problematizações sobre como as mulheres são representadas em

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problematizações sobre como as mulheres são representadas em
PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE COMO AS MULHERES
SÃO REPRESENTADAS EM REVISTAS MASCULINAS
Marcela Pastana1
Ana Cláudia Bortolozzi Maia
INTRODUÇÃO
O aprendizado sobre a sexualidade é um processo contínuo que se dá
desde a infância por meio das mais diversas instâncias como a família, a
escola, o círculo social, os meios de comunicação. Neste processo está
envolvido o aprendizado sobre o corpo, o desejo, o prazer, os relacionamentos,
a masculinidade, a feminilidade; aprendizagem permeada por regras, modelos
e padrões, transmitidos e incorporados, tanto de forma explícita, quanto
implícita e sutil (LOURO, 2003; MAIA, 2010; MEYER, 2009).
Chauí, Kehl e Werebe (1981) discutem a idéia comum de que
atualmente há mais “liberdade sexual”, principalmente pelo fato de que
conteúdos, imagens, mensagens sobre sexo, corpo e erotismo permeiam o
nosso cotidiano, principalmente por meio da constante exposição nas diversas
mídias. O fato de que atualmente sexo é um assunto muito falado, mostrado,
discutido, escrito, exposto através de imagens, dicas, conselhos, notícias,
depoimentos, polêmicas, pode muitas vezes ocultar os elementos repressivos
da nossa compreensão da sexualidade hoje. Falar tanto sobre o assunto não
significa necessariamente uma compreensão mais ampla e abrangente da
sexualidade em sua diversidade, em seus aspectos múltiplos e plurais. A forma
como o assunto é abordado, pode, muitas vezes, restringir as possibilidades de
reflexão, do pensamento crítico, de escolhas feitas com autonomia no campo
1
Universidade Estadual Paulista- UNESP- Campus de Araraquara. Programa de Pós
Graduação em Educação Escolar na Linha Sexualidade, Cultura e Educação Sexual. Grupo de
Estudos e Pesquisa em Sexualidade, Educação e Cultura- GEPSEC. Financiamento: Bolsa
CNPQ. Email: [email protected]
1
da sexualidade.
Para pensar a sexualidade é importante considerarmos como a
compreensão
desta
é
atravessada
pelos
padrões
de
gênero.
Uma
representação predominante atualmente que é importante ser desconstruída é
a do desejo sexual masculino como naturalmente impulsivo, forte, intenso, que
resiste a ser contido e controlado. Esta compreensão, frequente no senso
comum, mas também presente em discursos científicos, inclusive em
campanhas preventivas (MEYER et. al., 2004), tem como um dos efeitos a
atribuição às meninas e mulheres da responsabilidade pelo cuidado com a
prevenção, já que os parceiros teriam “essencialmente” um impulso
incontrolável. Outro padrão presente nessa representação que é necessário
questionar é a pressuposição heteronormativa de que a prática sexual envolve,
sempre, um parceiro e uma parceira (ALTMANN, 2005, CASTAÑEDA, 2006;
MONTARDO, 2008; NOLASCO, 1993; WOLF, 1996).
O aprendizado da heterossexualidade enquanto norma, enquanto a
única forma positiva, valorizada, saudável e normal de se viver a sexualidade,
também se dá desde muito cedo, por meio das mais diversas instâncias. Entre
os meninos, desde a infância, é continuamente transmitido, através de
elementos como repreensões, piadas, apelidos depreciativos, xingamentos
etc., a associação entre qualquer característica relacionada culturalmente com
a feminilidade e a homossexualidade como algo negativo e reprovável
(CASTAÑEDA, 2006; FACCO, 2009; LOURO, 2009; NOLASCO, 1993).
Neste contexto social, que coloca a masculinidade como sinônimo de
heterossexualidade e de um desejo sexual sempre forte e presente, ocorre,
muitas vezes, o incentivo para que os homens, incluindo os adolescentes (ou
principalmente eles), entrem em contato com materiais como fotos, imagens e
vídeos que envolvam a exposição do corpo e da nudez feminina,
compreendidos como “didáticos” para que eles demonstrem e atestem o desejo
heterossexual, e, consequentemente, a masculinidade (CÂMARA, 2007;
DORAIS, 1996; NOLASCO, 1993; WOLF, 1992).
Ainda que a constante abordagem do tema sexo e a frequente
2
exposição de imagens de nudez possam remeter a ideia de uma maior
liberdade sexual, é necessário questionar o quanto essa "liberdade" se dá às
custas de uma forte assimetria entre os gêneros. A forma como o desejo, a
excitação e o prazer sexuais masculinos são o centro enquanto as mulheres
são posicionadas enquanto objeto deste desejo, desta excitação e deste prazer
reflete o quanto as revistas reiteram o padrão do masculino enquanto
dominante. As imagens das mulheres são construídas em nome da satisfação
masculina, de modo que, longe de serem representadas como iguais e ativas,
como sujeitos que também desejam, que também fantasiam, que também
buscam liberdade e prazer, a representação mais frequente é a do corpo
feminino enquanto mercadoria para o consumo masculino, legitimando e
naturalizando a compreensão da sexualidade feminina como marcada pela
passividade e submissão. (CÂMARA, 2007; FRATERRIGO, 2009; OSGERBY,
2001; WOLF, 1992).
Os artefatos midiáticos podem ser compreendidos enquanto pedagogias
culturais (CÂMARA, 2007; LOURO, 2004; MEYER, 2009) já que estes têm se
revelado como processos educativos potentes quando se trata de instituir
relações entre corpo, gênero e sexualidade. Por eles é estabelecida uma
relação pedagógica de ensino-aprendizagem, ainda que disfarçada e
permeada por entretenimento, diversões e humor, o que os torna ainda mais
atrativos e eficazes. Desta forma, torna-se importante a problematização sobre
os padrões de gênero presentes em artefatos midiáticos.
Câmara (2007) discute como as revistas podem ser consideradas
enquanto um roteiro para os desejos e prazeres masculinos, apoiado nos
padrões de masculinidade que circulam em nossa cultura. A autora aponta
como as imagens de nudez não apenas reproduzem, mas produzem os
desejos masculinos. O contato com materiais eróticos e pornográficos é
compreendido como parte da educação sexual masculina, e através deste
contato ocorre o aprendizado sobre qual é a beleza valorizada, o que nas
mulheres é tido como desejável de acordo com os padrões vigentes, em que
são consideradas como belas, no geral, mulheres jovens, magras e brancas.
3
A exposição do corpo feminino com o objetivo de despertar o desejo e a
excitação masculinos não ocorre apenas em materiais eróticos e pornográficos,
mas sim, nos mais diversos artefatos midiáticos, como anúncios publicitários,
programas de televisão, filmes etc. Os próprios produtos e mensagens voltados
para as mulheres muitas vezes representam um ideal feminino prioritariamente
voltado ao cuidado com o corpo e a beleza, com o estímulo para que as
mulheres busquem continuamente tornarem-se atraentes, agradarem e
conquistarem o olhar masculino, com o desejo masculino sendo representado
como um sinônimo de realização feminina (CASTAÑEDA, 2006; WOLF, 1992)
Na elaboração de um projeto de Educação Sexual é importante buscar
conhecer de que forma os alunos buscam informações e quais são as
principais representações presentes de sexualidade nos materiais aos quais
eles têm acesso. Realizamos um levantamento com 100 adolescentes entre 11
e 16 anos do Ensino Fundamental de uma Escola Pública de uma cidade no
interior paulista, 50 garotas e 50 garotos, sobre quais são os materiais através
dos quais eles se informam sobre sexualidade, corpo, relacionamentos e
adolescência. Neste levantamento, os principais materiais mencionados pelos
meninos foram a revista masculina Playboy e os sites de conteúdo erótico e
pornográfico, enquanto, para as meninas, os principais materiais mencionados
foram as revistas femininas para adolescentes como Capricho e Todateen.
Perguntamos também sobre quais os assuntos de maior interesse para eles
nesses materiais, em que o tema mais mencionado pelas meninas foi “dicas de
cuidado com a aparência”, e, para os meninos “fotos atraentes”, o que também
exemplifica o padrão assimétrico em que o masculino é representado como
desejante e a feminilidade associada à busca por agradar. Esses dados foram
importantes para sinalizar que seria relevante conhecer melhor os materiais
utilizados pelos adolescentes para se informarem sobre sexualidade, bem
como identificar os padrões que permeiam a transmissão de informações. É
nesse sentido que buscaremos, neste trabalho, problematizar como as
mulheres são representadas nas revistas masculinas.
4
OBJETIVO
Identificar como as mulheres são representadas nas revistas masculinas e
discutir quais são os padrões relacionados à sexualidade e ao gênero
presentes nestas representações.
MÉTODO
Este trabalho é parte de uma pesquisa de mestrado em andamento,
“Repressão às Avessas: Sexualidade, gênero e prazer em revistas masculinas
e femininas”.2 Trata-se de uma pesquisa qualitativa-descritiva em que foi
realizada a análise de conteúdo (BARDIN, 1977) de edições de 12 diferentes
revistas femininas e masculinas publicadas em fevereiro de 2012. Neste
trabalho apresentaremos resultados identificados na análise de quatro revistas
masculinas voltadas ao público heterossexual: Playboy, Sexy, Vip e Men’s
Health.
Os resultados foram organizados nas seguintes categorias temáticas: 1)
Redução da mulher ao corpo e apagamento da mulher enquanto sujeito; 2)
Centralidade do prazer masculino de olhar, julgar e avaliar; 3) Compreensão
funcionalista e instrumental do prazer sexual feminino. 4) A possibilidade de
sentir prazer associada ao fato de corresponder aos padrões estéticos vigentes
e 5) Naturalização da violência.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
1) Redução da mulher ao corpo e apagamento da mulher enquanto sujeito
A presença das mulheres nas revistas masculinas, como objeto de
desejo e de prazer, diz respeito principalmente à exposição do corpo, em poses
sensuais com nudez total ou parcial. Mesmo que sejam feitas perguntas, isso
2
Dissertação de Mestrado em andamento da primeira autora, sob orientação da segunda
autora. Programa de Mestrado em Educação Escolar, bolsa CNPQ.
5
não corresponde a um interesse sobre o que elas têm a dizer sobre si mesmas,
mas sim, na maioria das vezes, o foco das questões feitas também é o corpo
e/ou a disponibilidade em realizar os desejos sexuais masculinos (CÂMARA,
2007; CASALI, 2006; FRATERRIGO, 2009; OSGERBY, 2001; WINESKI,
2007). Exemplos:
"Qual a parte do seu corpo que eles mais apreciam? O bumbum."
(SEXY, fevereiro de 2012, p. 40, Ensaio fotográfico)
"Qual é a parte do seu corpo que você mais gosta? No meu corpo? Ah,
eu adoro o meu bumbum". (VIP, fevereiro de 2012, p. 27, Presentão
para o Namorado)
"E por que acha que seu bumbum merece tanta atenção? Sendo bem
sincera, sem modéstia, acho que é porque ele é todo natural. Eu sempre
considerei a melhor parte do meu corpo." (PLAYBOY, fevereiro de 2012,
p. 84, Bumbum de Ouro).
A importância de problematizar como há a redução da representação
das mulheres à representação do corpo feminino pode ser evidenciada pelo
fato de que, enquanto nas entrevistas com homens eles são interrogados sobre
suas experiências, histórias de vida, trajetórias pessoais e profissionais,
realizações e conquistas, nas entrevistas com mulheres as perguntas, no geral,
focam nas questões da beleza e da sexualidade (CÂMARA, 2007; CASALLI,
2007; FRATERRIGO, 2009; WINESKI, 2007). No trecho a seguir de uma
entrevista da Revista Playboy com a apresentadora de um programa televisivo
sobre esportes, Renata Fan, podemos ver como, mesmo quando há o
movimento da entrevistada justamente de contrariar a ênfase no corpo, a
revista, após apresentar a resposta, enfatiza novamente o corpo:
“No Sul, as mulheres, além de bonitas, são inteligentes. E acho que
essa é uma das minhas qualidades também”, disse ela à Playboy. O que
nos faz lembrar de uma frase que não cansamos de citar por aqui “Dá
gosto de ver tanta inteligência se movendo em um corpinho como
esse...” (PLAYBOY, fevereiro de 2012, p. 52, Entrevista com Renata
6
Fan)
Muitas vezes a companhia feminina, a convivência e os relacionamentos
com as mulheres são desvalorizados, como se a única coisa nas mulheres que
interessasse aos homens fosse o corpo, de modo que as mulheres enquanto
sujeitos são apagadas, fragmentadas e reduzidas às partes do corpo que
despertam o interesse e a excitação masculina, como no trecho a seguir:
"Bunda boa é... Aquela que você olha e esquece o resto do corpo."
(PLAYBOY, fevereiro de 2012, p. 16, Caro Playboy).
Podemos notar, neste exemplo, como mesmo o corpo é apagado, já que
a bunda é considerada boa quando o prazer de olhá-la faz com que haja o
esquecimento do corpo como um todo.
A forma como há uma compreensão coisificada do corpo feminino pode
ser exemplificada pelo modo como na seção "Sex machine", da Revista Sexy,
o anúncio de um carro destaca que o desenho deste lembra o bumbum
feminino:
"Se um carro pode ser considerado sensual, talvez a novidade da
Peugeot seja a sensualidade em forma de carro. Ou melhor, um carro
com formas sensuais. Eu explico: o design da Peugeot RCZ ostenta
uma dupla ondulação no teto e no vidro traseiro que lembra a
preferência nacional, o bumbum." (SEXY, fevereiro de 2012, p. 94, Sexy
Machine)
A forma como a redução das mulheres ao corpo é muitas vezes
naturalizada e legitimada por meio do humor pode ser exemplificada pela
resposta dada a um leitor na seção "Testosterona" da Revista Sexy:
"Não entendo por que grupos feministas fazem protestos nuas. Você
não acha isso muito contraditório?
Já desisti de tentar entender a cabeça de feminista. Mas o que fica
claro é que, como toda mulher, elas só querem chamar atenção, e a
única forma de prestarmos atenção numa mulher é quando elas estão
peladas. Já que o forte delas não é o raciocínio e a lógica, elas fazem
esses protestos nuas e acham que estão sendo coerentes." (SEXY,
7
fevereiro de 2012, p. 18, Testosterona)
A afirmação "a única forma de prestarmos atenção numa mulher é
quando elas estão peladas" evidencia a importância de problematizarmos o
quanto pode ser violento o processo de construção da imagem das mulheres
nas revistas masculinas.
2) Centralidade do Prazer Masculino de Olhar, Julgar e Avaliar
Nas revistas, há a centralidade do prazer de olhar masculino e, muitas
vezes, além do prazer de olhar, a presença das mulheres nas revistas também
está relacionada com o prazer masculino de julgar, avaliar e selecionar. Por
exemplo, na Revista Playboy de fevereiro, o tema principal da edição é o
resultado do concurso "Preferência Nacional", que teve como proposta eleger a
bunda mais bonita do Brasil. A mulher cuja bunda foi vencedora foi a capa da
revista desta edição, com um ensaio fotográfico de 15 páginas e um pôster,
com o título "Bumbum de Ouro".
Neste concurso, que começou em outubro do ano anterior, as mulheres
enviavam fotos para se candidatar ao prêmio de "melhor bunda". No editorial é
relatado esse processo, com o título "Talento Abundante":
"Recebemos centenas de inscrições e depois tivemos de observar
cuidadosamente cada uma das candidatas para selecionar as bundinhas
mais redondas, durinhas e gostosas." (PLAYBOY, fevereiro de 2012, p.
8, Entre Nós)
Este trecho ilustra um movimento frequente nas revistas masculinas, o
movimento em que os homens são posicionados na função de olhar, julgar,
avaliar,
classificar,
selecionar
as
mulheres
segundo
seus
critérios,
principalmente com relação à beleza. Neste caso, os critérios diziam respeito à
escolha das "bundinhas mais redondas, durinhas e gostosas".
Este
movimento
pode
ser
também
exemplificado
pela
seção
"Coelhinhas", publicada todos os meses, em que são apresentadas em cada
edição fotos de três mulheres que concorrem ao concurso "Coelhinha do Ano",
que tem como prêmio ser capa da Playboy. As fotos são enviadas pelas
8
próprias candidatas e, em cada edição, os leitores da revista devem avaliá-las,
selecionarem quais preferem para votarem por meio do site da revista. Nesta
seção é reforçada a posição do homem enquanto quem observa, avalia, julga
de acordo com o próprio desejo, enquanto as mulheres são posicionadas como
objetos deste desejo. O desejo da mulher é colocado como o desejo de ser
desejada: em busca da aprovação, de serem a selecionadas, as candidatas
respondem perguntas onde contam um pouco sobre si mesmas, destacando
características do corpo, fantasias e práticas sexuais que já realizaram ou
estão dispostas a realizar e que podem provocar os leitores. É possível
comparar esta seção com uma vitrine, uma prateleira, em que diferentes
produtos são oferecidos para serem consumidos, com um correspondente
apelo publicitário de cada uma para vencer a concorrência. Há também
concursos e seções fixas para as mulheres serem votadas nas outras revistas,
como na seção “Pimentinhas”, da Revista Sexy.
3) Compreensão funcionalista e instrumental do prazer sexual feminino
As matérias que abordam o prazer feminino não se referem à importância
das mulheres serem ouvidas e reconhecidas como sujeitos de desejo, mas sim,
ao oferecimento de dicas e prescrições que descrevem uma espécie de “modo
de funcionamento” do corpo feminino, com recomendações sobre como,
quando, onde tocar e estimular, como se o corpo fosse um instrumento, uma
máquina a ser manuseada. O trecho a seguir, da Revista Men’s Health,
exemplifica esta forma de representar o prazer feminino:
"Aqui, você tem um dossiê completo de truques e técnicas para ter mais
sexo que transformaram essas mulheres comuns em sedutoras
máquinas de amor. Divirta-se. E inspire-se." (MEN'S HEALTH, fevereiro
de 2012, p. 47)
4) A possibilidade de sentir prazer associada ao fato de corresponder aos
padrões estéticos vigentes
Como discutem Câmara (2007), Casalli (2007), Fraterrigo (2009),
9
Wineski(2007), a exposição de corpos femininos que reproduzem os padrões
de beleza culturalmente valorizado não apenas correspondem aos desejos
masculinos, mas sim, educam e constroem estes desejos. Além da
representação dos corpos que correspondem aos padrões vigentes como os
únicos valorizados e desejáveis, é possível também notar que as revistas
associam a possibilidade da mulher sentir prazer com o fato de estarem ou não
de acordo com os modelos de beleza. Este movimento pode ser exemplificado
pela matéria "Derrape nas Curvas", da Revista Men's Health. A matéria é como
uma espécie de "manual de instruções" do corpo da mulher, em que as formas
do corpo feminino são categorizadas em 4 tipos: Retangular, pera, triângulo
invertido e violão. Com o subtítulo "Acerte no Shape", cada tipo é descrito e
ilustrado, e, a partir de medidas genéricas do ombro, da cintura e do quadril, é
definido o que elas gostam de fazer nas relações sexuais, que posições
preferem e se sentem desinibidas ou não sexualmente, como pode ser notado
no trecho a seguir:
"A mulher violão é o tipo considerado mais feminino e atraente por
apresentar curvas bem desenhadas e proporcionais” (...). Isso tende a
significar que não existirão muitos “não me toques” na hora da transa.
(...)A mulher que se sente bem com a autoimagem não tem restrições no
sexo " (MEN’S HEALTH, fevereiro de 2012, p. 89, Derrape nas curvas)
Aqui o nível de "feminilidade" e de "atratividade" também é mensurado a
partir do formato do corpo, como se esses elementos fossem definidos por
atributos naturais.
Wolf (1992) discute sobre a relação entre a forma como as mulheres são
representadas e a forma predominante atualmente de como as mulheres
aprendem sobre o próprio desejo, a própria sexualidade e o desejo e a
sexualidade masculinas. Desde cedo a mulher aprende a se enxergar não
como sujeito do desejo, mas a olhar para o próprio corpo pensando em como
este será refletido no olhar dos homens. Não é incentivada a reconhecer o
próprio desejo, mas sim, o que levaria os homens a desejá-la. Todo o corpo da
mulher é erotizado, não para as mulheres, mas para os homens, a partir de
10
padrões ideais inalcançáveis. Só são erotizados o corpo da mulher e o desejo
do homem, de forma que a mulher se torna excessivamente dependente da
excitação masculina para o próprio prazer e o homem insensível à excitação
feminina.
5. Naturalização da Violência
Quando temas como estupro, assédio, violência sexual e doméstica são
abordados em revistas, muitas vezes eles são amenizados, tratados como
menos importantes, ou mesmo colocados como
motivos de piadas,
naturalizando e legitimando a violência de gênero. Esta é uma questão muito
importante de ser discutida e combatida, com problematizações sobre como,
mesmo quando as afirmações agressivas e depreciativas se dão em tom de
humor, é preciso considerar com seriedade a necessidade de se desnaturalizar
a violência. Um exemplo de como a violência é representada pelas revistas
pode ser identificado na piada a seguir, publicada na seção “Gozadas”, da
Revista Vip:
"Remédio caseiro.
A mulher vai ao médico:- Doutor, eu não sei o que fazer. Toda vez que
meu marido chega em casa bêbado, ele me enche de porrada.
- Eu tenho um remédio muito bom para isso. Quando seu marido chegar
em casa embriagado, basta que você o espere com um copo de chá de
camomila, fazendo bochecho com o chá. Apenas faça bochecho e
gargareje, sem parar.
Duas semanas depois, ela retorna ao médico e parece ter nascido de
novo:- Doutor, sua ideia foi brilhante! Sempre que meu marido chega em
casa bêbado, eu gargarejo e faço bochechos com o chá de camomila e
as agressões não aconteceram mais!
- Viu como manter a boca fechada ajuda?" (VIP, fevereiro de 2012, p.
12, Gozadas)
As agressões do marido, que chega em casa bêbado e "enche de
porrada" a esposa, é justificada, a partir do "remédio" receitado pelo médico,
11
pelo fato da mulher falar demais. Assim, a mulher é culpabilizada pela violência
sofrida, e este movimento ainda é colocado como engraçado, como uma piada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um dos principais desafios para projetos de Educação Sexual é a
discussão e a problematização de padrões normativos e repressivos, de
preconceitos, de divisões que geram hierarquias, exclusões e estigmatizações.
Nesse sentido, é muito importante considerar a influência exercida pelos meios
de comunicação. Por meio de uma linguagem repleta de diversão, sedução e
enetretenimento, a mídia contribui de forma intensa para a reprodução e a
naturalização destes elementos. (CÂMARA, 2007; LOURO, 2004; MEYER,
2009)
A naturalização de padrões normativos e da desigualdade de gênero
não ocorre apenas nos meios de comunicação, mas nas mais diversas
situações e contextos do cotidiano, inclusive na escola. Mas a busca pelo
desenvolvimento de uma visão crítica dos meios de comunicação se revela
também importante porque, ao desenvolver uma postura de questionamento e
problematização do que é transmitido nos discursos midiáticos, esta postura
também pode se estender para outros momentos em que os padrões são
reproduzidos e reforçados.
É importante considerar como as revistas masculinas cumprem o papel
de educar os desejos e olhares masculinos através da construção de cenários
para a masculinidade coerentes com os padrões vigentes, principalmente no
que diz respeito às representações das mulheres e das práticas sexuais
heterossexuais. Dessa forma, as revistas são um exemplo de como a
masculinidade é alvo de constantes e reiterados investimentos, vigilâncias e
normalização, ainda que tantas vezes seja afirmada como algo "natural", fruto
da "essência" e dos "impulsos" masculinos. (CÂMARA, 2007; FRATERRIGO,
2009; LOURO, 2009; MEYER, 2009; NOLASCO, 1993; WINESKI, 2007;
WOLF, 1996)
12
Os resultados identificados demonstram como a forma como as
mulheres são representadas nas revistas masculinas evidencia a importância
da discussão sobre padrões normativos de sexualidade e gênero. É preciso
problematizar, questionar e buscar estabelecer um olhar crítico para
representações como:
- a heterossexualidade enquanto norma, enquanto a única forma válida de se
viver a sexualidade;
- a compreensão da masculinidade como sinônimo de um desejo sexual
sempre forte e presente;
-a representação de que uma mulher precisa corresponder aos padrões
estéticos vigentes para ser desejada e para sentir prazer;
- a compreensão do corpo como uma máquina a ser manuseada, com a
associação do prazer ao cumprimento de regras e técnicas;
- a representação do homem enquanto sujeito do olhar, do desejo, em posição
de avaliar, julgar e selecionar as mulheres e da mulher enquanto submissa e
passiva ao desejo e ao olhar masculino, e não como sujeito de desejo.
Consideramos o espaço dos projetos de Educação Sexual como
importante para que haja a problematização destes padrões.
REFERÊNCIAS
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226 f. Tese (Doutorado em Educação) – Departamento de Educação, Pontifícia
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BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
CÂMARA, A. P. Gênero e Sexualidade na Revista Sexy: Um Roteiro para a
Masculinidade Heterossexual. Dissertação de Mestrado, programa de PósGraduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Porto Alegre, 2007.
CASALI, C. Revistas: configuração do relacionamento entre homem e mulher
como estratégia de segmentação do público. 2006. Dissertação de mestrado,
13
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Comunicação, Universidade do
Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2006.
CASTAÑEDA, M. O machismo invisível. São Paulo: A Girafa, 2006.
CHAUÍ, M.; KEHL, M. R. & WEREBE, M. J. Educação Sexual: instrumento de
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DORAIS, M. O Erotismo Masculino. São Paulo: Loyola, 1994.
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JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.) Diversidade Sexual na Educação:
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MEYER, D. E. E.; SANTOS, L. H. S.; OLIVEIRA, D. L. ; WIHELMS, D. M.
'Mulher sem-vergonha' e 'traidor responsável': problematizando representações
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WOLF, N. O mito da beleza. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
14
WOLF, N. Promiscuidades: A luta secreta para ser mulher. Rio de Janeiro:
Rocco, 1996.
Revistas Analisadas
REVISTA MEN’S HEALTH. São Paulo: Editora Abril, fevereiro de 2012.
REVISTA PLAYBOY. São Paulo: Editora Abril, fevereiro de 2012.
REVISTA SEXY. São Paulo: Editora Rickdan, fevereiro de 2012.
REVISTA VIP. São Paulo: Editora Abril, fevereiro de 2012.
15

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