Módulo_Vidas_Secas - Programa Círculos de Leitura
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Módulo_Vidas_Secas - Programa Círculos de Leitura
Módulo Vidas Secas Graciliano Ramos “O mundo interno fértil em contraponto à aridez da realidade externa” 2 Índice Introdução, 03 Capítulo Mudança, 05 Capítulo Fabiano, 07 Capítulo Cadeia, 09 Capítulo Sinhá Vitória, 10 Capítulo O Menino Mais Novo, 11 Capítulo O Menino Mais Velho, 12 Capítulo Inverno, 13 Capítulo A Festa, 13 Capítulo Baleia, 17 Capítulo Contas, 18 Capítulo O Soldado Amarelo, 19 Capítulo O Mundo Coberto de Penas, 20 Capítulo A Fuga, 22 3 INTRODUÇÃO Fabiano é aquele homem que possui em si as três dimensões de que fala o filósofo Luc Ferry, em Aprender a Viver: a primeira é a “a inteligência do que é – o que se chama comumente de teoria”, a segunda, “o que deveria ser, ou o que se deveria fazer – o que se designa habitualmente pelo nome de moral e ética”; e a terceira é a “busca da salvação”, ou “sabedoria”. As duas primeiras dimensões têm como objetivo alcançar essa terceira (p.30). Como nossa vida humana é finita, sentimos a necessidade de lhe dar um sentido maior, e para isso é necessário, diz Ferry, integrar essas três dimensões. Fabiano demonstra ter essa “inteligência do que é”, uma profunda capacidade de observação a fim de teorizar e agir a partir do que observa, como quando, no meio da caatinga deserta, deduz que encontrará água se cavar onde há lama. Esse é um conhecimento que ele retira da observação: “Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo” (p.14) 4 No seu diálogo interno, enxerga onde há injustiças e pratica a justiça, ao não se vingar do soldado amarelo, alguém que foi muito injusto com ele. Fabiano pregou nele os olhos ensangüentados, meteu o facão na bainha. Podia matá-lo com as unhas. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo? O rosto de Fabiano contraía-se medonho, mais feio que um focinho. Hem? Estava certo? Bulir com as pessoas que não fazem mal a ninguém? Por quê? (p.103) Fabiano relembra todo o episódio vivido com o soldado, e chega a se questionar: “Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada neles?”. E o próprio Fabiano se responde: “Não iria” (p. 105). Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não 5 valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força. (...) Havia muitos bichinhos assim fracos e ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins (...) Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. (p. 107) A salvação do Fabiano vem da sua capacidade de se pôr a caminho para uma vida melhor porque no seu íntimo acredita que ela seja possível: Pouco a pouco, uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles (...) As palavras de Sinhá Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de Sinhá Vitória, as palavras que Sinhá Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. 6 Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. (p. 127-128) Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como Seu Tomás da Bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la. Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem. (p. 24). Fabiano conseguiu realizar essas três dimensões porque contava com o apoio de sua mulher, Sinhá Vitória, que encarna o ideal feminino, como nos fala o filósofo Ortega y Gasset. Para Gasset, o homem que é capaz de autêntico amor leva desde sua primeira juventude, dentro de si, certos dons de feminilidade, um ideal préexistente do que seja o feminino. O papel da mãe é importante, mas não se pode esquecer que a mulher tem um tremendo dever e compromisso perante a história, a pátria e a sociedade, que vai além da maternidade. Cabe a ela exercer sua feminilidade, encarnando para o homem que a ama esse ideal feminino. Quando esse encontro se dá, e essas funções são preenchidas, homem e mulher 7 se realizam como seres humanos. Fabiano e Sinhá Vitória se apóiam e se compreendem mutuamente, conseguindo assim realizar a travessia. Por isso são nossos heróis. Em cima pôs a trouxa. Fabiano aprovou o arranjo, sorriu, esqueceu os urubus e o cavalo. Sim senhor. Que mulher! (...) E andavam para o sul, metidos naquele sonho. (p. 126-127) Ao lermos Vidas Secas, tornamos a história de Fabiano e sinhá Vitória nossa história. A literatura, como toda arte, tem essa função integradora, mediadora entre a nossa experiência e a de nossos antepassados. Muitas vezes nossos pais e avós não nos contam o que viveram, talvez por não quererem transmitir seus sofrimentos. Ou, quem sabe, não encontram as palavras. Isso nos priva de receber um patrimônio vivo. Mas quando através da literatura sua historia passa a ser conhecida preenchemos tanto as lacunas individuais quanto sociais, fortalecendo assim nossa identidade. 8 Capítulo Mudança O livro começa com a imagem de uma família fugindo da seca, atravessa o sertão que “estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas” (p. 10). Fabiano atravessa a caatinga desértica com a família porque não tinha escolha – onde estavam havia apenas morte. Pensamos que existe uma diferença enorme entre ser um imigrante por escolha, e ser um imigrante forçado a sair do seu lugar de origem, para sobreviver. Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos andavam “cansados e famintos” e “fazia horas que procuravam uma sombra” (p.9). Há um momento na travessia que Fabiano precisa ser muito firme, duro até, para garantir a sobrevivência da família. É quando o menino mais velho, exausto, não consegue mais andar. “Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde” (p. 10). Vemos Fabiano como o líder da família, um bom líder, que cumpre sua função de não deixar que ninguém dificulte a tarefa que precisa ser realizada – no seu caso, guiar o grupo para onde estivessem todos a salvo da morte. O líder precisa ser firme. Se alguém do grupo esmorecesse, como aconteceu com o menino, contagiaria todos. Se parassem de caminhar, morreriam. Vemos também como Fabiano, que num primeiro momento diz “anda, excomungado” para o filho, com raiva 9 do que lhe parece teimosia, consegue depois ouvir as palavras de ânimo de Sinhá Vitória, e assim percebe que o menino não tem forças, sente pena e o carrega nas costas: Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantouse, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis. Quando Sinhá Vitória “lançou de novo a interjeição gutural” e “designou os juazeiros invisíveis”, ela apontou o caminho da mesma forma que fez Fabiano ao indicar o “bebedouro” no último capítulo (A Fuga), imaginando que encontrariam sombra e água. Poder imaginar que há algo bom à espera lhes dá forças para prosseguir na 10 marcha, é um recurso interno que tanto Fabiano quanto Sinhá Vitória possuem. Nos momentos mais difíceis da travessia, vemos como Sinhá Vitoria também tem recursos internos para buscar lembranças de acontecimentos bons do passado, “pensava em acontecimentos antigos, que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão” (pg. 11). Estava tudo tão árido, tão seco, a morte rondava aquele lugar, “o vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos” (pg. 10). Mas “Fabiano queria viver” (pg. 14). Desde o primeiro capítulo, vemos sua força de vida nas condições mais inóspitas. Quando Fabiano consegue encontrar água debaixo da lama no sítio abandonado, sente “uma alegria doida” lhe encher o coração, consegue imaginar o sertão ressuscitado, verde de novo, e já se imagina vivendo lá com sua família: “A caatinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta (...) Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, Sinhá Vitória vestiria saias de ramagens vistosas” (pg. 15). Um pouco de água e pedaços de preá, trazidos pela Baleia, não somente “adiariam a morte do grupo” (p. 14); foram o suficiente para carregar Fabiano com um novo ânimo. 11 Poder sair dessa situação de morte é percebido como um milagre, um milagre de ressurreição: Eram todos felizes. Sinhá Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de Sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de Sinhá Vitória engrossariam, a roupa encarnada de Sinhá Vitória provocaria a inveja das outras caboclas (...) A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo (...) Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam à cara triste de Sinhá Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro de cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A caatinga ficaria verde (p. 16). O instinto de sobrevivência e a capacidade de imaginar foram fundamentais para que Fabiano e Sinhá Vitória conseguissem atravessar com os filhos aquelas condições extremas. Poder imaginar é um estado da alma. Quem imagina, consegue trazer o futuro para o tempo presente. Poder visualizar um futuro melhor, nos ajuda a suportar as dificuldades presentes. Desde o início desta obra vemos como Fabiano é nosso herói, pois realiza um esforço sobre-humano ao conseguir fazer a travessia com sua família 12 justamente por acreditar que é possível ter uma vida melhor. Ele conseguiu por ter uma predisposição interna para a vida, um instinto de proteção e sobrevivência. Capítulo Fabiano Se num primeiro momento pode nos causar estranheza que Fabiano se chame um “bicho”, compreendemos depois que na travessia tão perigosa da caatinga é fundamental que Fabiano apele para seu instinto animal de sobrevivência. Ele se orgulha dessa força instintiva que o ajudou a salvar sua família e recomeçar a vida em um novo lugar: “Você é um bicho, Fabiano (...) Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha” (p. 19). Fabiano se preocupa com a curiosidade e a educação das crianças, pois acredita que naquele momento não eram o que lhes garantiria a sobrevivência. Ele admira o Seu Tomás da Bolandeira, que “falava bem, estragava os olhos em cima dos jornais e livros”, um homem a quem “todos obedeciam” sem que ele tivesse que mandar (p.23). Mas também reconhece que Seu Tomás não estava preparado para sobreviver à seca: “Pois viera a seca, e o pobre do velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o 13 couro às varas, que pessoa como ele não podia aguentar verão puxado” (p.22). Fabiano teme que os filhos se enveredem pelo caminho do Seu Tomás, não porque não admire quem tem estudos, e sim porque naquele ambiente os recursos necessários para a sobrevivência eram outros. Mas consegue imaginar que se as condições mudassem e “tudo andasse direito”, seus filhos deveriam sim estudar, falar, perguntar, “encher-se de caprichos”: Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim do Seu Tomás da Bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estômago doente e das pernas fracas. Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito...Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da Bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquele perigos, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia deles. (p.2425) 14 Fabiano tem consciência da exploração a que é submetido. Ele se submete aparentemente a um patrão injusto e autoritário, como voltaremos a ver no capítulo “As Contas”, só que sabe o que está sendo feito com ele, e não concorda. Mas tem força interna para se segurar e fingir respeito, pois sabe que, se reagisse seria expulso da terra, perderia o trabalho e as condições de manter sua família: O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida? (p. 23) Naquelas circunstancias ele precisava se identificar com o animal, para poder sobreviver. Em seu diálogo interno vemos a vontade que tem de se manter vivo. Imagina o dia em que vai sair da toca, sonha com um futuro diferente, sem deixar de reconhecer os limites de 15 sua condição atual, Se há algo como a “sorte”, Fabiano quer transformá-la, ter uma vida melhor para si e sua família: Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como Seu Tomás da Bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la. Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem. (p. 24) Capítulo Cadeia Nesse capítulo, Fabiano é humilhado, apanha e é preso injustamente por um soldado. Vemos seu diálogo interno quando está na cadeia. Num primeiro momento, ele não acredita que a polícia bateu nele sem motivo nenhum, por simples abuso de autoridade, pensa que devem tê-lo confundido com alguém. “Não queria capacitar-se de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão isso” (p.32). Depois enxerga a perversidade no ato do soldado, mas não culpa o governo, a instituição para a qual o soldado trabalha. Imagina o “governo” como algo distante e 16 perfeito, que não poderia errar, mas que não sabia escolher seus funcionários. Fabiano tem plena consciência da injustiça que está sofrendo: Então por que um sem-vergonha desordeiro se arrelia, botase um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças (...) Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? (...) E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava-se na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza (...) Por que vinham bulir com um homem que só queria descansar? (...) Estava tudo errado. (p.33) Fabiano pensa que Seu Tomás da Bolandeira, por saber falar bem, ter o domínio da palavra, conseguiria se explicar melhor, talvez se livrar daquela situação de injustiça. Mas por mais que ele, Fabiano, se sinta vulnerável por não ter palavras com as quais se defender do soldado – “Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia 17 explicar-se” – sabe não ser justo o que lhe fizeram: “Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito?” (p. 35). Fabiano percebe que o soldado amarelo é um fraco, não sobreviveria na caatinga – “Imaginou o soldado amarelo atirando-se a um cangaceiro na caatinga... Não dava um caldo” (p. 34). Por mais que não tenha ido à escola, Fabiano tem sabedoria para reconhecer a injustiça que sofre, sabe que esse abuso é feito somente com as pessoas mais pobres que, como ele, não podem se defender. Pessoas que maltratam quem não pode se defender na verdade são muito fracas – uma fraqueza que aparece mascarada de força. Fabiano tem um desejo intenso de atacar essa injustiça, e esse “desejo de justiça” demonstra que ele é um homem ético. Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la (...) Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas. (p. 35-36) 18 Fabiano consegue fazer uma crítica profunda à injustiça na sociedade, consegue enxergar o ato do soldado como parte de um problema maior. Naquela situação, a única força que teria para revidar seria a força física, e essa só tornaria as coisas piores para ele e sua família. Ele demonstra ser um verdadeiro herói, pois se contém, suportando a injustiça por amor a sua família, para preservá-la. Ele reconhece que, sem essa âncora, entraria num bando de cangaceiros para se vingar, não somente contra o soldado, “um infeliz”, mas contra os homens que mandavam no soldado e permitiam que injustiças como essa fossem feitas. O amor a família lhe permite suportar as duas calamidades que estão no seu caminho, a seca e a injustiça social. Se não fossem eles... Agora Fabiano conseguia arranjar as idéias. O que o segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. 19 Não. O soldado amarelo era um infeliz, que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria um para semente. Era a idéia que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha. (p.37) Capítulo Sinhá Vitória Esse capítulo ilustra que a vontade de ter uma cama firme, de lastro de couro, “igual a de Seu Tomás da Bolandeira...feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxó”, representa seu desejo de estabilidade, segurança para a família. Sinhá Vitória “só tinha medo da seca” (p. 43). A experiência vivida na seca deixou marcas, lembranças muito tristes de quando quase haviam morrido. Por isso, quando ouve a palavra “papagaio”, Sinhá Vitória tenta afastar a lembrança daquela última travessia no sertão, em que precisaram matar a ave de estimação para alimentar a família: Pobre do papagaio (...) Sinhá Vitória nem queria lembrar-se daquilo. Esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido depois que chegara à fazenda. A referência aos sapatos abriralhe uma ferida – e a viagem reaparecera. As alpercatas dela 20 tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do papagaio. (p.43) Fabiano busca força interna na lembrança da mulher e dos filhos para não cometer uma loucura na cadeia, e Sinhá Vitória busca forças na religiosidade, nos cuidados da casa e na confiança em Fabiano para afastar o medo de que a seca volte: Chegou à porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras. Suspirou. Deus não havia de permitir outra desgraça. Agitou a cabeça e procurou ocupações para entreter-se. Tomou a cuia grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de água o caco das galinhas, endireitou o poleiro (...) Ouviam-se distintamente os roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles influiu nas ideias de Sinhá Vitória. Fabiano roncava com segurança. Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe (...) Outra vez Sinhá Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro (...) Tudo ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que estalava, o toque dos chocalhos, até o zumbido das moscas, davam-lhe sensação de firmeza e repouso. (p.44) 21 Capítulo O Menino Mais Novo Esse capítulo mostra como funciona a mente da criança. Desde pequena ela possui recursos psíquicos próprios. Essa capacidade é ilustrada pela imaginação do menino mais novo, que, ao ver duas nuvens, as imagina como sendo Fabiano e sua égua alazã: “Duas grandes se juntaram – e uma tinha a figura da égua alazã, e a outra representava Fabiano”(pg. 51). É importante ver que na saúde a criança tem muitos recursos internos. Os pais às vezes se esquecem de como é rica a mente infantil. Outro tema presente é a figura do pai como modelo, o primeiro herói para a criança: “E precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano (....) Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tintilando (...) e voaria na caatinga como pé de vento, levantando poeira” (p.53) No primeiro momento a criança quer ser como o adulto que ela tanto admira, por isso na imaginação do menino mais novo ele e seu pai se misturam, são um só: “certamente era arriscado, mas parecia que ali em cima podia virar Fabiano ... A égua alazã e o bode misturavamse, ele e o pai também” (p. 50). Fabiano assume qualidades de um ser mágico, de um ser divino para o menino: 22 Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração. Metido nos couros de perneiras, gibão e guarda-peitos,era a criatura mais importante do mundo. As rosetas das esporas dele tilintavam no pátio, as abas do chapéu, jogado para trás preso debaixo do queixo pela correia, aumentava-lhe o rosto queimado, faziam-lhe um circulo enorme em torno da cabeça. (p.47) A criança pode suportar as frustrações por meio da imaginação por um tempo. Vemos como o fluxo de consciência do menino mais novo retrata esse processo. Depois que cai, tentando ser Fabiano, é alvo da zombaria do irmão mais velho. Ao sentir a frustração da queda, “a humilhação atenuou-se pouco a pouco e morreu” (pg. 53), na medida em que vai dizendo para si próprio que “precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano”(pg. 53). O menino se consola da frustração e da humilhação pensando que a solução está no futuro, quando crescer e se tornar tão grande quanto seu pai, que é seu herói. Capítulo O Menino Mais Velho Quando o menino mais velho vai perguntar à Sinhá Vitória o que é o inferno, ela lhe responde que é um “certo lugar ruim demais” (p. 23 55). Quando ele então pergunta a ela, “a senhora já viu?”, Sinhá Vitória se zanga, acha-o insolente e lhe dá um cocorote. O menino sai indignado e vai se consolar com a cachorra Baleia e seus pensamentos. Dentro de si, ele não tem a imagem do que seja um inferno, mesmo tendo vivido um tempo muito ruim fugindo da seca, em que quase morreram de fome e sede: “Todos os lugares conhecidos eram bons” (p. 58). Na Divina Comédia, Dante retrata o inferno como aquele lugar em que sempre tudo é o mesmo – essa é a punição: encontrar-se sempre repetindo o mesmo, sem saída, sempre igual. Como ele e sua família conseguiram agüentar a travessia na caatinga, o menino mais velho não vê o passado como algo ruim como o inferno, pois os problemas haviam sido resolvidos. Ele se lembra até daquele momento em que havia parado na marcha com a família, por não agüentar mais de cansaço (cap. “A Mudança”). Recorda-se quando caíra no chão, os pés queimados, “escurecera de repente”, e estava tão próximo da morte que “mal sentia as pancadas que Fabiano lhe dava” para reanimá-lo. Naquele tempo, pensa, “o mundo era ruim. Mas depois se consertara, para bem dizer as coisas ruins não tinham existido” (p.59) Isso explica o olhar que lança para o mundo, acreditando que as dificuldades sempre seriam vencidas: 24 Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o barreiro, o pátio, o bebedouro – mundo onde existiam seres reais, a família do vaqueiro e os bichos da fazenda. Além havia uma serra distante e azulada (...) e aí fervilhava uma população de pedras vivas e plantas que procediam como gente. Esses mundos viviam em paz, às vezes desapareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem dúvida em toda parte forças maléficas, mas essas forças eram sempre vencidas (...) (p. 58) Capítulo Inverno É durante o inverno, tempo das chuvas, quando está vivendo com sua família uma época de tranqüilidade e fartura em casa, que Fabiano pode parar e pensar no que já sofreu. Ele pensa que não iria encontrar forças para suportar de novo as dificuldades que havia enfrentado: o sofrimento da seca e a humilhação do soldado amarelo. Os dois traumas lhe aparecem juntos na lembrança. Ele sente que não iria agüentar de novo tantas provações, e volta-lhe a idéia de se transformar num cangaceiro e se vingar de tantas injustiças: 25 Algum tempo antes acontecera aquela desgraça: o soldado amarelo provocara-o na feira, dera-lhe uma surra de facão e metera-o na cadeia. Fabiano passara semanas capiongo, fantasiando vinganças, vendo a criação definhar na caatinga torrada. Se a seca chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o delegado. Estivera uns dias assim murcho, pensando na seca e roendo a humilhação. Fabiano pensa que se a seca voltar, ele não terá as forças necessárias para sair daquele lugar. Mais tarde veremos que , quando a seca voltou e aquele lugar deixou de ser um lugar de vida, como sua vontade de viver era tão forte, ele encontrou as forças necessárias para fugir de novo: “Podia viver num cemitério?” (p. 118). Nesse capítulo (“A Fuga”), vemos que ele tentou até o último momento ficar na fazenda, esperando um milagre, e só saiu quando percebeu, na conversa com sinhá Vitória, que todos morreriam se continuassem lá – “Precisava fugir daquela vegetação inimiga” (p. 120). 26 Capítulo A Festa Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos vão à festa de Natal na cidade. O tempo todo Fabiano se sente mal naquele lugar, deslocado, “constrangido na roupa nova”(p.75), rodeado de inimigos. Pensa não ter os mesmos direitos das outras pessoas , mesmo numa época de confraternização coletiva, como é o Natal. Tampouco na igreja Fabiano sente-se em paz. As lembranças do sofrimento causado pelo soldado amarelo voltam como fantasmas e afetam o modo de ele ver as pessoas ao seu redor: A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o. De perneiras, gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um bicho e voava na caatinga. Agora não podia virar-se: mãos e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto da parede. Olhou as caras em redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal. (p.75) 27 Pensamos que, para algumas pessoas que sofreram traumas muito grandes, como Fabiano, é muito difícil conseguir se divertir, ficar à vontade. Ele não se sente integrado à sociedade, nem mesmo na igreja. Apenas na presença da mulher e dos filhos consegue se sentir em casa, tranqüilo. Sua desconfiança e medo das pessoas têm raízes em fatos concretos. Ele tem medo das injustiças, de tornar a ser explorado ou desrespeitado. Nós podemos enxergar o herói, o homem sábio que ele realmente é, mas pessoas como o seu patrão, o dono do mercado ou o soldado amarelo, o vêem como alguém inferior, ignorante, passível de ser enganado. As reflexões de Fabiano nos mostram como ele tem uma percepção aguçada das injustiças de que é alvo: Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de números e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os 28 caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas ruas, tropeçando (...) Por isso Fabiano se afastava daqueles viventes (...)Ora, o soldado amarelo... (p.76) Para tentar afastar aquela recordação terrível, Fabiano procura uma “cara amiga na multidão”, sente que “se encontrasse um conhecido, iria chamá-lo para a calçada, abraçá-lo, sorrir, bater palmas” (p.77). Busca então a mulher e os filhos, que são o seu refúgio, e aproxima-se deles. Quando saem da igreja, vem à mente uma memória que não consegue afastar: a imagem do soldado amarelo. Ela condensa, para Fabiano, o símbolo de toda opressão e injustiça. É como se os acontecimentos vividos no passado se presentificassem ali na festa. Esse passado não elaborado volta e o impede de usufruir o que está acontecendo no presente: “No quadro, ao passar pelo jatobá, virou o rosto. Sem motivo nenhum, o desgraçado tinha ido provocá-lo, pisar-lhe o pé. Ele se desviara, com bons modos. Como o outro insistisse perdera a paciência, tivera um rompante. Conseqüência: facão no lombo e uma noite de cadeia” (p. 77). Ao tentar descansar para sair dessa situação, tem um pesadelo com o soldado amarelo – o trauma o impede de sonhar. Quando vai dormir, Fabiano sonha “agoniado”, se agita, porque em seu 29 pesadelo “muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavamlhe os pés com enormes reiunas e ameaçavam- no com facões terríveis” (p. 83). Para Fabiano, a festa, o lugar da confraternização e alegria, se tornou um pesadelo. Os dois meninos absorvem o medo que o pai sente pelas pessoas da cidadezinha, mas também estão admirados, encantados. As crianças têm essa sensibilidade de absorver, sem se dar conta, o incômodo do pai, ainda que este não conte nada para elas. Para os filhos de Fabiano, aquele mundo novo lhes parece bonito e ameaçador. Eles observam deslumbrados, apesar do medo das coisas e da gente ao seu redor. Falam baixinho entre si, pois acreditam que há “forças estranhas” que podem ser ali desencadeadas: Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? (...) Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intricada. Como podiam os 30 homens guardar tantas palavras? (...) Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem. (p. 82) Este capítulo nos faz refletir sobre o significado da festa como celebração coletiva onde podemos sair do cotidiano para entrar num espaço mágico de possibilidades. Na comemoração (comemorar/com memória) ocorre uma suspensão do tempo linear, há uma possibilidade de voltarmos ao passado mítico da humanidade e recomeçar. A festa tem esse dom de criar um estado de sonho coletivo, porque, como no sonho, há uma viagem ao tempo mítico, a outro tempo, pleno de possibilidades, um espaço aberto para imprevistos. Nesse espaço podemos mergulhar na energia do coletivo, que tem uma força própria. Tal como o sonho, a festa pode ser um alimento para a alma; energizados, voltamos para o nosso dia-a-dia com novo vigor. Mas é preciso ter uma predisposição interna para poder usufruir das possibilidades que a celebração proporciona . Sabemos que não é só Fabiano que tem dificuldade de ficar à vontade em uma 31 festa e se divertir. Algumas pessoas se sentem deslocadas e acuadas, pela dificuldade de se relacionar – e até bebem demais, ficam insolentes ou provocam brigas. Pensamos então que saber se divertir e conviver é uma conquista, um aprendizado. Fabiano representa aquelas pessoas que se sentem bem no trabalho e na família – o que é muito importante – mas que não conseguiram fazer a passagem para essa outra forma de convivência social. Algumas pessoas, diferentes de Fabiano, mostram uma aparência de cordialidade, uma máscara, certo “verniz social”, que funciona como uma couraça que os protege. Sérgio Buarque de Holanda descreveu o fenômeno do “homem cordial” , aquele que esconde seu medo de se relacionar por trás de uma aparente cordialidade. Sem se relacionar com sinceridade, ninguém consegue construir sua interioridade. O problema, explica Sergio Buarque, é que essa cordialidade nunca permite que o encontro se torne algo mais profundo – o “homem cordial” é mascarado, nunca se mostra por inteiro. Nesse sentido, vimos que Fabiano difere muito desse tipo de pessoa. Ele é genuíno e possui uma interioridade imensa. Certas pessoas têm dificuldade de estar em grupo, mesmo fora do ambiente da festa. Essa dificuldade poderia ser superada se primeiro convivessem em pequenos grupos, em torno de uma tarefa em comum. Nos Círculos de Leitura os livros nos ajudam a estar em 32 grupo, pois nossa tarefa é entender as mensagens neles contidas. Nessas obras podemos nos reconhecer pois falam das questões humanas que estão desde sempre no mundo. Mesmo aquelas que têm mais dificuldade em interagir, na medida em que vão ouvindo as diferentes idéias, passam a confiar mais em si mesmos e conseqüentemente nos outros. Fabiano precisava de ajuda para poder sair daquele pesadelo em que se encontrava na festa. Sinhá Vitória não se sente angustiada como o marido, por mais que aquele ambiente também lhe seja estranho. “Realmente a vida não era má. Pensou com um arrepio.” Diferente de Fabiano, “afastou a lembrança ruim, atentou naquelas belezas” (p. 80). Ela não passou por uma experiência tão traumatizante como a do soldado amarelo. A experiência difícil da seca foi compartilhada com a família. Fabiano viveu nas mãos do soldado amarelo uma injustiça que ele não contou para ninguém. Sinhá Vitoria percebe o que está acontecendo com o marido: “Abandonar os meninos, o marido naquele estado?” (p. 80); mas não consegue fazer algo para tirá-lo daquela situação. Vimos como Fabiano primeiro sofreu, dentro da igreja, acuado. Naquele lugar, as lembranças da humilhação vivida nas mãos do soldado amarelo se presentificam, atormentando-o. Ele chega então a um ponto em que passa a beber. A bebida transforma aquela dor passiva em algo 33 ativo: começa a gritar e provocar as pessoas. Esse mecanismo psíquico projeta no exterior aquilo que sentimos no interior, mas não conseguimos suportar. Fabiano estava tão mal que não conseguia se sentir próximo nem de Sinhá Vitoria, que ele tanto amava: “Olhou de perto a cara da mulher, não distinguiu-lhe os traços” (p.79). Na prisão a lembrança da família lhe deu as forças para agüentar a injustiça e não revidar. Mas naquele momento não havia nada que se pudesse fazer, a não ser seguir o exemplo de Baleia, que abandonou a festa. Capítulo Baleia Pensamos sobre o significado do nome “baleia”, maior animal que habita o mar, para uma cachorrinha que vive no meio do sertão árido. A imagem do mar está relacionada ao inconsciente e de certa forma a baleia representa esse animal que vive no mar – no inconsciente, como no sonho quando dormimos – mas também precisa respirar fora dele, transitando entre esses dois mundos. Nesse capítulo Baleia precisa ser sacrificada por Fabiano, pois está com sinais de hidrofobia. Ele sofre, mas tem de matá-la para encurtar o sofrimento dela e proteger sua família da doença. Quando está morrendo, Baleia tem um sonho idílico, um contraponto ao pesadelo que Fabiano tivera na festa. Se esse 34 sonhara com um mundo cheio de soldados amarelos (cap. A Festa), Baleia sonha com um mundo “cheio de preás”, “gordos, enormes”, um paraíso de fartura em que “lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela, num pátio enorme, num chiqueiro enorme” (p. 91). Capítulo Contas Não é por acaso que esse capítulo vem antes do capítulo “Soldado Amarelo”, pois retrata a situação que vemos na história do Brasil, onde mesmo depois do fim da escravidão, a exploração das pessoas no campo continuou. Vemos nesse capítulo que Fabiano percebe que está sendo explorado, mas não tem condições de revidar e precisa fazer de conta que não percebeu. Mesmo fazendo de conta, acredita que se tivesse a palavra, se soubesse falar, as coisas seriam diferentes. Veremos nos últimos capítulos que, quando foge com a família da seca, Fabiano não pode nem pagar a imensa quantia que deve ao seu patrão. Nesse capítulo percebemos claramente como sua dívida com o patrão ia crescendo, a partir de juros e manipulações nas contas, artifícios do patrão para explorar o empregado. Fabiano tinha consciência de que isso era uma injustiça, mas como tinha medo de ser expulso da fazenda, agüentava. As contas de Sinhá Vitória não batem com as do patrão. Ele sabe que a 35 mulher não se enganou nas contas, chega a protestar, mas intimidado pelo patrão precisa pedir desculpas e fazer de conta que aceitava - “Não podia dizer que aquilo era um furto, mas era”: Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria! O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda. Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem, não era preciso barulho não. Se havia dito palavra à toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. (...) Devia ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa (...) p. 94-95. Quando o patrão ameaça expulsá-lo da fazenda, Fabiano, para manter o trabalho, mente para ele, dissimulando, passando uma imagem de alguém subserviente, que se acha ignorante, “bruto, não 36 fora ensinado”. Ele diz para o patrão estar convencido de que se tratava de um erro de Sinhá Vitória, mas por dentro sabia que ela não tinha errado. “Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era safadeza”, (p.95), pensa consigo. Ele valoriza o conhecimento, e o poder da palavra, tanto que pensava que, se soubesse falar bem, “teria recurso para se defender”, “não viveria naquele estado” (p. 99). É triste ver como não havia honestidade nessa relação, que de certa forma herdamos de nossa cultura a carga desse passado de desconfiança e engano entre patrão e empregado. Afortunadamente, Fabiano acredita que existe um lugar onde as pessoas possam trabalhar em paz, harmoniosamente, onde haja respeito mútuo e confiança. Ele sonha com esse lugar, e pensamos que, como herdeiros de Fabiano, não podemos decepcioná-lo . Podemos aprender com aqueles homens que conseguiram transformar esse sonho em nossa realidade, seja na cidade ou no campo – como o tio Mantonio no conto “Nada e Nossa Condição” de Guimarães Rosa. Capítulo O Soldado Amarelo Fabiano reencontra o soldado amarelo no meio da caatinga deserta e sente agir sobre ele a força de dois impulsos contrários: 37 um, que quer se vingar, matando o soldado; outro, que contém essa cólera e preserva a vida: “Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário” (p.102). O essencial é que Fabiano foi capaz de se conter, e não revidar. O capítulo ilustra o diálogo interno de Fabiano, as muitas vozes que lhe dizem coisas diferentes, até que finalmente vence a voz que quer viver. Esta lhe diz para não gastar sua força em um ato de vingança. Há pessoas que nos atacam justamente para provocar em nós um desejo de revidar. Se cairmos nessa armadilha, e nos vingamos, acabamos por nos afundar com eles na mesma lama. Num primeiro momento, Fabiano pensa que “podia matá-lo com as unhas”, se vingando daquele que “ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas” (p. 103). Mas ao mesmo tempo já diz a si próprio que não vai matar ninguém, tanto que não entende porque o soldado treme com tanto medo: “Por que seria que aquele safado batia os dentes como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar-se?” (p.103). Por um minuto sente uma cólera que o faz avançar de novo em direção ao soldado, mas a raiva cessou, “os dedos que feriam a palma descerraram-se – e Fabiano estacou desajeitado, como um pato, o corpo amolecido” (p. 104). Ele 38 relembra todo o episódio vivido com o soldado, e chega a se questionar: “Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada neles?”. E o próprio Fabiano se responde: “Não iria”. (p. 105). Fabiano reconhece que os culpados não são a farda, o cargo, mas sim o homem que abusa do poder. Sabe que, se estivesse no lugar do soldado, não agiria daquela forma injusta, pois tem dignidade, tem ética. E questiona: “Por que motivo o governo aproveitava gente assim?” (p. 105). A ideia de ter sido preso e injustiçado por um homem fraco, como aquele, lhe era insuportável, e Fabiano se culpa primeiro por não revidar. Questiona se está deixando de ser um homem forte. Lembra-se de que, quando era jovem, puxava brigas e chamara assim a atenção de Sinhá Vitória. Mas agora, se pergunta se não está fraquejando: Devia sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um bicho resistente, calejado (...) Recordou-se de lutas antigas, em danças com fêmea e cachaça. Uma vez, de lambedeira em punho, espalhara a negrada. Aí Sinhá Vitória começara a gostar dele (...) Iria esfriando com a idade? (...) Arruinado, um caco. Não sentira a transformação, mas estava se acabando. (...) Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro indivíduo, 39 muito diferente do Fabiano que levantava poeira nas salas de dança (p. 106). De certo Fabiano havia se transformado em outro indivíduo, mais maduro, um pai de família, um homem com consciência. Se num primeiro momento ele diz para si que está fraquejando, consegue depois reconhecer que não estava “acabado”, muito pelo contrário: Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia à pena inutilizar-se. Guardava a sua força. (...) Havia muitos bichinhos assim fracos e ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins (...)Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo (p. 107). A atitude de Fabiano nessa passagem confirma que ele é um herói para nós. Através do seu profundo diálogo interno, e ao fixar os olhos nos do soldado, percebe que fraco é o soldado amarelo. . 40 Fabiano sabe que precisa guardar suas forças para cuidar de si e de sua família. Contem seu instinto de matar aquele homem mau e reencontra um sentido para agir, ao invés de reagir: “Guardava a sua força”. Mesmo em uma circunstância em que não corria risco de ser preso, já que estavam os dois num lugar deserto, mesmo assim Fabiano se segura, ouve sua consciência e opta pela vida justa. Capítulo O Mundo Coberto de Penas Os primeiros sinais da seca já começam a aparecer, com a chegada de bandos de pássaros, em busca de água, fugindo para o sul. Sinhá Vitória percebe com esse fato que a calamidade está voltando, que não sobrará água para os bois e cabras – e nem para eles. Ela é tão sábia que fala de um jeito sutil, que permite Fabiano decifrar e agir. Ela diz que os pássaros “levavam o resto da água, queriam matar o gado” (p.119). Fabiano percebe então que precisam espantar os pássaros, para assim ganhar tempo, e, mais que isso, sair dali. Fabiano fica maravilhado com a inteligência da mulher, que vê como companheira, e isso o faz esquecer por um momento da seca terrível que se aproxima: Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a esperteza de Sinhá Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. 41 Tinha idéias, sim, senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. (p. 110) Depois, ao pensar nas atribulações que vão precisar passar, fugindo da seca outra vez, pensa na sua mulher de novo, em como sinhá Vitória é inteligente, como ele a admira. Fabiano quer dar o melhor para a mulher que ele ama. E será o seu amor e confiança nela que lhe dará força para mais uma vez atravessar a caatinga com a família, fugindo da seca: Pensou na mulher e suspirou. Coitada da Sinhá Vitória, novamente nos descampados, transportando o baú de folha. Uma pessoa de tanto juízo marchar na terra queimada, esfolar os pés nos seixos, era duro. As arribações matavam o gado. Como tinha Sinhá Vitória descoberto aquilo? Difícil. Ele, Fabiano, espremendo os miolos, não diria semelhante frase. Sinhá Vitória fazia contas direito: sentava-se na cozinha, consultava montes de sementes de várias espécies, correspondentes a mil-réis, tostões e vinténs. E acertava. (p. 114) 42 Embora não deseje sair da fazenda, Fabiano sabe que para sobreviver vão precisar migrar mais uma vez. Já sente a presença da seca antes que ela chegue, sentia-a de longe: “Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida” (p. 111). Sabe que em breve o gado iria finar-se, a água acabar, e até os espinhos secariam. Mais uma vez, seu instinto de vida é mais forte do que ele pensava. Se durante o inverno imaginava que não encontraria forças para enfrentar a seca quando ela voltasse, com o apoio de Sinhá Vitória ele as encontrou: Ele, a mulher e os dois meninos seriam comidos. Sinhá Vitoria tinha razão: era atilada e percebia as coisas de longe. Fabiano arregalava os olhos e continuava a admirá-la. (...) Chegou-se a casa, com medo. Ia escurecendo, e àquela hora ele sentia sempre uns vagos terrores. Ultimamente vivia esmorecido, mofino, porque as desgraças eram muitas. Precisava consultar Sinhá Vitória, combinar a viagem, livrar-se das arribações, explicar-se (...) Necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados. Sinhá Vitória pensaria como ele. (p. 115-116) 43 Capítulo A Fuga Nos momentos extremamente difíceis, Sinhá Vitória encontrava forças tanto em sua religiosidade (“Aprumou-se e endireitou o baú, remexeu os beiços numa oração. Deus Nosso Senhor protegeria os inocentes”, p. 121), como também em Fabiano. Os dois se apoiavam mutuamente. Fabiano sentia-se forte porque a Sinhá Vitória confiava nele, ela tinha capacidade de imaginar uma vida melhor para eles, com mais segurança, representada pela vontade de ter uma cama. Sinhá Vitória ainda se sentia muito triste, “desamparada e miúda na solidão” (pg. 120), mas encontrou uma solução: conversar com o marido sobre as boas lembranças e os sonhos para o futuro. Acredita no futuro porque se lembra do que houve de bom no passado. Ela percebe que precisa conversar sobre o passado bom, e Fabiano também: Se ficasse calada, seria um pé de mandacaru, secando e morrendo (...) Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se, esqueceu os objetos próximos, os espinhos, as arribações, os urubus que farejavam carniça. Falou no passado, confundiu-o com o futuro. Não poderiam voltar a ser o que já tinham sido? Fabiano achou bom que Sinhá Vitória tivesse puxado conversa. Ia num desespero, o saco da comida e o aio começavam a pesar 44 excessivamente. Sinhá Vitória fez a pergunta, Fabiano matutou e andou bem meia légua sem sentir. (pg. 121) A conversa os ajuda a alimentar a esperança de que vão conseguir reconstruir sua vida. Ele fica preocupado com a possibilidade de que fossem para um lugar que talvez não houvesse gado para cuidar, o seu trabalho até então . Mas “Sinhá Vitoria tentou sossegá-lo dizendo que ele poderia entregar-se a outras ocupações” (pg. 121). Sabemos que essas palavras de encorajamento são fundamentais. Fabiano sente saudade, mas também consegue lembrar que naquele lugar que tinham abandonado havia coisas que não eram boas: o soldado amarelo, o patrão... Na medida em que vão caminhando, essas lembranças ruins vão esmorecendo. Se no primeiro capítulo um dos filhos precisou ser carregado, dessa vez, agora os dois meninos vão à frente: “Os meninos sumiam-se numa curva do caminho. Fabiano adiantou-se para alcançá-los. Era preciso aproveitar a disposição deles” (p. 122). E na medida em que Fabiano vai dobrando o cotovelo da estrada, sentia “distanciar-se um pouco dos lugares onde tinha vivido alguns anos”, e as lembranças do patrão, do soldado amarelo e da cachorra Baleia “esmoreceram no seu espírito”(pg. 122). 45 Quando Fabiano diz não ter certeza se encontrariam um lugar melhor, Sinhá Vitória lhe dá forças. Ela não abre mão de pensar em uma vida melhor, não se conformava com sua situação e, quando questiona Fabiano, o ajuda a também imaginar uma vida mais digna: Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à do Seu Tomás da Bolandeira? (...) Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos como bichos? Fabiano respondeu que não podiam: – O mundo é grande. (pg. 122-123). Quando em sua conversa, Sinhá Vitória e Fabiano começam a imaginar o futuro dos filhos, vemos o tema da necessidade dos pais de acreditar que os filhos vão realizar o que eles não conseguiram fazer completamente. A esperança dos pais é que seus filhos possam ir além deles. Quando Sinhá Vitoria conta que “desejava saber o que iriam fazer os filhos quando crescessem”, e Fabiano responde “vaquejar”, ela balança a cabeça negativamente. Tem aspirações diferentes para os filhos: 46 Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que idéia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a caatinga onde havia montes baixos, cascalho, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos na mata. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes. Fabiano ouviu os sonhos da mulher, deslumbrado (pg. 123). Fabiano ouve os sonhos da mulher deslumbrado, os sonhos dela lhe deram ânimo para prosseguir a jornada. Pensamos então no filósofo Ortega y Gasset, para quem a mulher tem uma responsabilidade fundamental para com a pátria, a sociedade e a história: de exercer sua feminilidade, que vai muito além do papel de ser mãe. Para Ortega y Gasset todo homem capaz de amar autenticamente já carrega dentro de si, desde a primeira juventude, o ideal do feminino. E a mulher encarna, para o homem que a ama, esse ideal. Sinhá Vitória encarna o ideal feminino para Fabiano Ao exercer sua feminilidade, ela permite então que Fabiano possa sonhar, fazer planos e sentir-se forte para realizá-los.. Ao ouvir os sonhos de Sinhá Vitória, Fabiano fica maravilhado, acredita nos 47 sonhos dela e pode reconhecê-los como seus sonhos também. A conversa com Sinhá Vitória possibilitou que caminhassem léguas “quase sem sentir” (p. 124), e nesse estado de ânimo imaginou que na sua frente encontraria um bebedouro. Vemos como Fabiano e Sinhá Vitória se apoiam mutuamente na travessia da caatinga deserta, e conseguem retirar do mais profundo de si um poder de imaginar, de sonhar, para no futuro poder realizar. A imagem do bebedouro lhes fortalece. Os sonhos que vão construindo mostram que Fabiano e Vitória confiam na existência de um lugar ainda desconhecido onde a vida pode ser melhor para seus filhos. Apostam na vida e na possibilidade de um recomeço em que seus filhos vão à escola, aprendendo a falar como o seu Tomás da Bolandeira. Conhecer sua história nos mobiliza para dar o melhor de nós, podendo reconhecer esses homens e mulheres como nossos heróis: Pouco a pouco, uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles (...) As palavras de Sinhá Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra 48 desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de Sinhá Vitória, as palavras que Sinhá Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. (p. 127-128) 49 Anotações 50 51 52 Círculos de Leitura Realização: Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial Rua Ceará, 02 – Higienópolis - 01243-010 São Paulo – SP. Tel: (11) 3824-9633 Fax: 3825-2637 www.braudel.org.br - [email protected]
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