Somos fiéis à nossa vocação?

Transcrição

Somos fiéis à nossa vocação?
Capítulo da Congregação Brasileira dos Cistercienses, junho 2016
Fr. Mauro-Giuseppe Lepori, Abade Geral OCist
"Somos fiéis à nossa vocação?"
Uma pergunta rica e importante
O tema deste capítulo é uma pergunta: "Somos fiéis à nossa vocação?", uma pergunta
que é importante fazer-nos, para não dar como óbvio o caminho que fazemos. Fazer-se
uma pergunta quer dizer, antes de tudo, parar, significa interrogar a nossa vida pessoal e
comunitária, em busca de uma resposta, um juízo que não é automático. Fazer-nos uma
pergunta sobre a nossa vida e vocação, significa reconhecer que a nossa vida e vocação
não é uma máquina que funciona por si só, que nunca precisa de revisão, que nunca se
deve programar de novo. Fazer-se uma pergunta, significa também que a nossa liberdade
e a nossa decisão, tem sempre um papel a desempenhar em nossas vidas. Fazer-se uma
pergunta, significa que a resposta pode ser positiva ou negativa, e, portanto, a resposta
pode nos pedir mais, pode nos pedir uma nova decisão. Se, por exemplo, respondemos
que não nos parece ser realmente fiéis à nossa vocação, essa resposta levanta outras
perguntas. Porque não somos fiéis à nossa vocação? Queremos ser fiéis à nossa
vocação? Como podemos ser fiéis? Como nos ajudar a sermos mais fiéis?...
Ou se respondemos: "Claro, somos fiéis, ou melhor, fidelíssimos!", devemos, pelo
menos, nos perguntar: Temos certeza de que temos uma concepção correta de
fidelidade? Por que nos sentimos tão fiéis, enquanto os outros não? Somos, talvez, um
pouco fariseus? Ou publicanos que não querem se converter?...
Mesmo assim, o tema do nosso Capítulo é um tema complexo, ou melhor: um tema rico.
Porque é uma pergunta que imediatamente se multiplica em outras perguntas. Perguntarse: "Somos fiéis à nossa vocação?", significa fazer-se, pelo menos, três perguntas: O que
significa ser fiel? O que significa ser fiel à uma vocação? O que significa ser fiel à nossa
vocação, isto é, à vocação monástica cisterciense?
Fazer-nos estas perguntas, para nós, é muito importante. E é sempre importante, durante
toda a nossa vida. Deveríamos nos perguntar todos os dias, examinar-nos sobre isto,
todos os dias. Porque quando alguém tem uma vocação, significa que o Senhor o quis e
amou para isto, e assim vive para isto, e portanto, que a vocação é o sentido da sua vida,
e não vive, verdadeiramente sua vida, se não for fiel à sua vocação. A fidelidade à
vocação é a fidelidade ao sentido da nossa vida.
A fidelidade é adesão
Porque a própria vida é vocação. Deus nos chama à vida, nos cria chamando-nos a viver
uma vocação, que Ele pensou desde a eternidade: "Antes que no seio fosses formado, eu
já te conhecia; antes de teu nascimento, eu já te havia consagrado, e te havia designado
profeta das nações". (Jr 1,5)
Na véspera da morte de minha mãe, estava rezando o Ofício Divino ao lado de sua cama
de hospital. Tinha o Salmo 21, e me tocaram muito as palavras: "Fostes vós que me
1 tirastes das entranhas de minha mãe e, seguro, me fizestes repousar em seu seio. Eu vos
fui entregue desde o meu nascer, desde o ventre de minha mãe vós sois o meu Deus." (Sl
21,9-10)
Parei a olhar, diante de mim, o corpo de minha mãe, já priva de consciência, e senti um
grande respeito por aquele corpo, que para mim, foi o primeiro templo de Deus, o
templo, no qual, Deus já era "o meu Deus": "desde o ventre de minha mãe, Vós sois o
meu Deus". O templo, no qual, Deus chamou-me à vida e formou, e, do qual, tomou-me
para ser Seu: "Eu vos fui entregue desde o meu nascer".
O mistério de toda a vida, sem exceção, é esta adesão a Deus, porque Deus quis, desde a
eternidade, aderir a nós, ser o nosso Deus. Somos de Deus, nós pertencemos a Deus,
porque Deus é nosso Deus, porque Deus nos pertence.
É a partir deste mistério, que é mistério de Misericórdia, que podemos entender o que é
fidelidade. A fidelidade, de fato, em toda a Bíblia, é definida como adesão. Somos fiéis
se aderimos ao nosso Deus, ao Deus que nos pertence, que se fez e se revelou "nosso
Deus", e que nos criou e formou para isto, para viver esta adesão a Ele.
Pertencer a Deus nunca é uma questão superficial, porque a nossa adesão à Deus nos
constitui, e isto não só desde o "ventre da minha mãe", mas também antes, no
pensamento eterno de Deus, que decidiu criar-me desde a eternidade. Mas o "antes", o
eterno pensamento de mim que Deus tem, realiza-se "no ventre da minha mãe", isto é, se
manifesta, se define, se encarna em uma adesão humana, à nossa mãe, ao nosso pai, à
nossa família, e em todas as adesões que moldam nossa vida, nossa história. Cada um de
nós pertence a Deus na forma do seu DNA, isto é, na face, no corpo, na psicologia, na
cultura, etc., que definem a sua existência. Cada um de nós pertence a Deus, através das
concretas adesões humanas e históricas, dentro as quais, se desenvolve nossa existência.
Porque tudo isto, também, faz parte do desígno de Deus, é a forma essencial da nossa
adesão a Ele. E Deus utiliza o alternar-se das adesões humanas, históricas, para definir,
sempre mais, a nossa adesão a Ele. Nos coloca no ventre de uma mãe, mas: "Fostes vós
que me tirastes das entranhas de minha mãe e, seguro, me fizestes repousar em seu seio".
Deus, antes, nos confia a um ventre, em seguida, a um seio materno, em seguida, aos
braços de um pai, a uma família, etc... Deus nos faz passar através de diferentes
acontecimentos de adesão, para construir a única adesão que define totalmente a nossa
vida: a adesão à Ele.
Em nossa vida se sucedem vários "ventres" e "seios" que nos formam e nutrem à vida
como adesão a Deus. Certos ventres são provisórios, outros mais definitivos, no sentido
que nos definem, realmente, como identidade e vocação. As escolas que
frequentávamos, os grupos de jovens, paroquiais, políticos, esportivos que aderimos,
mas também a nossa família, todos estes, são ventres provisórios, que nos acompanham
por um tempo, que nos acompanham em um aspecto parcial de nossa vida, tanto é
verdade, que estas adesões podem sobrepor-se e ser contemporâneas. Todas, porém, de
uma forma ou de outra, deixam a marca, para sempre, em nossa vida. Mas a verdade e a
fecundidade de cada uma destas adesões é, somente e sempre, de nos tornar mais
conscientes e responsáveis da graça de pertencer a Deus. E a fidelidade a estas adesões é
verdadeira, tem sentido, se é para uma fidelidade sempre mais explícita e profunda, à
adesão a Deus.
2 A infidelidade da superficialidade
Há, portanto, uma primeira forma de infidelidade à adesão a Deus: a superficialidade,
com a qual, muitas vezes vivemos as adesões, através das quais, esta se forma e se
encarna. É importante tomar consciência, porque chegamos a uma cultura tão superficial
no sentido de adesão, ao ponto de tornar indiferente até o ventre da mãe. Hoje, é
considerado indiferente a mulher, que carrega uma criança em seu ventre. A gestação foi
vencida pela gestão. Considera-se a gravidez como a "gestão" de uma prática legal, um
dossier: tempo determinado, custo determinado, e depois se esquece e se passa para a
prática sucessiva.
Nada impede, porém, a Deus de formar à adesão a Ele, também quem passa por
semelhantes experiências. Justamente porque a vida de cada pessoa, é quista para aderir
a Deus, é destinada à adesão a Deus, portanto, a algo infinitamente maior que todos os
acontecimentos humanos, e também da nossa infidelidade. A vocação de uma pessoa
pode crescer através de tudo, porque por trás de cada experiência, Deus é o verdadeiro
Pai, que nos gera, nos ama e espera em ser, para sempre, o nosso Deus.
Mas repito que a armadilha mais grave é a superficialidade, porque isso impede a Deus
de nos formar. É como ser areia. Pode-se colocar a areia em todos os recipientes, dar
todas as formas possíveis, mas quando a areia sai da forma, volta a ser sempre e apenas
areia, e o fato que esteve naquele determinado recipiente, mesmo durante anos, não
mudou nada. Ao invés, a argila, se está em uma forma, mesmo quando a forma é
removida ou se quebra, mantém a forma recebida.
É triste encontrar monges e monjas que, depois de anos e anos de vida no mosteiro, é
como se não fossem ainda definidos por esta vocação. Porque, viveram no mosteiro sem
crescer na adesão a Deus, sem tomar com todo si mesmo, e não apenas na
superficialidade, a forma da adesão ao Senhor. Muitas vezes, não é somente culpa deles,
mas do mosteiro que não forma, realmente, à adesão ao Senhor. E esta é uma grande
aberração, porque tudo na Regra de São Bento, persegue esta única finalidade, é uma
ajuda, uma educação constante a pertencer, sempre mais, a Deus. Em especial, a vida
comunitária e vida litúrgica, nos são dadas para pertencer ao Senhor, com todos os tipos
de relação, de que somos capazes.
Por isso, a primeira pergunta que talvez devêssemos fazer-nos é se as nossas
comunidades educam, verdadeiramente, à adesão ao Senhor. Se a finalidade de todos os
nossos mosteiros é de crescer nisto. Quando Pedro e João foram presos e encontraram-se
diante do sinédrio, aquilo que os definia, até diante de seus inimigos, era adesão a Jesus
Cristo: "Vendo eles a coragem de Pedro e de João, e considerando que eram homens
sem estudo e sem instrução, admiravam-se. Reconheciam como companheiros de Jesus."
(At 4,13)
É isto que se vê em nós? Notamos que Deus, no fundo, não nos pede outro testemunho
que aquele de ser verdadeiramente seus. E é um testemunho que depende somente da
nossa relação com o Senhor, e não de quem nos observa, de quem nos julga. Basta ser
seus, para que o nosso testemunho seja fecundo.
3 A fidelidade é relação
"Reconheciam como companheiros de Jesus."
Aqui tem um aspecto fundamental da fidelidade. A fidelidade é uma relação. A
fidelidade não tem sentido único, é sempre uma reciprocidade. A superficialidade no
conceber e viver a fidelidade, está, muitas vezes, no acreditar que a fidelidade depende
apenas de nós, que a fidelidade seja algo que concerne e interessa apenas a nós. Em vez,
a fidelidade é definida pelo outro, o qual se pertence, o qual se é chamados a ser fiel. A
fidelidade significa deixar-nos definir pela adesão a um outro. A superficialidade
consiste também no definir a si mesmo sem o outro, e é uma aberração conceber a
fidelidade, como fidelidade a si mesmo e não a um outro, a outros. Quantos abandonam
a vocação religiosa ou a pessoa, a qual estavam unidos pelo matrimônio, ou outros
vínculos, para "ser fiéis a si mesmo"! O que significa "ser fiéis a si mesmo", ninguém o
sabe explicar, porque dizer "fidelidade a si mesmo" é uma expressão contraditória, que
não faz sentido, que não significa nada. Pode-se ser fiéis somente dentro de um
relacionamento, uma relação. E não se pode estar em relação com si mesmo. Pode-se ter
auto-consciência, mas não se pode estar em ralação com si mesmo. Talvez esta seja a
origem da infidelidade: o viver a auto-consciência que nos foi dada como a autosuficiência, como se fosse uma relação suficiente para vencer a nossa solidão, para dar
plenitude à nossa vida, que, ao invés, é feita para estar em relação com Deus, e em Deus,
com todos. Adão tinha consciência de si, mas Deus criou Eva, para que não ficasse
sozinho (cfr. Gn 2,18). Adão não se contentou de sonhar, não se satisfez com suas
próprias ideias, as próprias fantasias: necessitou de um outro alguém para estar em
relação, e ter um âmbito de verdadeira fidelidade humana, reflexo e encarnação da
fidelidade a Deus.
A fidelidade à vocação de nossa vida, nunca pode ser uma fidelidade a alguma coisa,
mas é sempre fidelidade a alguém. Porque vocação significa que um outro nos chama.
Deus nos chama também criando-nos, dando-nos os talentos, e sobretudo, dando-nos
uma vocação específica, como é a vocação da família ou a vocação religiosa.
Porque até Deus é fiel no contexto de um relacionamento. São Paulo o expressa muito
bem na primeira carta aos Coríntios: "Digno de fé é Deus, por quem fostes chamados à
comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor!" (1 Cor 1,9).
Este versículo resume toda a temática que queremos aprofundar, porque fala de
fidelidade, de vocação e de comunhão. Deus é digno de fé, porque Ele, antes de tudo, é
fiel aquilo que nos pede, aquilo que nos oferece. "Digno de fé", quer dizer, que com
Deus podemos apostar a nossa fidelidade, que a relação com Deus é uma relação segura,
que não nos trai, e se formos fiéis a Ele, não nos desiludimos, nunca seremos traídos.
Mesmo "se somos infiéis, ele permanece fiel", escreve São Paulo a Timóteo (2 Tm
2,13). É importante fundar a nossa fidelidade na fidelidade de Deus, sobre a rocha
"d’Aquele que é" (cfr. Ex 3,14). A Bíblia insiste muito, nos Profetas e nos Salmos, ou
nos livros sapienciais, sobre a fidelidade de Deus, no sentido de que somente Ele é Deus,
que permanece eternamente, que nos ama para sempre. A idolatria é uma infidelidade
porque abandona o único Deus verdadeiro, único, no qual, podemos, realmente, confiar
totalmente.
4 E este Deus, digno de fé, nos chama, nos dá uma vocação, e assim, nos chama a sermos
fiéis a Ele, como Ele é a nós: "Digno de fé é Deus, por quem fostes chamados." "Digno
de fé é aquele que vos chama", escreve São Paulo aos Tessalonicenses (1Tss 5,24).
É importante, então, pensar a nossa fidelidade à vocação, não pensando apenas em nós
mesmos, nos nossos sentimentos, nas nossas ideias, nas nossas forças ou nossas
fragilidades, as nossas virtudes ou nossos pecados, os nossos sonhos ou projetos, mas
pensando, antes de tudo, em Deus. Impressiona-me sempre, quando encontro cônjuges
infiéis, o fato que, muitas vezes, ele ou ela que trai, pensa somente em si mesmo, fala
somente de si mesmo, não pensa no outro, na fidelidade do outro, ao sofrimento do
outro. Também os monges e as monjas que têm um comportamento inadequado ou
abandonam a vocação: quase nunca pensam na comunidade, ao mal que fazem à
comunidade, ao sofrimento da comunidade. Não pensam, nem mesmo, na tristeza de
Deus, pela sua infidelidade. O jovem rico foi embora triste, mas certamente mais triste
estava Jesus, pela infidelidade deste jovem ao chamado que Ele oferecia com amor fiel
(cfr. Mc 10,21-22). A infidelidade é uma forma de egoísmo, egocentrismo, autoreferencialidade sem amor. Não por nada, na Bíblia, Deus se representa, muitas vezes,
como um esposo traído, abandonado; ou, como um Pai bom, abandonado por seus filhos.
Isto implica que para permanecer fiel, para formar à fidelidade, em uma vocação como a
nossa, e em todas as vocações, é importante educar e formar a olhar ao Senhor, a
conhecer a Deus, a pensar Nele, mais que a si mesmos. Se na formação, educamos mais
a olhar a si mesmo do que olhar a Deus, mais a pensar em si mesmo que em pensar no
Senhor, também quando formamos para ser os monges perfeitos, não formamos à
fidelidade. Se não formamos à relação com Deus, com Cristo, não formamos à
fidelidade à nossa vocação. Não devemos nos admirar, então, se depois se abandona ou
se cai em mil formas de infidelidade. Também se não formamos à relação fraterna com a
comunidade, na comunidade, não formamos à fidelidade. Se não formamos a buscar,
sempre, a relação com o Senhor, se não formamos à escuta da sua Palavra, à oração, ao
silêncio, para estar diante Dele, não formamos à fidelidade.
Chamados à comunhão
De fato, a frase de São Paulo não nos diz só que é digno de fé o Deus que nos chama,
mas o Deus que "nos chama à comunhão."
O chamado à comunhão é um chamado à fidelidade. Não há fidelidade sem comunhão, e
não há comunhão sem fidelidade. A nossa fidelidade se joga toda na comunhão de
Cristo, que é comunhão com Cristo e em Cristo, isto é, relação com Jesus e, em Jesus,
com o Pai e os irmãos.
Isto é fundamental. Se fundamos a fidelidade à nossa vocação cristã e monástica sobre
outra coisa, não podemos ser fiéis para sempre. Seria como se para um marido, a esposa
fosse apenas uma empregada, que lhe faz comida e limpa a casa, a que faz filhos e toma
conta, ou que lhe dá alguns momentos de prazer sexual. Tudo isto não é comunhão de
vida, não é relação. Tudo isto são elementos, meios de comunhão, mas a comunhão é um
mistério maior, eterno. Se, baseia-se apenas sobre elementos secundários, a fidelidade é
apenas superficial e temporária. Terminado o serviço, a função, a pessoa não é mais
importante e se passa a servir-se de outro alguém, ou se fica sozinho. Muitas vezes,
5 tratamos assim também a Deus; como alguém, com o qual, estamos em relação somente
em função de outra coisa, e não do próprio Deus. Não é uma relação constante que nos
define enquanto relação. Aquilo que se faz, antes ou depois, passa. Na vida conjugal os
filhos vão embora, a paixão sexual se apaga, etc... Se antes a fidelidade era toda fundada
somente naquilo que o outro faz para nós ou nós fazemos para ele ou ela, antes ou
depois, não resta mais nada. Falta o essencial: a comunhão, que em vez, é uma realidade
eterna, que não depende das circunstâncias e daquilo que se faz ou não se faz, e, no
fundo, nem mesmo daquilo que se é ou não se é. A comunhão é mais forte que a morte.
Quantos monges e monjas vivem no mosteiro – quando vivem no mosteiro e não estão
fora – apenas por aquilo que fazem, pelos encargos que têm, a função que exercem, as
coisas que têm, as vantagens, das quais, se beneficiam, em suma, pelos aspectos
secundários, passageiros, da relação com Deus e os irmãos ou irmãs, e não cultivam uma
comunhão para sempre, a fidelidade á uma comunhão que dura toda a vida e além da
vida.
Como os dois filhos da parábola do pai misericordioso de Lucas 15,11-31. Um estava
com o pai somente pela herança. Assim que obteve, foi embora. Em seguida, volta para
casa, mas não pelo pai, volta porque tinha fome, porque era suficiente ser um operário,
onde o pai é apenas patrão, um empregador que lhe paga o salário. O filho mais velho,
permanece em casa somente pelo trabalho, e deseja apenas um cabrito para festejar com
os amigos. No entanto, espera somente a morte do pai para ele ser o dono de tudo. Em
vez disso, o pai oferece a ambos uma comunhão total de vida, de coração, onde cada um
é a alegria do outro, a festa do outro. O pai pensa apenas à comunhão com os seus filhos,
e dentro desta comunhão tudo é compartilhado: "tudo o que é meu é teu" (Lc 15,31).
Não pensa na herança, nos bens, no trabalho; para ele conta apenas a comunhão, e que
cada filho viva nesta comunhão com ele e entre eles.
Se nós não pensamos a fidelidade à nossa vocação, à luz do chamado à comunhão, a
pensamos de forma errada; seja como fariseus, os quais, conta apenas as formas
exteriores, seja como publicanos, os quais, conta apenas o próprio prazer e seu próprio
lucro. As duas principais derivações da infidelidade à vocação monástica são justo estas:
o moralismo farisaico ou a imoralidade publicana; a idolatria farisaica, orgulhosa das
regras, das formas ou a idolatria hedonista e gananciosa dos publicanos. E, muitas vezes,
as duas formas de infidelidade não se excluem, porque tantos fariseus são publicanos no
coração, e tantos publicanos são interiormente fariseus. O jovem rico que rejeitou o
chamado de Jesus, era exteriormente um fariseu, porque desde sua juventude, tinha
respeitado os mandamentos, mas interiormente era um publicano, ávido de riquezas.
Mas não digo isto para acusar alguém, os outros, porque estas tendências todos temos
dentro, alguns mais do que outros, alguns de uma maneira, outros de outra, e todos
devemos converter-nos à fidelidade de comunhão. Noto, muitas vezes, que nas
comunidades os "fariseus" acusam os "publicanos" para permanecer "fariseus", e os
"publicanos" acusam os "fariseus", para permanecer "publicanos". Cada um acusa o
outro, para não ter que se converter à comunhão, ao amor e à caridade. Se o Senhor nos
chama à fidelidade de comunhão, significa que nesta devemos crescer, que a esta
devemos nos converter, todos, sem exceção. Deus não nos chama a permanecer naquilo
6 que somos ou como somos, mas para fazer um caminho, sobretudo interior, de
conversão.
O chamado do Pai à comunhão do Filho, exprime a gratuidade infinita de Deus, da
Trindade, para conosco. Deus não nos chama, acima de tudo, para fazer algo, não nos
chama para nos usar, não nos chama a um dever, mas à comunhão de amor com Ele e
n’Ele. Deus quer compartilhar conosco o que Ele é: Comunhão Trinitária, eterna,
infinita, misericordiosa.
Esta é a vocação cristã. Mas é a nossa vocação, porque a nossa vocação à vida
consagrada, à vida monástica cisterciense, é um chamado a ir ao fundo da vocação
batismal, portanto ao fundo do chamado universal à santidade, como comunhão com
Deus e em Deus.
Fora disto não somos fiéis, não respondemos ao chamado, não seguimos Cristo, e não
vivemos os votos, porque os votos nos são dados e pedidos para viver a fidelidade à
comunhão. E os votos, segundo a Regra de São Bento, são mais explícitos sobre isto do
que a formulação e codificação posterior dos votos de castidade, obediência e pobreza.
Nós fazemos voto de estabilidade, de conversatio morum e de obediência. São votos de
comunhão dentro de uma adesão a uma comunidade, ao caminho de uma comunidade
guiada por quem representa Cristo; são, isto é, votos de comunhão com Cristo e em
Cristo. São votos, os quais, ninguém pode ser fiel sozinho, com uma ascese individual,
sem comunidade, sem superior.
Por isso, a fidelidade à nossa vocação pede, antes de tudo, a consciência de que não
somos chamados a uma determinada missão, a um determinado dever, mesmo se cada
um de nós e cada mosteiro há uma ou mais missões, há deveres específicos,
determinados pela situação histórica ou pelos talentos que Deus nos dá. Mas isto é bom
somente se não perdemos de vista o essencial do nosso chamado, portanto da nossa
fidelidade, que é um chamado a nos converter em uma comunidade, guiada à comunhão
de Cristo com o Pai e os irmãos, no amor do Espírito Santo. Se não houver um consenso,
sobre o fato que o nosso carisma é, antes de tudo, este, isto é, aquilo que nos pede a
Regra de São Bento, para viver e encarnar o Evangelho, não se entende mais o que deve
significar a fidelidade, e cada um, chega a justificar uma própria fidelidade, uma
fidelidade a si mesmo, ao próprio projeto, a vocação que se crê ou se deseja ter, e não
aquilo que, realmente, nos chama Deus.
Depois, nos surpreendemos que a comunidade e as pessoas, são estéreis, que não dão
frutos, que não são felizes, que não crescem em graça e caridade. Esquecemos que Deus
é fiel à vocação que Ele nos dá, não a vocação que nós mesmos nos damos. E a vocação
que Deus nos dá, é justamente o chamado "à comunhão do seu Filho Jesus Cristo, nosso
Senhor" (1 Cor 1,9).
Recomeçar da fidelidade de Deus
Não digo isto para condenar, para dizer que não tem esperança. Digo, ao contrário, para
afirmar que há sempre esperança! Se tudo dependesse da nossa fidelidade, estaríamos
arruinados. Mas tudo depende da fidelidade de Deus, então há sempre esperança de
renovação, ou melhor: há sempre esperança de fidelidade em nós. Podemos sempre
7 renascer à fidelidade à nossa vocação, porque Deus é sempre fiel a chamar-nos à
comunhão de Cristo.
Devemos aprender a viver a nossa fidelidade, no âmbito da fidelidade de Deus, porque
isto nos permite recomeçar, sempre. Por que em Deus, a fidelidade está unida a
misericórdia. Em Deus, a fidelidade é misericórdia.
São Paulo insiste muito nisto: "Mas então! Se alguns deles não foram fiéis, acaso a sua
infidelidade destruirá a fidelidade de Deus? Impossível!" (Rom 3,3-4a)
"Portanto, quem pensa estar de pé veja que não caia. Não vos sobreveio tentação alguma
que ultrapassasse as forças humanas. Deus é fiel: não permitirá que sejais tentados além
das vossas forças, mas com a tentação ele vos dará os meios de suportá-la." (1 Cor
10,12-13)
"O Senhor é fiel; ele vos confirmará e guardará do Maligno." (2 Tss 3,3)
"Se somos infiéis, Ele permanece fiel, pois e não pode renegar a si mesmo." (1Tm 2,13).
E São João nos lembra: "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos
perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça." (1 Jo 1,9)
Não devemos, então, esquecer que cada vocação é uma promessa de Deus, e que Deus
mantém as suas promessas. Também a nossa profissão é uma promessa. São Bento
escreve: "Antes de ser recebido, [o noviço] prometa (promittat), na presença de todos,
no oratório, a sua estabilidade, a conversão de seus costumes e a obediência..." (RB
58,17).
São Bento sabe que não somos capazes de ser verdadeiramente fiéis, e por isso, pede
para expressar esta promessa de fidelidade "coram Deo et sanctis eius - na presença de
Deus e de seus santos" (RB 58,18). Não apenas para tornar solene a promessa, mas para
que seja humilde, para que seja confiada à misericórdia de Deus e à intercessão dos
santos. Em seguida, pede para por esta promessa por escrito, e este escrito, São Bento, o
chama de "petitio", que significa literalmente petição, pedido, súplica. É significativo
como São Bento formula isto: "De qua promissione sua faciat petitionem – da sua
promessa faça uma petição, um pedido" (58,19). A Regra convida-nos, portanto, a viver
nossas promessas como um pedido, como oração. A nossa promessa de fidelidade deve
ser um pedido, um ato de entrega à fidelidade de Deus. Podemos prometer para sempre,
somente, na forma de um pedido, na forma de um desejo de fidelidade que só Deus pode
garantir, ratificar, cumprir com sua graça.
Na carta aos Hebreus, há uma linda exortação que sintetiza todo o nosso tema:
"Conservemo-nos firmemente apegados à nossa esperança, porque é fiel aquele cuja
promessa aguardamos." (Hb 10,23)
A promessa do Pai
Mas o que realmente Deus prometeu? O que nos prometeu? Talvez nos prometeu uma
terra? Talvez nos prometeu poder e riqueza? Prometeu-nos, talvez, segurança e sucesso?
Prometeu-nos, talvez, de tirar nossas fragilidades e fraquezas? Prometeu-nos, talvez, paz
e sossego? Prometeu-nos, talvez, tocas e ninhos onde reclinar a cabeça, isto é, situações
estáveis e confortáveis, sem problemas?
8 Há apenas uma passagem nos Evangelhos, onde, o próprio Jesus, usa o termo
"promessa", que, ao invés, é bastante frequente nos Atos e as Cartas apostólicas. Está no
final do Evangelho de Lucas: "Eu vos mandarei o Prometido de meu Pai; entretanto,
permanecei na cidade, até que sejais revestidos da força do alto" (Lc 24,49).
Jesus nos promete Aquele que é "promessa do Pai - promissum Patris": o Espírito Santo.
Lucas retoma a expressão em Atos: "E comendo com eles, ordenou-lhes que não se
afastassem de Jerusalém, mas que esperassem o cumprimento da promessa de seu Pai,
que ouvistes, disse ele, da minha boca; porque João batizou na água, mas vós sereis
batizados no Espírito Santo daqui há poucos dias" (At 1,4-5).
São Pedro retoma a ideia no seu primeiro grande discurso depois de Pentecostes:
"Exaltado pela direita de Deus, havendo recebido do Pai o Espírito Santo prometido,
derramou-o como vós vedes e ouvis" (At 2,33).
A única e verdadeira promessa de Deus é o dom do Espírito Santo. E é a esta promessa
que Deus permanece sempre fiel, se permanecemos fiéis a abrir-nos a este dom, a esta
espera, a esta pobreza de espírito, que acolhe o Espírito Santo.
Somente depois de Pentecostes, os Apóstolos foram verdadeiramente fiéis ao Senhor.
Antes, Pedro fazia grandes promessas de morrer por Jesus, e não podia manter. Depois
de Pentecostes, será fiel até o martírio.
No dom do Espírito, Deus permanece fiel a sua promessa, expressa sua fidelidade para
conosco. Apoiar-nos à fidelidade de Deus significa, em seguida, abrir-nos ao dom do
Espírito Santo, deixá-lo agir em nós, e isto implica humildade, abandono, renuncia ao
espírito de soberba e de orgulho, no qual, acreditamos ser suficientes a nós mesmos. E o
Espírito, é o Espírito de comunhão entre o Pai e o Filho. Quando o Deus fiel nos chama
à comunhão com seu Filho Jesus Cristo, isto significa, que nos chama a acolher o
Espírito Santo, a viver do Espírito Santo.
Quando não compreendemos a nossa vocação como um chamado a abrir-se ao dom do
Espírito, não podemos ser fiéis. E como abrir-nos ao Espírito? A resposta é toda a Regra,
e todos os ensinamentos de nossos padres e madres cistercienses. Tudo na vida da
comunidade monástica é formação a abrir-nos ao dom do Espírito Santo. A obediência é
para isto, a estabilidade é para isto, a fraternidade é para isto, a conversão é para isto; a
humildade, o silêncio, o escutar a Palavra de Deus, o Ofício Divino, o trabalho e o
serviço, tudo para fazer do mosteiro um Cenáculo aberto ao Espírito Santo.
Depois, o próprio Espírito cumprirá tudo: a nossa vocação, a nossa fidelidade, a nossa
comunhão. E o fará, já está fazendo, como e quando Ele quer. O Espírito, pode dar a
uma comunidade também o morrer, como o cumprimento da fidelidade, como o
cumprimento da vocação e missão, de morrer, isto é, na comunhão de Cristo, que é o
grande testemunho que Deus nos pede e nos dá, para dar ao mundo inteiro.
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