pelo não dito. Esse comportamento é característico de "Mazza": levanta a lebre e, a seguir, esvazia tudo. Um objeto que aparece com freqüência em diversos de seus filmes, talvez possa ser encarado como símbolo desse comportamento: a espingarda torta. A espingarda é uma expectativa de agressividade, de enfrentamento dos problemas, de resposta à altura da situação, de defesa dos interesses do camponês. Mas, por ser torta, ela é também a negação de qualquer forma de ação. Um jogo entre a identificação dos problemas e um convite à passividade. O cinema de Mazzaropi é reacionário e conservador, dizer isto não é novidade; mas o que não se diz é que esse cinema só é eficiente no seu conservadorismo e só representa um nível de consciência a que adere seu fiel público, porque é baseado em problemas reais e vividos, por esse público. As importantes discussões que se desenvolvem atualmente sobre o que seja cinema "popular" não podem ignorar os filmes de "Mazza". Não porque sejam produtos comerciais de grande audiência, nem porque se pensaria em imitar a linguagem desses filmes e enxertar nela mensagens não conservadoras, o que seria uma tolice. Mas porque esses filmes só têm um efeito alienante, na medida em que se comunicam com o público a partir dos seus problemas, canalizando sua tensão dentro de uma sociedade de classe. Há muitas outras maneiras de abordar o cinema de Mazzaropi, mas desde já fica essa afirmação: o cinema de "Mazza" é um cinema poIítico atuante. Jean-­‐Claude Bernardet Última Hora -­‐ 22-­‐23 de julho de 1978 Disponível em http://www.museumazzaropi.com.br/sucesso/suc11.htm Jeca, o descolonizador Os que se preocupam 365 dias por ano, em horário integral, com a colonização cultural, deveriam ver Jeca e Seu Filho Preto, misturando-­‐se com o povão, em vez de ficar teorizando em gabinetes ou nos saraus da alta burguesia. Está aí, mais uma vez, o chamado fenômeno Mazzaropi, um dos poucos homens de cinema do mundo que continuaria milionário ainda que 30 seus produtos fossem boicotados pelos exibidores fora das fronteiras de sua metrópole comercial. De São Paulo, as produções do Sr. Amácio Mazzaropi partem invencíveis para todas as regiões do país -­‐ do Oiapoque ao Chuí, poderiam proclamar os mais nacionalistas, se o cinematógrafo estivesse implantado nessas referências geográficas. Nas muitas vezes abstrata entidade conhecida como reserva de mercado os filmes de Mazzaropi ocupam espaços concretos: não apenas datas, mas poltronas -­‐ que não permanecem vazias (como ocorreu esta semana, com outro nacional, do tipo sério, Cristais de Sangue, em pelo menos uma sessão cancelada por falta de espectadores). Comercialmente, tudo bem. Esses encontros imediatos do terceiro grau com formas de vida primariamente inteligente -­‐ ou com a contrafação do polêmico Jeca Tatu de Monteiro Lobato -­‐ proporcionam vistosas estatísticas à Embrafilme e são interessantíssimos para os que pensam a nação sob o prisma de balança de pagamentos. Ufanam-­‐se os nacionalistas fisiológicos. E com motivos: aptos a ocupar grandes circuitos com ou sem medidas protecionistas (e Mazzaropi não custa um centavo ao Erário) os filmes mazzaropianos mantém a distância um bom número de produções de notórios colonizadores culturais, como os Estados Unidos, a Itália, a França, ou de alienígenas menos assíduos, como os suecos, os japoneses, os espanhóis etc. Mazzaropi já foi defendido até por críticos de respeitável gabarito intelectual. No entanto, o vernáculo padece de incompreensível lacuna: faltam estudos sobre a significação desse arauto da descolonização cultural. Onde estão os simpósios, ensaios, mesas-­‐redondas e retrospectivas capazes de garimpar e expor aos integrantes dos conselhos oficiais de cultura e das academias de imortais as preciosidades do universo mazzaropiano? A obra de Amácio Mazzaropi é ampla e nenhuma unidade se perdeu em incêndios ou sob o efeito de deterioração. Alguns títulos constituem provocantes convites à reflexão: Jeca Contra o Capeta; Uma Pistola Para Djeca; O Jeca e a Freira; Betão Ronca Ferro; O Jeca Macumbeiro; Jeca... Um Fofoqueiro no Céu; Um Caipira em Bariloche. Mas não é fácil, para cinéfilos, suportar os 100 minutos de projeção de Jeca e Seu Filho Preto. Bem-­‐aventurados os generosos, os de riso fácil, que vemos e ouvimos na sala escura. Mas ao crítico cabe somente registrar o fenômeno de receptividade ininterrupta, constatar que -­‐ embora sem a força histriônica de um Oscarito -­‐ há alguém que não deixa morrer a tradição da chanchada. Afinal de contas, não temos muitas tradições a perder entre as crises de memória nacional, no setor do cinema. Permanece a pseudo-­‐autenticidade, o caipirismo de programa radiofônico ilustrado em imagens coloridas. Jeca e Seu Filho Preto apresenta nível mais razoável que a maioria das produções de Mazzaropi: certamente pelo esforço de Pio Zamuner (bom fotógrafo promovido a diretor) há mais fluência no relato, composição visual rotineira, mas demonstrando capricho 31 em várias ocasiões, além de orientação menos primária do elenco. Não seria possível esperar um padrão atualizado de narrativa cinematográfica, pois o próprio estilo do ator-­‐produtor pede respeito ao anacronismo. A história caminha para um final previsível, com julgamento e condenação do mau coronel e tranquilidade para a vida do jeca, seus amigos e família. Uma pitada de anti-­‐racismo, alguns números musicais, sentimentalismo, a decantada sabedoria popular (Deus tarda, mas não falha) e piadas fracas, às vezes temperadas com um grão de malícia inofensiva, à moda dos antigos almanaques de farmácia. Ely Azeredo Jornal do Brasil -­‐ 3 de agosto de 1978. Disponível em http://www.museumazzaropi.com.br/sucesso/suc12.htm Os Trapalhões na Serra Pelada (1982), de JB Tanko Os Trapalhões na Serra Pelada, de J. B. Tanko Serra Pelada representa um desafio especialmente interessante ao crítico, porque parte de tantas premissas e possibilidades diferentes que é difícil saber exatamente qual delas é a idéia predominante por trás do filme, aquela sobre a qual devemos nos debruçar antes de todas. De início, parece que teremos um filme que tenta partir do Brasil existente, do panorama social, para fazer com ele uma comédia de tons mais líricos (no sempre inocente humor burlesco e físico dos Trapalhões, ou mesmo nas "one-­‐liners" que Didi não cansa de criar -­‐ e que são filhas inegáveis, ainda que em outro registro, daquelas que Groucho Marx mandava nos seus filmes). Impressiona nesse início a captação quase documental do ambiente opressivo de Serra Pelada, com seu formigueiro humano (e, na entrevista existente no DVD, Renato Aragão revela que foram imagens como aquelas que fizeram com que eles tivessem a idéia de realizar o filme). Os Trapalhões aparecem, então, "integrados" nesse ambiente, em belas tomadas em zoom, subindo e descendo as precárias escadas de madeira. No entanto, o ambiente é logo abandonado em prol de uma narrativa mais aventuresca que antagoniza vilões que desejam se apossar e criar um porto para exportar o ouro brasileiro, e um mocinho igualmente abastado (interessantemente interpretado por Gracindo Junior, que nunca chega a parecer adequado) que quer promover a justiça social em suas terras. Claramente, o paradigma visual usado é o do western, o que não deixa de ser peculiar, resultando em figurinos especialmente ridículos no caso do mocinho interpretado por Gracindo -­‐ por outro lado permite uma cena genial de "duelo ao sol" entre Didi e um tanque de guerra. Nesta trama, como de costume, os Trapalhões entram como os "intermediários" do 32 mocinho, quase os "sidekicks", que enfrentam um exército de capangas no melhor estilo dos Keystone Cops. Esta trama dá vazão ao método quase cartunesco de lidar com sequências de ação, onde a lógica é a da implausibilidade sempre, e onde armas de fogo abundam mas nunca causam ferimentos. Como se não bastassem as personas pré-­‐marcadas dos próprios Trapalhões, eles se apropriam de algumas outras caras muito conhecidas em seus filmes, como Wilson Grey, Eduardo Conde, mas também renovam algumas de suas peças, com a entrada por exemplo de Louise Cardoso e Ana Maria Magalhães no rol das "mocinhas" (e é interessante que Didi não chega a ter um envolvimento, nem mesmo platônico, com nenhuma delas). Nesse sentido, os filmes do grupo pode-­‐se dizer que se aproximam bastante da série de 007: renovando sempre suas "Didi girls", colocando alguns vilões novos, mas sempre entrando também com caras conhecidas, tanto entre inimigos quanto entre aliados. E as tramas mesmo se assemelham à lógica de James Bond: ninguém nunca entende muito bem qual o plano dos vilões ou a lógica da vitória dos mocinhos, mas o que importa é que está bem claro quais são uns e outros. Enquanto no 007 a idéia é nos impressionar com a eficiência, o charme e a tecnologia usada pelo mocinho, aqui inverte-­‐se: o divertido é ver o caos, o improviso e a inadequação dos heróis, ainda assim sempre vitoriosos. Embora não haja uma paródia específica de James Bond nos Trapalhões, essa comparação parece muito rica porque mostra uma apropriação autenticamente brasileira de uma forma de narrar, e acima de tudo, de interessar o público ao longo de anos numa mesma série de aventuras que, como o ensinamento de O Leopardo, muda para permanecer a mesma. Mas o fato é que, depois da saída do ambiente de Serra Pelada, o filme parece por demais vítima da mesma fórmula vitoriosa, executada com uma certa preguiça, tanto narrativa quanto cômica. A trama se desenvolve aos borbotões, e as piadas entram quase que mecanicamente. Talvez resultado de um certo cansaço do próprio diretor, afinal J. B. Tanko assina aqui seu décimo filme com o grupo -­‐ o pé nas costas com que domina o formato deles é tanto confortável quanto pode resultar nesta tal preguiça. (Diga-­‐se, aliás, que Tanko precisa ser reconsiderado pois é, certamente, um dos cineastas mais prolíficos do Brasil tendo realizado, ao longo de quase 40 anos, 37 longa-­‐metragens, dos quais apenas 11 com os Trapalhões, que afinal foi o trabalho que mais o fez conhecido) Além dessa preguiça, deve-­‐se observar por fim um paradoxo bastante complicado da realização do filme. Ao mesmo tempo em que deseja denunciar a situação dos garimpeiros, e sua exploração pelos mais ricos (numa cena uma personagem grita por "Justiça social! Queremos a nossa terra!"), o filme (possivelmente até por motivos práticos) exime o Governo da sua parte no latifúndio. Logo no primeiro plano, aparece a legenda da tela: "Serra Pelada 33 antes da intervenção federal". Se isso podia ser visto até mesmo como uma senhora ironia, que até possui efeito corrosivo, nada justifica da mesma forma que a grande vitória do filme seja conseguida pelo exército, em cenas de "movimentação de batalha" filmadas com um certo fetiche belicista desinteressante ao trabalho do grupo. Eram tempos difíceis ainda, sem dúvida, mas será que essa inserção era de fato necessária? Certamente diminui o impacto final que o filme podia ter, e se não tem é em parte por sua realização burocrática, em parte por essa resolução complicada. Ficam momentos de maior interesse (especialmente o início), e as observações mais gerais do trabalho do grupo, mas este em si não é um exemplar especialmente inspirador, ainda que bem melhor do que tudo aquilo que viria no fim dos anos 80 e anos 90. Eduardo Valente Contracampo – revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/47/serrapelada.htm Se eu fosse você (2006), de Daniel Filho Se eu fosse você Mais uma vez guerra dos sexos? É a aposta de Se Eu Fosse Você, mais uma comédia da Globo Filmes assinada por Daniel Filho. O começo do filme até leva a crer que a direção do filme não será tão desleixada e inócua quanto nos filmes anteriores: uma grua desloca a câmera e reenquadra os personagens vertiginosamente enquanto eles acordam e fazem a primeira higiene diária. Andaria Daniel Filho vendo muito Brian De Palma, ou simplesmente o diretor de fotografia resolveu fazer uma pequena gracinha para iniciar o filme? Seja como for, logo o filme volta para os mesmos padrões de A Partilha e A Dona da História, ou seja, a pura ilustração de um roteiro, e os primeiros movimentos iniciais de câmera do filme se revelam muito mais um gimmick do que algo incorporado esteticamente à expressividade do filme. Mesmo porque uma relação ousada com a câmera implicaria, a princípio, uma noção arrojada de narrativa e, principalmente, uma recolocação a sério dos papéis atribuídos a cada sexo na partilha das tarefas de casal. Se Eu Fosse Você, que fique bastante claro, caminha em sentido oposto: começa e termina ratificando os lugares-­‐comuns. O filme não se dá apenas o trabalho de dividir as funções em torno dos hábitos, digamos, "naturais" de homem e mulher: maquiar-­‐se para a mulher, barbear-­‐se para o homem (como advoga o cartaz de divulgação do filme). O filme dá o passo seguinte, trabalhando sempre na esfera do lugar comum: Tony Ramos, o marido, é todo cheio de si, grosseirão mas de boa 34 índole, afobado, mantenedor financeiro da família com um emprego estressante e inibidor dos marmanjos que tentam chegar perto de sua filha (que, curiosamente, fala com sotaque paulistano mesmo morando no Recreio dos Bandeirantes, com pais cariocas); já Glória Pires, a esposa, é prestativa, controla a casa, é de uma lerdeza só no trânsito, tem um emprego aerado que ela mal domina e é uma boa conselheira para a filha. Reconheceu? Porque é mesmo questão de reconhecimento daquilo que é mais banal, mais clichê, do que está mais arraigado numa determinada cultura de classe média abastada, que naturalmente é irrigada como ideologia para as outras classes menos privilegiadas. O objetivo? Fazer sempre a boa separação. Mas aí entra o dispositivo do filme, colocar a mulher no corpo do homem e o homem no corpo da mulher. Finda a passagem, o que se ganha? Uma versão dance medonha de Beethoven graças a um "toque masculino", a conta publicitária de uma empresa de lingeries por causa de um "toque feminino"? A ambição do filme é maior, sem dúvida: reside na idéia de que os homens deveriam prestar mais atenção na sensibilidade feminina e em certas características específicas, e que as mulheres deveriam fazer o mesmo com as características femininas. O que seria até simpático, não fosse o filme inteiramente moldado para tirar risadas de Tony Ramos rebolando, desmunhecando ou falando fino, de Glória Pires falando grosso e contando piada pornográfica, enfim fazendo o humor de mais baixo calão (do nível de Zorra Total, diríamos) que no fundo nada mais é do que o contrário do que seria a "mensagem" do filme, sua "moral da história". Se um alienígena aparecesse na Terra no ano de 3549 e quisesse saber como era a ideologia dos papéis sexuais no Brasil nos primeiros anos do século XXI, é certamente a esse filme que ele vai recorrer. Mas a nós, meros habitantes desse planeta em 2006, esse filme só tem o triste papel de nos fazer constatar que o riso do brasileiro continua sendo um de seus aspectos mais reacionários. A partilha dos lugares muito bem determinados ainda é a dona da história. Ruy Gardnier Contracampo – revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/78/seeufossevoce.htm "Se Eu Fosse Você" fraqueja apenas no final Se não erro nas contas, este é o quarto dia seguido em que a TV paga exibe "Se Eu Fosse Você". Hoje é às 18h20, no TC Pipoca. Ouvi falar muito mal desse filme, quando passou em cinemas, mas, com toda franqueza, tenho a impressão de que, se a produtora não fosse a Globo e se, em vez de Daniel Filho, o diretor fosse Domingos de Oliveira, se falaria melhor dele. 35 Os filmes anteriores do realizador não me interessaram muito. Este chama a atenção, primeiro, por ser o chamado "fenômeno": 3,6 milhões de espectadores não é fácil. É de se notar que este filme já não é um programa de TV disfarçado de filme, como alguns produtos anteriores da Globo Filmes. E não bajula seu espectador quase nunca. Só no final fraqueja, arredonda as coisas de modo que, na vida conjugal, não sobrem contradições. Tenho a impressão de que um final menos Doris Day não espantaria o público e, ao contrário, aumentaria a estima do espectador pelo trabalho. Inácio Araújo Folha de S. Paulo Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2606200719.htm O mistério da grande angular De acordo com nota publicada na coluna social do jornal “O Globo”, Daniel Filho desejou “más críticas” a sua colega Carla Camurati na pré-­‐estréia de Irma Vap -­‐ O Retorno. Segundo o diretor, essas duas palavras teriam o poder de garantir o sucesso de um filme, da mesma forma que falar “merda” ou “quebre a perna” ajudaria os profissionais do teatro. O subtexto não poderia ser mais claro: a crítica (de merda?) não entende o que vai no coração do público. No caso de Se Eu Fosse Você, produção da Total Filmes dirigida por Daniel, a fórmula funcionou (mas não no de Irma Vap, diga-­‐se de passagem): o filme teve mais de 3,6 milhões de espectadores. Infelizmente, esta má crítica não poderá inflacionar ainda mais esses números, visto que a carreira da produção nos cinemas chega ao fim. Mas, com alguma sorte, ela pode dar uma pequena contribuição para alavancar o futuro lançamento em DVD. A esta altura, não dá para escrever sobre Se Eu Fosse Você ignorando o enorme sucesso da comédia nas bilheterias. Mas encontrar as razões de um êxito parece sempre um exercício hipotético. Claro, o apoio do braço cinematográfico das Organizações Globo e a presença das “pratas da casa” Tony Ramos e Glória Pires (que, ainda por cima, faziam simultaneamente um par na novela Belíssima) são razões importantes, mas talvez insuficientes – a julgar pelo recente fracasso de Mais Uma Vez Amor, outra parceria da Total Filmes com a Globo protagonizada por atores de sucesso em novelas. Vamos partir, portanto, de um princípio menos conspiratório sobre o sucesso de Se Eu Fosse Você: o filme simplesmente conseguiu a empatia de seu público. A meu ver, isso ocorreu por duas razões principais: a acertada escolha de filiação cinematográfica (a comédia italiana, em vez da americana clássica) e o memorável desempenho de Tony Ramos. 36 O mote de Se Eu Fosse Você é a troca de sexos. Apesar de formaram um casal aparentemente feliz da classe média-­‐alta da Barra da Tijuca, Cláudio (Ramos), dono de uma agência de publicidade, e Helena (Glória Pires), professora de música, têm dificuldades para entender os problemas um do outro. Por conta de uma certa conjunção astral, os dois acordam um dia com os corpos trocados e têm que assumir as rotinas íntimas e as atividades profissionais do parceiro. Ela, no corpo dele, precisa conquistar uma conta de uma cliente para que a agência não seja vendida. Ele, na pele dela, precisa reger um coral infantil em uma apresentação aos pais. A grande tradição da comédia sobre a troca de sexos vem do cinema americano, e tem entre seus destaques a obra-­‐prima Quanto Mais Quente Melhor (1959), de Billy Wilder, mas também Tootsie (1982), de Sydney Pollack, e Vitor ou Vitória? (1982), de Blake Edwards. Embora esses filmes dependam muito da caracterização de seus protagonistas, eles se sustentam sobretudo em diálogos e situações sofisticados – não raro de subtexto político – sobre a guerra dos sexos. Não é essa a agenda de Daniel Filho. Apesar da subtrama da conta publicitária ser quase um plágio do americano Do Que as Mulheres Gostam (2000), Se Eu Fosse Você descende de uma certa tradição de comédia italiana, que se baseia acima de tudo no trejeito físico e na piada chula. O maior trunfo do filme é a naturalidade com que transita entre a comédia ligeira e a comédia vulgar, entre a fina observação das diferenças sexuais e o reforço de estereótipos clássicos (como o da “bichinha”, da “secretária gostosa” e assim por diante). Em seus melhores momentos, Se Eu Fosse Você, lembra uma reedição do espírito politicamente incorreto do franco-­‐italiano Gaiola das Loucas (1978). Nos piores, uma transposição ao cinema de Zorra Total. Se o filme não permanece muito tempo nesse último campo, o mérito é, em grande parte, de Tony Ramos. Mesmo nos momentos mais grosseiros do filme, o ator parece incapaz de perpetrar uma vulgaridade. Ele sempre consegue emprestar alguma doçura a seus personagens, transmitir o prazer que sente ao interpretá-­‐los e mostrar-­‐se confortável nos mais variados registros – o que o torna um intérprete raro, até agora subaproveitado pelo cinema brasileiro, da estirpe de um Marcello Mastroianni. Já Glória Pires, ainda que defenda seu papel com elegância, revela-­‐se menos à vontade na comédia cinematográfica do que no melodrama televisivo. Mas, antes que os elogios deste texto ofendam o diretor, vamos aos problemas do filme. Como outras produções da Total Filmes, Se Eu Fosse Você parece ter sido feito a toque de caixa – o que não chegaria a configurar um grande defeito se esse tipo de filme não custasse cada vez mais caro no Brasil. A maioria das cenas deixa a impressão de ter sido filmada às 37 pressas e “nas coxas”. O resultado desse desleixo é uma deficiência cada vez mais comum no cinema nacional dos últimos anos: a síndrome da carência da grande angular. Essas lentes, geralmente usada para filmar planos abertos, parecem ter se tornado um objeto sagrado nos sets de filmagens brasileiros, elemento misterioso cada vez mais temido e menos utilizado. Sem cair na interminável (e muitas vezes infrutífera) discussão sobre o que é cinematográfico e o que é televisivo, partamos do princípio que a comédia física, como o sexo e boa parte dos esportes, é uma arte de interação dos corpos. Portanto, ela precisa que estes sejam mostrados em todo seu esplendor para fazer sentido. Filmar uma comédia em close-­‐ups e planos médios, como faz Daniel Filho em Se Eu Fosse Você, pode ser tão brochante quanto ver uma partida de futebol em que se mostram apenas os rostos dos jogadores. O momento mais exigente do filme para seu diretor é a seqüência em que Claudio, no corpo de Helena, tem que reger o coral infantil na apresentação aos pais. Ali Filho não consegue evitar o uso da grande angular, já que precisa mostrar dezenas de crianças ao mesmo tempo. O resultado é tão ginasiano quanto a garotada em cena. Nessa passagem, Daniel Filho conseguiu, de maneira tortuosa, aquilo que muitos cineastas mais talentosos buscam sem sucesso: a harmonia total entre forma e conteúdo. Ricardo Calil Revista Cinética Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/seeufossevc.htm 38 RESUMO
A noção de gênero é uma das mais importantes da doxa da história e da teoria do cinema. O
objetivo deste artigo é examinar a emergência de gêneros no cinema produzido no Brasil, desde
os primeiros filmes até a chanchada e a pornochanchada. Em primeiro lugar, enfatizando uma
perspectiva institucional. Em segundo, considerando a noção genérica como um pacto entre os
sistemas de produção e difusão de filmes e os espectadores. E, finalmente, analisando tanto as
marcas reveladoras dos elementos que regulam a formação do próprio discurso cinematográfico
no País, quanto as formas que atravessam a identidade daquilo que, institucionalmente, se constitui
em cinema brasileiro.
Palavras-chave: Instituição cinematográfica. Gêneros. Filmes brasileiros.
ABSTRACT
The notion of genre that’s the essentials from history and from theory cinema. The aim of this
paper is examine the emergence of the genres into the Brazilian cinema, from the first films to
chanchada and the pornochanchada. At first, enhancing an institucional perspective. Secondly,
considering the generic notion like a pact among the filmmaker, the mode of diffusion and the
viewers. In addition, analysing both the marks revealing from the elements what regule the training of the discours cinematographic and the forms what cross the institucional identity of the
Brazilian cinema.
Key words: Cinematographic institution. Genres. Brazilians films.
1 Doutora em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP),
Pós-Doutorado pela Université René Descartes, Paris V, Sorbonne. Atualmente, é coordenadora do Programa
de Mestrado em Comunicação e Professora Titular na Universidade Anhembi Morumbi. Parecerista da
Fapesp, CNPq e Capes. Líder do Grupo de Pesquisa Forma, Imagem na Comunicação Contemporânea
(UAM/CNPq). Publicou livros e artigos teóricos sobre o cinema. É escritora de ficção com romances e
contos publicados no País e no Exterior. E-mail: [email protected]
Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 6, n. 11, jan./jun. 2007
Bernadette Lyra1
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A emergência de gêneros
no cinema brasileiro: do
primeiro cinema às
chanchadas e pornochanchadas
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Lyra, Bernadette. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas
Razões das escolhas
A noção de gênero, talvez, esteja desgastada pelo tempo e pelo uso. Mas, nem
por isso, deixa de ser uma das mais importantes na teoria e na história do
cinema. Retomá-la para investigar a emergência genérica no cinema brasileiro
pode tornar-se um desafio intrigante.
De modo mais comum, os estudos de gênero costumam ser delineados em
contraposição aos estudos de autor. Essa oposição se dá, principalmente, em
torno daquela necessidade de agrupamento, nascida na tradição semiológica:
“A obra de um cineasta não é a única unidade textual sistemática maior do que
um filme. Há também o que se chama ‘gênero cinematográfico’: burlesco, filme
noir, comédia musical etc.” (METZ, 1971, p. 93).
O princípio de classificação estruturalista, que contrapõe as especificidades de
grandes conjuntos, permite que esses conjuntos se desdobrem em diversos
esquemas. Nesse sentido, Thomas Schatz propõe a seguinte equação: “A crítica
de gênero tenta estabelecer um conjunto de formas cinemáticas, enquanto a
crítica de autor celebra certos cineastas que trabalham, efetivamente, no quadro
dessas formas gerais.” (1980, p. 8).
De modo geral, ao privilegiar essa idéia de conjuntos classificatórios, muitas
análises que se dedicam às questões do gênero cinematográfico resultam textuais
e têm por motivo certas repetições e reiterações dos temas, tramas e narrativas
para nomear os gêneros. Para além dessa idéia, alguns pesquisadores estão
preocupados com uma espécie de ontologia dos gêneros:
Um gênero não é meramente uma coleção de imagens mortas à espera de um decorador
para animá-las. Trata-se de uma tradição com vida própria...Os gêneros precedem os
grandes diretores. O western se desenvolvia a contento, por si próprio, antes de John
Ford, ou mesmo James Cruz se debruçarem sobre ele. Precisamos nos dedicar muito
mais aos primórdios dessas formas variadas se quisermos compreender o seu estranho
poder e o processo exato pelo qual se tornaram suficientemente densas para atrair talentos. (BUSCOMBE, 2005, p. 318).
Há que mencionar, ainda, que certas vertentes advogam o retorno dos estudos
dos gêneros fílmicos ao âmbito da historicidade. Tom Gunning, por exemplo, recorre
ao Formalismo Russo em seus estudos sobre o cinema primitivo, exemplificando
os gêneros delineados pelos filmes dos primeiros tempos pela “articulação entre
os planos, em termos de tempo e espaço”. (GUNNING, 1984, p. 105). Mas,
Meu propósito é, justamente, retomar a noção de gênero nessa perspectiva de
um deslocamento para a imagem e a história institucionais do cinema, não me
limitando aos discursos ou textos produzidos no âmbito dessa instituição.2
Assim, não apenas estou considerando gênero como um pacto entre os sistemas
de produção e difusão de filmes e os espectadores, mas estou também conferindo,
à noção genérica, um caráter de marca reveladora dos elementos que regulam a
formação do próprio discurso cinematográfico e atravessam sua identidade.
Meu interesse pela história do cinema brasileiro se transmuda, então, em uma
história dos gêneros em filmes brasileiros, ou melhor, em uma parte da história
de pequenas histórias das possibilidades de emergência de algumas estruturas
que vão configurar o cinema no Brasil.
Matrizes genéricas no cinema
O cinema foi criado sob o contrato do avanço tecnológico, em um mundo
determinado pela ciência e pela técnica mecânica. Ele surge, em 1895, como
uma ferramenta científica, com a qual os irmãos Louis e Auguste Lumière,
utilizando uma série de instantâneos fotográficos, empreendiam sua busca da
reprodução do movimento.
Para Louis Lumière, tratava-se de uma invenção sem futuro, destinada a reproduzir
cientificamente vistas frontais, de poucos minutos, essencialmente fixas e
pensadas como reprodução técnica.
2 O conceito de instituição cinematográfica por mim usado difere da idéia de indústria cinematográfica, ou
melhor, trata da “indústria cinematográfica” como um conceito alargado na pluralidade epistemológica
das materialidades que cercam o cinema.
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Constatar, na trama atemporal dos filmes, a ocorrência sistemática de certas repartições
coerentes, não é a mesma coisa que interrogar a imagem e a história da instituição
cinematográfica como algo que, num dado período e sob determinadas condições e
exigências, se pensou como um cinema de gêneros, facilitando e fomentando o surgimento e a implantação dessas mesmas repartições. (GRILO, 1997, p. 144).
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considerando o rol dos muitos estudiosos que se ocupam do assunto, fica patente
que poucos assumem a importância da história da própria instituição:
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Lyra, Bernadette. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas
Desse modo, o cinema, em seus primórdios, foi tido como um meio de replicação
da realidade objetiva, ou seja, como um meio de reprodução técnica das imagens
em movimento da realidade. A “recriação do mundo real” funda ontologicamente
o cinema.
O mito condutor da invenção do cinema é a consumação do mito que domina confusamente todas as técnicas de reprodução mecânica da realidade que surgiram no século
XIX, da fotografia ao fonógrafo. É o mito do realismo integral, de uma recriação do mundo
à sua imagem, uma imagem sobre a qual não pesaria a hipoteca da liberdade de interpretação do artista, nem a irreversibilidade do tempo. (BAZIN, 1991, p. 30).
Porém, desde muito cedo, empresários e produtores do entretenimento
descobriram que o cinema poderia substituir o teatro e o circo no imaginário do
público.
Essa descoberta, talvez, tenha se dado na noite de 28 de dezembro de 1895,
quando Georges Méliès, um empresário e prestidigitador do pequeno teatro
Robert Houdin, em Paris, compareceu ao salão do Grand Café, convidado para a
primeira sessão do Cinematógrafo dos Irmãos Lumière.
Emmanuelle Toulet reproduz o que Méliès sentiu:
Estávamos, os outros convidados e eu, diante de uma pequena tela, parecida com as que
nos serviam para as projeções Molteni e, após um instante, uma fotografia imóvel representando a Place Bellecour, em Lyon, apareceu em projeção. Um tanto surpreso, eu mal
tive tempo de dizer a meu vizinho: “Foi para nos mostrar projeções que nos fizeram vir
aqui? Eu faço há mais de dez anos”. Mal acabei de falar, um cavalo puxando um caminhão se põe em marcha em nossa direção, seguido de outros veículos, depois de pedestres, enfim, toda a animação da rua. Ficamos todos boquiabertos com aquele espetáculo,
estupefatos, tomados por uma surpresa inenarrável. (1988, p. 14).
De imediato, Méliès compreendeu a função espetacular do cinema, vislumbrando
o mundo imaginário que se abria na tela. 3
3 Louis Lumière, com a ajuda do irmão Auguste, inventou o aparelho que permitia a reprodução técnica
das imagens em movimento, mas, ao mesmo tempo, inventou o cinema. Assim, o cinema é uma invenção
científica, nascida da vontade de domínio do homem sobre a realidade, seguindo o mito do realismo
integral e o sonho de uma recriação do mundo à sua própria imagem. A reprodução automática da realidade,
preocupação científica que animou a invenção do cinema no fim do século XIX, difere da arte do espetáculo
que ganhou amplitude com o cinema de Méliès.
No início, eram apenas complementos de espetáculos de vaudeville, assistidos
cada vez mais por uma multidão em que predominava uma platéia composta de
operários e trabalhadores de escassa renda. Porém, logo, a classe média se
interessou pelo cinema. Os filmes, então, ocuparam salões que ficavam lotados
com todo tipo de gente disposta a se divertir ou se maravilhar com as imagens
em movimento projetadas na tela.
Assim, o cinema, rapidamente, revelou sua função de festa e prodígio.
À medida que o mercado de produção e distribuição que se iniciava exigia uma
intensificação programática a fim de atrair o público e mantê-lo interessado, as
formas materializadas daquela “recriação do real” logo se diversificavam e
passavam a incluir, além das famosas “vistas” de Lumière, fatos de repercussão
social, paisagens de lugares distantes, óperas, dramas e comédias tirados de
peças teatrais, espetáculos mágicos e circenses.
Esses motivos, ao mesmo tempo que se multiplicavam, foram sendo repetidamente utilizados pelas produtoras e distribuidoras que os organizavam em
catálogos para os programas de exibição.
Dessa maneira, a indústria de filmes ia se construindo entre a diversidade e a
previsibilidade, baseada em dois pólos: inovar para sobreviver e repetir para
garantir um padrão.
4 É claro que, ao lado dessa função de espetáculo de divertimento, o cinema muito cedo revelou, para
alguns realizadores, as possibilidades de exercer uma função política e ideológica em que se proclamava
a ideologia politizada do meio e até se teorizava sobre ela, como é o caso do americano David Wark Griffith
(Nascimento de uma nação, 1915, e Intolerância, 1916) e do soviético Seguei Eisenstein, em seus filmes
e escritos. Além disso, também muito cedo, começavam as preocupações com a transformação ideológica
do cinema em uma “arte”. Nos primórdios do século XX, na França, os irmãos Laffitte chegam a fundar a
sociedade Le Film d´Art, esperando dar ao cinema um toque de “nobreza artística”, inexistente até então.
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A forma de espetáculo concebida por Méliès, muito cedo, encontrou empresários
que iriam cercá-la de meios.4
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Em função desse imaginário fantasioso, Méliès dedicou-se à criação e à realização
dos procedimentos que, até hoje, fazem parte do arsenal da realização: trucagens,
sobre impressões, movimentos mais lentos e muitos outros jogos cinematográficos.
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Lyra, Bernadette. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas
Constituiu-se, assim, a experiência cinematográfica. Do ponto de vista institucional,
a existência de uma noção de gênero se deve a esse tipo de experiência, que
engloba a repetição e a inovação.
Embora no âmbito da estética a idéia do “novo” seja motivo de desacordo entre
aqueles que a atribuem aos valores pregados pelo romantismo e aqueles que a
vêem como um modo politizado de tornar um produto cultural acessível, nivelando
“alta cultura” e “cultura de massa”, um filme de gênero sempre depende dessa
“combinação de novidade e familiaridade. As convenções do gênero são
conhecidas e reconhecidas pelo público e tal reconhecimento já é, por si só, um
prazer estético”. (BUSCOMBE, 2005, p. 315).
Os gêneros no cinema brasileiro: os primeiros momentos
O cinema no Brasil começa sob o signo da perspectiva industrial e da importação
de modelos. Em torno desses dois eixos gira toda a produção, realização e difusão
de filmes no País, nas primeiras décadas do século XX.
Quanto ao primeiro, é fato que a primeira geração de produtores e distribuidores de
filmes a atuar nas cidades brasileiras estava mais interessada na rentabilidade comercial
do cinema, não se podendo falar em idéias organizadas com uma determinada finalidade
que não aquela de investir e lucrar com o novo meio de entretenimento.
Quanto ao segundo, é relevante considerar a chegada de imigrantes que aqui
aportavam em busca de trabalho e o seu direcionamento para a indústria de
entretenimento.
Muitos desses imigrantes tinham facilidades de ida e vinda e contatos deixados em
seus lugares de origem e podiam estar em dia com a disseminação do cinema pelo
mundo. Foram eles que se encarregaram de formar um público de espectadores no
Brasil, trazendo do estrangeiro as projeções luminosas sobre uma tela branca.5
5 Exemplar é o caso de Pascoal Segreto, um italiano que, aos 28 anos de idade, era empresário do
Pantheon Ceroplástico, um museu de cera que se apresentava em vários logradouros do Rio de Janeiro,
por volta de 1896. Acostumado a investir no mundo dos espetáculos, Segreto introduziu o primeiro
cinematógrafo permanente no Brasil: o Salão de Novidades. Antes dele, o público havia já visto o
Kinetographo, trazido pelo empresário português Aurélio da Paz Reis, que estreou em 15 de janeiro de
1897; o Cinematographo Edison, apresentado pelo prestidigitador espanhol Enrique Moya; o Animatographo,
do professor italiano Vittorio di Maio e o Cinematographo Lumière, apresentado pelo francês Henry Picolet.
Primeiro vieram os filmes experimentais de Edison, Lumière e outros. Logo em seguida,
as pesquisas mais elaboradas de Méliès, Zecca, Edwin Porter, etc. Depois as epopéias
italianas de Ambrosio, Pastrone e Guazzoni. Imediatamente após, os dramas escandinavos de Asta Nielsen e Valdemar Psilander. Em 1915, num concurso de popularidade
efetuado no Brasil, os quatro primeiros postos foram ocupados pela italiana Francesca
Bertini, pelos dinamarqueses Nielsen e Psilander e pelo norte-americano Maurice Costello. Daí por diante, porém, garantidos pelos bancos, que pouco a pouco haviam tomado o
controle dos estúdios, os filmes norte-americanos começaram a entrar com maior força
no nosso mercado, eliminando gradativamente, através de uma produção e uma publicidade maciças, os demais concorrentes. (VIANY, 1987, p. 37).
Quanto à realização de filmes em nosso país, ela parece ter se iniciado também
dentro do princípio ontológico de reprodução do real que guiava as primeiras
produções de Lumière, bem como a de tantos realizadores europeus e americanos.
Em 19 de junho de 1898, Afonso Segreto faz o registro da baía de Guanabara, de
bordo do navio Brésil que o trazia da França. O jornal A Gazeta de Notícias, do
Rio, no dia 20 de junho de 1898, noticia o fato aos leitores:
Chegou ontem de Paris o sr. Afonso Segreto, irmão do proprietário do salão Paris, no Rio,
sr. Gaetano Segreto. O sr. Afonso Segreto há sete meses que fora buscar o aparelho fotográfico para preparo de vistas destinadas ao cinematográfo e agora volta habilitado a
montar aqui uma verdadeira novidade que é a exibição de vistas movimentadas no Brasil.
Já ao entrar à barra, fotografou ele as fortalezas e os navios de guerra.
A partir dessa primeira “vista”, se inicia uma diminuta produção em que os filmes
eram pequenos, feitos com tecnologia precária, destinados à exibição nas salas
de divertimento que apareciam, principalmente, no Rio de Janeiro.
Logo, as vistas e as paisagens que se multiplicavam começaram a dividir o
espaço com filmes que recheavam o universo de interesse dos habitantes do Rio
e de outras cidades. Registros de casos policiais famosos, melodramas, filmes
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Todos esses fatores contribuíram para atrair a atenção dos centros produtores e
difusores do cinema no mundo, que demonstraram um especial interesse pelo
mercado brasileiro.
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Além disso, a precária situação econômica de grande parte da população do País
impedia o investimento de empresários, técnicos e profissionais na área. Nossas
indústria e tecnologia, quase inexistentes, também se mostravam incapazes de
fabricar máquinas de cinema.
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Lyra, Bernadette. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas
religiosos, dramas históricos e patrióticos e filmagens de bailes e corsos
carnavalescos, ao mesmo tempo que forneciam ao público uma diversidade de
escolha dentro de um panorama comum a todos, consolidavam-se na sucessão
dessas mesmas escolhas.
Sempre atento às tendências dos filmes estrangeiros que faziam sucesso na
época, o próprio Segreto produziu filmes ligeiros, como Beijos de amor e Um
colegial numa pensão, os quais reproduziam cenas cômicas da vida cotidiana.
O ano de 1908 marcou o início de uma fase áurea do cinema brasileiro, com uma
produção intensa. A demanda do público se tornava cada vez maior com a
ascendência de uma classe burguesa urbana e uma intensa população de
migrantes. Os espectadores já então se tinham habituado ao novo entretenimento,
exigindo a ampliação do número de salas exibidoras e a variação dos filmes.
Nessa época, romancistas, dramaturgos e caricaturistas começaram a se
interessar em escrever para o cinema.
Grande parte da instalação dessa fase se deveu à participação de proprietários
das salas de exibição, os quais resolveram investir na produção cinematográfica.6
A pesquisadora Anita Simis registra 963 produções nesse período, no País.
“Grande parte desses filmes eram de curta metragem, sendo vários deles
documentários e tomadas de vistas e um quarto de ficção produções, 763 eram
filmes curtos, como documentários e tomadas de vistas (768) e um quarto de
ficção (240)”. (SIMIS, 1996, p.72).
Construíam-se estúdios e neles eram realizadas películas que iriam competir
com as fitas estrangeiras exibidas. Mas, em geral, os realizadores continuavam
seguindo os modelos genéricos vindos “de fora” e que obtinham sucesso.
Proliferavam os documentários; as vistas; os filmes falantes e os cantantes,
sincronizados com o som de fonógrafos; os filmes sacros; os chamados “filmes
livres”, proibidos para mulheres e crianças; as comédias e os policiais. Estes
últimos se destacavam entre os modelos narrativos.
6 Quanto às salas de exibição, nos primeiros tempos do nosso cinema, eram inexistentes. Depois, pouco
a pouco, foram surgindo salas esparsas, funcionando em circos, teatros, pavilhões eventuais e mesmo
em locais de consumação de bebidas e comidas, como os cafés-concerto e, quase sempre restritas aos
centros mais adiantados, como Rio e São Paulo.
A introdução do fator “brasileiro” se constitui em dado mais que importante na
gênese genérica dos filmes, ao lado da vontade industrial e da importação de
modelos.
A primeira comédia de enredo foi Nhô Anastácio chegou de viagem (1908), de
Julio Ferrez, filme de menos de quinze minutos, produzido por Arnaldo Gomes de
Souza e Marc Ferrez.
Nhô Anastácio chegou de viagem mantinha, com humor e alguma ironia, um fio
narrativo que ainda não havia sido explorado e pode-se afirmar que trazia um
caipirismo bem brasileiro.
O primeiro policial foi Os estranguladores (1908). O filme era a adaptação de
uma peça teatral contando uma rebuscada história de dois assassinatos em 40
minutos – tempo demasiado para os filmes da época – que alcançou grande
sucesso – mais de 800 exibições – tendo sido produzido pela Photo-Cinematografia
Brasileira, sociedade do cinegrafista português Antonio Leal com o ex-comerciante
José Labanca.
Nessa vertente policial, também em 1908, foi produzido O crime da mala, pela
empresa Francisco Serrador, no qual se reconstituía o assassinato de Elias Farah,
por Miguel Traad, que esquartejou a vítima e tomou um navio com intenção de
jogar os pedaços do cadáver no mar, mas acabou sendo preso. O filme apresenta
uma mistura de fato ocorrido com ficção, com registros autênticos dos locais do
crime e do julgamento do assassino. A união de imagens encenadas com imagens
documentais resulta em uma fórmula que começa a dar o tom em algumas
produções brasileiras, tais como Noivado de sangue, Um drama na Tijuca e A
mala sinistra, sendo este último uma versão do mesmo crime da mala.
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As comédias... envolviam sempre algum tipo de malvadeza. As vítimas eram muitas: amantes, policiais, cozinheiros, vagabundos, tintureiros chineses, proprietário de mercearias. Havia bagunça de todo tipo: guerras de travesseiro entre internas, guerras de farinha de trigo
e de tortas entre adultos, brigas entre policiais e civis. Estas comédias eram freqüentemente cínicas em relação à autoridade e à moralidade vigente. Esperava-se a infidelidade. A corrupção era motivo de piada. Proliferavam estereótipos raciais e profissionais. (COSTA, 1995, p. 21).
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As comédias, sobretudo aquelas que repassavam repetidamente um “estar” cínico
da realidade brasileira, caíam no gosto do público. Tornavam-se o gênero mais
popular de cinema.
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Lyra, Bernadette. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas
Esses dois tipos de filme repetiam ou criticavam o cotidiano dos habitantes das
cidades, em especial do Rio de Janeiro, em ritmo de crescimento, aumento da
pobreza e implantação de valores sociais, incitando o voyeurismo do público que
ia ver, no cinema, os fatos urbanos domésticos, pitorescos ou violentos.
Paz e amor (1910), de Alberto Botelho, é uma comédia que já mesclava fragmentos
de outros gêneros.7 O título se referia a uma frase do Presidente Nilo Peçanha
que, ao assumir o cargo, teria dito aos repórteres: “Farei um governo de paz e
amor.” No filme, que era dividido em quatro partes, cinco quadros e duas
apoteoses, eram criticados os acontecimentos da campanha civilista, os políticos
nacionais e os costumes da cidade.
Nesse período, os filmes que aqui chegavam ou aqueles que aqui eram produzidos
tinham duas possibilidades de distribuição: ou eram exibidos nas salas de projeção
das grandes cidades ou ficavam destinados à exibição ambulante. “Pelo país
afora seguiam cinegrafistas itinerantes registrando coisas e projecionistas
exibindo-as, bem como ao material importado de séries de filminhos de diversas
proveniências.” (FINGUERUT, 1986, p. 3).
Em 1915, veio morar em São Paulo o italiano Vittorio Capellaro, responsável
pela produção dos primeiros épicos e de adaptações literárias no País. E, em
1919, Gilberto Rossi e José Medina produziram, também em São Paulo, Exemplo
regenerador, filme considerado de bom padrão técnico e artístico.
Assim, o grosso da produção fílmica que, de 1912 a 1922, situava-se no Rio de
Janeiro, alastrou-se para outros estados. A atividade produtiva causou o
surgimento de revistas especializadas em cinema, bastante lidas na época, em
especial Para Todos, Selecta e Cinearte Esta última abriu um caminho para que
se pensasse nas possibilidades do uso do cinema com fins de educar a juventude
brasileira, através de gêneros “educativos”.
Mas, desde 1911, com a chegada da primeira leva de capitalistas norteamericanos interessados em investir em cinema no Brasil, os filmes estrangeiros
começaram a tirar espaço das produções feitas no Brasil, fato que foi se
intensificando, causando progressiva regressão na produção local de tal forma
7 Pode-se dizer que Paz e Amor é um filme verdadeiramente precursor da identidade genérica das
chanchadas.
A anulação da farta fase produtiva pode ser creditada a alguns fatores que afetaram
o mercado cinematográfico no País. Um desses fatores, a dificuldade em importar
material, por ocasião da Guerra de 1914, prejudicou em muito a produção fílmica.
Além disso, os Estados Unidos se aproveitaram do envolvimento da Europa no
conflito para intensificar uma política agressiva de exportação de produtos
cinematográficos para países como o Brasil.
Não deixa de ser interessante que, por essa ocasião, o técnico americano
William S. Jansen juntou-se a comerciantes brasileiros para fundar uma empresa
cinematográfica, a Brasil Film, depois denominada Sociedade Anônima Omega Film.
A Omega Film pretendia produzir filmes baseados em autores literários, comédias
e dramas históricos dentro de um modelo que apresentasse a novidade do aspecto
brasileiro a ser exportado para os Estados Unidos.
Em junho de 1919, a produtora mostrou seu filme Urutau em sessão para
convidados e jornalistas. O filme tratava de uma pretensa lenda indígena, apoiandose em uma mistura narrativa repleta de exotismo, cercada de pretensas matas,
cachoeiras, plumagens e modo “selvagem” de vida. Foi veementemente louvado
pela crítica como sendo um dos grandes esforços já feitos, no Brasil, para implantar
a arte e a indústria do cinema, dentro de propostas para educar, divertir e
engrandecer o povo brasileiro.
Apesar do entusiasmo com que foi recebido pelos comentaristas, o filme nunca
estreou comercialmente. E, com a volta de Jansen à América do Norte, a Omega
Film foi extinta, tendo o filme desaparecido juntamente com o produtor.
A chegada da tecnologia do som a Hollywood modificou o cinema em todo o mundo.
Em 6 de outubro de 1927, estreava, nos Estados Unidos, o primeiro filme falado e
cantado: O cantor de jazz (The jazz singer), produzido e realizado pela Warner Bros.
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Por alguns anos, o cinema brasileiro sobreviveu quase exclusivamente dos
cinejornais e dos filmes de cavação, um tipo de filme encomendado ou vendido
às figuras proeminentes ou ricas que neles apareciam.
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que, ao fim da década de 10, a produção cinematográfica brasileira entrava em
crise e passava a sobreviver com a ajuda da filmagem de jornais e documentários
que, então, se transformavam em um gênero básico para o mercado exibidor.
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Lyra, Bernadette. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas
A Warner Bros ocupava um lugar relativamente à parte entre as grandes produtoras
pelo modo como aplicava seus recursos econômicos e, desde muito, havia
começado a investir na adaptação de um dispositivo de sincronização sonora
para seus filmes. Em julho de 1928, a companhia lançava The lights of New
York, o primeiro filme falado de gangster.
Entre nós, o fim da era do cinema mudo intensificou o trabalho de importação de
filmes americanos. Porém, estimulado pelo sucesso de Barro humano (1929),
Adhemar Gonzaga conseguia já recursos para fundar um grande estúdio, a Cinédia,
pioneira em filmes musicais, na esteira dos filmes musicais hollywoodianos que
a tecnologia sonora havia deslanchado.
Instalada no bairro carioca de São Cristóvão, a Cinédia era dotada de parâmetros
técnicos, bem-equipada e tinha nítida inspiração nos estúdios de Hollywood,
desenvolvendo uma produção regular, com palcos simultâneos, equipamentos
de qualidade e pessoal contratado em regime permanente.
A exemplo dos americanos, os filmes cantados e dançados brasileiros da década
de 30 operavam sob a forma de backstage musical da época.8
No backstage a estrutura narrativa se alicerça em uma história que apenas serve de
pretexto para que danças e canções sejam encenadas. Foi essa forma fílmica que
permitiu, rapidamente, uma vinculação dos musicais, no Brasil, com o rádio e com a
indústria fonográfica, atuando, especialmente dentro de um modelo carnavalesco.
Na Cinédia foram produzidos A voz do carnaval, em 1933, e Alô, Alô, Brasil,
1935, dirigido pelo norte-americano Wallace Downey, representante dos discos
Columbia em São Paulo. Em sua realização, esse filme contava com uma imensa
constelação de estrelas do rádio e do mercado fonográfico.
Em 1936, a Cinédia lançava um filme carnavalesco que alcançou enorme sucesso,
Alô, Alô, Carnaval. E em 1939, era produzido Banana da terra, filme em que
Carmen Miranda se despedia do cinema no País.
A alternativa do filme musical de carnaval obedeceu, em parte, a uma vocação da sociedade carioca: o cômico a ele acrescentado trouxera mais vigor e mais público, principal-
8 Em oposição ao backstage musical, o integrated dance musical busca integrar os números de dança ao
processo diegético do filme, expressando situações da narrativa e integrando-se a elas.
De repente, em determinado momento (talvez por volta da década de 40), por
todo o País, ouvia-se a palavra chanchada.
“Não se sabe ao certo quem primeiro a empregou entre nós, mas tudo indica
que, antes de se estabelecer por aqui, ela tenha feito baldeação na Argentina.”
(AUGUSTO, 1989, p. 17).
O nome chanchada serve a um cinema em que tudo se faz sobre a necessidade
de negociar com o público e não de educá-lo ou de instruí-lo. E, sobretudo, sobre
a necessidade de adaptar os gêneros fílmicos a uma “brasilidade” que nada
tinha de cópia dos modelos estrangeiros.9
Os espectadores das chanchadas ansiavam por filmes populares e alegres, sem
se importar que fossem ou não profissionalmente bem-acabados ou que
contivessem refinadas mensagens.
Pode-se dizer que o espírito da chanchada locou-se no Brasil, desde a chegada
do espetáculo cinematográfico, quando se consolidou a tradição de uma produção
destinada a entreter certo tipo de público, anteriormente voltado para o circo e o
teatro. Desse modo, a popularização dos filmes se fez sentir desde os primeiros
momentos, apesar dos protestos daqueles que pretendiam uma cultura mais
“artística” para o País.10
9 Alguns críticos mais radicais afirmam que as chanchadas eram cópias de modelo hollywoodiano.
Naturalmente que, para alguns, cópias inferiores. No entanto, a fórmula de Carnaval no Fogo (1949),
apontada como cópia dos filmes da dupla Jerry Lewis e Dean Martin, foi pensada antes da primeira
comédia de Lewis e Martin, Amiga da onça (My friend Irma), produzida em 1949 e lançada no Brasil algum
tempo depois que Alinor Azevedo e Watson Macedo já tinham terminado Carnaval no Fogo.
10 Os intelectuais sempre temeram o entretenimento, pois sabiam bem que este ameaçava a fragilidade
cultural. O entretenimento vinha ocupar um lugar dos sentidos que a razão e a mente tentavam cooptar. O
entretenimento vinha substituir o sublime pelo divertido. Desmerecer o entretenimento era, portanto, uma
questão de poder.
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Das chanchadas às pornochanchadas
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mente quando estas histórias e estas narrativas mostravam o Rio de Janeiro com sua
própria cara. O cômico era linguagem descritiva da esterilização dos destinos individuais
e também representava a possibilidade das vivências e das sociabilidades cotidianas de
forma incomum, no seio de uma comunidade imaginada. (FERREIRA, 2003, p. 79).
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Lyra, Bernadette. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas
Não é coincidência que o desprezo de um certo tipo de intelectualidade pelas chanchadas seja o mesmo que as elites culturais, por longo tempo, mantiveram
a respeito do entretenimento das massas. Afinal, um dos dogmas da cultura erudita
era que a arte exigia esforço para ser apreciada, sobretudo esforço intelectual, mas
que o entretenimento não fazia exigência alguma ao intelecto.
Ela (a arte) redimensionava a visão do sensual para o intelectual, do temporal para o
eterno, do corpóreo para o espiritual, coisas que, todas juntas, faziam da arte uma
questão não só de estética como também de moralidade, já que seu efeito era encorajar
o aprimoramento. (GABLER, 1999, p. 23).
As chanchadas se constituíram sobre uma coletânea de gêneros já reconhecidos
sem maiores dificuldades pelos espectadores brasileiros, mesclando melodrama,
drama romântico, aventura, policial e, sobretudo, musicais e comédia.
Em suas relações com o cinema no Brasil, as chanchadas constituem uma topografia
que se afirma não como um lugar de proveniência e fim de algo, mas uma terra de
convergência para todas as orgias do imaginário cinematográfico, repletas de deusas,
personalidades do mundo social e político, indígenas, faraós, gangsters, bailarinas,
figuras bíblicas, personagens teatrais, enfim, uma desmesurada gag cultural embalada
por músicas carnavalescas e por adaptações populares de peças eruditas.
Pode-se dizer que a terra das chanchadas está fundamentada sobre o território
do cinema brasileiro, mais precisamente sobre as idéias que nele pairam, e se
configura, ela mesma, em arquipélago enunciativo, feito de associações,
aproveitamentos, cópias, montagens, cruzamentos e permutas de outros gêneros,
incessantemente em combinação.
Na rede cruzada de fragmentos que vão organizando as histórias, o nome chanchada
se confunde com outros, como aquele que viria a designar o lugar produtor de chanchadas
por excelência: a Atlântida, que, no entanto, “não foi o único celeiro da chanchada,
apenas o mais antigo e produtivo (62 filmes de ficção e dois documentários em 20
anos de atividade) por conseguinte, o mais célebre”. (AUGUSTO, 1989, p. 30).
A Atlântida foi oficialmente fundada em 18 de setembro de 1941, por Moacyr
Fenelon, Edgard Brasil, José Carlos Burle, Arnaldo de Farias e Alinor Azevedo.11
11 A marca da produtora, a não ser pelo chafariz jorrando água em abundância, em nada lembrava a
utópica cidade-estado de Atlântida, sonhada por Platão e devorada pelo oceano, cujos habitantes eram
sábios e portadores de grandes riquezas.
Uma vez eu estava na Cinelândia, muito desgostoso, e encontrei o Moacir Fenelon. Ele me
pediu uma ajuda para fundar uma empresa. Foi aí que comecei a escrever o prospecto da
Atlântida. Falei de filme colorido, de coisas mirabolantes e até de coisas que a empresa
nunca fez. Ficou conhecido como o Manifesto da Atlântida. (1969, p. 59).
O Manifesto da Atlântida – que era “propagandista, para inspirar a confiança
nos compradores de ações da Companhia”, segundo Alinor – é, possivelmente,
a primeira demonstração, no meio cinematográfico brasileiro, de consciência da
necessidade de adequar a produção e a proposta de industrialização à realidade
concreta do mercado.
A Atlântida tentou, desesperadamente, colocar isso em prática. Tomando Alinor
Azevedo como exemplo, pode-se ter uma idéia de quanto seus idealizadores
pretendiam fazer um cinema engajado, de acordo com seus ideais de cultura e
política no Brasil, mas tiveram que se render a filmes de entretenimento popular
para continuar industrialmente atuando.12
Era de Alinor o roteiro de Tumulto, o primeiro longa-metragem da Atlântida, que
nunca foi filmado. Na produtora, ele fez ainda Asas do Brasil (1947), Luz dos
meus olhos (1947), Terra violenta (1948), todos filmes baseados em nosso
universo sociocultural.
Então, veio uma fase intensa de chanchadas produzidas na Atlântida. Apoiado
em uma idéia de Anselmo Duarte, em 1946, Alinor Azevedo fez o roteiro de
Carnaval no Fogo, filme que conseguiu sintetizar o modelo ideal do gênero
chanchadesco no Brasil.13
12 Alinor Azevedo era o cérebro da Atlântida. Foi um dos mais importantes roteiristas do País.
13 Na Atlântida, Alinor Azevedo ainda trabalhou em roteiros originais, diálogos e adaptações para
chanchadas e outros tipos de filme: Caçula do barulho (1949), Também somos irmãos (1949), Aviso aos
navegantes (1950), A sombra da outra (1949), Não é nada disso (1950), Maior que o ódio (1951).
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Em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 5 de
agosto de 1969, Alinor de Azevedo conta de que maneira participou da fundação
da companhia:
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Com o nome de Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S.A., pretendia ser
uma fonte de produção de filmes brasileiros que, ao lado do apuro técnico, exibissem um conceito de identidade cultural do Brasil.
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Lyra, Bernadette. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas
O imenso sucesso de bilheteria de outra chanchada, Este mundo é um pandeiro
(1946), escrita por Hélio Soveral, tinha atraído Luiz Severiano Ribeiro o maior
exibidor do País e dono da distribuidora União Cinematográfica Brasileira, que
passou a investir na produtora.
Severiano Ribeiro estava motivado, sobretudo, pela Lei 20.493 (sancionada no
início de 1946), que obrigava todos os cinemas a exibir pelo menos três longasmetragens brasileiros por ano, ou seja, um filme a cada quatro meses.
A estratégia da participação do exibidor na produção tinha a sua lógica. A seção Cinegráfica de O Cruzeiro acusava, atrás da anônima assinatura de operador, que Severiano
durante a guerra havia comprado cotas da Distribuidora de Filmes Brasileiros (DFB) e da
Distribuidora Nacional (DN), que eram duas das três firmas especializadas na distribuição de filmes brasileiros no eixo Rio-São Paulo. Severiano trazia o cabedal dos territórios
de exibição do Rio-Leste-Nordeste-Norte do país, agora acrescido de um laboratório cinematográfico que pretendia ser o melhor do Brasil. O passo seguinte da estratégia do exibidor foi aproveitar-se da exibição corrente do meio cinematográfico, propondo co-produções a quantos projetos houvesse. (CATANI, 1983, p. 50-52).
A verticalização empreendida pelo empresário foi fundamental para a longevidade
e a continuidade das atividades da produtora que passou a contar com uma
equipe de realizadores como Watson Macedo, José Carlos Burle e Carlos Manga.
Instalou-se, também, um sistema de estrelas e astros, alguns exclusivos da
Atlântida, como o casal romântico dos filmes, Eliana e Anselmo Duarte e cômicos
como Oscarito e Grande Otelo.
Na década de 50, a Atlântida se transformou em uma verdadeira fábrica de
chanchadas, obtendo imenso sucesso comercial. Sucediam-se as chanchadas
de sucesso como Nem Sansão nem Dalila (1954) e O homem do Sputnik (1959).14
Esse encontro entre produção e comércio exibidor lembra a harmoniosa e nunca repetida
conjuntura econômica que reinou no cinema brasileiro entre 1908 e 1911. Em 1947,
porém, o resultado mais evidente da almejada confluência de interesses industriais e
comerciais foi a solidificação da chanchada e sua proliferação durante mais de quinze
anos. (GOMES, 1980, p. 73).
14 A par das chanchadas, a Atlântida não deixou de produzir filmes “sérios” como já havia produzido
Vidas solidárias (1945), de Moacyr Fenelon e Também somos irmãos (1949), de José Carlos Burle. A
Atlântida produziu Luz dos meus olhos (1947), onde José Carlos Burle lançou a atriz Cacilda Becker; Terra
violenta (1948), e o policial Amei um bicheiro (1952), de Jorge Ileli e Paulo Wanderley.
No fim dos anos 60, aparece a pornochanchada, uma forma de cinema que, se
mal- adivinhada anteriormente aqui e ali, irrompe, finalmente, em decorrência da
crise institucional do cinema no Brasil.
Para muitos, a crise que se apresenta como decorrência de fatos políticos que
desencadeiam violenta censura aos meios de comunicação, propiciou o surgimento
da pornochanchada.
Mas o pesquisador Gelson Santana apresenta uma versão mais bem fundada no
aparato institucional do cinema brasileiro, quando remete à própria precariedade
que rege esse meio:
“Na pornochanchada, o processo de fazer uma imagem sem espessura é levado às
últimas conseqüências... E ele (esse processo) foi resultado de uma falta de capacidade artística e tecnológica da indústria cinematográfica nacional.” (SANTANA,
2005, p. 329).
Esse deslocamento de uma explicação de raiz sociológica (a crise política) para
um dado tecnologicamente ancorado na produção e realização de filmes se torna
fundamental, dentro da visão institucional do cinema:
O precário é a instância primordial, ele é o resultado de uma espécie de subnutrição
tecnológica. E é exatamente esta espécie de subnutrição que inventa ou conforma o gênero no
cinema brasileiro. Se o gênero no cinema brasileiro pode ser visto como a configuração do
precário em formas paradoxais imantadas nos filmes, isso se deve ao fato de que gênero no
cinema brasileiro se faz a partir de pontos de convergência de determinadas práticas, tanto
materiais, determinadas pela precariedade, quanto expressivas. (SANTANA, 2005, p. 326).
15 O fim da Atlântida, em 1962, se deve a uma série de filmes mal-sucedidos e ao advento do Cinema
Novo e da televisão no País.
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Nessa década, desenvolve-se o modelo institucionalizado de um ethos cultural brasileiro que a política desenvolvimentista do governo fazia questão de acentuar. Carnaval, samba, bons malandros e os olhos verdes da mulata povoam os gêneros fílmicos
produzidos no País, até a irrupção do Cinema Experimental e do Cinema Novo.15
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Também a partir de 1950, a experiência cinematográfica dos espectadores
brasileiros passou a contar com uma indústria cinematográfica disposta a explorar
fatos tais como a volta de Getúlio Vargas ao poder, eleito pelo voto direto, as
novidades da industrialização, o êxodo rural e o crescimento das cidades brasileiras.
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Lyra, Bernadette. A emergência de gêneros no cinema brasileiro: do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas
As pornochanchadas, quer as produzidas no Rio, quer as feitas na Boca do Lixo
paulista, eram o tipo de filme com uma produção barata e disposta a produzir um
filme com o lucro imediato de outro filme.16
Na década de 80, com a invasão dos filmes eróticos estrangeiros, a pornochanchada assumiu um caráter mais explícito:
Êxitos como Bacanal de Colegiais, A Menina e o Cavalo e Sexo em Festa serviram para provar
ao comércio cinematográfico que o Brasil podia fazer frente a desenfreada importação de
pornôs estrangeiros. E em relação ao público, existia a vantagem: a língua portuguesa. O
palavreado chulo em meio das fartas transas tornavam nossos filmes mais atraentes. A indústria da Boca sentiu-se, aparentemente, mais segura, podia se manter e manter os empregos
que gerava. Era o começo de um caminho sem volta. (STERNHEIM, 2005, p. 39).
Essas formas que materializavam, escancaradamente, o aspecto pornô emergiram
das instâncias externas que, ao longo da história do cinema brasileiro, foram
estruturando os atos de produção e difusão, em conjugação com os aspectos
técnicos e tecnológicos e com as alternativas estéticas e narrativas dos filmes.
Concluindo
As formas de produção de chanchadas e de pornochanchadas foram concebidas
no triplo cruzamento que moveu a produção de filmes no País, desde seus
princípios: modelos importados, que faziam sucesso entre nós, e eram, já,
devidamente conhecidos e reconhecidos pela formação cinematográfica do público;
modelos voltados para aproveitamento daquilo que a instituição cinematográfica
considerava “a nossa cultura”; modelos adaptados à rentabilidade econômica
de produção e difusão e às injunções técnicas e tecnológicas existentes no País.
Dessa integração de modelos foi feito o cinema brasileiro de gêneros.
Os gêneros foram emergindo como possibilidades de organização e estruturação
cinematográficas dentro de nossas possibilidades e precariedades, e foram se
organizando com o fim de garantir as expectativas do público.Gênero no Brasil é
a experiência que resulta desse enlace institucional que une a indústria do cinema com o modo de combinar as imagens e os sons.
16 O cinema da Boca do Lixo respondia por mais de 50% da produção brasileira da década de 70.
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REFERÊNCIAS

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