Módulo_Vidas_Secas - Programa Círculos de Leitura

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Módulo_Vidas_Secas - Programa Círculos de Leitura
Módulo
Vidas Secas
Graciliano Ramos
“O mundo interno fértil em contraponto à aridez
da realidade externa”
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Índice
Introdução, 03
Capítulo Mudança, 05
Capítulo Fabiano, 07
Capítulo Cadeia, 09
Capítulo Sinhá Vitória, 10
Capítulo O Menino Mais Novo, 11
Capítulo O Menino Mais Velho, 12
Capítulo Inverno, 13
Capítulo A Festa, 13
Capítulo Baleia, 17
Capítulo Contas, 18
Capítulo O Soldado Amarelo, 19
Capítulo O Mundo Coberto de Penas, 20
Capítulo A Fuga, 22
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INTRODUÇÃO
Fabiano é aquele homem que possui em si as três dimensões de
que fala o filósofo Luc Ferry, em Aprender a Viver: a primeira é a “a
inteligência do que é – o que se chama comumente de teoria”, a
segunda, “o que deveria ser, ou o que se deveria fazer – o que se
designa habitualmente pelo nome de moral e ética”; e a terceira é a
“busca da salvação”, ou “sabedoria”. As duas primeiras dimensões
têm como objetivo alcançar essa terceira (p.30). Como nossa vida
humana é finita, sentimos a necessidade de lhe dar um sentido
maior, e para isso é necessário, diz Ferry, integrar essas três
dimensões.
Fabiano demonstra ter essa “inteligência do que é”, uma profunda
capacidade de observação a fim de teorizar e agir a partir do que
observa, como quando, no meio da caatinga deserta, deduz que
encontrará água se cavar onde há lama. Esse é um conhecimento
que ele retira da observação: “Fabiano tomou a cuia, desceu a
ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos
animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou
que a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito.
Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham
nascendo” (p.14)
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No seu diálogo interno, enxerga onde há injustiças e pratica a
justiça, ao não se vingar do soldado amarelo, alguém que foi muito
injusto com ele.
Fabiano pregou nele os olhos ensangüentados, meteu o facão
na bainha. Podia matá-lo com as unhas. Lembrou-se da surra
que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo
ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas.
Estava certo? O rosto de Fabiano contraía-se medonho, mais
feio que um focinho. Hem? Estava certo? Bulir com as pessoas
que não fazem mal a ninguém? Por quê? (p.103)
Fabiano relembra todo o episódio vivido com o soldado, e chega a
se questionar: “Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria
pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada neles?”. E o próprio
Fabiano se responde: “Não iria” (p. 105).
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se
desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o
resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que
suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para
baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que
vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não
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valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força. (...) Havia
muitos bichinhos assim fracos e ruins, havia um horror de
bichinhos assim fracos e ruins (...) Tirou o chapéu de couro,
curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. (p. 107)
A salvação do Fabiano vem da sua capacidade de se pôr a caminho
para uma vida melhor porque no seu íntimo acredita que ela seja
possível:
Pouco a pouco, uma vida nova, ainda confusa, se foi
esboçando. Acomodar-se-iam num sítio
pequeno, o que
parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um
pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os
meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles (...)
As palavras de Sinhá Vitória encantavam-no. Iriam para
diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava
contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela
era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de Sinhá
Vitória, as palavras que Sinhá Vitória murmurava porque
tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele
sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os
meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias.
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Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam
presos nela. (p. 127-128)
Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver
terras, conhecer gente importante como Seu Tomás da
Bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar
com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la.
Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu.
Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria
com a cabeça levantada, seria homem. (p. 24).
Fabiano conseguiu realizar essas três dimensões porque contava
com o apoio de sua mulher, Sinhá Vitória, que encarna o ideal
feminino, como nos fala o filósofo Ortega y Gasset. Para Gasset, o
homem que é capaz de autêntico amor leva desde sua primeira
juventude, dentro de si, certos dons de feminilidade, um ideal préexistente do que seja o feminino. O papel da mãe é importante, mas
não se pode esquecer que a mulher tem um tremendo dever e
compromisso perante a história, a pátria e a sociedade, que vai além
da maternidade. Cabe a ela exercer sua feminilidade, encarnando
para o homem que a ama esse ideal feminino. Quando esse
encontro se dá, e essas funções são preenchidas, homem e mulher
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se realizam como seres humanos. Fabiano e Sinhá Vitória se apóiam
e se compreendem mutuamente, conseguindo assim realizar a
travessia. Por isso são nossos heróis.
Em cima pôs a trouxa. Fabiano aprovou o arranjo, sorriu,
esqueceu os urubus e o cavalo. Sim senhor. Que mulher! (...) E
andavam para o sul, metidos naquele sonho. (p. 126-127)
Ao lermos Vidas Secas, tornamos a história de Fabiano e sinhá
Vitória nossa história. A literatura, como toda arte, tem essa função
integradora, mediadora entre a nossa experiência e a de nossos
antepassados. Muitas vezes nossos pais e avós não nos contam o
que viveram, talvez por não quererem transmitir seus sofrimentos.
Ou, quem sabe, não encontram as palavras. Isso nos priva de
receber um patrimônio vivo. Mas quando através da literatura sua
historia passa a ser conhecida preenchemos tanto as lacunas
individuais quanto sociais, fortalecendo assim nossa identidade.
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Capítulo Mudança
O livro começa com a imagem de uma família fugindo da seca,
atravessa o sertão que “estendia-se, de um vermelho indeciso
salpicado de manchas brancas que eram ossadas” (p. 10). Fabiano
atravessa a caatinga desértica com a família porque não tinha
escolha – onde estavam havia apenas morte. Pensamos que existe
uma diferença enorme entre ser um imigrante por escolha, e ser um
imigrante forçado a sair do seu lugar de origem, para sobreviver.
Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos andavam “cansados e
famintos” e “fazia horas que procuravam uma sombra” (p.9).
Há um momento na travessia que Fabiano precisa ser muito firme,
duro até, para garantir a sobrevivência da família. É quando o
menino mais velho, exausto, não consegue mais andar. “Certamente
esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o
vaqueiro precisava chegar, não sabia onde” (p. 10). Vemos Fabiano
como o líder da família, um bom líder, que cumpre sua função de
não deixar que ninguém dificulte a tarefa que precisa ser realizada –
no seu caso, guiar o grupo para onde estivessem todos a salvo da
morte. O líder precisa ser firme. Se alguém do grupo esmorecesse,
como aconteceu com o menino, contagiaria todos. Se parassem de
caminhar, morreriam. Vemos também como Fabiano, que num
primeiro momento diz “anda, excomungado” para o filho, com raiva
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do que lhe parece teimosia, consegue depois ouvir as palavras de
ânimo de Sinhá Vitória, e assim percebe que o menino não tem
forças, sente pena e o carrega nas costas:
Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma
direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam
perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no
cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se
encolhia os joelhos encostados ao estômago, frio como um
defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena.
Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou
a espingarda a Sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantouse, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles,
finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo,
lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros
invisíveis.
Quando Sinhá Vitória “lançou de novo a interjeição gutural” e
“designou os juazeiros invisíveis”, ela apontou o caminho da mesma
forma que fez Fabiano ao indicar o “bebedouro” no último capítulo
(A Fuga), imaginando que encontrariam sombra e água. Poder
imaginar que há algo bom à espera lhes dá forças para prosseguir na
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marcha, é um recurso interno que tanto Fabiano quanto Sinhá
Vitória possuem. Nos momentos mais difíceis da travessia, vemos
como Sinhá Vitoria também tem recursos internos para buscar
lembranças de acontecimentos bons do passado, “pensava em
acontecimentos antigos, que não se relacionavam: festas de
casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão” (pg. 11).
Estava tudo tão árido, tão seco, a morte rondava aquele lugar, “o
vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos
moribundos” (pg. 10). Mas “Fabiano queria viver” (pg. 14). Desde o
primeiro capítulo, vemos sua força de vida nas condições mais
inóspitas. Quando Fabiano consegue encontrar água debaixo da
lama no sítio abandonado, sente “uma alegria doida” lhe encher o
coração, consegue imaginar o sertão ressuscitado, verde de novo, e
já se imagina vivendo lá com sua família: “A caatinga ressuscitaria, a
semente do gado voltaria ao curral, ele Fabiano, seria o vaqueiro
daquela fazenda morta (...) Os meninos, gordos, vermelhos,
brincariam no chiqueiro das cabras, Sinhá Vitória vestiria saias de
ramagens vistosas” (pg. 15). Um pouco de água e pedaços de preá,
trazidos pela Baleia, não somente “adiariam a morte do grupo” (p.
14); foram o suficiente para carregar Fabiano com um novo ânimo.
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Poder sair dessa situação de morte é percebido como um milagre,
um milagre de ressurreição:
Eram todos felizes. Sinhá Vitória vestiria uma saia larga de
ramagens. A cara murcha de Sinhá Vitória remoçaria, as
nádegas bambas de Sinhá Vitória engrossariam, a roupa
encarnada de Sinhá Vitória provocaria a inveja das outras
caboclas (...) A fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o
vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo (...) Uma
ressurreição. As cores da saúde voltariam à cara triste de
Sinhá Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do
chiqueiro de cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A
caatinga ficaria verde (p. 16).
O instinto de sobrevivência e a capacidade de imaginar foram
fundamentais para que Fabiano e Sinhá Vitória conseguissem
atravessar com os filhos aquelas condições extremas. Poder
imaginar é um estado da alma. Quem imagina, consegue trazer o
futuro para o tempo presente. Poder visualizar um futuro melhor,
nos ajuda a suportar as dificuldades presentes. Desde o início desta
obra vemos como Fabiano é nosso herói, pois realiza um esforço
sobre-humano ao conseguir fazer a travessia com sua família
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justamente por acreditar que é possível ter uma vida melhor. Ele
conseguiu por ter uma predisposição interna para a vida, um instinto
de proteção e sobrevivência.
Capítulo Fabiano
Se num primeiro momento pode nos causar estranheza que
Fabiano se chame um “bicho”, compreendemos depois que na
travessia tão perigosa da caatinga é fundamental que Fabiano apele
para seu instinto animal de sobrevivência. Ele se orgulha dessa força
instintiva que o ajudou a salvar sua família e recomeçar a vida em
um novo lugar: “Você é um bicho, Fabiano (...) Isto para ele era
motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer
dificuldades. Chegara naquela situação medonha e ali estava, forte,
até gordo, fumando o seu cigarro de palha” (p. 19). Fabiano se
preocupa com a curiosidade e a educação das crianças, pois acredita
que naquele momento não eram o que lhes garantiria a
sobrevivência. Ele admira o Seu Tomás da Bolandeira, que “falava
bem, estragava os olhos em cima dos jornais e livros”, um homem a
quem “todos obedeciam” sem que ele tivesse que mandar (p.23).
Mas também reconhece que Seu Tomás não estava preparado para
sobreviver à seca: “Pois viera a seca, e o pobre do velho, tão bom e
tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o
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couro às varas, que pessoa como ele não podia aguentar verão
puxado” (p.22). Fabiano teme que os filhos se enveredem pelo
caminho do Seu Tomás, não porque não admire quem tem estudos,
e sim porque naquele ambiente os recursos necessários para a
sobrevivência eram outros.
Mas consegue imaginar que se as
condições mudassem e “tudo andasse direito”, seus filhos deveriam
sim estudar, falar, perguntar, “encher-se de caprichos”:
Indispensável os meninos entrarem no bom caminho,
saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas,
amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não
calejassem, teriam o fim do Seu Tomás da Bolandeira.
Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal?
Morrera por causa do estômago doente e das pernas fracas.
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo
andasse direito...Seria que as secas iriam desaparecer e tudo
andar certo? Não sabia. Seu Tomás da Bolandeira é que devia
ter lido isso. Livres daquele perigos, os meninos poderiam
falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham
obrigação de comportar-se como gente da laia deles. (p.2425)
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Fabiano tem consciência da exploração a que é submetido. Ele se
submete aparentemente a um patrão injusto e autoritário, como
voltaremos a ver no capítulo “As Contas”, só que sabe o que está
sendo feito com ele, e não concorda. Mas tem força interna para se
segurar e fingir respeito, pois sabe que, se reagisse seria expulso da
terra, perderia o trabalho e as condições de manter sua família:
O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase
nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo
ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário
descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque
podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com o
chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia
emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque
estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar
autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida? (p. 23)
Naquelas circunstancias ele precisava se identificar com o animal,
para poder sobreviver. Em seu diálogo interno vemos a vontade que
tem de se manter vivo. Imagina o dia em que vai sair da toca, sonha
com um futuro diferente, sem deixar de reconhecer os limites de
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sua condição atual, Se há algo como a “sorte”, Fabiano quer
transformá-la, ter uma vida melhor para si e sua família:
Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver
terras, conhecer gente importante como Seu Tomás da
Bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar
com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la.
Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro,
lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a
cabeça levantada, seria homem. (p. 24)
Capítulo Cadeia
Nesse capítulo, Fabiano é humilhado, apanha e é preso
injustamente por um soldado. Vemos seu diálogo interno quando
está na cadeia. Num primeiro momento, ele não acredita que a
polícia bateu nele sem motivo nenhum, por simples abuso de
autoridade, pensa que devem tê-lo confundido com alguém. “Não
queria capacitar-se de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia
engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era
senão isso” (p.32). Depois enxerga a perversidade no ato do
soldado, mas não culpa o governo, a instituição para a qual o
soldado trabalha. Imagina o “governo” como algo distante e
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perfeito, que não poderia errar, mas que não sabia escolher seus
funcionários. Fabiano tem plena consciência da injustiça que está
sofrendo:
Então por que um sem-vergonha desordeiro se arrelia, botase um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia
perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as
violências, a todas as injustiças (...) Mas agora rangia os
dentes, soprava. Merecia castigo? (...) E, por mais que
forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse
governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar.
O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco
e ruim, jogava-se na esteira com os matutos e provocava-os
depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza
(...) Por que vinham bulir com um homem que só queria
descansar? (...) Estava tudo errado. (p.33)
Fabiano pensa que Seu Tomás da Bolandeira, por saber falar bem,
ter o domínio da palavra, conseguiria se explicar melhor, talvez se
livrar daquela situação de injustiça. Mas por mais que ele, Fabiano,
se sinta vulnerável por não ter palavras com as quais se defender do
soldado – “Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia
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explicar-se” – sabe não ser justo o que lhe fizeram: “Estava preso
por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque
ele não sabe falar direito?” (p. 35). Fabiano percebe que o soldado
amarelo é um fraco, não sobreviveria na caatinga – “Imaginou o
soldado amarelo atirando-se a um cangaceiro na caatinga... Não
dava um caldo” (p. 34). Por mais que não tenha ido à escola, Fabiano
tem sabedoria para reconhecer a injustiça que sofre, sabe que esse
abuso é feito somente com as pessoas mais pobres que, como ele,
não podem se defender. Pessoas que maltratam quem não pode se
defender na verdade são muito fracas – uma fraqueza que aparece
mascarada de força. Fabiano tem um desejo intenso de atacar essa
injustiça, e esse “desejo de justiça” demonstra que ele é um homem
ético.
Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se,
botar as coisas nos seus lugares. O demônio daquela história
entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer.
Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la
(...) Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia
arrumar o que tinha no interior. Se pudesse... Ah! Se pudesse,
atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas
inofensivas. (p. 35-36)
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Fabiano consegue fazer uma crítica profunda à injustiça na
sociedade, consegue enxergar o ato do soldado como parte de um
problema maior. Naquela situação, a única força que teria para
revidar seria a força física, e essa só tornaria as coisas piores para ele
e sua família. Ele demonstra ser um verdadeiro herói, pois se
contém, suportando a injustiça por amor a sua família, para
preservá-la. Ele reconhece que, sem essa âncora, entraria num
bando de cangaceiros para se vingar, não somente contra o soldado,
“um infeliz”, mas contra os homens que mandavam no soldado e
permitiam que injustiças como essa fossem feitas. O amor a família
lhe permite suportar as duas calamidades que estão no seu
caminho, a seca e a injustiça social.
Se não fossem eles... Agora Fabiano conseguia arranjar as
idéias. O que o segurava era a família. Vivia preso como um
novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não
fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que
lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos.
Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço
não, sairia dali como onça e faria uma asneira. Carregaria a
espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo.
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Não. O soldado amarelo era um infeliz, que nem merecia um
tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria
num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que
dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria um para semente. Era a
idéia que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os
meninos, havia a cachorrinha. (p.37)
Capítulo Sinhá Vitória
Esse capítulo ilustra que a vontade de ter uma cama firme, de
lastro de couro, “igual a de Seu Tomás da Bolandeira...feita pelo
carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxó”, representa seu
desejo de estabilidade, segurança para a família. Sinhá Vitória “só
tinha medo da seca” (p. 43). A experiência vivida na seca deixou
marcas, lembranças muito tristes de quando quase haviam morrido.
Por isso, quando ouve a palavra “papagaio”, Sinhá Vitória tenta
afastar a lembrança daquela última travessia no sertão, em que
precisaram matar a ave de estimação para alimentar a família:
Pobre do papagaio (...) Sinhá Vitória nem queria lembrar-se
daquilo. Esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido
depois que chegara à fazenda. A referência aos sapatos abriralhe uma ferida – e a viagem reaparecera. As alpercatas dela
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tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de fome,
carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do papagaio.
(p.43)
Fabiano busca força interna na lembrança da mulher e dos filhos
para não cometer uma loucura na cadeia, e Sinhá Vitória busca
forças na religiosidade, nos cuidados da casa e na confiança em
Fabiano para afastar o medo de que a seca volte:
Chegou à porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras.
Suspirou. Deus não havia de permitir outra desgraça. Agitou a
cabeça e procurou ocupações para entreter-se. Tomou a cuia
grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de água o caco das
galinhas, endireitou o poleiro (...) Ouviam-se distintamente os
roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles influiu nas
ideias de Sinhá Vitória. Fabiano roncava com segurança.
Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe (...)
Outra vez Sinhá Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de
couro (...) Tudo ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o
fogo que estalava, o toque dos chocalhos, até o zumbido das
moscas, davam-lhe sensação de firmeza e repouso. (p.44)
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Capítulo O Menino Mais Novo
Esse capítulo mostra como funciona a mente da criança. Desde
pequena ela possui recursos psíquicos próprios. Essa capacidade é
ilustrada pela imaginação do menino mais novo, que, ao ver duas
nuvens, as imagina como sendo Fabiano e sua égua alazã: “Duas
grandes se juntaram – e uma tinha a figura da égua alazã, e a outra
representava Fabiano”(pg. 51). É importante ver que na saúde a
criança tem muitos recursos internos. Os pais às vezes se esquecem
de como é rica a mente infantil.
Outro tema presente é a figura do pai como modelo, o primeiro
herói para a criança: “E precisava crescer, ficar tão grande como
Fabiano (....) Quando fosse homem, caminharia assim, pesado,
cambaio, importante, as rosetas das esporas tintilando (...) e voaria
na caatinga como pé de vento, levantando poeira” (p.53) No
primeiro momento a criança quer ser como o adulto que ela tanto
admira, por isso na imaginação do menino mais novo ele e seu pai se
misturam, são um só: “certamente era arriscado, mas parecia que ali
em cima podia virar Fabiano ... A égua alazã e o bode misturavamse, ele e o pai também” (p. 50). Fabiano assume qualidades de um
ser mágico, de um ser divino para o menino:
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Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração.
Metido nos couros de perneiras, gibão e guarda-peitos,era a
criatura mais importante do mundo. As rosetas das esporas
dele tilintavam no pátio, as abas do chapéu, jogado para trás
preso debaixo do queixo pela correia, aumentava-lhe o rosto
queimado, faziam-lhe um circulo enorme em torno da cabeça.
(p.47)
A criança pode suportar as frustrações por meio da imaginação
por um tempo. Vemos como o fluxo de consciência do menino mais
novo retrata esse processo. Depois que cai, tentando ser Fabiano, é
alvo da zombaria do irmão mais velho. Ao sentir a frustração da
queda, “a humilhação atenuou-se pouco a pouco e morreu” (pg. 53),
na medida em que vai dizendo para si próprio que “precisava
crescer, ficar tão grande como Fabiano”(pg. 53). O menino se
consola da frustração e da humilhação pensando que a solução está
no futuro, quando crescer e se tornar tão grande quanto seu pai,
que é seu herói.
Capítulo O Menino Mais Velho
Quando o menino mais velho vai perguntar à Sinhá Vitória o que é
o inferno, ela lhe responde que é um “certo lugar ruim demais” (p.
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55). Quando ele então pergunta a ela, “a senhora já viu?”, Sinhá
Vitória se zanga, acha-o insolente e lhe dá um cocorote. O menino
sai indignado e vai se consolar com a cachorra Baleia e seus
pensamentos. Dentro de si, ele não tem a imagem do que seja um
inferno, mesmo tendo vivido um tempo muito ruim fugindo da seca,
em que quase morreram de fome e sede: “Todos os lugares
conhecidos eram bons” (p. 58). Na Divina Comédia, Dante retrata o
inferno como aquele lugar em que sempre tudo é o mesmo – essa é
a punição: encontrar-se sempre repetindo o mesmo, sem saída,
sempre igual. Como ele e sua família conseguiram agüentar a
travessia na caatinga, o menino mais velho não vê o passado como
algo ruim como o inferno, pois os problemas haviam sido resolvidos.
Ele se lembra até daquele momento em que havia parado na
marcha com a família, por não agüentar mais de cansaço (cap. “A
Mudança”). Recorda-se quando caíra no chão, os pés queimados,
“escurecera de repente”, e estava tão próximo da morte que “mal
sentia as pancadas que Fabiano lhe dava” para reanimá-lo. Naquele
tempo, pensa, “o mundo era ruim. Mas depois se consertara, para
bem dizer as coisas ruins não tinham existido” (p.59) Isso explica o
olhar que lança para o mundo, acreditando que as dificuldades
sempre seriam vencidas:
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Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das
cabras, o curral, o barreiro, o pátio, o bebedouro – mundo onde
existiam seres reais, a família do vaqueiro e os bichos da
fazenda. Além havia uma serra distante e azulada (...) e aí
fervilhava uma população de pedras vivas e plantas que
procediam como gente. Esses mundos viviam em paz, às vezes
desapareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados
entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem
dúvida em toda parte forças maléficas, mas essas forças eram
sempre vencidas (...) (p. 58)
Capítulo Inverno
É durante o inverno, tempo das chuvas, quando está vivendo com
sua família uma época de tranqüilidade e fartura em casa, que
Fabiano pode parar e pensar no que já sofreu. Ele pensa que não iria
encontrar forças para suportar de novo as dificuldades que havia
enfrentado: o sofrimento da seca e a humilhação do soldado
amarelo. Os dois traumas lhe aparecem juntos na lembrança. Ele
sente que não iria agüentar de novo tantas provações, e volta-lhe a
idéia de se transformar num cangaceiro e se vingar de tantas
injustiças:
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Algum tempo antes acontecera aquela desgraça: o soldado
amarelo provocara-o na feira, dera-lhe uma surra de facão e
metera-o na cadeia. Fabiano passara semanas capiongo,
fantasiando vinganças, vendo a criação definhar na caatinga
torrada. Se a seca chegasse, ele abandonaria mulher e filhos,
coseria a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o
promotor e o delegado. Estivera uns dias assim murcho,
pensando na seca e roendo a humilhação.
Fabiano pensa que se a seca voltar, ele não terá as forças
necessárias para sair daquele lugar. Mais tarde veremos que ,
quando a seca voltou e aquele lugar deixou de ser um lugar de vida,
como sua vontade de viver era tão forte, ele encontrou as forças
necessárias para fugir de novo: “Podia viver num cemitério?” (p.
118). Nesse capítulo (“A Fuga”), vemos que ele tentou até o último
momento ficar na fazenda, esperando um milagre, e só saiu quando
percebeu, na conversa com sinhá Vitória, que todos morreriam se
continuassem lá – “Precisava fugir daquela vegetação inimiga” (p.
120).
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Capítulo A Festa
Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos vão à festa de Natal na cidade.
O tempo todo Fabiano se sente mal naquele lugar, deslocado,
“constrangido na roupa nova”(p.75), rodeado de inimigos. Pensa
não ter os mesmos direitos das outras pessoas , mesmo numa época
de confraternização coletiva, como é o Natal. Tampouco na igreja
Fabiano sente-se em paz. As lembranças do sofrimento causado pelo
soldado amarelo voltam como fantasmas e afetam o modo de ele
ver as pessoas ao seu redor:
A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o. De
perneiras, gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa,
como tatu, mas saltava no lombo de um bicho e voava na
caatinga. Agora não podia virar-se: mãos e braços roçavam-lhe
o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na
cadeia. A sensação que experimentava não diferia muito da que
tinha tido ao ser preso. Era como se as mãos e os braços da
multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto
da parede. Olhou as caras em redor. Evidentemente as criaturas
que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado
de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal. (p.75)
27
Pensamos que, para algumas pessoas que sofreram traumas
muito grandes, como Fabiano, é muito difícil conseguir se divertir,
ficar à vontade. Ele não se sente integrado à sociedade, nem mesmo
na igreja. Apenas na presença da mulher e dos filhos consegue se
sentir em casa, tranqüilo. Sua desconfiança e medo das pessoas têm
raízes em fatos concretos. Ele tem medo das injustiças, de tornar a
ser explorado ou desrespeitado. Nós podemos enxergar o herói, o
homem sábio que ele realmente é, mas pessoas como o seu patrão,
o dono do mercado ou o soldado amarelo, o vêem como alguém
inferior, ignorante, passível de ser enganado. As reflexões de
Fabiano nos mostram como ele tem uma percepção aguçada das
injustiças de que é alvo:
Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se
inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele.
Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o
fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na
medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e
tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham
encontrado houvera uma confusão de números e Fabiano, com
os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco,
certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os
28
caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro
e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas
ruas, tropeçando (...) Por isso Fabiano se afastava daqueles
viventes (...)Ora, o soldado amarelo... (p.76)
Para tentar afastar aquela recordação terrível, Fabiano procura
uma “cara amiga na multidão”, sente que “se encontrasse um
conhecido, iria chamá-lo para a calçada, abraçá-lo, sorrir, bater
palmas” (p.77). Busca então a mulher e os filhos, que são o seu
refúgio, e aproxima-se deles. Quando saem da igreja, vem à mente
uma memória que não consegue afastar: a imagem do soldado
amarelo. Ela condensa, para Fabiano, o símbolo de toda opressão e
injustiça. É como se os acontecimentos vividos no passado
se
presentificassem ali na festa. Esse passado não elaborado volta e o
impede de usufruir o que está acontecendo no presente: “No
quadro, ao passar pelo jatobá, virou o rosto. Sem motivo nenhum, o
desgraçado tinha ido provocá-lo, pisar-lhe o pé. Ele se desviara, com
bons modos. Como o outro insistisse perdera a paciência, tivera um
rompante. Conseqüência: facão no lombo e uma noite de cadeia” (p.
77). Ao tentar descansar para sair dessa situação, tem um pesadelo
com o soldado amarelo – o trauma o impede de sonhar. Quando vai
dormir, Fabiano sonha “agoniado”, se agita, porque em seu
29
pesadelo “muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavamlhe os pés com enormes reiunas e ameaçavam- no com facões
terríveis” (p. 83). Para Fabiano, a festa, o lugar da confraternização e
alegria, se tornou um pesadelo. Os dois meninos absorvem o medo
que o pai sente pelas pessoas da cidadezinha, mas também estão
admirados, encantados. As crianças têm essa sensibilidade de
absorver, sem se dar conta, o incômodo do pai, ainda que este não
conte nada para elas. Para os filhos de Fabiano, aquele mundo novo
lhes parece bonito e ameaçador. Eles observam deslumbrados,
apesar do medo das coisas e da gente ao seu redor. Falam baixinho
entre si, pois acreditam que há “forças estranhas” que podem ser ali
desencadeadas:
Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos.
Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam.
Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo
teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que
aquilo tinha sido feito por gente? (...) Nova dificuldade chegou-lhe
ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas
coisas tinham nomes. Sim, com certeza as preciosidades que se
exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham
nomes. Puseram-se a discutir a questão intricada. Como podiam os
30
homens guardar tantas palavras? (...) Livres dos nomes, as coisas
ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E
os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de
longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para
não desencadear as forças estranhas que elas porventura
encerrassem. (p. 82)
Este capítulo nos faz refletir sobre o significado da festa como
celebração coletiva onde podemos sair do cotidiano para entrar
num
espaço
mágico
de
possibilidades.
Na
comemoração
(comemorar/com memória) ocorre uma suspensão do tempo linear,
há uma possibilidade de voltarmos ao passado mítico da
humanidade e recomeçar. A festa tem esse dom de criar um estado
de sonho coletivo, porque, como no sonho, há uma viagem ao
tempo mítico, a outro tempo, pleno de possibilidades, um espaço
aberto para imprevistos. Nesse espaço podemos mergulhar na
energia do coletivo, que tem uma força própria. Tal como o sonho, a
festa pode ser um alimento para a alma; energizados, voltamos para
o nosso dia-a-dia com novo vigor.
Mas é preciso ter uma predisposição interna para poder usufruir
das possibilidades que a celebração proporciona . Sabemos que
não é só Fabiano que tem dificuldade de ficar à vontade em uma
31
festa e se divertir. Algumas pessoas se sentem deslocadas e
acuadas, pela dificuldade de se relacionar – e até bebem demais,
ficam insolentes ou provocam brigas. Pensamos então que saber se
divertir e conviver
é uma conquista, um aprendizado. Fabiano
representa aquelas pessoas que se sentem bem no trabalho e na
família – o que é muito importante – mas que não conseguiram
fazer a passagem para essa outra forma de convivência social.
Algumas pessoas, diferentes de Fabiano, mostram uma aparência
de cordialidade, uma máscara, certo “verniz social”, que funciona
como uma couraça que os protege. Sérgio Buarque de Holanda
descreveu o fenômeno do “homem cordial” , aquele que esconde
seu medo de se relacionar por trás de uma aparente cordialidade.
Sem se relacionar com sinceridade, ninguém consegue construir sua
interioridade. O problema, explica Sergio Buarque, é que essa
cordialidade nunca permite que o encontro se torne algo mais
profundo – o “homem cordial” é mascarado, nunca se mostra por
inteiro. Nesse sentido, vimos que Fabiano difere muito desse tipo de
pessoa. Ele é genuíno e possui uma interioridade imensa.
Certas pessoas têm dificuldade de estar em grupo, mesmo fora do
ambiente da festa. Essa dificuldade poderia ser superada se primeiro
convivessem em pequenos grupos, em torno de uma tarefa em
comum. Nos Círculos de Leitura os livros nos ajudam a estar em
32
grupo, pois nossa tarefa é entender as mensagens neles contidas.
Nessas obras podemos nos reconhecer pois falam das questões
humanas que estão desde sempre no mundo. Mesmo aquelas que
têm mais dificuldade em interagir, na medida em que vão ouvindo
as diferentes idéias, passam a confiar mais em si mesmos e
conseqüentemente nos outros.
Fabiano precisava de ajuda para poder sair daquele pesadelo em
que se encontrava na festa. Sinhá Vitória não se sente angustiada
como o marido, por mais que aquele ambiente também lhe seja
estranho. “Realmente a vida não era má. Pensou com um arrepio.”
Diferente de Fabiano, “afastou a lembrança ruim, atentou naquelas
belezas” (p. 80). Ela não passou por uma experiência tão
traumatizante como a do soldado amarelo. A experiência difícil da
seca foi compartilhada com a família. Fabiano viveu nas mãos do
soldado amarelo uma injustiça que ele não contou para ninguém.
Sinhá Vitoria percebe o que está acontecendo com o marido:
“Abandonar os meninos, o marido naquele estado?” (p. 80); mas
não consegue fazer algo para tirá-lo daquela situação. Vimos como
Fabiano primeiro sofreu, dentro da igreja, acuado. Naquele lugar, as
lembranças da humilhação vivida nas mãos do soldado amarelo se
presentificam, atormentando-o. Ele chega então a um ponto em que
passa a beber. A bebida transforma aquela dor passiva em algo
33
ativo: começa a gritar e provocar as pessoas. Esse mecanismo
psíquico projeta no exterior aquilo que sentimos no interior, mas
não conseguimos suportar. Fabiano estava tão mal que não
conseguia se sentir próximo nem de Sinhá Vitoria, que ele tanto
amava: “Olhou de perto a cara da mulher, não distinguiu-lhe os
traços” (p.79). Na prisão a lembrança da família lhe deu as forças
para agüentar a injustiça e não revidar. Mas naquele momento não
havia nada que se pudesse fazer, a não ser seguir o exemplo de
Baleia, que abandonou a festa.
Capítulo Baleia
Pensamos sobre o significado do nome “baleia”, maior animal que
habita o mar, para uma cachorrinha que vive no meio do sertão
árido. A imagem do mar está relacionada ao inconsciente e de certa
forma a baleia representa esse animal que vive no mar – no
inconsciente, como no sonho quando dormimos – mas também
precisa respirar fora dele, transitando entre esses dois mundos.
Nesse capítulo Baleia precisa ser sacrificada por Fabiano, pois está
com sinais de hidrofobia. Ele sofre, mas tem de matá-la para
encurtar o sofrimento dela e proteger sua família da doença.
Quando está morrendo, Baleia tem um sonho idílico, um
contraponto ao pesadelo que Fabiano tivera na festa. Se esse
34
sonhara com um mundo cheio de soldados amarelos (cap. A Festa),
Baleia sonha com um mundo “cheio de preás”, “gordos, enormes”,
um paraíso de fartura em que “lamberia as mãos de Fabiano, um
Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com
ela, num pátio enorme, num chiqueiro enorme” (p. 91).
Capítulo Contas
Não é por acaso que esse capítulo vem antes do capítulo “Soldado
Amarelo”, pois retrata a situação que vemos na história do Brasil,
onde mesmo depois do fim da escravidão, a exploração das pessoas
no campo continuou. Vemos nesse capítulo que Fabiano percebe
que está sendo explorado, mas não tem condições de revidar e
precisa fazer de conta que não percebeu. Mesmo fazendo de conta,
acredita que se tivesse a palavra, se soubesse falar, as coisas seriam
diferentes. Veremos nos últimos capítulos que, quando foge com a
família da seca, Fabiano não pode nem pagar a imensa quantia que
deve ao seu patrão. Nesse capítulo percebemos claramente como
sua dívida com o patrão ia crescendo, a partir de juros e
manipulações nas contas, artifícios do patrão para explorar o
empregado. Fabiano tinha consciência de que isso era uma injustiça,
mas como tinha medo de ser expulso da fazenda, agüentava. As
contas de Sinhá Vitória não batem com as do patrão. Ele sabe que a
35
mulher não se enganou nas contas, chega a protestar, mas
intimidado pelo patrão precisa pedir desculpas e fazer de conta que
aceitava - “Não podia dizer que aquilo era um furto, mas era”:
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim
senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher
tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco.
Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar
a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de
mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e
nunca arranjar carta de alforria! O patrão zangou-se, repeliu
a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço
noutra fazenda. Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou.
Bem, bem, não era preciso barulho não. Se havia dito palavra
à toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. (...) Devia
ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela.
Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara
na sua velha. Mas pedia desculpa (...) p. 94-95.
Quando o patrão ameaça expulsá-lo da fazenda, Fabiano, para
manter o trabalho, mente para ele, dissimulando, passando uma
imagem de alguém subserviente, que se acha ignorante, “bruto, não
36
fora ensinado”. Ele diz para o patrão estar convencido de que se
tratava de um erro de Sinhá Vitória, mas por dentro sabia que ela
não tinha errado. “Não podia dizer em voz alta que aquilo era um
furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda
inventavam juro. Que juro! O que havia era safadeza”, (p.95), pensa
consigo. Ele valoriza o conhecimento, e o poder da palavra, tanto
que pensava que, se soubesse falar bem, “teria recurso para se
defender”, “não viveria naquele estado” (p. 99). É triste ver como
não havia honestidade nessa relação, que de certa forma herdamos
de nossa cultura a carga desse passado de desconfiança e engano
entre patrão e empregado. Afortunadamente, Fabiano acredita que
existe um lugar onde as pessoas possam trabalhar em paz,
harmoniosamente, onde haja respeito mútuo e confiança. Ele sonha
com esse lugar, e pensamos que, como herdeiros de Fabiano, não
podemos decepcioná-lo . Podemos aprender com aqueles homens
que conseguiram transformar esse sonho em nossa realidade, seja
na cidade ou no campo – como o tio Mantonio no conto “Nada e
Nossa Condição” de Guimarães Rosa.
Capítulo O Soldado Amarelo
Fabiano reencontra o soldado amarelo no meio da caatinga
deserta e sente agir sobre ele a força de dois impulsos contrários:
37
um, que quer se vingar, matando o soldado; outro, que contém
essa cólera e preserva a vida: “Como o impulso que moveu o braço
de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante
para um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em
sentido contrário” (p.102). O essencial é que Fabiano foi capaz de se
conter, e não revidar. O capítulo ilustra o diálogo interno de
Fabiano, as muitas vozes que lhe dizem coisas diferentes, até que
finalmente vence a voz que quer viver. Esta lhe diz para não gastar
sua força em um ato de vingança. Há pessoas que nos atacam
justamente para provocar em nós um desejo de revidar. Se cairmos
nessa armadilha, e nos vingamos, acabamos por nos afundar com
eles na mesma lama.
Num primeiro momento, Fabiano pensa que “podia matá-lo com
as unhas”, se vingando daquele que “ganhava dinheiro para
maltratar as criaturas inofensivas” (p. 103). Mas ao mesmo tempo já
diz a si próprio que não vai matar ninguém, tanto que não entende
porque o soldado treme com tanto medo: “Por que seria que aquele
safado batia os dentes como um caititu? Não via que ele era incapaz
de vingar-se?” (p.103). Por um minuto sente uma cólera que o faz
avançar de novo em direção ao soldado, mas a raiva cessou, “os
dedos que feriam a palma descerraram-se – e Fabiano estacou
desajeitado, como um pato, o corpo amolecido” (p. 104). Ele
38
relembra todo o episódio vivido com o soldado, e chega a se
questionar: “Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria
pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada neles?”. E o próprio
Fabiano se responde: “Não iria”. (p. 105). Fabiano reconhece que os
culpados não são a farda, o cargo, mas sim o homem que abusa do
poder. Sabe que, se estivesse no lugar do soldado, não agiria
daquela forma injusta, pois tem dignidade, tem ética. E questiona:
“Por que motivo o governo aproveitava gente assim?” (p. 105).
A ideia de ter sido preso e injustiçado por um homem fraco, como
aquele, lhe era insuportável, e Fabiano se culpa primeiro por não
revidar. Questiona se está deixando de ser um homem forte.
Lembra-se de que, quando era jovem, puxava brigas e chamara
assim a atenção de Sinhá Vitória. Mas agora, se pergunta se não está
fraquejando:
Devia sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um
bicho resistente, calejado (...) Recordou-se de lutas antigas, em
danças com fêmea e cachaça. Uma vez, de lambedeira em
punho, espalhara a negrada. Aí Sinhá Vitória começara a gostar
dele (...) Iria esfriando com a idade? (...) Arruinado, um caco.
Não sentira a transformação, mas estava se acabando. (...)
Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro indivíduo,
39
muito diferente do Fabiano que levantava poeira nas salas de
dança (p. 106).
De certo Fabiano havia se transformado em outro indivíduo, mais
maduro, um pai de família, um homem com consciência. Se num
primeiro momento ele diz para si que está fraquejando, consegue
depois reconhecer que não estava “acabado”, muito pelo contrário:
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se
desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o
resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que
suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para
baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que
vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não
valia à pena inutilizar-se. Guardava a sua força. (...) Havia
muitos bichinhos assim fracos e ruins, havia um horror de
bichinhos assim fracos e ruins (...)Tirou o chapéu de couro,
curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo (p. 107).
A atitude de Fabiano nessa passagem confirma que ele é um herói
para nós. Através do seu profundo diálogo interno, e ao fixar os
olhos nos do soldado, percebe que fraco é o soldado amarelo. .
40
Fabiano sabe que precisa guardar suas forças para cuidar de si e de
sua família. Contem seu instinto de matar aquele homem mau e
reencontra um sentido para agir, ao invés de reagir: “Guardava a sua
força”. Mesmo em uma circunstância em que não corria risco de ser
preso, já que estavam os dois num lugar deserto, mesmo assim
Fabiano se segura, ouve sua consciência e opta pela vida justa.
Capítulo O Mundo Coberto de Penas
Os primeiros sinais da seca já começam a aparecer, com a chegada
de bandos de pássaros, em busca de água, fugindo para o sul. Sinhá
Vitória percebe com esse fato que a calamidade está voltando, que
não sobrará água para os bois e cabras – e nem para eles. Ela é tão
sábia que fala de um jeito sutil, que permite Fabiano decifrar e agir.
Ela diz que os pássaros “levavam o resto da água, queriam matar o
gado” (p.119). Fabiano percebe então que precisam espantar os
pássaros, para assim ganhar tempo, e, mais que isso, sair dali.
Fabiano fica maravilhado com a inteligência da mulher, que vê como
companheira, e isso o faz esquecer por um momento da seca terrível
que se aproxima:
Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado com a
esperteza de Sinhá Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro.
41
Tinha idéias, sim, senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas
situações difíceis encontrava saída. (p. 110)
Depois, ao pensar nas atribulações que vão precisar passar,
fugindo da seca outra vez, pensa na sua mulher de novo, em como
sinhá Vitória é inteligente, como ele a admira. Fabiano quer dar o
melhor para a mulher que ele ama. E será o seu amor e confiança
nela que lhe dará força para mais uma vez atravessar a caatinga com
a família, fugindo da seca:
Pensou na mulher e suspirou. Coitada da Sinhá Vitória,
novamente nos descampados, transportando o baú de folha.
Uma pessoa de tanto juízo marchar na terra queimada, esfolar
os pés nos seixos, era duro. As arribações matavam o gado.
Como tinha Sinhá Vitória descoberto aquilo? Difícil. Ele,
Fabiano, espremendo os miolos, não diria semelhante frase.
Sinhá Vitória fazia contas direito: sentava-se na cozinha,
consultava
montes
de
sementes
de
várias
espécies,
correspondentes a mil-réis, tostões e vinténs. E acertava. (p.
114)
42
Embora não deseje sair da fazenda, Fabiano sabe que para
sobreviver vão precisar migrar mais uma vez. Já sente a presença da
seca antes que ela chegue, sentia-a de longe: “Que havia de fazer?
Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida” (p. 111).
Sabe que em breve o gado iria finar-se, a água acabar, e até os
espinhos secariam. Mais uma vez, seu instinto de vida é mais forte
do que ele pensava. Se durante o inverno imaginava que não
encontraria forças para enfrentar a seca quando ela voltasse, com o
apoio de Sinhá Vitória ele as encontrou:
Ele, a mulher e os dois meninos seriam comidos. Sinhá Vitoria
tinha razão: era atilada e percebia as coisas de longe. Fabiano
arregalava os olhos e continuava a admirá-la. (...) Chegou-se a
casa, com medo. Ia escurecendo, e àquela hora ele sentia
sempre uns vagos terrores. Ultimamente vivia esmorecido,
mofino, porque as desgraças eram muitas. Precisava consultar
Sinhá Vitória, combinar a viagem, livrar-se das arribações,
explicar-se
(...)
Necessário
abandonar
aqueles
lugares
amaldiçoados. Sinhá Vitória pensaria como ele. (p. 115-116)
43
Capítulo A Fuga
Nos momentos extremamente difíceis, Sinhá Vitória encontrava
forças tanto em sua religiosidade (“Aprumou-se e endireitou o baú,
remexeu os beiços numa oração. Deus Nosso Senhor protegeria os
inocentes”, p. 121), como também em Fabiano. Os dois se apoiavam
mutuamente. Fabiano sentia-se forte porque a Sinhá Vitória
confiava nele, ela tinha capacidade de imaginar uma vida melhor
para eles, com mais segurança, representada pela vontade de ter
uma cama. Sinhá Vitória ainda se sentia muito triste, “desamparada
e miúda na solidão” (pg. 120), mas encontrou uma solução:
conversar com o marido sobre as boas lembranças e os sonhos para
o futuro. Acredita no futuro porque se lembra do que houve de bom
no passado. Ela percebe que precisa conversar sobre o passado
bom, e Fabiano também:
Se ficasse calada, seria um pé de mandacaru, secando e
morrendo (...) Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se,
esqueceu os objetos próximos, os espinhos, as arribações, os
urubus que farejavam carniça. Falou no passado, confundiu-o
com o futuro. Não poderiam voltar a ser o que já tinham sido?
Fabiano achou bom que Sinhá Vitória tivesse puxado conversa.
Ia num desespero, o saco da comida e o aio começavam a pesar
44
excessivamente. Sinhá Vitória fez a pergunta, Fabiano
matutou e andou bem meia légua sem sentir. (pg. 121)
A conversa os ajuda a alimentar a esperança de que vão conseguir
reconstruir sua vida. Ele fica preocupado com a possibilidade de
que fossem para um lugar que talvez não houvesse gado para
cuidar,
o seu trabalho até então . Mas “Sinhá Vitoria tentou
sossegá-lo dizendo que ele poderia entregar-se a outras ocupações”
(pg. 121). Sabemos que essas palavras de encorajamento são
fundamentais.
Fabiano sente saudade, mas também consegue
lembrar que naquele lugar que tinham abandonado havia coisas
que não eram boas: o soldado amarelo, o patrão... Na medida em
que vão caminhando, essas lembranças ruins vão esmorecendo. Se
no primeiro capítulo um dos filhos precisou ser carregado, dessa vez,
agora os dois meninos vão à frente: “Os meninos sumiam-se numa
curva do caminho. Fabiano adiantou-se para alcançá-los. Era preciso
aproveitar a disposição deles” (p. 122). E na medida em que Fabiano
vai dobrando o cotovelo da estrada, sentia “distanciar-se um pouco
dos lugares onde tinha vivido alguns anos”, e as lembranças do
patrão, do soldado amarelo e da cachorra Baleia “esmoreceram no
seu espírito”(pg. 122).
45
Quando Fabiano diz não ter certeza se encontrariam um lugar
melhor, Sinhá Vitória lhe dá forças. Ela não abre mão de pensar em
uma vida melhor, não se conformava com sua situação e, quando
questiona Fabiano, o ajuda a também imaginar uma vida mais digna:
Por que não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual
à do Seu Tomás da Bolandeira? (...) Por que haveriam de ser
sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com
certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam
viver escondidos como bichos? Fabiano respondeu que não
podiam: – O mundo é grande. (pg. 122-123).
Quando em sua conversa, Sinhá Vitória e Fabiano começam a
imaginar o futuro dos filhos, vemos o tema da necessidade dos pais
de acreditar que os filhos vão realizar o que eles não conseguiram
fazer completamente. A esperança dos pais é que seus filhos possam
ir além deles. Quando Sinhá Vitoria conta que “desejava saber o que
iriam fazer os filhos quando crescessem”, e Fabiano responde
“vaquejar”, ela balança a cabeça negativamente. Tem aspirações
diferentes para os filhos:
46
Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar,
que idéia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a
caatinga onde havia montes baixos, cascalho, rios secos,
espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não
voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os
sertanejos na mata. Então eles eram bois para morrer tristes
por falta de espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam
costumes diferentes. Fabiano ouviu os sonhos da mulher,
deslumbrado (pg. 123).
Fabiano ouve os sonhos da mulher deslumbrado, os sonhos dela
lhe deram ânimo para prosseguir a jornada. Pensamos então no
filósofo Ortega y Gasset, para quem a mulher tem uma
responsabilidade fundamental para com a pátria, a sociedade e a
história: de exercer sua feminilidade, que vai muito além do papel
de ser mãe. Para Ortega y Gasset todo homem capaz de amar
autenticamente já carrega dentro de si, desde a primeira juventude,
o ideal do feminino. E a mulher encarna, para o homem que a ama,
esse ideal. Sinhá Vitória encarna o ideal feminino para Fabiano Ao
exercer sua feminilidade, ela permite então que Fabiano possa
sonhar, fazer planos e sentir-se forte para realizá-los.. Ao ouvir os
sonhos de Sinhá Vitória, Fabiano fica maravilhado, acredita nos
47
sonhos dela e pode reconhecê-los como seus sonhos também. A
conversa com Sinhá Vitória possibilitou que caminhassem léguas
“quase sem sentir” (p. 124), e nesse estado de ânimo imaginou que
na sua frente encontraria um bebedouro. Vemos como Fabiano e
Sinhá Vitória se apoiam mutuamente na travessia da caatinga
deserta, e conseguem retirar do mais profundo de si um poder de
imaginar, de sonhar, para no futuro poder realizar.
A imagem do bebedouro lhes fortalece. Os sonhos que vão
construindo mostram que Fabiano e Vitória confiam na existência de
um lugar ainda desconhecido onde a vida pode ser melhor para seus
filhos. Apostam na vida e na possibilidade de um recomeço em que
seus filhos vão à escola, aprendendo a falar como o seu Tomás da
Bolandeira. Conhecer sua história nos mobiliza para dar o melhor de
nós, podendo reconhecer esses homens e mulheres como nossos
heróis:
Pouco a pouco, uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando.
Acomodar-se-iam num sítio
pequeno, o que parecia difícil a
Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra.
Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos freqüentariam
escolas, seriam diferentes deles (...) As palavras de Sinhá Vitória
encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra
48
desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra,
porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as
palavras de Sinhá Vitória, as palavras que Sinhá Vitória murmurava
porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele
sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em
escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Chegariam a uma
terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. (p. 127-128)
49
Anotações
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51
52
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