O LOCAL DA CULTURA EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE

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O LOCAL DA CULTURA EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE
O LOCAL DA CULTURA EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE MIA
COUTO: A FRONTEIRA ENTRE O ABISMO E O HORIZONTE
Devalcir Leonardo (UNESPAR/FECILCAM)
O presente artigo busca apresentar uma leitura do romance O último voo
do flamingo (2005), do escritor moçambicano Mia Couto, a obra retrata um
período pós-guerra civil de 1976 a 1992. Nesse cenário, a questão da
identidade cultural será apresentada a partir do choque de dois olhares: um
ancestral e outro moderno e eurocêntrico. Para proceder à leitura do romance
se terá como base os conceitos de Home Bhabha na obra O local da cultura
(1998) e Pratt na obra Os olhos do império (1999). Mia Couto, por meio da sua
literatura, propõe um caminho de mão dupla: a formação da identidade local
refratada na formação de um ser humano universal.
Palavras-chaves: Literatura africana, Pós-colonialismo, alteridade.
PLACE DE LA CULTURE DANS O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, LE MIA
COUTO: UNE FRONTIÈRE ENTRE LE GOUFFRE ET L'HORIZON
Cet article vise à présenter une lecture du roman O último voo do flamingo
(2005), l'écrivain mozambicain Mia Couto, le travail représente un post-guerre
civile de 1976 à 1992. Dans ce scénario, la question de l'identité culturelle sera
présentée par le choc de deux regards: une ancestrale et l'autre moderne et
eurocentrique. Pour rendre la lecture du roman sera basé sur les concepts de
Home Bhabha, de travailler O local da cultura (1998) et Pratt de travailler Os
olhos do império (1999). Mia Couto, à travers sa littérature, propose une voie à
double sens: la formation de l'identité locale réfractée dans la formation d'un
humain universel.
Mots-clés: littérature africaine, post-colonialisme, de l'altérité.
Introdução
O presente artigo busca evidenciar a problemática Eu/Outro na
construção de uma identidade cultural presente no romance moçambicano O
Último Voo do Flamingo (2005), de Mia Couto. Para isso, destacar-se-á o
desenvolvimento dos personagens Sulplício e do narrador do romance no
decorrer da trama, pois os mesmos apresentam uma relação ambivalente com
relação ao passado, o presente e o futuro de Moçambique. Como estratégia
metodológica utilizaremos das teorias do Pós-colonialismo destacando as
relações de alteridade e objetificação entre os personagens já destacados e o
olhar estrangeiro do investigador da ONU Massimo Risi.
O escritor moçambicano mais celebrado em língua portuguesa Mia
Couto apresenta como pano de fundo em sua narrativa e poesia os conflitos
sociais e culturais de seu país, neste sentido a guerra e a busca por uma
identidade cultural são temas recorrentes em sua literatura, isso pode ser
destacado em algumas destas obras: Terra sonâmbula (1992), A varanda do
frangipani (1996), Vinte e Zinco (1999), O último voo do flamingo (2000), Um rio
chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), O outro pé da sereia (2006),
Veneno de Deus, remédios do Diabo (2008) e A confissão da leoa (2012).
Reconhecido internacionalmente e traduzido para vários idiomas Mia Couto já
recebeu diversos prêmios como Vergílio Ferreira em 1999 pelo conjunto de sua
obra; prêmio Mário António, pelo livro O último voo do flamingo, em 2001; o
prêmio União Latina em abril de 2007; também em 2007, prêmio Passo Fundo
Zaffari & Bourbon de Literatura com o romance O outro pé da sereia e o prêmio
Eduardo Lourenço em 2011, entres outros. Mia Couto possui uma fortuna
crítica vasta como romance, contos, poesia e crônica.
A postura crítica do escritor frente aos problemas vivenciados pelo seu
país após séculos de dominação portuguesa (a presença portuguesa tem início
no século XVI) e anos de guerra civil (1976 a 1992) fez da obra de Mia Couto
um canto de esperança para o povo de Moçambique. Um escritor engajado em
causas éticas e filosóficas, porém tendo consciência do seu trabalho como
escritor ficcionista, vejamos sua opinião sobre a crítica social e o papel da
literatura,
Sim, desde que ela seja feita de forma literária. Quer dizer, é
preciso que o escritor não pense que seja um funcionário de
uma causa, é preciso que ele perceba que está trabalhando
numa outra dimensão. Mas ele não pode acreditar que está
acima disso, acima dos conflitos, daquilo que são as posturas
éticas. Isso tem que estar lá, marcado (COUTO, 2013, p. 04).
Devido todo esse processo de dominação colonial e guerra civil
Moçambique é hoje um dos países mais pobre do mundo segundo Mia Couto,
isso faz com que sua literatura apresente ingredientes oníricos tornando sua
prosa não tão presa à realidade que é sangrenta, pois “metade da minha vida
foi vivida em guerra, e é um dos países mais pobres do mundo —, tudo isso
nos instiga a fabricar um mundo que não seja colado na realidade” (COUTO,
2013, p. 04).
Esse recurso estilístico assegura ao texto uma atemporalidade e uma
universalidade de sentimento, tornando sua mensagem sempre atual, pois
alerta sobre barbárie humana que sempre nos ronda. Uma linguagem
constituída de ironias e metáforas produzindo uma recepção crítica da
realidade que não está presa ao continente africano, podendo estar em
qualquer lugar, essa postura ética e o sonho de esperança de um mundo
melhor faz da prosa miacoutiano um legado de humanização do ser humano.
O enredo do romance O Último Voo Flamingo (2005) apresenta uma
organização linear em que envolve fato da realidade (pós-guerra e o processo
de desminagem do país) com o maravilhoso (mitos e lendas), constituindo
assim, uma narrativa poética. Os fatos insólitos ocorrem na pequena vila de
Tizangara, soldados da ONU (Organização das Noções Unidas) explodem
misteriosamente, restando apenas seus órgãos sexuais e seus capacetes
azuis. Diante desse mistério, o consultor da ONU, o italiano Massimo Risi é
nomeado como representantes das Nações Unidas para investigar as mortes
dos soldados. As lideranças locais nomeiam um tradutor negro para
acompanhar o desenvolvimento da investigação. O livro é narrado em 1º
pessoa, pelo jovem tradutor que não apresenta um nome, pois seu relato pode
representar alegoricamente a voz do povo moçambicano ou a voz de todo um
continente africano.
Mia Couto elabora uma obra que mescla realidade e fantasia, sua
intenção é justamente chamar atenção dos leitores para um período de muita
violência que ocorreu em seu país até processo de independência em 1976 e
a guerra civil, para isso o realismo mágico será a estratégia estilística que
possibilita unir tanto a história real com toda uma tradição primitiva que estava
sendo esquecida em nome do progresso da modernidade, diante disso,
Thomas afirma que, “O papel do realismo mágico na literatura pós-colonial é a
associação da cultura indígena e da cultura ocidental. As fábulas, mitos e os
contos são misturados com a tradição do realismo (BONNICI, 2005, p. 51).
O conflito gerador do livro são as explosões dos soldados da ONU, no
entanto, com o desenrolar da investigação Massino Risi se vê cercado de um
mundo repleto de mistério, da cultura do povo de Moçambique, pois o olhar
para raiz primitiva sobreviveu em personagens como o feiticeiro Zeca
Andorinha, o pescador Sulplício, as mulheres enfeitiçadas ao envelhecimento
Hotensia e Temporina e a prostituta Ana Deusqueira que teve o último contato
com os soldados antes de morrerem. Esses personagens serão a chave para
que o italiano compreenda o mistério que reina na vila de Tizangara. Portador
de uma visão eurocêntrica Massimo Risi descarta todo este misticismo para
proceder a investigação com princípios racionais, munido de gravador o italiano
interroga as testemunhas-chaves, mas o investigador não consegue respostas
apenas identifica a corrupção e a exploração dos líderes representado pelos
personagens Estevão Jonas, administrador da província de Tizangara e seu
assessor Chupanga, antigos remanescentes da guerrilha que assolou o país
por 16 anos.
A temática conflitante no romance traz à tona dois mundos diferentes,
um marcado pela lógica da modernização, tendo o olhar eurocêntrico do
inspetor da ONU, Massimo Risi. Um segundo olhar, aparentemente
incompreensível, marca a resistência da cultura africana que muitas vezes foi
destruída pelo empreendimento colonialista ao impor pela cruz e a espada sua
ideologia.
O processo histórico de transformação acontece com a manutenção da
chamada burguesia nacional, pois segundo Thomas, “é a elite social,
geralmente de número reduzido, que começa a existir a partir do colonialismo.
Ela é educada no sistema educacional do colonizador [...]” (BONNICI, 2005, p.
17 e 18).
Neste
momento
histórico,
os
habitantes
passavam
por
uma
transposição de poder, não sedo mais colonos, mesmo assim o poder
centralizava-se em pequenos grupos que aplicavam as mesmas táticas
objetificadoras dos colonizadores. Sendo assim, o personagem que apresenta
uma postura subjetiva frente ao europeu é o pescador Sulplício, pois não aceita
a presença do branco em sua terra e também faz duras críticas ao governo de
Estevão Jonas. Sulplício acompanhou toda a mudança de poder do
colonialismo para a independência nacional, no entanto, o personagem conclui
em um tom irônico “mudamos apenas de patrão”.
O narrador da história
também ganha importância, pois é aquele que tem o poder da palavra, o poder
do discurso, para Foucault (1996, p.02) “[...] Mas o que há assim de tão
perigoso por as pessoas falarem, qual o perigo dos discursos se multiplicarem
indefinidamente? Onde é que está o perigo?” Neste artigo veremos que o
narrador será o portador da nova história de Tizangara.
Um espelho em fragmento uma identidade em formação
Para fundamentar a leitura da construção de uma identidade cultural,
tomaremos como base os argumentos de Home Bhabha, na obra O local da
cultura (1998), quando apresenta as ideias de Frantz Fanon em uma
perspectiva de resolver a problemática do Eu/Outro, na busca de superar “o
reflexo narcísico de Um no Outro”. Como outra possível saída para esta
relação Eu/Outro será apresentado o conceito de Zona de Contato discutido na
obra Os olhos do império, (1999), de PRATT. Os conceitos serão aplicados
tomando como foco principal deste artigo o olhar de subjetividade do pescador
Sulplício, diante do olhar eurocêntrico do investigador Massimo Risi e a
presença do narrador como tradutor, isto é, como portador do discurso da
alteridade.
No livro O local da Cultura (1998), Bhabha apresenta alguns conceitoschave de Fanon sobre a formação da identidade através de uma imagem
totalizadora, baseada ainda no mito narcisista da negritude ou da supremacia
branca,
[...] Negro não é. Nem tampouco branco. A incômoda divisão
que quebra a sua linha de pensamento mantém viva a
dramática e enigmática sensação. Aquele alinhamento familiar
de sujeitos coloniais – Negro/Branco, Eu/Outro – é perturbado
por meio de uma breve pausa e as bases tradicionais da
identidade racial são dispersadas, sempre que se descobre
serem elas fundadas nos mitos da negritude ou da supremacia
cultural branca (BHABHA, 1998, p. 70).
A
problemática
Eu/Outro
apresentada
por Bhabha
tendo seus
fundamentos nas ideias de Fanon, será comprovada na análise do romance,
quando o personagem Sulplício buscará demarcar um distanciamento entre ele
e o europeu, pois Sulplício busca manter sua alteridade, diante disso afirma
(BHABHA, 1998, p. 76) “Não é o Eu colonialista nem o Outro colonizado, mas a
perturbadora distância entre os dois que constitui a figura da alteridade
colonial”.
Esse conflito Eu/Outro apresenta um desdobramento na própria
configuração de uma nação, pois o romance O Último Voo do Flamingo (2005)
lançará de forma alegórica todo um questionamento sobre o desaparecimento
da cultura primitiva em detrimento do processo civilizacional. No final do
romance a ideia de vazio, do nada surge como uma alteridade para valorizar a
cultura primitiva, neste sentido Bhabha (1998, p. 79) afirma que o “texto póscolonial, o problema da identidade retorna como um questionamento
persistente do enquadramento, do espaço da representação, onde a imagem –
pessoa desaparecida, olho invisível [...] é confrontada por sua diferença,
Outra”.
O romance O Último Voo do Flamingo (2005) será melhor interpretado a
partir da teoria pós-colonialista diante de todo esse jogo de identidade,
“[...] contemplar o que está desaparecido ou invisível, é a
impossibilidade de reivindicar uma origem para o Eu (ou Outro)
dentro de uma tradição de representação que concebe a
identidade como satisfação de um objeto de visão totalizante,
plenitudinária (BHABHA, 1998, p. 79).
A relação de construção da identidade baseada na dicotomia
ausência/presença Bhabha (1998) argumenta que a imagem é a um só tempo
uma substituição metafórica, uma ilusão de presença, e por isso, uma
metonímia, um signo de sua ausência e perda. Na fronteira deslizante de
alteridade dentro da identidade, Fanon pergunta: O que quer um homem
negro? Como resposta a essa indagação Fanon diz:
[...] o homem negro quer o confronto objetificador com a
alteridade, na psique colonial há uma negação inconsciente do
momento negador, fendente, desejoso. [...] O Outro deve ser
visto como negação necessária de um identidade primordial –
cultural ou psíquica - que introduz o sistema de diferenciação
que permite ao cultural ser significado como realidade
linguística, simbólica, histórica (BHABHA, 1998, p. 86)
Toda essa conceituação da problemática Eu/Outro estará presente na
análise do romance, pois Sulplício luta para resgatar sua cultura primitiva
resistindo à influência da cultura europeia, no entanto, mesmo que o
personagem Sulplício não aceite as imposições da cultura eurocêntrica sua
cultura primitiva já se tornou híbrida, devido às trocas ocorridas desde a
colonização até o momento. O conceito de Zona de Contato é defendido como
um espaço colonial de troca por meio do encontro, “no qual as pessoas
separadas [..] entram em contato umas com as outras e estabelecem relações
contínuas, geralmente associadas à circunstância de coerção, desigualdade
radical (PRATT, 1999, p. 31).
Sendo assim, destacaremos o trajeto do personagem Sulplício e seu
filho identificando na relação Eu/Outro e as Zonas de contatos que são
estabelecidas no final do romance.
O suplício de uma nação (conta) minada.
A personagem Sulplício apresenta uma ambivalência, pois no período da
colonização o mesmo possuía poder, pois trabalhava como inspetor de caça,
porém seu lugar social foi sempre de colonizado, sofrendo os mesmos
preconceitos pelos portugueses, vejamos o comentário do narrador, “Era o
tempo colonial [...]. Ele era quase o único preto que detinha igual lugar.
- Sofri racismo, engoli saliva de sapo” (COUTO, 2005, p. 136).
Com a conquista e independência de Moçambique Sulplício é
desprezado por sua família, sendo também perseguido pelos novos líderes,
pois ficou do lado dos portugueses, como afirma o narrador, “minha mãe nunca
aceitou ele ter ficado do lado dos coloniais. Em contrapartida ela deitava glória
era nos que guerrilhavam a favor da independência. Como se dessa banda
todos fossem puros” (COUTO, 2005, p. 137).
A lógica do jogo de espelho proposto por Fanon demostra o primeiro
conflito de Sulplício, seu povo não mais o reconhecia como parte do grupo, o
pescador estava marcado como traidor de seu país. O discurso do colonizador
coopta os que se diferenciam dos demais colonizados, pois se “Você é um
médico, um estudante, você é diferente, você é um de nós” (BHABHA, 1998, p.
76). Mesmo tendo justificado que “_ Sofri racismos, engoli saliva de sapo”, os
revolucionários perseguiram Sulplício tirando o poder e sua dignidade. Vejamos
neste fato narrado o que Sulplício teve que suportar logo após a independência
do país,
Certa vez, meu velho apanhou em flagrante o enteado de
Jonas caçando elefante. Fora da época, fora da licença.
Prendeu-o. Foi seu erro. Dona Ermelinda, a esposa do chefe
apareceu na prisão aclamando que era perseguição política.
_Solte o meu filho – ordenou a Primeira Dama.
[...] Num segundo, o moço estava livre e ele, o fiscal-polícia,
estava preso de mãos amarradas. [...] Sulplício alertou para o
laço que lhe roubava o sangue das mãos. Em vão. Nenhum
colega se mexeu para defender. Foi Dona Ermelinda quem
juntou a maldade à maldade: espalhou sal nas cordas. E
mandou que apenas no dia seguinte lhe aliviassem a
amarradura (COUTO, 2005, p. 138).
Diante de tudo que passou, Sulplício argumenta que mesmo com a
independência o povo não conquistou sua liberdade, pois afirma: “mudamos
apenas de patrão” (COUTO, 2005, p. 137), o narrador apresenta as
expectativas do povo diante da Revolução, restando uma certeza, “eles
disseram que íamos ficar donos e mandantes. Todos se contentaram. Sulplício,
porém, se encheu de medo. Matar o patrão? Mais difícil é matar o escravo que
vive dentro de nós. Agora, nem patrão nem escravo” (COUTO, 2005, p. 137).
Neste momento, toma-se conhecimento da participação do personagem
Sulplício no conflito do romance, sua postura ambivalente retrata o
comportamento de submissão do colonizador devido todo um período de
dominação, como afirma o narrador,
Falaram muito de colonialismo. Mas isso foi coisa que eu
duvido que houvesse. O que fizeram esses homens brancos foi
ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós,
ocuparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que
apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra
(COUTO, 2005, 154).
A subjetividade de Sulplício fica bem nítida quando o mesmo argumenta
com seu filho a dominação do outro e quais são as estratégias para manter sua
alteridade diante do europeu,
_ E o estrangeiro?
_ Massimo? Ficou na pensão.
_Não deixe nunca que ele mande em si.
Eu que andasse com ele, porque andar com um branco me
podia acrescentar respeitos. Mas ser mandado, isso nunca.
Mesmo os brancos do passado nunca governaram. Nós
apenas lhe demos, com nossa fraqueza, a ilusão que
governaram.
_ Nem este de agora, estes nossos irmãos, colonos de dentro,
mandam como pensam (COUTO, 2005, p. 164).
Após a denúncia sobre as explosões, reveladas pela prostituta Ana
Deusqueira, identificando Estevão Jonas como o responsável pelas mortes dos
soldados e dos moradores:
_És tu que estás a matar pessoas. És tu, Estêvão Jonas!
_ Cala-te!
_ Tu é que mandas colocar as minas! Tu é que matas os
nossos irmãos.
_ Não escute, ela é doida – disse ele para mim.
_ Eu vi-te a semear as minas, eu vi...
_ Estêvão chegou ao limite. Ordenou a Chupanga:
_ Despachem essa gaja! (COUTO, 2005, p. 194).
Diante desse fato cai o poder de Estevão Jonas, Zeca Andorinha lidera
em conjunto com Sulplício uma nova organização para a vila de Tizangara.
Mais uma vez, veem à tona a subjetividade de Sulplício quando é convidado
para assumir um cargo na vila de Tizangara, mas não aceita, pois sua missão
seria reatar com os deuses dos antepassados, pois esse cargo é o mais alto
que almeja, “Os outros acreditaram ser mania de grandeza. Contudo meu pai,
só eu sabia, referia-se a outras dimensões, a outra altura. Essa inatingível,
onde nem homem nem suas infelicidades se distinguem” (COUTO, 2005, p.
2004).
A preocupação de Sulplício não é com o poder terrestre, mas sim, com
suas raízes culturais, com os antepassados, ao afirma que “os nossos
antepassados nos olham como filhos estranhos. E quando nos olham já não
nos reconhecem” (COUTO, 2005, p. 208).
No desenrolar do romance, percebe-se que a personagem Sulplício
ganha mais complexidade, pois é ele que vai de fato revelar o mistério de sua
terra ao estrangeiro. Neste momento, o romancista Mia Couto elabora a grande
alegoria que via ilustrar o caos de seu país no período pós-colonial e de pósguerra. Sulplício, seu filho e o italiano Massimo Rissi vê um país inteiro
desaparecer diante de seus olhos, uma nação completa desaparece de um
continente, restando apenas uma imensa cratera,
[...] afastamos do imenso buraco. Sentamos na sombra de uma
floresta. Meu pai então nos convocou. Sua cara era séria, sua
voz solene: ele sabia por que a nação desaparecera naquela
infinita cratera.
_ Isso é obra dos antepassados...
_ Não. Outra vez os antepassados!?
_Respeite, senhor Massimo. Isto é assunto nosso (COUTO,
2005, p. 216).
Diante desta grande representação alegórica, cuja interpretação pode
ser feita através da leitura de dois mundos diferentes: um mundo primitivo,
onde a cultura africana é vivenciada por meio da tradição do culto aos
antepassados, outro mundo marcado pela lógica da modernidade da civilização
ocidental, que no momento histórico de representação do romance é marcado
pela guerra e toda sua consequência para a população, um país repleto de
minas e milhares de pessoas mortas e mutiladas.
Para dar ênfase em sua crítica, Mia Couto apresenta esta grande
alegoria desaparecendo com todo um país, um imenso abismo que vai
simbolizar o choque destes dois mundos, primitivo e moderno. Neste momento
o
espelho narcísico não representa mais uma forma de construção da
identidade cultural. Pois o personagem Sulplício utilizava-se da mesma
metáfora do espelho para reencontrar sua identidade cultural, quando olha para
o passado para os seus antepassados espera uma imagem totalizadora,
Sulplício acreditava que a manutenção da identidade de seu povo só seria
possível com o retorno às origens primitivas, Bhabha apresenta os argumentos
de Fanon diante do reflexo do espelho,
Olha, um negro... Mamãe, olha um negro! Estou com medo....
Não pude mais rir, porque eu já sabia onde havia lendas,
histórias, e, acima de tudo historicidade... Então, atacado em
diversos pontos, o esquema corporal desmoronou, seu lugar
por um esquema corporal racial epidérmico... Já não era uma
questão de estar consciente do meu corpo na terceira pessoa,
mas em uma pessoa tripla.... Eu era responsável por meu
corpo, por minha raça, por meus ancestrais (BHABHA, 1998, p.
85).
O personagem Sulplício viveu em sua pele o preconceito dos
colonizadores, quando afirma que sofreu racismo e teve que engolir saliva de
sapo. Diante dos novos líderes Sulplício olha e identifica as mesmas práticas
de dominação, pois ao afirmar mudamos apenas de patrão, sendo assim
Sulplício busca reafirmar sua identidade tendo como única imagem seus
ancestrais, no entanto, a dinâmica da formação da identidade a partir de um
espelho narcísico deve ser substituído por outro ponto de partida, por uma
concepção que valorize o passado, mas também compreenda que uma cultura
está em constante transformação devido as Zonas de Contatos que se
estabelecem diante de outras culturas diferentes.
Sendo assim, o nada, o abismo é possivelmente a desconstrução do
espelho narcísico, para levar a um outro olhar, como argumenta Bhabha (1998,
p.80) “[...] pois ainda agora vocês olham, mas nunca me veem”, sendo que
“emerge o desafio de ver o que é invisível, o olhar que não pode ‘me ver”,
diante deste abismo é que pode surgir um novo olhar, um olhar de respeito às
diferenças e um olhar de esperança para o futuro da nação.
Segundo informação de Sulplício este fato insólito também ocorreu em
outras partes do continente africano,
Já acontecera com outras terras da África. Entregara-se o
destino dessas nações a ambiciosos que governaram como
hienas, pensado apenas em engordas rápido. Contra esses
desgovernantes se tinha experimentado o inatentável: ossinhos
mágicos, sangue de cabrito, fumos de presságio. Beijaram-se
as pedras, rezou-se aos santos. Tudo fora em vão: não havia
melhora para aqueles países. Faltava gente que amasse a
terra. Faltavam homens que pusessem respeito aos outros
homens (COUTO, 2005, p. 216).
Diante do abismo que eclipsou todo país, surge uma pequena canoa,
Sulplício e Massimo Risi vão em direção do “nada”, mas antes de embarcar
Sulplício deixa seu filho para que conte este acontecimento, valorizando assim
sua cultura em detrimento a cultura europeia, “_Fica, já disse. Para contar aos
outros o que aconteceu com o nosso mundo. Não quero que seja esse, de
fora, a falar desta nossa estória” (COUTO, 2005, p. 218).
O romance termina
de uma forma poética, o filho observa “... a canoa foi se afastando, pairando
sobre o nada. Já no longe, me pareceu ser não um barco, mas um pássaro.
Um flamingo que se afastava, pelos aléns. Até tudo ser neblinado, tudo
nuveado” (COUTO,2005, p. 218).
A presença do filho como tradutor do estrangeiro e narrador da história
ganha também complexidade, pois ele vai conduzir o discurso e aproximar o
estrangeiro e o leitor da sua cultura primitiva, vejamos
o tradutor, embora tenha a missão de passar para o
investigador os dados concretos que consegue obter das
testemunhas, aos poucos vai introduzindo o estrangeiro nos
meandros da cultura que pertence. Assim na verdade traduzir
para o outro [...] funciona como uma estratégia narrativa que
faz com que o leitor seja também o destinatário dos saberes
que o tradutor vai manipulando (SOARES, 2008, p.24).
Diante de toda a problemática observada na relação Eu/Outro, na
evolução do personagem Sulplício com o colonizador, os rebeldes e o próprio
europeu Massimo Risi demarca um revide por parte do pescador Sulplício ao
aceitar a cultura dos antepassados o que causava problema no reflexo da
imagem do povo, pois já não se identificam mais devido o processo de
colonização da mente e do corpo pela ideologia eurocêntrica torna-se a grande
arma de sobrevivência do povo segundo relato do narrador Couto (2005, p.
154) “Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, ocuparam no meio das nossas
cabeças”.
A atitude subversiva e de resistência de Sulplício é ilustrado por Bhabha
ao relatar a questão do uso do véu no artigo de Fanon Argélia sem véu,
A tentativa do colonizador de retirar o véu da mulher argelina
faz mais que transformar o véu em símbolo de resistência, ele
se torna uma técnica de camuflagem um instrumento de luta –
o véu oculta bombas. O véu que antes assegurava a fronteira
do lar – os limites da mulher – agora mascara a mulher em sua
atividade revolucionária, ligando a cidade árabe e o bairro
francês, transgredindo a fronteira familiar e colonial (BHABHA,
1998, p. 101).
Portanto, a atitude de Sulplício de ir ao encontro de sua cultura primitiva
revela a metáfora por trás da imagem do “abismo” do “nada”, para o pescador
era o retorno para sua casa primeira, mas aos olhos eurocêntricos e
objetificador continua sendo um nada, uma cultura invisível um povo invisível
fadado à miséria e à morte. No entanto, a alegoria do abismo revela justamente
a identidade perdida do povo de Tizangara, pois “dessa maneira os
colonizados afirmam a sua cultura e, ao mesmo tempo, criticam profundamente
as condições em que eles se encontram” (BONNICI, 2005, p. 52).
Mia Couto termina o romance sugerindo que a formação de uma
identidade cultural não se constituirá a partir do isolamento do diferente, mas
sim a metáfora da canoa que simboliza de forma metonímica duas culturas
juntas africana e europeia no mesmo barco em busca de novos caminhos,
representando que ambas as culturas estão marcadas para sempre pela Zona
de Contato estabelecido no processo histórico. Cada sujeito mantendo sua
cultura, sem a pretensão de ser totalizante, mas apenas diferente. Porém essa
postura só é possível a partir da edificação da alteridade frente ao outro para
isso é necessário segundo Thomas uma “descolonização um processo de
desmascaramento e demolição do poder colonial em todos os seus aspectos”
(BONNICI, 2010, p. 236).
A imagem que o narrador tem da canoa é do pássaro que simboliza a
chegada de novo dia, assim o flamingo representa a metáfora da esperança de
toda uma nação, ou quiçá de todo um continente, pois este mesmo povo que
caminha por terrenos minados não cansa de olhar para o céu a espera de dias
melhores. Acreditando que não será o último voo do flamingo.
Considerações
Por meio dos conceitos da teoria pós-colonialismo podemos apreender
do romance O Último Voo do Flamingo (2005) toda uma crítica àqueles que
semearam a guerra e a miséria entre o povo, reproduzindo a mesma
dominação dos colonizadores retratado na fala de Sulplício mudamos apenas
de patrão.
Neste sentido, o romance é um painel do jogo de poder que se instalou
em Moçambique logo após sua independência em 1976. Para representar este
conflito foi destacado o personagem Sulplício e seu filho o narrador da história
pelas suas posturas ambivalentes diante do colonizador, dos rebeldes e do
estrangeiro Massimo Risi, sendo que seu conflito está marcado pelo choque
das culturas primitivas e modernas.
Sulplício passa boa parte do romance reivindicando um passado que
não volta mais, pois sabe que os deuses quando nos olham não nos
reconhecem mais, mas no final do Sulplício se lança justamente com o europeu
diante do “nada”, que simbolicamente serve de alerta para o seu povo, que
uma cultura sobrevive quando cultiva as tradições mas também se projeta para
o futuro, para o novo, para o diferente. Pois como vimos nas teorias de Fanon
uma identidade é formada não na ausência do outro, mas a partir das
diferenças que cada povo apresenta. Sabendo que não há uma cultura “pura” e
totalizante cada povo é contaminado por outro povo constituindo assim uma
cultura elaborada por meio de um mosaico, mantendo assim sua alteridade.
Ao filho, o narrador da história, fica a missão de contar aos outros os que
aconteceu, a escolha do pai revela que todo discurso deve permanecer vivo e
proferido por palavra escrita ou falada, pois para Foucault (1996, p. 02) “Devo
continuar. Eu não posso continuar. Devo continuar. Devo dizer palavras
enquanto as houver. Devo dizê-las até que elas me encontrem”. Ao narrar os
fatos transformando os mitos em História proporciona ao narrador o encontro
com sua origem, pois segundo Pepetela (2012, p. 15) “Não faz mal a ninguém.
Só faz bem, pois aumenta a autoestima do povo. E serve para chamar a
atenção para os buracos que temos no conhecimento de nossa identidade”.
O grande mérito do romance é este olhar inquietante do escritor Mia
Couto, por meio de uma linguagem irônica o romancista articula uma crítica
social com a capacidade de fazer o povo sonhar com dias melhores, olhando
para o futuro sabendo que não será o último voo do flamingo.
Referências
BHABHA, H.K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá:
Eduem, 2005.
BONNICI, Thomas. ZOLIN, Lúcia Ozana; Teoria literária: abordagens históricas
e tendências contemporâneas. Maringá. Eduem, 2010.
COUTO, Mia. O Último Voo do Flamingo. São Paulo. Companhia das Letras,
2005.
___________.Quando o sonho encontra a palavra. Jornal Rascunho, nº 153,
p. 4, Jan. 2013. Entrevista concedida a Guilherme Magalhães.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. de Laura Fraga de Almeida
Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.
FONSECA, M. Nazareth Soares, Cury, M. Zilda Ferreira Curi. Mia Couto:
espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
PRATT, M. L. Os olhos do império. Bauru: USC, 1999.
PEPETELA. Com sabor de História. Revista Língua Portuguesa, nº 81, p. 15,
jul 2012. Entrevista concedida a Leonardo Fuhrmann.

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