O LOCAL DA CULTURA EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE
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O LOCAL DA CULTURA EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE
O LOCAL DA CULTURA EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE MIA COUTO: A FRONTEIRA ENTRE O ABISMO E O HORIZONTE Devalcir Leonardo (UNESPAR/FECILCAM) O presente artigo busca apresentar uma leitura do romance O último voo do flamingo (2005), do escritor moçambicano Mia Couto, a obra retrata um período pós-guerra civil de 1976 a 1992. Nesse cenário, a questão da identidade cultural será apresentada a partir do choque de dois olhares: um ancestral e outro moderno e eurocêntrico. Para proceder à leitura do romance se terá como base os conceitos de Home Bhabha na obra O local da cultura (1998) e Pratt na obra Os olhos do império (1999). Mia Couto, por meio da sua literatura, propõe um caminho de mão dupla: a formação da identidade local refratada na formação de um ser humano universal. Palavras-chaves: Literatura africana, Pós-colonialismo, alteridade. PLACE DE LA CULTURE DANS O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, LE MIA COUTO: UNE FRONTIÈRE ENTRE LE GOUFFRE ET L'HORIZON Cet article vise à présenter une lecture du roman O último voo do flamingo (2005), l'écrivain mozambicain Mia Couto, le travail représente un post-guerre civile de 1976 à 1992. Dans ce scénario, la question de l'identité culturelle sera présentée par le choc de deux regards: une ancestrale et l'autre moderne et eurocentrique. Pour rendre la lecture du roman sera basé sur les concepts de Home Bhabha, de travailler O local da cultura (1998) et Pratt de travailler Os olhos do império (1999). Mia Couto, à travers sa littérature, propose une voie à double sens: la formation de l'identité locale réfractée dans la formation d'un humain universel. Mots-clés: littérature africaine, post-colonialisme, de l'altérité. Introdução O presente artigo busca evidenciar a problemática Eu/Outro na construção de uma identidade cultural presente no romance moçambicano O Último Voo do Flamingo (2005), de Mia Couto. Para isso, destacar-se-á o desenvolvimento dos personagens Sulplício e do narrador do romance no decorrer da trama, pois os mesmos apresentam uma relação ambivalente com relação ao passado, o presente e o futuro de Moçambique. Como estratégia metodológica utilizaremos das teorias do Pós-colonialismo destacando as relações de alteridade e objetificação entre os personagens já destacados e o olhar estrangeiro do investigador da ONU Massimo Risi. O escritor moçambicano mais celebrado em língua portuguesa Mia Couto apresenta como pano de fundo em sua narrativa e poesia os conflitos sociais e culturais de seu país, neste sentido a guerra e a busca por uma identidade cultural são temas recorrentes em sua literatura, isso pode ser destacado em algumas destas obras: Terra sonâmbula (1992), A varanda do frangipani (1996), Vinte e Zinco (1999), O último voo do flamingo (2000), Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), O outro pé da sereia (2006), Veneno de Deus, remédios do Diabo (2008) e A confissão da leoa (2012). Reconhecido internacionalmente e traduzido para vários idiomas Mia Couto já recebeu diversos prêmios como Vergílio Ferreira em 1999 pelo conjunto de sua obra; prêmio Mário António, pelo livro O último voo do flamingo, em 2001; o prêmio União Latina em abril de 2007; também em 2007, prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura com o romance O outro pé da sereia e o prêmio Eduardo Lourenço em 2011, entres outros. Mia Couto possui uma fortuna crítica vasta como romance, contos, poesia e crônica. A postura crítica do escritor frente aos problemas vivenciados pelo seu país após séculos de dominação portuguesa (a presença portuguesa tem início no século XVI) e anos de guerra civil (1976 a 1992) fez da obra de Mia Couto um canto de esperança para o povo de Moçambique. Um escritor engajado em causas éticas e filosóficas, porém tendo consciência do seu trabalho como escritor ficcionista, vejamos sua opinião sobre a crítica social e o papel da literatura, Sim, desde que ela seja feita de forma literária. Quer dizer, é preciso que o escritor não pense que seja um funcionário de uma causa, é preciso que ele perceba que está trabalhando numa outra dimensão. Mas ele não pode acreditar que está acima disso, acima dos conflitos, daquilo que são as posturas éticas. Isso tem que estar lá, marcado (COUTO, 2013, p. 04). Devido todo esse processo de dominação colonial e guerra civil Moçambique é hoje um dos países mais pobre do mundo segundo Mia Couto, isso faz com que sua literatura apresente ingredientes oníricos tornando sua prosa não tão presa à realidade que é sangrenta, pois “metade da minha vida foi vivida em guerra, e é um dos países mais pobres do mundo —, tudo isso nos instiga a fabricar um mundo que não seja colado na realidade” (COUTO, 2013, p. 04). Esse recurso estilístico assegura ao texto uma atemporalidade e uma universalidade de sentimento, tornando sua mensagem sempre atual, pois alerta sobre barbárie humana que sempre nos ronda. Uma linguagem constituída de ironias e metáforas produzindo uma recepção crítica da realidade que não está presa ao continente africano, podendo estar em qualquer lugar, essa postura ética e o sonho de esperança de um mundo melhor faz da prosa miacoutiano um legado de humanização do ser humano. O enredo do romance O Último Voo Flamingo (2005) apresenta uma organização linear em que envolve fato da realidade (pós-guerra e o processo de desminagem do país) com o maravilhoso (mitos e lendas), constituindo assim, uma narrativa poética. Os fatos insólitos ocorrem na pequena vila de Tizangara, soldados da ONU (Organização das Noções Unidas) explodem misteriosamente, restando apenas seus órgãos sexuais e seus capacetes azuis. Diante desse mistério, o consultor da ONU, o italiano Massimo Risi é nomeado como representantes das Nações Unidas para investigar as mortes dos soldados. As lideranças locais nomeiam um tradutor negro para acompanhar o desenvolvimento da investigação. O livro é narrado em 1º pessoa, pelo jovem tradutor que não apresenta um nome, pois seu relato pode representar alegoricamente a voz do povo moçambicano ou a voz de todo um continente africano. Mia Couto elabora uma obra que mescla realidade e fantasia, sua intenção é justamente chamar atenção dos leitores para um período de muita violência que ocorreu em seu país até processo de independência em 1976 e a guerra civil, para isso o realismo mágico será a estratégia estilística que possibilita unir tanto a história real com toda uma tradição primitiva que estava sendo esquecida em nome do progresso da modernidade, diante disso, Thomas afirma que, “O papel do realismo mágico na literatura pós-colonial é a associação da cultura indígena e da cultura ocidental. As fábulas, mitos e os contos são misturados com a tradição do realismo (BONNICI, 2005, p. 51). O conflito gerador do livro são as explosões dos soldados da ONU, no entanto, com o desenrolar da investigação Massino Risi se vê cercado de um mundo repleto de mistério, da cultura do povo de Moçambique, pois o olhar para raiz primitiva sobreviveu em personagens como o feiticeiro Zeca Andorinha, o pescador Sulplício, as mulheres enfeitiçadas ao envelhecimento Hotensia e Temporina e a prostituta Ana Deusqueira que teve o último contato com os soldados antes de morrerem. Esses personagens serão a chave para que o italiano compreenda o mistério que reina na vila de Tizangara. Portador de uma visão eurocêntrica Massimo Risi descarta todo este misticismo para proceder a investigação com princípios racionais, munido de gravador o italiano interroga as testemunhas-chaves, mas o investigador não consegue respostas apenas identifica a corrupção e a exploração dos líderes representado pelos personagens Estevão Jonas, administrador da província de Tizangara e seu assessor Chupanga, antigos remanescentes da guerrilha que assolou o país por 16 anos. A temática conflitante no romance traz à tona dois mundos diferentes, um marcado pela lógica da modernização, tendo o olhar eurocêntrico do inspetor da ONU, Massimo Risi. Um segundo olhar, aparentemente incompreensível, marca a resistência da cultura africana que muitas vezes foi destruída pelo empreendimento colonialista ao impor pela cruz e a espada sua ideologia. O processo histórico de transformação acontece com a manutenção da chamada burguesia nacional, pois segundo Thomas, “é a elite social, geralmente de número reduzido, que começa a existir a partir do colonialismo. Ela é educada no sistema educacional do colonizador [...]” (BONNICI, 2005, p. 17 e 18). Neste momento histórico, os habitantes passavam por uma transposição de poder, não sedo mais colonos, mesmo assim o poder centralizava-se em pequenos grupos que aplicavam as mesmas táticas objetificadoras dos colonizadores. Sendo assim, o personagem que apresenta uma postura subjetiva frente ao europeu é o pescador Sulplício, pois não aceita a presença do branco em sua terra e também faz duras críticas ao governo de Estevão Jonas. Sulplício acompanhou toda a mudança de poder do colonialismo para a independência nacional, no entanto, o personagem conclui em um tom irônico “mudamos apenas de patrão”. O narrador da história também ganha importância, pois é aquele que tem o poder da palavra, o poder do discurso, para Foucault (1996, p.02) “[...] Mas o que há assim de tão perigoso por as pessoas falarem, qual o perigo dos discursos se multiplicarem indefinidamente? Onde é que está o perigo?” Neste artigo veremos que o narrador será o portador da nova história de Tizangara. Um espelho em fragmento uma identidade em formação Para fundamentar a leitura da construção de uma identidade cultural, tomaremos como base os argumentos de Home Bhabha, na obra O local da cultura (1998), quando apresenta as ideias de Frantz Fanon em uma perspectiva de resolver a problemática do Eu/Outro, na busca de superar “o reflexo narcísico de Um no Outro”. Como outra possível saída para esta relação Eu/Outro será apresentado o conceito de Zona de Contato discutido na obra Os olhos do império, (1999), de PRATT. Os conceitos serão aplicados tomando como foco principal deste artigo o olhar de subjetividade do pescador Sulplício, diante do olhar eurocêntrico do investigador Massimo Risi e a presença do narrador como tradutor, isto é, como portador do discurso da alteridade. No livro O local da Cultura (1998), Bhabha apresenta alguns conceitoschave de Fanon sobre a formação da identidade através de uma imagem totalizadora, baseada ainda no mito narcisista da negritude ou da supremacia branca, [...] Negro não é. Nem tampouco branco. A incômoda divisão que quebra a sua linha de pensamento mantém viva a dramática e enigmática sensação. Aquele alinhamento familiar de sujeitos coloniais – Negro/Branco, Eu/Outro – é perturbado por meio de uma breve pausa e as bases tradicionais da identidade racial são dispersadas, sempre que se descobre serem elas fundadas nos mitos da negritude ou da supremacia cultural branca (BHABHA, 1998, p. 70). A problemática Eu/Outro apresentada por Bhabha tendo seus fundamentos nas ideias de Fanon, será comprovada na análise do romance, quando o personagem Sulplício buscará demarcar um distanciamento entre ele e o europeu, pois Sulplício busca manter sua alteridade, diante disso afirma (BHABHA, 1998, p. 76) “Não é o Eu colonialista nem o Outro colonizado, mas a perturbadora distância entre os dois que constitui a figura da alteridade colonial”. Esse conflito Eu/Outro apresenta um desdobramento na própria configuração de uma nação, pois o romance O Último Voo do Flamingo (2005) lançará de forma alegórica todo um questionamento sobre o desaparecimento da cultura primitiva em detrimento do processo civilizacional. No final do romance a ideia de vazio, do nada surge como uma alteridade para valorizar a cultura primitiva, neste sentido Bhabha (1998, p. 79) afirma que o “texto póscolonial, o problema da identidade retorna como um questionamento persistente do enquadramento, do espaço da representação, onde a imagem – pessoa desaparecida, olho invisível [...] é confrontada por sua diferença, Outra”. O romance O Último Voo do Flamingo (2005) será melhor interpretado a partir da teoria pós-colonialista diante de todo esse jogo de identidade, “[...] contemplar o que está desaparecido ou invisível, é a impossibilidade de reivindicar uma origem para o Eu (ou Outro) dentro de uma tradição de representação que concebe a identidade como satisfação de um objeto de visão totalizante, plenitudinária (BHABHA, 1998, p. 79). A relação de construção da identidade baseada na dicotomia ausência/presença Bhabha (1998) argumenta que a imagem é a um só tempo uma substituição metafórica, uma ilusão de presença, e por isso, uma metonímia, um signo de sua ausência e perda. Na fronteira deslizante de alteridade dentro da identidade, Fanon pergunta: O que quer um homem negro? Como resposta a essa indagação Fanon diz: [...] o homem negro quer o confronto objetificador com a alteridade, na psique colonial há uma negação inconsciente do momento negador, fendente, desejoso. [...] O Outro deve ser visto como negação necessária de um identidade primordial – cultural ou psíquica - que introduz o sistema de diferenciação que permite ao cultural ser significado como realidade linguística, simbólica, histórica (BHABHA, 1998, p. 86) Toda essa conceituação da problemática Eu/Outro estará presente na análise do romance, pois Sulplício luta para resgatar sua cultura primitiva resistindo à influência da cultura europeia, no entanto, mesmo que o personagem Sulplício não aceite as imposições da cultura eurocêntrica sua cultura primitiva já se tornou híbrida, devido às trocas ocorridas desde a colonização até o momento. O conceito de Zona de Contato é defendido como um espaço colonial de troca por meio do encontro, “no qual as pessoas separadas [..] entram em contato umas com as outras e estabelecem relações contínuas, geralmente associadas à circunstância de coerção, desigualdade radical (PRATT, 1999, p. 31). Sendo assim, destacaremos o trajeto do personagem Sulplício e seu filho identificando na relação Eu/Outro e as Zonas de contatos que são estabelecidas no final do romance. O suplício de uma nação (conta) minada. A personagem Sulplício apresenta uma ambivalência, pois no período da colonização o mesmo possuía poder, pois trabalhava como inspetor de caça, porém seu lugar social foi sempre de colonizado, sofrendo os mesmos preconceitos pelos portugueses, vejamos o comentário do narrador, “Era o tempo colonial [...]. Ele era quase o único preto que detinha igual lugar. - Sofri racismo, engoli saliva de sapo” (COUTO, 2005, p. 136). Com a conquista e independência de Moçambique Sulplício é desprezado por sua família, sendo também perseguido pelos novos líderes, pois ficou do lado dos portugueses, como afirma o narrador, “minha mãe nunca aceitou ele ter ficado do lado dos coloniais. Em contrapartida ela deitava glória era nos que guerrilhavam a favor da independência. Como se dessa banda todos fossem puros” (COUTO, 2005, p. 137). A lógica do jogo de espelho proposto por Fanon demostra o primeiro conflito de Sulplício, seu povo não mais o reconhecia como parte do grupo, o pescador estava marcado como traidor de seu país. O discurso do colonizador coopta os que se diferenciam dos demais colonizados, pois se “Você é um médico, um estudante, você é diferente, você é um de nós” (BHABHA, 1998, p. 76). Mesmo tendo justificado que “_ Sofri racismos, engoli saliva de sapo”, os revolucionários perseguiram Sulplício tirando o poder e sua dignidade. Vejamos neste fato narrado o que Sulplício teve que suportar logo após a independência do país, Certa vez, meu velho apanhou em flagrante o enteado de Jonas caçando elefante. Fora da época, fora da licença. Prendeu-o. Foi seu erro. Dona Ermelinda, a esposa do chefe apareceu na prisão aclamando que era perseguição política. _Solte o meu filho – ordenou a Primeira Dama. [...] Num segundo, o moço estava livre e ele, o fiscal-polícia, estava preso de mãos amarradas. [...] Sulplício alertou para o laço que lhe roubava o sangue das mãos. Em vão. Nenhum colega se mexeu para defender. Foi Dona Ermelinda quem juntou a maldade à maldade: espalhou sal nas cordas. E mandou que apenas no dia seguinte lhe aliviassem a amarradura (COUTO, 2005, p. 138). Diante de tudo que passou, Sulplício argumenta que mesmo com a independência o povo não conquistou sua liberdade, pois afirma: “mudamos apenas de patrão” (COUTO, 2005, p. 137), o narrador apresenta as expectativas do povo diante da Revolução, restando uma certeza, “eles disseram que íamos ficar donos e mandantes. Todos se contentaram. Sulplício, porém, se encheu de medo. Matar o patrão? Mais difícil é matar o escravo que vive dentro de nós. Agora, nem patrão nem escravo” (COUTO, 2005, p. 137). Neste momento, toma-se conhecimento da participação do personagem Sulplício no conflito do romance, sua postura ambivalente retrata o comportamento de submissão do colonizador devido todo um período de dominação, como afirma o narrador, Falaram muito de colonialismo. Mas isso foi coisa que eu duvido que houvesse. O que fizeram esses homens brancos foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, ocuparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora não acendemos nem damos sombra (COUTO, 2005, 154). A subjetividade de Sulplício fica bem nítida quando o mesmo argumenta com seu filho a dominação do outro e quais são as estratégias para manter sua alteridade diante do europeu, _ E o estrangeiro? _ Massimo? Ficou na pensão. _Não deixe nunca que ele mande em si. Eu que andasse com ele, porque andar com um branco me podia acrescentar respeitos. Mas ser mandado, isso nunca. Mesmo os brancos do passado nunca governaram. Nós apenas lhe demos, com nossa fraqueza, a ilusão que governaram. _ Nem este de agora, estes nossos irmãos, colonos de dentro, mandam como pensam (COUTO, 2005, p. 164). Após a denúncia sobre as explosões, reveladas pela prostituta Ana Deusqueira, identificando Estevão Jonas como o responsável pelas mortes dos soldados e dos moradores: _És tu que estás a matar pessoas. És tu, Estêvão Jonas! _ Cala-te! _ Tu é que mandas colocar as minas! Tu é que matas os nossos irmãos. _ Não escute, ela é doida – disse ele para mim. _ Eu vi-te a semear as minas, eu vi... _ Estêvão chegou ao limite. Ordenou a Chupanga: _ Despachem essa gaja! (COUTO, 2005, p. 194). Diante desse fato cai o poder de Estevão Jonas, Zeca Andorinha lidera em conjunto com Sulplício uma nova organização para a vila de Tizangara. Mais uma vez, veem à tona a subjetividade de Sulplício quando é convidado para assumir um cargo na vila de Tizangara, mas não aceita, pois sua missão seria reatar com os deuses dos antepassados, pois esse cargo é o mais alto que almeja, “Os outros acreditaram ser mania de grandeza. Contudo meu pai, só eu sabia, referia-se a outras dimensões, a outra altura. Essa inatingível, onde nem homem nem suas infelicidades se distinguem” (COUTO, 2005, p. 2004). A preocupação de Sulplício não é com o poder terrestre, mas sim, com suas raízes culturais, com os antepassados, ao afirma que “os nossos antepassados nos olham como filhos estranhos. E quando nos olham já não nos reconhecem” (COUTO, 2005, p. 208). No desenrolar do romance, percebe-se que a personagem Sulplício ganha mais complexidade, pois é ele que vai de fato revelar o mistério de sua terra ao estrangeiro. Neste momento, o romancista Mia Couto elabora a grande alegoria que via ilustrar o caos de seu país no período pós-colonial e de pósguerra. Sulplício, seu filho e o italiano Massimo Rissi vê um país inteiro desaparecer diante de seus olhos, uma nação completa desaparece de um continente, restando apenas uma imensa cratera, [...] afastamos do imenso buraco. Sentamos na sombra de uma floresta. Meu pai então nos convocou. Sua cara era séria, sua voz solene: ele sabia por que a nação desaparecera naquela infinita cratera. _ Isso é obra dos antepassados... _ Não. Outra vez os antepassados!? _Respeite, senhor Massimo. Isto é assunto nosso (COUTO, 2005, p. 216). Diante desta grande representação alegórica, cuja interpretação pode ser feita através da leitura de dois mundos diferentes: um mundo primitivo, onde a cultura africana é vivenciada por meio da tradição do culto aos antepassados, outro mundo marcado pela lógica da modernidade da civilização ocidental, que no momento histórico de representação do romance é marcado pela guerra e toda sua consequência para a população, um país repleto de minas e milhares de pessoas mortas e mutiladas. Para dar ênfase em sua crítica, Mia Couto apresenta esta grande alegoria desaparecendo com todo um país, um imenso abismo que vai simbolizar o choque destes dois mundos, primitivo e moderno. Neste momento o espelho narcísico não representa mais uma forma de construção da identidade cultural. Pois o personagem Sulplício utilizava-se da mesma metáfora do espelho para reencontrar sua identidade cultural, quando olha para o passado para os seus antepassados espera uma imagem totalizadora, Sulplício acreditava que a manutenção da identidade de seu povo só seria possível com o retorno às origens primitivas, Bhabha apresenta os argumentos de Fanon diante do reflexo do espelho, Olha, um negro... Mamãe, olha um negro! Estou com medo.... Não pude mais rir, porque eu já sabia onde havia lendas, histórias, e, acima de tudo historicidade... Então, atacado em diversos pontos, o esquema corporal desmoronou, seu lugar por um esquema corporal racial epidérmico... Já não era uma questão de estar consciente do meu corpo na terceira pessoa, mas em uma pessoa tripla.... Eu era responsável por meu corpo, por minha raça, por meus ancestrais (BHABHA, 1998, p. 85). O personagem Sulplício viveu em sua pele o preconceito dos colonizadores, quando afirma que sofreu racismo e teve que engolir saliva de sapo. Diante dos novos líderes Sulplício olha e identifica as mesmas práticas de dominação, pois ao afirmar mudamos apenas de patrão, sendo assim Sulplício busca reafirmar sua identidade tendo como única imagem seus ancestrais, no entanto, a dinâmica da formação da identidade a partir de um espelho narcísico deve ser substituído por outro ponto de partida, por uma concepção que valorize o passado, mas também compreenda que uma cultura está em constante transformação devido as Zonas de Contatos que se estabelecem diante de outras culturas diferentes. Sendo assim, o nada, o abismo é possivelmente a desconstrução do espelho narcísico, para levar a um outro olhar, como argumenta Bhabha (1998, p.80) “[...] pois ainda agora vocês olham, mas nunca me veem”, sendo que “emerge o desafio de ver o que é invisível, o olhar que não pode ‘me ver”, diante deste abismo é que pode surgir um novo olhar, um olhar de respeito às diferenças e um olhar de esperança para o futuro da nação. Segundo informação de Sulplício este fato insólito também ocorreu em outras partes do continente africano, Já acontecera com outras terras da África. Entregara-se o destino dessas nações a ambiciosos que governaram como hienas, pensado apenas em engordas rápido. Contra esses desgovernantes se tinha experimentado o inatentável: ossinhos mágicos, sangue de cabrito, fumos de presságio. Beijaram-se as pedras, rezou-se aos santos. Tudo fora em vão: não havia melhora para aqueles países. Faltava gente que amasse a terra. Faltavam homens que pusessem respeito aos outros homens (COUTO, 2005, p. 216). Diante do abismo que eclipsou todo país, surge uma pequena canoa, Sulplício e Massimo Risi vão em direção do “nada”, mas antes de embarcar Sulplício deixa seu filho para que conte este acontecimento, valorizando assim sua cultura em detrimento a cultura europeia, “_Fica, já disse. Para contar aos outros o que aconteceu com o nosso mundo. Não quero que seja esse, de fora, a falar desta nossa estória” (COUTO, 2005, p. 218). O romance termina de uma forma poética, o filho observa “... a canoa foi se afastando, pairando sobre o nada. Já no longe, me pareceu ser não um barco, mas um pássaro. Um flamingo que se afastava, pelos aléns. Até tudo ser neblinado, tudo nuveado” (COUTO,2005, p. 218). A presença do filho como tradutor do estrangeiro e narrador da história ganha também complexidade, pois ele vai conduzir o discurso e aproximar o estrangeiro e o leitor da sua cultura primitiva, vejamos o tradutor, embora tenha a missão de passar para o investigador os dados concretos que consegue obter das testemunhas, aos poucos vai introduzindo o estrangeiro nos meandros da cultura que pertence. Assim na verdade traduzir para o outro [...] funciona como uma estratégia narrativa que faz com que o leitor seja também o destinatário dos saberes que o tradutor vai manipulando (SOARES, 2008, p.24). Diante de toda a problemática observada na relação Eu/Outro, na evolução do personagem Sulplício com o colonizador, os rebeldes e o próprio europeu Massimo Risi demarca um revide por parte do pescador Sulplício ao aceitar a cultura dos antepassados o que causava problema no reflexo da imagem do povo, pois já não se identificam mais devido o processo de colonização da mente e do corpo pela ideologia eurocêntrica torna-se a grande arma de sobrevivência do povo segundo relato do narrador Couto (2005, p. 154) “Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, ocuparam no meio das nossas cabeças”. A atitude subversiva e de resistência de Sulplício é ilustrado por Bhabha ao relatar a questão do uso do véu no artigo de Fanon Argélia sem véu, A tentativa do colonizador de retirar o véu da mulher argelina faz mais que transformar o véu em símbolo de resistência, ele se torna uma técnica de camuflagem um instrumento de luta – o véu oculta bombas. O véu que antes assegurava a fronteira do lar – os limites da mulher – agora mascara a mulher em sua atividade revolucionária, ligando a cidade árabe e o bairro francês, transgredindo a fronteira familiar e colonial (BHABHA, 1998, p. 101). Portanto, a atitude de Sulplício de ir ao encontro de sua cultura primitiva revela a metáfora por trás da imagem do “abismo” do “nada”, para o pescador era o retorno para sua casa primeira, mas aos olhos eurocêntricos e objetificador continua sendo um nada, uma cultura invisível um povo invisível fadado à miséria e à morte. No entanto, a alegoria do abismo revela justamente a identidade perdida do povo de Tizangara, pois “dessa maneira os colonizados afirmam a sua cultura e, ao mesmo tempo, criticam profundamente as condições em que eles se encontram” (BONNICI, 2005, p. 52). Mia Couto termina o romance sugerindo que a formação de uma identidade cultural não se constituirá a partir do isolamento do diferente, mas sim a metáfora da canoa que simboliza de forma metonímica duas culturas juntas africana e europeia no mesmo barco em busca de novos caminhos, representando que ambas as culturas estão marcadas para sempre pela Zona de Contato estabelecido no processo histórico. Cada sujeito mantendo sua cultura, sem a pretensão de ser totalizante, mas apenas diferente. Porém essa postura só é possível a partir da edificação da alteridade frente ao outro para isso é necessário segundo Thomas uma “descolonização um processo de desmascaramento e demolição do poder colonial em todos os seus aspectos” (BONNICI, 2010, p. 236). A imagem que o narrador tem da canoa é do pássaro que simboliza a chegada de novo dia, assim o flamingo representa a metáfora da esperança de toda uma nação, ou quiçá de todo um continente, pois este mesmo povo que caminha por terrenos minados não cansa de olhar para o céu a espera de dias melhores. Acreditando que não será o último voo do flamingo. Considerações Por meio dos conceitos da teoria pós-colonialismo podemos apreender do romance O Último Voo do Flamingo (2005) toda uma crítica àqueles que semearam a guerra e a miséria entre o povo, reproduzindo a mesma dominação dos colonizadores retratado na fala de Sulplício mudamos apenas de patrão. Neste sentido, o romance é um painel do jogo de poder que se instalou em Moçambique logo após sua independência em 1976. Para representar este conflito foi destacado o personagem Sulplício e seu filho o narrador da história pelas suas posturas ambivalentes diante do colonizador, dos rebeldes e do estrangeiro Massimo Risi, sendo que seu conflito está marcado pelo choque das culturas primitivas e modernas. Sulplício passa boa parte do romance reivindicando um passado que não volta mais, pois sabe que os deuses quando nos olham não nos reconhecem mais, mas no final do Sulplício se lança justamente com o europeu diante do “nada”, que simbolicamente serve de alerta para o seu povo, que uma cultura sobrevive quando cultiva as tradições mas também se projeta para o futuro, para o novo, para o diferente. Pois como vimos nas teorias de Fanon uma identidade é formada não na ausência do outro, mas a partir das diferenças que cada povo apresenta. Sabendo que não há uma cultura “pura” e totalizante cada povo é contaminado por outro povo constituindo assim uma cultura elaborada por meio de um mosaico, mantendo assim sua alteridade. Ao filho, o narrador da história, fica a missão de contar aos outros os que aconteceu, a escolha do pai revela que todo discurso deve permanecer vivo e proferido por palavra escrita ou falada, pois para Foucault (1996, p. 02) “Devo continuar. Eu não posso continuar. Devo continuar. Devo dizer palavras enquanto as houver. Devo dizê-las até que elas me encontrem”. Ao narrar os fatos transformando os mitos em História proporciona ao narrador o encontro com sua origem, pois segundo Pepetela (2012, p. 15) “Não faz mal a ninguém. Só faz bem, pois aumenta a autoestima do povo. E serve para chamar a atenção para os buracos que temos no conhecimento de nossa identidade”. O grande mérito do romance é este olhar inquietante do escritor Mia Couto, por meio de uma linguagem irônica o romancista articula uma crítica social com a capacidade de fazer o povo sonhar com dias melhores, olhando para o futuro sabendo que não será o último voo do flamingo. Referências BHABHA, H.K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. BONNICI, Thomas. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá: Eduem, 2005. BONNICI, Thomas. ZOLIN, Lúcia Ozana; Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá. Eduem, 2010. COUTO, Mia. O Último Voo do Flamingo. São Paulo. Companhia das Letras, 2005. ___________.Quando o sonho encontra a palavra. Jornal Rascunho, nº 153, p. 4, Jan. 2013. Entrevista concedida a Guilherme Magalhães. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996. FONSECA, M. Nazareth Soares, Cury, M. Zilda Ferreira Curi. Mia Couto: espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. PRATT, M. L. Os olhos do império. Bauru: USC, 1999. PEPETELA. Com sabor de História. Revista Língua Portuguesa, nº 81, p. 15, jul 2012. Entrevista concedida a Leonardo Fuhrmann.
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