1 FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS Escola de Direito FGV DIREITO

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1 FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS Escola de Direito FGV DIREITO
1
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
Escola de Direito FGV DIREITO RIO
Programa de Capacitação em Poder Judiciário
Turma 001
MARCELO MALIZIA CABRAL
CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA:
IMPERATIVO ÉTICO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Trabalho
de
Conclusão
de
Curso
apresentado ao Programa de Capacitação
em Poder Judiciário. FGV DIREITO RIO.
Porto Alegre, setembro de 2007
2
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
Escola de Direito FGV DIREITO RIO
Programa de Capacitação em Poder Judiciário
Turma 001
Trabalho de Conclusão de Curso
Título: Concretização do Direito Humano de Acesso à Justiça: Imperativo Ético do
Estado Democrático de Direito
Elaborado por Marcelo Malizia Cabral
Aprovado e aceito como requisito parcial para a obtenção do certificado de PósGraduação lato sensu, nível de especialização, em Poder Judiciário
Setembro de 2007
Prof. Dr. Rogério Gesta Leal - Orientador
3
À minha esposa, Angélica,
pelo incentivo, pela compreensão, pelo companheirismo,
pela luz que coloca em minha trajetória,
dedico este trabalho.
4
Minha gratidão
aos professores do curso,
ao meu orientador, Doutor Rogério Gesta Leal,
à Fundação Getúlio Vargas,
ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
5
“O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje,
não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los.”
1
1
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 24.
6
Resumo
Concretização do direito humano de acesso à justiça. Este é o tema central do
estudo. Constitui preocupação de todos os povos, em todos os tempos. Inicialmente
tratado apenas no plano formal, como a possibilidade universal de acesso à justiça.
Após, com a consagração do princípio da igualdade material, o tema passou a ser
investigado sob o prisma da possibilidade concreta das populações terem acesso à
justiça. Insere-se o acesso à justiça no rol dos direitos humanos prestacionais.
Examina-se seu conteúdo e define-se-o de modo bem mais abrangente que o
simples acesso à jurisdição formal, integrando-o, também, mecanismos consensuais
de resolução de conflitos, tais como a conciliação, a mediação e a arbitragem. Em
decorrência de sua caracterização como direto social, defende-se a necessidade do
desenvolvimento de políticas públicas e de ações afirmativas de parte do Estado e
da sociedade, à garantia do acesso material da humanidade a mecanismos de
pacificação social.
Examinam-se os obstáculos à sua realização – de ordem
econômica, cultural, social e legal – e, por fim, apresentam-se propostas de ações
para a concretização do direito humano de acesso à justiça. Apregoa-se, então, a
valorização das ferramentas consensuais de resolução de conflitos, com a utilização
dos recursos humanos e materiais existentes nas comunidades, reservando-se a
jurisdição formal como instrumento subsidiário e complementar à realização da
justiça.
Palavras-Chave
Acesso à justiça; direitos humanos; políticas públicas; conciliação; mediação;
arbitragem.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................08
1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ACESSO À JUSTIÇA...................................13
1.1 A preocupação com o acesso à justiça no mundo............................................13
1.2 Origem e desenvolvimento do acesso à justiça no Brasil .................................17
2 CONTEÚDO DA EXPRESSÃO ACESSO À JUSTIÇA............................................20
2.1 A significação brasileira e suas conseqüências ................................................20
2.2 As investigações do direito comparado.............................................................23
3 CONCEITUAÇÃO DE ACESSO À JUSTIÇA...........................................................28
4 O ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO HUMANO ..............................................37
4.1 Conteúdo e significação dos direitos humanos ..................................................37
4.2
A
consagração
dos
direitos
humanos
prestacionais
na
ordem
constitucional ...........................................................................................................38
4.3 O acesso à justiça na ordem constitucional e sua
natureza
de
direito
humano prestacional .........................................................................................40
4.4 O desafio da concretização dos direitos humanos............................................43
5 OBSTÁCULOS À CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO
À JUSTIÇA..............................................................................................................45
5.1 Óbices de natureza econômica.........................................................................45
5.2 Óbices de natureza cultural e social ................................................................49
5.3 Óbices de natureza legal...................................................................................54
6 CONCRETIZANDO O DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA ....................56
6.1 O papel dos movimentos sociais .......................................................................56
6.2 A necessidade de ações afirmativas e de políticas públicas ............................59
6.3 Ações para a superação dos obstáculos de natureza econômica ....................62
6.4 Ações para a superação dos obstáculos de natureza cultural e social ............66
6.5 Ações para a superação dos obstáculos de natureza legal ..............................71
REFLEXÕES FINAIS ..................................................................................................73
REFERÊNCIAS...........................................................................................................77
ANEXOS .....................................................................................................................80
8
INTRODUÇÃO
O acesso à justiça constitui um dos temas que maior atenção tem
despertado nas sociedades contemporâneas.
A evolução dos povos tem apontado para um gradativo crescimento das
atribuições dos poderes estatais.
A insegurança e a incompreensão ocasionadas por uma produção
legislativa sem precedentes, aliadas a uma exigência crescente de ações negativas
e positivas do Poder Executivo no respeito às liberdades públicas e na
concretização de um extenso rol de direitos sociais, culturais e econômicos, têm
provocado um crescimento vertiginoso da demanda do Poder Judiciário.
Sobre esta hipertrofia do Poder Judiciário, com peculiar clareza
manifestou-se o então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Mário da Silva
Velloso:
Eu ouvi, e já mencionei isto por mais de uma vez, de um magistrado
carioca radicado em São Paulo, o eminente juiz Américo Lacombe,
no seu discurso de posse na Presidência do Tribunal Federal da 3ª
Região, afirmativa que achei muito interessante. Disse ele que, se os
séculos XVIII, este a partir da segunda metade, e XIX, foram os
séculos do Poder Legislativo e, se o século XX tem sido o século do
Poder Executivo, o século XXI haverá de ser o século do Poder
Judiciário. [...] Vejam os Senhores porque eu penso que isso vai
acontecer.
As reformas constitucionais que se fazem
contemporaneamente, conferem à cidadania um novo sentido. As
novas Constituições querem o exercício consciente da cidadania,
que se traduz na obrigação de o cidadão fiscalizar, cada vez mais, o
Poder. O cidadão é o grande fiscal do Poder, mesmo porque o Poder
existe em razão dele e para satisfazer as suas necessidades.
Acontece que essa fiscalização se exerce mediante a ação do Poder
Judiciário, vale dizer, mediante medidas judiciais. As reformas
constitucionais que se fazem contemporaneamente visam a viabilizar
esse desiderato.2
Além dessa novel participação popular na coordenação e na fiscalização
dos atos do Estado, este tem prometido efetivar uma série de direitos à
consagração da cidadania, confiando-se a garantia de sua concretização, também,
ao Judiciário.
2
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos.
Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra
Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 14-15.
9
É a emergência mundial do Estado social, o welfare state, a expandir os
poderes e as competências dos órgãos legislativo e executivo, reclamando o pronto
controle judiciário da atividade do Estado.
3
Ao lado das exigências decorrentes do crescimento da atividade do
Estado, o mundo contemporâneo inaugurou a massificação da economia, dos
negócios, da informação e, conseqüentemente, das relações sociais.
Com
esse
fenômeno,
como
adverte
Cappelletti,
“sempre
mais
freqüentemente, até uma só ação humana pode ser prejudicial a vastos grupos ou
categorias de pessoas, com a conseqüência de mostrar-se totalmente inadequado o
esquema tradicional do processo judiciário, como litígio entre duas partes.”4
Demonstração do crescimento da procura da sociedade pelo Poder
Judiciário consta de criterioso estudo coordenado por Maria Tereza Sadek5, dando
conta do aumento da dedução de pretensões perante a justiça brasileira no período
de 1990 a 1998, na ordem de 106,44%, enquanto a população, no mesmo período,
aumentou em apenas 11,33%.
Esse extraordinário crescimento da procura dos povos pelo Judiciário
verificado no Brasil e em todo o mundo neste último século levou os atores da cena
judiciária
à
perplexidade,
ocasionando,
igualmente,
um
importante
congestionamento desse poder estatal.
Despertou, assim, a sociedade, para a necessidade de se criarem
mecanismos ao acolhimento e ao pronto processamento dessa demanda.
Identifica-se, então, uma das faces do tema acesso à justiça, aquela
concernente à eficiência da prestação do serviço ofertado à sociedade pelo
Judiciário, qual seja, a solução dos litígios que lhe são apresentados individual ou
coletivamente, em tempo razoável, com qualidade e eficiência.
A incapacidade do Judiciário brasileiro em administrar esse crescimento
da procura por seus serviços tem levado a sociedade ao descrédito e à insatisfação,
3
“Daí o fato de que o âmbito do processo cresceu bem além dos limites tradicionais da lide
essencialmente ‘privada’, envolvendo esta apenas sujeitos privados; estendendo-se muito
seguidamente a lides comprometedoras dos poderes políticos do Estado. Justiça administrativa e
Justiça constitucional tornaram-se, assim, componentes sempre mais importantes do fenômeno
jurisdicional, freqüentemente confiadas a novas e altamente ‘criativas’ cortes administrativas e
constitucionais” (CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Irresponsáveis? Traduzido por Carlos Alberto Álvaro
de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 21-22).
4
Ibidem, p. 23.
5
SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer,
2001, p. 15.
10
especialmente em razão da necessidade de longa espera entre o ajuizamento dos
pedidos e seu julgamento.6
Realizar-se-á, deste modo, ainda que brevemente, um mapeamento dos
fatores que ocasionam a morosidade do Judiciário, em especial diante do
incremento de sua demanda, apontando-se, ao depois, algumas medidas para
reduzir o tempo de tramitação dos processos, acenando-se, assim, para a
possibilidade da oferta de uma solução mais célere aos litígios, o que resultaria no
aumento da eficiência do Poder Judiciário e na conseqüente qualificação do acesso
à justiça.
Importa sublinhar-se, de outro lado, nessas palavras iniciais, que o
crescimento da procura pelo Judiciário em proporção superior ao aumento
populacional verificado nas últimas décadas, não significa a ampliação do acesso à
justiça ou, ainda, que a sociedade tenha alcance materialmente igual a esse serviço
público.
Interessante apresentar-se, nesse ponto, outro elemento investigado por
Sadek, a demonstrar que o crescimento da procura pelo Judiciário reflete a
desigualdade da sociedade brasileira quanto à acessibilidade a bens e serviços:
Os IDHs no decorrer do período revelam que o país experimentou
alguma melhoria entre 1990 e 1998, no que se refere à esperança
de vida, à educação e à renda. O índice apresentou um crescimento
de 0,7804 em 1990 para 0,8345 em 1998. A evolução positiva foi
constante, não se verificando em nenhum ano sequer a estagnação,
quer pioras em relação ao ano anterior. No que se refere aos efeitos
do IDH na procura pelo Judiciário, é possível afirmar que melhoras
nesse índice possuem correlação positiva com o aumento no número
de processos entrados na Justiça (correlação de Spearman de
0,7333). Isto é, aumentos nos níveis de escolaridade, de renda e na
longevidade contribuem para o crescimento na demanda por
serviços judiciais. No que se refere às regiões, o IDH permite-nos
afirmar que o Nordeste e o Norte reúnem os mais baixos indicadores
socioeconômicos do país, durante todo o período. Em contraste, o
Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste apresentam as melhores condições
no que diz respeito às dimensões captadas pelo IDH. É notável
como quanto mais alto é o IDH, melhor é a relação entre processos
entrados e população. Ou seja, é acentuadamente maior a utilização
do Judiciário nas regiões que apresentam índices mais altos de
desenvolvimento humano.7
6
“Para que se tenha uma idéia, em pesquisa recentemente realizada pela CNT em conjunto
com a Vox Populi, 89% das pessoas entrevistadas consideram a justiça demorada, lenta, enquanto
67% acham que ela só favorece os ricos, e 50% não confiam nela.” (Pesquisa publicada no jornal O
Globo, de 07 de abril de 1999, 2. ed., p. 5, apud CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça.
Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 80).
7
SADEK, Maria Tereza (Org.), op. cit., p. 20-21.
11
O que se constata, assim, é que as populações que estão demandando
cada vez mais o Judiciário são aquelas situadas em posições privilegiadas do
extrato social, quedando-se a esmagadora maioria da sociedade brasileira ao longe
da possibilidade de resolver seus conflitos individuais ou coletivos por intermédio
dos mecanismos de pacificação social disponíveis ao grupo social, dentre os quais,
o Poder Judiciário.
Justamente nesse sentido apontou a conclusão da investigação científica
há pouco apresentada8, advertindo-se, ao fim, para o risco ocasionado à
manutenção do Estado de Direito pela não-asseguração do efetivo acesso à justiça
a expressivo número de brasileiros:
O que poucos ousam sustentar, completando a primeira afirmação, é
que, muitas vezes, é necessário que se qualifique de que acesso se
fala. Pois a excessiva facilidade para um certo tipo de litigante ou o
estímulo à litigiosidade podem transformar a Justiça em uma Justiça
não apenas seletiva, mas sobretudo inchada. Isto é, repleta de
demandas que pouco têm a ver com a garantia de direitos – esta sim
uma condição indispensável ao Estado Democrático de Direito e às
liberdades individuais. Desse ponto de vista, qualquer proposta de
reforma do Judiciário deve levar em conta que temos hoje uma
Justiça muito receptiva a um certo tipo de demandas, mas pouco
atenta aos pleitos da cidadania.9
Esta situação decorre do contentamento das sociedades, durante
séculos, com a simples igualdade formal da população relativamente ao acesso à
justiça.
Não havia a preocupação com a repercussão das desigualdades sociais
no acesso a direitos, realidade modificada no último século, quando os povos
passaram proclamar a necessidade de se garantir a igualdade material da
população no acesso aos direitos de que são titulares.
Inaugura-se, então, a valorização do princípio da igualdade material,
fazendo surgir a necessidade de políticas públicas e de ações afirmativas a que as
8
“O volume de processos entrados e julgados é o primeiro traço que deve ser destacado.
Como interpretar esses números? [...] Desta forma, a explicação deve ser buscada em outra parte.
Ou seja, talvez tenhamos que recolocar o problema salientando que, mais do que a democratização
no acesso ao Judiciário, defrontamo-nos com uma situação paradoxal: a simultaneidade da existência
de demandas demais e de demandas de menos; ou, dizendo-o de outra forma, poucos procurando
muito e muitos procurando pouco. Assim, o extraordinário número de processos pode estar
concentrado em uma fatia específica da população, enquanto a maior parte desconhece por completo
a existência do Judiciário, a não ser quando é compelida a usá-lo, como acontece em questões
criminais.” (Ibidem, p. 40).
9
Ibidem, p. 41.
12
comunidades
hipossuficientes
tenham,
materialmente,
acesso
aos
direitos
consagrados pela ordem jurídica, dentre os quais, à justiça.
Então, o acesso à justiça passa a ser encarado como direito humano
prestacional e sua concretização assume posição de desafio às sociedades
contemporâneas, fazendo com que se examinem os obstáculos à sua oferta
igualitária e universal.
Catalogam-se, assim, as circunstâncias limitadoras do acesso à justiça,
classificando-as como de ordem econômica, cultural, social e legal.
Desvendam-se, igualmente, as diversas formas de realização de justiça,
que ultrapassam em muito a concepção de prestação formal de jurisdição,
apresentando-se ferramentas informais, rápidas e de baixo custo para a pacificação
de conflitos, dentre as quais a conciliação, a mediação e a arbitragem.
Registra-se, ainda, nesse ponto, a importância do envolvimento da
comunidade nas atividades de pacificação social.
Realizado esse diagnóstico e definidos o conteúdo e a extensão do direito
humano de acesso à justiça, apresenta-se uma série de ações tendentes à
superação desta realidade de limitação do acesso à justiça, modo a se garantir a
utilização rápida e desburocratizada a toda a população às mais diversas formas de
solução de conflitos e de pacificação social.
Somente dessa forma estar-se-á promovendo a cidadania e a dignidade
da pessoa humana, princípios da República Federativa do Brasil.
Com a concretização do direito humano de acesso à justiça, igualmente,
alcançar-se-á a redução das desigualdades sociais, a promoção do bem de todos, a
construção de uma sociedade livre e justa, bem assim o desenvolvimento nacional,
objetivos fundamentais da República, consoante proclamam os artigos 1.º e 3.º da
Constituição Federal.
13
1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO ACESSO À JUSTIÇA
1.1 A preocupação com o acesso à justiça no mundo
O prestígio ao valor justiça e a busca pela garantia de sua concretização
acompanham a evolução do homem.
Desde os primórdios, a humanidade consagrou a justiça como valor
necessário à dignidade e ao desenvolvimento dos povos.
Multiplicam-se as teorias para sua conceituação, cuidando-se de tema
investigado pelas mais diversas ciências, desde a antropologia e a filosofia,
passando pela sociologia, até chegar ao direito.
Sempre, todavia, há uma concertação intuitiva de que as pessoas devem
lutar incessantemente para a materialização da justiça, variando seu conteúdo e
extensão de acordo com fatores econômicos, religiosos, sociais e culturais de cada
época.
Uma das reflexões mais completas sobre o tema foi desenvolvida por
Chaïm Perelman, que teve a oportunidade de discutir as concepções abstrata e
concreta de justiça:
A noção de justiça sugere a todos, inevitavelmente, a idéia de certa
igualdade. Desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Tomás,
até os juristas, moralistas e filósofos contemporâneos, todos estão
de acordo sobre este ponto. A idéia de justiça consiste numa certa
aplicação da idéia de igualdade. [...] É ilusório querer enumerar
todos os sentidos possíveis da noção de justiça. Vamos dar, porém,
alguns exemplos deles, que constituem concepções mais correntes
da justiça, cujo caráter inconciliável veremos imediatamente: 1 - A
cada qual a mesma coisa. 2 – A cada qual segundo seus méritos. 3
– A cada qual segundo suas obras. 4 – A cada qual segundo suas
necessidades. 5 – A cada qual segundo suas posições. 6 – A cada
qual segundo o que a lei lhe atribui.10
A regulamentação da busca pela realização do valor justiça encontra os
primeiros registros no Código de Hamurabi, onde se previa a proteção às viúvas,
aos órfãos e aos oprimidos:
10
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 1 e 9.
14
Em minha sabedoria eu os refreio para que o forte não oprima o
fraco e para que seja feita justiça à viúva e ao órfão. Que cada
homem oprimido compareça diante de mim, como rei que sou da
justiça. Deixai ler a inscrição do meu monumento. Deixai-o atentar
nas minhas ponderadas palavras. E possa o meu monumento
iluminá-lo quanto à causa que traz e possa ele compreender o seu
11
caso.
Igualmente, em Atenas eram nomeados dez advogados anualmente para
atender aos pobres, havendo o Digesto, em Roma, determinado a oferta de
advogado, de ofício, pelo juízo, às mulheres, aos pupilos, aos débeis e àqueles que
não conseguissem tal patrocínio em razão do poder de seu adversário.
12
No período medieval, o cristianismo, com forte influência, conduziu ao
predomínio de concepções religiosas sobre o direito, tempo em que os ordálios, ou
juízos de Deus, constituíam fonte primária de julgamentos, quando as partes
participavam diretamente dos atos, sendo esta a concepção de acesso à justiça
então vigente.
Foi nesse período, também, que surgiu o direito canônico.
A partir do século XIV inicia-se o processo de questionamento do poder
da igreja e dos reis, assim a busca de determinados direitos em face dos ilimitados
poderes exercidos por esses.
Principia, assim, a luta por afirmação e igualdade que redundou na
consagração dos direitos do homem, quando também se proclamou a necessidade
de o Estado garantir o acesso universal à justiça.
Contudo,
foram a Declaração de Direitos do Estado de Virgínia (EEUU), de 12
de junho de 1776, o primeiro diploma escrito de direitos do homem
na história da civilização, e a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, crismada pelo prestígio
universalizante da Revolução Francesa, que cristalizaram o princípio
11
LIMA, João Batista de Souza. As mais antigas normas de direito. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1983, p. 31-32.
12
“Deverá dar advogado aos que o peçam, ordinariamente às mulheres, ou aos pupilos, ou aos
que de outra maneira débeis, ou aos que estejam em juízo, se alguém os pedir; e ainda que não haja
nenhum que os peça, deverá dá-lo de ofício. Mas se alguém disser que, pelo grande poder de seu
adversário, não encontrou advogado, igualmente providenciará para que lhe dê advogado. Demais,
não convém que ninguém seja oprimido pelo poder de seu adversário, pois também redunda em
desprestígio do que governa uma província, que alguém se conduza com tanta insolência que todos
temam tomar a seu cargo advogado contra ele.” (ZANON, Artemio. Da Assistência Jurídica Integral e
Gratuita. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 8-9).
15
de Direto Natural de que todos são iguais perante a lei, fundamento
13
da assistência jurídica pública, concebida como dever do Estado.
Coube à França, todavia, editar, em 22 de janeiro de 1851, “o Code de
L’Assistence Judiciaire, diploma que legou ao instituto a denominação originária de
assistência judiciária, substituída, hodiernamente, pelo predicamento de assistência
14
jurídica, termo mais abrangente e apropriado [...].”
A partir de então, até o século XX, os mais diversos Estados, por todo o
continente, passaram a reconhecer, de alguma forma, a direito universal de acesso
à justiça.
Deste modo, na Espanha,
La justicia será gratuita cuando asi lo disponga la ley e, em todo
caso, respecto de quienes acrediten insuficiência de recursos para
litigar (Constituição Espanhola de 31.10.1978, art. 119); nos Estado
Unidos da América, Los Angeles abriga a mais antiga Defensoria
Pública do país, instalada em 1914; a Constituição do Uruguai, de 24
de agosto de 1966, dispõe que La justicia será gratuita para los
declarados pobres com arreglo a la ley (art. 254); no continente
africano, a Constituição de Cabo Verde, de 1981, estatui que todo o
cidadão 'tem o direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais contra os
actos que violem os seus direitos reconhecidos pela Constituição e
pela lei, não podendo a Justiça ser negada por insuficiência de
meios econômicos.' 15
É no período contemporâneo, destarte, que cresce em importância a
questão do acesso à justiça, assim a preocupação com a garantia de igualdade
material e não apenas formal, buscando-se a possibilidade de real acesso da
população aos mecanismos de pacificação de conflitos.
Em outras palavras, pode-se afirmar que foi no século XX que se
inaugurou, verdadeiramente, o movimento de acesso à justiça.
Com efeito,
As reivindicações do movimento marxista, especialmente no campo
trabalhista, serviram de marco histórico em muitos países para a
discussão do significado do acesso à justiça, enquanto proteção ao
trabalhador. Podemos afirmar que o Direito do Trabalho foi o ponto
de partida do verdadeiro acesso à justiça – o seu significado, no que
se refere aos direitos individuais, pela facilidade do acesso, pela
prevalência da mediação e da conciliação, pela índole protetiva, em
especial no que diz respeito ao ônus da prova, do trabalhador, e
13
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos.
Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra
Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 336.
14
Ibidem, p. 336.
15
Ibidem, p. 337-344.
16
mais do que isso, a visão coletiva da massa trabalhadora. A
necessidade dessa intervenção do Estado no decorrer do período
liberal para assegurar direitos, principalmente no campo social, que o
livre jogo do mercado não permitia, caracteriza uma nova fase, a
histórica dos Estados desenvolvidos. Estamos no Estado social, o
Estado intervém visando a assegurar não mais aquela igualdade
puramente formal, utópica, concebida pelo Liberalismo, mas a
procura de uma igualdade material, permitindo que os mais
desfavorecidos tivessem acesso à escola, à cultura, à saúde, à
participação, àquilo que já se sustentava no passado, à felicidade. A
nova ordem resgata a dimensão social do Estado, com mais
intensidade no que concerne à ordem jurídica. O Estado
Administrador assume feição cada vez mais intensa, notadamente
protetiva. [...] Em curto espaço de tempo, o Judiciário converte-se,
realmente, em instância de solução de conflitos de toda a espécie.
Passa a haver uma demanda muito grande por justiça. [...] Cresce
de importância, portanto, neste momento, a concepção do real
significado de acesso à justiça. É preciso que ela sirva, e bem, a
todos, desde os mais carentes aos mais privilegiados, desde o
indivíduo isoladamente considerado até o grupo, a coletividade,
globalmente considerada. Surge, assim, primeiramente nos países
desenvolvidos, a partir das reivindicações sociais de que se vem a
falar, a demanda por formas céleres e efetivas de justiça para a
16
população em geral.
A roborar a ocorrência dessa explosão contemporânea da preocupação
com o acesso à justiça, após acentuar cuidar-se de tema que ocupa de há muito as
civilizações, Boaventura de Sousa Santos explicita haver a questão angariado
destaque nas discussões sociais a partir do pós-guerra:
Por um lado, a consagração constitucional dos novos direitos
econômicos e sociais e sua expansão paralela à do Estado de bemestar transformou o direito ao acesso efetivo à justiça num direito
charneira, um direito cuja denegação acarretaria a de todos os
demais. Uma vez destituídos de mecanismos que fizessem impor o
seu respeito, os novos direitos sociais e econômicos passariam a
meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores.
Daí a constatação de que a organização da justiça civil e em
particular a tramitação processual não podiam ser reduzidas à sua
dimensão técnica, socialmente neutra, como era comum serem
concebidas pela teoria processualista, devendo investigar-se as
funções sociais por elas desempenhadas e em particular o modo
como as opções técnicas no seu seio veiculavam ações a favor ou
contra interesses socais divergentes ou mesmo antagônicos
(interesses de patrões ou de empregados, de senhorios ou de
inquilinos, de rendeiros ou de proprietários fundiários, de
consumidores ou de produtores, de homens ou de mulheres, de pais
ou de filhos, de camponeses ou de citadinos, etc.).17
16
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil
Pública. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 20-27.
17
SANTOS, Boaventura de Sousa. O acesso à justiça. In JUSTIÇA: PROMESSA E
REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos
17
Aliás, esse desafio contemporâneo de se materializar o acesso à justiça,
fazendo-o universal, exige a identificação dos fatores que empurram uma
considerável parcela da sociedade para a margem dos mecanismos de pacificação
social, assim o estabelecimento de estratégias à sua superação, desafio que
permanece entre os povos até a atualidade e que constitui, exatamente, o objeto
desse estudo.
1.2 Origem e desenvolvimento do acesso à justiça no Brasil
A exemplo do que se passou nos mais diversos continentes, a
problemática do acesso à justiça ocupou a sociedade brasileira desde o período
colonial.
À época vigiam as Ordenações Filipinas, de 11 de janeiro de 1603, que
dispunham:
“§ 10 – Em sendo o aggravante tão pobre que jure não ter bens
móveis, nem de raiz, nem por onde pague o aggravo, e dizendo na audiência uma
vez o Pater Noster pela alta del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como se pagasse
os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro do tempo, em que
havia de pagar o aggravo.”18
A superação do enfoque caritativo sobre o acesso à justiça foi inaugurada
com a Constituição Federal de 1934 – a primeira a se preocupar com a matéria –
que previu, dentre as garantias individuais do cidadão, em seu art. 113, n.º 32, a
obrigatoriedade de a União e os Estados concederem, aos necessitados,
“assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais e assegurando a
isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.”
Após o retrocesso político imposto pela Carta de 1937, a que lhe
sucedeu, em 1946, trouxe idêntica previsão, em seu art. 141.19
Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996, p. 405-406.
18
MORAES, Humberto Pena de; SILVA, José Fontenelle Teixeira da. Assistência Judiciária:
sua gênese, sua história e função protetiva do Estado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1984, p. 82.
19
“Art. 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade,
18
A primeira legislação infraconstitucional republicana a cuidar da espécie
foi inserida no ordenamento jurídico pátrio em 1950, qual seja, a Lei Ordinária n.º
1.060, vigente até a atualidade, que regulamentou os requisitos, o conteúdo e a
abrangência da assistência judiciária.
A Carta Política de 1937, assim a emenda ditatorial de 1939, mantiveram
o texto de antanho, até que a Constituição vigente, promulgada em 5 de outubro de
1988, ampliou o conteúdo da garantia do acesso à justiça, assegurando assistência
jurídica – e não apenas judiciária – aos necessitados.
20
Inovou, também, ao determinar a criação de instituição estatal
encarregada de prestar atendimento nas áreas de informação, aconselhamento e
defesa
judicial
e
extrajudicial,
atendendo
aos
interesses
da
população
hipossuficiente.21
Verificou-se, portanto, um considerável alargamento na compreensão da
assistência a ser prestada àqueles que não disponham de situação econômica que
lhes permita arcar com os custos necessários à orientação jurídica e ao acesso à
justiça.
Esse avanço mereceu o registro de Humberto Peña de Moraes:
Como instrumento de transformação, no Estado Democrático de
Direito, a Defensoria Pública viabiliza a que se concretize, em todos
os graus e instâncias, a assistência jurídica, integral e gratuita,
elencada entre os direitos e deveres individuais e coletivos – art. 5.º,
LXXIV –, possibilitando, assim, o efetivo acesso à jurisdição – no
sentido de inserção, em ordem jurídica legítima e justa – de todo um
vasto contingente empobrecido da malha social. Não é suficiente que
o Estado garanta a todos iguais oportunidades diante da lei, sendo
indispensável, demais disso, que crie e opere, com presteza e
eficiência, os mecanismos conducentes à efetivação do discurso
constitucional. [...] Cabe gizar, de outro prisma, que a Constituição
da República em vigor ampliou, consideravelmente, a proteção
nos seguintes termos: § 35 – O poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência
judiciária aos necessitados.”
20
“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXXIV - o Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.”
21
“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do
art. 5º, LXXIV. § 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e
dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de
carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus
integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições
institucionais. § 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e
administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de
diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.”
19
conferida ao minus habentes, substituindo, de forma moderna e
apropriada, o termo assistência judiciária pela expressão assistência
jurídica – art. 5.º, LXXIV. Dessa maneira, conquanto a assistência
judiciária deva ser havida como atividade dinamizada perante o
Poder Judiciário, a assistência jurídica, ligada à tutela de direitos
subjetivos de variados matizes, porta fronteiras acentuadamente
dilargadas, compreendendo, ainda, atividades técnico-jurídicas nos
campos da prevenção, da informação, da consultoria, do
22
aconselhamento, do procuratório extrajudicial e dos atos notariais.
22
Democratização do acesso à justiça. Assistência Judiciária e Defensoria Publica. In
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização
20
2 CONTEÚDO DA EXPRESSÃO ACESSO À JUSTIÇA
2.1 A significação brasileira e suas conseqüências
Falar-se em acesso à justiça no Brasil tem sido sinônimo de se investigar
o acesso ao Poder Judiciário.
Essa é a definição resultante da consciência popular, aquela que está
inserida no imaginário coletivo e que se constrói a partir da observação da
sociedade no que se refere ao funcionamento de suas Instituições.
Mais do que isso, a sociedade brasileira, frente a um conflito de
interesses, além de vislumbrar o Poder Judiciário como a possibilidade única de
resolução de sua questão, acredita que isto somente poderá se efetivar por meio de
um processo.
E ao falar-se em processo, constrói-se a imagem daquela série de
procedimentos formais, com ritos sacramentados, palavras ininteligíveis àqueles que
não conheçam a técnica jurídica, enfim, uma série de atos que redundarão, ao final,
em uma decisão proferida por um magistrado.
Essa concepção não carregaria conteúdo tão desanimador se esse
desfecho não fosse precedido de uma longa espera e se essa decisão final não se
resumisse, em regra, à mera declaração formal de um direito, longe, no mais das
vezes, de ser realizado.
Isso tudo sem se referir que essa decisão final proclamadora da ordem
justa ao caso examinado sujeita-se, ainda, geralmente, a uma série de
questionamentos e recursos para, somente então, qualificar-se com a imutabilidade
e com a exigibilidade, ou seja, tornar-se passível de implementação.
Todavia, mesmo após percorrido esse longo caminho, essa decisão está
longe, de regra, de representar a materialização do direito declarado, ou seja, seu
cumprimento, na maioria das vezes, reclama o desenvolvimento de uma série de
Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 355-356.
21
outros atos, também formais e burocráticos, até que aquele bem da vida pretendido
seja, finalmente, alcançado a seu titular.
Noutras palavras, o acesso à justiça no Brasil tem se reduzido à
possibilidade de apresentação de uma pretensão perante o Poder Judiciário, que
receberá, como corolário de uma série de atos, uma decisão proferida por um
magistrado proclamando o direito e a justiça àquele caso.
Resume-se, pois, o direito humano de acesso à justiça, dentre nós, a
uma possibilidade formal, tardia, desigual, unidirecional e conflitiva de realização do
justo.
O Poder Judiciário, no modelo atual, alcança seu desiderato de solver um
conflito de interesses após uma longa cadeia de combates, ou seja, por meio de um
novo embate, de uma longa batalha, onde novos e sucessivos conflitos exsurgem,
mediante imputações recíprocas de condutas violadoras de direitos, acusações
mútuas, impugnações, recursos, até que uma palavra heterônoma consagre um
vencedor, dando lugar a uma outra série de conflitos, inconformidades e
insatisfações.
Acresce-se a este modelo combativo de justiça, a circunstância de que a
declaração final do direito, em um sem número de casos, ocorre sem que os
titulares dos interesses em disputa tenham a possibilidade de dialogar, de
apresentar ao outro a origem de sua insatisfação, o significado das violações
apontadas, a repercussão da ofensa ao direito em seu dia-a-dia, em seu patrimônio,
em seu trabalho, diante de seus familiares, em seus sentimentos, enfim, em sua
vida.
Essa fórmula pouco democrática e participativa de processo e a cultura
que valoriza mais a forma ao conteúdo, o motivo escrito ao sentimento falado, a
pretensão formal à motivação sincera, origina, ao fim, uma decisão longe de
promover o entendimento, resolver as questões cotidianas, promover a paz.
Pensar-se em acesso à justiça no Brasil na atualidade, deste modo, no
plano da realidade, do dia-a-dia das pessoas, traduz oportunizar-se à população o
ajuizamento de uma ação perante o Poder Judiciário, o que passará pela tramitação
de um processo formal, moroso, conflitivo e pouco democrático, até que se chegue
à declaração de um direito, muitas vezes apenas formal e incapaz de restaurar o
entendimento e consolidar a justiça almejada.
22
Talvez esse panorama constitua uma das explicações para a insatisfação
e o descrédito da população para com o Poder Judiciário, sinônimo de acesso à
justiça no caso brasileiro, situação que, no mais das vezes, contribui para a
potencialização de conflitos, para a disseminação da violência e para a busca por
formas não convencionais de realização de justiça.
Ao discorrer sobre a crise por que passa o acesso à justiça no Brasil,
pontua José Eduardo Faria:
O Censo de Vitimologia do IBGE, numa das pesquisas que cobre o
final dos anos 80, revela um número assustador: 67% dos brasileiros
envolvidos em algum tipo de conflito optaram por não procurar o
Judiciário, ou porque não têm a confiança necessária no Judiciário,
ou porque desconfiam da morosidade do Judiciário. Mas o fato é
que, quando 67% dos brasileiros envolvidos em algum tipo de
conflito não procuram o Judiciário, de alguma maneira essa nãoprocura não apenas é o endosso, digamos assim, de uma prova de
falta de confiabilidade nas instituições, mas pior ainda, é a
possibilidade que o vazio deixado seja ocupado pela lei do mais
forte, ou seja, uma Justiça não necessariamente estatal ou não
necessariamente exclusiva nas mãos do Estado.23
Outros
estudos
também
dão
conta
de
índices
elevados
de
descontentamento com o funcionamento da justiça brasileira, seja quanto à sua
eficiência, à sua imparcialidade ou confiabilidade.24
Na mesma seara, as conseqüências de uma visão reducionista do acesso
à justiça no Brasil e na América Latina não escaparam à percepção dos
pesquisadores Catherine Slakmon e Philip Oxhorn:
De acordo com um recente estudo sobre democratização e
cidadania na América Latina, a falta de acesso às instituições
formais do sistema judiciário, o apoio popular generalizado a
23
ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL. Ato Público: Democratização Já!
Dia Nacional de Mobilização. Porto Alegre: 2002, p. 39.
24
“GRYNSZPAN, Mário. Acesso e recurso à justiça no Brasil: algumas questões, in Cidadania,
Justiça e Violência. PANDOLFI, Dulce et al org. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. Este
trabalho descreve, dentre outras pesquisas: Survey Lei, Justiça e Cidadania, realizada na região
metropolitana do Rio de Janeiro pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC-FGV e ISER, 1997). O quadro I dessa pesquisa trata dos graus de
confiança atribuídos à justiça pela população em geral e pela parcela que já recorreu, e a conclusão
obtida, nas palavras do pesquisador: “Na verdade, o que predomina entre a população é um tipo de
visão que se opõe àquela que confere legitimidade e reconhecimento à justiça, questionando-se,
basicamente, a sua imparcialidade, a sua equanimidade e a sua eficiência. Indo muito mais além, o
que os resultados de lei, justiça e cidadania parecem indicar é a própria existência de um sentimento
de efetiva cidadania nacional, cuja espinha dorsal, historicamente, é a idéia de tratamento igual
perante a lei.” Dos entrevistados, 90,7% responderam que, no Brasil, a aplicação das leis é mais
rigorosa para alguns do que para outros. Apenas 7,9% responderam que a aplicação se dá
igualmente para todos, e 1,4% não souberam ou não quiseram responder.” (CARNEIRO, Paulo Cezar
Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2000, p. 80-81).
23
medidas autoritárias de controle social, violência policial, impunidade,
corrupção, justiça de favela, esquadrões da morte e justiceiros foram
predominantes e abriram caminho para a consolidação não do
Estado de direito democrático, mas do “desestado” de direito. O
termo capicioso cunhado por Mendez, O´Donnell e Pinheiro (1999),
refere-se ao atual estado de “violência sem lei” perpetrado tanto por
atores estatais como atores sociais que, alegam eles, indica uma
“clara abdicação da autoridade democrática.” [...] De acordo com a
literatura sobre o desestado de direito, a solução preferida pelos
cidadãos de todas as classes parece ser a justiça e segurança
privadas, não raro fora da lei. No mundo retratado na literatura,
dezenas de milhões de brasileiros residentes em favelas e cidadessatélite recorrem a meios ilegais e violentos de justiça e segurança
privada, como justiceiros, o linchamento e a justiça de favela, ao
passo que os ricos têm acesso a recursos de segurança sofisticados
e modernos, guarda-costas e corrupção para driblar os processos
judiciais e se beneficiar de proteção.25
Como bem se pode ver, a limitação do acesso à justiça, assim sua
burocratização e ineficiência, conduzem a mecanismos sociais que em nada
contribuem à consolidação da democracia e da dignidade do ser humano.
As sérias conseqüências sociais de um acesso à justiça limitado e pouco
eficaz, impõem seu repensar, identificando-se seus obstáculos e as possibilidades
de sua superação.
O primeiro desafio parece ser, justamente, o enfrentamento da
significação da expressão acesso à justiça, alargando-a, a que possa abranger
outros métodos de pacificação social, assim assegurar o acesso material a toda a
população, temas que serão examinados com maior profundidade nos capítulos
posteriores.
2.2 As investigações do direito comparado
A idéia de solucionar litígios por intermédio de ações formais perante o
Poder Judiciário, ainda que possa ser vista como exclusiva ou principal forma de
25
SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas
Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 3637.
24
acesso à justiça na sociedade brasileira, constitui concepção abandonada por
diversos países do mundo.
Esse modelo de justiça litigiosa, formal, existe em todas as sociedades
contemporâneas e precisa ser mantido.
O que varia na experiência de diversas sociedades é a existência ou não
de outras alternativas, mais informais, rápidas e, de regra, consensuais, de
pacificação social.
Noutras palavras, a expressão acesso à justiça possui, alhures,
significação bem mais abrangente àquela que a equipara ao acesso à jurisdição
formal prestada pelo Poder Judiciário.
Com efeito, experiências de diversas comunidades apresentam a
perspectiva de que o acesso ao Poder Judiciário seja encarado apenas como uma
das possibilidades de resolução de conflitos e não como a única via disponível à
população.
Percebe-se, igualmente, a possibilidade de ampliação do acesso à justiça
com a multiplicação das ferramentas de pacificação disponíveis ao grupo social.
Como se examinará, a busca do Poder Judiciário para o alcance da
concórdia pode não ser a primeira ou a única possibilidade disponível ao cidadão.
Diversas experiências exitosas ofertam à sociedade outras formas de
resolução de impasses por meio da busca do diálogo, do entendimento, do
consenso: a chamada justiça consensual.
Como observa Cappelletti,
Existem vantagens óbvias tanto para as partes quanto para o
sistema jurídico, se o litígio é resolvido sem necessidade de um
julgamento. A sobrecarga dos tribunais e as despesas
excessivamente altas com os litígios podem tornar particularmente
benéficas para as partes as soluções rápidas e mediadas, tais como
o juízo arbitral. Ademais, parece que tais decisões são mais
facilmente aceitas do que decretos judiciais unilaterais, uma vez que
elas se fundam em acordo já estabelecido entre as partes. É
significativo que um processo dirigido para a conciliação – ao
contrário do processo judicial, que geralmente declara uma parte
“vencedora” e outra “vencida” – ofereça a possibilidade de que as
causas mais profundas de um litígio sejam examinadas e restaurado
um relacionamento complexo e prolongado.26
26
CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 83-84.
25
E o pesquisador prossegue, relacionando alguns modelos alternativos de
obtenção de justiça existentes no mundo:
O sistema jurídico japonês oferece exemplo conspícuo do uso
largamente difundido de conciliação (169). Cortes de conciliação,
compostas por dois membros leigos e (ao menos formalmente) por
um juiz, existem há muito tempo em todo o Japão, para ouvir as
partes informalmente e recomendar uma solução justa. [...] Muitos
países ocidentais, em particular a França e os Estados Unidos, estão
comprovando a veracidade da instituição dos relatores japoneses. A
experiência dos Estados Unidos, em 1978, com os “centros de
justiça de vizinhança”, que será discutida a seguir, em conexão com
os “tribunais populares” (172) constitui um exemplo importante da
renovada atenção dada à conciliação, e a nova instituição francesa
do conciliador local já passou do nível experimental. A experiência
começou em fevereiro de 1977, em quatro departamentos franceses
e, em finais de março de 1978, foi estendida a todos os 95
departamentos franceses (172a). Os conciliadores são membros
respeitados da comunidade local que têm seu escritório geralmente
nas prefeituras e detêm um mandato amplo para tentar reconciliar os
litigantes com vistas à aceitação de uma solução mutuamente
satisfatória. Os conciliadores, indicados pelo Primeiro Presidente da
Corte de Apelação com jurisdição sobre a localidade, também são
chamados a dar conselhos e informações. Evidentemente, existe
uma grande demanda na França pelos serviços oferecidos pelos
27
conciliadores locais.
A tentativa de conciliação presidida por juiz diverso daquele que conduz o
processo também foi experimentada em Nova Iorque, com importantes índices de
resolução de conflitos.28
A Justiça americana ocupa posição de vanguarda nas chamadas
Alternative Dispute Resolucion (ADR), ferramentas disponíveis à comunidade em
alternativa ao litígio judicial.
Torna-se importante referir uma outra experiência americana com os
chamados rent-a-judge, consistente na contratação de juízes
aposentados para resolver os litígios e cujas decisões, por sinal, não
têm revisão pelo Judiciário. [...] É importante ressaltar que as ADRs
fazem parte da estrutura do Estado Americano e têm um apoio na
American Bar Association, que é uma organização dos advogados e
que apóiam e participam de projetos, no sentido de instituir formas
de encaminhamento e diagnóstico preliminar, com o intuito de
determinar qual o procedimento mais adequado para o caso
27
Ibidem, p. 84-85.
“O sistema de ‘Entrevistas e Distribuição de Trabalho’ começou em Nova Iorque no ano de
1970, como uma tentativa de vencer o atraso de 137.000 processos nos tribunais da cidade. Os
juízes, alternadamente, atendem como ‘entrevistadores’, objetivando a tentativa de acordo nos casos
que iriam a julgamento. Se não houver acordo, o caso é imediatamente encaminhado a outro juiz para
julgamento. Aproximadamente 60% dos casos foram resolvidos por acordo, e o atraso dos tribunais
estava vencido no final do ano de 1971. O método básico dos juízes é ouvir ambas as partes, apontar
as fraquezas de cada um e enfatizar as dificuldades e custos do julgamento.” (Ibidem, p. 86).
28
26
apresentado. [...] Há uma idéia de afastar sistemas adversariais, o
conhecido Adversary System, adotando instrumentos procedimentais
simples e objetivamente rápidos, em favor das partes, evitando-se a
contenciosidade.
Essas
denominadas
“portas”
realmente
29
estabelecem horizontes a serem seguidos para cada situação.
Experiências na busca de soluções negociadas também são encontradas
no Canadá, mediante a realização de audiência preliminar presidida por mediador –
pré-trial conference – e na Itália, com uma equipe de profissionais ligados ao Estado
que atua na busca da resolução pacífica dos conflitos durante o desenvolvimento do
processo.
30
A França31 e a Inglaterra32 também registram organizações comunitárias
encarregadas de aproximar as partes.
Essas alternativas podem estar ou não centralizadas nas mãos do Estado
e podem envolver em maior ou menor grau as comunidades em que inseridas.
A possibilidade de a própria comunidade buscar, organizadamente,
administrar recursos para a solução dos conflitos diários que ocorrem em seu meio,
através da oferta de informações básicas sobre cidadania e da utilização de
técnicas de conciliação e mediação, tem sido utilizada em diversas comunidades
com bastante êxito.
Nalgumas experiências, mais que uma alternativa de resolução de
conflitos, esses métodos diferenciados são condição para que se deduza uma
pretensão perante o Poder Judiciário.
Experiências mais próximas na busca de soluções negociadas e
antecedentes ao acionamento do Poder Judiciário também merecem registro.
29
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2005, p.127-128.
30
Ibidem, p.129.
31
“Nesse país, é importante referir os conciliateurs, uma instituição revigorada, constituída por
particulares, designados pelo Judiciário, com a obrigação de aproximar as partes a obter um acordo.
Uma outra instituição é a dos médiateur, considerado um colaborador do magistrado, tendo a missão
de mediador. Por sinal, essa técnica também é praticada na Alemanha e na Itália.” (Ibidem, p. 129130).
32
“Na Inglaterra, igualmente, há uma preocupação em resolver os litígios sem perder de vista a
paz entre as partes. Assim, os Advisary Conciliation and Arbitration Service e os Office of Fair Trading
foram criados para resolver, dentre outros, os problemas na área de vizinhança e consumidores, à
semelhança do conhecido Neighbourdhood Justice Center, dos EUA. Essa idéia, que também se
propaga na Suécia, na França e em outros países, é no sentido de resolver os problemas junto às
comunidades, com aproximação das partes envolvidas e interessadas na solução dos casos
propostos.” (Ibidem, p. 130).
27
Até mesmo a previsão de obrigatoriedade de prévia tentativa de solução
consensual do conflito à provocação da jurisdição encontra registro na América
Latina.
No continente sul-americano, a Argentina, para compor conflitos,
busca formas alternativas, antes que qualquer demanda ingresse na
via judicial. A mediação passa a ser vista com importância
institucional, como movimento do próprio Poder Judiciário em
consonância com o Poder Executivo, através do Ministério da
Justiça, num projeto em que se estabelecem programas para
atender a diversos segmentos da sociedade, de forma centralizada e
integrada com as comunidades que serão beneficiadas. O sistema
na Argentina está bem avançado com obrigatoriedade de uma fase
inicial pela mediação e conciliação na solução das controvérsias,
para uma gama de causas, antes, portanto, da instauração do
processo formal.33 No Uruguai, a comprovação de que a pendência
de processo judicial ou a falta de condições de acesso à solução de
um problema evolui para males psicossomáticos fez com que a
Suprema Corte de Justiça firmasse Convênio de Cooperação
Interinstitucional com o Ministério da Saúde Pública, para instalar,
nas dependências de hospitais, centros de atendimento de
problemas jurídicos. Tais centros propiciam a solução de problemas
jurídicos, enquanto as pessoas aguardam a resolução de seus
problemas médicos. A idéia pode representar um trabalho
descentralizado em grandes hospitais, assim como é possível
Juizados itinerantes atendendo grandes condomínios, sob uma
agenda organizada e em que se preveja a recepção de pedidos e a
presença de conciliadores e mediadores em dias adrede
determinados com a finalidade de solucionar os conflitos.34
33
“A Nova Lei de Mediação e Conciliação Argentina instituiu em caráter obrigatório a mediação
prévia a todos os Juízos, promovendo a comunicação direta entre as partes para a solução
extrajudicial da controvérsia. As partes estão isentas do cumprimento deste trâmite se provem que,
antes do início da causa, existiu mediação perante os mediadores registrados pelo Ministério da
Justiça. O procedimento de mediação obrigatória não é aplicado em causas penais, ações de
separação e divórcio, nulidade de matrimônio, filiação e pátrio poder, com exceção das questões
patrimoniais derivadas destas. O Juiz deverá dividir os processos, encaminhando a parte patrimonial
ao mediador. Ademais, não se aplica aos processos de declaração de incapacidade e de reabilitação,
causas em que o Estado seja parte, habeas corpus e interditos; medidas cautelares até que sejam
decididas, esgotando a respeito delas nas instâncias recursais ordinárias, continuando logo o trâmite
da mediação; diligências preliminares e prova antecipada, juízos sucessórios e voluntários, concursos
preventivos e falências; e, finalmente, causas que tramitem perante a Justiça Nacional do Trabalho.
J.S. Fagundes Cunha e José Jairo Baluta. Querstões Controvertidas no s Juizados Especiais.
Curitiba: Juruá, 1997, p. 25-26.” (Ibidem, p.130).
34
Ibidem, p.131-132.
28
3 CONCEITUAÇÃO DE ACESSO À JUSTIÇA
A significação da expressão acesso à justiça tem sido objeto de estudos
de diversas áreas do conhecimento e sua extensão sistematicamente ampliada,
modo a abranger o sentido de universalidade material.
Em um dos escritos mais clássicos sobre o tema, resume essa evolução,
com precisão, Mauro Cappelletti:
O conceito de acesso à justiça tem sofrido uma transformação
importante, correspondente a uma mudança equivalente ao estudo e
ensino do processo civil. Nos estados liberais “burgueses” dos
séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para a
solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente
individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à
proteção judicial significava essencialmente o direito formal do
indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação.35
O Estado e a sociedade contentavam-se, assim, com a possibilidade
meramente formal de que todos os cidadãos pudessem recorrer ao sistema de
justiça para a salvaguarda de seus direitos.
A cada um incumbia a obtenção dos recursos necessários ao efetivo
exercício desse direito, mecanismo próprio do sistema laissez-faire.36
O
desenvolvimento
das
sociedades,
entretanto,
deu
origem
ao
reconhecimento de direitos sociais de parte dos Estados, reclamando sua atuação
positiva para a asseguração a todos, efetivamente, do gozo desses novos direitos.
Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso à justiça
tenha ganho particular atenção na medida em que as reformas do
welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos
substantivos em sua qualidade de consumidores, locatários,
empregados e, ao mesmo tempo, cidadãos. De fato, o direito ao
acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo
de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais,
uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na
ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação.37
35
CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 9.
36
“A justiça, como outro bens, no sistema do laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que
pudessem enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos
responsáveis por sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade,
apenas formal, mas não efetiva.” (Ibidem, p. 9).
37
Ibidem, p. 11-12.
29
As reflexões iniciais sobre o acesso à justiça passam, assim,
fundamentalmente, por sua asseguração material a toda a população.38
Esta, com efeito, constitui a primeira temática com que se defrontam
todos os povos na atualidade: como se assegurar a todos, em condições de
igualdade material, o acesso à justiça?
A centralidade e a atualidade dessa preocupação em todo o mundo foi
sintetizada por Cappelletti, em conferência proferida na Assembléia Legislativa do
Rio Grande do Sul, ocasião em que problematizou:
Estou aqui para falar de algo que tomou anos de minha vida
profissional: o estudo e a investigação de um problema que acredito
fundamental para todas as sociedades contemporâneas. Observo
que entre os problemas mais importantes, que exigem solução, em
todos os países, está o problema da efetividade, da igualdade de
todos perante o direito e a justiça. Trata-se do problema da pobreza
legal. A dificuldade de acesso de muitos indivíduos e grupos aos
benefícios que derivam da lei e das instituições jurídicas, em
particular as instituições de proteção legal, sobretudo os tribunais.
[...] O movimento para acesso à justiça é um movimento para a
efetividade dos direitos sociais, ou seja, para a efetividade da
igualdade.39
Em seqüência, após pontuar a existência de três ordens de fatores a
dificultar o acesso à justiça – econômicos, organizacionais e processuais –, sobre os
primeiros, complementou:
O tema da pobreza, o tema da representação legal dos pobres,
coloca os seguintes problemas: antes do Juízo, informação,
assistência extrajudicial; e dentro do Juízo, assistência judiciária. É
preciso enfatizar que não basta a assistência, através de advogados,
em Juízo. Pode ocorrer que a assistência extra e pré-judicial seja
mais necessária, porque pobreza significa, normalmente, não
38
“Perante o Judiciário, não parece verdadeiro que todos sejam efetivamente iguais. A partir da
exigência de um profissional que a Constituição considera indispensável à administração da justiça –
art. 133 – constata-se que o despossuído em regra não consegue se fazer representado por jusperito
de talento. E se o Estado é obrigado a prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos – inciso LXXIV do art. 5.º da Constituição da República –, na
prática o nomeado se desincumbe formalmente do encargo, longe de ombrear-se com o empenho do
advogado constituído. [...] Vastas camadas populacionais vêm sendo singelamente excluídas da
justiça convencional. É raro o comparecimento do favelado para pleitos típicos de uma cada vez mais
reduzida classe média: são as ações edilícias, as concernentes às relações de família, de
responsabilidade civil, dos vínculos de consumo. Em Estados desenvolvidos a comunidade dos
consumidores é integrada por todos os habitantes. Diversamente, num país como o Brasil, até a
condição de consumidor é subtraída ao marginal – assim entendido o ser humano despossuído e em
condições de misarabilidade total –, pois alheio ao processo de mercado em que se envolvem apenas
os fornecedores e a população economicamente ativa.” (NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à
justiça. 2.ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 30-31).
39
CAPPELLETTI, Mauro. Trad. Tupinambá Pinto de Azevedo. Conferência proferida no
Plenário da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Revista do Ministério Público do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre: Nova Fase, 1995, n. 35, p. 47.
30
apenas pobreza econômica, mas, também, pobreza jurídica. Isto é,
pobreza de informação. Os pobres não conhecem seus direitos e
assim não dispõem de informação suficiente para saber o que
podem fazer para se protegerem, para obterem os benefícios que o
direito substancial poderia lhes garantir. Esta primeira onda é,
fundamentalmente, uma tentativa de assegurar aos pobres a
assistência de experts, de juristas, antes e dentro do Juízo. É um
tema muito antigo. Nos tempos de Roma antiga, e depois no
Medievo, falava-se em representantes dos pobres. Todo esse
40
fenômeno tornou-se diferente, mais significativo em nosso século.”
Importa assinalar-se, outrossim, que os esforços das sociedades
contemporâneas na proposição de ações que garantam o acesso à justiça a todos
os seres humanos advém do princípio da igualdade material, consagrado no mundo
moderno.41
Essa igualdade “deve ser entendida, antes de tudo, como igualdade de
possibilidades desde o nascimento. Cada homem livre é responsável pela
preservação da liberdade dos outros homens e não se pode admitir que uns nasçam
com a certeza de que terão uma situação de superioridade, dos pontos de vista
econômico, político e social, na mesma sociedade em que outros já nascem
condenados a uma vida de miséria e submissão.” 42
A preocupação com a igualdade material é antiga, como bem adverte
Humberto Peña de Moraes:
Ecoa imorredoura a advertência de Leão XIII, na Encíclica Rerum
Novarum, acerca da proteção estatal dos excluídos de fortuna, ao
assegurar, in expressis: A classe dos ricos se defende por seus
próprios meios e necessita menos da tutela pública; mas o pobre do
povo, baldo de riquezas que o ampara, está peculiarmente confiado
à proteção do Estado.43
40
Ibidem, p. 48-49.
“O princípio da isonomia oferece na sua aplicação à vida inúmeras e sérias dificuldades. De
fato, conduziria a inomináveis injustiças se importasse em tratamento igual para os que se acham em
desigualdade de situações. A justiça que reclama tratamento igual para os iguais pressupõe
tratamento desigual aos desiguais. Isso impõe, em determinadas circunstâncias, um tratamento
diferenciado entre os homens, exatamente para estabelecer, no plano fundamental, a igualdade. O
imperativo do tratamento desigual dos que estão em situação desigual na medida em que se
desigualam impõe, por exemplo, ao legislador o estabelecimento de leis especiais, que protejam
determinadas categorias. Para isso, editam-se leis para amparar os economicamente fracos; os
trabalhadores; os mal alojados; os inquilinos e assim por diante.” (FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 1, p.
27).
42
DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e Constituinte. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 14.
43
Democratização do acesso à justiça. Assistência Judiciária e Defensoria Publica. In
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização
Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 364.
41
31
A questão da garantia do acesso igualitário à justiça torna-se
especialmente relevante em um país como o Brasil, que ostenta discriminação
histórica44 e índices importantes de desigualdade social.
Noutras palavras, preocupar-se com o acesso ao sistema de justiça de
parte de populações vulneráveis é centrar-se o olhar para uma parcela significativa
da população brasileira.45
Essa circunstância foi examinada com perspicácia por Joaquim Falcão:
Na maioria dos países desenvolvidos, a questão do acesso à Justiça
é focalizada como desafio de implementar, através da prestação
jurisdicional, os direitos das minorias. Um desafio democrático,
também fundamental para o Brasil. Mas, data vênia, não acredito ser
o principal, se é que podemos falar em hierarquia de direitos. Explico
melhor. Quem não tem acesso à Justiça no Brasil não são apenas
minorias étnicas, religiosas ou sexuais, entre outras. Quem não tem
acesso é a maioria do povo brasileiro. O Judiciário, por seus custos
financeiros, processos jurídico-formais e conformação cultural é
privilégio das elites, concedido, comedidamente, a alguns setores
das classes médias urbanas. A maioria da nossa população, as
classes populares, quando tem acesso, o tem como vítima ou como
réu. Não é deles, um ativo. É um passivo. Não é deles um direito,
mas um dever. Nos países desenvolvidos, o problema do acesso
surgiu pela conjugação de pelo menos três fatores: a criação de
novos direitos, os direitos humanos de terceira geração, diriam
alguns, a expansão da cidadania, diriam outros; o acesso a maior
renda, isto é, a melhor distribuição de renda nacional, possibilitando
44
“No Brasil, a falta de acesso à Justiça é um problema histórico. Somos um país politicamente
autocrático, centralizador e elitista. Sofremos do mal da ausência de uma classe média significativa
nos primeiros quatro séculos de nossa história, como também de um proletariado que se tenha
organizado a partir de suas raízes e por força de sua própria combatividade. Foi no século XIX que se
deu a integração do imigrante, a expansão da classe média nacional e o aparecimento dos primeiros
segmentos do proletariado com alguma significação. [...] Somos, portanto, um povo que fez sua
história com escassa participação popular. Acostumamo-nos a aguardar sempre as decisões do
Estado, vale dizer das elites dominantes.” (BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Acesso à
justiça: um
problema ético-social no plano da realização do direito. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001, p. 105106).
45
“No Brasil, a triste constatação é a de que a pobreza aumenta progressivamente. Em 1988, a
pobreza absoluta atingia 32,5% da população, ou 44 milhões de habitantes. Por pobreza absoluta
define-se a situação das pessoas com rendimento inferior a um quarto do salário mínimo, ou que
vivem em famílias com rendimento menor que um salário mínimo. No quesito distribuição de renda,
ocupa o Brasil posição desprivilegiada: “Nos países do Leste europeu e na URSS, os 10% bem
aquinhoados são entre três e sete vezes mais ricos que os 10% mais pobres. Nos países
industrializados ocidentais, EUA, Reino Unido, inclusive países que os liberais brasileiros fingem
tomar como paradigmas, aquela relação varia entre cinco e pouco mais do que 10. Os tigres asiáticos
também não são muito selvagens: Japão, Hong-Kong, Coréia e Taiwan apresentam distribuições tais
que em nenhum deles os 10% mais ricos são mais do que 15 vezes mais ricos que os 10% mais
pobres (no Japão essa relação é de cerca de seis vezes). Nos países subdesenvolvidos da Ásia, essa
relação varia entre 10 e 40, o mesmo acontecendo na África, com exceção da África do Sul e de sua
região de influência onde esse fator chega a cerca de 60 vezes. Na América do Sul, excluindo o
Brasil, é no Peru que a renda se mostra mais concentrada, onde os 10% mais ricos chegam a ser 50
vezes mais ricos: aqui os 10% mais ricos ganham cerca de 90 vezes mais do que os 10% mais
pobres.” (MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça
Gratuita. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, p. 2).
32
novos consumidores de Justiça; e, finalmente, o incremento da
complexidade das relações sociais, sobretudo nos grandes centros
urbanos, aumentado assim a possibilidade de conflitos. Estes
fatores, todos eles, existem sim no Brasil. Mas nossa doença
apresenta outro sintoma agudo, que provoca a ausência das classes
populares como autor no processo judicial: a pobreza. [...] Em outras
palavras, nossa tarefa é dupla. Ao mesmo tempo em que temos que
lidar com a implementação dos novos direitos e o aumento dos
conflitos nos grandes centros urbanos, temos que assegurar os
direitos fundamentais interditados para a pobreza brasileira. Em
resumo, o terceiro sintoma a constatar é que o deficiente acesso à
Justiça atinge as minorias em ao mesmo tempo, a maioria da
população brasileira.46
Deste modo, a definição do objeto da expressão acesso à justiça principia
pela concepção de acesso como sendo a possibilidade material de todos os seres
humanos, independentemente de sua situação econômica, cultural, social, ou de
outros fatores, estarem em condições de utilizar o sistema acesso à justiça com as
mesmas possibilidades e facilidades de que dispõe qualquer pessoa.
Esta a premissa de qualquer estudo sobre acesso à justiça: o desafio de
se conferir igualdade material à humanidade, possibilitando-se a todas as pessoas a
utilização do sistema de justiça.
A materialização desse ideal depende da identificação e da superação de
uma série de obstáculos, tema que será examinado nos capítulos subseqüentes.
Outra investigação que se faz imperativa quando se realiza esforço de
conceituação da expressão acesso à justiça, diz com a delimitação de seu
conteúdo: implica definir-se o que compreende a expressão justiça nesse particular.
Em outras palavras, acesso à justiça significa apenas o acesso ao Poder
Judiciário, ou alberga, também, outras formas de resolução de conflitos, como a
mediação, a conciliação e a arbitragem? Mais do que isso: deve haver um
distanciamento na relação estado-sociedade na distribuição de justiça ou existe a
possibilidade de interação e de realização de práticas complementares?
Outra seara, igualmente, merece investigação: há de se encarar o acesso
à justiça unicamente como a disponibilização de ferramentas de pacificação social
ou abrangeria, também, a informação da população sobre seus direitos, no mais das
vezes, requisito essencial à sua perseguição através das ferramentas de acesso?
46
FALCÃO, Joaquim. Acesso à justiça: diagnóstico e tratamento. In JUSTIÇA: PROMESSA E
REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos
Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996, p. 273-274.
33
Decerto a consciência da comunidade sobre a extensão e o conteúdo dos
direitos que lhes são assegurados pelo ordenamento jurídico constitui elemento
essencial do acesso que se examina.47
A consciência do real significado da cidadania plena, a dimensão que os
direitos individuais, sociais, culturais e econômicos podem oferecer à vida das
pessoas, constituem informações fundamentais à sua perseguição.
Até mesmo sobre a dimensão e o significado do acesso à justiça como
direito, é impositivo que tenha pleno conhecimento a comunidade, a que possa
buscá-lo legitimamente.
Refletindo, justamente, sobre essa faceta do acesso à justiça, adverte
Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, colacionando experiência de sua atuação
profissional:
É evidente que o primeiro componente a tornar algo acessível,
próximo, capaz de ser utilizado, é o conhecimento dos direitos que
temos e como utilizá-los. O direito a tais informações é ponto de
partida e ao mesmo tempo de chegada para que o acesso à justiça,
tal como preconizamos, seja real, alcance a todos. É ponto de
partida porque, sem ele, uma série de direitos, notadamente no
campo individual, não seriam reclamados, e ponto de chegada, na
medida em que, agora no campo coletivo, eventuais direitos
reclamados e obtidos fossem realidade para poucos. Exemplo
marcante dessa situação ocorreu recentemente com a drástica
desvalorização do real perante o dólar, no mercado de câmbio:
milhares de pessoas não reclamaram, não pleitearam a
renegociação de seus respectivos contratos individualmente
considerados, indexados pelo dólar, perdendo seus respectivos
bens, por absoluto desconhecimento de seus direitos. Muitos não
sabiam onde e como buscar informações sobre se teriam algum
direito (ponto de partida); outras tantas não se valeram do êxito
obtido pelo Ministério Público, através de medida liminar em ação
47
“Os tribunais devem manter serviço de atendimento facilitado, para fornecer informações
sobre andamento de processos, sobre o endereço da assistência judiciária, sobre problemas jurídicos
concretos de toda ordem. E isso por meio de telefone, de fac-símile, de guichês com funcionários
treinados e conscientes de que o povo é seu patrão. Somente o pobre brasileiro sabe explicar o quão
é maltratado nas repartições públicas. O Judiciário poderia reverter esse quadro, desenvolvendo um
programa de transparência, dando-se a conhecer ao cidadão através de ações de caráter
essencialmente informativo. Os tribunais e associações têm o dever de manter a população
informada, divulgando os endereços dos foros, e dos organismos vinculados à realização da Justiça,
os horários de realização das audiências, o funcionamento dos juizados especiais, e outros dados de
interesse, inclusive prestando contas da produtividade do Judiciário. Projetos mais ambiciosos
poderiam sugerir as Cartilhas da Cidadania, contendo o elenco dos direitos que consubstanciam o
direito a ter direitos. Em linguagem acessível, de compreensão por qualquer do povo, com forma
atraente e suscetível de operacionalização mediante recurso à prestigiada classe dos publicitários
brasileiros. Não é demasia pensar-se em uma série de folhetos, sob a denominação ‘Eu e a Justiça’,
subdividindo-se em ‘Eu e a Constituição’, ‘Eu e o Direito de Família’, ‘Eu e o Direito de Propriedade’,
‘Eu e o meu emprego’, ‘Eu e o Direito Penal’, além de outros títulos. A denominação com ênfase no
prenome pessoal da primeira pessoa tem o intuito de prestigiar a consciência da cidadania.” (NALINI,
José Renato. Novas perspectivas no acesso à Justiça. Revista CEJ, Brasília, v. 1, n. 3, 1997, p. 63).
34
civil pública destinada a substituir a indexação originária, por
absoluto desconhecimento do significado do resultado obtido ou de
como deveriam agir para torná-lo efetivo – ponto de chegada. [...]
Trata-se de pessoas que não têm condições sequer de ser partes –
os “não-partes” são pessoas absolutamente marginalizadas da
sociedade, porque não sabem nem mesmo os direitos de que
dispõem ou de como exercê-los; constituem o grande contingente de
48
nosso país.
Então, a definição do objeto do acesso à justiça inclui não apenas a
imprescindibilidade da garantia de acesso igualitário, mas também o necessário
conhecimento do grupo social sobre o conteúdo e a amplitude dos direitos que lhe
são assegurados pela ordem jurídica.
Noutro ângulo, importa frisar-se que o direito humano de acesso à justiça
possui dimensão bem mais ampla do que o simples acesso ao Poder Judiciário.
Para se assegurar acesso à justiça a uma comunidade necessita-se de
cidadania plena, possibilitando-se a cada ser humano o conhecimento sobre seus
direitos e sobre as ferramentas disponíveis à sua materialização, ofertando-se à
sociedade modalidades alternativas de resolução pacífica de conflitos.
Concretizar-se o direito
fundamental
de
acesso à justiça significa
assegurar-se a toda a sociedade a possibilidade de realização da paz e o alcance
desse valor pode ser obtido por diversas outras formas que não por meio da
jurisdição formal prestada pelo Poder Judiciário.
Dito de outra forma, o acesso à justiça compreende uma série de
ferramentas disponíveis à realização da justiça, complementares à prestação
ofertada pelo Poder Judiciário e, em diversas situações, mais céleres, com menor
custo e mais eficazes.
Alguns exemplos dessas possibilidades são os centros de cidadania, as
práticas de mediação, conciliação e arbitragem, assim as experiências de justiça
restaurativa e de justiça comunitária realizadas em diversos países do mundo,
registrando-se, também, algumas experiências exitosas, ainda que escassas, dentre
nós.
Na percepção de Jasson Ayres Torres,
o Brasil vai assimilando paulatinamente esses modelos alternativos
de justiça informal e adotando instrumentos viabilizadores à solução
dos conflitos. É preciso acreditar em idéias que projetem um futuro
melhor, mais equânime e mais justo. O Brasil não pode descartar o
48
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 57-58.
35
valor da aproximação das partes e a solução das causas através de
escritórios e agências, para viabilizar um acordo. Num segundo
momento é que poderá ocorrer a homologação da autoridade
judiciária, se houver interesse na obtenção de um título executivo
judicial. Caso contrário, a validade é de natureza extrajudicial. [...]
Pensamos numa justiça de consenso, em que o direito seja dirigido
para uma solução pacífica do problema existente. [...] A participação
de juízes leigos, conciliadores, mediadores, juízes de paz e de
colaboradores espontâneos representa o desejo de paz. Uma nova
realidade é o que se constata num mundo permanentemente em
transformação, com problemas crescendo desmedidamente, e as
dificuldades se apresentando cada vez mais complexas a exigir
soluções através de novas alternativas na aplicação imediata do
direito, procedimentos simplificados, com custo compatível ao
acesso pleno a uma justiça eficaz, atendendo, enfim, aos interesses
e às expectativas da sociedade. Uma nova concepção de justiça,
realmente, marca uma linha divisória na afirmação e no
desenvolvimento do princípio constitucional do mais amplo acesso à
Justiça.49
Essas são algumas das possibilidades existentes e disponíveis à
sociedade à concretização da promessa constitucional de acesso à justiça.
Todas complementares à jurisdição formal, prestada pelo Poder Judiciário
que, ainda assim, há de prosseguir em sua missão de distribuir justiça por meio
desta ferramenta quando seu uso se revele adequado ou se mostre necessário.
A esse mesmo horizonte apontou a Ministra Eliana Calmon Alves, por
ocasião de sua posse no Superior Tribunal de Justiça:
Tenho a convicção de que o mundo está caminhando no sentido de
ter um Judiciário minimizado.50 Tenho essa opinião a partir da
observação que faço de países da common low, de origem inglesa.
As partes em conflito podem eleger um árbitro de confiança, que
solucione o impasse. Se, por acaso, não houver satisfação quanto à
solução, aí sim, recorre-se ao Estado. Isto está sendo muito comum,
as chamadas soluções alternativas de conflito. Há diversos
mecanismos, como o Juízo Arbitral, que você citou, a Mediação e a
Conciliação. É o que há de mais moderno em termos de Direito. O
Juízo Arbitral é uma parte dessas soluções dadas a grandes conflitos
na área econômica. A mobilidade do capital cresceu graças à
agilidade dos meios de comunicação. Como pode esse capital ficar
atrelado a um Poder Judiciário demorado, paquidérmico e
ultrapassado? Nos Estados Unidos, por exemplo, em grande parte
dos casos, os conflitos são solucionados fora do Judiciário, mas este
49
O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005,
p. 132, 136 e 158.
50
Acreditamos que a valorização de mecanismos alternativos de resolução de conflitos não
minimize o Judiciário; ao contrário, o maximize, seja em razão do prestígio resultante da qualidade de
parceiro ou coordenador dessas práticas complementares, sempre mais eficazes e menos
dispendiosas, seja porque poderá prestar uma jurisdição formal mais célere e de melhor qualidade
quando procurado a esse fim.
36
fica na retaguarda, pois, se não houver solução, as pessoas podem
recorrer a ele. Em quase todos os estados dos EUA estão sendo
imputadas pesadas multas àqueles que tiverem recorrido ao
Judiciário e este tiver apresentado a mesma decisão que o juiz
arbitral, mediador ou conciliador. Na visão deles, significa que a
Justiça foi acionada desnecessariamente. Eu acho que no Brasil
51
deveríamos proceder assim, mas agimos exatamente ao contrário.
O que importa grifar no esforço de conceituação que se exercita, são as
diversas formas de realização de justiça passíveis de disponibilização ao grupo
social, assim a circunstância de que o acesso à justiça pode e deve ser garantido
não apenas pelo Poder Judiciário, mas pelo Estado e pela sociedade, em regime de
parceria.
A esse respeito, após denominar algumas práticas alternativas de
resolução de conflitos com forte participação comunitária de “micro-justiça”,
Catherine Slakmon e Philip Oxhorn ponderam:
É importante frisar que, embora a micro-justiça se baseie em
processos horizontais de atuação e participação direta do cidadão, o
impulso original de mobilização, a operação e a sustentabilidade dos
projetos dependem, em significativa medida, de atores externos à
comunidade. [...] Os modelos cidadãos de justiça e segurança jamais
devem tentar competir com o Estado, e sim complementá-lo. Se os
programas forem projetados para competir, ou interpretados como
concorrentes do Estado, então estarão de fato e implicitamente
procurando substituí-lo, o que não é desejável, já que efetivamente
legitimaria o estabelecimento de um segundo sistema de classes de
justiça para as populações carentes (a menos que o sistema
judiciário estatal formal tenha sido completamente desacreditado e
não seja considerado uma opção viável).52
O acesso à justiça, compreende, então, o conjunto de ferramentas e de
práticas ofertadas pelo Estado e pela sociedade à humanidade, de modo universal e
materialmente igual, para a realização da justiça.
51
Entrevista concedida à Revista Consulex, Ano III, n. 32, ago. 1999, p.7, apud TORRES,
Jasson Ayres, op. cit., p. 147.
52
SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo (Orgs.). Novas
Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 4849.
37
4 O ACESSO À JUSTIÇA COMO DIREITO HUMANO
4.1 Conteúdo e significação dos direitos humanos
Direitos humanos podem ser definidos como “o conjunto institucionalizado
de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua
dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o
estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade
humana.”53
Na doutrina de Pérez Luño, direitos fundamentais do homem constituem
“um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico,
concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as
quais podem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível
nacional e internacional.”54
Para José Castan Tobeña, direitos humanos são “aqueles direitos
fundamentais da pessoa humana – considerada tanto em seu aspecto individual
como comunitário – que correspondem a esta em razão de sua própria natureza (de
essência ao mesmo tempo corpórea, espiritual e social) e que devem ser
reconhecidos e respeitados por todo o poder e autoridade, inclusive as normas
jurídicas positivas, cedendo, não obstante em seu exercício, ante as exigências do
bem comum.”55
Designados de variadas formas, dentre as quais direitos humanos,
direitos humanos fundamentais, direitos fundamentais do homem, direitos da
pessoa humana, direitos naturais, direitos do homem, liberdades fundamentais,
liberdades públicas, importa referir-se que este conjunto de direitos “relacionam-se
diretamente com a garantia de não-ingerência do Estado na esfera individual e a
consagração da dignidade humana, tendo um universal reconhecimento por parte
53
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. 6ª ed. São Paulo: Editora Atlas S.A.,
2005, p. 21.
54
CASTRO, J.L. Cascajo, Luño. Antonio-Enrique Pérez, CID, B. Castro, TORRES, C. Gómes.
Los derechos humanos: significación, estatuto jurídico y sistema. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1979,
p. 43, apud MORAES, Alexandre, op. cit., p. 22.
55
Ibidem, p. 22.
38
da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em
nível
de
direito
consuetudinário
ou
mesmo
por
tratados
e
convenção
56
internacionais.”
Delimitado o objeto dos direitos humanos, de relevo se referir que eles
reclamam prestações negativas ou positivas do Estado.
Os primeiros são chamados de direitos de não-lesão, direitos civis e
políticos, ou direitos de liberdade, e dependem de uma abstenção do Estado à sua
asseguração.
Os últimos exigem prestações positivas do Estado, identificados, ainda,
como direitos sociais, econômicos e culturais, constituindo-se, pois, em direitos
prestacionais, dentre os quais se situa o direito humano de acesso à justiça.
4.2
A consagração dos direitos humanos prestacionais na ordem
constitucional
Os direitos humanos, nos quais se inserem os direitos prestacionais57,
identificados, ainda, como direitos sociais, econômicos e culturais, aqueles que
reclamam ações positivas do Estado58, cresceram de importância na vigente ordem
constitucional.
56
Ibidem, p. 23.
“Os direitos a ações positivas podem ser qualificados como direitos a prestações em sentido
amplo. Os direitos fundamentais à prestação em sentido amplo, por sua vez, classificam-se em
direitos à proteção, direitos à organização e procedimento e direitos prestacionais em sentido estrito
ou direitos fundamentais sociais. [...] A primeira das características dos direitos fundamentais sociais
que vem à tona é a de serem direitos a ações positivas. Como já referido, uma ação positiva
representa uma mudança causal de situações ou processos de realidade, enquanto a omissão
significa uma não-mudança de situações ou processos na realidade, embora fosse possível a
mudança.” (LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 2006, p. 84-88).
58
“Em uma apreciação preliminar, pode-se dizer que direitos de defesa exigem uma omissão
do Estado, e os direitos prestacionais, uma ação positiva. Porém, ocasionalmente, direitos de defesa
exigem ações positivas do Estado – v.g., uma autorização para uma reunião –, e os direitos
prestacionais exigem ações negativas – v.g., uma pretensão de não-revogação de lei que
regulamenta direitos fundamentais sociais. Isso conduz a uma diferenciação material e formal entre
ambos. Uma diferenciação material entre direitos a ações positivas e ações negativas depende da
fundamentação do direito, independentemente de ocasionalmente surgir uma pretensão a uma ação
positiva ou negativa como meio para se alcançar a realização do direito no sentido material.” (Ibidem,
p. 83).
57
39
Para Flávia Piovesan, “o texto de 1988 ainda inova, ao alargar a
dimensão dos direitos e garantias, incluindo no catálogo de direitos fundamentais
não apenas os direitos civil e políticos, mas também os direitos sociais (ver capítulo
II do título II da Carta de 1988). Trata-se da primeira Constituição brasileira a
integrar, na declaração de direitos, os direitos sociais, tendo em vista que nas
Constituições anteriores as normas relativas a estes direitos encontravam-se
dispersas no âmbito da ordem econômica e social, não constando do título dedicado
59
aos direitos e garantias.”
O avanço da Carta Política brasileira no que se refere à consagração dos
direitos prestacionais, também mereceu o registro de Rogério Gesta Leal:
Entre avanços e recuos, a Constituinte consegue, pela insistência de
poucos segmentos políticos, alinhavando compromissos em torno de
temas ligados a grande parte da população brasileira, insculpir no
texto final matérias de ampla abrangência social, contemplando
várias gerações de direitos humanos. A despeito de se saber que o
grau de efetividade na garantia dos direitos humanos independe da
qualidade de seu enunciado normativo, é imperioso que se
reconheça a abertura política e jurídica prestada pela nova
Constituição a este fim. Levando em conta o grau de miserabilidade
do povo brasileiro, atingindo quase 2/3 dos cidadãos, os direitos
humanos de primeira geração, fruto da sedimentação da cultura
burguesa, pouco interesse representam no quadro político e
econômico nacional, porque negados pelo funcionamento do próprio
sistema. Entretanto, podem-se perceber avanços formais na
enunciação constitucional de proteção aos direitos humanos de
segunda, terceira e quarta gerações. Pode-se afirmar que, como
referencial jurídico, a Carta de 1988 alargou significativamente a
abrangência dos direitos e garantias fundamentais, e, desde o seu
preâmbulo, prevê a edificação de um Estado Democrático de Direito
no país, com o objetivo de assegurar o exercício dos direitos socais
e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Nos seus
artigos introdutórios, a Constituição estabelece um conjunto de
princípios que delimitam os fundamentos e os objetivos da
República. Dentre estes, destacam-se a cidadania e a dignidade da
60 61
pessoa humana .
59
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3ª ed. São
Paulo: Editora Max Limonad, 1997, p. 61.
60
Afirma José Afonso da Silva: “Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o
conteúdo de todos os direitos fundamentais. Concebida como referência constitucional unificadora de
todos os direitos fundamentais, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito de dignidade
da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido
normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o
sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de
direitos sociais, ou invocá-la para construir “teoria do núcleo da personalidade” individual, ignorando-a
quando se trate de direitos econômicos, sociais e culturais.” (SILVA, José Afonso. Curso de direito
constitucional positivo. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 93).
40
4.3
O acesso à justiça na ordem constitucional e sua natureza de direito
humano prestacional
Muito embora grande parte da doutrina identifique a afirmação
constitucional do acesso à justiça no inciso XXXV do art. 5.º da Constituição Federal
62
de 1988 , de seu texto se extrai uma destacada preocupação do constituinte em
conferir igualdade material à população na utilização desse serviço público,
democratizando-o e facilitando-o, seja com a criação e o fortalecimento de
instituições dedicadas à asseguração de direitos à pessoa humana, seja com a
ampliação de mecanismos de resolução de conflitos.
Aliás, constituindo-se em norma dirigente, a Carta Política – legislação
maior da República Federativa do Brasil – não poderia trazer previsão diversa,
porquanto todos os seus mandamentos devem ser interpretados em direção à
garantia da dignidade da pessoa humana – um de seus fundamentos (art. 1.º) –,
assim à redução das desigualdades sociais, à erradicação da pobreza e da
marginalização e à promoção do bem de todos – alguns de seus objetivos
fundamentais (art. 3.º).
Em referência às normas em comento, observa Manoel Gonçalves
Ferreira Filho que “esta definição de metas reflete o espírito de uma ‘constituição
dirigente’, ou, pelo menos, uma ‘constituição plano.”63
“Isto significa que a Constituição se torna, antes de tudo, uma lei material
a preordenar fins, objetivos, até meios, num sentido rigidamente estabelecido.” 64
Na dicção de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, “a nova Constituição
brasileira, amplamente influenciada em diversas de suas partes pelos movimentos
sociais e com as metas que se desenhavam na legislação ordinária antes referida,
consagrando e alargando o âmbito dos direitos fundamentais, individuais e sociais,
prevendo a criação de mecanismos adequados para garanti-los [...]”65, possibilitou,
61
LEAL, Rogério Gesta. Direitos Humanos no Brasil: desafios à democracia. Porto Alegre:
Editora Livraria do Advogado, 1997, p. 130-131.
62
“XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; [...]”
63
Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 20.
64
NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2.ed., São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2000, p. 33.
65
Op. cit., p. 48.
41
em uma série de disposições, a ampliação e a materialização do acesso universal à
justiça, destacando-se, dentre outras, as seguintes:
a) consagração do princípio da igualdade material como objetivo
fundamental da República, tendo como meta a construção de “uma
sociedade livre, justa e solidária, com a redução das desigualdades
sociais” (art. 3.º); b) o alargamento da assistência jurídica aos
necessitados, que passa a ser integral (art. 5.º, LXXIV),
compreendendo: informação, consultas, assistência judicial e
extrajudicial; c) previsão para a criação de Juizados especiais
destinados ao julgamento e a execução de causas cíveis de menor
complexidade e penais de menor potencial ofensivo, com ênfase na
informalidade do procedimento e a participação popular através do
incentivo à conciliação, e a participação de juízes leigos (art. 98, I),
trazendo, portanto, novidades de monta no que diz respeito à
sistemática implantada pela Lei n.º 7.244, de 7 de novembro de
1984, que organizava os Juizados de Pequenas Causas; d) previsão
para a criação de uma justiça de paz, remunerada, composta de
cidadãos eleitos, com mandato de quatro anos, com competência
para o processo de habilitação e a celebração de casamentos, para
atividades conciliatórias e outras previstas em lei (art. 98, II); e)
tratamento constitucional da ação civil pública (art. 129, III), como
instrumento hábil para a defesa de todo e qualquer direito difuso e
coletivo, com a modificação da Lei n.º 7.437/85, que limitava a
defesa de tais interesses ao meio ambiente, consumidor e outros
bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico; f) criação de novos instrumentos destinados à defesa
coletiva de direitos: mandado de segurança coletivo (art. 5.º, LXX), e
o mandado de injunção (art. 5.º, LXXI), bem como a outorga de
legitimidade para os sindicatos (art. 8.º, III) e para as entidades
associativas (art. 5.º, XXI) defenderem os direitos coletivos e
individuais homogêneos de seus filiados; g) reestruturação e
fortalecimento do Ministério Público, como órgão essencial à função
jurisdicional do Estado, conferindo-lhe: atribuições para a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses coletivos e
sociais (arts. 127, §§ 2.º e 3.º), prevendo inclusive a eleição com
mandato dos procuradores-gerais dos estados, distrito federal e
territórios (art. 128, § 3.º); garantias de vitaliciedade, inamovibilidade
e irredutibilidade de subsídios (art. 128, I, letras a, b, e c,
respectivamente); h) elevação da Defensoria Pública como
instituição essencial à função jurisdicional do Estado, com
incumbência à orientação jurídica e à defesa dos necessitados,
devendo ser organizada em todos os estados, no distrito federal,
territórios e, também, no âmbito da própria União (art. 134 e
66
parágrafo único).
66
Ibidem, p. 49-50.
42
Não resta dúvida, deste modo, que a preocupação do constituinte com a
asseguração de direitos ao ser humano, em especial com os direitos prestacionais,
refletiu-se, igualmente, no trato do acesso à justiça.67
Destarte, disciplinado em nível constitucional, no título II da Carta Política,
que estatui os “direitos e garantias fundamentais”, o acesso à justiça, assegurado a
toda a humanidade, reclamando ação positiva do Estado, constitui-se em direito
humano prestacional, atributo, aliás, reconhecido pelos estudiosos do tema.
Mauro Cappelletti, por exemplo, ao dissertar sobre a conceituação do
acesso à justiça, enfatiza que o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente
reconhecido como sendo de importância capital para a concretização dos direitos
proclamados pelas ordens jurídicas, uma vez que a titularidade de direitos é
destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. 68
Em seqüência, preconiza: “O acesso à Justiça pode, portanto, ser
encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de
um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas
proclamar direitos a todos.”69
De acordo com Paulo César Santos Bezerra, o acesso à justiça “é um
direito natural, um valor inerente ao homem, por sua própria natureza. A sede de
justiça, que angustia o ser humano, tem raízes fincadas na teoria do direito natural.
Como direito, o acesso à justiça é, sem dúvida, um direito natural.”
70
A dimensão de direito fundamental do homem de que se reveste o
acesso à justiça também não escapou à análise de Alexandre Freitas Câmara:
Entre os direitos humanos reconhecidos por diversas declarações
nacionais e internacionais, está o acesso à justiça. Este não deve ser
visto como mero direito de acesso ao Poder Judiciário. Ao se falar
em acesso à justiça, está-se a falar em acesso à ordem jurídica
67
“Houve opção nítida pela ampliação das vias de acesso ao Judiciário. [...] A preocupação
com a facilitação do ingresso ao sistema solucionador de questões que afligem as pessoas alcançou
ressonância também nas Cartas estaduais. [...] Existe destinação expressa do Judiciário, por vontade
do constituinte, a atender ao maior número de reclamos. Não é necessário recorrer-se a
interpretações sofisticadas para concluir que os responsáveis pela justiça institucionalizada têm
compromisso consistente com a multiplicação de portas de acesso à proteção dos direitos lesados. E
diante de textos de tamanha abrangência não se pode afirmar que a Constituição tenha deixado de
fornecer ao juiz fundamentos positivos para tornar o acesso à justiça uma concreção, uma realidade
fenomênica, não mera aspiração doutrinária.” (NALINI, José Renato, op. cit., p. 43).
68
Op. cit., p. 11.
69
Ibidem, p. 12.
70
Op. cit., p. 119.
43
justa. Assim sendo, só haverá pleno acesso à justiça quando for
71
possível a toda a sociedade alcançar uma situação de justiça.
4.4 O desafio da concretização dos direitos humanos
Muito embora de fundamental importância, a proclamação constitucional
dos direitos humanos não se afigura suficiente à sua realização na realidade fática
da vida das pessoas.
Há um longo caminho a ser percorrido entre o reconhecimento formal de
direitos humanos pelas mais diversas ordens jurídicas e sua concretização,
especialmente quando se faz necessária a atuação positiva do Estado, como na
hipótese de concretização de direitos humanos prestacionais ou sociais.
Norberto Bobbio, em reflexão sobre a extensão e a materialização dos
direitos humanos, de há muito destacou que “o problema que temos diante de nós
não é filosófico, mas jurídico, e num sentido amplo, político. Não se trata de saber
quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são
direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais
seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles
sejam continuamente violados.” 72
Examinando os direitos do homem na sociedade atual, Silvia Maria Solci
pontua:
Os direitos são proclamados e desrespeitados internacionalmente,
havendo uma defasagem entre as conquistas e a sua efetivação,
mesmo considerando-se todos os avanços já alcançados pela
humanidade nesse campo, conforme aponta Bobbio (1992). Enfim, o
mundo está em luta incessante pelos direitos, pela sua ampliação e
especificação. Aos olhos insensíveis de tantos “o máximo” que se
tem conseguido é a proposta, nem sempre concretizada, de
satisfação de necessidades que garantem a sobrevivência ou, ainda,
efetivadas sob princípios discriminatórios. O direito não é, de fato,
universal, tão pouco é uma meta desejada por todos. Apesar de se
contemplar a “era dos direitos”, segundo Bobbio (1992), na realidade
concreta vive-se profundo desrespeito aos direitos humanos. A luta
pelo reconhecimento dos direitos não é recente. Há longo tempo o
homem se dedica a reivindicá-los; uma vez conquistados deve fazer
71
QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juris, 2002, p. 2.
72
Op. cit., p. 25.
44
com que sejam realizados e não violados. O direito não se faz sem
lutas, as quais assumem diferentes formas, tal como a denúncia, o
debate, o protesto, a resistência. Em conseqüência, o direito vai
sendo construído em determinado contexto social fruto das
transformações da sociedade, podendo significar não só avanços
mas retrocessos. A “formação e o crescimento da consciência do
estado de sofrimento, de indigência, de penúria, de miséria, ou, mais
geralmente, de infelicidade, em que se encontra o homem no
mundo” (Bobbio, 1992, p. 54), força-o a empenhar-se na superação
de tal estado fazendo surgir “zonas de luz” as quais considera
indícios de progresso da humanidade, tal como os amplos debates
internacionais sobre os direitos do homem que hoje ocorrem.73
Com esse mesmo dilema se depara o direito humano de acesso à justiça:
muito embora não se duvide de seu status constitucional e de sua relevância social,
em realidade ainda se está muito distante de conferir à humanidade o conjunto de
ferramentas e de práticas, de modo universal e materialmente igual, à realização de
justiça.
Ilustrativo, a esse respeito, o painel apresentado por Catherine Slakmon e
Philip Oxhorn, demonstrando a intensidade da falta de concretização do direito
humano de acesso à justiça verificados no Brasil e na América Latina:
A literatura é conclusiva: em decorrência da democratização
verificada ao longo dos últimos vinte anos no Brasil e na maioria dos
países da região, os cidadãos gozam de um nível inédito de
liberdade política, ao mesmo tempo em que sofrem com “violações
sistemáticas de seus direitos civis” (ou seja, os direitos relativos à
justiça) diariamente (Oxhorn, 2003; Ecksteins; Wickham-Crowley,
2003; Caldeira, 2000; O´Donnell; Pinheiro, 1999; Holston; Caldeira,
1998). Embora a transição para a democracia no Brasil tenha
efetivamente garantido direitos civis previstos pela Constituição, não
concretizou as melhorias esperadas na acessibilidade e qualidade
dos serviços de justiça e segurança formais, que permanecem
amplamente desregulados fora das instituições formais do sistema
judiciário. Se o Estado não detém monopólio efetivo da violência e
da justiça e é visto como reforçador e criador de mais insegurança e
injustiça, então quais são as alternativas ao sistema judiciário formal
e aos órgãos de repressão tradicionais pata a obtenção de justiça e
segurança?74
A redução dessa distância entre a norma e a realidade, assim as ações
necessárias à concretização do direito humano de acesso à justiça, integrarão as
reflexões constantes dos próximos capítulos deste estudo.
73
SOLCI, Silvia Maria. Os Direitos do homem na sociedade atual. Disponível em:
<http://www.ssrevista.uel.br/c_v2n1_direitos.htm>. Acesso em: 17.9.2007.
74
Op. cit., p. 36-37.
45
5 OBSTÁCULOS À CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO DE ACESSO À
JUSTIÇA
Já houve possibilidade de se delinear o conteúdo do direito humano de
acesso à justiça como sendo “o conjunto de ferramentas e de práticas ofertadas
pelo Estado e pela sociedade à humanidade, de modo universal e materialmente
igual, para a realização da justiça.”75
Registrou-se, igualmente, a dificuldade encontrada pelas sociedades
contemporâneas na concretização dos direitos humanos, fazendo com que se
verifique um distanciamento importante entre os direitos declarados e aqueles
efetivamente disponibilizados à comunidade, realidade que não excepciona o
acesso à justiça.
Na mesma esteira, assinalou-se, desde o princípio, a intenção de se
apontarem mecanismos para a concretização do direito humano de acesso à justiça,
medida que reclama, inicialmente, a identificação das circunstâncias que impedem
ou dificultam sua materialização.
O propósito deste capítulo, desse modo, é o de se proceder à
identificação de alguns dos fatores que obstaculizam a concretização do direito
humano de acesso à justiça.
Agrupar-se-ão referidas circunstâncias de acordo com sua identidade,
apreciando-se os fatores econômicos, culturais, sociais e legais que entravam a
realização plena do direito humano de acesso à justiça, não havendo a pretensão
ou a possibilidade de se apresentar rol taxativo de causas, mas apenas aquelas
mais recorrentes e importantes.
5.1 Óbices de natureza econômica
As circunstâncias decorrentes da desigualdade da humanidade no que
diz com a possibilidade de acesso a bens de valor econômico, têm sido apontadas
75
p. 36.
46
como importante causa a impedir o acesso de grandes grupos de indivíduos aos
mecanismos de realização de justiça.
As despesas para o ajuizamento de uma demanda perante o Poder
Judiciário não constituem valores meramente simbólicos e muitas vezes limitam ou
inibem76 a intenção daquele que pretende ver um direito reconhecido e
materializado utilizando esse serviço.
Estudos revelam, tornando ainda mais dramática essa situação, que, em
proporção, a prestação de justiça formal tem se revelado mais custosa aos
hipossuficientes.77
Há quem apregoe até mesmo a isenção absoluta de custas para
assegurar a universalidade do acesso, proposta que merece acurada reflexão. 78
Não se olvida da existência de gratuidade àqueles que não disponham de
condições financeiras de arcar com as despesas do processo sem prejuízo de seu
sustento ou de sua família.
Igualmente, de haver a Carta Política determinado ao Estado a instalação
de Defensorias Públicas para atendimento aos necessitados.79
76
“A resolução formal de litígios, particularmente nos tribunais, é muito dispendiosa na maior
parte das sociedades modernas. Se é certo que o Estado paga os salários dos juízes e do pessoal
auxiliar e proporciona os prédios e outros recursos necessários aos julgamentos, os litigantes
precisam suportar a grande proporção dos demais custos necessários à solução de uma lide,
incluindo os honorários advocatícios e algumas custas judiciais.” (CAPPELETTI, Mauro; GARTH,
Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1988, p. 15-16).
77
“Quanto aos obstáculos econômicos, verificou-se que nas sociedades capitalistas em geral
os custos da litigação eram muito elevados e que a relação entre o valor da causa e o custo da
litigação aumentava à medida que baixava o valor da causa. Assim, na Alemanha, verificou-se que a
litigação de uma causa de valor médio na primeira instância de recurso custaria cerca de metade do
valor da causa. Na Inglaterra verificou-se que em cerca de um terço das causas em que houve
contestação os custos globais foram superiores ao valor da causa. [...] Estes estudos revelam
sobretudo que a justiça civil é cara para os cidadãos em geral mas também revelam que a justiça civil
é proporcionalmente mais cara para os cidadãos economicamente mais débeis. É que são eles
fundamentalmente os protagonistas e os interessados nas ações de menor valor e é nessas ações
que a justiça é proporcionalmente mais cara, o que configura um fenômeno de dupla vitimização das
classes populares face à administração da justiça.” (FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e Justiça: A
Função Social do Judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989, p. 46).
78
“Dentre os obstáculos econômicos que se antepõem entre o lesado e o equipamento
formulador da justiça figura a cobrança de custas. Pese embora a gratuidade assegurada para todo
aquele que alegar insuficiência de recursos para custear a demanda, na verdade ainda há muita
pobreza excluída dos serviços judiciais, diante da inevitabilidade de algum dispêndio: a realização de
uma perícia, a obtenção de documentos, compromissos que não serão suportados pelo defensor
constituído. Considerando que a justiça venha a ser prestação pública de caráter essencial, ela
deveria ser gratuita a todos. Alegar que haveria estímulo à demanda em virtude da gratuidade parece
não se fundar em análise adequada da personalidade humana. [...] Mas o fato de não se cobrar pela
prestação jurisdicional é desvinculado da multiplicação dos processos, de mesma maneira como a
imaginária isenção de pagamento por internação hospitalar não é, diretamente ao menos, causa de
47
Todavia, ainda assim, a precariedade do atendimento das unidades em
funcionamento no país e, por igual, a circunstância de haver um grande número de
estados e de municípios sem esse serviço instalado, são fatores que excluem
milhões de brasileiros do acesso à justiça.
Sem a instalação da Defensoria Pública, a garantia de acesso à
justiça não passa de promessa solene e farsaica aos desafortunados
e excluídos da vida social digna. É preciso que a promessa
constitucional torne-se realidade para que os carentes tenham
acesso à ordem jurídica justa. Como coloca Luiz Guilherme Marinoni,
de nada adianta a solene garantia de acesso à justiça quando boa
parte da população não tem condições de pagar um advogado e não
existe uma assistência judiciária estruturada de modo a atender as
necessidades do povo. O Estado tem o dever de tornar a justiça
acessível a todos e, portanto, está obrigado a estruturar
adequadamente a assistência judiciária, tornando-a capaz de
atender aos reclamos sociais. 80
Importa registrar-se, outrossim, que mesmo ultrapassados esses
obstáculos referentes às despesas necessárias ao ajuizamento de uma ação
perante o Poder Judiciário e à obtenção de patrocínio de advogado, a escassez de
higidez econômica do pretenso usuário do Poder Judiciário constitui, em diversas
ocasiões, fator limitador ao seu acesso à justiça.
Isso porque a formatação formalista do Poder Judiciário e a necessidade
de se aguardar a solução final da pretensão por um período de tempo bastante
dilatado, no mais das vezes, também corporifica situação a limitar o acesso dos
hipossuficientes economicamente à justiça.
Noutras palavras, não dispondo de condição econômica adequada para
suportar o tempo de tramitação do processo, o hipossuficiente acaba por optar pela
não reação à violação ao seu direito, permanecendo longe do serviço de prestação
de justiça. 81
epidemia.” (NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2. ed., São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2000, p. 61).
79
“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do
art. 5º, LXXIV). § 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal
e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de
carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus
integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições
institucionais.”
80
SOARES, Fábio Costa. Acesso do hipossuficiente à justiça. A Defensoria Pública e a tutela
dos interesses coletivos latu sensu dos necessitados. In QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de (Org.).
Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 93.
81
Após referir a dupla vitimização dos hipossuficientes em razão do alto custo das demandas
de menor valor econômico, Boaventura Souza Santos enfatiza: “De fato, verificou-se que essa
48
Ainda que se ultrapassem todos esses óbices e o indivíduo termine por
apresentar ao Poder Judiciário seu pedido de restauração da paz, a seqüência de
barreiras que se lhe apresentam ainda prossegue, agora consubstanciada no
desafio de lograr demonstrar sua razão ao Estado-Juiz em igualdade material de
condições relativamente a seu adversário.82
Como adverte Mauro Cappelletti,
pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros
consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou
defender demandas. Em primeiro lugar, elas podem pagar para
litigar. Podem, além disso, suportar as delongas do litígio. Cada uma
dessas capacidades, em mãos de uma única das partes, pode ser
uma arma poderosa; a ameaça de litígio torna-se tanto plausível
quanto efetiva. De modo similar, uma das partes pode ser capaz de
fazer gastos maiores que a outra e, como resultado, apresentar seus
argumentos de maneira mais eficiente. Julgadores passivos, apesar
de suas outras e mais admiráveis características, exacerbam
claramente esse problema, por deixarem às partes a tarefa de obter
e apresentar as provas, desenvolver e discutir a causa.83
Cuida-se da igualdade de armas, impositiva à solução adequada do
litígio, exigindo que uma parte possa se valer de recursos tão qualificados quanto os
utilizados por seu adversário, o que envolve a contratação do advogado, a
disponibilidade de arcar com despesas para a obtenção de documentos,
deslocamentos de testemunhas, peritos, entre outros.
Não fosse suficiente essa gama de limitações que a hipossuficiência
econômica impõe à população, ela se apresenta, muitas vezes, ainda, como causa
de outros óbices, de natureza cultural e social, como se examinará a seguir.
vitimização é tripla na medida em que um dos outros obstáculos investigados, a lentidão dos
processos, pode ser facilmente convertido num custo econômico adicional e este é proporcionalmente
mais gravoso para os cidadãos de menos recursos.” (FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e Justiça: A
Função Social do Judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989, p. 47).
82
“Eis o novo significado social do princípio da igualdade processual, atuando mediante
adequados institutos e por força do reconhecimento de poderes de iniciativa judicial que, como lembra
Calamandrei, ‘podem colocar a parte socialmente mais fraca em condições de paridade inicial frente à
mais forte, e impedir que a igualdade de direitos se transforme em desigualdade de fato por causa da
inferioridade de cultura ou de meios econômicos.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do
direito processual: de acordo com a Constituição de 1988. São Paulo: Forense Universitária, 1990, p.
11).
49
5.2 Óbices de natureza cultural de social
Ainda que as restrições ocasionadas pelas questões de natureza
econômica sejam as mais recorrentemente apreciadas pelos estudiosos do tema, as
dificuldades ligadas a aspectos culturais e sociais da humanidade apresentam
importância acentuada no estudo do direito humano de acesso à justiça.
Inegável, por igual, como se assinalou, a comunicação dos aspectos
culturais e sociais dificultadores do acesso à justiça com aqueles de natureza
econômica.
Assinale-se, por oportuno, entender-se por desenvolvimento cultural e
social de uma comunidade o maior ou menor grau de acesso à educação, saúde, ao
lazer, ao trabalho, à informação, assim a outros direitos humanos.
Boaventura de Sousa Santos não deixa qualquer dúvida a respeito da
influência da hipossuficiência cultural e social no exercício do direito humano de
acesso à justiça:
Mas como comecei a referir, a sociologia da administração da justiça
tem-se ocupado também dos obstáculos sociais e culturais ao efetivo
acesso à justiça por parte das classes populares e este constitui
talvez um dos campos de estudo mais inovadores. Estudos revelam
que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é
tanto maior quanto mais baixo é o estrato social a que pertencem e
que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores
econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns
e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados
com as desigualdades econômicas. Em primeiro lugar, os cidadãos
de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e,
portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os
afeta como sendo problema jurídico. Podem ignorar os direitos em
jogo ou ignorar as possibilidades de reparação jurídica. Capplowitz,
por exemplo, concluiu que quanto mais baixo é o estrato social do
consumidor, maior é a probabilidade que desconheça seus direitos
no caso da compra de um produto defeituoso. Em segundo lugar,
mesmo reconhecendo o problema como jurídico, como violação de
um direito, é necessário que a pessoa se disponha a interpor a ação.
Os dados mostram que os indivíduos das classes baixas hesitam
muito mais que outros a recorrer aos tribunais mesmo quando
reconhecem estar perante um problema legal. [...] O conjunto destes
estudos revelaram que a discriminação social no acesso à justiça é
um fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista pode
parecer, já que para além das condicionantes sociais e culturais
83
Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1988, p. 21-22.
50
resultantes de processos de socialização e de interiorização de
84
valores dominantes muito difíceis de transformar.
A hipossuficiência social e cultural resulta, assim, inequivocamente, no
distanciamento da população com o sistema de justiça, a começar pela falta de
informação.
Desconhecendo seus direitos e até mesmo o direito de ter direito material
a direitos – via direito humano de acesso à justiça –, as populações com baixos
índices de desenvolvimento humano são as que menos procuram o sistema de
justiça.85
Essa situação apresenta-se agravada diante da cultura do sistema de
justiça brasileiro que pouca preocupação tem demonstrado na comunicação com a
sociedade e, em especial, na produção de informações sobre como acessá-lo.86
Não bastassem todos os entraves de ordem econômica e a falta de
informações, a localização dos Foros – em regra bem distantes de comunidades
periféricas –, sua imponência e até mesmo o distanciamento social das
comunidades de baixa renda com os operadores do sistema de justiça – servidores,
advogados, juízes –, seja em relação à linguagem, seja no que se refere às
vestes87, à cultura, são circunstâncias que desmotivam e desencorajam grandes
contingentes humanos de procurar a realização de justiça.
84
Introdução à sociologia da administração da justiça. In FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e
Justiça: A Função Social do Judiciário. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989, p. 48-49.
85
A esse respeito, na introdução desse estudo colacionou-se pesquisa noticiada por Maria
Tereza Sadek dando conta de que a relação entre habitantes e processos no Brasil é diretamente
proporcional ao índice de desenvolvimento humano das populações.
86
“A informação institucional a respeito do serviço público da justiça praticamente não existe no
Brasil. Há necessidade de informação ao destinatário, mediante fornecimento de todos os detalhes
que viabilizam o ingresso ao Judiciário, inserindo-se conselhos práticos quanto à inteira gama de
produtos disponíveis. Singelo aconselhamento jurídico, ensinando a quais setores recorrer quando
necessários os préstimos da justiça, mostra-se essencial: o conjunto normativo se amplia e a
sociedade de consumo exige nível cada dia mais elevado de educação de seus cidadãos. Saber a
quem e como procurar nos momentos de vulneração a direitos é básico.” (NALINI, José Renato. O
juiz e o acesso à justiça. 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 85-86).
87
Notícia recentemente veiculada pela mídia dá conta do grau de obstaculização do acesso à
justiça a que questões sociais podem levar: “Tiras censuradas. Juiz suspende audiência porque parte
usava chinelos. Por Gláucia Milicio. O juiz Bento Luiz de Azambuja Moreira, da 3ª Vara do Trabalho de
Cascavel (PR), decidiu cancelar uma audiência porque uma das partes calçava chinelos. Para ele, “o
calçado é incompatível com a dignidade do Poder Judiciário”. O trabalhador Joanir Pereira ajuizou
ação trabalhista contra a empresa Madeiras J. Bresolin. A primeira audiência, no entanto, não foi feita
porque o ex-funcionário estava com calçado impróprio para o ambiente, de acordo com o juiz. Na ata,
o juiz registrou a sua insatisfação e marcou uma nova data para a audiência. O caso foi noticiado,
nesta quinta-feira (21/6), pelo site Espaço Vital. “O juiz deixa registrado que não irá realizar esta
audiência, tendo em vista que o reclamante compareceu em Juízo trajando chinelo de dedos, calçado
incompatível com a dignidade do Poder Judiciário”, registrou o documento. O presidente da Amatra da
51
Jasson Ayres Torres explicita essas limitações detalhadamente:
Quem recorre ao Judiciário não assimila a demora, não entende as
fórmulas e os procedimentos complicados da vida forense, não
aceita rotinas, o linguajar complexo, tudo distante do entendimento
normal da comunicação entre pessoas. Esse afastamento da
realidade e da objetividade da vida torna enfadonho o processo,
burocratizando a administração da Justiça. [...] Pensando nas
incontáveis pessoas que ficam à margem da Justiça, porque não têm
condições econômicas e até se sentem constrangidas em entrar
numa sala do Fórum, pela imponência dos prédios, pela formalidade
e distanciamento, desde a linguagem até o desenrolar dos atos
processuais, é que a idéia de uma Justiça simples, informal,
88
imediata, cria força e receptividade.
A experiência alienígena chegou às mesmas constatações, solidificando
os aspectos culturais e sociais como limitadores do acesso à justiça em termos
mundiais:
Mesmo aqueles que sabem como encontrar aconselhamento jurídico
qualificado podem não buscá-lo. O estudo inglês, por exemplo, fez a
descoberta surpreendente de que “até 11% dos nossos
entrevistados disseram que jamais iriam a um advogado”. Além
dessa declarada desconfiança nos advogados, especialmente
comum nas classes menos favorecidas, existem outras razões
óbvias por que os litígios formais são considerados tão pouco
atraentes. Procedimentos complicados, formalismo, ambientes que
intimidam, como o dos tribunais, juízes e advogados, figuras tidas
como opressoras, fazem com que o litigante se sinta perdido, um
prisioneiro num mundo estranho.89
9ª Região (Associação dos Magistrados do Trabalho), José Mário Kohler, comentou a decisão. Para
ele, não tem nada de indigno uma pessoa simples calçar chinelos durante uma audiência. Mário
Kohler disse, ainda, que jamais suspenderia uma audiência por esse motivo e que a maioria dos
juízes do trabalho também não. “O juiz tem de agir com o bom senso judiciário”, destacou. Leia a ata:
Numeração única: 01468-2007-195-09-00-2. Reclamante: Joanir Pereira. Reclamada: Madeiras J.
Bresolin Ltda. TERMO DE AUDIÊNCIA. Aos treze dias do mês de junho de 2007, às 15:10h, na sala
de audiências da 3ª Vara do Trabalho de Cascavel, sob a direção do Juiz do Trabalho Dr. BENTO
LUIZ DE AZAMBUJA MOREIRA, foram apregoados os litigantes. Presente o(a) reclamante,
acompanhado(a) de seu(sua) procurador Dr. Olímpio Marcelo Picoli (OAB/TO 3631) . Presente o(a)
reclamado(a), por intermédio do preposto José Orlando Chassot Bresolin, acompanhado(a) de
seu(sua) procurador Dr. Heriberto Rodrigues Teixeira (OAB/PR 16184), que junta procuração, carta
de preposição e contrato social. O Juízo deixa registrado que não irá realizar esta audiência, tendo em
vista que o reclamante compareceu em Juízo trajando chinelo de dedos, calçado incompatível com a
dignidade do Poder Judiciário. Protestos do reclamante. Em face da providência, o Juízo designa nova
data para instauração do dissídio, dia 14 de agosto de 2007 às 14h30min. Cientes as partes. Nada
mais. Audiência encerrada às 16h10min. E para constar, eu Suzeli Maria Idalgo Becegato, Assistente
Administrativo de Sala de Audiências, digitei a presente ata. BENTO LUIZ DE AZAMBUJA MOREIRA.
Juiz do Trabalho. Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2007.” Disponível em
<http://conjur.estadao.com.br/static/text/56839,1>. Acesso em: 18.9.2007.
88
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2005, p. 73-74 e 164.
89
Ibidem, p. 23-24.
52
Catherine Slakmon e Philip Oxhorn trazem outro elemento, por demais
preocupante, de ordem social e cultural, a prejudicar o acesso à justiça, qual seja, a
desconfiança de determinados grupos populacionais para com a imparcialidade e a
confiabilidade do sistema formal de justiça:
Um estudo recente sobre cidadania e democracia na América Latina
revela que, na maioria dos países da região, o sistema judiciário
formal e a polícia tendem a reproduzir desigualdades
socioeconômicas existentes, negando o princípio fundamental da
igualdade entre os cidadãos perante a lei (Ecksteins; WickhamCrowley, 2003; O´Donnell; Pinheiro; 199, Holston; Caldeira, 1998).
Os baixos níveis de confiança (que não surpreendem) na polícia e no
Poder Judiciário (OAB, 2003; Pesquisa de Valores Mundiais,
levantamento de 1995-1997; Buscaglia, 1995), sobretudo entre os
cidadãos de baixa condição socioeconômica, são um forte indicativo
da improbabilidade de recurso aos canais legais tradicionais para a
solução dos problemas e conflitos que provocam a insegurança e a
injustiça percebidas e efetivas. Em outras palavras: quando as
pessoas têm um problema a ser resolvido ou um conflito de
interesses a mediar, têm menor probabilidade de recorrer às
instituições estatais para tanto e “obter justiça”.90
Embora as limitações sociais e culturais até então declinadas possuam
relação direta com as condições econômicas das populações, outras limitações
dessa natureza apresentam-se dissociadas dos aspectos econômicos.
Por exemplo, a falta de cultura das comunidades na organização e na
busca por direitos enquanto grupo ou classe.
Cuida-se da defesa coletiva de direitos, a exigir o desenvolvimento da
consciência – questão social e cultural – do grupo social de sua importância e
conveniência.
Mauro Cappelletti denomina esse obstáculo ao acesso à justiça de
pobreza jurídica:
Pobreza jurídica não é somente a pobreza de um indivíduo, que não
tem recursos financeiros, que não tem cultura bastante, que não tem
posição social adequada, ou seja, pobreza econômica, social,
jurídica, cultural, etc. Pobreza pode ser um fenômeno mais vasto.
Fenômeno de grupos, de categorias. Tipicamente o caso do
consumidor. Todos somos consumidores, sem que sejamos
necessariamente pobres economicamente ou culturalmente. Mas a
sociedade contemporânea, a indústria é tal que produtos são
fabricados de forma massiva, milhares, milhões de produtos do
mesmo tipo, em série. Não é a produção artesanal de outras épocas:
é uma produção em massa. O consumidor, que compra um produto
com pequeno defeito de um dólar, não pode se defender
90
SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo (Orgs.). Novas
Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 43.
53
individualmente. Aí se trata de um interesse fragmentado, demasiado
pequeno para que o cidadão, individualmente, defenda seu direito.
Mas se todos os consumidores, em conjunto, decidirem atuar, serão
milhões de dólares, e não apenas um, pois milhares, centenas de
91
milhares ou milhões de consumidores estarão comprometidos.
Fábio Costa Soares, citando Ada Pellegrini Grinover, exemplifica outras
situações de pobreza jurídica – gerando os carentes organizacionais – e registra a
necessidade do desenvolvimento da cultura de organização e mobilização desses
grupos à superação desse obstáculo do acesso à justiça.
92
Outro importante fator de ordem cultural, diz com a concepção
reducionista, formal, conflitiva, burocrática e não efetiva que a população detém
sobre o sistema de justiça.
Em outras palavras, a inexistência de uma cultura que identifique o
acesso à justiça também como possibilidade de resolução pacífica de conflitos – via
mediação, conciliação, arbitragem, modelos de justiça comunitária e de justiça
restaurativa, formas informais e céleres de resolução de conflitos –, inibe a
população de buscar sua resolução por meios lícitos e consensuais.
Esse desestímulo é gerado pela certeza de que buscar justiça, no Brasil,
implica no enfrentamento de uma longa e burocrática batalha judicial, o que, muitas
vezes, até mesmo potencializa o conflito em lugar de mitigá-lo.
Ademais,
o povo não quer decisões eruditas, recheadas de citações
doutrinárias e jurisprudenciais, mas soluções objetivas, simples e,
acima de tudo, que resolvam o caso concreto de forma
descomplicada, atendendo às expectativas de uma justiça rápida e
eficaz. Realmente, facilitar o acesso do cidadão à Justiça a que
possa apresentar a reclamação de um direito tendo resposta
imediata do Estado, representa um anseio da sociedade. [...] O
91
REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL, n. 35. Porto Alegre: Nova
Fase, 1995, p. 50.
92
“As relações travadas entre indivíduos na atualidade são marcadas pelas notas da
complexidade e da desigualdade fática. [...] Parece crucial que à sociedade de massa deve
corresponder o processo de massa para a solução dos conflitos de massa. [...] Assim, por exemplo, o
consumidor no plano das relações de consumo; o usuário de serviços públicos; os que se submetem
necessariamente a uma série de contratos de adesão; os pequenos investidores do mercado
imobiliário; os segurados da Previdência Social; o titular de pequenos conflitos de interesse, que via
de regra se transforma em um litigante meramente eventual. Todos aqueles, enfim, que no intenso
quadro de complexas interações sociais hoje reinante, são isoladamente frágeis perante adversários
poderosos do ponto de vista econômico, social, cultural ou organizativo, merecendo por isso mesmo
maior atenção com relação ao seu acesso à ordem jurídica justa e à participação por intermédio do
processo.” (Acesso do hipossuficiente à justiça. A Defensoria Pública e a tutela dos interesses
coletivos latu sensu dos necessitados. In QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à
Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 84).
54
Poder Judiciário não pode ser inacessível, elitista, ficando distante
do povo, não cumprindo com seu papel de distribuidor de justiça, sob
pena de as angústias e emoções reprimidas crescerem, o descrédito
93
se instalar, gerando revoltas e insatisfações.
5.3 Óbices de natureza legal
Mesmo porventura ultrapassadas as dificuldades de ordem econômica,
social e cultural, o acesso à justiça ainda encontra óbices de ordem legal,
responsáveis, no mais das vezes, pela morosidade na tramitação dos processos.
O excessivo formalismo do processo, aliado a uma grande variedade de
vias de impugnação94 às decisões proferidas em seu curso, são algumas das
causas da excessiva morosidade95 verificada na resolução dos conflitos entregues
ao Judiciário.
Morosidade que se apresenta como limitação do acesso ao Poder
Judiciário, porquanto serve de desestímulo a um grande contingente de pessoas
que, pelos mais variados motivos, deixa de lhe apresentar suas pretensões em
razão da impossibilidade de aguardar a decisão a ser proferida ao final.
Uma justiça tardia gera problemas insanáveis, atingindo o âmago da
pessoa. Por isso as afirmativas de que não ter acesso ao Poder
Judiciário ou tê-lo e não conseguir obter com a presteza desejada a
reposição do direito no seu devido lugar e no tempo exigido,
representa a própria negação da justiça. [...] É compreensível o fato
93
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2005, p. 160-161.
94
“Outro grande obstáculo ao funcionamento da máquina judiciária é o elevado número de
recursos – oito (8) nos termos do art. 496, sem contar a remessa de ofício, os embargos de
declaração dobrados (a sentença e o acórdão), o agravo também dobrado (retido e de instrumento), e
os recursos regimentais como os agravos regimentais, o que eleva esse número para onze (11), afora
o mandado de segurança que é freqüentemente manejado como sucedâneo recursal, com o que
teríamos uma dúzia (12) de recursos. É preciso convir que nenhum ordenamento jurídico agüenta
semelhante carga recursal, e nem há tribunal que dê conta dela. Não tenho conhecimento de país que
adote modelo semelhante, o que é justificável, pois enquanto os outros confiam nos seus juízes de
primeiro grau, e partem da presunção de que as sentenças são corretas, e só excepcionalmente
erradas ou injustas, no Brasil, partimos do extremo oposto, supondo que as sentenças são, no geral,
erradas ou injustas, e só excepcionalmente corretas.” (ALVIM, J. E. Carreira. Alternativas para uma
maior eficácia na prestação jurisdicional. Revista da Escola Superior da Magistratura do Distrito
Federal, n.2. Brasília: 1996, p. 128).
95
“O Judiciário padece mais por falta de eficiência do que por falta de seriedade. É por isso que
temas como controle externo não apaixonam a comunidade. Esta reclama da morosidade da justiça.
Uma justiça que, se vier a ser mais pronta e inteligível, gozará do apreço devotado pela comunidade
àqueles que a servem adequadamente.” (NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2ª ed.,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 166).
55
de muitas pessoas não recorrerem ao Judiciário, pois torna-se algo
dispendioso, e nem todos têm condições econômico-financeiras para
96
contratar um advogado e suportar o custo de uma demanda.
Não é demais se apontar, por fim, que os hipossuficientes são os que
mais sofrem com as conseqüências da longa tramitação dos processos.
Os efeitos dessa delonga, especialmente se considerados os índices
de inflação, podem ser devastadores. Ela aumenta os custos para as
partes e pressiona os economicamente fracos a abandonar suas
causas, ou a aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a
que teriam direito. A Convenção Européia para Proteção dos Direitos
Humanos e Liberdades Fundamentais reconhece explicitamente, no
artigo 6.º, parágrafo 1.º, que a Justiça que não cumpre suas funções
dentro de “um prazo razoável” é, para muitas pessoas, uma Justiça
97
inacessível.
96
TORRES, Jasson Ayres, op. cit., p. 48-50.
56
6 CONCRETIZANDO O DIREITO HUMANO DE ACESSO À JUSTIÇA
Reconstituídas suas origens históricas, definido seu conteúdo e traçados
os obstáculos à garantia do direito humano de acesso à justiça, resta sejam
delineadas as estratégias para a construção de um acesso à justiça materialmente
universal à população.
Apontar-se-ão, nesse capítulo, ações necessárias à remoção dos
obstáculos à concretização do direito humano de acesso à justiça, várias delas
passíveis de realização no âmbito de atuação da magistratura, constituindo-se esse
estudo, assim, em verdadeira proposta de intervenção social dirigida à sociedade e,
em especial, à magistratura brasileira.
Ofertar-se-á, dessa forma, um rol de ações a serem efetivadas pela
sociedade e pela magistratura para a materialização do direito humano de acesso à
justiça.
Com efeito, pontua Norberto Bobbio, com extremo acerto, a relevância e
a complexidade da concretização dos direitos humanos:
O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje,
não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um
problema não filosófico, mas político. [...] Com efeito, o problema que
temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido
mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são
esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos
naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo
mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados. [...] O problema
real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e
imagináveis para a efetiva proteção desses direitos.98
6.1 O papel dos movimentos sociais
O acesso à justiça constitui-se em direito de fundamental importância na
construção de um Estado Democrático de Direito.
97
CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. op. cit., p. 20-21.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:
Campus, 1992, p. 24-25 e 37.
98
57
Como já se pontuou, o acesso à justiça afigura-se como pressuposto para
a materialização de uma série de outros direitos titularizados pela população.99
Desse modo, a articulação e a organização comunitárias apresentam-se
como estratégias necessárias à sua consagração.
Justamente por esse motivo foram historicamente utilizadas pelos grupos
sociais como instrumento de pressão a que os organismos estatais materializassem
os direitos que lhe são prometidos, consagrados no ordenamento jurídico.
Nessa linha, no dizer que Gohn, movimentos sociais,
são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores
sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles
politizam suas demandas e criam um campo político de força social
na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios
criados sobre temas e problemas em situações de: conflitos, litígios
e disputas. As ações desenvolvem um processo social e políticocultural que cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir
desses interesses em comum. Esta identidade decorre da força do
princípio da solidariedade e é construída a partir da base referencial
de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo.100
No
caso
brasileiro,
todavia,
verifica-se
número
inexpressivo
de
organizações sociais trabalhando no sentido de concretizar o direito humano de
acesso à justiça, muito embora já hajam desempenhado função relevante na
realização desse direito fundamental, como anota Paulo Cezar Pinheiro Carneiro:
A partir da década de 80, praticamente já consolidada a reabertura
política com a Lei de Anistia, a Nova Lei Orgânica dos Partidos, que
ensejou inclusive a criação do Partido dos Trabalhadores (PT),
99
“O tema do acesso à justiça é aquele que mais diretamente equaciona as relações entre o
processo civil e a justiça social, entre igualdade jurídico-formal e desigualdade socioeconômica. No
âmbito da justiça civil, muito mais propriamente do que no da justiça penal, pode falar-se de procura,
real ou potencial, de justiça. Uma vez definidas as suas características internas e medido o seu
âmbito em termos quantitativos, é possível compará-la com a oferta da justiça produzida pelo Estado.
Não se trata de um problema novo. No princípio do século, tanto na Áustria como na Alemanha, foram
freqüentes as denúncias da discrepância entre a procura e a oferta da justiça e foram várias as
tentativas para minimizar, quer por parte do Estado (a reforma do processo civil levada a cabo por
Franz Klein na Áustria), quer por parte dos interesses organizados das classes sociais mais débeis
(por exemplo, os centros de consulta jurídica organizados pelos sindicatos alemães). Foi no entanto,
no pós-guerra que esta questão explodiu. Por um lado, a consagração constitucional dos novos
direitos socioeconômicos e sociais e a sua expansão paralela à do Estado de bem-estar transformou
o direito ao acesso efetivo à justiça num direito charneira, um direito cuja denegação acarretaria a de
todos os demais. Uma vez destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu respeito, os novos
direitos sociais e econômicos passaram a meras declarações políticas, de conteúdo e função
mistificadores.” (SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução à sociologia da administração da justiça.
In FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e Justiça: A Função Social do Judiciário. São Paulo: Editora
Ática S.A., 1989, p. 45-46).
100
GOHN, Maria da Glória. Movimentos e lutas sociais na história do Brasil. São Paulo: Loyola,
1995, p. 44.
58
começaram a tomar corpo movimentos sociais diversos, seja das
classes dominadas, seja de outros matizes, caladas pela ditadura.
Foi nesse contexto que surgiram a Central Única dos Trabalhadores,
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimentos
Ecológicos e ONGs diversas, exigindo a efetivação de direitos
fundamentais e socais, enfim, uma vida digna e livre e, portanto,
justiça, na sua acepção mais ampla e nobre. Inúmeras publicações
científicas de sociólogos, filósofos, psicanalistas, cientistas políticos,
a partir de uma visão interdisciplinar, abordavam temas ligados aos
direitos fundamentais e sociais e, em especial, o relativo ao acesso à
justiça de forma igualitária e eficiente, na busca da consolidação de
um sistema jurídico mais atuante, moderno e participativo.101
Talvez a falta de consciência da dimensão e da importância desse direito
constitua um dos óbices à organização popular,102 postura, aliás, na contramão da
história desenhada pela nova cidadania nacional.103
Essa circunstância foi percebida e anotada por José Murilo de Carvalho:
O que a tradição estatista, que chamei uma vez de estadania, fez, no
entanto, foi gerar grande ênfase nos diretos sociais, exatamente
porque eles sempre supuseram iniciativa estatal. [...] Há clara
percepção desses direitos e da obrigação do Estado de providenciar
sua garantia. [...] Sintomaticamente, entre os direitos sociais ainda
não foram incluídos, pela população, pelo governo, o de acesso à
justiça. A população, são pesquisas do IBGE e de institutos de
opinião pública que o mostram, teme a polícia e não confia na justiça
comum, que julga cara, lenta e favorável aos ricos. [...] O Judiciário
sempre foi discutido como parte da engrenagem política da divisão
101
CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 43-44.
“Os movimentos se constituem a partir de dois elementos motrizes: a carência e o trabalho
desenvolvido pela organização dos moradores. Entre ambos, existe um elemento articulador,
constituído por um conjunto de mecanismos internos ao movimento que permite a passagem da
necessidade à reivindicação, mediada pela afirmação de um direito. Isto configura o que Durham
caracteriza como “um amplo processo de revisão e redefinição do espaço de cidadania”. [...] Não
existe, entretanto, uma relação mecânica e espontânea entre carência e reivindicação. O elemento de
conscientização se manifesta em ações sociais diferenciadas, porém dentro de uma perspectiva do
que alguns autores têm denominado de modelo comunitário (Durham, 1984; Evers, 1984).” (JACOBI,
Pedro. Movimentos Sociais e Políticas Públicas. São Paulo: Cortez, 1993, p. 151).
103
“Um primeiro elemento constitutivo dessa concepção de cidadania se refere à noção mesma
de direitos. A nova cidadania assume uma redefinição da idéia de direitos, cujo ponto de partida é a
concepção de um direito a ter direitos. [...] Ela inclui a invenção/criação de novos direitos, que surgem
de lutas específicas e de suas práticas concretas. Nesse sentido, a própria determinação do
significado de ‘direito’ e a afirmação de algum valor ou ideal como um direito são, em si mesmas,
objetos de luta política. [...] A nova cidadania requer - é inclusive pensada como consistindo nesse
processo – a constituição de sujeitos sociais ativos (agentes políticos), definindo o que consideram
ser seus direitos e lutando para seu reconhecimento enquanto tais. Nesse sentido, é uma estratégia
dos não-cidadãos, dos excluídos, uma cidadania ‘desde baixo’. Um terceiro ponto é a idéia de que a
nova cidadania transcende uma referência central no conceito liberal: a reivindicação ao acesso,
inclusão, participação e pertencimento a um sistema político já dado. O que está em jogo, de fato, é o
direito de participar na própria definição desse sistema, para definir de que queremos ser membros,
isto é, a invenção de uma nova sociedade.” (DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e
cidadania: do que estamos falando?). Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/
venezuela/faces/mato/Dagnino.pdf>. Acesso em 20.9.2007.
102
59
de poderes, como um poder político, e não como um distribuidor de
justiça. [...] Não seria difícil imaginar o efeito revolucionário que teria,
sobretudo, entre a população marginalizada das grandes cidades, a
rápida solução, por uma justiça ágil e barata, da multidão de
pequenos conflitos que infernizam o cotidiano dessa população e
tornam na prática letra morta para ela o capítulo dos direitos da
Constituição. [...] Além das óbvias dificuldades representadas pela
morosidade, pelo custo, pela complexidade e insuficiência da
máquina judiciária, o maior obstáculo à democratização do acesso à
justiça talvez seja essa fraca consciência dos direitos que bloqueia a
104
disposição para reivindicá-los.
Propugna-se, assim, que a organização popular se desenvolva,
dialogando com o poder público a que se concretize o direito humano de acesso à
justiça.
Isso porque “conscientizar os cidadãos de seus direitos, mostrar-lhes os
caminhos da justiça, fazê-los afogar o Judiciário em demandas é, a meu ver, o
caminho eficaz para forçar a entrada do problema da democratização do acesso à
justiça na agenda da política.” 105
Enfim, “para que haja solução autêntica é necessário que a voz dos
verdadeiros interessados se faça ouvir.” 106
6.2 A necessidade de ações afirmativas e de políticas públicas
Como se sublinhou quando do exame dos entraves ao pleno acesso à
justiça, as limitações de caráter econômico afastam considerável número de
pessoas dos mecanismos de resolução de conflitos.
Não fosse o bastante, a hipossuficiência econômica origina, muitas
vezes, restrições de ordem social e cultural, fatores que, associados, empurram os
povos para a margem dos mecanismos de pacificação social.
Essas circunstâncias, decorrentes da deficitária distribuição de renda e,
também, da ineficiência das políticas públicas necessárias à asseguração da
104
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero americanos.
Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra
Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 290-292.
105
Ibidem, p. 293.
60
dignidade ao ser humano, originam uma cidadania de segunda classe, formada
pelos sem-nome, sem-abrigo, sem-alimentação, sem-saúde, sem-profissão, semesperança, sem-dignidade e, igualmente, sem acesso à justiça.
Esse outro Brasil, em verdade, é composto de dezenas de milhões de
seres humanos, aos quais há se garantir os direitos proclamados pela Carta Política,
o que se impõe, da mesma forma, a que se alcance a efetivação do princípio da
igualdade material.107
A concretização do direito humano de acesso à justiça apresenta-se,
assim, como imperativo ético do Estado Democrático de Direito.
Destarte, não por motivações de caridade ou de benevolência, mas por
imposição constitucional e ética, hão de se efetivar ações afirmativas e desenvolver
políticas públicas para a concretização dessas promessas democráticas, dentre as
quais, a do universal acesso à justiça.108
Com efeito,
a definição objetiva e racional da desigualdade dos desiguais,
histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma
forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são
marginalizados por preconceitos encavados na cultura dominante na
sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação
jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se
provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e
segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no
sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma
106
Ibidem, p. 293.
“A concepção de uma igualdade puramente formal, assente no princípio geral da igualdade
perante a lei, começou a ser questionada quando se constatou que a igualdade de direitos não era,
por si só, suficiente para tornar acessíveis a quem era socialmente desfavorecido as oportunidades de
que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Importaria, pois, colocar os primeiros ao mesmo
nível de partida. Em vez de igualdade de oportunidades, importava falar em igualdade de condições.
Assim, sob esse novo aspecto, a tradicional posição de neutralidade do Estado foi sendo abandonada,
dando lugar a uma posição ativa na busca da concretização da igualdade positivada nos textos
constitucionais. Diante desta nova perspectiva, foram surgindo as denominadas Ações Afirmativas,
que nada mais são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material.” (FARIA,
Anderson Peixoto de. O acesso à justiça e as ações afirmativas. In QUEIROZ, Raphael Augusto
Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 15).
108
“O Estado passa a ser responsável pela democratização do acesso à justiça, pela redução da
desiguladade real (em oposição à igualdade formal) perante a lei. Com essa inversão, abriu-se, à
expansão da democracia, imenso campo até há pouco tempo desprezado. Ao mercado de massa, à
participação política de massa, ao estado de bem-estar de massa, acrescenta-se o ideal de uma
justiça de massa como coroamento da construção do cidadão moderno.” (CARVALHO, José Murilo
de. O acesso à justiça e a cultura cívida brasileira. In Justiça: Promessa e Realidade: o acesso à
justiça em países ibero-americanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB;
tradução Carola Andréa Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 289).
107
61
forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a
109
que se acham sujeitas as minorias.
Não há dúvida, igualmente, da responsabilidade do Poder Judiciário para
com a coordenação e o desenvolvimento dessas ações de construção da igualdade
material no acesso à justiça, porquanto encarregado constitucionalmente da
distribuição de justiça aos seres humanos.
110
Apontando para a responsabilidade do Judiciário na democratização do
acesso à justiça, apregoa o magistrado José Renato Nalini:
A ordem constitucional confere ao Poder Judiciário o monopólio da
realização da justiça. A sua ineficiência, a lentidão com que
responde aos anseios comunitários, a falha na efetividade da
prestação jurisdicional, fazem surgir resistência na preservação
desse esquema. Incumbe ao Judiciário demonstrar que pode
otimizar sua atuação, liderar o movimento pelo acesso e coordenar
– sob sua órbita – qualquer forma alternativa de realização de
justiça. A essa missão todos os juízes estão convocados. [...] O
objetivo é conclamar os magistrados para uma tomada de posição.
O que pode ser feito para melhorar o funcionamento da justiça, de
maneira a acolher sob sua proteção vasta legião de excluídos? O
que se pode fazer para resgatar a credibilidade perdida? 111
Após comentar as possibilidades de resolução de conflitos por intermédio
de mediação e conciliação, assim a informalidade, a celeridade e o facilitado acesso
à justiça verificados nesses mecanismos de pacificação social, sublinha Jasson
Ayres Torres:
Não se pode negar, porém, que são iniciativas como essas que,
tomadas, representam alto significado de democratização da Justiça,
tornando o Judiciário mais próximo do cidadão, com participação
mais efetiva da vida em sociedade e ensejando uma melhor
distribuição de Justiça, porque se alcançarão as pessoas menos
favorecidas e com menos oportunidades de reclamar um direito. [...]
A implantação de medidas racionalizadoras na vida forense e na vida
do cidadão é uma conseqüência do acompanhamento das
109
FARIA, Anderson Peixoto de. O acesso à justiça e as ações afirmativas. In QUEIROZ,
Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 1516.
110
“A solução de conflitos pode ter um caminho judicial ou mesmo extrajudicial. [...] Nessa via
extrajudicial, vai preponderar o interesse dos envolvidos. Nesse terreno é que sentimos a importância
de o Poder Judiciáro não ficar alheio e nem se tornar estranho ao desfecho do conflito, propiciando
uma negociação diretamente pelas partes, contando, para tanto, com a participação de profissionais
da área do direito, com a presença de um terceiro com vontade deliberada de resolver o problema. [...]
Essa participação, porém, deve ficar sob a coordenação do Poder Judiciário, como instituição
organizada e com delegação do Poder Estatal para a distribuição da Justiça.” (TORRES, Jasson
Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005. p.
155-156).
111
NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2000. p. 166-167.
62
transformações sociais para a afirmação do tão desejado acesso à
Justiça, compreendendo na amplitude desta expressão, também, a
efetividade da jurisdição. É necessário, portanto, que voltemos o
olhar para importantes temas e é imprescindível que o mundo
jurídico nacional tenha consciência do valor desses problemas e se
mobilize para viabilizar alternativas satisfatórias na solução de
conflitos. Pretende-se, hoje, mais do que nunca, um Poder Judiciário
mais próximo e mais entendido pelo povo. Ao lado de medidas
alternativas na solução de conflitos em que se afirmem os direitos do
cidadão, é preciso encontrar caminhos para garanti-los, com um
Estado presente, sem excluir ninguém, tendo o Judiciário como um
dos esteios a dignificar e valorizar o ser humano.112
Hão, assim, repita-se, de se implementar políticas públicas e desenvolver
ações afirmativas113 no sentido da superação dos obstáculos já identificados ao
acesso à justiça.
Apresentar-se-ão,
dessa
forma,
nos
tópicos
seguintes,
algumas
sugestões de ações no sentido de se concretizar o direito humano de acesso à
justiça.
6.3 Ações para a superação dos obstáculos de natureza econômica
Como se pôde apontar, os obstáculos de natureza econômica são
aqueles que por primeiro se identificam quando se aborda o tema acesso à justiça.
Estão relacionados à necessidade de recolhimento prévio de custas
quando do ajuizamento de uma ação e, igualmente, com as demais despesas
decorrentes do processo, com advogado, peritos, testemunhas, documentos, entre
outras.
A possibilidade de eliminação do pagamento de custas apresenta-se
como inadequada em razão de que, invariavelmente, estimularia toda a sorte de
112
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2005. p. 166-167.
113
“A experiência e o tempo têm-nos demonstrado que a estratégia de combate à discriminação
somente com base no campo normativo, de regras meramente proibitivas de discriminação, não surte
efeito. Isto tem feito com que as diversas classes, que durante toda a história foram discriminadas,
venham a se mobilizar de diversas formas, atuando para que possam desfrutar do acesso à justiça
que sempre lhes foi negado.” (FARIA, Anderson Peixoto de. O acesso à justiça e as ações
afirmativas. In QUEIROZ, Raphael Augusto Sofiati de (Org.). Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora
Lumen Juris, 2002, p. 18).
63
demandas, em especial aquelas temerárias e com pouca possibilidade de êxito ante
a inexistência da cautela ocasionada pela necessidade de algum dispêndio para o
acesso à jurisdição.
Contrariaria, da mesma forma, uma tendência mundial de exigência de
contraprestação à oferta de jurisdição.114
De outro lado, a cobrança das custas decorrentes do processo não pode
ser tomada como limitadora do acesso à justiça, porquanto as ordens jurídicas
mundiais são claras em isentar os hipossuficientes desse ônus, justamente no
intuito de se alcançar a tão almejada igualdade material.
A ampliação e a garantia plena do acesso à justiça estão a reclamar,
entretanto, interpretação adequada do instituto da assistência jurídica integral e
gratuita, insculpido na Constituição Federal,115 consentânea com os fundamentos e
os princípios da República Federativa do Brasil.116
Cabe gizar, de outro prisma, que a Constituição da República em
vigor ampliou, consideravelmente, a proteção conferida aos minus
habentes, substituindo, de forma moderna e apropriada, o termo
assistência judiciária pela expressão assistência jurídica – art. 5.º,
LXXIV. Dessa maneira, conquanto a assistência judiciária deva ser
havida como atividade dinamizada perante o Poder Judiciário, a
assistência jurídica, ligada à tutela de direitos subjetivos de variados
matizes,
porta
fronteiras
acentuadamente
dilargadas,
compreendendo, ainda, atividades técnico-jurídicas nos campos da
prevenção, da informação, da consultoria, do aconselhamento, do
procuratório extrajudicial, e dos atos notariais.117
114
CAPPELETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Traduzido por Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 15-18.
115
“Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LXXIV - o Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”
116
Constituição Federal: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. [...] Art. 3º Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e
solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
117
MORAES, Humberto Peña de. Democratização do acesso à justiça. Assistência Judiciária e
Defensoria Publica. In Justiça: Promessa e Realidade: o acesso à justiça em países iberoamericanos. Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa
Saavedra Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 356.
64
A atividade interpretativa do juiz, desse modo, há de considerar todos
esses fatores e, em especial, os princípios constitucionais para a boa realização do
justo no caso em exame.
Ultrapassada a questão atinente ao pagamento das custas processuais,
outro fator de relevância na concretização do direito humano de acesso à justiça, diz
com a assistência de advogado, necessária na maioria das pretensões levadas ao
Poder Judiciário.118
Com efeito, a opção brasileira pelo sistema de advogados públicos
mediante a implantação de Defensorias Públicas, somente terá o condão de
viabilizar o acesso à justiça de parte daqueles que não dispõem de condições
econômicas de constituir advogado quando houver oferta adequada desse serviço à
população.
A esse respeito, importa referir-se que o atingimento da igualdade
material pressupõe que o serviço dos Defensores Públicos seja descentralizado,
com atendimento nos bairros e em horário no qual as pessoas não precisem se
ausentar do trabalho ao atendimento.
Para José Murilo Carvalho “os defensores públicos deveriam invadir
favelas e outras áreas carentes para demonstrar a essa imensa população
marginalizada que a Constituição vige também para ela.” 119
Outro mecanismo de ampliação do acesso à justiça são os Juizados
Especiais Cíveis.
Eles se caracterizam pela gratuidade, pela informalidade, pela rapidez e
pela participação popular.120
Entretanto, os Juizados Especiais deveriam existir em maior número,
atender descentralizadamente e em horário em que os trabalhadores pudessem
acessá-lo sem prejuízo de seu trabalho.121
118
Nos Juizados Especiais Cíveis, em pedidos de valor econômico de até vinte salários
mínimos, a parte requerente não precisa estar assistida por advogado durante o processo, consante
art. 9.º da Lei n.º 9.099/95.
119
JUSTIÇA: PROMESSA E REALIDADE: o acesso à justiça em países ibero-americanos.
Organização Associação dos Magistrados Brasileiros, AMB; tradução Carola Andréa Saavedra
Hurtado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 292.
120
“Essa participação popular na administração da justiça será tanto mais proveitosa na medida
em que pessoas do próprio bairro e, portanto, conhecidas pelos membros da comunidade onde o
Juizado esteja situado contribuam com o seu trabalho para o alcance dos fins visados, especialmente
a conciliação com pacificação.” (CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça. Juizados
Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 108).
65
A presença de postos de atendimento dos Juizados nos bairros
periféricos conseguiria diminuir a distância da população com o sistema de justiça.
A participação da comunidade na estrutura dos Juizados também possui
importante efeito simbólico, a representar um esforço de abertura e de
democratização do Poder Judiciário.122
No dizer que Jasson Ayres Torres,
esse novo sistema de justiça identificado com o homem comum, pela
simplicidade e informalidade do procedimento adotado, dá início à
imagem de um Poder Judiciário mais acessível a todos os
segmentos da sociedade. A proximidade do povo e a linguagem
compreensível, menos complicada, conduz a um melhor
funcionamento da Justiça, repercutindo em todo o território nacional,
com a edição de leis estaduais, ensejando que milhares de
brasileiros pudessem reclamar, de forma simples e direta, os seus
direitos.123
Além disso, o modelo de tramitação dos processos verificado nos
Juizados Especiais tem recebido o elogio de juristas e de estudiosos de todo o
mundo, porque diminui consideravelmente o número de atos até que o caso tenha
seu julgamento final e, igualmente, o número de recursos.
Ao lado desse enxugamento do tempo de tramitação do processo e do
atingimento da tão sonhada celeridade, mantiveram-se as garantias do contraditório
e da ampla defesa àqueles que são demandados nesse sistema de justiça.124
121
“A descentralização da justiça, com a criação de tribunais especiais para o julgamento de
causas de pequena complexidade (art. 3.º), nos bairros, com os seus respectivos serviços de
assistência judiciária, permite que os Juizados sirvam de pólos de informação de direitos, quaisquer
que sejam (arts. 57 e 58), minimizando o gravíssimo problema da desinformação jurídica existente no
nosso país em ao mesmo tempo, facilitando o acesso das classes menos favorecidas ao Judiciário.”
(Ibidem, p. 106).
122
“A tendência em direção à comunidade atende o espírito de uma nova cultura jurídica, de que
a justiça não pode ficar parada, diante da modernidade presente. Concepção de uma justiça
conciliadora, descentralizada, saindo dos gabinetes, indo ao encontro dos cidadãos e de seus
problemas, tentando resolvê-los, não a deprecia, não a diminui, não lhe retira o poder; pelo contrário,
a torna mais respeitável e solidifica a imagem de credibilidade junto ao povo pelo trabalho itinerante
que realiza.” (TORRES, Jasson Ayres, op. cit., p. 95).
123
TORRES, Jasson Ayres, op. cit., p. 98.
124
“A Lei das Pequenas Causas não é e não se esperava mesmo que fosse, um corpo isolado
com vida autônoma e despregado de raízes lançadas para fora de si. Ela constitui, isso sim, um ponto
bastante luminoso na constelação das leis processuais que têm vida no universo do ordenamento
jurídico. Em outro escrito, ressaltei que o processo ali instituído, se bem que inteiramente novo e
revolucionário na forma como encadeados os seus atos com simplicidade e os seus sujeitos com
muita liberdade, é um processo fiel ao modelo contemporâneo e tradições brasileiras, além de
rigorosamente alinhado aos sadios princípios presentes nos sistemas processuais da atualidade.”
(Cândido Rangel Dinamarco. A Lei das Pequenas Causas e a Renovação do Processo Civil, apud
WATANABE, Kazuo [et al.] (Coord.). Juizado Especial de Pequenas Causas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1985).
66
Desse modo, o fortalecimento e a expansão desses Juizados seriam
instrumento inequívoco de concretização do direito humano de acesso à justiça.
Da mesma forma, a ampliação dos tipos de pretensões passíveis de
exame de parte desses Juizados e, igualmente, do valor máximo dos pedidos,
caracterizaria extraordinário avanço na consagração da ampliação do acesso à
justiça.
A facultatividade da assistência por advogado, hoje limitada às causas de
até vinte salários mínimos, também serviria à universalização do acesso, sem que
isto implicasse em diminuição de garantias processuais, porque se garante a
assistência de advogado quando desse recurso dispõe a outra parte, em
observância ao princípio da igualdade material ou da paridade de armas.
6.4 Ações para a superação dos obstáculos de natureza cultural e social
As limitações mais importantes ao acesso à justiça verificadas em
decorrência de aspectos culturais e sociais estão relacionadas à hipossuficiência
econômica suportada por grande parte da população brasileira.
A falta de informação, como já se explicitou, constitui o mais importante
óbice à busca da efetivação de direitos por meio do sistema de justiça e sua
superação passa por uma grande concentração de esforços visando ao
esclarecimento da população sobre seus direitos e sobre os métodos disponíveis à
busca de sua materialização.
Esse trabalho deveria principiar pelas instituições encarregadas da
educação, procedendo à inclusão de disciplinas que informassem a comunidade
sobre seus direitos e sobre os caminhos existentes à sua efetivação.
Nesse mesmo horizonte poderiam trilhar todas as organizações
comunitárias e de prestação de serviços, levando à população a real dimensão de
sua cidadania, desvendando-lhe os direitos de que é titular e mostrando os
mecanismos existentes à sua concretização.
Talvez
essa
conscientização
servisse
ao
impulsionamento
da
organização social, que poderia, então, articular-se na promoção desses esforços
67
de informação e na reivindicação dirigida ao Estado, a que se desincumba das
missões que a Carta Política lhe outorgou.
Somente com o real conhecimento da população sobre extenso rol de
direitos de que é titular e sobre os mecanismos de acesso à justiça, construir-se-á
um Estado Democrático de Direito na exata magnitude que sua conceituação
concebe.
Nesse passo, importa pontuar-se que nem mesmo a superação dos
obstáculos econômicos – com a instituição de Juizados Especiais gratuitos e com a
disponibilização de advogados sem custos – possibilita o acesso à justiça à revelia
da efetivação do direito à informação.
Bem demonstra o asserto, pesquisa realizada em Juizados Especiais
Cíveis do Rio de Janeiro, comprovando que nem mesmo diante da isenção de
despesas as populações hipossuficientes acessam os mecanismos de justiça.
No estudo, verificou-se, por igual, que essa limitação persiste mesmo em
unidades situadas em regiões periféricas.125
Com segurança, então, pode-se afirmar que o desenvolvimento de
políticas públicas de informação da população sobre a dimensão de sua cidadania é
pressuposto inafastável à concretização do direito humano de acesso à justiça.
Destarte, além das instituições de ensino, todos os organismos
componentes do sistema de pacificação social deveriam envidar esforços no sentido
da conscientização da comunidade sobre o teor e a extensão de seus direitos, o que
haveria de ser procedido por intermédio de folhetos explicativos, oficinas,
seminários, congressos, encontros e outras atividades a serem realizadas por
125
“O resultado das entrevistas realizadas não é preciso no que concerne à identificação em
percentuais das classes sociais que freqüentam os Juizados. Todavia, pode-se afirmar com
segurança que predomina em larga escala a classe média, apesar das discretas tendências de um
maior afluxo da classe pobre, assim considerados aqueles que auferem renda inferior a três salários
mínimos, notadamente nos Juizados situados no Centro da Cidade. Importante consignar três
situações colhidas nas pesquisas que confirmam as afirmações acima. A primeira revela que, na
pesquisa realizada no então Juizado de Pequenas Causas situado na favela do Pavãozinho (primeira
etapa), no bairro de Ipanema, não figurava um único morador da favela como autor de uma ação. A
maioria quase absoluta das ações eram propostas por pessoas da classe média, que, em 60% dos
casos, iam acompanhadas de advogado, para tratar assuntos basicamente referentes à indenização
decorrente de colisão de veículos e de infiltrações em apartamentos situados no bairro Ipanema. A
segunda, decorre de elaborada pesquisa realizada no Juizado situado na UERJ, que revela os
seguintes percentuais: 13% do público possuía renda média de até três salários mínimos; 13%, entre
três e cinco salários mínimos; 37% entre cinco e 10 salários mínimos; e 36% renda superior a 10
salários mínimos.” (CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, op. cit., p. 135-136).
68
aqueles atores, dentre os quais poder-se-ia mencionar o Poder Judiciário126, a
Ordem dos Advogados do Brasil, a Defensoria Pública, o Ministério Público e suas
respectivas associações127.
Outra ação fundamental para a concretização do direito humano de
acesso à justiça diz com a necessidade de mudança de paradigma quanto à
compreensão de seu conteúdo.
Não se pode mais, em tempos de relações de massa e de crescimento
de populações urbanas, em especial, periféricas, conceber-se o acesso à justiça
como acesso ao Poder Judiciário, resumindo-se-o à prestação formal de
jurisdição.128
Além dessa interpretação limitativa de acesso à justiça como sinônimo de
acesso ao Poder Judiciário, outro paradigma há de ser rompido, qual seja, aquele
que iguala a obtenção de justiça à disputa, ao enfrentamento, à utilização
incessante de recursos, à contenda, ao demandismo, ao litígio.
126
“O brasileiro tem direito constitucional à informação. Não desatende à positividade o juiz que
se preocupar com a transmissão desses dados à comunidade. Antes, estará implementando a nova
ordem constitucional, que pretende tornar cada homem um bom cidadão – ou, segundo a feliz
expressão de Hanah Arendt, o direto a ter diretos. [...] O juiz não está excluído da responsabilidade de
manter o destinatário informado de seus direitos, nem da transparência que a prestação jurisdicional
também deve se revestir, pois administração pública submetida aos preceitos do art. 37 da
Constituição da República. Deve, portanto, assumir papel protagônico na disseminação de todos os
informes que tornem o Judiciário mais conhecido e mais próximo da população.” (NALINI, José
Renato, op. cit., p. 87).
127
No anexo A deste estudo pode-se encontrar o manual do Projeto Justiça e Cidadania Também se
Aprendem na Escola, desenvolvido pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, que leva
informação sobre cidadania às comunidades escolares.
128
“El auspicio de la implementación de ciertos mecanismos alternativos para la solución de los
conflictos, que se sustenta igualmente en razones que hacen al costo del servicio judicial. El
desemboque jurisdiccional – que, desde luego, resulta imprescindible – debe pasar a erigirse en la via
última, a la que se arriba recién al cabo de la eventual frustración de otras, que se ofrecen a los
justiciables con evidentes ventajas para sus intereses (menos o inexistente costo, mayor celeridad,
informalidad). Debe preverse, entonces, un escalonamiento de ‘instancias’, insertas dentro de la órbita
del órgano jurisdiccional, que garantice los acuerdos a través de su homologación. Una primera
conciliatoria, obligatoria para todos los conflictos; en subsidio, otra arbitral voluntaria; solo el tránsito
infructuoso por aquella y la declinatoria de ésta habilitan el conocimiento judicial. Otra idea no
desdeñable consiste en organizar tales modos alternativos con la intervención de las comunas y las
asociaciones de abogados y de magistrados. Para éstos implicaría asumir roles diversos de los
tradicionales, que constituyen un significativo aporte al bien común a través del perfeccionamiento de
la justicia, en una via participativa en general inédita.” (BERIZONCE, Roberto O. Algunos Obstáculos
al Acesso a la Justicia, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 68, p. 67-85, out./dez 1992, apud
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2005, p. 157).
69
Antes de formar exércitos de profissionais prontos para a guerra, as
escolas de direito hão de produzir seres humanos treinados e emprenhados na
busca da resolução pacífica de conflitos, ou seja, na busca da paz.129
A jurisdição formal, burocrática e técnica há de ser reservada à última
alternativa à resolução de um conflito, ou seja, acionada somente quando esgotadas
as vias consensuais de pacificação social.130 E estas hão de existir, de se multiplicar,
alcançando todos os bairros, todos os extratos sociais, todos os povos.
Quando se apregoa a utilização de mecanismos consensuais de
pacificação social, pensa-se na instituição e na implantação de ferramentas de
mediação, conciliação e arbitragem.
Esses instrumentais podem contar com maior ou menor131 participação
do Estado e da sociedade, dando origem a uma série de possibilidades que vão
129
“O número incomensurável de ações que chega aos fóruns e tribunais a cada dia, faz com
que se pense em novos modelos de distribuição de Justiça. Resolver os conflitos é encontrar
diretrizes na área judicial como na extrajudicial, dentro ou fora do processo, incrementando propostas
na seara da transação, concretizando a conciliação e a mediação, assim como o arbitramento,
previsto no Sistema dos Juizados. A arbitragem, como similar do arbitramento, tem objetivo
semelhante. Ora, todos esses mecanismos podem ser colocados à disposição das pessoas, com
incentivo e apoio da Instituição do Poder Judiciário, para que possam realizar seus desideratos.”
(TORRES, Jasson Ayres, op. cit., p. 136).
130
Sobre o tema, colaciona-se recente noticiário produzido pelo Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul: “Centro Judicial de Conciliação será instalado em Canoas. A partir da próxima
segunda-feira (3/9), a Comarca de Canoas passará a contar com o Centro Judicial de Conciliação.
Trata-se de um projeto-piloto e objetiva viabilizar conciliações em questões que envolvem qualquer
valor e mesmo antes da entrada formal da ação na Justiça. A iniciativa é uma contribuição do Rio
Grande do Sul ao Movimento Nacional pela Conciliação do Conselho Nacional de Justiça. A proposta
foi idealizada no âmbito da Comissão de Conciliação de 1º Grau, coordenada pela Juíza-Corregedora
Vera Lúcia Fritsch Feijó. A magistrada acredita que “o projeto reverterá em considerável economia de
recursos materiais e de pessoal, na medida em que previne o ajuizamento de demandas e encurta o
tempo de tramitação dos feitos no sistema judiciário”. As instalações estarão dimensionadas para
atender pedidos relacionados com situações de superendividamento, condomínios, consumidor
(vícios de produto e serviços, propaganda enganosa, contas de água, luz e telefonia), contratos
bancários e registros indevidos em cadastros de inadimplentes e as ações visando a obter
indenizações por danos de qualquer natureza. O Centro atuará de duas formas, recebendo as partes
antes da judicialização do pedido e, caso o processo já tenha sido proposto em uma das Varas Cíveis
de Canoas, viabilizando a realização de etapa buscando a conciliação. Com isto, pretende o Tribunal:
prevenção de demandas com a pronta solução, redução de pressão nas Varas e Juizados, com
economia de tempo, trabalho e recursos públicos.” Disponível em: <www.tj.rs.gov.br.> Acesso em
22.9.2007.
131
“Monopólio do Estado é a função jurisdicional, consistente na solução das lides que lhe são
submetidas pelas partes em conflito. Não têm, evidentemente, natureza jurisdicional as gestões que
visem a facilitar a autocomposição (a qual compreende a renúncia, a submissão e as concessões
recíprocas), e que vêm sendo feitas, desde sempre, por pessoas e entes institucionalizados ou não
(os advogados, os órgãos da Assistência Judiciária, o Ministério Público, os próprios membros do
Poder Judiciário). O processo só surge para solucionar a lide, e esta somente se configura, como
pretensão resistida, quando as forças espontâneas do direto se mostrem incapazes de superar o
conflito de interesses. Desde a tradição do direito lusitano até o direito moderno, a conciliação pode
ser atividade extrajudicial, livremente exercida por órgãos não jurisdicionais, ainda que atuem junto ao
juiz.” (Ada Pellegrini Grinover. Aspectos Constitucionais dos Juizados de Pequenas Causas. apud
70
desde postos avançados de conciliação132 e de atendimento de Juizados Especiais,
passando por centros de cidadania, experiências de justiça itinerante e de justiça
restaurativa133, até chegar a práticas de justiça comunitária134 ou de micro-justiça.135
Mas o que importa acentuar-se nesse ponto é a necessidade de que as
populações disponham de mecanismos que estimulem o diálogo, a compreensão e
o entendimento, sempre com acesso gratuito, fácil, próximo.
Essas ferramentas, por igual, devem privilegiar a informalidade, a rapidez,
o protagonismo comunitário, enfim, estimular a organização popular, a negociação,
o consenso, a resolução dialogada dos conflitos e, por conseqüência, a busca e a
obtenção pacífica da justiça.
A tanto, impõe-se uma ruptura com o atual paradigma de justiça que se
apresenta como a antítese do que se acabou de estabelecer.
E todos esses mecanismos devem se organizar de modo a possibilitar o
atingimento da igualdade material dos povos, com a consagração da dignidade do
ser humano e com a redução das desigualdades sociais.
Dessa forma, serviços de informação jurídica, mediação, conciliação e
arbitragem, hão de se espalhar pelos mais distantes rincões, sempre na busca de
informar as comunidades sobre seus direitos e de se lhes disponibilizar os meios à
sua materialização.
O privilegiamento das comunidades hipossuficientes há de promover a
redução das desigualdades e os mecanismos pacíficos hão, sempre, de preceder os
WATANABE, Kazuo [et al.] (Coord.). Juizado Especial de Pequenas Causas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1985, p. 11-12).
132
“Além dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, estão em funcionamento em São Paulo os
Juizados Informais de Conciliação, que atendem às causas que não são de competência dos
Juizados Especiais. As reclamações que são encaminhadas aos Juizados Informais de Conciliação só
podem ser resolvidas através de acordos realizados em uma única audiência, sob orientação de um
conciliador ou de um juiz. Se houver acordo esse é homologado pelo juiz, produzindo um título
judicial. Se não houver acordo, a única alternativa para o reclamante é recorrer à Justiça comum. [...]
Apesar de não estar regulamentada por lei, a atuação do Juizado Informal de Conciliação também
indica a importância da conciliação como forma de solução dos conflitos sociais. Neste sentido,
85,40% do total das audiências realizadas (48.248) resultaram em acordo entre as partes (41.206).”
(SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 5152).
133
No anexo B deste estudo pode-se encontrar a descrição da experiência de justiça restaurativa
desenvolvida pelo Projeto Justiça para o Século XXI, no Estado do Rio Grande do Sul.
134
No anexo C deste estudo pode-se encontrar a descrição da experiência de justiça comunitária
desenvolvida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
135
Várias experiências nesse sentido estão reunidas em publicação do Ministério da Justiça
intitulada “Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança”, lançada no ano de 2006.
71
instrumentais formais de realização de justiça, passíveis de acionamento se e
quando aqueles se mostrarem insuficientes, de modo complementar.
A concretização do direito humano de acesso à justiça reclama o
percorrimento desse caminho, ressaltando-se a existência de um extenso e exitoso
rol de experiências havidas exatamente com a observância desses mecanismos,
passíveis de replicação, sem prejuízo do estabelecimento de outras iniciativas
complementares análogas.
A valorização dos mecanismos de resolução consensual de conflitos tem
granjeado ações de parte de várias unidades do Poder Judiciário nacional, seja para
processos formais em curso, seja objetivando sua evitação.
Experiências de justiça itinerante têm levado informação e justiça para
comunidades muito distantes desses serviços.
A busca do entendimento, da redução de danos futuros e da restauração
de relações humanas, tem obtido resultados animadores no campo da mediação e
da justiça restaurativa.
O protagonismo da comunidade, com a valorização de sua cultura, de
seu conhecimento e de seu potencial de organização, tem servido à concretização
da justiça em comunidades periféricas dos mais diversos Estados brasileiros, em
experiências de justiça comunitária ou micro-justiça.
Deste modo, a superação dos obstáculos de natureza social e cultural
depende da realização de políticas públicas e de ações afirmativas para a realização
do direito à informação e da valorização de mecanismos consensuais, informais,
rápidos e democráticos de resolução de conflitos, assegurando-se, materialmente, o
acesso universal à justiça.
6.5 Ações para a superação dos obstáculos de natureza legal
A contribuição de fatores de ordem legislativa para a obstrução do acesso
à justiça reclama articulação e mobilização da comunidade e dos agentes do
sistema de justiça, denunciando-os e coordenando ações à sua remoção.
72
Entretanto, há de se pontuar que a atividade interpretativa já pode se
mostrar capaz de afastar uma série de aparentes impedimentos legais ao acesso à
justiça.
Isso porque as normas infraconstitucionais não podem contrariar a Carta
Política, havendo esta declarado princípio da República Federativa do Brasil a
dignidade da pessoa humana e, ademais, dentre seus objetivos encontra-se a
redução das desigualdades sociais.136
Todavia, quando não afastados pela atividade interpretativa, os fatores
limitadores do acesso à justiça merecem remoção via ação legislativa.
Com esse propósito, no âmbito da busca da celeridade processual, uma
série de medidas foram aprovadas recentemente, em um movimento de redução da
morosidade na tramitação dos processos perante o Judiciário.137
Outras ações para a facilitação e a ampliação do acesso à justiça
deveriam dirigir-se na busca da valorização e do fortalecimento dos Juizados
Especiais Cíveis, aumentando-se a valor máximo para o ajuizamento de pedidos e
tornando, sempre, facultativa a assistência por advogado, desde que a parte
adversa esteja nesta mesma situação e seja, igualmente, pessoa física.
A obrigatoriedade da paralisação de ações individuais quando da
existência de demandas coletivas versando sobre o mesmo tema daquelas, também
se apresentaria como medida de considerável redução do número de processos
tramitando, desnecessariamente, nos tribunais, além de produzir uniformidade nos
julgados.
Enfim, essas são algumas proposições, não se pretendendo proceder a
aprofundamento
maior
na
área
das
reformas
legislativas
necessárias
à
concretização do direito humano de acesso à justiça.
136
“Além de dirigente, a Constituição do Brasil de 1988 é uma Carta principiológica. A relevância
dos princípios nunca tem sido suficientemente salientada. Compreende-se que para a mentalidade
calcada no dogmatismo positivista mostra-se perigosa a incursão pela principiologia, necessariamente
fluida. Todavia, o direito não se esgota nas leis. Não é ‘mero somatório de regras avulsas, produto de
atos de vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre si’. Direito é muito mais
do que isso. É o acervo de valores, é conjunto significativo, é consistência, é o consenso jurídico
resultante da consciência coletiva num determinado momento histórico [...] Não será melhor a justiça
realizada mediante aplicação rígida da letra da lei do que aquela resultante de um juiz que assuma a
missão de realizar os valores de sua comunidade e de sua época.” (NALINI, José Renato, op. cit., p.
45-46).
73
REFLEXÕES FINAIS
O direito humano de acesso à justiça constitui tema da mais alta
relevância na atualidade, seja em razão da sua extensão, seja em decorrência da
necessidade de sua afirmação.
Como houve oportunidade de se demonstrar, garantir-se concretude a
esse direito implica, por princípio, ofertar-se informação precisa à humanidade
relativamente aos direitos que titulariza, em regra, desconhecidos a dezenas de
milhões de brasileiros.
Um grande esforço de informação e de educação há de produzir seres
humanos conscientes da verdadeira dimensão que a Carta Política outorgou aos
povos que ocupam o território nacional.
Ao lado da consciência das promessas de garantia de direitos humanos
insculpidas pela República Federativa do Brasil em sua norma maior, ao povo deve
chegar, igualmente, informação sobre a magnitude das violações a esses direitos,
impostas diariamente à humanidade.
Somente o conhecimento coletivo e integral da amplitude dos direitos
conferidos à população, da necessidade de sua concretização imediata e do
descomprometimento do poder público e da sociedade para com esses
compromissos éticos, pode construir lastro firme e dar vida ao direito humano de
acesso à justiça.
Em outras palavras, sem que a comunidade se aproprie do rol de direitos
que a ordem jurídica lhe confere e do sistemático desrespeito a essas ordenações,
não haverá percepção das injustiças que lhe são impostas cotidianamente. E sem
essa consciência, não perceberá as injustiças que lhe são apresentadas.
De igual forma, sem essas experiências, a população não experimentará
a necessidade incessante da busca por justiça e não reclamará a concretização
desse direito, pressuposto do alcance de todos aqueles.
137
“Sem dúvida, as maiores conquistas ocorreram no âmbito da antecipação de tutela e tutela
específica, audiência de saneamento e ação monitória – temas ligados exatamente à celeridade da
Justiça.” (ALVIM, J. E. Carreira, op. cit., p. 122).
74
Então, somente com educação e informação, formar-se-á uma cidadania
consciente, questionadora, organizada, articulada, protagonista da luta pela
asseguração de seus direitos.
Este, exatamente, constitui o primeiro elemento do direito humano de
acesso à justiça.
Somente uma cidadania informada do conteúdo e da extensão de seus
direitos promoverá a mobilização social necessária à realização das políticas
públicas e das ações afirmativas imprescindíveis à realização do direito humano de
acesso à justiça.
Importante registrar-se, igualmente, nesse ponto, que essa política de
informação e de disseminação do conhecimento dos direitos humanos, há de ser
direcionada, preferencialmente, às comunidades que registrem hipossuficiência
social,
porquanto
a
igualdade
material
somente
será
alcançada
com
o
estabelecimento de ações estratégicas à sua redução.
O conceito de direito humano de acesso à justiça carece, da mesma
forma, de revisão.
Com efeito, o que se verifica, na atualidade, é uma garantia de acesso à
justiça eminentemente formal.
O sistema de distribuição de justiça está aberto a todas as pessoas.
Todavia,
somente
aquelas
que
dispõem
de
condições
sociais,
econômicas e culturais mínimas, dele se utiliza.
E essa realidade se instala como decorrência de diversos fatores que
limitam o acesso da população à justiça, tais como a desinformação sobre o
conteúdo dos direitos humanos e dos mecanismos de resolução de conflitos
existentes; o elevado valor das custas processuais; a insuficiência dos serviços
ofertados pelas Defensorias Públicas; a impossibilidade econômica e social de se
suportar a longa tramitação dos processos até a realização do direito; a distância
física, social e cultural das comunidades com os locais de prestação de justiça e,
igualmente, com as pessoas que nele trabalham; a falta de compreensão das
formalidades e da linguagem próprias do sistema de justiça formal, assim de sua
morosidade, dentre outros.
A revisão conceitual necessária é justamente aquela capaz de reduzir
esses obstáculos em número e intensidade, o que reclama o desenvolvimento de
políticas públicas e de ações afirmativas.
75
Nesse sentido, há se caminhar na busca da democratização, da
desburocratização, da informalização, da celeridade e da consensualização do
acesso à justiça.
Somente se alcançará a tão sonhada igualdade material dos usuários dos
serviços de pacificação social com a real universalização dos mecanismos de
resolução de conflitos, quando os serviços de distribuição de justiça estiverem
próximos da população, nos bairros, nos centros comunitários, assim nos grupos
sociais mais distantes e periféricos.
Além de se integrar aos contextos territorial, social e cultural, os
mecanismos de pacificação social hão de estabelecer comunicação adequada com
seus usuários.
Hão de existir, assim, locais para a informação e para a distribuição de
justiça nos centros comunitários e nas escolas, em parceria com os serviços já
existentes nas comunidades em situação de hipossuficiência social.
O atendimento há de ser descomplicado, a linguagem acessível, o que se
mostra possível com a integração, a articulação e a utilização preferencial dos
recursos humanos existentes nas próprias comunidades.
Valorizam-se, dessa forma, os recursos comunitários, seu protagonismo e
reconhece-se seu potencial organizacional, passível, inclusive, de proceder à
pacificação dos conflitos existentes, com geração de justiça e paz.
Do mesmo modo, os mecanismos tradicionais de resolução de conflitos,
formais, conflituosos, lentos e dispendiosos, hão de ceder lugar a ferramentas
informais, rápidas, gratuitas, que privilegiem o consenso, o diálogo, o entendimento.
A que se alcance esse objetivo, necessária a ruptura de paradigmas
culturais, dentre os quais aquele que traduz a justiça como algo alcançável somente
após um longo tempo de batalha, com a observância e a reverência a fórmulas e
formalidades.
Esse novo modelo de justiça participativa, informativa, consensual,
próxima, acessível, somente será alcançado com a integração e com o
estabelecimento de parceiras entre o poder público e a sociedade.
A valorização de ferramentas pouco utilizadas e algumas vezes até
mesmo desvalorizadas, como a informação, a orientação, a conciliação, a
mediação, a arbitragem, dentre outras, há de ser procedida pelos agentes do
sistema de justiça e pela sociedade.
76
A justiça há de ser pensada como instrumento de concórdia, de
consenso, de restabelecimento de relações, de reajuste de regras de convivência,
de diálogo, valores sempre buscados com informalidade, rapidez e eficiência.
A jurisdição formal, instrumento a que se resume o acesso à justiça
hodiernamente, há de constituir instrumento complementar, utilizado somente após
o insucesso daquelas ferramentas ou quando não recomendada sua utilização.
Óbices legais à garantia do acesso materialmente igualitário e à redução
da morosidade do sistema formal de prestação de justiça, também haverão de ser
transpostos.
Enfim, com a ruptura de paradigmas, utilização de ferramentas
modernas, valorização da participação comunitária, desenvolvimento de políticas
públicas e ações afirmativas de ampliação do acesso à justiça, será possível
materializar-se o acesso universal a um sistema de resolução de conflitos seguro,
rápido e eficaz, com produção de justiça e paz.
O desafio, agora, prende-se à concretização do direito humano de acesso
à justiça, transformando-se em realidade a promessa de justiça para todos.
77
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80
ANEXOS
81
ANEXO A - Projeto Justiça e Cidadania Também se Aprendem na Escola,
desenvolvido pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB
82
ANEXO B - Projeto Justiça para o Século XXI: programa de justiça resturativa,
desenvolvido no Rio Grande do Sul
83
ANEXO C – Programa de Justiça Comunitária desenvolvido pelo Tribunal de Justiça
do Distrito Federal
PROJETO JUSTIÇA PARA O SÉCULO 21
Relato da implementação do Projeto Piloto de Justiça
Restaurativa junto à 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto
Alegre, RS, visando à introdução de práticas restaurativas na
pacificação de situações de violências envolvendo crianças e
adolescentes.
Leoberto Brancher1 e Beatriz Aguinsky2
I. Apresentação
O presente relato propõe-se a apresentar um apanhado das principais
modificações introduzidas no Sistema de Justiça da Infância e Juventude de Porto
Alegre, e nas Políticas Públicas da área, a partir das contribuições dos princípios e
procedimentos de Justiça Restaurativa na transformação do cotidiano das práticas
institucionais e sociais em direção ao desenvolvimento de uma cultura de Direitos
Humanos.
O relato tem por base o conjunto de esforços de fundamentação teórica,
articulação política, capacitação de operadores, sensibilização e mobilização
comunitária, reconfiguração da gestão operacional dos serviços da Justiça e sua
relação com a rede de atendimento e com a comunidade, que vêm sendo realizados
com o objetivo, ou melhor dizendo, com a esperança, de fazer com que se cumpram,
na prática, as promessas de justiça e dignidade anunciadas no E.C.A..
Tendo presente o ambiente de rede em que se insere todo este processo, o
relato verte a partir da ótica jurisdicional, ou seja, do processo de mudança da 3ª
Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude da Capital gaúcha,
especializada na execução das medidas sócio-educativas, consoante ao que se
cogita seja o modelo jurisdicional preconizado pelo E.C.A., perpassa os programas
de atendimento sócio-educativo de privação de liberdade e de meio aberto
1
Juiz de Direito e professor da Escola Superior da Magistratura da AJURIS – Associação dos Juízes
do Rio Grande do Sul, onde coordena o Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa.
2 Assistente Social Judiciária, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Faculdade de Serviço Social da PUCRS.
(executados respectivamente pelo Estado, através da FASE - Fundação de
Atendimento Sócio-Educativo e do Município, através da FASC – Fundação de
Assistência Social e Cidadania), e alcança a rede, com foco especial nas escolas e
se projeta para a comunidade.
Denominado “Justiça para o Século 21”3, esse projeto consiste num piloto
objetivando a adaptação, testagem, avaliação, sistematização e incorporação
institucional dos procedimentos, valores e idéias sobre a Justiça Restaurativa com
vistas à realidade local. A retaguarda institucional está a cargo da AJURIS Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul e na respectiva Escola Superior da
Magistratura, e sua implementação está ancorada na 3ª Vara do Juizado da Infância
e da Juventude, competente para executar as medidas sócio-educativas aplicadas a
adolescentes infratores.
Suas diferentes atividades e eixos de aplicação são apoiados pelo Ministério
da Justiça e pelo PNUD, através do projeto Promovendo Práticas Restaurativas no
Sistema de Justiça Brasileiro, e pela UNESCO e pela Rede Globo, através do
Programa Criança Esperança. Além do engajamento operacional da promotoria de
justiça e da defensoria pública em atuação na 3ª Vara, também são parceiros da
execução direta a FASE – Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (antiga
Febem), que executa as medidas sócio-educativas privativas da liberdade; a FASC –
Fundação de Assistência Social e Cidadania, órgão da assistência social municipal
responsável pela execução das medidas sócio-educativas de meio aberto; a
Secretaria Estadual de Educação; a Secretaria Municipal de Educação; e a
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana, através da Guarda
Municipal. Esse rol é complementado por um leque de outras dez instituições
relacionadas à área da infância e da juventude, todas firmatárias de um protocolo
formal comprometendo-se a engajar suas estruturas institucionais e recursos
humanos na consecução dos objetivos do projeto, que se propõe, genericamente, a
implementar as práticas da Justiça Restaurativa na pacificação de situações de
violência envolvendo crianças e adolescentes em Porto Alegre.
As etapas e procedimentos deste processo de implementação serão mais
detalhadamente descritos no item II deste relato. Introdutoriamente, com o objetivo
3
O nome do projeto homenageia o Prof. Pedro Scuro Neto, primeiro tradutor e inspirador da Justiça
Restaurativa no Brasil, autor de artigo com esse título (SCURO, 2003). Informações detalhadas do
projeto e notícias sobre seu desenvolvimento estão disponíveis em www.justica21.org.br
de melhor situar os fundamentos que vêm presidindo essa caminhada,
primeiramente
serão
abordados
os
princípios
balizadores
da
experiência
apresentada.
1. Breve apresentação dos princípios teóricos utilizados na formulação do
projeto: por uma ética da co-responsabilidade
A experiência do Projeto Piloto de Porto Alegre, cuja aplicação se irradia para
o Atendimento das Medidas Sócio-Educativas e para a Rede de Atenção à Infância
e Juventude a partir do Sistema de Justiça, deita raízes em preocupações e
questionamentos cotidianos daqueles que atuam nesta área:
Como resistir e recusar a uma cultura refratária às necessidades de
desenvolvimento das crianças e adolescentes que se retroalimenta com a
focalização das políticas públicas e a fragmentação das respostas institucionais e
sociais às suas demandas por direitos?
Como superar abordagens meramente punitivas, ou meramente terapêuticas,
e desenvolver estratégias que respeitem a autonomia dos sujeitos e de suas
comunidades, ao mesmo tempo em que promovam o protagonismo responsável de
todos na resolução sustentável dos próprios problemas no enfrentamento da
complexa questão da violência?
Como promover-se responsabilidades evitando-se as armadilhas das
estratégias violentas, por um lado, ou permissivas, por outro, tão presentes nas
práticas convencionais que convergem a este campo?4
O enfrentamento dessas e outras indagações conexas tem sido a inspiração
da introdução das concepções da Justiça Restaurativa no âmbito da Justiça da
Infância e da Juventude e, dentro dela, mais especificamente, da jurisdição penal
juvenil, pelo projeto piloto do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre.
A experiência, que não se esgota no terreno das aplicações operacionais, tem
seu ponto de partida e seu principal impacto na crítica e na transformação da cultura,
procedimentos e estrutura institucional de um sistema ambíguo, até aqui
4
Ver BRANCHER, Leoberto e AGUINSKY, Beatriz. A justiça em conexão com a vida: transformando
a jutiça penal juvenil pela ética da justiça restaurativa. Revista do Juizado da Infância e Juventude,
vol. 3 e 4. Porto Alegre: Tribunal de Justiça, 2003.
Ver também BRANCHER, Leoberto e AGUINSKY, Beatriz. Juventude, Crime & Justiça: uma
promessa impagável. In: ILANUD; ABMP; SEDH; UNFPA.(org.). Justiça, Adolescente e Ato
Infracional. São Paulo, 2006.
vocacionado a promover privações e castigos sob uma justificação que oscila entre
abordagens inespecíficas que mesclam o assistencial, o educativo e o terapêutico5.
Para abraçar-se esse desafio é necessário recorrer-se a princípios teóricos
que reconheçam a urgência de uma ética pública, de natureza dialógica, para
fundamentar um verdadeiro sentido pedagógico, compatível com o espírito do ECA,
no agir institucional e social das respostas dos mais diferentes segmentos e atores
às violências em que a juventude toma parte. Uma ética que valorize o princípio da
responsabilidade individual sem desconectá-la do princípio da co-responsabilidade
que lhe dá sentido e complementa. Uma ética que assuma como foco central da
condição de possibilidade para a superação das violências, a necessidade de
reconhecimento recíproco, essência da afirmação da condição humana e fonte
primeira de sentido da vida social.
A abordagem da Justiça nos marcos das novas relações entre o público e o privado.
Tradicionalmente o Estado foi tomado como o lugar da Justiça, do universal,
da realização do bem comum, portanto abarcando todo o campo do público, dos
interesses públicos. De outro lado, a sociedade civil, considerada o lugar do
particular, dos conflitos das pulsões egoísticas, da satisfação individual de
necessidades, foi longamente identificada como espaço dos interesses privados. A
convicção histórica desta dicotomia, a base da tradição hegeliana que partia de uma
identidade entre sociedade civil e sociedade civil burguesa6, resultou na construção
social da idéia de que a instância autêntica para qualquer projeto de transformação
social seria o Estado.
Pode-se dizer que até certo ponto ainda é recente a circulação de uma nova
concepção de sociedade civil, capaz de universalidade, pois somente em meados
dos anos 70 e 80 do século XX7 erguem-se vozes para afirmar a exigência de
contar-se com a sociedade civil para empreenderem-se transformações sociais8.
Para tanto, concebe-se sociedade civil como:
5
Ver Brancher, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social. In: SLAKMON, Catherine;
MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça
e da segurança. Brasília – DF: Minstério da Justiça, 2006.
6
HEGEL, G. W. Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
7
Ver DAGNINO, Evelina (org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra,
2002.
8
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia : entre facticidade e validade. Rio de Janeiro : Tempo
(…)el conjunto de asociaciones y de redes sociales que no son creadas
por el Estado, sino que tienen la característica de la espontaneidad. Su
característica central no es, pues, que sea un ámbito privado, porque
todo lo que tiene repercusiones públicas es público y las actividades de
la sociedad civil tienen repercusiones públicas. Su rasgo central es que
no se forma por la coacción estatal, sino de modo espontáneo, y de ahí
la dificultad de vertebrarla. Incluye, pues, familias, asociaciones
adscriptivas (aquellas en que no se elige ingresar) y voluntarias
9
(aquellas en que se ingresa libremente), mercado y opinión pública .
O “novo” do espaço do público, que se evidencia por lugares sociais novos
das relações entre Estado e Sociedade Civil, coloca a difícil tarefa da superação de
simplificações no reconhecimento do quanto as contradições atravessam uma e
outra instância da vida social e as relações entre elas estabelecidas. Não se trata de,
para sublinhar-se a importância da participação da sociedade civil na realização da
Justiça, esposar-se a perspectiva, tão comum neste início do século XXI, de evocarse a
responsabilidade da sociedade civil em substituição ao lugar do Estado,
assumindo suas tarefas.
Mas ao argumentar-se pela responsabilidade tanto do Estado como da
sociedade civil pelos interesses públicos, traz-se à cena o princípio da coresponsabilidade: se ao Estado compete criar o marco legal, gestionar os recursos
básicos, coordenar e facilitar o acesso aos direitos, a sociedade é co-responsável no
exercício de uma cidadania ativa. Ao conceber-se sociedade civil como redes sociais
espontâneas, busca-se demarcar o quanto, desde a antiguidade, famílias e
comunidades têm sido fonte de Justiça e Solidariedade espontâneas, assumindo
funções fundamentais de coesão social na produção e reprodução das sociedades.
Estas funções são fortalecidas através de práticas de justiça restaurativa que vão ao
encontro de uma ética pública, dialógica, baseada no reconhecimento dos vínculos
que unem os seres humanos.
Responsabilidade Solidária
Vivemos mergulhados em um mal estar pelo hiato entre o pactuado, o
declarado, o acordado como justo pelos ditos avanços civilizatórios dos Direitos
Brasileiro, 1997. 2 v
9
CORTINA, Adela. Hasta un pueblo de demonios. Madrid, Taurus, 1998, cap. 12.
Humanos, e o que se realiza objetivamente em termos de dignidade humana, isto é,
o que não se realiza no cotidiano para todos. Na medida em que avança o processo
de globalização, produzindo progressos inauditos no campo científico e tecnológico,
em desapego aos princípios de justiça, colhe-se a desigualdade, nos seus vários
matizes, como o fio com que se tece a vida social, em cujas dobras vão-se
contabilizando déficits no campo da cidadania. A perda primeira aí pressuposta é a
de pertencimento social, negando-se assim as possibilidades de realização da
emancipação humana e social. A frágil costura do tecido social daí resultante
esgarça a democracia, pois supõe concentração – seja de poder, lugar social e
condições de plena existência – para alguns, em detrimento de seu reconhecimento
universal.
Como conseqüência perversa decorrente configura-se o que se pode
convencionar chamar de campo das violações de direitos e, do ponto de vista dos
riscos de exposição a tais violações, a infância e juventude brasileiras emergem
como um dos segmentos populacionais mais vulneráveis. Não se pode negar que
um longo percurso histórico foi percorrido até que a infância e a juventude tenham
sido reconhecidas como sujeitos de direitos, o que de fato se materializa há pouco
mais de uma década no Brasil. No entanto, apesar destes avanços históricos,
persistem dívidas para a cidadania da infância e juventude brasileiras no cotidiano
das relações sociais e institucionais, especialmente no campo das respostas da
esfera pública aos atos infracionais praticados pela juventude10.
Às perdas de pertencimento social levantam-se demandas por uma nova
Justiça: que seja capaz de fortalecer potenciais de solidariedade que habitam nas
dobras do tecido social, desde uma ética pública global, muito distinta da que vem
orientando todo o processo de globalização. Uma ética em que a sociedade civil e a
cidadania tenham um papel protagônico e cuja presença ativa nas formas de fazer
Justiça contribuam para a ampliação do poder democrático em direção a uma
cidadania integral.
Este horizonte ético, aliás, é integralmente acolhido, em termos de garantias
de direitos da juventude em conflito com a lei, pela atual proposição do Sistema
10
Ver BRANCHER, Leoberto e AGUINSKY, Beatriz. Juventude, Crime & Justiça: uma promessa
impagável. In: ILANUD; ABMP; SEDH; UNFPA.(org.). Justiça, Adolescente e Ato Infracional. São
Paulo, 2006.
Nacional de Atendimento Sócio-Educativo11 – SINASE – que erige como a primeira
das diretrizes pedagógicas do atendimento sócio-educativo, a “Prevalência da ação
sócio-educativa sobre os aspectos meramente sancionatórios” como parâmetro da
gestão:
As medidas sócioeducativas possuem em sua concepção básica uma
natureza sancionatória, vez que responsabilizam judicialmente os
adolescentes, estabelecendo restrições legais e, sobretudo, uma
natureza sócio-pedagógica, haja vista que sua execução está
condicionada a garantia de direitos e ao desenvolvimento de ações
educativas que visem à formação da cidadania. Dessa forma, a sua
operacionalização inscreve-se na perspectiva ético-pedagógica
(SINASE, 2006, p.52-3).
Mas como desenhar para uma pedagogia da responsabilidade? É quando se
articulam concepções como responsabilidade individual e co-responsabilidade social
que enfim ganha terreno a noção de participação da sociedade civil como
comunidade de discurso, ou seja, redes sociais espontâneas, não impostas pelo
Estado, de algum modo afetadas pelo conflito em relação ao qual uma resposta
pública se pretenda produzir, cuja presença é fundamental para uma nova Justiça –
baseada em uma ética da responsabilidade solidária.
Co-responsabilidade e Reconhecimento recíproco: fundamentos éticos para uma
Justiça Restaurativa no Sistema de Justiça e de Atendimento da Infância e Juventude.
Na tradição da ética do discurso, através das contribuições de
Apel12,
encontram-se chaves heurísticas a esta fundamentação de uma Justiça realizada a
base de normas jurídicas e instituições públicas pautadas pela razão comunicativa.
Tal razão, por atenta às exigências democráticas do espaço público, contribui para a
correção e legitimidade das normas e das instituições. Para esta tradição, somente
nos constituímos como pessoas à medida que os demais assim nos reconhecem e
nós a eles também reconhecemos como tal. Neste reconhecimento básico emerge a
noção de vínculo que nos responsabiliza, obriga internamente, o que não se dá,
assim, desde uma imposição externa, heterônoma.
11
SINASE. SEDH e CONANDA. 2006. http://www.mj.gov.br/sedh/ct/spdca/sinase/Sinase/pdf.
Recuperado em 14/10/2006.
12
APEL, Kart-Otto. Transformação da filosofia. São Paulo : Loyola, 2000.
A perspectiva de igualdade de direitos que daí emana é relevante: a
comunidade de comunicação inclui todo o gênero humano e supõe igualdade de
direitos. Se esta é uma realidade ideal, em uma comunidade real de comunicação,
como a que se instaura através de procedimentos de Justiça Restaurativa, na busca
da afirmação de responsabilidades genuínas que brotem do diálogo, a superação da
assimetria e da desigualdade se levantam como desafio no processo de construção
de uma nova moralidade no espaço-tempo do diálogo.
Ao pretender levar em conta todos os afetados em possíveis acordos, a ética
do discurso pode construir normas jurídicas que vão além da idéia de contrato,
cingidas apenas aos diretamente envolvidos no conflito. Através da proposta
argumentativa de procedimentos para tomada de deliberação, abre-se espaço para
definir questões substanciais ao considerar: (a) as necessidades justificáveis
argumentativamente de todos os afetados (b)as conseqüências prováveis de seguir
as normas propostas e (c) ao pluralismo de crenças e concepções diversas de
justiça, trazendo-as a um diálogo.
Finalmente, tomando o reconhecimento recíproco como condição para a
realização da justiça baseada em uma ética comunicativa, pode-se dizer que, ao
reafirmar vínculos de humanidade entre todos os afetados por um conflito, as ações
comunicativas, como as levadas a efeito pelos procedimentos de Justiça
Restaurativa, fortalecem cooperação e refundam a noção de comunidade. O vigor do
vínculo reafirmado nos procedimentos da ética do discurso conecta os participantes
pelo desejo compartilhado de descoberta do verdadeiro e do justo. Uma comunidade
ética, uma comunidade de sentido.
2 - Justiça Restaurativa e seus princípios na experiência do Projeto Piloto de
Porto Alegre
Se as realizações concretas do Sistema de Justiça e Atendimento em relação
à juventude em conflito com a lei não estão à altura de uma ética cívica, impõe-se o
desafio de colocarmos a seu serviço os meios com que contamos em direção a uma
justiça universal para, através dela, potencializar tendências que nos orientam à
solidariedade de uma ética pública global. O reconhecimento do quanto o Sistema
de Justiça e de Atendimento da Infância e Juventude têm sido falhos em
proporcionar uma escuta qualificada dos conflitos, em alcançar as necessidades a
eles subjacentes e em promover responsabilização13 faz trabalhar o vigor da
contribuição dos princípios e valores da Justiça Restaurativa no enfrentamento e
superação destas dificuldades dentro deste mesmo Sistema.
As práticas tradicionais da Justiça no âmbito da respostas praticadas às
infrações cometidas por adolescentes, enfatizam a apuração de culpados e a
imposição de punições ou, eventualmente, tendem à aplicação de medidas
terapêuticas como medida sancionatória à violência e às transgressões. As práticas
punitivas apresentam-se cultural e juridicamente disseminadas como expressão
legitima da vingança pública, ou seja, aquela exercida pelo Estado em nome da
sociedade – ou por quem quer que, nalgum momento, detenha o poder de fazer
Justiça em nome de alguma comunidade – fundamentada na crença de que o
sofrimento pode servir como estratégia pedagógica para a adequação de
comportamentos.
Tais soluções vêm sendo duramente criticadas pela sua ineficácia em
produzir os resultados objetivados – redução da violência e dos índices de
reincidência,
além
de
produzir
efeitos
secundários
indesejados
como
a
estigmatização e exclusão social do infrator, a violação dos seus direitos humanos,
e, como conseqüência disso, a amplificação da violência adotada como metodologia
pelo próprio sistema.
Como reação às conseqüências perversas das práticas punitivas, surgem,
num outro extremo, propostas pela pura e simples abolição das normas penais ou,
de forma mais cautelosa, correntes que enfatizam práticas reabilitadoras ou
terapêuticas como alternativas às punições. Tais práticas também recebem críticas
porque do mesmo modo não respeitariam a autonomia e a capacidade do infrator,
relegado à condição de sujeito passivo de um tratamento, tendendo à sua
desresponsabilização já que, enfatizando excessivamente as necessidades do
infrator, desconsideraria as conseqüências da infração com relação à vítima e à
sociedade.
O que se tem a aprender é que não se trata de rejeitar a um ou a outro
desses elementos, senão que articulá-los cuidadosamente, numa combinação
13
Ver Brancher, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social. In: SLAKMON, Catherine;
MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça
e da segurança. Brasília – DF: Minstério da Justiça, 2006.
compatível com a concretude do caso, num ajuste para o qual não se pode crer em
ninguém melhor qualificado do que as próprias partes interessadas e respectivas
comunidades. E com a identificação de qual seja o termo médio dessa equação14 se
abre uma nova perspectiva não somente para o direito penal, de uma maneira geral,
mas também para as medidas sócio-educativas, em particular. E o que se propõe
como um achado dos teóricos da Justiça Restaurativa nesse ponto é que, ao invés
de versar sobre transgressões e culpados, o processo considere danos,
responsáveis e prejudicados pela infração.
Assim
que,
ao
contrário
da
justiça
tradicional,
que
se
ocupa
predominantemente da violação da norma de conduta em si, a justiça restaurativa
ocupa-se das conseqüências e danos produzidos pela infração. Valoriza a
autonomia dos sujeitos e o diálogo entre eles, criando espaços protegidos para a
auto-expressão e o protagonismo de cada um dos envolvidos e interessados –
transgressor, vítima, familiares, comunidades - na busca de alternativas de
responsabilização. Partindo daí, fortalece e motiva as pessoas para a construção de
estratégias para restaurar os laços de relacionamento e confiabilidade social
rompidos
pela
infração.
Enfatiza
o
reconhecimento
e
a
reparação
das
conseqüências, humanizando e trazendo para o campo da afetividade relações
atingidas pela infração, de forma a gerar maior coesão social na resolução do
conflito e maior compromisso na responsabilização do infrator e no seu projeto de
colocar em perspectiva social seus futuros modos de interagir.
A justiça restaurativa corresponde a uma atitude transformadora que,
quando fiel aos valores restaurativos, também no campo das estratégias políticas
haverá de optar pelo não-conflitual, por dialogar com o próprio sistema para acolhêlo em sua imperfeição e respeitar a sua diversidade. A partir daí, inocula-se nas
fissuras do sistema, em suas frestas, como um vírus, ou melhor, como um anticorpo
à violência institucional, como um gérmen silencioso da mudança. Nisso, a
pertinência do sentido de ‘complementaridade’: pela disponibilidade de convívio com
o próprio sistema, dentro do próprio sistema (embora indo além dele), pela
oportunidade de enriquecê-lo (no sentido de atribuir-lhe algo que no momento lhe
14
Ver McCOLD, e WACHTEL; Paul, e Ted. Em Busca de um Paradigma: Uma Teoria de Justiça
Restaurativa. Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, 15 de agosto de
2003, Rio de Janeiro. Disponível em http://iirp.org/library/paradigm_port.html . Acesso em: 13 mar.
2006.
falta),
e
transformá-lo
(ou
seja,
a
partir
do
pontual, reconstruí-lo
para
15
que institucionalmente incorpore a superação dessas faltas) .
A experiência de aplicação da Justiça Restaurativa em Porto Alegre tem
marcos situacionais bastante específicos que constituem a um só tempo sua
singularidade e sua conexão com a universalidade dos valores restaurativos. Isto
porque o Projeto Piloto impulsiona a realização dos procedimentos restaurativos
uma vez aplicada a medida sócio-educativa ou no momento de sua aplicação.
Considera-se que a riqueza desta particular aplicação está exatamente em
transformar em restaurativo aquilo que está sólida e inegavelmente instalado numa
(des) funcionalidade retributiva, com discurso terapêutico nas práticas convencionais
do Sistema de Justiça e de Atendimento Sócio-Educativo. A Justiça Restaurativa
tem sido acolhida na experiência de Porto Alegre justamente como eixo estruturante
e ordenador das concepções disfuncionais do sistema de execuções sócioeducativas, buscando reduzir o dano de violência cultural, institucional e
historicamente instaladas nas formas usuais de responsabilização penal dos
adolescentes submetidos à jurisdição sócio-educativo.
Através deste pressuposto são ensejadas ações concretas não apenas
preocupadas em humanizar os serviços prestados pelo Sistema de Justiça, em
consonância com as premissas do E.C.A. para as Medidas Sócio-Educativas
aplicadas à adolescentes, como também mudanças de valores em práticas sociais e
institucionais atentas às possibilidades de redução das violências nas respostas
públicas às violências das quais a juventude toma parte no contexto social.
A aplicação da Justiça Restaurativa, quando utilizada como recurso de
ressignificação das medidas sócio-educativas, faz trabalhar de modo vívido a
contribuição dos valores essenciais restaurativos na transformação ética do contexto
mais amplo onde estas práticas se inscrevem.
Valores essenciais da Justiça Restaurativa na experiência de Porto Alegre: da
Responsabilidade – pessoal e mútua – à Confiança: uma espiral democrática.
15
Idem
A responsabilidade é um dos valores mais comuns na literatura sobre Justiça
Restaurativa16. Ao transcender a mera responsabilidade passiva – que envolve
determinar quem é responsável por dada ofensa e porque o ofensor a cometeu –
questões centrais para determinar responsabilidades no sistema de Justiça
Convencional, a Justiça Restaurativa toma a responsabilidade passiva como um
meio para focar a atenção na responsabilidade ativa. Para a última a questão central
passa a ser: o que precisa ser feito?
Há que se observar que a responsabilidade não se limita ao ofensor, que tem
o dever de agir para restituir ou reparar o mal que causou à vítima ou à comunidade.
Mas a comunidade também tem responsabilidade. Isto porque o crime representa
falhas de responsabilidades, que dizem respeito não apenas ao ofensor, mas
também à comunidade. Para a Justiça Restaurativa as respostas ao crime devem
enfatizar e re-estabelecer responsabilidade mútua ou co-responsabilidade entre
ofensor e comunidade.
No que diz respeito à gestão do processo político em que se insere a garantia
de direitos através da prestação jurisdicional na área da Infância e Juventude, a
responsabilidade vem sendo tomada, no campo dos interesses individuais, como
atributo indispensável ao exercício do valor máximo representado pela liberdade:
não se pode exercer liberdade sem limite, sem respeito, sem responsabilidade
perante o outro. No campo dos interesses coletivos, responsabilidade é o atributo
indispensável ao exercício do valor máximo representado pela democracia. Não se
pode exercer democracia sem que cada cidadão tenha presente as conseqüências
de suas escolhas e o peso da sua participação: responsabilidade perante todos.
Somente relações pautadas pela responsabilidade perante o outro e pela
responsabilidade para com todos pode instalar um ambiente de confiança. A
confiança, pressuposto da coesão, é a contrapartida (perante o outro) e o dividendo
(para todos) da responsabilidade. A responsabilidade é o tributo da confiança. E
assim como sem responsabilidade não há confiança, sem confiança não há
restauração, nem justiça, e sem justiça não há coesão social. Em cada fissura da
sociedade que esquecida dessa fórmula se desagrega, o gérmen oportunista da
violência instala a dor e a destruição.
16
Ver BRAITHWAITE, J and ROCHE, D. Responsibility and Restorative Justice. In: BAZEMORE, G,
and SCHIFF, M.Restorative Community Justice: Repairing Harm and Transforming Communities. New
York: Anderson Publications, 2001.
Sendo as instituições da justiça investidas da função de garantidoras, em
última instância, dos princípios regentes do Estado representados pela liberdade e
da democracia, a proposta de promover responsabilização não se justifica apenas
como foco central da administração da justiça, mas passa a constituir-se numa
contribuição à efetividade do próprio Estado Democrático de Direito. Uma justiça que
promova autonomia e responsabilidade, promove coesão, garante direitos e
estabiliza
relações
sociais,
fundamentando
a
constituição
de
Estado
de
Responsabilidade Social.
Lode Walgrave17, citado por Mylène Jaccoud (2005), propõe que, ao
referenciar-se nos prejuízos e adotar como meio a obrigação de restaurar, o modelo
restaurativo de justiça projeta, para além do Estado opressor correlacionado ao
modelo punitivo de justiça, ou do Estado providência, correlacionado ao modelo
reabilitador de justiça, a idéia da construção de um Estado responsável –
contraparte do empoderamento que leva os participantes dos procedimentos a se
investirem de uma responsabilidade ativa enquanto cidadãos.
Ora, se a construção de um Estado responsável e de uma atitude ativa do
cidadão passa a ser um objetivo ao alcance e na dependência do seu modelo de
justiça – que desde a esfera institucional, por seu lugar simbólico, influencia todas as
práticas sociais em que se exerçam funções análogas - então é de admitir-se que,
embora valores como inclusão, encontro, reparação e reintegração possam ser
citados como valores restaurativos da maior relevância (SCURO, 2003), melhor se
aplicarão ao campo dos processos
restaurativos, ao tempo em que a
responsabilização deveria ser o valor restaurativo de maior relevância enquanto
resultado almejado pelo procedimento.
Definir como foco a percepção das conseqüências do delito e compromisso
com sua reparação e direcionar a ele não somente o olhar do infrator, mas de todas
as pessoas e comunidade a ele relacionadas, inclusive operadores da rede de
atendimento e do sistema da justiça, seguramente vem sendo a contribuição mais
relevante das idéias restaurativas no campo da jurisdição penal juvenil.
Este foco – na responsabilidade - considerado na interconexão entre
responsabilidade individual e co-responsabilidade, pode ser tido como o enfeixe de
17
WALGRAVE, L. Au-delà de la retribution et de la réhabilitation : la réparation comme paradigme
dominant dans l’intervention judiciarire contre la délinquance des jeunes? In : GAZEAU, J.F. E
PEYRE, V. La justice réparatrice et les jeunes (Vaucresson, 9ièmes journée internationales de
criminologie juvenile) : pp.5-28.
outros valores sem os quais o teor restaurativo das práticas de Justiça podem ser
colocados em cheque, conforme a figura a seguir apresentada:
ESPECTRO DE DIFUSÃO DOS VALORES RESTAURATIVOS
CONFIANÇA
Comunidade
Pertencimento
Democratização
Inclusão
Autonomia
Respeito
RESPONSABILIDADE
Uma abordagem do delito fundada na (co-)responsabilização faz expandir um espectro de valores que
convergem no sentido de restaurar os laços de confiabilidade social rompidos pela infração.
Trata-se de um fluxo contínuo e retroalimentado, e que tende por isso a promover micro-sistemas de convívio
social em que a harmonia é auto-sustentada.
O foco na responsabilidade implica no reconhecimento da capacidade decisória e, portanto, respeito a
autonomia de cada sujeito. Reconhecido e respeitado como sujeito responsável e autônomo, cada indivíduo
pode sentir-se incluído num contexto em que suas posições serão exercidas e consideradas democraticamente,
favorecendo o sentido de pertencimento a um ambiente comunitário capaz de gerar reciprocidade e,
conseqüentemente, confiança.
No sentido inverso, depreende-se que relações pautadas pela confiança permitem estabelecer espaços
comunitários, geradores de um senso de pertencimento que dá lugar à ocupação democrática dos espaços
compartilhados pelos indivíduos. Essas qualidades geram contextos inclusivos que favorecem a autonomia do
sujeitos e um senso de respeito e reciprocidade, valores que estão na base de atitudes responsáveis e,
conseqüentemente, não violadoras dos laços de confiabilidade social.
II - Procedimentos de implementação
Antecedentes.
O Projeto Justiça para o Século 21 não surgiu de uma planilha de
planejamento, como poderia supor-se ser o caso de um projeto piloto, mas tem suas
raízes num percurso de aprendizagem histórica a respeito dos conceitos,
procedimentos e valores propostos pela Justiça Restaurativa.
Nessa perspectiva, sua origem remonta ao ano de 1999, quando essas idéias
chegaram à 3ª Vara do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre através dos
escritos do Prof. Pedro Scuro Neto, passando a ser difundidas informalmente no
âmbito local. Ademais, devido à atuação associativa do juiz titular dessa jurisdição,
logo também foram divulgadas nacionalmente por intermédio da Associação
Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude –
ABMP, em duas publicações editadas em parceria e com recursos do
MEC/Fundescola: “O Direito é Aprender” (1999) e “Justiça na Educação” (2000).
Em âmbito local, as reflexões propostas pela Justiça Restaurativa passaram a
inspirar uma revisão crítica das atividades jurisdicionais e do atendimento técnico na
execução das medidas sócio-educativas, competência da 3a Vara da Infância e da
Juventude. Pouco a pouco, e antes mesmo de terem lugares as primeiras aplicações
de práticas restaurativas em situações jurisdicionais concretas envolvendo vítimas e
infratores, esses subsídios passaram a inspirar e a pautar novas práticas nas
relações interinstitucionais do Juizado, relativas a suas funções fiscalizatórias e
administrativas. Nesse campo, iniciativas fundadas no modelo tradicional de
autoridade controladora e punitiva, tais como representações e denúncias
administrativas, ou requisições de instauração de procedimentos inquisitórios para
apuração de falhas nos serviços de atendimento a adolescentes, foram
progressivamente dando lugar a procedimentos circulares, inclusivos e dialogados,
promovendo-se intensiva participação e responsabilização e autonomia das equipes
de assessoramento técnico tanto do Juizado quanto das instituições parceiras,
sobretudo a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo – FASE, que executa o
atendimento das medidas socioeducativas privativas da liberdade, e a Fundação de
Assistência Social e Cidadania – FASC, cujo programa PEMSE executa o
atendimento das medidas socioeducativas de meio aberto. A medida que foram
sendo reiteradas no cotidiano, essas atividades foram sendo sistematizadas e,
atualmente consagradas com o nome de “reuniões de fluxo”, já se encontram
incorporadas à rotina dos serviços.
Semelhante aplicação de práticas embrionariamente restaurativas passaram
a ocorrer também com cada vez maior freqüência no atendimento técnico dos casos,
com ênfase numa nova sistemática de abordagem e acompanhamento dos
adolescentes sujeitos a internação por regressão (agravamento) das medidas de
meio aberto, nos quais tanto o atendimento no período de regressão, restrito ao
máximo de 90 dias, quanto na elaboração da proposta para o plano de retomada da
medida em meio aberto, passou a ser elaborado com a integração das áreas
técnicas direta (Juizado, FASE, FASC) ou indiretamente (outros serviços nas áreas
de assistência, saúde ou educação como abrigo, escola, tratamento de drogaditos,
etc). Ainda que sem promover a participação direta dos interessados, a
sistematização e normatização dessa prática de “reunir a rede”, caso a caso, para
discutir e aprimorar o atendimento dos casos pode ser considerada precursora da
introdução da Justiça Restaurativa, cuja inserção veio a ocorrer num contexto
institucional já razoavelmente habituado a mobilizar as pessoas envolvidas no
atendimento de um caso – ainda que inicialmente sobretudo técnicos – para
identificarem problemas, coletivizarem a reflexão e a busca de soluções para eles, e
formular sua resposta sob a forma de um plano estruturado de atividades e
compromissos.
Com os conceitos sobre Justiça Restaurativa e suas práticas circulares assim
já se disseminando e incorporando às rotinas das execuções sócio-educativas da
capital gaúcha é que advieram as primeiras aplicações efetivas de procedimentos
restaurativos envolvendo vítimas e ofensores, tendo como marco delimitador dessa
transição entre a apropriação teórica e o início das aplicações práticas o
denominado “Caso JR Zero”, realizado no segundo semestre de 2002 envolvendo
um caso de roubo com emprego de arma de fogo, invasão de domicílio e retenção
das vítimas como reféns, no interior da residência, em razão da imediata chegada da
polícia. Sentenciados à internação, dois adolescentes envolvidos participaram de
encontros com as vítimas, utilizando-se técnicas de mediação fundadas na terapia
familiar sistêmica. Depois de cinco meses recolhidos na FASE ambos foram
liberados para cumprir medidas de meio aberto no final de 2002. Periodicamente
monitorados, não há notícia de reincidência por qualquer deles desde então. Depois
deste caso, outros, sobretudo abrangendo incidentes escolares, passaram a fazer-se
ocasionalmente, mas sem avanços significativos diante da indisponibilidade de uma
metodologia mais específica e que se considerasse mais satisfatória na abordagem
de situações criminais.
Estruturação do processo.
Em 13 agosto de 2004, com a presença e palestra do juiz de direito paulista
Egberto Penido, foi instalado o Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa da
Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul –
AJURIS. Desde então atuante, mantendo reuniões mensais sistemáticas e
freqüência aberta à participação interprofissional, e envolvendo em média 30 a 40
pessoas a cada encontro, espaço que passaria a coletivizar leituras e reflexões, bem
como a estruturar e a referenciar os avanços conseguintes. Ao longo das quatro
reuniões iniciais deste Núcleo ao longo do segundo semestre de 2004, foram-se
tornando progressivamente mais freqüentes e enfáticas as proposições de que os
integrantes do grupo pudessem aplicar na prática as idéias que vinham discutindo.
Esse quadro de disponibilidade interna para a ação pautou a reunião de
planejamento das atividades de seguimento, realizada em dezembro, oportunidade
em que ficaram definidas as diretrizes de um futuro processo de implantação das
práticas restaurativas no âmbito de trabalho dos integrantes do Núcleo, em sua
quase totalidade ligados às políticas públicas de atenção à infância e juventude em
Porto Alegre. Inicialmente, contemplando as demandas dos diversos segmentos
representados no Núcleo, definiram-se quatro áreas de aplicação: 1) Processos
judiciais (relativos a atos infracionais praticados por adolescentes); 2) Atendimento
às medidas sócio-educativas; 3) Educação e 4) Comunidade. Anotadas tantas
frentes de atuação, deliberou-se por atendê-las de forma progressiva, iniciando
pelos processos judiciais, e assim sucessivamente na medida em que se tornasse
possível. Ainda sem antever as oportunidades concretas como tais aplicações
seriam viabilizadas, estava definido aí a matriz de um plano macro-estratégico que
persiste atual no segundo semestre de 2006, e como tal segue desde então
referenciando os avanços do processo de difusão e implementação das práticas
restaurativas junto à rede de atendimento à infância e juventude em Porto Alegre.
Depois da criação do Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa da Escola
da AJURIS, o momento decisivo seguinte foi a realização do 3º Fórum Social
Mundial, ocorrido em janeiro de 2005 em Porto Alegre. Entre outras condições de
avanço proporcionadas pelo contexto do Fórum Social Mundial, o principal destaque
foi a presença de Marshall Rosemberg, criador da Comunicação Não-violenta, que,
com apoio do Núcleo, realizou quatro workshops na ocasião, sendo que o primeiro e
mais estruturado deles, com duração de dois dias, foi sediado na própria Escola da
Magistratura. A contribuição da Comunicação Não-Violenta viria a ser decisiva para
o início das capacitações e da própria realização dos círculos restaurativos, visto que
até
então
nenhuma
metodologia
fora
identificada
como
suficientemente
tecnicamente adequada para intervenção em conflitos criminais, e portanto capaz de
ensejar as condições de segurança desejadas tanto para a formulação de um
projeto de aplicação prática, quanto para a realização dos encontros em si. Foi
também em janeiro de 2005, no contexto informal e criativo do Fórum Social
Mundial, que a parceria com Secretaria da Reforma do Judiciário foi alinhavada. Em
conversações com seu representante Renato de Vitto, à época articulando o Projeto
Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro, surgiu o
convite para a participação do Juizado de Porto Alegre como um dos pilotos de
implantação da Justiça Restaurativa no Brasil.
Oficinas no 3º Fórum Social Mundial, em janeiro de 2005, formaram o ponto de convergência
desencadeador do projeto Justiça para o Século 21.
Convênio SRJ/PNUD e o Projeto Promovendo Práticas Restaurativas no
Sistema de Justiça Brasileiro: o Embrião do Projeto Justiça para o Século
21.
Atendendo à provocação da Secretaria da Reforma do Judiciário foi
então esboçada a primeira proposta de implantação das práticas restaurativas
no Juizado de Porto Alegre, contemplando a primeira fase do plano elaborado
no Núcleo da AJURIS, e estabelecendo-se como ‘locus’ da sua execução a 3ª
Vara do Juizado, competente para o processo de execução das medidas sócioeducativas.
As atividades apoiadas abrangeram as capacitações em
coordenação de círculos restaurativos pelo treinador Dominic Barter, e um
processo de pesquisa, sistematização e avaliação contratado com a Faculdade
de Serviço Social da PUCRS.
Formou-se um grupo de onze componentes, representando diversas
instituições parceiras já interessadas em integrar-se ao processo (além do
Juizado, a FASE, a FASC e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e
Segurança Urbana, através da Guarda Municipal) que passaram a ser os
destinatários prioritários das capacitações para a coordenação dos círculos.
Desde logo reconhecendo-se a importância de que tais práticas fossem
oportunizadas num ambiente institucional minimamente capaz de reconhecer
sua presença e identificar seu significado, deflagrou-se um processo de difusão
e sensibilização com jornadas introdutórias à Justiça Restaurativas abertas a
comunidade, e sobretudo aos profissionais da rede de atendimento à infância e
à juventude.
Grupo de Coordenadores – o G11
Assim, o Projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de
Justiça Brasileiro viabilizou a realização das seguintes atividades no ano de
2005:
Quadro 1 - Atividades do Projeto Promovendo Práticas Restaurativas no
Sistema de Justiça Brasileiro no Piloto de Porto Alegre/2005
Período
21/03/2005
Atividade
Ato público de apresentação
do projeto “Promovendo
Práticas Restaurativas no
Sistema de Justiça Brasileiro
Público
119 participantes –
representantes da alta gestão
do Sistema de Justiça, das
Políticas Públicas,
- AJURIS
Conselheiros de Direitos,
representantes da rede .
21 e 22/03/2005
Curso de Mediação
134 participantes –
Restaurativa - AJURIS
operadores da rede de
atendimento, das escolas, do
Sistema de Justiça,
Conselheiros de Direitos
Maio 2005
Capacitação Coordenadores
“G11” – profissionais do
- AJURIS
Sistema de Justiça, da FASC,
FASE, Guarda Municipal.
20/05/2005
Jornada Comunitária:
209 participantes –
“Promovendo Práticas
representantes de escolas,
Restaurativas no Sistema
operadores técnicos e
Sócio-Educativo” – PUCRS
jurídicos do Sistema de
Justiça, operadores da rede,
conselheiros de direitos.
21/06/2005
“Práticas Restaurativas na
93 participantes Justiça da Infância e
representantes de escolas,
Juventude da Nova Zelândia”
operadores técnicos e
– AJURIS
jurídicos do Sistema de
Justiça, operadores da rede,
conselheiros de direitos.
Permanente
Aquisição 2 câmeras vídeo
Coordenadores em
treinamento (exibição nas
supervisões)
Permanente
Pesquisa, sistematizaçao,
Coordenadores em
avaliação – NUPEDH –
treinamento e Coordenação
FSS/PUCRS
do Projeto, destinatários das
ações – adolescentes e seus
familiares, vitimas e seus
familiares, demais
participantes dos círculos.
Fonte: Relatório parcial das atividades do Projeto, 2005.
Considera-se que este conjunto de atividades foram decisivas para a
alavancagem de todo o processo, pois ao mesmo tempo em que estiverem
orientadas à sensibilização social e institucional, à capacitação, ampliaram o
apoio da rede e da comunidade às iniciativas de aplicação da Justiça
Restaurativa.
Evento de lançamento do projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça
Brasileiro”, em março de 2005, foi prestigiado pelas mais altas lideranças do Judiciário gaúcho.
Para essa etapa, além de autorizar o envolvimento do juiz e servidores
da 3ª Vara no projeto como em objeto serviço, o Tribunal de Justiça dispôs de
uma assistente social com carga horária de 20 horas semanais para dedicação
exclusiva às atividades de coordenação, além de determinar a contratação de
uma estagiária de comunicação social para operação dos equipamentos de
filmagem e edição, além de fornecer equipamentos e softwares necessários à
edição desses vídeos, destinados às atividades de capacitação. A Escola da
Magistratura, por sua vez, complementou a contrapartida disponibilizando o
espaço físico, equipamentos e serviços de apoio para a quase totalidade das
atividades de capacitação e de eventos de divulgação.
O convênio com o Programa Criança Esperança Rede Globo/UNESCO
A partir de agosto de 2005, um novo Convênio, celebrado agora pela
AJURIS com a UNESCO, representando o programa Criança Esperança, da
Rede Globo, possibilitou a apoio para a extensão do processo para as fases
conseguintes previstas no plano estratégico concebido do Núcleo de Estudos
(fases 2 e 3, abrangendo atendimento a medidas sócio-educativas e educação
escolar), dando lugar também à consolidação dos avanços que vinham até
então sucedendo, mediante o surgimento e consecutiva pactuação da rede em
torno dos objetivos do Projeto Justiça para o Século 21.
Foi a partir desse projeto que se desenhou um plano orgânico de
articulação institucional voltado à disseminação do conhecimento visando à
implementação das práticas restaurativas. Um grupo de 18 instituições
parceiras foi reunido, vindo a firmar um protocolo de intenções, reafirmando os
objetivos traçados pelo projeto e formalizando a intenção de investir esforços
na sua consecução. A apresentação destas parcerias encontra-se no item IX –
As parcerias institucionais – do presente Relato.
Protocolo de Intenções pela Justiça no Século 21 foi assinado no Dia da Justiça, dia oito de
dezembro de 2006, por representantes das 18 instituições parceiras.
Em torno da execução das atividades apoiadas pelo programa Criança
Esperança refinou-se o foco do projeto como um todo (“implementar as práticas
da Justiça Restaurativa na pacificação de situações de violências envolvendo
crianças e adolescentes em Porto Alegre”), e desenhou-se um quadro mais
estruturado de planejamento e gestão.
Primeira Matriz Organizacional.
Durante o período de agosto de 2005 a julho de 2006, o projeto foi
organizado
em
implementação:
várias instâncias e
abrangeu
diferentes espaços de
Coordenação Geral – instância política de acompanhamento e
deliberação, abrangendo representações de todas as instituições firmatárias do
protocolo de intenções;
Coordenação Executiva – grupo de trabalho incumbido da execução das
atividades previstas no projeto e da sua difusão no âmbito das instituições
parceiras já envolvidas na implementação das práticas restaurativas (que
passaram a ser identificados como “parceiros executores”, integrado por
representantes do Juizado (juiz, promotora, defensora da 3ª Vara), FASE –
Fundação de Atendimento Sócio-Educativo, FASC – Fundação de Assistência
Social e Cidadania, SMDHSU – Secretaria Municipal de Direitos Humanos e
Segurança Urbana, da SMED – Secretaria Municipal de Educação, e da
Faculdade de Serviço Social da PUC.
Coordenações Institucionais – grupos de trabalho internos a cada uma
das instituições parcerias já envolvidas na implementação das práticas
restaurativas, incumbidos da difusão e referenciamento do projeto junto aos
respectivos públicos internos. Formaram-se essas coordenações pela FASE,
FASC, SE e SMED.
Evento de instalação da Coordenação Institucional da FASE, em 22 de novembro de 2005.
Unidades de Execução – espaços de trabalho no qual as instituições
parceiras propuseram-se a estimular a formação de grupos de estudos e a
progressiva introdução de práticas restaurativas. Assim, além do espaço
judicial (que no curso desse processo viria a ser consolidado pela criação da
Central de Práticas Restaurativas), foram abertas outras 28 frentes de
implementação. No âmbito sócio-educativo foi proposta a criação de 14 desses
espaços, abrangendo 6 unidades de privação da liberdade da FASE e 8
centros regionais de atendimento do PEMSE (Programa Municipal de
Execução das Medidas Sócio-Educativas de Meio Aberto) da FASC. No âmbito
da educação a proposta foi também de 14 unidades de execução, abrangendo
6 escolas da rede pública estadual e 8 escolas da rede pública municipal.
Capacitação e Difusão.
A difusão dessa nova etapa teve por base a realização de um curso de
introdução aos conceitos elementares de Justiça Restaurativa, que abrangeu
61 participantes, representativos dos diversos parceiros executores e
distribuídos nas diversas unidades de execução.
Quadro 2 - Abrangência da participação das diferentes políticas públicas e segmentos
institucionais no Curso de Formação em Práticas Restaurativas ( segundo semestre de
2005)
Instituições Participantes
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CMDCA)
Defensoria Pública
Fundação de Assistência Social e de Cidadania (FASC)
Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE)
Poder Judiciário – Justiça Instantânea (JIN) e 3ª. Vara do
Juizado Regional da Infância e Juventude (3VJRIJ)
Ministério Público (MP)
Secretaria de Educação do Estado (SE)
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana
(SMDHSU)
Secretaria Municipal de Educação (SMED)
Secretaria Municipal de Governança Local (SMGL)
Nº. de Participantes por
Instituição
4
1
12
12
6
1
3
10
9
1
Secretaria Municipal da Juventude (SMJ)
1
Secretaria Municipal de Saúde (SMS)
1
Total
61
Fonte: Listas de presenças do curso. Sistematização NUPEDH – FSS/PUCRS
Esse curso foi inserido na matriz de mobilização pois foi concebido para
conectar o processo de formação de um grupo de lideranças capazes de dar
início à implementação das práticas restaurativas nos respectivos espaços de
trabalho com a tarefa de difusão e replicação do conhecimento através das 28
Unidades de Execução, compreendidas como focos de multiplicação.
Esse mecanismo de gestão compartilhada e de replicação através de
instâncias articuladas de modo a gerar um “efeito cascata” possibilitou um
processo de difusão amplo e capilarizado das idéias sobre Justiça
Restaurativa. A receptividade ao tema foi significativamente acolhedora e
entusiástica. O público, em regra, esteve formado por servidores das
instituições responsáveis pela execução das políticas públicas relacionadas ao
atendimento à infância e à juventude, e, por intermédio daí, se estendendo às
parcerias não governamentais igualmente vinculadas a esses serviços.
Para ilustrar, é por intermédio da rede básica da assistência social do
município (FASC), junto à qual inserido o programa de medidas sócioeducativas de meio aberto (PEMSE), que entidades conveniadas para fins de
encaminhamentos de adolescentes para cumprimento das medidas de
prestação de serviços à comunidade (PSC), tem gerado a aproximação e
progressivo interesse no tema de entidades como Clubes de Mães e
Associações de Moradores.
Esse processo ensejou que os eventos de capacitação e de
sensibilização
promovidas
pela
Coordenação
do
Projeto
fossem
se
combinando com atividades espontâneas, protagonizadas pelo próprio quadro
de pessoas já engajadas no projeto, nas quais o tema Justiça Restaurativa
passou a ser pautado tanto em reuniões das rotinas institucionais quanto em
eventos públicos relacionados a outras temáticas.
A expressão mais significativa dos resultados desse processo, no âmbito
das políticas públicas, foram as proposições das mini e pré conferências (de
bairro e regionais) de Segurança Urbana, realizadas nos períodos de março à
maio de 2006, recomendando a adoção de práticas restaurativas na gestão da
segurança urbana, finalmente acolhidas pela plenária da 1ª Conferência
Municipal de Segurança Urbana, realizada em 18 e 19 de maio de 2006.
Já no âmbito das organizações não governamentais, esse resultado está
representado pela incorporação dos princípios éticos da Justiça Restaurativas
nos princípios da ONG Educadores para a Paz, conforme aprovados em
Assembléia-Geral nos dias 29 e 30 de abril de 2006.
Esses dados, além de demonstrarem a facilidade com que o tema se
divulga (embora seja compreensível que o mesmo não ocorra, em termos de
velocidade, no que refere à implementação das práticas) vêm confirmando o
acerto do planejamento que previu esse avanço mediante etapas escalonadas
de implementação, mas sem prejuízo de estarem desde logo contempladas as
presenças de representantes de todas as áreas numa mesma matriz de
mobilização.
Ou seja, embora a Coordenação do Projeto não tenha sequer
especificado
em
planejamento
como
deveria
suceder
a
etapa
de
implementação das práticas restaurativas no âmbito comunitário, no sentido de
estendê-las a espaços públicos espontâneos, não articulados por políticas
estatais, pode-se sugerir que esse processo já possa estar sendo inaugurado,
com base no conhecimento difundido, mas valendo-se da sua própria
espontaneidade e legitimidade.
Outro campo de experimentação foi aberto, nesse caso deliberada e
intencionalmente, com a mobilização de um grupo de adolescentes e seus
familiares para divulgarem e apoiarem a realização de práticas restaurativas
junto às respectivas comunidades institucionais a que vinculados (escolas,
unidades da FASE e centros regionais da FASC). Para tal fim foram realizadas
duas oficinas sobre práticas de Justiça Restaurativa - uma com adolescentes
oriundos das instituições parceiras (FASE, FASC, SMED e SE) e uma com
seus familiares. Os objetivos desta atividade foram a sensibilização dos
participantes para a difusão comunitária da Justiça Restaurativa, a que se
seguiram repercussões e aplicações espontâneas nas respectivas instituições,
conforme melhor documentado adiante.
Avaliação de Percurso / 2005.
Além das constatações sobre a riqueza do processo de difusão das
novas idéias, a avaliação do percurso descrito ao final de 2005 possibilitou,
entre outros feed backs, algumas constatações que imprimiriam marcas
significativas no realinhamento do processo relativamente à gestão e à
realização das práticas restaurativas.
O volume de atendimentos com resultado positivo em termos de
realização dos encontros entre vítimas e ofensores no âmbito dos processos
judiciais foi considerado quantitativamente pouco expressivo diante do esforço
investido no projeto18. Entre outros fatores, como o elevado índice de não
adesão das pessoas alcançadas pelo convite para participar do encontro19,
18
No ano de 2005 foram encaminhados 100 processos para a realização de círculos e
realizados 8 círculos, conforme dados colhidos pela através da Pesquisa que está
acompanhando, sistematizando e avaliando as práticas de Justiça Restaurativa implementadas
pela 3ª. Vara do Juizado Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre, sob a coordenação
da Profa. Dra. Beatriz Aguinsky, do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Ética e Direitos
Humanos – NUPEDH da FSS/PUCRS.
19
Dados da pesquisa de 2005 registram que, de 40 casos em que houve efetivo
impulsionamento em pré-círculo de procedimentos restaurativos, 18 não prosseguiram, isto é,
foram interrompidos sem realização de círculo em razão da recusa de vítima em participar.
Vale dizer, 45% das razões pelas quais os procedimentos restaurativos não prosperaram em
círculos restaurativos estiveram relacionadas à não aceitação de participação das vítimas.
essa constatação foi também relacionada às dificuldades logísticas de
localização e abordagem dos convidados para o procedimento e à limitação da
disponibilidade dos operadores. Diante disso surtiram-se duas propostas que
rearticulariam a formatação do projeto.
A primeira, aproveitando também que a difusão já alcançada agora
permitiria aumentar o raio de aplicação judicial para além da esfera de
“governabilidade” da jurisdição da 3ª Vara, no sentido de que fosse
reposicionada a abordagem dos casos, até então feita somente na etapa de
execução da medida, para o momento antecedente ou inicial do processo de
apuração do ato infracional.
A segunda, de que os representantes dos parceiros executores junto ao
projeto passassem a dispor de carga horária integral para dedicação à Justiça
Restaurativa, disponibilizando tempo livre para atuar mais intensivamente nos
processos do juizado e, também, ao impulsionamento interno do projeto. Isso
porque os avanços alcançados passaram a gerar demandas e dificuldades
específicas junto a cada parceiro, o que de certa forma passou a perturbar a
gestão compartilhada face ao pouco tempo da equipe para dedicar-se ao
atendimento e simultaneamente à implementação , pela diversidade das
demais e peculiariedades políticas e culturais das seis instituições executoras
reunidas.
Segunda Matriz Organizacional.
No início de 2006 elaborou-se um planejamento unificando o conjunto
das atividades previstas para o ano. Como peculiaridade desse novo momento
de planejamento destaca-se que, ao contrário dos anteriores, esse novo plano
já foi surtido com base numa avaliação compartilhada do processo e não a
partir das estimativas dos planejadores. Outro aspecto relevante foi a intenção
de unificar o projeto num todo orgânico, atribuindo-lhe também uma identidade
unificada. O que vinha até então sendo tratado compartimentadamente, ora
Outras razões associadas são: dificuldades de localização/contato com as vítimas (15%),
desistência dos participantes que não compareceram ao círculo (12,5%), não aceitação de
participação pelos adolescentes ou seus familiares (12,5%), e dificuldades de
localização/contato com os adolescentes (10%) e negação do ato infracional pelo adolescente
(5%).
como “Projeto SRJ/PNUD”, ora “Projeto Unesco”, passou a ser considerado
como “Projeto Justiça parca o Século 21”.
Esse plano contemplou a institucionalização de um espaço de serviço
para realização das práticas restaurativas capaz de servir aos diversos órgãos
jurisdicionais do Juizado da Infância de Porto Alegre, concebido não apenas
para ampliar o leque de aplicações nessa esfera, mas também para servir
como eixo central de um sistema de difusão operacional e capacitação em
serviço – a Central de Práticas Restaurativas.
A Central de Práticas Restaurativas.
Assim, atendendo a intenção de antecipar o momento de abordagem
das pessoas e inseri-la ao início do procedimento judicial, foi proposta a criação
da Central de Práticas Restaurativas, que foi concebida então como “um
espaço de serviço interinstitucional, coordenado pela 3ª Vara do Juizado da
Infância e da Juventude de Porto Alegre, destinado a promover práticas
restaurativas em processos judiciais na porta de entrada do sistema de
atendimento do ato infracional, junto ao CIACA – Centro Integrado de
Atendimento da Criança e do Adolescente. Esse espaço sedia o núcleo de
difusão operacional das práticas restaurativas na Rede da Infância em Porto
Alegre”.
Com sua criação, os procedimentos restaurativos no âmbito dos
processos judiciais passaram a ser instaurados, preferencialmente, já no
momento do ingresso dos novos casos no sistema de justiça, que ocorre junto
ao CIACA, onde funciona o Projeto Justiça Instantânea (JIN), órgão judicial de
atendimento imediato aos adolescentes ofensores, em atuação integrada entre
o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e as Delegacias
Especializadas da Criança e do Adolescente (DECA).
Sua concepção e implantação está não só associada à intensificação e
testagem da metodologia das práticas restaurativas no campo judicial, mas
também dando lugar a um modelo de formação baseada nas capacitações em
serviço, nos quais as atividades dessa Central passariam a ocupar uma função
estruturante, que será descrita no item VIII.
Gestão Compartilhada e das Unidades de Execução-Piloto - Avaliação.
Como dito, outro aspecto relevante da avaliação de 2005 fora a
disponibilidade restrita dos representantes das instituições parceiras. A solução
proposta no planejamento fora a de gestionar que cada instituições destinasse
um servidor com dedicação exclusiva (40 horas) às atividades do projeto, que
seriam distribuídas assim entre (a) participação na Central de Práticas (b)
gestão compartilhada do projeto e (c) difusão e refenciamento da Justiça
Restaurativa em âmbito interno.
Essa solução não foi alcançada pela maioria dos parceiros, levando a
uma situação de esgarçamento da proposta de atuação e gestão compartilhada
da Central de Práticas Restaurativas e da gestão do projeto, tendo em vista
que o pouco tempo disponível dividir-se entre atendimento de casos, tarefas
operacionais das atividades do projeto, e alavancagem do projeto na respectiva
instituição.
O resultado prático dessa combinação de fatores foi o represamento de
processos judiciais, com excesso de prazo nos atendimentos, de um lado, e a
perturbação do espaço de compartilhamento representado pela então
Coordenação Executiva do projeto, com as reclamações quanto às dificuldades
ocupando a maior parte do tempo disponível.
Esse quadro perdurou até meados (maio) de 2006, quando, em vias de
encerrar-se a vigência do convênio com a Unesco, deflagrou-se um processo
denominado de “avaliação e repactuação” do projeto, que se estendeu por
cerca de dois meses.
Nesse processo todos os parceiros mantiveram o propósito de
prosseguir na difusão das idéias sobre Justiça Restaurativa, ratificando seus
objetivos do projeto, variando bastante, porém, dadas às peculiaridades de
cada qual, as condições oferecidas ou a disponibilidade demonstrada em
arcarem com os ônus concretos da sua implementação.
Embora os inúmeros avanços alcançados, que são convergentes ao
desenvolvimento de processos sociais como sensibilização, mobilização,
conscientização e capacitação20, resultantes da atuação integrada desse grupo
20
Registros da Pesquisa que vem acompanhando a implementação do Projeto
interinstitucional, a avaliação quanto ao modelo de co-gestão foi de que lograra
um sucesso limitado em termos operacionais, dado seu elevado custobenefício, nas circunstâncias e no momento atual do projeto.
Outra constatação objetiva foi a de que o modelo de difusão através da
rede de 28 unidades executoras tivera avanços desuniformes, não se
confirmando a hipótese planejada, talvez precipitadamente, de que, ao cabo do
processo, ter-se-iam instalados núcleos de aplicação das práticas restaurativas
no atendimento sócio-educativo em todas as unidades da FASE e do PEMSE,
bem como, por intermédio deste último programa (PEMSE/FASC), dada sua
capilarização na rede de assistência do Município, e mediante a colaboração
das Escolas Municipais e respectivos Guardas Municipais envolvidos no
projeto, também restariam instalados espaços de difusão e referenciamento
dessas práticas no âmbito de cada uma das oito micro-regiões administrativas
em que dividida a Capital.
Ao contrário, embora a gestão compartilhada pudesse sugerir um
avanço relativamente alinhado nas diversas frentes, a avaliação demonstrou
que os movimentos institucionais foram heterogêneos e desuniformes.
Constatou-se ora não haver clareza quanto à proposta junto aos servidores de
base, ora constatou-se não estar suficientemente apropriada a tarefa pelas
respectivas representações junto à Coordenação Executiva, ora não estar
suficientemente legitimada a proposta pelas respectivas direções. Tudo
convergia para produzir um movimento que embora inovador, porque
efetivamente compartilhado de forma interinstitucional, se mostrava não
suficientemente integrado nem suficientemente sinérgico, mas, ao contrário,
visto que, que se movia num descompasso que drenava a já limitada
capacidade operacional arregimentada para investir-se no projeto.
No fundo e justificando todas essas constatações, uma questão de
coerência principiológica se anunciava: até que ponto a tarefa fora
compreendida e assimilada voluntariamente? Seria impossível colher uma
resposta, não ao menos uma que fosse relativamente uniforme, dado o amplo
leque de participações arregimentadas nas mais diversas hierarquias, e a
complexa composição de interesses aliançados em torno do projeto em todos
esses níveis – desde o entusiasmo autêntico até o indiferente cumprimento de
um dever de ofício.
Não obstante, essa questão sugeriu um encaminhamento vital para a
nova etapa, iniciada a partir de agosto de 2006, que passou a ser regida
rigorosamente, ainda que sob as conseqüências mais extremas, pelos
princípios extremo da voluntariedade e da responsabilidade.
Em termos práticos resultado daí que (a) os representantes dos espaços
institucionais originalmente mobilizados para servirem ao processo de
implantação como “unidades piloto” foram liberados para rever suas posições
quanto ao interesse em prosseguir no processo e (b) as próprias instituições
mantenedoras foram solicitadas a revisar suas adesões, deliberando por
manter-se ou não segundo a disponibilidade de prestar as contrapartidas
relacionadas ao atendimento das necessidades da implementação do projeto.
Entre as questões mais relevantes submetidas à Coordenação-Geral
como resultado desse processo de reavaliação, deliberou-se por (a) restringir a
atuação na Central de Práticas a servidores judiciais e, com relação aos
parceiros, apenas àqueles que dispusessem de representação com dedicação
exclusiva ao projeto, o que atualmente (outubro de 2006) vem sucedendo
apenas com a SE – Secretaria Estadual de Educação e com a FASC –
Fundação de Assistência Social e Cidadania; (b) dissolver a coordenação
interinstitucional, mantendo a 3ª Vara e a AJURIS a função de “parceiro
âncora”, cuja contribuição ficou concentrada nas capacitações (manutenção da
central de práticas, curso teórico, jornadas de supervisão) e na gestão
operacional do projeto (realização de eventos, publicações, gestão financeira)
mas deixando de responder e de transitar de forma compartilhada na gestão
dos processos internos junto aos parceiros.
Desde essa nova posição de “parceiro âncora”, a 3ª Vara do Juizado,
auxiliada pelos quadros da AJURIS e da Escola da Magistratura, e pelo grupo
de pesquisa da Faculdade de Serviço Social da PUC, assumiu que só pode
responder pelos resultados (obrigação de fim) do projeto no âmbito da própria
esfera de governabilidade, ou seja, nas aplicações em processos judiciais.
Quanto aos demais campos de aplicação institucional, a responsabilidade do
Juizado ficou limitada a manter ativo o processo de mobilização, a oferecer a
formação dos multiplicadores, a fornecer o material didático e, para quando
caso a caso firmadas as contrapartidas, autorizar o uso dos padrões
operacionais, inclusive com acesso à intranet do projeto (obrigações de meio).
Com isso, cada instituição que pretenda persistir na aplicação das práticas
restaurativas deverá assumir a responsabilidade técnica pela supervisão dos
procedimentos, visto que o Juizado assumiu fazê-lo exclusivamente com
relação aos círculos realizados no âmbito da Central de Práticas Restaurativas.
Segundo Semestre de 2006 - Iniciando a Navegação.
Somente a partir de agosto de 2006 – praticamente com um ano e meio
de história, portanto – que o projeto passa a assumir uma configuração mais
estável e capaz de entrar em navegação, em velocidade de cruzeiro – o que
significa dizer, com as práticas restaurativas (a) passando a incorporar-se ao
cotidiano dos processos judiciais, ao mesmo tempo em que (b) tornando-se
igualmente sistemáticas na rotina do atendimento das medidas sócioeducativas
privativas da liberdade, (c) também vão sendo progressivamente incorporadas
no atendimento às medidas socioeducativas de meio aberto e (d) pouco a
pouco passa a ser explorado seu potencial e produzir-se referências voltadas à
sua aplicação no âmbito escolar e, ainda, como efeito secundário desse
conjunto posto em movimento, (e) difundindo-se pouco a pouco os valores,
conceitos e fazendo-se esparsos ensaios metodológico da sua aplicação
também no âmbito comunitário.
Na atual etapa (outubro 2006), estão em andamento regular (a) as
atividades da Central de Práticas Restaurativas, com auto-supervisões
semanais; (b) duas turmas do novo Curso de Iniciação em Justiça
Restaurativa, com 45 alunos no total; (c) supervisões mensais, em parte
dirigidas à equipe da Central de Práticas Restaurativas, e em parte aos
restantes integrantes do quadro de coordenadores em formação (atualmente,
teoricamente composto por aproximadamente 102 pessoas, resultantes dos 61
capacitados em 2005 e mais os 41 atualmente em formação).
O processo das denominadas “repactuações bilaterais” não teve ainda
assento formal, prevalecendo o acordo político em torno das linhas gerais do
protocolo de intenções firmado em dezembro de 2005, que foi dado por
prorrogado pela Coordenação-Geral em reunião de julho de 2006.
Não obstante, compromissos concretos foram propostos e assumidos
pelas instituições, pelos alunos e pelas respectivas comunidades de trabalho
na composição das duas turmas do novo Curso de Iniciação em Justiça
Restaurativa, iniciado em agosto de 2006, através de
um mecanismo que
consistiu na inscrição apenas dos candidatos que preenchessem um conjunto
de rigoroso de requisitos. Antecedendo as inscrições, as representações
políticas das instituições parceiras executoras foram visitadas, expondo-se o
novo momento e sugerindo-se as novas perspectivas e compromissos a serem
seguidos para consolidar o processo de implantação conjunta do projeto.
Esses compromissos materializaram-se na tomada de posições
concretas, tais como (a) compromisso escrito do candidato em compor um
grupo de estudos para multiplicação interna imediata dos conteúdos do curso,
bem como de futuras aplicações das práticas restaurativas, ainda que em
caráter meramente experimental, (b) compromisso escrito dos colegas de
trabalho arregimentados para o grupo de estudos em participarem das
respectivas atividades, bem como das jornadas de supervisão da Central de
Práticas Restaurativas e (c) encaminhamento da inscrição pelas esferas
hierárquicas da administração da entidade, abrangendo o compromisso de
disponibilizar carga horária suficiente para participação nas aulas, para a
realização de grupos de estudos no âmbito interno, e para a participação nas
jornadas de supervisão, extensivo aos integrantes do grupo de estudos.
Uma contribuição decisiva na presente etapa do processo foi a
finalização e publicação de uma apostila destinada a referenciar o processo
das capacitações. Este material vem sendo utilizado na capacitação de
coordenadores de círculos e articula, além de referências conceituais e
procedimentais, um fluxo operacional que prevê àqueles que as utilizam e que
são parceiros do Projeto, a utilização de um sistema on line para registro das
informações sobre os círculos realizados.
Atuação das Coordenações Institucionais dos parceiros
21
A Coordenação Institucional de cada parceiro do Projeto vem cumprindo papel
fundamental nos processos de sensibilização, capacitação, multiplicação e
operacionalização de círculos restaurativos no âmbito das respectivas instituições. De
21
O presente tópico ilustra as atividades de difusão, capacitação e introdução
restaurativas no âmbito interno das instituições parceiras, através das
“coordenações institucionais”. Esses relatos foram feito, a pedido, para constar
relatório. A redação ficou a cargo de instituição, revestindo portanto suas próprias
e responsabilidade.
das práticas
respectivas
no presente
perspectivas
modo a ilustrar, apresentam-se a seguir, as diferentes estratégias de ação destas
Coordenações Institucionais, segundo seus próprios relatos e complementados pelas
informações coletadas no processo de pesquisa que acompanha o projeto:
No âmbito do atendimento das medidas sócio-educativas.
1. FASE - Fundação de Atendimento Sócio-Educativo
A Coordenação Institucional da FASE, vinculada ao Projeto Justiça para o
Século 21 vem realizando, de forma ativa, a implantação/implementação da Justiça
Restaurativa nas Unidades da Fundação em Porto Alegre, através de cinco ações
específicas: Formação de um Núcleo de Justiça Restaurativa na FASE;
Implantação/implementação de práticas restaurativas; Capacitação em práticas
restaurativas de servidores das Unidades de Porto Alegre; Formação de grupos de
estudo; e Participação de profissionais em cursos sobre Justiça Restaurativa.
Núcleo JR FASE
Trata-se de um grupo multidisciplinar, sob a coordenação institucional da JR na
FASE, com encontros semanais, que visa aprofundar os conhecimentos sobre Justiça
Restaurativa, sistematizar e implementar a ação na Fundação, discutir casos e
acompanhar os processos restaurativos buscando a garantia dos princípios
restaurativos. O Núcleo foi constituído, primeiramente, de profissionais que fizeram o
curso de práticas restaurativas de agosto a dezembro de 2005, administrado pela 3ª
Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude e atualmente foi ampliado com a
participação de outros profissionais que vêem se aproximando das práticas
restaurativas através do curso em desenvolvimento, que está sendo ministrado por Dr.
Leoberto Brancher, Juiz da 3ª VJRIJ, bem como, a partir da vivência de círculos
restaurativos nas Unidades de Atendimento. No momento o Núcleo JR FASE está
composto de 19 (dezenove) técnicos da Fundação das áreas de Serviço Social,
Psicologia, Pedagogia, Enfermagem e Direito.
Implantação/implementação de Práticas Restaurativas
A implantação vem sendo realizada de forma paulatina nas Unidades da
Fundação em Porto Alegre. O Projeto Piloto FASE foi instituído no Centro de
Atendimento Sócio-Educativo de Porto Alegre I - CASE POA I, de setembro a
dezembro de 2005. A partir de março a Coordenação Institucional deu continuidade a
implantação participando das discussões sobre JR nas Unidades e coordenando
processos restaurativos, mais especificamente os círculos com a parceria na cocoordenação das colegas do Núcleo JR FASE. À medida que os profissionais do
Núcleo, integrantes da equipe da Unidade, apropriavam-se da proposta da JR a
coordenação dos círculos ficava sob a responsabilidade dos profissionais da própria
Unidade. O Núcleo JR mantinha então a tarefa de garantir a discussão constante dos
processos restaurativos dirimindo dúvidas e fortalecendo os profissionais para atuação
nestes processos.
Participam dos círculos restaurativos, o adolescente, familiares, comunidade,
rede de atendimento e profissionais da Fase envolvidos com o acompanhamento da
internação do adolescente. A dinâmica do encontro obedece a etapas compondo-se da
seguinte forma: Retomada do objetivo do encontro, apresentação dos participantes,
esclarecimento do ato infracional que gerou a internação, compreensão mútua entre
família e adolescente, necessidades que motivaram o ato infracional, socialização do
relatório avaliativo e elaboração conjunta de plano individual de atendimento referente
ao convívio familiar e comunitário.
Internos da FASE e familiares elaboram a vivência infracional mediante procedimento
restaurativo sem a presença da vítima principal, ajustando compromissos para o plano
de atendimento que será levado à apreciação judicial em audiência.
Capacitação em Práticas Restaurativas
A necessidade de socialização da proposta da Justiça Restaurativa tanto nos
princípios que norteiam a proposta quanto na metodologia a ser desenvolvida no
processo restaurativo (pré-circulo, circulo e pós-circulo) encaminhou para a
organização de uma capacitação intitulada Práticas Restaurativas, que contempla
módulos de fundamentação (conceitos, princípios, valores) e prática.
Os públicos alvos das capacitações foram monitores, equipes técnicas, chefias
de equipe e direções das Unidades. Cada Unidade organizou-se conforme a sua
possibilidade e disponibilidade de tempo, sendo que:
Centro de Internação Provisória-CIPCS
Equipe técnica, representantes da monitoria e equipe diretiva participaram da
capacitação realizada em quatro módulos. Houve entendimento da equipe de não dar
inicio aos procedimentos restaurativos na Unidade, propondo-se a aprimorar os Planos
Individuais de Atendimento.
CASE POA II
Capacitação no mês de Junho já num processo de avaliação da implantação
das praticas restaurativas na Unidade, que vinham acontecendo desde o mês de abril.
Na Unidade são realizados círculos restaurativos com os adolescentes com proposta
de progressão de medida apresentada no Relatório Avaliativo.
CASE Feminino
Capacitação, no mês de Julho, culminando com um processo restaurativo de
uma adolescente no município de Julio de Castilhos, envolvendo a rede de
atendimento daquele município. Casos de proposta de processo de JR vêem sendo
discutidos com a Coordenação Institucional, no intuito de com base nos princípios
restaurativos, avaliar a pertinência do circulo.
CASE Padre Cacique
Capacitação no mês de Setembro com a participação da equipe diretiva
(direção e chefes de equipe) e equipe técnica. Foi realizado um circulo restaurativo no
município de Santo Antonio da Patrulha envolvendo a família e rede de atendimento.
Proposta de um caso por mês.
CASE POAI
A capacitação foi no mês de Outubro, contudo, por tratar-se do projeto piloto, e
com uma trajetória maior de discussão sobre a proposta da JR, na verdade o encontro
efetivou-se na forma de aprimoramento do trabalho que vem sendo desenvolvido há
doze meses na Unidade. No momento o CASE POA I busca os referenciais da Justiça
Restaurativa nos casos de sugestão de progressão de medida do relatório avaliativo,
casos encaminhados pela escola e casos de retomadas das regras disciplinares.
Comunidade Sócio Educativa
A capacitação será realizada no mês de Outubro, instituindo-se a partir de
então, discussão de casos para avaliação de processo restaurativo.A Unidade já teve
experiência de círculos restaurativos em casos envolvendo situação familiar, escola e
questões de disciplina.
Grupos de Estudo
Os grupos de estudo se formaram a partir do interesse dos profissionais tanto
da equipe técnica quanto da monitoria de conhecer mais sobre o tema à medida que
iam vivenciando praticas restaurativas. Os grupos de estudo acontecem, conforme a
combinação de cada Unidade:
CSE – Grupo de estudo com encontros quinzenais desde abril/06.
CASEF – Grupo de estudo com sistemática semanal desde julho/06.
CIPCS - Organização de grupo de estudo a partir da proposta do curso de
socialização e repasse dos conteúdos trabalhados em sala de aula.
CASE POAI – Os grupos de estudo formaram-se mediante a proposta do
curso.
CASE POAII - Grupo de estudo com foco no conteúdo do curso.
Curso de Práticas Restaurativas
Participação de treze profissionais da FASE no Curso de Práticas
Restaurativas, ministrado pelo Juiz da 3ª Vara do JRIJ de Porto Alegre. Cada Unidade
encaminhou dois profissionais para participar do curso. O curso prevê a socialização
dos conteúdos, com outros profissionais da Unidade o que vem acontecendo nos
grupos de estudo. Participa também do Curso uma das integrantes do Núcleo JR FASE
com o objetivo de subsidiar o Núcleo para o acompanhamento dos grupos nas
Unidades, bem como socializar com o Núcleo os conteúdos trabalhados no curso. O
Núcleo JR tem a proposta de facilitar o processo de discussão do conteúdo nas
Unidades, servindo como referencial para os profissionais que fazem o curso.
2. FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania)
No ano de 2005 a Coordenação Institucional de Justiça Restaurativa da FASC
destacou 12 técnicos, incluindo a representação de cada um dos oito Centros
Regionais de Comunidade onde o PEMSE - Programa Municipal de Execução de
Medidas Sócio-Educativas de Meio aberto funciona, para participarem do Curso de
Práticas Restaurativas, capacitando multiplicadores de diferentes regiões do Município
para aplicação de procedimentos restaurativos.
Além disto, constituiu um Grupo de Estudos sobre práticas restaurativas,
integra as estratégias do Núcleo de Práticas e Processos Restaurativos, instaurados na
FASC, com a função realizar reuniões de planejamento para implementação,
contemplando aprofundamento teórico e socialização dos procedimentos já instalados,
favorecendo que, progressivamente, sejam formados agentes multiplicadores na
instituição.
Reuniões do Núcleo de Práticas e Processos Restaurativos
Encontros sobre Práticas e Processos Restaurativos com a participação de
representantes institucionais. A composição deste Núcleo deu-se por indicação da
Presidente da FASC, sendo dividida em duas instâncias – um grupo organizador e
grupo multiplicador. O número de participantes neste Núcleo é de 18 pessoas, entre
técnicos da Coordenação da Rede Básica, da Coordenação da Rede Especializada,
Assessoria Jurídica, Assessoria de Planejamento, Coordenação de Recursos
Humanos, PEMSE e Direção Técnica.
Grupos de Estudo
Também foram realizados em 2005 encontros quinzenais de estudos sobre
Justiça Restaurativa pela equipe técnica do PEMSE – Programa de Execução de
Medidas Sócio-Educativas e encontros semanais de estudo organizados pela
Educação Social de Rua da Coordenação da Rede Especializada. Estes encontros
persistem no ano de 2006 com a mesma periodicidade.
Envolvimento de várias instâncias institucionais
No início de 2006 a FASC organizou um Seminário para Gerentes (primeira
turma) de equipamentos da rede básica e especializada, cujo tema foi Oficina sobre
Gestão de Conflitos e Mediação, para a qual as referências da Justiça Restaurativa
também contribuíram .
No ano de 2006, a FASC, através de sua Coordenação institucional, vem
desenvolvendo as seguintes atividades relativas à Justiça Restaurativa
Orientação para aplicação dos princípios e procedimentos restaurativos na
elaboração dos Planos de Atendimento dos adolescentes em cumprimento de
medida sócio-educativa de Meio Aberto, LA e PSC.
Estudos quinzenais em suas reuniões de equipe, utilizando o material
disponibilizado no curso oferecido ao grupo no ano de 2005 pelo Projeto
Justiça para o Século 21;
Nos Centros Assistência Social (CEAS), os Coordenadores Regionais estão
organizando discussões em suas equipes:
No CEAS Sul-Centro Sul foi realizada reunião em 02/06/2006 com 30
participantes.
No CEAS Restinga está agendada para o mês de outubro;
No CEAS Glória/Cruzeiro/Cristal será realizado na primeira quinzena de
novembro;
Realização de encontros semanais / quinzenais dos grupos de estudo, com
participação média de 6 a 10 pessoas por Centro Regional.
Promoção junto aos Programas de Atendimento Sócio-educativo e à Rede de
Apoio, atividades formativas de disseminação dos princípios, fundamentos
teóricos e metodológicos da Justiça Restaurativa, através de Curso e Oficinas,
contemplados pelo Projeto aprovado pela SEDH/DF. Curso com carga horária
de 15 h aula para aproximadamente 20 pessoas e oficina de supervisão com a
equipe de 20 h aula.
Participação das capacitações promovidas pelo Projeto Justiça para o Século
21.
Socialização, promoção e divulgação aos profissionais da FASC (Rede Própria
e Conveniada) o desenvolvimento da proposta de Justiça Restaurativa na
Instituição;
No âmbito das Escolas
As Coordenações Institucionais da Educação subdividem-se na esfera do Município e
do Estado.
1. SE (Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio Grande do Sul)
No ano de 2005, a Coordenação Institucional da SERS, que desde o segundo
semestre daquele ano vem mantendo uma servidora com dedicação exclusiva ao
projeto Justiça para o Século 21, além de destacar professores para o Curso de
Formação em Práticas Restaurativas, promoveu grupos de estudos sobre Justiça
Restaurativa nas escolas parceiras, que foram instalados em seis escolas estaduais.
Para viabilização destes grupos de estudos foi assegurado a todos os professores das
respectivas escolas que desejassem participar dos encontros o acesso facilitado pela
atuação do Gabinete da Secretaria de Educação, Divisão Porto Alegre.
A estratégia de ação utilizada foi a realização de modo descentralizado destes
Grupos de Estudos deslocando para o lócus das escolas o debate sobre Justiça
Restaurativa. A participação nos grupos de Estudos foi facilitada aos diferentes
integrantes do quadro da escola – professores e funcionários. A estratégia utilizada
para a adesão de participantes ao Grupo de Estudos foi a convocação no primeiro
encontro e a participação voluntária nos demais encontros. A Assessora Técnica da
Secretaria de Educação, designada para atuar junto ao Projeto, planejou e coordenou
todas as atividades do grupo de estudos, bem como manteve registro de todas estas
iniciativas. Os encontros também foram gravados em áudio para análise da equipe de
pesquisa que acompanha e avalia o Projeto.
Quanto à dinâmica dos encontros dos Grupos de Estudos é relevante destacar
que o envio antecipado de textos por meio eletrônico, a constituição de um grupo para
mala direta, também por meio eletrônico, tornando mais simplificada a comunicação, a
democratização da informação, mesmo para aqueles que não aderiram à participação
em todos os encontros, bem como a flexibilização de horários para incluir o maior
número de participantes foram iniciativas que contribuíram para a qualidade política do
processo.
As estratégias pedagógicas utilizadas pelo grupo de estudos, com a
apresentação do projeto, projeção de filme, discussão de textos, utilização de técnicas
para expressão dos diferentes pontos de vista, como grafodrama, favoreceu um
envolvimento de todos na reflexão e discussão dos conteúdos propostos bem como a
mobilização para iniciativas futuras que se refiram à implementação de práticas
restaurativas na escola. Os grupos de estudos se desenrolaram com uma média de
três a cinco encontros por Escola.
O número de pessoas atingidas nestes grupos de Estudos foram: Escola
Rafael Pinto Bandeira: 45 participantes; Escola Travassos Alves: 31 participantes;
Escola Ayrton Senna da Silva: 16 participantes; Escola Vila Cruzeiro do Sul: 16
participantes e Escola Tom Jobim: 28 participantes e Escola Senador Pasqualini: 23
participantes
Nos grupos de estudos desenvolvidos nas seis escolas antes identificadas os
mesmos textos foram indicados pela coordenação institucional da Secretaria junto ao
Projeto para condução dos estudos. São eles: “Uma escola para a paz”, de autoria do
Padre Marcelo Rezende Guimarães, “O que a justiça restaurativa não é”, de Fred
MacElrea, e “Em busca de um paradigma: uma teoria de Justiça Restaurativa”, de Paul
McCold e Ted Wachtel. Também foi indicado o texto “Justiça Restaurativa nas
Escolas”, de Brenda Morrison, enviado para as escolas em novembro com indicação de
data para análise e discussão em março de 2006.
A partir deste processo de mobilização nas escolas, alguns dividendos foram
sendo colhidos, como a instalação de uma sala para círculos restaurativos na Escola
Rafael Pinto Bandeira.
Inauguração da “Sala do Bem Viver”, destinada às práticas restaurativas, na Escola
Rafael Pinto Bandeira
As escolas parceiras vêm espontaneamente desenvolvendo iniciativas de
realização de círculos restaurativos na resolução de conflitos nas escolas. Ao
participarem das atividades de supervisão do Projeto, compartilham suas experiências
e fortalecem suas iniciativas da promoção de uma cultura de paz nas escolas. Estas
aplicações são realizadas no âmbito da gestão da própria escola e que não são
aquelas encaminhadas ao Sistema de Justiça da Infância e Juventude.
Círculos de Paz
No ano de 2006 a Coordenação Institucional da SERS está articulando ações
no sentido de viabilizar a implementação de Círculos de Paz nas escolas, como ação
introdutória à futura promoção dos Grupos de Estudos em Justiça Restaurativa e
realização dos Círculos Restaurativos, bem como tem estimulado o estudo do tema
Justiça Restaurativa no sentido da interface com as especificidades da Educação:
ensino Religioso, Educação Indígena e Educação Especial.
Através da Coordenação Institucional, neste ano de 2006 seguem sendo
implementadas atividades de capacitação internas junto às escolas parceiras do
Projeto, como a Oficina prevista para o mês de outubro de 2006 sobre Comunicação
Não Violenta e uma Jornada sobre Educação para a paz para apresentação da Carta
de Princípios da ONG e proposta pedagógica de criação dos Círculos de Paz nas
Escolas de POA.
2. SMED (Secretaria Municipal de Educação)
A SMED, Secretaria Municipal de Educação, adotou como princípio para a
organização dos grupos de estudos em Justiça Restaurativo, previstos no Projeto para
realizarem-se nas diferentes escolas participantes, uma instância inicial de estudos
centralizada, junto às dependências da própria Secretaria, na expectativa de constituir
as condições de receptividade e adesão das escolas para o Projeto e para os grupos
de estudos, por conseguinte.
Foram destacadas pela SMED oito escolas, cada uma pertencente às MicroRegiões do Conselho Tutelar, para integrar as iniciativas do Projeto. Foram critérios
adotados pela Secretaria, além da regionalização das escolas, a disponibilidade de
professoras que pudessem participar do curso de formação em práticas restaurativas
que fossem integrantes das equipes diretivas das escolas, com 40 horas e formação
em nível de Pós-Graduação e efetivas na SMED há mais de 10 anos.
As Escolas Municipais que integraram o Justiça 21 na primeira etapa foram:
EMEF Migrantes; EMEF Presidente Vargas; EMEF Chico Mendes; EMEF
Heitor Villa Lobos; EMEF Gabriel Obino; EMEF Vila Monte Cristo; EMEF Dolores
Alcaraz Caldas e EMEF Vereador Antonio Giudice.
A iniciativa do Grupo de Estudos da SMED foi planejada e coordenada pela
Coordenação Institucional da Secretaria Municipal para o Projeto Justiça 21, que
convidou os participantes para integrarem o encontro sem qualquer imposição. Assim,
os participantes que compareceram o fizeram de forma voluntária.
Foram realizados três encontros do Grupo de Estudos da SMED no ano de
2005, respectivamente nos dias 05.10.05; 19.10.05 e 09.11.05. O número médio de
participantes por encontro foi de nove pessoas. O conteúdo dos encontros de estudos
organizou-se em torno de textos, os mesmos indicados e anexados quando do relato
do grupo de estudos da Secretaria Estadual de Educação. Na primeira reunião foi
apresentado e discutido o texto “O que a Justiça Restaurativa Não é”; no segundo
encontro o texto “Uma escola para a paz” e no último encontro os participantes
procuraram organizar sua participação na Conferência Justiça para o Século 21. Os
encontros foram gravados em áudio para as atividades de pesquisa que acompanham
o projeto.
No ano de 2006 a SMED destacou outro professor para participar do Curso de
Práticas Restaurativas e persiste realizando os grupos de estudo e a divulgação do
Projeto Justiça para o século 21, além de contar com representação no
acompanhamento das formações do PEMSE – Programa de Execução de Medidas
Sócio-Educativas de Meio Aberto.
III – Local
1.
Local de atuação
As iniciativas das práticas restaurativas enfeixadas pelo Projeto Justiça para o
Século 21 estão referidas a distintos locais de atuação, cada qual
correspondendo a uma das quatro etapas estratégicas de aplicação – judicial /
socio-educação / educação / comunitária. Enquanto as três primeiras etapas já
apresentam um processo de implementação em franco andamento, a quarta
etapa ainda se encontra em fase de prospecção, razão pela qual não será
descrita no que se refere ao seu local de atuação.
Aplicação Judicial
A aplicação judicial das práticas restaurativas na Jurisdição da Infância e
Juventude está situada na CENTRAL DE PRÁTICAS RESTAURATIVAS – CPR
A Central de Práticas Restaurativas (CPR) representa a consolidação de um
espaço estratégico de aplicação de Justiça Restaurativa em processos judiciais
junto ao CIACA – Centro Integrado de Atendimento da Criança e do
Adolescente - porta de entrada do sistema de atendimento do ato infracional. É
uma instância onde convergem vários serviços de Justiça e Segurança.
Nesse local está sediado o núcleo de difusão
operacional das práticas restaurativas na Rede da Infância em Porto Alegre e
nele ocorre a atuação experimental, documentada em vídeo, que é
mensalmente supervisionada, de Coordenadores oriundos das diferentes
unidades institucionais engajadas no projeto.
É um espaço destinado à aplicação prática, testagem
e avaliação das práticas restaurativas, bem como à capacitação em serviço dos
atuais e novos Coordenadores de Círculos Restaurativos. Os casos
envolvendo infratores e vítimas e respectivos apoios são triados e
encaminhados para realização de Círculo Restaurativo como etapa inicial do
processo de execução da medida sócio-educativa, imediatamente após a sua
aplicação, ou seja, em regra imediatamente ou poucos dias após a ocorrência
da infração. Também são encaminhados para a Central de Práticas processos
suspensos, sem medida ainda aplicada, para que, através das práticas
restaurativas, sejam sugeridas formas pertinentes de responsabilização que
serão apreciadas judicialmente.
Aplicação nas medidas sócio-educativas.
A aplicação das práticas restaurativas nas medidas sócio-educativas
vem ocorrendo com o objetivo de fundamentar com valores e princípios
restaurativos a proposta pedagógica e os procedimentos que embasam os
planos individuais de atendimento dos adolescentes em cumprimento de
medida. Esta aplicação é levada a efeito em duas instâncias de execução: a
FASE (Programa de Execução de Medidas Sócio-Educativas de Privação de
Liberdade - PEMSEIS) e a FASC (Programa de Execução de Medidas SócioEducativas de Meio Aberto – PEMSE).
A FASE realiza a aplicação das práticas restaurativas em suas diversas
unidades de internação, quais sejam: CSE, CASEF, CIPCS, CASE POAI e
CASE POAII. Estas Unidades da FASE corresponde aos locais de aplicação da
justiça restaurativa no Programa de Execução de Medidas de Internação e
Semi-liberdade (PEMSEIS).
A FASC, através da inserção regionalizada e descentralizada do Programa das
Medidas Sócio-Educativas de meio aberto nos Centros Regionais de
Assistência Social, conta com oito unidades distribuídas nos diversos pontos do
Município, locais onde as práticas restaurativas estão sendo fomentadas.
Aplicação extra-judicial: nas escolas.
A aplicação da Justiça Restaurativa no âmbito escolar vem ocorrendo
nas escolas parceiras do Projeto, que participaram ou participam dos
processos de capacitação e formação continuada. Estas escolas são de origem
tanto Estadual como Municipal, como já referido nos itens anteriores.
O objetivo desta aplicação é de contribuir, através da difusão dos valores
e procedimentos metodológicos da Justiça Restaurativa, com a garantia dos
direitos humanos e a prevenção da violência nas relações em que crianças e
adolescentes participam, independente de sua conexão com o Sistema de
Justiça. O espectro desta aplicação está no nível da prevenção da
judicialização de conflitos que se apresentam nas escolas.
As escolas como locais de aplicação de Justiça Restaurativa não
guardam com o Sistema de Justiça, portanto, uma forçosa relação de
referência e contra-referência na rede de atendimento. Se as situações são
resolvidas no contexto escolar, através das práticas restaurativas, não são
encaminhadas ao Judiciário.
2.
Público alvo do projeto (abordagem sobre acesso à justiça)
2.1. Concepção de acesso à justiça
O Projeto Justiça para o Século 21 não se origina da intenção de
promover acesso à justiça, não ao menos no sentido das iniciativas que via de
regra se apresentam com essa intencionalidade, dirigidas à promoção ou
defesa de direitos de populações marginalizadas ou excluídas, ou ainda,
imbricadas com a idéia de ampliação, democratização ou mesmo massificação
de atendimentos em balcões, judiciais ou não, de resolução de conflitos.
Não se desconsidera a relevância desses propósitos e das iniciativas
desencadeadas para atingi-los, nem se as considera irrelevantes no âmbito do
próprio projeto. Antes, porém, enfatiza-se por mais relevante no campo
conceitual ressignificar a idéia de justiça à qual se pretenda ampliar o acesso.
Ou seja, antes de promover mais justiça, esclarecer que justiça se quer
promover. Na concepção do Projeto, o problema da ampliação do acesso à
justiça não se resolve por introduzir inovações tecnológicas, metodológicas,
gerenciais, organizacionais, estruturais, ou jurídicas, mas de resolver impasses
instalados exatamente no campo das concepções de justiça22 - questão
antecedente e sem cuja solução quaisquer das demais, que deveriam ser
conseguintes, tendem a implementarem-se sobre bases instáveis.
Assim, apesar de reconhecido como iniciativa oficial na linha da reforma
do judiciário; apesar de inserido oficialmente no âmbito do Poder Judiciário
gaúcho, apesar de amparado política e academicamente pela associação de
classe e pela escola da magistratura gaúchas, o Projeto Justiça para o Século
21 não se constrói como experiência gerencial ou de política judiciária voltada à
ampliação de capacidades operacionais e, conseqüentemente, à ampliação da
disponibilidade e acessibilidade aos serviços da justiça. Ao contrário, o Projeto
problematiza e desafia a comunidade dos seus operadores a uma desafiante
jornada de observação, investigação e crítica a respeito da própria concepção
de justiça atualmente instalada, das suas reverberações no contexto cultural,
dos seus condicionamentos funcionais, das suas malhas (e artimanhas)
institucionais e de suas implicações na vida dos usuários. A par disso, desafia
a refletir sobre de que modo essa concepção tenderia a reinstalar-se
inercialmente no bojo de qualquer esforço de ampliação do acesso à justiça
que não passasse pelos filtros de sua urgente ressignificação.
22
Ver Brancher, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social. In: SLAKMON, Catherine;
MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da
justiça e da segurança. Brasília – DF: Minstério da Justiça, 2006.
Por isso a fundamentação do projeto vem radicada numa vertente éticofilosófica que, embora dialogue com uma diversidade de outras fontes, pode
ser resumida na fórmula de Levinas23, para quem “a justiça é um direito à
palavra”. Contextualizamente, para o autor,
A substituição dos homens uns pelos outros, desrespeito original, torna
possível a exploração. Na história - história dos Estados - o ser
humano aparece como o conjunto de suas obras - vivo, ele é sua
própria herança. A justiça consiste em tornar novamente possível a
expressão em que, na não-reciprocidade, a pessoa se apresenta única.
A justiça é um direito à palavra.
De fato, não importa quanto mais se pretenda criar ou ampliar serviços
judiciais, ou abrir as portas do Judiciário, tudo continuará sendo inútil à
efetivação da justiça em sentido material enquanto não se declarem os
permanentes riscos de, com a ampliação do acesso à justiça tal como
culturalmente a acreditamos e funcionalmente a reproduzimos – tanto dentro
quanto fora do Poder Judiciário - se ampliarem apenas relações institucionais
cuja eficácia, como sói acontecer, pressupõe a incapacitação, a subjugação ou
a eliminação simbólica do outro. Menos ainda enquanto essas relações se
estabeleçam mediante complexas estruturas e fluxos de distribuição de
competências e de delegação poder, no bojo dos quais a palavra que
prepondera sempre é a do outro (das quais a última será a do juiz), ou seja,
uma palavra alheia que se faz ouvir por meio da verticalidade das imposições
coercivas, e cuja vontade se materializa pela autorização do emprego de uma
violência supostamente legitimada pelo pretexto do seu empregado a serviço
da proteção de coletividades, gerando um contexto em que o ser humano,
enquanto tal, não terá o mínimo espaço para comparecer.
Comentando as implicações da tormentosa provocação de Levinas, o
filósofo gaúcho Timm de Souza24 explicita:
Tem-se, por conseguinte, o cerne de uma nova teoria da justiça.
Preservar e promover a dignidade original da expressão significa: não
substituir os seres humanos por abstrações ou imagens deles, não
subsumir em uma Totalidade de gênero a 'irreprodutibilidade" do Outro,
em um processo de generalização das unicidades, raiz de cada
exploração.
23
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 278.
TIMM DE SOUZA, Ricardo. Sujeito, Ética e História: Levinas, o traumatismo infinito e a crítica
da filosofia ocidental. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, p. 146-148.
24
Desde esse ponto de vista, desafiar os óbices contemporâneos
relacionados à tarefa da distribuição da justiça implica questionar a própria
validade ética da idéia de distribuição da justiça, no sentido de atribuir a voz da
justiça a um ator externo e superior – judicial ou não, institucional ou não, mas
sempre um terceiro hierarquizado. Seja juiz, policial, assistente social,
psicólogo, pai ou professor, é fato constatado que essas personagens a quem
tradicionalmente se convencionou aceitar como investidas e legitimadas como
detentoras do poder de decidir ou de subsidiar decisões sobre conflitos (ou
seja, investidas, em circunstâncias mais ou menos formais, da função de “fazer
justiça”), em regra procedem mediante uma escuta apressada e superficial,
complementada por um caudal de imputações generalizantes e classificatórias
(hiperativo, antissocial, drogadito, infrator, impulsivo, sem crítica, contumaz,
etc.). Visto que tais práticas se reproduzem como dado abundante no cotidiano,
ao Projeto Justiça para o Século 21 não importa, a não ser metodologicamente,
onde se insiram, onde se localizem ou como se organizem esses espaços de
poder. Dentro ou fora do processo judicial, na apuração do ato infracional ou na
execução da medida sócio-educativa, no incidente disciplinar durante a
internação sócio-educativa, numa avaliação técnica, na sindicância para
apuração da falha atribuída ao técnico, numa reunião do centro de assistência
social, na escola, no posto de saúde ou na igreja, na porta da delegacia ou da
viatura policial, onde se exerça decisão e poder, sobretudo a respeito de
conflitos, será um espaço propício também à inserção de práticas restaurativas,
e, portanto, para que passem a se apresentar como oportunidades reais de
exercício da palavra pelos próprios interessados, com respeito à sua autonomia
e responsabilidade. Quando ocorrer assim, qualquer desses espaços será um
espaço propício à experiência de democratização da justiça, e com ela à da
ampliação do seu acesso, sempre que possa assegurar condições propícias
para uma experiência rigorosamente fundada nos valores restaurativos.
Resumindo, aos objetivos do projeto importa promover, mais do que
acesso à justiça, experiências de justiça.
2.2. Público direto
Os beneficiários diretos do Projeto são os usuários do Sistema de
Justiça, entre adolescentes autores de atos infracionais, seus familiares e/ou
apoiadores, vítimas, seus familiares e/ou apoiadores e representantes da
comunidade que participam de círculos restaurativos.
2.3. Público indireto
Os beneficiários indiretos do Projeto são profissionais/voluntários
representantes da rede de atendimento à infância e juventude e das
instituições parceiras que participam como base de apoio institucional à
implementação das práticas restaurativas e são alvo de ações de multiplicação
de conhecimento por parte dos coordenadores de círculos restaurativos
capacitados na Central de Práticas Restaurativas e no Curso de Formação em
Práticas Restaurativa. Também compõem este público indireto, crianças e
adolescentes usuários dos serviços e programas da rede de atendimento cujos
profissionais estão sendo capacitados pelos multiplicadores do Projeto:
Coordenadores, Co-Coordenadores, Capacitadores e Supervisores.
IV – Atores e seleção
1. Os facilitadores
Os principais atores na implementação dos procedimentos restaurativos
estão compreendidos em três distintas categorias interdepedentes, cujas
funções ficam articuladas a partir das várias iniciativas de capacitação e de
realização de círculos junto à Central de Práticas Restaurativas. A
consolidação da Central de Práticas representa a oportunidade de integração
progressiva de novos atores à função de Coordenadores de Círculos
Restaurativos.
A função de Supervisor ainda permanece a cargo exclusivo do
Capacitador-Consultor, mas profissionais já capacitados em 2005 (G11) estão
sendo preparados por ele a cumprir futuramente o mesmo papel no
treinamento dos colegas. Os atores do processo de aplicação das práticas
restaurativas são:
1. Co-Coordenador - Estágio preliminar de aproximação e prospecção,
posterior à iniciação teórica, no qual o interessado passa a auxiliar na
Coordenação de Círculos, mas ainda não assume integralmente a
responsabilidade pela sua condução;
2. Coordenador – Estágio no qual o interessado passa a assumir a
Coordenação de Círculos;
3. Capacitador – Estágio em que o interessado, a seu próprio critério
sentindo-se seguro no campo teórico ou no campo prático, passa a
referenciar grupos de estudo ou atividades de realização de práticas
restaurativas junto ao seu espaço de trabalho.
4. Supervisor –Estágio objetivado para a reprodução auto-sustentável
do processo, que contempla a expectativa de que, progressivamente,
algumas lideranças passem a assumir o referenciamento de
multiplicação no âmbito das respectivas instituições incumbindo-se
sobretudo de acompanhar as aplicações das práticas restaurativas,
zelando pela sua qualidade e fidelidade aos valores restaurativos.
Estes atores têm diferentes origens institucionais: Sistema de Justiça,
Sistema de Atendimento Sócio-Educativo (FASE e FASC), Sistema de
Educação (Escolas da Rede Pública) e Sistema de Proteção Integral (Serviços
de Saúde, Assistência e das demais políticas públicas).
2. O perfil e a seleção
2.1. Perfil
O perfil dos coordenadores de círculos é heterogêneo. São todos
profissionais com vínculo com instituições com alguma inserção no
atendimento à infância e juventude, que possuem formações diversas:
psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e professores, educadores sociais,
monitores, gestores, guarda municipal, enfim, um perfil variado.
2.2. Seleção
Os atores que são destacados para participarem em funções de
aplicação das práticas restaurativas não são selecionados. Os critérios
principais de participação são a respectiva pertinência institucional em relação
às instâncias parceiras do Projeto, com o respectivo apoio no nível da gestão e
do seu grupo de base de trabalho, além da manifestação livre do desejo desta
participação. Assim, o mesmo princípio da voluntariedade que se utiliza para a
participação dos usuários na realização dos círculos, também é aplicado para
os profissionais que ocupam função de facilitadores, neste caso, de
coordenadores, co-coordenadores, capacitadores e supervisores. São pessoas
que acorrem às atividades de sensibilização, capacitação e supervisão afetas
ao projeto, se identificam com a proposta e manifestam motivação para este
tipo de trabalho. No entanto, a participação está condicionada a realização
prévia do Curso de Iniciação e a manifestação de um engajamento
compromissado com os objetivos do Projeto como um todo, conforme já
descrito em item anterior.
3. O quadro atual
Atualmente a Central de Práticas Restaurativas conta com uma
pedagoga vinculada à 3ª. Vara do Juizado da Infância e Juventude (que exerce
as atribuições de coordenadora da Central), um pedagogo vinculado ao Projeto
Justiça Instantânea, do CIACA, três assistentes sociais da 3ª. Vara do Juizado
da Infância e Juventude, uma pedagoga da Secretaria Estadual de Educação e
uma pedagoga da Fundação de Assistência Social e Cidadania, todos
realizando círculos restaurativos a partir de demandas dos processos judiciais.
Também integram a equipe três estagiárias de Serviço Social.
Na condição de Co-coordenadores aptos a participarem junto à CPR e
de capacitadores que estão preparados para atuarem nos respectivos
contextos das instituições parceiras, tem-se o conjunto das 102 pessoas que
participaram ou participam do Curso de Iniciação. Estes profissionais têm
vínculos institucionais com o Sistema de Justiça, de Atendimento SócioEducativo e a Rede de Proteção, conforme indicado nos Quadros 2 e 3.
Junto à FASE a coordenação dos círculos tem sido assumida pelos
psicólogos, assistentes sociais e pedagogos que participaram ou participam
das atividades de capacitação e integram as instâncias de supervisão do
Projeto junto à CPR, constituindo atualmente um quadro de 24 profissionais.
Junto à FASC, 19 profissionais foram preparados para a realização de
círculos, entre psicólogos, pedagogos e assistentes sociais que, assim como os
profissionais da FASE, participaram ou participam das atividades de
capacitação e integram as instâncias de supervisão da CPR. Eles atuam como
multiplicadores na formação de outros coordenadores na sua rede institucional.
Junto às escolas municipais, 13 professores, entre os egressos da
primeira turma do curso de iniciação ou os participantes do curso atual,
apoiados por 8 guardas municipais foram preparados para coordenar círculos.
Em relação às escolas estaduais, 11 professores, dentre os que participaram
ou participam do curso de iniciação, estão preparados para coordenação de
círculos. Também têm inserção como multiplicadores na capacitação de outros
profissionais de sua rede institucional para atuarem como coordenadores de
círculos.
Em relação à rede, 12 profissionais foram capacitados ou estão em
capacitação no curso de iniciação para coordenar círculos. Também atuam
como multiplicadores em sua rede de inserção sócio-institucional na
capacitação de outras pessoas para também atuarem como coordenadores de
círculos.
V – As etapas dos procedimentos restaurativos
Os círculos restaurativos
O procedimento adotado nas práticas restaurativas para o Projeto
Justiça para o Século 21 é inspirado no modelo das conferências e, sobretudo,
na experiência neozelandesa, cuja inserção a exemplo daqui é oficial e cuja
acumulação é bastante específica na Justiça da Infância e da Juventude, onde
situada a primeira vertente do projeto local.
A denominação “Círculo” foi escolhida porque exprime tanto a disposição
espacial das pessoas no encontro restaurativo, quanto comunica os princípios
da igualdade e horizontalidade objetivados nesses encontros. Também foi
descartada a simples tradução da palavra do inglês “conferece”, que não
corresponde exatamente ao sentido da sua tradução literal para “conferência”,
em português.
O procedimento como um todo se divide em três etapas: pré-círculo
(preparação);
círculo
(realização
do
encontro)
e
pós-círculo
(acompanhamento).
Círculo Restaurativo em andamento na Central de Práticas Restaurativas
Círculos com ou sem participação da vítima principal.
Os fatos levados aos procedimentos restaurativos em regra acarretam
danos a diversas pessoas. Além da vítima diretamente atingida, denominada
vítima principal, e as pessoas ligadas a ela, também os familiares do ofensor, o
próprio ofensor, bem como membros da comunidade, podem ter sido atingidos
pelas conseqüências da infração, e por isso serão considerados como vítimas
secundárias.
O objetivo máximo do procedimento é obter a participação da vítima
principal e do ofensor, e suas comunidades de apoio, num encontro
restaurativo.
Ainda quando não queira participar pessoalmente, a vítima principal
pode ser representada no encontro por algum familiar ou amigo, ou se
manifestar por escrito, ou através de uma gravação. Nesses casos, o encontro
será denominado de “Círculo Restaurativo”, e sua ênfase terá por base as
necessidades da vítima principal.
Caso a vítima principal esteja inacessível ou não consinta em participar,
direta ou indiretamente, o círculo poderá realizar-se deslocando-se a ênfase
para as necessidades das vítimas secundárias, caso em que o encontro será
denominado de “Círculo Familiar”.
Coordenador e Co-coordenador.
Como regra, a coordenação dos círculos é realizada em dupla. Os
papéis de Coordenador e Co-cordenador são equivalentes e complementares,
e suas funções podem ser intercambiáveis ao longo do procedimento.
Usualmente o Coordenador tem um protagonismo mais definido, sendo
quem referencia o procedimento: é o responsável por impulsionar, implementar
e documentar as atividades de cada etapa, coadjuvado pelo Co-coordenador.
O Co-coordenador costuma atuar mais intensamente por ocasião do
círculo, quando pode auxiliar na interação entre os participantes e contribuir
com as intervenções do Coordenador trazendo suas próprias reflexões e
sugestões. Segundo ajustarem entre si, o Co-coordenador pode também
assumir nessa oportunidade uma função menos ativa, voltada à observação e
registro (anotações) do encontro.
Padrões Operacionais.
Roteiro de Procedimento Restaurativo.
Nas aplicações judiciais (e noutras, quando a entidade tiver firmado a
adesão aos procedimentos do Projeto Justiça para o Século 21), o
procedimento será orientado e documentado através de um formulário
padronizado, denominado “Roteiro de Procedimento Restaurativo”.
Esse formulário servirá como roteiro e instrumento de documentação
(rascunho manuscrito) das informações relativas a todas as etapas do
procedimento.
Os
progressivamente,
campos
conforme
correspondentes
as
etapas
deverão
forem
ser
preenchidos
sendo
cumpridas.
Oportunamente os dados serão passados a limpo e arquivados em meio digital
mediante o preenchimento dos formulários disponíveis na intranet do site
www.justica21.org.br.
Termo de Acordo
O acordo é formalizado mediante o preenchimento de formulário
específico, avulso com relação ao Roteiro de Procedimento Restaurativo, que
será expedido e assinado em três vias. Uma destina-se ao ofensor, uma
destina-se à vitima, e outra ficará em poder do coordenador para documentar o
procedimento.
Termo de Consentimento
É necessário garantir o esclarecimento e a plena informação aos
convidados para que decidam sobre a participação e zelar para que a
aceitação de participação seja voluntária e esclarecida.
A pessoa deverá assinar o Termo de Consentimento de livre
participação que autoriza gravação de áudio e vídeo e pesquisa de
acompanhamento da implementação do Projeto.
Passo a passo do Procedimento Restaurativo no Projeto Justiça para o
Século 21.
PRÉ-CÍRCULO
•
Apropriação do Caso
Ao primeiro contato com o caso, o coordenador deve inteirar-se de todas
as informações disponíveis. Quando possível, a leitura de documentos deve
ser complementada por contatos informais que tornem mais clara sua visão da
realidade do que aconteceu, incluindo os técnicos já envolvidos no
atendimento.
•
Resumo dos Fatos
O resumo dos fatos destina-se à leitura na instalação dos trabalhos do
círculo, e deve conter também informações como data, local, envolvidos e
testemunhas. Servirá para evitar divergências ao longo do procedimento sobre
como exatamente os fatos aconteceram, e para fixar claramente o foco do
círculo, evitando que o conflito seja tangenciado ou enfrentado de forma
superficial.
•
Composição do Círculo (Relação de convidados)
Além do ofensor e da vítima, e das pessoas espontaneamente indicadas
por eles para participarem do círculo, o Coordenador pode estimulá-los a fazer
outras indicações ou indicar ele próprio outras pessoas cuja presença
considere importante. Os convidados podem ser listados como apoiadores
(pessoas do relacionamento afetivo dos envolvidos, como parentes, amigos,
empregadores, etc) ou como referências comunitárias (líderes comunitários ou
religiosos,
policiais,
testemunhas,
relacionados às pessoas e/ou ao caso).
professores
e
outros
profissionais
•
Convite aos Participantes
Inicia pelo ofensor, o que evita a frustração da vítima que já tenha
consentido, caso depois o ofensor se recuse. No que se refere ao ofensor e à
vítima, o convite é feito mediante contato pessoal (reuniões pré-círculo), para o
qual se recomenda a mobilização e presença dos apoiadores. São prestados
esclarecimentos sobre o projeto, sobre a JR, funcionamento do círculo,
participantes, expectativas, efeitos. Confere-se o resumo dos fatos, marca-se a
data, horário e local para o círculo.
•
Reavaliação da Pertinência
Tão
logo
apropriado
do
caso,
ou
posteriormente
às
sessões
preliminares, o Coordenador poderá propor que seja reconsiderado se o caso é
mesmo adequado ao procedimento restaurativo.
Confidencialidade.
Nas orientações aos participantes será ressaltado o caráter confidencial
do conteúdo a ser tratado no encontro, implicações legais, restrições,
documentação para o processo, conteúdos para pesquisa e capacitações.
•
Logística e Preparativos Finais do Círculo.
O Coordenador deverá conferir e providenciar antecipadamente o que
for preciso para assegurar boas condições de realização do encontro, evitando
transtornos e demoras por ocasião do trabalho.
CÍRCULO
•
Concentração
Momento de inspiração e fortalecimento interno do Coordenador.
•
Acolhimento
Saudações e contatos iniciais que dão início informalmente à instalação
do círculo, é um momento decisivo na transição para a maior formalidade do
encontro. Recomenda-se especial cuidado ao acolhimento da vítima.
•
Instalação
Declaração de abertura dos trabalhos e auto-apresentação de todos os
presentes.
•
Introdução
Informações sobre os propósitos do círculo, explicação dos procedimentos que
serão seguidos, explicação do papel do coordenador, reiteração do termo de
consentimento.
o Leitura do resumo dos fatos
o Momento 125 – Foco na vítima
A vítima fala sobre seus sentimentos e necessidades atuais decorrentes dos
fatos. O ofensor diz o que ouviu a vítima dizer. A vítima confirma se o ofensor a
compreendeu. A seguir, podem falar a respeito as pessoas da comunidade de
apoio da vítima..
o Momento 2 – Foco no ofensor
O ofensor fala sobre seus sentimentos e suas necessidades atuais decorrentes
dos fatos. A vítima diz o que ouviu o ofensor dizer. O ofensor confirma se a
vítima o compreendeu. A seguir, podem falar a respeito as pessoas da
comunidade de apoio do ofensor.
25
A seqüência a seguir foi elaborada segundo as oficinas de Práticas Restaurativas realizadas
por Dominic Barter em Porto Alegre, e também segundo a sistematização das mesmas
oficinas elaboradas pelo Projeto-Piloto de Justiça Restaurativa em São Caetano do Sul.
(MELO; BARTER; EDNIR, 2006).
o Momento 3 – Foco nos fatos
O ofensor fala sobre as necessidades que estava procurando atender no
momento em que praticou os fatos. A vítima diz o que ouviu o ofensor dizer. O
ofensor confirma se a vítima o compreendeu. A seguir, podem a falar a respeito
as pessoas das comunidades de apoio.
o Momento 4 – Acordo
Essa etapa é introduzida fazendo um resumo das anteriores, mediante a
recapitulação das necessidades não atendidas manifestadas pelos
participantes. A seguir, o coordenador encorajará os participantes a fazerem
propostas para um provável acordo que lide com as necessidades antes
registradas, para assegurar a reparação ou compensação das conseqüências
da infração, e para que o fato não se repita: o ofensor fala se exite alguma
coisa que ele poderia dizer ou fazer para a vítima. A vítima fala se aceita. A
vítima fala se existe alguma coisa que poderia dizer ou fazer para o ofensor. O
ofensor fala se aceita. As comunidades de apoio falam se há alguma forma de
contribuir e apoiar no que foi proposto pelo ofensor e vítima.
•
Documentação
O formulário-Guia de Procedimentos Restaurativos, que já deverá ter ser
sido preenchido manualmente, passo a passo, ao longo do procedimento,
deverá agora ser completado e copiado em meio digital abrangendo todas as
etapas até o presente momento. Esses registros darão lugar à geração do
“Relatório Parcial”.
•
Comunicação dos Resultados do Círculo
Os resultados do círculo (notícia sobre sua realização, relatório de
conteúdo e documentação do acordo) devem ser comunicados pelo
coordenador à pessoa responsável (juiz, diretor, técnico, etc.), pelo
encaminhamento do caso ao procedimento restaurativo. Nos processos
judiciais essas pessoas de referência e procedimentos estão definidos e
constam de um fluxograma específico (ver adiante).
PÓS-CÍRCULO.
O Pós-círculo abrange a verificação do cumprimento do acordo, a
documentação e a comunicação dos seus resultados.
•
Verificação do Cumprimento do Acordo
O próprio acordo deverá ter definido claramente os responsáveis pelas
tarefas e pelos compromissos assumidos, a maior parte dos quais será
implementado imediatamente e a cargo dos próprios participantes. No período
previsto pelo próprio acordo para essas providências, o coordenador deverá
manter contato com os responsáveis para confirmar sua efetivação,
prontificando-se a ajudar na superação de eventual dificuldade. Nos casos
judiciais, quando o acordo contemplou a aplicação de medida socioeducativa, o
acompanhamento posterior será feito pelo técnico da medida. O papel do
Coordenador nesse caso é verificar se o atendimento está sendo efetivado e
acionar o Sistema de Justiça quando se fizer necessário.
•
Relatório complementar
Implementado o plano e cumprido o período de acompanhamento
fixado, o Coordenador preencherá e dará encaminhamento ao relatório
complementar.
•
Descumprimento do acordo
Se o acordo não for cumprido, a situação deve ser informada no relatório
complementar. Se não tiver sido expressamente prevista por ocasião do
acordo, a solução deverá ser avaliada caso a caso com os responsáveis pelo
encaminhamento. Entre as soluções possíveis pode-se decidir por (a)
realização de novo Círculo Restaurativo, (b) realização de um Círculo Familiar,
(c) encaminhamentos convencionais.
Fluxograma do Procedimento da Central de Práticas Restaurativas
A Central de Práticas Restaurativas, que já foi apresentada nesse
relatório, é um espaço de serviço interinstitucional destinado a promover
práticas restaurativas nos processos judiciais.
Antes de iniciar o processo
judicial, a Promotoria de Justiça pode fazer o encaminhamento direto de casos
à Central de Práticas Restaurativas. Iniciado o processo, o encaminhamento
pode ocorrer em qualquer fase do processo de conhecimento (JIN, 1ª e 2ª
Varas) ou do processo de execução (3ª Vara).
O segue as seguintes etapas:
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
O caso é indicado pela autoridade responsável.
A documentação disponível é organizada pelo respectivo cartório, que
inicia o preenchimento da planilha de acompanhamento na intranet, e
remete o processo ou dossiê à Central de Práticas Restaurativas (CPR).
O Coordenador da CPR distribui o caso e entrega a documentação ao
Coordenador do Círculo.
O Coordenador do círculo examina a documentação e avalia a
pertinência do caso e da sua atuação no caso.
O Coordenador do círculo, em consenso com a Coordenação da CPR,
escolhe o co-coordenador, convidando-o a seguir.
O Coordenador do círculo contata com o ofensor e com a vítima.
Coordenador e co-coordenador encontram-se com a vítima e o ofensor
(reunião pré-círculo).
Em caso de não-participação da vítima, Coordenador e co-coordenador
avaliam se é o caso de realizar-se o procedimento sem participação da
vítima (Círculo Familiar). Caso contrário, o processo será devolvido.
Coordenador e co-coordenador organizam a reunião (Círculo):
agendamento da sala, termos de consentimento, equipamento de
gravação).
O Coordenador do círculo atualiza a planilha de movimentação na
intranet e informa ao Coordenador da CPR quanto ao andamento
(aceitação ou não pela vítima, conversão do procedimento de círculo
para encontro data, horário e local da reunião).
Realizada a reunião, o Coordenador redige o Relatório Parcial (relatório
do pré-círculo e círculo) na intranet, atualiza a planilha e entrega uma via
impressa do relatório parcial, com o dossiê ou processo, à Coordenação
da CPR.
O coordenador da CPR encaminha o processo ou dossiê ao cartório de
origem, que atualiza a planilha de acompanhamento na intranet e
impulsiona os andamentos seguintes nos autos do processo.
Caso do processo judicial resulte aplicação de medida socioeducativa, o
cumprimento do acordo é acompanhado mediante contatos com o
técnico da medida.
•
•
•
•
Caso o processo tenha sido arquivado sem medida, o acompanhamento
é feito mediante contatos diretos do Coordenador com as partes.
O Coordenador preenche o relatório de pós-círculo na intranet e entrega
uma via impressa, junto com os originais do relatório manuscrito, ao
Coordenador da CPR.
A via impressa do Relatório Complementar (relatório do pós-círculo)
segue o mesmo fluxo processual do Relatório Parcial.
O Coordenador da CPR arquiva o relatório manuscrito.
A equipe
1. A composição da equipe
A equipe atual de trabalho está constituída pelas seguintes pessoas:
Operadores Jurídicos - Leoberto Brancher, Juiz da 3ª. Vara do Juizado da
Infância e Juventude, Eleonora Machado Poglia, Promotora da 3ª. Vara do
Juizado da Infância e Juventude, Lilia Hagemmann, Defensora Pública da 3ª.
Vara do Juizado da Infância e Juventude, Vera Lúcia Deboni, Juíza do Projeto
Justiça Instantânea, Letícia De Bem, Escrivã da 3ª. Vara do Juizado da Infância
e Juventude,
Equipe da Central de Práticas Restaurativas - Tânia Benedetto Todeschini,
Lenice Pons, Fabiana Nascimento de Oliveira, Viviane de Oliveira, Helson
Alfredo Silva, Claudia Meinerz e a estagiária de jornalismo Elisa, e as
estagiárias de Serviço Social Luciane Loureiro, Leisa Oliveira e Heloisa.
Equipes da Assessoria e do cartório da 3ª Vara, que sedia administrativa e operacionalmente o
projeto.
Grupo de Pesquisa - Beatriz Aguinsky, com o apoio das bolsistas Rochele
Pedroso de Moraes e Michele da Rocha Starosta (2005), Andréa Silva, Anne
Christian Menezes, Camila Coelho Marques, Cláudia Ávila, Clarissa Baldini,
Elisa de Andrade Abreu e Letícia Della Mea Tagliapietra (2005 e 2006),
mestrandas Lúcia Capitão, Fabiana Oliveira Nascimento, Malena Bello Ramos,
Silvia da Silva Tejadas, doutorandas Ecleria Huff de Alencastro e Zeli Machado
de Castro Gallo.
2. Apresentando a equipe (fotos)
VII - O tribunal e a Justiça Restaurativa (No caso de SCS se agregaria a
Escola)
1. A finalidade
Através das iniciativas do Projeto Justiça para o Século 21 o Sistema
de Justiça da Infância e Juventude busca contribuir para:
- Ampliar a satisfação dos usuários dos serviços jurisdicionais na
direção do que os estudos internacionais sobre Justiça Restaurativa
demonstram: as pessoas envolvidas na prestação jurisdicional sob este
enfoque - infratores, familiares, vítimas e comunidade - retiram maior senso de
satisfação com a atuação da Justiça nos conflitos que reclamam a intervenção
Estatal;
- Humanizar e substanciar pedagogicamente das Medidas SócioEducativas. A estratégia de promoverem-se os encontros restaurativos entre
famílias, vítimas e comunidades permite mobilizar conteúdos afetivos e gerar
campos de normatividade e controle sociais informais capazes de promover
maior efetividade pedagógica – traduzida por resolutividade na interrupção da
trajetória delitiva – dos adolescentes infratores, eis que reforça a possibilidade
destas medidas fazerem sentido na vida dos próprios adolescentes, de suas
famílias, das vítimas e também da comunidade. A humanização desta
intervenção, através dos princípios da Justiça Restaurativa, pretende produzir
direto impacto nos instrumentos usuais de intervenção jurídica e técnica que
constituem a execução de medidas sócio-educativas;
- Democratizar a Justiça. Através dos princípios da inclusão, da coresponsabilidade e da participação democrática, busca-se afirmar novas
possibilidades de “a Justiça” como valor e como instituição fazer maior sentido
ético para todos os envolvidos: adolescentes, familiares, vítimas, comunidade;
- Envolver a Comunidade. Especialmente em relação à sociedade,
busca-se
ampliar
a
receptividade
para
seu
maior
envolvimento
e
responsabilidade com a reversão de quadros de violências que reclamam a
intervenção
do
Sistema
de
Justiça,
implicando-a
ao
máximo
no
compartilhamento das concepções, das práticas e da avaliação pressupostas
no projeto. Para além de um modelo de Justiça, uma dimensão da Justiça que
envolve a comunidade, muitas vezes deixada de lado nos processos de
superação de conflitos e violências;
- Prevenir violências e desjudicializar o atendimento. O projeto deve
repercutir na prevenção da judicialização de conflitos e no fortalecimento dos
vínculos e relações mais amplas que são ameaçadas toda vez que uma
infração ocorre em um bairro, uma vizinhança, uma escola, uma rua, uma
família. Também implica em eliminar ou minimizar, nestes relacionamentos, a
lógica da culpabilização e da punição em favor da lógica do reconhecimento e
atendimento de necessidades que subjazem a todas expressões de violência
que reclamam por respostas consistentes de responsabilização em que o
cunho pedagógico seja, de fato, o aspecto central;
- Prevenir Reincidência. As repercussões sociais da implementação
deste modelo poderão traduzir-se, em termos de redução das reincidências dos
adolescentes infratores envolvidos. Também, em longo prazo, poderá contribuir
no sentido de fazer refluir o ingresso de novos feitos, que poderiam passar a
ser mais bem resolvidos em instâncias comunitárias.
2. A estrutura física
A estrutura física do Projeto contempla uma sala de trabalho da equipe da
Central de Práticas e uma sala de reuniões, instaladas junto ao Foro Central, e
uma sala para realização de círculos e reuniões, junto ao CIACA.
3. Os equipamentos necessários para o funcionamento
A consecução dos objetivos do Projeto requer a disponibilidade de
material pemanente para filmagem e edição de vídeos de círculos para
supervisão, para projeção de imagens e sons (projetor, tela, computador,
televisão) e também material de consumo como fitas mini-dv e dvds graváveis,
insumos para estas filmagens.
VIII – A Capacitação
1. A capacitação dos facilitadores
A criação da Central de Práticas Restaurativas, não foi apenas associada à
intensificação e testagem da metodologia das práticas restaurativas no campo
judicial, mas também dando lugar a um modelo de formação baseada nas
capacitações em serviço, nos quais as atividades dessa Central passariam a
ocupar uma função estruturante.
Primeiro, por servirem de oportunidade de atuação prática para os
Coordenadores e Co-Coordenadores em formação, bem como espaço de
observação privilegiada para os integrantes da rede de atendimento à infância
que participam presencialmente dos círculos porque de algum modo
relacionados ao caso.
Segundo, porque o material produzido nos círculos realizados na Central de
Práticas, regularmente documentados em vídeo tape, passaria a referenciar as
atividades de supervisão que se projetou serem ampliadas para a rede, e não
mais apenas ao pequeno grupo de coordenadores originalmente mobilizado,
aos quais vinham sendo dedicadas tais atividades.
Assim, o processo de formação no Projeto Justiça para o Século 21, inspirado
numa combinação de fatores e surtido em conjunto entre a Coordenação do
Projeto e o treinador Dominic Barter, prevê um processo de integração,
empoderamento e autonomização gradativa, abrangendo a formação em
serviço para o desempenho de funções, pelos capacitandos, que partem de
menor para
maior complexidade, a saber: Co-Coordenador, Coordenador,
Capacitador e Supervisor.
Grupo de Coordenadores e estagiárias em atuação em outubro de 2006
junto à Central de Práticas Restaurativas
A atividade de capacitação que se constitui no passaporte para a participação
nas oportunidades de formação junto à Central de Práticas é o Curso de
Iniciação em Práticas Restaurativas. Trata-se de um Curso com 40 horas-aula,
originado na capacitação realizada pelo projeto da Unesco (agosto a dezembro
de 2005, capacitando 61 pessoas), posteriormente utilizado num intensivo de
capacitação
para
45
guardas
municipais
(dezembro
2005),
e
mais
recentemente, com os conteúdos readequados, para duas turmas com o total
de 41 alunos em andamento entre agosto de dezembro de 2006;
Curso de Iniciação em Justiça Restaurativa, com 40 h/a,
já foi dirigido também a contingentes da Guarda Municipal de Porto Alegre
Quadro 3 - Abrangência da participação das diferentes políticas públicas e segmentos
institucionais no Curso de Iniciação em Práticas Restaurativas ( segundo semestre de
2006 – em andamento)
Instituições Participantes
Nº. de Participantes por
Instituição
Fundação de Assistêcia Social e de Cidadania (FASC)
7
Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE)
12
Poder Judiciário – Justiça Instantânea (JIN) e 3ª. Vara do
Juizado Regional da Infância e Juventude (3VJRIJ)
Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento – DECA – Polícia
Civil
Secretaria de Educação do Estado (SE)
Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana
(SMDHSU)
5
2
8
2
Secretaria Municipal de Educação (SMED)
4
Secretaria Municipal da Saúde (SMS)
1
Total
41
Fonte: Listas de presenças do curso. Sistematização NUPEDH – FSS/PUCRS.
Integrando o Sistema de Capacitação, articulam-se ao Curso de Iniciação duas
outras atividades: Formação Prática em Serviço e Jornadas de Supervisão.
Formação Prática em Serviço. Participação como Coordenador ou CoCoordenador em casos da Central de Práticas, ou desenvolvidas junto a algum
dos parceiros executores.
Jornadas de Supervisão. A supervisão das práticas consiste numa atividade
sistemática e permanente, baseada na exibição pausada dos vídeos filmados
durante os círculos, objetivando refletir-se sobre o ocorrido no caso concreto a
respeito dos passos do procedimento, da atuação do coordenador, reações dos
participantes, fidelidade aos valores e resultados alcançados. Foi prevista para
ocorrer mensalmente, durante três dias, com a presença do capacitador
Dominic Barter, distribuindo-se esses dias entre os formandos em preparação
para a função de supervisores (integrantes da Central de Práticas
Restaurativas), para capacitadores (alunos que já fizeram o curso de iniciação
em práticas restaurativas) e para coordenadores (membros dos grupos de
estudos formados junto às unidades de execução). Projetadas em janeiro,
começaram a ocorrer com essa sistemática somente em setembro por
dificuldades de contratação. Também são realizadas supervisões semanais
pela equipe de Coordenadores que atuam junto à Central de Práticas
Restaurativas (autosupervisão).
2. Os capacitadores
O professor Dominic Barter tem sido a referência de capacitação de
Coordenadores de círculos restaurativos do Projeto Justiça para o Século 21,
sendo ainda o supervisor destes círculos. Sua ampla experiência na mediação
de conflitos em mais diversas ambiências sociais e institucionais tem sido
valiosa no processo de ensino-aprendizagem de novas habilidades, atitudes e
conhecimentos que a implementação de práticas restaurativas requer de
operadores e profissionais socializados intelectualmente em um paradigma
retributivo.
O Curso de Iniciação em Justiça Restaurativa tem como capacitador,
nas edições vigentes, o coordenador do Projeto, Dr. Leoberto Brancher, Juiz de
Direito da 3ª. Vara do Juizado da Infância e Juventude. Em edições anteriores,
também contou com a colaboração dos Professores Dominic Barter, Dr. Afonso
Konzen (Escola Superior do Ministério Público) e Dra. Beatriz Aguinsky (PósGraduação da Fac. de Serviço Social da PUCRS. O a equipe dos profissionais
capacitados como coordenadores de círculos restaurativos (G11) também
participou da capacitação compartilhando suas experiências e aprendizagens.
3. Equipamentos importantes
São equipamentos essenciais no processo de capacitação que tem a
supervisão com base em casos concretos registrados em vídeo, a câmara de
filmagem, microfones de lapela, mesa de edição de vídeo, sala com acústica
adequada, equipamento multimídia para capacitação e projeção de vídeos e
imagens.
4. Planejamento
São realizadas Reuniões de Gestão e Planejamento semanais com toda
a equipe de implementação, com a participação dos operadores jurídicos e
também com a equipe de pesquisa. Nestas reuniões são tomadas as decisões
estratégicas das atividades de implementação das ações junto à Central de
Práticas Restaurativas, além de serem discutidos círculos na qualificação dos
serviços prestados pelo compartilhamento de experiências entre os membros
da equipe.
5. Oficinas
Workshops de Coordenação de Círculos – Desenvolvidos pelo treinador
Dominic Barter, orientando o passo a passo do procedimento do círculos. Estes
Workshops tem por finalidade sensibilizar a comunidade para práticas
restaurativas e difundir seus princípios e procedimentos. O público alvo são os
operadores da rede e profissionais do Sistema de Justiça e Atendimento da
Infância e Juventude.
Workshop de Práticas Restaurativas com o treinador Dominic Barter, em maio de 2005
Também
foram
adolescentes
realizadas
oriundos
das
Oficinas
sobre
instituições
Justiça
parceiras
Restaurativa
e
seus
com
familiares,
coordenadas pelo Professor Dominic Barter, atingindo um total de 46
adolescentes e 28 familiares.
Quadro 4 - Abrangência da participação de adolescentes e familiares
nas oficinas sobre Justiça Restaurativa por segmentos institucionais parceiros
Instituição
FASC
FASE
SE
SMED
TOTAL
Adolescentes
6
12
12
16
46
Familiares
4
10
6
8
28
Fonte: Lista de presença das oficinas
As imagens abaixo26 ilustram a avaliação dos adolescentes quanto a esta
atividade, cujo aproveitamento é sinalizado na perspectiva do compromisso
com uma cultura de paz através da prática de valores no enfrentamento de
situações de conflitos interpessoais:
Materiais produzidos na avaliação da Oficina de Justiça Restaurativa pelos adolescentes
6. Atividades abertas
Seminários, Conferências, Jornadas sobre Justiça Restaurativa, atividades
abertas a toda comunidade interessada e que procuram enfocar a contribuição
da
Justiça
Restaurativa
valorizando
aplicações
concretas
e
também
valorizando a contribuição neste campo de conhecimento de pessoas com
reconhecida competência teórica.
Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa da Escola Superior da Magistratura
da AJURIS – encontros sistemáticos onde são estudados e debatidos temas de
Justiça Restaurativa. Ocorrem mensalmente e são abertos à participação de
operadores do Sistema de Justiça,
do Sistema de Atendimento Sócio-
Educativa e representantes da rede.
26
Avaliação realizada pela pesquisa do NUPEDH através da utilização da técnica do
grafodrama para coleta de informações com os adolescentes participantes da oficina.
A neozelandesa Gabriele Maxwell e o público presente no Seminário de 21 de junho de 2005.
Relance do público da 1ª Conferência da Justiça para o Século 21
7. Avaliação do processo de aprendizagem
O processo de aprendizagem vem sendo sistematicamente avaliado
através da pesquisa que acompanha todo o processo de implantação das
práticas restaurativas através do Projeto Justiça para o Século 21. São
aplicados instrumentos de avaliação por oportunidade de cada Seminário,
Workshop, Curso ou atividade comunitária, como também nas supervisões. Os
instrumentos de coleta de dados da pesquisa, especialmente o roteiro de
entrevista semi-estruturada que é aplicada com coordenadores de círculos,
avaliam especificamente, entre outros indicadores, o aspecto da capacitação.
Através destes instrumentos os próprios capacitandos podem avaliar seu grau
de preparação para a responsabilidade coordenar círculos. Também os
usuários, através de instrumento correspondente, avaliam a capacitação dos
coordenadores para atuarem na condução dos círculos restaurativos. As
informações colhidas através da pesquisa, após submetidas ao processo de
análise de conteúdo – tendo por fonte as expressões dos capacitandos em
enquetes, questionários da avaliação, entrevistas - indicam alto grau de
satisfação com o processo de capacitação, como se vê nos quadros que
seguem:
Quadro 5 – Avaliação do Curso de Formação em Práticas
Restaurativas (2005/2)
MUITO
BOM
%
Iniciativa para a realização do curso
40
Horário de realização do curso
32
93
74,4
Época da realização do curso
28
Local da realização do curso
28
PREPARAÇÃO DO CURSO=43
%
BOM
65,1
65,1
3
11
14
14
%
REGULAR
6,9
25,5
32,5
32,5
0
0
1
1
0
0
2,32
2,32
NÃO
SATISFATÓRIO
%
0
0
0
0
0
0
0
0
NÃO
RESPONDEU
%
0
0
0
0
0
0
0
0
AVALIAÇÃO
Organização /coordenação do curso
34
Nível das atividades desenvolvidas
Vinculação do evento com minha realidade
profissional
29
36
79,06
67,4
83,7
9
13
7
29,9
30,2
0
16,27
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
2,3
0
No seu conjunto, o curso foi:
39
O meu aproveitamento no curso foi:
25
A seleção de conteúdo foi:
33
O programa geral do curso foi:
31
A atividade de oficinas foi:
20
90,6
58,13
76,7
72,09
46,51
4
18
10
11
22
9,3
44,86
23,25
25,5
51,16
0
0
0
0
1
0
0
0
0
2,32
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
2,3
0
DESEMPENHO CAPACITADORES
Prof. Temas: O Sistema de Garantia de
Direitos da Infância e Juventude e a
perspectiva de rede; JR fundamentos
teóricos
Domínio do conteúdo
42
Clareza na abordagem do tema
42
97,6
97,6
1
1
2,32
4,32
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
90,6
Didática (uso dos exemplos, recursos, etc. )
Ênfase nos pontos mais importantes do
program,a e aplicabilidade na prática dos
temas enfocados
39
Aproveitamento do tempo
Prof. Temas: Doutrina da Proteção Integral;
Responsabilização Penal Juvenil e
Garantismo
39
Domínio do conteúdo
40
37
86,04
90,06
93
93
4
9,3
0
0
0
0
0
0
6
13,95
9,3
0
0
0
0
0
0
0
0
0
4
3
2
6,97
4,65
0
0
0
40
Didática (uso dos exemplos, recursos, etc. )
Ênfase nos pontos mais importantes do
programa e aplicabilidade na prática dos
temas enfocados
40
93
3
6,97
0
0
0
0
35
18,6
2,32
0
0
0
0
41
81,3
95,34
8
Aproveitamento do tempo
0
0
0
0
0
0
Clareza na abordagem do tema
1
0
0
0
0
0
0
0
1
0
2,3
0
0
0
0
0
0
Prof. Tema: JR princípios éticos
Domínio do conteúdo
43
100
90,6
0
0
0
0
0
39
90,6
4
9,3
0
0
0
0
0
0
35
8
0
0
0
0
0
0
31
18,6
23,25
0
Aproveitamento do tempo
Equipe da Implementação da Justiça
Restaurativa Piloto MJ / PNUD – Tema:
JR na prática
81,3
74,09
0
2,3
Domínio do conteúdo
32
74,4
11
10
25,58
23,25
0
0
0
0
Didática (uso dos exemplos, recursos, etc. )
Ênfase nos pontos mais importantes do
programa e aplicabilidade na prática dos
temas enfocados
34
79,6
8
8,6
1
2,32
0
0
0
0
31
27,9
18,9
0
0
0
0
0
0
0
35
72,09
81,39
12
Aproveitamento do tempo
0
0
0
Fonte: Instrumentos de Avaliação do Curso de Formação em Práticas Restaurativas
sistematizados pela pesquisa do NUPEDH, FSS/PUCRS
A avaliação positiva dos participantes foi qualitativamente expressa por
observações como “Proporcionaram clareza e nitidez às nossas relações”,
“Ótimo para crescimento profissional”, “fomos motivados a repensar a nossa
prática, a reconstruir, reformular, a compartilhar, a escutar”, “Instiga a continuar
os estudos, experimentar possibilidades que garantam maior dignidade aos
0
0
33
0
0
0
0
1
Clareza na abordagem do tema
8
0
0
0
0
0
0
Didática (uso dos exemplos, recursos, etc. )
Ênfase nos pontos mais importantes do
program,a e aplicabilidade na prática dos
temas enfocados
1
0
0
0
39
10
0
0
0
Clareza na abordagem do tema
76,74
4
0
9,3
0
nossos adolescentes e famílias”, “Aumento do saber”, “fator de fomentação de
articulação”. Um dos participantes avaliou seu aprendizado como “uma
possibilidade de, através da educação, recolocar o adolescente no seu lugar
social, estimulando-o a reformular sua ação e resgatar seu sonho”;“Foi um
momento de intensa aprendizagem, sinto-me gratificada em participar deste
grupo, estimula a continuar realizando meu trabalho com empenho em realizar
transformações, apesar das dificuldades.” Seis participantes expressaram que
o curso em práticas restaurativas possibilitou além do crescimento profissional,
crescimento pessoal e sete reforçaram a importância da continuidade dos
cursos para avaliar os avanços em relação à aplicação dos princípios da justiça
restaurativa.
Foi destacada também a importância dos encontros de formação como
forma de articulação da rede de serviços como foi evidenciado a seguir:
“Conseguiu efetivamente mobilizar e envolver segmentos da rede”.
As expressões de satisfação em relação ao curso foram vocalizadas de
diferentes maneiras, alguns utilizaram a forma gráfica, desenhando uma
carinha alegre ao final do depoimento. O aprendizado e as experiências
vivenciadas no curso representaram de uma forma ou outra, para os
participantes, um “desafio”, “uma previsão positiva para um futuro melhor”, uma
“ressignificação das relações”, “uma semente que foi plantada e prepara-se
para a rega”, “um acolhimento paciencioso e valoroso”, entre outros, revelando
“desassossego” e um “desafio para a continuidade da vida no planeta”.
Entre as sugestões levantadas pelos participantes estão:
“Oficinas poderiam ter sido mais dinâmicas”, “Espero podermos
dar continuidade”, “Necessidade de encontros sistemáticos”,
Maior número de oficinas práticas (10 pessoas) “para fortalecer a
técnica utilizada com os valores e princípios restaurativos”; “Maior
tempo para o debate e discussão para todos poderem se
manifestar”, “colocar em prática os conhecimentos adquiridos”;
“Capacitação com conteúdo específico para os professores;
“formação de grupo de estudos do curso-continuidade de
encontros do grupo, ao menos uma vez por mês para relatar
sobre a JR nas instituições”; “Possibilidade de professores
conviverem com a prática restaurativa”; “Análise de vivências em
outros locais”; “Maior capacitação dos profissionais em educação
para trabalho com adolescentes infratores”; “Outros encontros
para vermos o quanto avançamos na JR”, “mais práticas
restaurativas, além da justiça restaurativa”.
Estas sugestões foram incorporadas na continuidade do processo de
capacitação em 2006.
Entre as dificuldades levantadas pelos participantes torna-se presente a
expectativa de conteúdos mais práticos que teóricos como expectativas de
capacitação: “linguagem técnica que muitos dos participantes não dominaram”,
“penso que a forma explanativa deixou ou tornou um pouco cansativa”.
As narrativas dos participantes revelaram em sua grande maioria,
aspectos positivos e sugestões referentes à continuidade e multiplicação do
aprendizado em demais esferas da sociedade conforme o relato a seguir:
...entendo que este tipo de experiência deve ser repassada adiante em outros
meios da sociedade, para que talvez a justiça possa ser melhor entendida e
desenvolvida em nossa sociedade.”
Quanto à avaliação dos módulos práticos do curso que contaram
com o professor Dominic Barter como facilitador, foram entregues 55
instrumentos para avaliação dos cursos de formação em práticas restaurativas
no dia 31/08/2005, Projeto Justiça Para o Século 21- Justiça Restaurativa,
sendo que destes, 22 foram retornados, revelando um alto índice razoável de
devolução, equivalendo a 40% dos respondentes.
Preparação
Iniciativa da
realização
Horário de
realização
Época de
realização
Local
Avaliação
Organização/
Coordenação
Nível das
atividades
Quadro 6 – Avaliação do Workshop JR
MB
B
R
NS
22 (100%)
0%
0%
0%
14 (63,64%)
14 (63,64%)
0%
0%
15 (68,19%)
19 (86,4%)
MB
7 (31,8%)
3 (13,6%)
B
0%
0%
R
0%
1 (4,54%)
NS
18 (81,8%)
3 (13,6%)
0%
0%
16 (72,7%)
4 (18,20%)
1 (4,54%)
0%
Vinculação com
realidade
profissional
18 ( 81,8%)
4 (18,20%)
0%
0%
No seu conjunto
o evento foi
16 (72,7%)
5 (22,7%)
1 (4,54%)
0%
Meu
aproveitamento
12 (54,54%)
9 (40,9%)
1 (4,54%)
0%
foi
Seleção do
conteúdo
16 (72,7%)
5 (22,7%)
1 ( 4,54%)
1 ( 4,54%)
O programa foi
16 (72,7%)
5 (22,7%)
1 (4,54%)
0%
Desempenho
do palestrante
MB
B
R
NS
Domínio do
conteúdo
20 (90,9%)
2 (9%)
0%
0%
Ênfase pontos
importante e
aplicabilidade
17 (77,3%)
4 ( 18,2%)
0%
1 (4,54)
práticas dos
temas
Aproveitamento
do tempo
16 ( 72,7%)
5 (22,7%)
0%
1 (4,54)
Fonte: Instrumentos de Avaliação do Curso de Formação em Práticas Restaurativas
sistematizados pela pesquisa do NUPEDH/NEPEVI da FSS/PUCRS
Em termos qualitativos, os participantes manifestaram as seguintes
observações:
“A atividade mexeu muito com as minhas convicções”;“ A
iniciativa e a realização do evento foram altamente
satisfatórias. Parabéns!”;“ Devem continuar com esses
encontros sobre o tema”;“Continuação com vínculo do
grupo e ficar informado de outros encontros, outras
jornadas. Aumentar o número de informações sobre a
Justiça Restaurativa e do funcionamento dela nas
atividades do nosso dia a dia”;“O curso está me
proporcionando o contexto com uma nova concepção de
justiça que está em fase de implementação e que se
contrapõe ao modelo atual de justiça retributiva no qual fui
criado e que atuei. Nesse ponto é extremamente
gratificante(...), é diferente de tudo o que estudei e convivi
até hoje”;“Tem sido excelente”;“Encanta a serenidade e
confiança que o palestrante conduz a reflexão de conteúdo
tão denso e de tanta sensibilidade.”
A avaliação do Projeto por parte dos seus diferentes destinatários, além
de valer-se de questionários, grafodrama e enquetes, utiliza entrevistas
individuais com os participantes de círculos restaurativos como instrumento de
coleta de dados. São entrevistas semi-estruturadas, cujo roteiro apresenta
questões específicas para que os entrevistados (usuários, operadores,
gestores) avaliem até que ponto a capacitação está se materialização na
qualidade dos serviços prestados. Para ilustrar, são trazidos dois extratos de
entrevistas da pesquisa em andamento no ano de 2006 na abordagem do
indicador capacitação, avaliado pelo público do Projeto:
“Gostei muito da coordenadora...porque ela falou as coisas
bem claras e bem certas.” (Adolescente da FASE que
participou de Círculo avaliando a atuação da
Coordenadora).
“Em termos da qualificação, da equipe, das pessoas, do
nosso conhecimento (...) eu penso que tenha sido um
grande ganho, assim, e o que eu percebo é que a gente já
começa a se olhar de uma forma diferente, né. A gente
começa a olhar o outro de uma forma diferente. Então isso,
sem duvida, te qualifica, te faz crescer como pessoa, como
profissional e tal. Então, nesse sentido, eu acho que foi
assim, uma possibilidade ímpar de a gente poder estar se
reorganizando e oxigenando o trabalho.”(operador do
Sistema de Atendimento Sócio-Educativo avaliando sua
experiência com a capacitação no Projeto)
8. Material didático
8.1. Recurso pedagógico
O projeto vem se valendo da filmagem de círculos restaurativos como
um fundamental instrumento pedagógico para a capacitação. Os vídeos são
apresentados nos encontros de supervisão e permitem, através da discussão
dos casos concretos, das dificuldades que representaram, das possibilidades
que suscitaram, um aprendizado coletivo para todos os participantes.
Outro recurso pedagógico que tem demonstrado ser da maior relevância
para os coordenadores do Círculo é o Manual
8.2. Democratização
A ferramenta por excelência democrática de que o Projeto vem se
utilizado é o website www.justica21.org.br. Neste site há a possibilidade de
acesso de todos os parceiros e também da comunidade em geral, de
conteúdos e informações que permite a participação em atividades abertas à
comunidade do Projeto, a ampliação de conhecimentos sobre o tema, a
socialização de experiências sobre J.R., e sua conexão em uma comunidade
virtual de Justiça Restaurativa.
Também o folder elaborado para orientação do público usuário e o
manual de procedimentos do coordenador de círculos (guia de procedimento
restaurativo, termo de acordo e termo de consentimento) favorecem um acesso
democrático às informações indispensáveis para a participação e realização
dos círculos restaurativos.
8.3. O material já produzido e os projetos
O Projeto Justiça para o Século 21 tem, como um de seus mais
reconhecidos produtos, uma apostila que sistematiza os conteúdos conceituais
adotados no âmbito do projeto a respeito da Justiça Restaurativa, e também
dedica um capítulo à sistematização do procedimento em si, consolidando a
padronização e roteirização das rotinas técnicas e operacionais da realização
das suas diversas etapas. Esse material é complementado pela publicação de
um conjunto de padrões operacionais destinados à orientação do público
usuário (folder) e do próprio coordenador (guia de procedimento restaurativo,
termo de acordo e termo de consentimento). Incluindo um processo de
sistematização do fluxo operacional dos procedimentos retaurativos, a apostila
também contempla a utilização de um sistema on line para digitação e
armazenamento dos relatórios de atendimento, que também alimentará um
banco de dados capaz de gerar estatísticas automáticas sobre a aplicação das
práticas restaurativas no âmbito do projeto e auxiliar no processo de
monitoramento.
Além disto, destaca-se como material já produzido através da
experiência do projeto, a publicação de três artigos sobre sua implementação27.
27
BRANCHER, Leoberto Narciso; AGUINSKY, Beatriz Gershenson. A justiça em conexão com
a vida: transformando a justiça penal juvenil pela ética da justiça restaurativa. Juizado da
Infância e Juventude, Porto Alegre, v. 3 e 4, p. 31-36, 2005; BRANCHER, Leoberto Narciso;
AGUINSKY, Beatriz Gershenson. Juventude,Crime & Justiça: uma promessa impagável. In:
ILANUD; ABMP; SEDH; UNFPA.(org.). Justiça, Adolescente e Ato Infracional. São Paulo, 2006;
e Brancher, Leoberto. Justiça, responsabilidade e coesão social. In: SLAKMON, Catherine;
MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da
IX – As parcerias institucionais
São parceiros institucionais do Projeto todos os firmatários do Protocolo
de Intenções pela Justiça no Século 21: 3ª Vara do Juizado Regional da
Infância e da Juventude de Porto Alegre; AJURIS - Associação dos Juízes do
Rio Grande do Sul; Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente de Porto Alegre; Defensoria Pública da 3ª Vara do Juizado
Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre; Escola Superior da
Magistratura da AJURIS; Escritório Antena da UNESCO no Rio Grande do
Sul; Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul; FASC - Fundação de Assistência Social e Cidadania do
Município de Porto Alegre; FASE - Fundação de Atendimento Sócio-Educativo
do Estado do Rio Grande do Sul; Fundação Escola Superior do Ministério
Público do Rio Grande do Sul; Projeto Justiça Instantânea; 3ª Promotora de
Justiça da Promotoria de Justiça Especializada da Infância e da Juventude de
Porto Alegre; Secretaria de Estado da Educação do Rio Grande do Sul;
Secretaria Municipal da Educação de Porto Alegre; Secretaria Municipal da
Juventude de Porto Alegre; Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre;
Secretaria Municipal de Coordenação Política e Governança Local de Porto
Alegre; Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana de
Porto Alegre.
X - Os casos concretos
1. As estatísticas28
A natureza do processo adotado para a investigação do processo de
implementação das iniciativas do Projeto tem sido qualitativa. No entanto, a
abordagem metodológica da pesquisa alcança informações qualitativas que
justiça e da segurança. Brasília – DF: Minstério da Justiça, 2006.
28
As informações apresentadas são provenientes do processo de pesquisa que acompanha o
Projeto desenvolvido pela Faculdade de Serviço Social da PUCRS.
são quantificáveis. Em sua complementaridade, estas duas dimensões
(qualitativa e quantitativa) são apresentadas de modo agregado de acordo com
cada um dos âmbitos de aplicação do Projeto.
No âmbito da Aplicação Judicial
Considera-se que o ano de 2005, por constituir-se em um momento
inaugural da implantação do Piloto de Porto Alegre, apresentou desafios
específicos de construção de toda a metodologia de trabalho para a
organização, realização e acompanhamento dos círculos restaurativos, que a
priori não estava dada. Esta demanda teve repercussões na prevalente
alocação da energia do grupo de trabalho, com envolvimento substantivo em
exigências de capacitação para o novo, engajamento na concepção,
planejamento, organização e padronização de procedimentos, desenvolvimento
de novas habilidades, em detrimento de números significativos em termos de
quantidade de círculos realizados. O foco, pois, esteve mais centrado na
prospecção de processos que na afirmação de resultados. Esta, inclusive, a
principal função dos projetos pilotos: o desenvolvimento de novos processos,
novas metodologias, novas tecnologias sociais, etc.
Na vigência do primeiro ano do Piloto, foram encaminhados para equipe
de implementação, 100 casos (processos) para avaliação da possibilidade de
instauração
dos
círculos
restaurativos.
Destes,
são
registrados
33
procedimentos de pré-círculos que não colheram continuidade em círculos
restaurativos. As dificuldades que convergiram para a não realização destes
círculos, que contaram com esforços de abordagem dos coordenadores,
estiveram ligadas a dificuldades de localização das partes, dificuldades de
contato com as partes, não aceitação das partes em participar, intercorrências
na condição de saúde dos convidados, o fato do adolescente não assumir a
autoria do ato infracional, sofrimento psíquico do adolescente, e temor da
vítima em participar. Destes esforços, foi surtida a realização de 8 círculos
restaurativos no ano de 2005. Todos resultaram em acordos, total ou
parcialmente cumpridos (7 casos), sendo registrado um caso com acordo não
cumprido.
Os atos infracionais praticados por adolescentes que participaram de
círculos restaurativos no ano de 2005 foram distribuídos entre roubo, dano,
furto e lesões corporais.
As informações sócio-demográficas quanto aos adolescentes que
participaram de círculos restaurativos no ano de 2005 são apresentadas no
quadro abaixo:
Quadro 7 – Processos com círculo em 2005: dados dos adolescentes participantes
Procedênci
Nº a
Estud
Idade Sexo
Etnia Escolaridade a
Região de
Moradia
Branc
9
P.Alegre
24 N.C*.
17 a
Masculino o
17 a
Masculino Negro N. C*
3º Ano do EF Sim
Micro 3
Não
Micro 4
Branc
30 P.Alegre
14 a
Masculino o
6ªsérie EF
Sim
Micro 7
30 P.Alegre
14 a
Masculino Negro 6ªsérie EF
Sim
Micro 7
33 P.Alegre
14 a
Masculino N.C*. 6ªsérie EF
Sim
Micro 5
Sim
Micro 5
Não
Micro 5
Sim
Micro 8
6ª série do
37 P. Alegre
15 a
Masculino Negro EF
Branc 6ª série do
43 P.Alegre
17 a
Masculino o
EF
Branc 7ª série do
49 P.Alegre
14 a
Masculino o
EF
4ª série do
66 P.Alegre
14 a
Masculino Negro EF
Sim
Micro 2
*N.C.: Não consta. Dados não informados nos documentos dos processos judiciais analisados
pela pesquisa documental – NUPEDH – FSS/PUCRS
Fonte: Processos Judiciais de Execução de MSE da 3a. Vara do JRIJ/POA
No ano de 2005, quanto à participação nos círculos restaurativos no
âmbito da aplicação judicial, são registradas presenças, além do coordenador e
co-coordenador, o adolescente, a vítima, familiares do adolescente (família
ampliada – além de pai, mãe, irão, tios) e apoiares da vítima, representantes da
rede de atendimento dos serviços de assistência e saúde e vizinha do
adolescente.
No ano de 2006:
No segundo ano de implantação do Projeto, ainda considerado em fase
Piloto, portanto estando focado na definição e qualificação de processos e
serviços, cotam-se, até a presente data29, 105 casos que foram encaminhados
para a Central de Práticas Restaurativas. Destes, 51 estão em fase de précírculo (iniciada ou encerrada), 22 resultaram em círculos restaurativos já
realizados (17 círculos com vítimas e 5 círculos familiares), dos quais três
situações já estão com pós-círculo concluído e 18 foram distribuídos para a
equipe e ainda não foram iniciados. Todos os 22 círculos realizados resultaram
em acordos.
É significativo ressaltar que dos 87 casos que já tiveram algum tipo de
intervenção dos coordenadores de círculos, 11 foram concluídos na etapa de
pré-círculo por recusa de participação (sendo 6 recusas dos adolescentes ou
suas famílias e 5 recusas das vítimas). Também ocorreu a interrupção dos
procedimentos restaurativos no pré-círculo em 2 casos em que o adolescente
negou a autoria do ato infracional e em 1 caso em que houve decisão judicial
no sentido de interromper-se o procedimento restaurativo.
Os dados sócio-demográficos dos adolescentes que participaram dos
círculos no ano de 2006, bem como a categorização dos atos infracionais e a
análise do cumprimento de acordo ainda estão sendo consolidadas uma vez
29
20/10/2006
que o processo, tanto de intervenção quanto de coleta de dados ainda está em
plena execução no momento da elaboração do presente relato30.
No âmbito da Aplicação nas Medidas Sócio-Educativas
A FASE realizou, desde o inicio da parceria com o Projeto Justiça para o
Século 21, entre o segundo semestre de 2005 até a presente data31 139 (cento
e trinta e nove) círculos restaurativos. A análise das planilhas de registros de
dados, referentes ao número de círculos realizados em cinco Unidades de
Atendimento da FASE, permite observar a abrangência de casos, nos quais os
profissionais da FASE valeram-se da proposta da Justiça Restaurativa na
intervenção técnica e como subsídio para a avaliação semestral da medida
sócio educativa.
Em duas Unidades - CASE POA I e CASE POA II - todos os
adolescentes que, neste período de vigência do Piloto, tiveram sugestão de
progressão da medida sócia educativa nos Relatórios Avaliativos, vivenciaram
círculos restaurativos.
Os círculos restaurativos apresentaram em sua maioria acordo
restaurativo (92,7%), sendo que 75,6% destes acordos foram ou vêem sendo
cumpridos. Em alguns casos ficou prejudicada a verificação da concretização
do acordo diante de informações incompletas nos registros técnicos da
instituição.
Os acordos dos círculos restaurativos estão, na proposta da Justiça
Restaurativa na FASE, vinculados ao Plano Individual de Atendimento e à
progressão da medida sócio educativa. Desta forma, estes acordos
apresentam responsabilizações dos participantes, no que tange a apoio e
sustentação de ações relativas a tratamento de saúde, acompanhamento
psicoterápico, inclusão no mercado de trabalho (na grande maioria das vezes,
mercado informal), alternativa de moradia para o pós-institucional e inserção
em atividades esportivas.
30
31
20/10/2006
20/10/2006
Apesar de mais da metade dos acordos provenientes dos círculos
restaurativos terem a avaliação positiva no que concerne ao seu cumprimento,
ainda assim, sabe-se que o sucesso e exeqüibilidade dos acordos dependem
da dosagem certa, quanto a prazos e definições de quem será responsável
pela concretização do acordado, no sentido de apoiar o adolescente ou outro
responsável pelo acordo na efetivação do mesmo.
Cabe ressaltar, que os processos restaurativos contemplam os
adolescentes em cumprimento de medida sócio educativa e pelos princípios
que norteiam a Justiça Restaurativa, abrangem também a comunidade e a rede
de atendimento. Nos círculos realizados na FASE, além dos profissionais,
técnicos, direção e monitores das Unidades, a família ampliada (pais, avós,
tios, sobrinhos, namorada/companheira, filhos) participou da grande maioria
dos círculos. As exceções foram nos casos de disciplina na escola ou
institucional. Em 11 círculos restaurativos além da família participou também a
comunidade, representada, pelo vizinho/ amigo/ patrão, e em 12 círculos além
da família e da comunidade, participaram a rede de atendimento, das áreas da
saúde, educação e assistência social.
A FASC/PEMSE, no acompanhamento das medidas sócio-educativas
de meio aberto, registra a realização de 7 círculos restaurativos32 . Quatro dos
adolescentes que foram incluídos nesta modalidade de abordagem, estavam
em cumprimento de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), dois em
cumprimento de Liberdade Assistida(LA) e dois em cumprimento simultâneo de
PSC e LA.
Os atos infracionais praticados pelos adolescentes que participaram dos
círculos restaurativos são: tentativa de furto, roubo qualificado, tentativa de
roubo qualificado e furto qualificado.
Todos os círculos realizados pela FASC resultaram em acordo. Destes,
registra-se o descumprimento de um e o cumprimento parcial também de um
círculo. Os demais são registrados como em período de cumprimento, estando
em etapa de pós-círculo no momento da coleta de dados. Assim como a
32
Dados referentes ao período compreendido entre setembro de 200r e junho de 2006.
aplicação na FASE, os círculos realizados no atendimento das medidas sócioeducativas de meio aberto resultam em acordos que se vinculam à qualificação
do Plano Individual de Atendimento e a elaboração de conflitos que surgem no
curso do atendimento, a exemplo de violências no contexto de equipamentos
de proteção social (abrigo) onde o adolescente está referenciado, e conflitos
nas relações familiares. Todos os acordos apresentam responsabilidades a
serem assumidas pelo adolescente, familiares, representantes da rede de
apoio, orientador da medida sócio-educativa, no sentido de prevenirem-se
situações
de
amplificação
de
violências
nas
relações
interpessoais,
compromissando-se o adolescente com gestos positivos em relação a seu
próprio futuro e buscando-se assegurar o suporte no atendimento das
necessidades do adolescente (na área de saúde, educação, assistência, etc.).
Os
participantes
FASC/PEMSE,
além
dos
dos
círculos
restaurativos
coordenadores,
técnicos
promovidos
da
FASC
e
pela
dos
adolescentes, estão compreendidos entre os familiares dos adolescentes – aí
compreendia a família ampliada -pai, mãe, irmãos, tias, representantes da rede
de atendimento, como psicólogos e assistentes sociais dos serviços de
assistência e saúde, monitores de equipamentos de proteção e técnicos da
FASE que acompanharam adolescentes em progressão de medida do meio
fechado para o aberto, além de representantes da comunidade, como
amigo/amiga dos adolescentes.
No âmbito da Aplicação Extra-Judicial: nas Escolas
Uma vez que a visão estratégica quanto à amplitude do projeto Justiça
para o Século 21 prevê uma progressividade nos focos de investimento, vale
ressaltar que a etapa de aplicação de Justiça Restaurativa nas escolas foi
planejada como o passo subseqüente à implantação nas medidas sócioeducativas (Projeto Financiado pela Unesco - Criança Esperança – executado
entre agosto de 2005 e agosto de 2006). As estatísticas até o momento
levantadas refletem esta intencionalidade, uma vez que os objetivos nesta
aplicação extra-judicial estiveram direcionados mais especificamente para
sensibilização, difusão, capacitação, que propriamente para produção de
círculos. As informações a seguir apresentadas dizem respeito aos círculos
ocorridos por iniciativa própria das escolas parceiras, ou seja, que não
procuraram o Poder Judiciário para a resolução de conflitos no ambiente
escolar.
Além deste círculos, aproximadamente 13 casos encaminhados no ano
de 2006 à CPR dizem respeito a violências nas escolas, tendo-se adotado
como
procedimento
padrão
encaminhar
tais
casos
a
procedimentos
restaurativos, paralelamente mobilizando-se as representações das secretarias
respectivas junto ao projeto para apoiar o procedimento e, eventualmente,
valer-se da oportunidade para divulgar e estimular a adoção de práticas
restaurativas na escola, evitando futuras judicializações de conflitos escolares.
Destes, já foram concluídos três círculos círculos pela CPR e os demais
estão em fase de pré-círculo. Estes casos que estão sob a coordenação da
CPR dizem respeito aos conflitos ocorridos nas escolas que são judicializados
e levados às autoridades pelas equipes diretivas das escolas e que não estão
integradas diretamente no Projeto. Assim, verifica-se dois movimentos em
direção à aplicação da Justiça Restaurativa nas escolas: um de dentro do
Sistema de Justiça que, através dos círculos restaurativos realizados pela
CPR, devolve à escola seu lugar de autoridade para estabelecer regras de
convivência e afirmar valores a partir de casos concretos em que emergiu sua
impotência ou indisponibilidade para um desfecho de responsabilidade
partilhada, e outro de fora – das próprias escolas parceiras – que através do
aprendizado sobre práticas restaurativas, se autoriza a estabelecer formas de
pacificação de conflitos sem judicializá-los, visando a prevenção. Registre-se
que os casos que são judicializados têm os círculos realizados no CIACA,
portanto, tendo por local o Sistema de Justiça, e os gerados espontaneamente
pelas escolas ocorrem nas dependências escolares.
Das escolas da SMED que participaram do Processo de Capacitação, há
registro de realização de um círculo restaurativo, que foi coordenado pela
representante da Coordenação Institucional da Secretaria Municipal de
Educação no Projeto e pelo representante da SMDHSU no G11. A origem do
círculo esteve relacionada à agressão verbal de um aluno à professora no
contexto da escola e resultou em um acordo que foi parcialmente cumprido já
que o adolescente evadiu da escola. Os participantes do círculo, além dos
coordenadores, foram a professora agredida, o aluno, sua mãe e a diretora da
escola.
No âmbito da SE - Secretaria Estadual de Educação, são reportados três
círculos restaurativos realizados no ambiente escolar. Estes círculos tiveram
por origem os seguintes conflitos: agressões físicas entre alunos, bullyng e
discriminação,
agressão verbal e discriminação. Todos os círculos tiveram
acordos, tendo sido realizado pós-círculo em todos, sendo os acordos
cumpridos. Os participantes destes círculos incluíram os alunos (ofensores e
ofendidos, os familiares dos alunos – considerando a família ampliada, com
participação de avó), amigos dos alunos e seus familiares como apoiadores
dos envolvidos no conflito.
2. O perfil das demandas
O perfil das demandas na aplicação judicial é de amplo espectro.
Incluem ofensas que implicam do menor ao maior potencial ofensivo, como se
percebe no Quadro desde situações com menor potencial ofensivo o que já se
verificou na primeira etapa do piloto, em 2005, em que as demandas diziam
respeito a roubo, dano, furto e lesões corporais. No ano de 2006 a tendência
verificada tem sido de demandas relacionadas aos seguintes atos infracionais:
dano, perturbação do sossego (na escola), atentado violento ao pudor, lesão
Corporal, porte de arma, vias de fato, ameaça, furto, foubo qualificado e
homicídio.
O perfil das demandas no âmbito do atendimento sócio-educativo e das
escolas foi apresentado no item X.1. do presente relato.
3. A escolha das demandas e os conflitos criminais
As formas de escolha das demandas para os círculos restaurativos são
variadas, dependendo do âmbito de aplicação. Nos processos judiciais, as
demandas são surtidas através de decisões judiciais que, com a concordância
do Ministério Público e da Defensoria, encaminham para avaliação da
possibilidade de instauração do círculo em situações de adolescentes que se
encontram na porta de entrada do Sistema de Justiça do Ato Infracional – no
CIACA. Também são demandas de aplicação judiciais as decisões judiciais no
curso da execução de medidas sócio-educativas, que com a concordância das
partes encaminha à CPR situações para serem avaliadas em sua adequação
para realização dos círculos.
Observe-se que foram definidos critérios para a escolha das demandas
na aplicação do âmbito judicial. No ano de 2005 os critérios definidos foram:
Admissão da autoria do cometimento do ato infracional pelo adolescente; ter
vítima identificada; não ser caso de homicídio, latrocínio, estupro e conflitos
familiares. Já no ano de 2006 os critérios de escolha das demandas são: Levar
em conta os princípios: admissão da autoria do cometimento do ato infracional
pelo adolescente; voluntariedade na participação; círculo com foco no fato
(último ato infracional); ter vítima identificada; não ser caso conflitos familiares
e violência sexual intra-familiar;
No âmbito da FASE, as demandas são próprias da etapa do
atendimento sócio-educativo que prepara o possível desligamento do
adolescente da medida de meio fechado, preparando através do círculo familiar
a avaliação e o plano de atendimento a ser apresentado em audiência de
reavaliação judicial.
No âmbito da FASC, as demandas são surtidas por decisões judiciais no
curso da execução das medidas, quando o juiz da execução encaminha a
situação para o Programa de Meio Aberto avaliar a possibilidade de realizar
círculos em razão de situações específicas apresentadas em audiência ou na
tramitação do processo de execução. Ainda neste âmbito da orientação das
medidas sócio-educativas de meio aberto, são geradas demandas pelos
próprios orientadores na qualificação dos planos de atendimentos e na
resolução de conflitos dos quais o adolescente faça parte.
4. Os casos concretos
Para apresentar os casos concretos abrangidos pelo Piloto de Porto
Alegre, opta-se por uma abordagem que vocaliza a experiência social com a
Justiça Restaurativa dos próprios protagonistas destes casos. Através desta
abordagem pretende-se dar maior visibilidade aos significados atribuídos a esta
experiência pelos participantes de círculos restaurativos33 que contam como ela
se tem se materializado.
Na mesma direção dos neozelandeses (MARSHALL, Chris; BOYACK,
Jim & BOWEN, Helen, 2005) que adotam uma abordagem baseada em valores
para determinar se os processos específicos são mesmo restaurativos quanto
a seus efeitos, na definição de padrões de boas práticas,34 busca-se, através
de alguns casos concretos realizados, revelar a presença destes valores.
Enquanto os valores esposados pelo Piloto em Porto Alegre foram
apresentados no primeiro item deste relato, neste momento são trazidos ao
cenário falas dos participantes que manifestam o quanto os processos
empregados evidenciam os valores-chave da justiça restaurativa.
Foco em necessidades e empoderamento
Necessidades da vítima:
“Já pensou alguém te dá um tapa e tu não sabe quem foi,
vai embora e tu não vê, tu vai ficar com aquele negócio, de
quem te fez alguma coisa; foi bom, foi ótimo” (depoimento
de uma vítima que participou círculo restaurativo)
A ofensa retira poder das vítimas, “já que outra pessoa exerceu controle sobre
elas sem seu consentimento. A Justiça restaurativa devolve os poderes a estas
vítimas, dando-lhes um papel ativo para determinar quais são as suas
necessidades e como estas devem ser satisfeitas” (MARSHALL, Chris;
BOYACK, Jim & BOWEN, Helen, 2005).
Necessidades do ofensor:
33
Todos os participantes de círculos restaurativos, sejam coordenadores, ofensores, vítimas,
familiares, apoiadores, representantes da rede e da comunidade, que concordem em participar
da pesquisa, são entrevistados após a etapa do pós-círculo.
34
MARSHALL, Chris; BOYACK, Jim & BOWEN, Helen. Como a Justiça Restaurativa Assegura
a Boa Prática: Uma Abordagem Baseada em Valores. In: SLAKMON; VITTO, C.R. de; PINTO,
R.G. (Orgs). Justiça Restaurativa. Brasília - DF: Ministério da Justiça - MJ e Programa das
Nações Unidas para o desenvolvimento – PNUD, 2005.
“(...)por que eu tinha tudo que eu queria, mas eu queria
bastante era atenção. As vezes eu roubava o carro e ficava
ficava só passando na frente da minha mãe. Pra minha
mãe me ver e ir lá me dar um puxão de orelha sabe, mas
ela não fazia isso...então só pegava e vamos conversar,
conversar e não fazia o que queria, e até que eu fui, fui... e
quando vê acabei lá(FASE) e ela ouviu (...)” (depoimento
colhido com adolescente que participou de círculo familiar
quando em cumprimento de medida sócio-educativa de
internação).
Processo guiado de modo inclusivo e colaborativo – competência dos
coordenadores
O processo apresenta maior grau de restauratividade quanto mais os próprios
envolvidos no ocorrido encontram no círculo um local de liberdade para
expressarem-se e trabalharem juntos para resolver os problemas sem que sejam
induzidos em resultados pelos coordenadores. MARSHALL, Chris; BOYACK, Jim
& BOWEN, Helen (2005) chamam a atenção de que “o processo não é
restaurativo se os participantes chave são forçados a permanecer em silêncio ou
passivos, ou se sua contribuição for controlada por profissionais que introduzem
sua própria agenda”.
Esta inclusão e busca de colaboração e protagonismo dos participantes vai exigir
competência dos coordenadores para estruturarem todo processo sem perder tal
clareza de intencionalidade. A materialização destes valores são colhidos nos
depoimentos de entrevistados que participaram de procedimentos restaurativos:
“(...)eu fiz um encontro que foi muito bom que eu quase não
precisei falar e daí sim cumpre muito mais o objetivo,
porque a família foi conseguindo falar quase que
espontaneamente, assim, eu precisei falar algumas coisas,
muito poucas mesmo (...), tem uma parte que é difícil
quando a gente fala das necessidades é difícil de vir isso e
nesse encontro antes de eu perguntar pelas necessidades
elas vieram quase que espontaneamente (...) E todo
encontro foi assim, tinha uma avó , um avô, uma mãe e
todos eles foram falando acho que isso foi o melhor”
(depoimento de coordenadora de círculo realizado no
Sistema de Atendimento Sócio-Educativo.
A clareza da intencionalidade de afirmação de valores através dos
procedimentos do círculo é importante para o exercício da competência do
coordenador, que tanto mais poderá persegui-la e afirmá-la quanto mais
consciente estiver de seu papel, o que se percebe em outra fala, agora de um
professor que participou de círculo restaurativo nas escolas:
“Eu acho que é a necessidade que tá ali presente né, pra tu
fazer esse papel de coordenador, e é muito complicado pra
gente ficar palpitando (...), e tu não tem que palpitar
também, pra tu deixar que venha deles que eles consigam
colocar qual é o problema, qual é o fato ou qual é a
necessidade e como que vamos resolver isso, né e agente
vai passando na frente, e agente tem que ter essa espera,
essa paciência e ao mesmo tempo deixar eles a vontade
pra que eles consigam falar e se colocar.” (depoimento de
Co-coordenadora de círculo restaurativo ocorrido em uma
escola).
A intencionalidade inclusiva e colaborativa, quando concretizada nos
procedimentos do círculo restaurativo, é percebida por seus participantes,
como se vê a seguir:
“Pra mim foi bom por que eu tive a oportunidade de falar o
que eu tava sentindo, pude escutar o que as outras
pessoas achavam ... foi bom pra puder conversar, puder se
expressar melhor um pro outro” (depoimento de
adolescente que participou de círculo no âmbito dos
processos judiciais)
“É diferente sim, bem diferente. A gente tem oportunidade
de falar aquilo que a gente sente, aquilo que a gente
pensa, né? Eu acho que isso ajuda bastante” (depoimento
de familiar de adolescente que participou de círculo no
âmbito dos processos judiciais)
“Foi uma conversa que todos falaram para poder integrar
as pessoas, a turma” (depoimento da aluna de uma escola
que participou de círculo restaurativo)
A abordagem inclusiva respeita a dimensão da comunidade que funda o
círculo restaurativo, que para ser afirmada nos procedimentos compromete-se
com a participação dos mais afetados pela ofensa. De acordo com
MARSHALL, Chris; BOYACK, Jim & BOWEN, Helen (2005) “todos os
presentes nas reuniões de justiça restaurativa têm algo valioso para contribuir
com as metas da reunião”.
A importância da presença da comunidade é reconhecida pelos
participantes dos círculos:
“(...)das pessoas que estavam ali eram as pessoas
que mais gosto mesmo, são as pessoas que eu
sempre quero que estejam do meu lado.”
(depoimento de adolescente que participou de
círculo no âmbito do Sistema de Atendimento SócioEducativo”
“Porque assim, se tivesse só eu e ele eu ia ficar com
um pouco de medo. Daí ficou um monte de gente
junto. A minha família comigo” (depoimento de vítima
que participou de círculo restaurativo no âmbito de
processos judiciais)
Processo respeitoso em relação a todos os participantes
Os procedimentos restaurativos expressam valores como respeito na
medida em que todos os participantes são considerados em sua inerente
dignidade de seres humanos, independentemente de atos praticados. Este
respeito é relatado pelos próprios participantes, inclusive em comparação a
suas experiências com o Sistema Retributivo:
“Antes (outras experiências com a Justiça) quando eles
começavam a gritar comigo parecia que eu era um bicho.
A gente viu um meio de eu melhorar entendeu, para eu sair
dessa vida, entendeu. E tentar mudar um pouco, cuidar as
influências que agente tem, é normal em qualquer lugar, é.
Procurar um tratamento, é,procurar um estudo, alguma
coisa assim, é se ocupar como eu falei” (depoimento de
adolescente que participou de círculo no âmbito dos
processos judiciais)
“(...)tipo assim, elas viram, tipo tem mais confiança, e viram
que aquela pessoa que eu sou, que eu não sou aquela
pessoa que eles... o juiz pensa ou outras pessoas né... que
usam distintivo ou uma coisa pensam. Eu sou outra pessoa
longe daquilo que eles podem ver e do que eu era.”
(depoimento de adolescente que participou de círculo no
âmbito do Sistema de Atendimento Sócio-Educativo)
Procedimentos validam a experiência da vítima
Para MARSHALL, Chris; BOYACK, Jim & BOWEN, Helen (2005) os
procedimentos confirmam seu maior potencial de restauratividade na medida
em que acolhem, permitem o reconhecimento e integram os sentimentos,
danos físicos, perdas e as ponderações da vítima, sem censura ou crítica. Este
reconhecimento materializa-se na empatia da mãe de um ofensor para com a
vítima de um círculo:
“Eu acho que valeu a pena pra vítima, no caso, pra ela não
viver com medo dos guris que fizeram o que fizeram pra
ele, né? Por que morando ali, conhecendo os caras que
fizeram pra ele, vai viver com medo! Vai pensar que se sair
pra rua os caras vão pegar, vão bater, fazer de novo. Por
que quando tu passa por uma coisa dessas é igual um
estupro, uma coisa assim, tu fica com medo, fica
traumatizada. Tu tem medo de sair na rua” (Depoimento da
mãe de adolescente ofensor que participou de círculo
restaurativo no âmbito dos processos judiciais)
“(...) esse método que vocês acharam aí é melhor que o
tradicional, se não, no tradicional ele nem saberia que eu
existia.” (depoimento de pai de vítima que participou de
círculo restaurativo no âmbito dos processo judiciais)
Os procedimentos garantem voluntariedade na participação
A voluntariedade na participação é um indicador da presença de valores
nos procedimentos de Justiça Restaurativa. Nas falas que se seguem esta
voluntariedade é reconhecida como presente nas experiências sociais dos
sujeitos que participaram de círculos restaurativos, que está muito ligada ao
grau de informação que lhes é oferecido para decidirem livremente se desejam
participar.
“Ela veio aqui, ficou sentada onde tu ta, fez um monte de
perguntas e perguntou se eu queria participar e se eu
concordava em participar, tanto eu quanto a Thais ou se
pudesse o pai de ir junto né, ai eu disse para ela que sim
né, como eu gosto de participar de tudo que me convidam,
participar de grupo é comigo.” (depoimento da mãe de
vítima que participou de círculo restaurativo no âmbito dos
processos judiciais)
“Li bastante com calma e gostei bastante, é uma boa ... foi
bem explicado.”(depoimento de adolescente que participou
de círculo no âmbito do Sistema de Atendimento SócioEducativo)
“Veio um papel informando aqui, depois ela veio e explicou
como é que era também, por cima sabe? A gente ficou
sabendo como funcionava”(depoimento de pai de vítima
que participou de círculo restaurativo no âmbito dos
processo judiciais)
Esta voluntariedade é qualidade de procedimentos também nas práticas
institucionais
que
é
valorizada
pelos operadores
que
participam
da
implementação da nova abordagem se sentido respeitados e participando na
medida de suas condições e motivação:
“(...) nós tivemos o nosso tempo pra isso, não foi obrigado
a fazer em determinado momento, a gente discutiu muito
(...)discutia pós cada encontro né e isso foi respeitado
assim, quando nós estávamos nos sentindo preparadas
para coordenar um encontro”(depoimento de coordenadora
de círculo no Sistema de Atendimento Sócio-Educativo)
Os procedimentos visam responsabilização
Confirmar e esclarecer obrigações é considerado indicador de qualidade
de procedimentos na materialização de valores restaurativos por MARSHALL,
Chris; BOYACK, Jim & BOWEN, Helen (2005). Consideram os autores que “O
processo não é restaurativo se o infrator não for responsabilizado pelo ocorrido e
por tratar das conseqüências de suas ações delituosas ou se for forçado a assumir
a responsabilidade involuntariamente”.
Vejamos como a responsabilização é expressa na fala dos participantes dos
círculos:
“(...)as coisas que eu prometi né, eu tô cumprindo né, que é
ficar mais perto da minha família n , que é o que eu mais
quero, voltei pro grupo da igreja, não tô no momento por
que eu tô aqui no hospital, mas quando eu tava na rua eu
tava indo tudo direitinho correndo tudo bem , procurando
trabalho tudo direitinho, ganhando bastante atenção que eu
queria da minha mãe. Tá acontecendo tudo jeito que eu
queria corretamente.” (depoimento de adolescente que
participou em círculo no âmbito do Sistema de Atendimento
Sócio-Educativo)
A noção de responsabilizada vinculada ao fazer o que deve ser feito
porque é o correto a ser feito e emerge de necessidades dos participantes fica
clara nas seguintes falas:
“(...)e é o certo pra fazer, não adianta tu sair dali entendeu
e no momento do encontro tu falar uma coisa sair dali e
fazer outra, então eu sai dali com a expectativa e fiz o que
deveria, fiz o certo, eu vi que ali eu tava na hora de
mudar.” (depoimento de adolescente que participou de
círculo no âmbito do Sistema de Atendimento SócioEducativo)
Esta responsabilização é reconhecida também pelas vítimas, como na
fala a seguir:
“Eu acho que ele viu que ‘caiu a ficha’ dele, que não leva a
nada, que disto ai só teve prejuizo pra ele e pra mim, eu
acho que ele se reestruturou, acho que ele nào volta mais a
fazer esse delito” (depoimento de vítima que participou de
círculo restaurativo no âmbito dos processos judiciais)
Os coordenadores de círculo validam a responsabilização como
resultante de procedimentos restaurativos, diferentemente das abordagens
tradicionais, moralizantes em sua forma e conteúdo e que não contribuem para
a interrupção de cadeias de violências. É o que manifesta a professora de uma
escola que participou de círculo:
“(...)ao menos casos que agente teve aqui na escola, que
se trabalhou o círculo restaurativo, o conflito que se
trabalhou, ele morreu aí(...), com a abordagem tradicional
fica naquela falassada, falassada, e eu prometo, e no outro
dia, ou uma hora e meia hora de novo fica incidido na
mesma coisa.”
Os procedimentos visam resultados transformativos
De acordo com MARSHALL, Chris; BOYACK, Jim & BOWEN, Helen
(2005) os procedimentos que afirmam valores restaurativos objetivam
“resultados que atendem necessidades presentes e preparam para o futuro,
não simplesmente em penalidades que punem os delitos passados”. A
afirmação destes resultados é colhida na voz de participantes de círculos
restaurativos:
“Poder conversar com o R., no início quando aconteceu,
tive muita raiva, aí depois passou para pena, e foi bem
interessante, eu não posso dizer se foi exatamente como
esperava, porque eu não tinha idéia de como
seria.”(depoimento de vítima de ofensa que participou de
círculo restaurativo no âmbito das escolas)
Os resultados transformativos alcançam a cultura das instituições, como
se vê nas falas que se seguem dos participantes do círculo que expressam
mudanças mais amplas que repercutem da materialização de procedimentos
restaurativos no cotidiano das instituições parceiras:
“Eu acho que tem sim, eu acho que o pessoal daqui ta mais
envolvido com os alunos” (depoimento de apoiadora de
ofensora que participou de círculo no âmbito das escolas)
“A gente tem consciência de que não tem mais como tirar,
né, isso da nossa prática(...)agora é acomodar da melhor
forma possível, as necessidades que a metodologia trouxe
com a nossa realidade para conseguir andar junto porque
para nós faz parte já do processo metodológico que a
gente vai utilizar e aperfeiçoar daqui para frente,
certamente”(depoimento de representante institucional do
Sistema de Atendimento Sócio-Educativo de Meio Aberto
na gestão compartilhada do Projeto)
“(...)nós aqui na nossa casa incorporamos né nesse
projeto. E no atendimento dos adolescentes como hoje a
gente tem uma outra visão também repercute no próprio
atendimento individual.” (depoimento de coordenadora de
círculo restaurativo realizado no âmbito do Sistema de
Atendimento Sócio-Educativo de meio fechado)
XI - Registro e memória
1. Como é feito o registro das atividades
As atividades do Projeto, além do registro visual pelos recursos de
vídeo, pelo que vem se constituindo um banco de imagens de círculos
restaurativos, que favorecem o processo de capacitação, também são
registradas através de padrões operacionais próprios, que documentam todo o
procedimento e que são preenchidos e, nos casos judiciais, juntados aos
processos. Há ainda o registro virtual do procedimento, que está sendo
ultimado através de novas ferramentas de intranet do website do projeto e que
viabilizará um banco de dados sobre as experiências de realização de círculos
restaurativos dos diversos parceiros, com vistas a subsidiar a qualificação das
políticas públicas da infância e juventude.
Além disto, o registro das atividades do Projeto também é realizado
através da Pesquisa de Sistematização, Acompanhamento e Avaliação
realizada pelo NUPEDH da Faculdade de Serviço Social/PUCRS, sendo que
nas iniciativas financiadas pela Unesco – Criança Esperança, contou com a
parceria do NEPEVI – Núcleo de Pesquisas e Estudos em Violência, da mesma
Faculdade.
XII - Em busca da autosustentabilidade do projeto
1. O preço do projeto na formatação atual
No ano de 2005 o projeto recebeu aportes de recursos do Ministério da
Justiça/PNUD na ordem de R$ 42.000,00 (quarenta e dois mil reais) para a
execução da primeira etapa do piloto. A segunda etapa do piloto, que foi
executada entre agosto de 2005 e agosto de 2006 contou com recursos na
ordem de R$ 100.000,00 (cem mil reais) oriundos da Unesco – Programa
Criança Esperança. Na continuidade do âmbito do Projeto apoiado com
recursos do Ministério da Justiça/PNUD (aplicação no âmbito judicial), no ano
de 2006 os recursos aportados foram de R$ 23.850,00 (vinte e três mil e
oitocentos e cinqüenta reais.
Portanto, o montante total de aportes de recursos necessários para o
projeto chegar em sua formatação atual foi de R$ 165.850,00 (cento e sessenta
e cinco mil e oitocentos e cinqüenta reais)
2. Uma proposta para disseminação.
Por mais que possa parecer rica, às vezes até gigantesca, quando vista
de fora e quando contada retrospectivamente, toda experiência começa de
uma sensação de desconforto e de vazio.
Esse era o quadro quando os
primeiros olhares inspirados pela Justiça Restaurativa foram lançados sobre o
que depois se tornaria o atual canteiro de obras do atual projeto Justiça para o
Século 21.
De fato, hoje muito se pode socializar do percurso, que vale
principalmente pela sua história de confirmações na prática de idéias e valores
que até então se apresentavam fascinantes, mas existiam apenas na abstração
de uma escassa literatura.
Esse cintilar das novas idéias, associado ao vazio de metodologias e
habilidades perspectivas, e até mesmo a restrita circulação do material teórico
acabaram sendo um marco de autenticidade do projeto, que constituiu seus
próprios percursos seguindo aquilo que cada vez mais parece essencial e
quase que exclusivo em termos de relevância: a incorporação das idéias e
conceitos sobre justiça restaurativa a partir de uma postura empírica,
investigativa, e eminentemente vivencial, capaz de acreditar somente a medida
que se viu capaz de ver traduzidos na própria realidade o significado dos
princípios e valores restaurativos.
Não havia receita e, por mais que hoje possa haver histórias contadas,
dando a parecer que alguma receita se constituiu, ainda seria frustrante abrirse mão da potencialidade instituinte e criativa dessas novas idéias. Sem
dúvida, é indispensável estudar com atenção o material da ONU, da Nova
Zelândia, da África do Sul, da Costa Rica, do Chile, da Argentina, e, agora, de
Brasília, de São Caetano do Sul, de Porto Alegre.
Mesmo assim, mesmo que inspirada nessa amplitude de olhares, o que
a experiência de Porto Alegre mais ensinou e que mais merece ser
disseminado é que, desde que os operadores estejam devidamente focados e
confiantes
nos
valores
restaurativos,
tanto
os
projetos,
quando
os
procedimentos, quanto os encontros, quanto enfim, tudo acaba de algum modo
por fluir e convergir, num clima de aparente espontaneidade, para resultados
satisfatórios, gerando um clima de inovação, gratificação e prosperidade. A
proposta de disseminação, portanto, é manter o foco na disseminação dos
valores restaurativos. Com base neles, observar o cotidiano, imaginá-lo sob
outras lentes, avaliar criteriosamente, ainda em tese, da sua consistência. Se
as idéias realmente parecerem confiáveis, só então simular aplicações,
promover testes informais. Ouvir atentamente as reações e tentar novas vezes.
Progressivamente a repetição proporcionará padrões, gerará fluxos, rotinas e
procedimentos. Ou seja, da repetição do informal, haverá de constituir-se uma
forma própria, autenticamente originada na experiência local.
XIII – Conclusão: reflexões sobre os resultados alcançados pelo projeto
“Eu pensava que era tipo num tribunal sabe, assim a
pessoas perguntando pra mim e eu respondendo
sabe e mais ninguém podendo falar entendeu e não
podendo olhar para as pessoas”. (Adolescente,
FASE)35.
[M1] Os resultados de uma experiência em Justiça Restaurativa serão
tão mais eficazes quanto mais o procedimento assegurar, em termos práticos,
fidelidade aos valores restaurativos. Assim, se a Justiça Restaurativa e suas
abordagem dialógicas propõe a suspensão dos pressupostos que costumam
verter da fala dos operadores do sistema, permitindo a atribuição da palavra
diretamente às partes interessadas, nada mais fiel do que concluir esse relato
permitindo a expressão desses resultados na própria voz dos usuários
alcançados pelo projeto.
[M2] As declarações acima, prestadas por um adolescente interno na
FASE, revelam a experiência de que aquele espaço do qual participou
continuava sendo um espaço de justiça, mas um Tribunal inquisitivo não era.
Por detrás da sua fala compreende-se o quanto a participação no Círculo lhe
restituiu um sentido de conforto no pertencimento à comunidade familiar. Não
se sentindo interrogado, foi possível falar e olhar para as pessoas. Ver, ver-se,
35
Depoimentos colhidos através da Pesquisa que está acompanhando, sistematizando e
avaliando as práticas de Justiça Restaurativa implementadas pela 3ª. Vara do Juizado Regional
da Infância e Juventude de Porto Alegre, sob a coordenação da Profa. Dra. Beatriz Aguinsky,
do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Ética e Direitos Humanos – NUPEDH - da Faculdade de
Serviço Social da PUCRS, sendo preservada a identidade dos informantes de acordo com as
exigências da ética na pesquisa social.
mostrar, mostrar-se, encontrar, encontrar-se. A experiência vivida pelo usuário
é confirmatória da hipótese teórica, e introduz concretamente aos primórdios de
um novo modelo de justiça, capaz de promover transparência e, com ela,
responsabilidade e autonomia. Uma justiça ética, fundada sobretudo em
valores, que preponderam e podem até fazer secundário o papel da coerção e
das leis.
[M3] A medida em que os mais variados campos do conhecimento
convergem para reconhecer as emoções como manancial, determinante e
nutriente
das
atitudes
éticas,
as
práticas
restaurativas
desafiam
a
racionalidade da justiça a combinar-se com a dimensão incontrolável dos
afetos, que só se submetem a regências fundadas no mais radical respeito à
autonomia. Só por este intermédio será possível falar à razão, ditar
internamente o compromisso com novos comportamentos, reinstalando o lugar
da lei como dimensão auto-referenciada na experiência de vida afetiva de cada
sujeito, nos próprios registros internos, únicas referência que pode servir de
“chave” para desatar o nó por onde o sujeito perdeu-se em direção à violência.
E o que se tem aqui não é um discurso psicanalístico, ou uma tese
criminológica, senão que a experiência concreta relatada por outro adolescente
também internado na FASE:
“Foi muito emocionante sabe, o meu avô falando eu me
emocionei bastante foi à pessoa que falou mais que eu me
emocionei, por que a minha mãe eu ficava mais perto ela
falava eu não me emocionei tanto no encontro, mas
quando o vô falou foi um choque eu não esperava e a
minha esposa também eu não esperava, foi quando eu
percebi que ela gostava bastante de mim... Meu vô falou
pouquinho, mas falou bastante, foi o que falou por tudo,
deu a palavra necessária, como se diz a palavra chave.36”
De outra partre, [M4] o que se tem nascendo nesse processo é um
modelo de justiça que não se esgota nos Tribunais, mas que pode transformálos profundamente através da transformação do olhar dos seus operadores, e
dos condicionamentos afugentadores que estes olhares inquisitivos instalam.
Um modelo de Justiça que perpassa, concreta e experiencialmente, todas as
36
Registros das entrevistas da pesquisa realizada pela FSS/PUCRS
instâncias da vida e dos relacionamentos. Tanto que o depoimento que
introduz essas conclusões foi colhido junto a um adolescente que participou de
procedimento restaurativo realizado no âmbito da FASE, ou seja, no
atendimento sócio-educativo, e não na esfera judicial, traduzindo aqui também
materialmente o mais preciso sentido de democratização da experiência de
justiça, conceito certamente muito mais amplo do que o de mero acesso à
justiça.
Esse sentido de transversalidade e de democratização da experiência de
justiça remete a uma experiência que não se dirige ou se esgota no usuário,
mas, antes, como fator de uma mudança que se processa na percepção e na
atitude das próprias pessoas e da respectiva cultura institucional, se propaga
transversalmente
atravessando
todos
os
operadores
do
sistema,
transformando suas perspectivas. O testemunho de um desses operadores da
área técnica faz resplandecer esse sentido de multidimensionalidade e
transversalidade do processo de mudança que se instalou a partir do Projeto:
“(...) não só para as próprias demandas do programa,
enquanto programa que compõe a execução de medidas
sócia educativas, mas também em relação a todas as
outras questões conflitivas que se vive dentro da
instituição, até mesmo de cunho pessoal, a gente tá se
utilizando do tipo de metodologia que se conheceu a partir
do trabalho realizado com a Justiça Restaurativa.”37
[M5] O que as experiências aqui trazidas para ilustrar os resultados que
vem sendo promovidos pelo Projeto Justiça para o Século 21 projetam, não por
virtude própria dos seus protagonistas, mas como expressão da validade
intrínseca dos pressupostos da Justiça Restaurativa, é nada menos do que a
confirmação da hipótese de que, colocadas em prática, essas idéias são
capazes de promover uma redescoberta da Justiça e fundar um novo Poder
Judiciário - uma tarefa mais do que atual, necessária e urgente para reverter-se
37
Registros das entrevistas da pesquisa realizada pela FSS/PUCRS
o sentimento, expresso na expressão de José Saramago, de que “a justiça
continuou e continua a morrer todos os dias”38, e...
De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido
para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela
esperavam o que da justiça todos temos o direito de esperar:
justiça, simplesmente justiça... Não a que se envolve em
túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica
judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e
viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre
corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça
pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens,
uma justiça para quem o justo seria o mais exato e rigoroso
38
SARAMAGO, José. Da justiça à democracia, passando pelos sinos. Texto apresentado no
encerramento do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em 05 de fev. de 2003. Disponível
em
http://www.e-juridico.com.br/noticias/exibe_noticia.asp?grupo=5&codigo=6808.
Acesso em 18 de outubro de 2006
sinônimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão
indispensável à felicidade do espírito como indispensável a vida
é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais,
sem dúvida, sempre que a isso determinasse a lei, mas
também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação
espontânea da própria sociedade em ação, uma justiça em que
se manifestasse, como um imperativo moral, o respeito pelo
direito de ser que a cada ser humano assiste.
Resumindo na simplicidade completa do artista as longas páginas desse
relato, o olhar que se expôs aqui pretendeu apenas permitir alguns relances,
ainda que precários e fugidios, sobre um verdadeiro canteiro de obras de
construção de uma nova justiça: uma justiça pedestre, companheira cotidiana
dos homens, que comunga intransigentemente com a idéia de que o justo pode
ser mais exato e rigoroso sinônimo do ético, uma justiça tão indispensável à
felicidade do espírito como a vida é o alimento do corpo. Enfim, uma justiça que
pacifica e que cura e que, ao restaurar, nos ilumina.
Justiça Comunitária – Uma experiência
1
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Secretaria da Reforma do Judiciário
Esplanada dos Ministérios, Bloco T, 3º andar, Sala 324
CEP 70.064-900, Brasília-DF, Brasil
Fone: 55 61 3429-9118
Correio eletrônico: [email protected]
Internet: www.mj.gov.br/reforma
Distribuição gratuita
Tiragem: 1.000 exemplares
Redação e organização: Juíza Gláucia Falsarella Foley
Editado por: Margareth Leitão
Impresso pela: Cromos - Editora e Indústria Gráfica Ltda.
A transcrição e a tradução desta publicação são permitidas,
desde que citadas a autoria e a fonte.
2
Justiça Comunitária – Uma experiência
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA
Ministro de Estado da Justiça
Márcio Thomaz Bastos
Secretário de Reforma do Judiciário
Pierpaolo Cruz Bottini
Chefe de Gabinete
José Junio Marcelino de Oliveira
Coordenador-Geral de Modernização da Administração da Justiça
André Luis Machado de Castro
Assessora da Coordenação de Modernização da Administração da Justiça
Angélica Batista Junger do Prado
Coordenadora da Chefia de Gabinete
Ana Teresa Iamarino
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO
Representante residente do PNUD - Brasil
Kim Bolduc
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL
Presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
Desembargador Lécio Resende da Silva
Juíza Coordenadora do Programa Justiça Comunitária
Gláucia Falsarella Foley
Secretária Executiva do Programa Justiça Comunitária
Vera Lúcia Soares
Justiça Comunitária – Uma experiência
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Justiça Comunitária – Uma experiência
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 7
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: UMA REALIDADE ........................................................................ 9
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: CONSOLIDANDO A DEMOCRACIA E
PROMOVENDO OS DIREITOS HUMANOS POR MEIO DO
ACESSO À JUSTIÇA A TODOS ........................................................................................ 11
PRÓLOGO ................................................................................................................... 13
AGRADECIMENTOS ...................................................................................................... 15
PREFÁCIO .................................................................................................................. 17
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 19
1. BREVE APRESENTAÇÃO DO PROGRAMA JUSTIÇA COMUNITÁRIA ..................................... 23
1.1. Histórico ......................................................................................................... 23
1.2. O Programa Justiça Comunitária. Linhas gerais ..................................................... 24
2. O LOCUS: A COMUNIDADE .......................................................................................
2.1. O conceito de comunidade .................................................................................
2.2. Conhecendo o locus. O mapeamento social ..........................................................
2.3. Animação de redes sociais .................................................................................
2.3.1. As redes sociais ......................................................................................
2.3.2. As redes sociais em movimento ................................................................
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3. OS ATORES E A SELEÇÃO .........................................................................................
3.1. Os agentes comunitários ...................................................................................
3.2. O perfil dos agentes comunitários .......................................................................
3.2.1. Requisitos pessoais .................................................................................
3.2.2. Responsabilidades e compromissos............................................................
3.3. As etapas da seleção .........................................................................................
3.3.1. O recrutamento ......................................................................................
3.3.1.1. Divulgação do processo seletivo ....................................................
3.3.1.2. Cadastramento dos interessados ...................................................
3.3.1.3. Esclarecimentos sobre o Programa ................................................
3.3.1.4. Inscrição dos interessados ...........................................................
3.3.2. A seleção ...............................................................................................
3.3.2.1. Análise dos formulários de inscrição ..............................................
3.3.2.2. Dinâmica de grupo ......................................................................
3.3.2.3. Entrevista de seleção ..................................................................
3.3.2.4. Referências judiciais e sociais .......................................................
3.3.2.5. Escolha dos candidatos ................................................................
3.4. O quadro atual de agentes comunitários de justiça e cidadania ...............................
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4. AS ATIVIDADES DOS AGENTES COMUNITÁRIOS ..........................................................
4.1. Informação jurídica...........................................................................................
4.1.1. Reflexões práticas. Informação jurídica ......................................................
4.2. Mediação comunitária .......................................................................................
4.2.1. Reflexões práticas. Mediação comunitária ...................................................
4.3. Formação e/ou animação de redes sociais ............................................................
4.3.1. Reflexões práticas. Formação e/ou animação de redes sociais .......................
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5. A EQUIPE INTERDISCIPLINAR ...................................................................................
5.1 O papel da interdisciplinaridade ...........................................................................
5.2 A equipe interdisciplinar do Programa Justiça Comunitária .......................................
5.3 Apresentando a equipe interdisciplinar ..................................................................
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6. OS CENTROS COMUNITÁRIOS DE JUSTIÇA E CIDADANIA ..............................................
6.1. A finalidade .....................................................................................................
6.2. A estrutura física ..............................................................................................
6.3. Materiais e equipamentos do Centro Comunitário ..................................................
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Justiça Comunitária – Uma experiência
5
7. A ESCOLA DE JUSTIÇA E CIDADANIA .........................................................................
7.1. Pressupostos epistemológicos.............................................................................
7.2. As atividades de capacitação dos agentes comunitários ..........................................
7.3. A programação curricular ...................................................................................
7.3.1. Cidadania e noções básicas de direito ........................................................
7.3.2. Os cursos e as oficinas de mediação ..........................................................
7.3.3. Capacitação para a animação de redes sociais .............................................
7.4. O corpo docente ...............................................................................................
7.5. As atividades abertas da Escola de Justiça e Cidadania ..........................................
7.6. Interlocuções institucionais ................................................................................
7.7. O boletim periódico ..........................................................................................
7.8. Avaliação do processo de aprendizagem ..............................................................
7.9. Os recursos pedagógicos ...................................................................................
7.10. Materiais e equipamentos da Escola de Justiça e Cidadania ...................................
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8. AS PARCERIAS INSTITUCIONAIS ...............................................................................
8.1. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) ....................................
8.2. Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ) ............................................................
8.3. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ................................
8.4. Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF) .......................................................
8.5. Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT) ...............................
8.6. Universidade de Brasília (UnB) ...........................................................................
8.7. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República .....................
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9. OS CASOS CONCRETOS ........................................................................................... 79
9.1. As estatísticas .................................................................................................. 79
9.2. O perfil das demandas ...................................................................................... 80
9.3. Os conflitos criminais ........................................................................................ 81
9.4. Ilustração de alguns casos concretos ................................................................... 82
9.4.1. O “caso da vaca” ..................................................................................... 82
9.4.2. O “caso dos irmãos” ................................................................................ 83
9.4.3. O “caso da fumaça” ................................................................................. 84
9.4.4. O “caso das amigas que trocaram as casas” ................................................ 84
9.4.5. O “caso do DVD extraviado” ..................................................................... 85
9.4.6. O “caso das mães de crianças especiais” .................................................... 86
10. REGISTRO E MEMÓRIA ........................................................................................... 87
10.1. O sistema de banco de dados ......................................................................... 87
10.2. Registrando as atividades ............................................................................... 87
11. O TRABALHO VOLUNTÁRIO ..................................................................................... 89
11.1. A natureza do trabalho voluntário .................................................................... 89
11.2. A adesão voluntária. Questões práticas ............................................................ 90
12. EM BUSCA DA AUTO-SUSTENTABILIDADE DO PROGRAMA ........................................... 92
12.1 Uma proposta para a reprodução nacional de um programa de justiça
comunitária em larga escala e de baixo custo ..................................................... 92
13. A AVALIAÇÃO DO PROGRAMA ..................................................................................
13.1. Avaliação. Conceito e objetivos .......................................................................
13.2. A subjetividade da avaliação ...........................................................................
13.3. Momento da avaliação ...................................................................................
13.4. A avaliação do Programa Justiça Comunitária ....................................................
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BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 98
ANEXOS .................................................................................................................... 101
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Justiça Comunitária – Uma experiência
APRESENTAÇÃO
A Constituição Federal de 1988, fruto da mobilização democrática da Nova República, representou profundo avanço no sentido de assegurar uma série de direitos e garantias para o povo brasileiro. Nesse contexto, o Poder Judiciário assumiu um novo e imprescindível papel – o de transformar direitos meramente formais em garantias efetivas.
A realidade fático-constitucional acabou por incluir, entretanto, e para além do incomensurável aumento de demandas, uma série de conflitos sócio-políticos e econômicos
ao âmbito de competência dos Tribunais. Houve, sem dúvidas, inchaço material do Poder
Judiciário, com impactos evidentes no tempo e na qualidade da prestação jurisdicional.
Foi posto em xeque, assim, o imperativo do acesso à justiça.
Evidente, pois, o alerta de que os métodos tradicionais de resolução judicial de
conflitos individuais e coletivos não poderiam mais ser vistos como única alternativa às
contendas e querelas individuais e sociais, bem como de que a noção de acesso à justiça
não pode e não deve se restringir ao acesso ao Judiciário. É papel da sociedade e do Poder
Público o empenho na valorização de maneiras de se efetivarem direitos e de se arbitrarem conflitos que representem alternativas concretas ao ainda moroso processo judicial –
formais e informais.
Quando o que se pretende é a obtenção de soluções satisfatórias, é fundamental
apostar e defender que as mesmas podem ser encontradas, inclusive, fora do sistema
formal de justiça. Fugir da centralização burocrática quando possível, em prol da autonomia da sociedade em torno de suas responsabilidades. É nessa crença que se insere o
Programa de Justiça Comunitária aqui apresentado.
No trabalho que agora se apresenta, é possível verificar o sucesso de um projeto
que partiu da associação entre diferentes entes públicos – Judiciário, Executivo e Legislativo
– e a esfera comunitária com suas lideranças, num objetivo uníssono. Sucesso que só foi
possível porque as instituições parceiras apostaram na capacidade da comunidade de
resolver seus próprios conflitos com autonomia, emancipação e solidariedade, oferecendo as condições necessárias para tanto.
Por acreditarmos que a democracia se configura em um processo em que a participação é elemento central, instrumento legítimo para acentuar a cidadania e lutar contra a
exclusão social, a disseminação das práticas aqui retratadas se afigura como fundamental, pois provê a continuidade dos esforços empreendidos pelos parceiros na construção
de uma sociedade mais justa, calcada na ênfase dos valores comunitários.
Márcio Thomaz Bastos
Ministro da Justiça
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Justiça Comunitária – Uma experiência
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: UMA REALIDADE
A Secretaria de Reforma do Judiciário foi criada com o objetivo de promover, coordenar, sistematizar e angariar propostas referentes à reforma do Judiciário. Tem como
papel principal ser um órgão de articulação entre o Executivo, o Judiciário, o Legislativo,
o Ministério Público, Governos Estaduais, entidades da sociedade civil e organismos internacionais, para a promoção e difusão de ações e projetos de melhoria do Poder Judiciário.
Visando democratizar a realização da justiça e criar as condições indispensáveis ao
pleno exercício da cidadania, a Secretaria de Reforma do Judiciário, juntamente com os
demais parceiros aqui apresentados, decidiu apoiar o Projeto Justiça Comunitária, por
acreditar que nele há o estímulo à comunidade, ao desenvolver mecanismos próprios de
resolução de conflitos, por meio do diálogo, da participação comunitária e da efetivação
dos direitos humanos.
O programa aqui apresentado implica uma transformação do modo de ação
institucional por incorporar as dimensões e problemáticas comunitárias em suas ações. O
reconhecimento do papel principal da comunidade na construção da justiça promove a
responsabilidade ativa e cidadã, e proporciona a apropriação por parte da própria comunidade do processo de transformação e superação de estigmas, combatendo, pois a exclusão social.
Acreditando na relevância desse papel e dando continuidade aos nossos esforços
para a melhoria do sistema de justiça brasileiro, elaboramos o presente relato dessa
experiência, cujo objetivo é retratar a realidade desse meio alternativo de resolução de
conflitos, que difere dos demais por ser intrínseco à própria comunidade.
Experimentado nesta unidade da Federação, reúne um conjunto de informações e
iniciativas que será essencial para, além de compartilhar a experiência e de fornecer
ferramentas operacionais para a sua multiplicação, trazer reflexão e diálogo coletivo dos
temas sociais.
Pierpaolo Cruz Bottini
Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça
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Justiça Comunitária – Uma experiência
JUSTIÇA COMUNITÁRIA: CONSOLIDANDO A DEMOCRACIA
E PROMOVENDO OS DIREITOS HUMANOS POR
MEIO DO ACESSO À JUSTIÇA A TODOS
O PNUD identifica o acesso à justiça como um elemento prioritário para a garantia
do desenvolvimento e como uma área de cooperação fundamental para o cumprimento
de seu mandato em várias partes do mundo. Nesse contexto e no marco de seu mandato,
o PNUD vem apoiando desde 2005, em parceria coma Secretaria de Reforma do Judiciário
do Ministério da Justiça, o Programa de Justiça Comunitária, coordenado pelo Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Para o PNUD, o Programa de Justiça Comunitária representa um paradigma com
grande potencial transformador na medida em que articula ações de disseminação de
informação jurídica, mediação de conflitos e animação de redes sociais, tendo como protagonistas e parceiros a própria comunidade – através dos agentes comunitários e membros do poder judiciário local, com o objetivo único de ampliar o acesso à justiça daquelas
pessoas que invariavelmente não dispõem de informação adequada ou dos meios necessários para tal.
O PNUD entende que o fortalecimento de programas de justiça comunitária que
levem em consideração o marco normativo brasileiro, a diversidade cultural e o respeito
à dignidade das pessoas envolvidas nos processos comunitários será um mecanismo para
a consolidação da democracia e promoção dos direitos humanos através do acesso à
justiça a todos.
A publicação desse relato é uma oportunidade ímpar de socializar essa experiência
concreta de construção coletiva. Por isso, o PNUD deseja que o presente relato da experiência de justiça comunitária coordenada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
implementada pelos agentes comunitários de justiça e cidadania e representantes do
poder judiciário sirva como exemplo de uma prática bem sucedida de acesso à justiça,
preocupada com o cidadão, e que este possa inspirar a realização de experiências semelhantes em outras cidades brasileiras e em outros países da América Latina.
Kim Bolduc
Representante Residente
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Justiça Comunitária – Uma experiência
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Justiça Comunitária – Uma experiência
PRÓLOGO
Tenho imensa honra e satisfação em apresentar o presente documento. O relato
elaborado cumpre plenamente o seu papel. Conduz de um lugar ao outro uma experiência que, no caso, é de grande sucesso. Disponibiliza, a todos os interessados, uma
concreta possibilidade de transformar a realidade ao seu redor, partindo sempre de si
mesmos.
Olho para essa experiência como quem observa uma frondosa árvore, de ampla
copa, numerosos frutos e fortes sementes. Sei que um dia essa árvore já foi semente.
Nasceu da vontade e visão da Excelentíssima Juíza de Direito Gláucia Falsarella Foley e
cresceu na terra fértil do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.
Como adubo, recebeu amor, determinação, sensibilidade e força de vontade em abundância. A seiva, que dilui os nutrientes e leva o alimento a todas as partes, ficou a cargo
dos dedicados agentes comunitários de justiça e cidadania.
Assim como o destino de uma árvore é adaptar-se ao solo e ao ambiente, crescer e
produzir frutos, também a justiça comunitária seguiu esse caminho. As informações contidas neste documento servirão, assim como as sementes, para difundir a autonomia, a
consciência e a convicção de que é possível sermos protagonistas da nossa própria história, independentemente de classe, posição ou condição social.
A todos aqueles que farão uso desse relato de experiência, uma especial recomendação: cuidem das informações deste documento como quem cuida de uma criança.
Dêem a ele a atenção e a dedicação necessárias e, assim como nós, vocês também terão
a alegria e a satisfação de terem como retorno o recompensador resultado da emancipação social, condição primeira da paz, justiça e cidadania.
Desembargador Lécio Resende da Silva
Presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
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Justiça Comunitária – Uma experiência
AGRADECIMENTOS
A Coordenação do Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal manifesta o
seu agradecimento à Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça e ao
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) pela generosa iniciativa de
divulgar esta experiência, fornecendo meios para a publicação deste relato.
Nossos agradecimentos aos membros e servidores do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, na pessoa de seu Presidente Desembargador Lécio Resende
da Silva. Essa Corte, reafirmando a sua vocação vanguardista, apostou neste projeto,
desde o seu nascedouro, e assegurou a estrutura necessária para a sua construção e
consolidação.
Um especial agradecimento a todos os membros da equipe do Programa Justiça
Comunitária que, com competência e entusiasmo, devotaram conhecimento e experiência a este trabalho, ofertando suas leituras, comentários, pesquisas e assessoria. Este
momento de celebração é de responsabilidade de cada um deles. Agradecemos ainda
pela participação valiosa a todos os consultores e consultoras nesta fase de replanejamento
do Programa.
Também gostaria de agradecer aos representantes das instituições parceiras que,
em permanente interlocução, imprimiram a sua contribuição pessoal e institucional ao
Programa. Sem a colaboração do Ministério Público do Distrito Federal, da Faculdade de
Direito da Universidade de Brasília, da Defensoria Pública do Distrito Federal, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e da Secretaria da Reforma do Judiciário do
Ministério da Justiça, a trajetória do Programa Justiça Comunitária narrada neste trabalho
não teria sido possível.
Aos Agentes Comunitários de Justiça e Cidadania, alma do Programa Justiça Comunitária e protagonistas de todas as narrativas impressas nestas páginas.
Gláucia Falsarella Foley
Juíza Coordenadora do Programa Justiça Comunitária
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Justiça Comunitária – Uma experiência
PREFÁCIO
O presente relato tem por objetivo compartilhar a experiência do Programa Justiça
Comunitária, coordenado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios,
desde outubro de 2000. A partir de uma breve contextualização do tema da justiça comunitária no cenário contemporâneo, este material oferece algumas ferramentas operacionais
para auxiliar todos aqueles que já iniciaram ou pretendem iniciar essa fascinante jornada
em busca da democratização da realização da justiça, no âmbito comunitário.
Trata-se de uma exposição – nem sempre confortável – da aprendizagem extraída desses seis anos de experiência, nas cidades-satélites de Ceilândia e Taguatinga.
A ilustração de nossos erros e acertos tem por objetivo inspirar novos e atuais programas e, na medida do possível, ajudar a evitar que experiências negativas se repitam
desnecessariamente.
É bem verdade que cada comunidade tem a sua trajetória que a faz única, e essa
experiência precede qualquer esforço institucional que lhe seja externo, porque somente
a comunidade é que pode definir o seu processo de transformação e desenvolvimento.
Contudo, é exatamente a dificuldade de sintonia entre os anseios da comunidade e os
objetivos de um programa institucional que justifica a publicação do presente trabalho.
Para que este material ganhe contornos interativos, é indispensável que haja um
diálogo entre o conteúdo aqui exposto e a perspectiva de seus leitores e usuários. Nesse
sentido, a página virtual do Programa Justiça Comunitária1 dedicará, a partir da edição
deste relato, um espaço de interação com o leitor, a fim de que o debate possa fluir,
trazendo benefícios a todos os projetos voltados à democratização da justiça, ainda que
operacionalizados sob modelos diferentes.
Partimos da convicção de que, diante de um cenário de profunda fragmentação do
tecido social, todas as experiências que busquem a animação de redes sociais, o estímulo
ao diálogo solidário e a reflexão coletiva dos temas sociais são indispensáveis e devem
ser expostas à necessária troca, à generosa partilha. Nesse sentido, a partir do registro
de uma experiência concreta, este trabalho pretende provocar o debate sobre a possível
integração entre pluralidade, autonomia, ética, democracia e justiça, a ser estabelecido
entre todos os que apostam na construção de uma sociedade mais justa, fraterna e
solidária.
É sob essa perspectiva, pois, que este trabalho pretende desenvolver não um modelo, mas caminhos possíveis para delinear os traços de uma justiça comunitária para a
emancipação social.
Gláucia Falsarella Foley
Juíza Coordenadora do Programa Justiça Comunitária
1. Disponível em: <http://www.tjdf.gov.br/tribunal/institucional/proj_justica_comunitaria/index.asp>.
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Justiça Comunitária – Uma experiência
INTRODUÇÃO
Diante da crise dos paradigmas da modernidade, a realidade contemporânea, plural e fragmentada, requer a construção de uma concepção de direito pertencente a uma
nova constelação paradigmática. No âmbito da realização da justiça, a racionalidade moderna que celebra a universalidade, a linearidade e a verticalidade já não se mostra
suficiente para lidar com as complexidades que marcam os tempos atuais.
A justiça realizada por meio da jurisdição estatal é um modelo que segue os padrões da modernidade ocidental, posto que estruturada a partir de princípios universais
pautados em imperativos legais. Trata-se de um tipo de justiça que codifica procedimentos e aplica a norma no caso concreto, com base em deduções racionais advindas da
autoridade da lei ou dos precedentes. Em situações de conflito, o Estado substitui a
vontade dos cidadãos, a fim de dizer o direito e assegurar a paz social. Sob esse padrão,
o Estado detém o monopólio do exercício da atividade jurisdicional.
Isso não significa afirmar, contudo, que o Estado detenha o monopólio da criação
do direito. Há uma parcela da sociedade que, excluída do atendimento jurisdicional, busca fórmulas próprias de resolução de conflitos, criando alternativas para manter o mínimo
de coesão social. Essa pluralidade de ordens jurídicas, apesar de ser uma realidade, em
geral não é reconhecida oficialmente pelo Estado. Contudo, a partir do final da década de
70, sobretudo nos EUA, assistimos a emergência de um movimento de resgate dos métodos alternativos de resolução de disputas (ADRs)2 como um instrumento de realização da
justiça.3
Esse fenômeno tem sido analisado sob diferentes perspectivas. O debate se divide
entre os opositores à flexibilização do pretenso monopólio estatal de realização da justiça
e aqueles que acreditam que os métodos alternativos de resolução de disputas revelam
sinais de uma justiça do futuro.
Os críticos, apesar de algumas divergências de linhas de pensamento, questionam:
seria esse movimento parte de um processo de privatização das funções consideradas
eminentemente estatais? Estaria o Estado outorgando suas atribuições jurisdicionais aos
cidadãos, deixando-lhes escapar a autoridade de arbitrar conflitos e equilibrar desigualdades para promover a paz social? Não seria essa uma forma de reservar a justiça social
aos socialmente incluídos e destinar uma justiça de “segunda classe” aos excluídos?
2. A sigla tem as iniciais da denominação em inglês: Alternative Dispute Resolution.
3. AUERBACH, Jerold S. Justice without law? Oxford, UK: Oxford University, 1983, apud FOLEY, Gláucia Falsarella. Justiça
comunitária: por uma justiça da emancipação. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília, Brasília, 2003. p. 69-72.
Justiça Comunitária – Uma experiência
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De outro lado, entre os entusiastas, encontramos desde os que vêem esse movimento como uma alternativa eficaz à morosidade e à inacessibilidade do processo judicial
oficial, até os que o consideram um instrumento de resgate do estatuto do cidadão e da
comunidade, a fim de restaurar a sua capacidade emancipatória, por meio da autogestão
de seus conflitos.
Esse movimento de resgate e de construção de novos métodos de resolução de
conflitos conta com um importante instituto, objeto de debate ao longo das últimas três
décadas: a mediação. Trata-se de um processo no qual uma terceira parte desinteressada e sem qualquer poder de decisão facilita que as partes em conflito construam uma
solução. Em contraste com o sistema jurisdicional, a lógica da mediação oferece, potencialmente, um padrão dialógico, horizontal e participativo.
Quando operada na esfera comunitária, a mediação potencializa a sua dimensão
emancipatória, na medida que trata de autodeterminação, de participação nas decisões
políticas, reelaborando o papel do conflito e desenhando um futuro sob novos paradigmas.
Muito embora a experiência a ser partilhada neste relato tenha sido concebida por
iniciativa de um ente estatal, o modelo desenvolvido é comunitário porque, além de
contar com membros da comunidade como seus principais operadores, é exatamente na
esfera comunitária, onde a vida acontece, que se estabelece o locus preferencial de atuação
do Programa. Em poucas palavras, é a justiça realizada pela, para e na comunidade.
O caráter emancipatório de um projeto não se define pela natureza da entidade
que o implementou, mas pelos princípios com os quais opera. Portanto, não há qualquer
razão na assertiva que confere legitimidade exclusivamente aos programas de justiça
comunitária levados a efeito por entes não-estatais. Se há prevalência da dialógica em
detrimento da retórica persuasiva, da coerção e da burocracia verticalizada4 , se o saber
local é respeitado como parte do processo de aprendizagem, se o conflito é transformado
em oportunidade de empoderamento individual e social e se as atividades são voltadas
para transformar tensão social em possibilidades de criação de solidariedade e paz social,
a justiça é do tipo comunitária e, como tal, ostenta vocação para a prática transformadora.
Por fim, há que se esclarecer que, embora a justiça comunitária seja por vezes
classificada como instrumento “alternativo” de resolução de conflitos, o modelo ilustrado
neste trabalho não pretende afirmar-se em substituição ao sistema judicial oficial. Ao
4. Retórica, burocracia e coerção são, na análise de Sousa Santos, os três componentes estruturais do direito que podem
se articular sob diferentes combinações, a depender do campo jurídico ou dentro de um mesmo campo (SOUSA
SANTOS, Boaventura de. O Estado e o pluralismo jurídico em África. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de; TRINDADE,
João Carlos (Orgs.). Conflito e transformação social: uma paisagem das justiças em Moçambique. Porto: Afrontamento,
2003. p. 7).
20
Justiça Comunitária – Uma experiência
contrário, o pressuposto adotado é o de que a jurisdição revela-se um instrumento apto
a proteger direitos e garantir a realização da justiça, em especial nas situações extremas
em que as circunstâncias dos conflitos repousam na violência e na ausência do diálogo e,
ainda, diante de um acentuado descompasso de poder – seja econômico, social ou político – entre as partes em conflito.
Nesse sentido, a justiça comunitária deve ser interpretada em complementaridade
ao sistema oficial. Por outro lado, considerando a sua vocação de promover a paz e
coesão social nas esferas da comunidade, onde os conflitos havidos, em geral, não são
levados ao Poder Judiciário, a justiça comunitária constitui importante instrumento de
realização de justiça, apto a integrar um projeto emancipatório que redimensione o direito, articulando-o sob uma nova relação entre ética e justiça.
Justiça Comunitária – Uma experiência
21
22
Justiça Comunitária – Uma experiência
1. BREVE APRESENTAÇÃO DO PROGRAMA JUSTIÇA COMUNITÁRIA5
1.1. Histórico
O Projeto Justiça Comunitária do Distrito Federal nasceu a partir da experiência
advinda do Juizado Especial Cível Itinerante do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
dos Territórios, o qual busca atender às comunidades do Distrito Federal com dificuldades
de acesso à justiça formal. Durante os primeiros três anos de experiência, no interior de
um ônibus especialmente adaptado para a realização de audiências, foi possível constatar
a absoluta falta de conhecimento dos cidadãos em relação aos seus direitos e, ainda, a
dificuldade de produção probatória, tendo em vista a informalidade com que os negócios
são firmados nessas comunidades.
Um fato, porém, revelava o êxito da experiência. Aproximadamente 80% da demanda do Juizado Itinerante resultavam em acordo. Esse dado confirmou que a iniciativa
do ônibus efetivamente rompeu obstáculos de acesso à justiça, tanto de ordem material,
quanto simbólica. A ruptura com a “liturgia forense” e a horizontalidade com a qual as
audiências eram realizadas ajudaram a criar um ambiente de confiança favorável ao alto
índice de acordos constatado.
Contudo, apesar dos acordos não resultarem de nenhum tipo de coerção, o que se
verificava à época era que nem sempre os seus conteúdos correspondiam ao sentimento
de justeza trazido por cada parte ao processo. Como a produção probatória era difícil, os
acordos pareciam resultar de uma razão meramente instrumental, que levava à renúncia
parcial do direito, a fim de se evitar os riscos de uma sucumbência total. Esse “consenso
da resignação”, pois, parecia contrariar todo o esforço de se buscar a democratização do
acesso à Justiça formal.
Essas constatações impulsionaram a reflexão sobre a possibilidade de se desenvolver na comunidade espaços nos quais fossem possíveis a democratização do acesso à
informação e o diálogo visando consensos justos, do ponto de vista de seus protagonistas. Para tanto, o clássico “operador do direito” deveria ceder lugar a pessoas comuns
que partilhassem o código de valores e a linguagem comunitária e, dessa forma, pudessem fazer as necessárias traduções. Delineava-se, assim, o primeiro esboço do Projeto
Justiça Comunitária.
Seus contornos, porém, ganharam maior definição no decorrer do debate havido
entre os representantes das entidades parceiras6 , os quais imprimiram, a partir da perspectiva de cada instituição, a sua contribuição para a elaboração do Programa, cujos
breves traços são apresentados a seguir.
5. O inteiro teor do Programa Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios encontra-se
disponível em: <www.tjdf.gov.br/tribunal/institucional/proj_justica_comunitaria/index.asp>.
6. Durante o segundo semestre de 1999, as instituições parceiras foram representadas pelos seguintes membros: Defensoria
Pública do Distrito Federal: Fernando Antonio Calmon Reis, defensor público; Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília: José Geraldo de Sousa Júnior, diretor da Faculdade de Direito da UnB; Alayde Avelar Freire Sant’Anna e André
Justiça Comunitária – Uma experiência
23
1.2. O Programa Justiça Comunitária. Linhas gerais7
O Projeto Justiça Comunitária foi criado em outubro de 2000, com o objetivo de
democratizar a realização da justiça, restituindo ao cidadão e à comunidade a capacidade
de gerir seus próprios conflitos com autonomia.
A iniciativa foi levada a efeito pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios, em parceria com o Ministério Público do Distrito Federal, a Defensoria Pública
do Distrito Federal, a Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e, à época, a
Comissão de Direitos Humanos da OAB/DF, sob o convênio firmado com a Secretaria de
Estado de Direitos Humanos da Presidência da República.
Atualmente, o Programa está instalado nas cidades-satélites de Ceilândia e
Taguatinga, com 332.455 e 223.452 habitantes, respectivamente8 . O Programa conta
com 40 agentes comunitários que, na qualidade de membros das comunidades nas quais
atuam, compartilham a linguagem e o código de valores comunitários.
Os agentes comunitários são credenciados no Programa, por meio de um processo de seleção levado a efeito pela equipe psicossocial9 . Encerrada essa etapa, os
selecionados iniciam uma capacitação permanente na Escola de Justiça e Cidadania10,
onde recebem noções básicas de Direito, treinamento nas técnicas de mediação comunitária e de animação de redes sociais, além da participação nos debates sobre direitos
humanos.
Macedo de Oliveira, advogados da UnB; Ministério Público do Distrito Federal e Territórios: Renato Sócrates Gomes
Pinto, procurador de justiça e Newton Cezar Valcarenghi Teixeira, promotor de justiça; Ordem dos Advogados do Brasil
- Secção do Distrito Federal (OAB/DF): Sandra Ferreira Moreira, Iaris Ramalho Cortês e Tereza de Jesus Pinheiro
Montenegro, conselheiras da OAB/DF; Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT): Edmundo Minervino
Dias, desembargador presidente; Gláucia Falsarella Foley, juíza de direito, Marcelo Girade Corrêa e Vera Lucia Soares,
técnicos judiciários.
7. Este panorama resulta de um processo de replanejamento pelo qual passou o Programa Justiça Comunitária, no
segundo semestre de 2006, o qual contou com a valiosa contribuição da consultora do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD) Doutora Marília Weigert Ennes, contratada também para a consultoria na confecção do
mapeamento social e animação de redes sociais.
8. Fonte: SEPLAN/CODEPLAN. Pesquisa distrital por amostra de domicílios – 2004.
9. O perfil dos agentes comunitários e o processo de seleção estão descritos no Capítulo 3 deste trabalho.
10. Ver Capítulo 7.
24
Justiça Comunitária – Uma experiência
A atuação dos agentes comunitários é acompanhada por uma equipe interdisciplinar,
composta de advogados, psicólogos, assistentes sociais, servidores de apoio administrativo, um artista e uma juíza que coordena o Programa. As atividades11 desenvolvidas
pelos agentes comunitários são as seguintes: 1) informação jurídica; 2) mediação comunitária; e 3) formação e/ou animação de redes sociais.
A primeira atividade tem por objetivo democratizar o acesso às informações dos
direitos dos cidadãos, decodificando a complexa linguagem legal. Para tanto, os agentes
comunitários produzem, em comunhão com os membros da equipe interdisciplinar, materiais didáticos e artísticos, tais como cartilhas, filmes, peças teatrais, musicais, cordéis,
dentre outros.
A mediação comunitária, por sua vez, é uma importante ferramenta para a promoção do empoderamento e da emancipação social. Por meio dessa técnica, as partes direta
e indiretamente envolvidas no conflito têm a oportunidade de refletir sobre o contexto de
seus problemas, de compreender as diferentes perspectivas e, ainda, de construir em
comunhão uma solução que possa garantir, para o futuro, a pacificação social.
A terceira atividade refere-se à transformação do conflito – por vezes, aparentemente individual – em oportunidade de mobilização popular e criação de redes solidárias
entre pessoas que, apesar de partilharem problemas comuns, não se organizam, até
porque não se comunicam.
Ao desenvolver essas atividades, o Programa Justiça Comunitária tem por pretensão a transformação de comunidades fragmentadas em espaços abertos para o desenvolvimento do diálogo, da autodeterminação, da solidariedade e da paz.
11. Ver Capítulo 4.
Justiça Comunitária – Uma experiência
25
2. O LOCUS: A COMUNIDADE
A complexidade e a fragmentação da realidade social são traços da contemporaneidade impressos nas esferas mundial e local. Em toda sociedade, porém, há agrupamentos humanos unidos por diversas identidades, dentre elas a territorial, que confere à
comunidade o status de locus privilegiado para o desenvolvimento de programas de transformação social.
Essa identidade territorial, segundo Kisil, é vivenciada “onde os indivíduos ou grupos sociais mais facilmente reconhecem como pertencentes a uma mesma comunidade
(...). A fonte mais imediata de auto-reconhecimento e organização autônoma é o território. As pessoas identificam-se com os locais onde nascem, crescem, vão à escola, têm
seus laços familiares, enfim se socializam e interagem em seu ambiente local, formando
redes sociais com seus parentes, amigos, vizinhos, organizações da sociedade civil e
autoridades do governo”.12
No mesmo sentido, o Programa Justiça Comunitária adota a comunidade como
esfera privilegiada de atuação, porque concebe a democracia como um processo que,
quando exercido em nível comunitário, por agentes e canais locais, promove inclusão
social e cidadania ativa, a partir do conhecimento local. É na instância da comunidade que
os indivíduos edificam suas relações sociais e podem participar de forma mais ativa das
decisões políticas. É nesse cenário que se estimula a capacidade de autodeterminação do
cidadão e de apropriação do protagonismo de sua própria história.
2.1. O conceito de comunidade
Em meio à vasta literatura sociológica dedicada a conceituar comunidade, a definição talhada por Lycia e Rogério Neumann revela-se bastante útil para este trabalho,
considerando a sua objetividade: “Comunidade significa um grupo de pessoas que compartilham de uma característica comum, uma ‘comum unidade’, que as aproxima e pela
qual são identificadas.”13
Conforme os próprios autores alertam, em geral, a unidade comum é a região onde
as pessoas vivem, mas nada impede que uma comunidade seja constituída a partir de
interesses e/ou causas partilhados. De qualquer sorte, no núcleo do conceito está localizada a idéia de identidade compartilhada.
Neste trabalho, a denominação comunidade será atribuída aos agrupamentos humanos que vivem na mesma localização geográfica e que, nessa condição, tendem a
12. KISIL, Marcos. Comunidade: foco de filantropia e investimento social privado. São Paulo: Global; Instituto para o
Desenvolvimento Social (IDIS), 2005. p. 38.
13. NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos; NEUMANN, Rogério Arns. Repensando o investimento social: a importância
do protagonismo comunitário. São Paulo: Global; Instituto para o Desenvolvimento Social (IDIS), 2004. p. 20-21.
(Coleção Investimento Social).
26
Justiça Comunitária – Uma experiência
partilhar dos mesmos serviços (ou da ausência deles), problemas, códigos de conduta,
linguagem e valores.
A partilha territorial, entretanto, não leva necessariamente à construção de uma
comunidade coesa socialmente. Essa característica vai depender do grau de conexão
entre seus membros e de sua capacidade de promover desenvolvimento local, ou seja, de
seu capital social.
O capital social se verifica de acordo com o “grau de coesão social que existe nas
comunidades e que é demonstrado nas relações entre as pessoas ao estabelecerem redes, normas e confiança social, facilitando a coordenação e a cooperação para o benefício
mútuo”.14
Segundo Robert C. Chaskin15 , a aferição da coesão social de uma comunidade se
dá a partir da análise de quatro elementos, a saber: 1) senso de comunidade ou grau de
conectividade e reconhecimento recíproco; 2) comprometimento e responsabilidade de
seus membros pelos assuntos comunitários; 3) mecanismos próprios de resolução de
conflitos; 4) acesso aos recursos humanos, físicos, econômicos e políticos, sejam locais
ou não.
Onde há coesão social, há identidade compartilhada, cuja criação depende da
mobilização social e do envolvimento com os problemas e soluções locais. Há, portanto,
segundo Putman16 , um ciclo virtuoso entre capital social e desenvolvimento local sustentável. Nesse sentido, desenvolver comunidade é um processo que “agrega valores éticos
à democracia e constrói laços de solidariedade”.17
2.2. Conhecendo o locus. O mapeamento social
Primeiramente, é preciso definir o que se pretende com o mapeamento social, a fim
de que os formulários de identificação e cadastramento dos dados sejam elaborados de
maneira a veicular as perguntas adequadas. Nesse sentido, é importante ressaltar que o
mapa a ser confeccionado não se resume a uma fotografia momentânea dos elementos
identificados, mas deve ser um guia para subsidiar o diálogo entre essas informações,
para servir de base a uma permanente animação de redes sociais.
Para o Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal, a identificação das organizações sociais é fundamental para servir de referência para: a) o processo de seleção de
14. AUSTRALIAN BUREAU OF STATISTICS, Social capital and social wellbeing, apud NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos;
NEUMANN, Rogério Arns, Repensando o investimento social: a importância do protagonismo comunitário, cit., p. 47.
15. CHASKIN, Robert J. Defining community capacity: a framework and implications from a comprehensive community
initiative, apud NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos; NEUMANN, Rogério Arns, Repensando o investimento social:
a importância do protagonismo comunitário, cit., p. 24.
16. PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da
Fundação Getúlio Vargas, 2005. p. 186.
17. KISIL, Marcos, Comunidade: foco de filantropia e investimento social privado, cit., p. 51.
Justiça Comunitária – Uma experiência
27
novos agentes comunitários; b) o encaminhamento dos participantes para a rede social,
quando a solução do conflito assim o demandar; c) o conhecimento das circunstâncias
que envolvem os problemas comunitários; e, d) a constituição de novas redes sociais ou
o fortalecimento e a animação das já existentes, quando a demanda ostentar potencial
para tanto.
No decorrer da execução do Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal, as
dificuldades enfrentadas na confecção desse mapeamento foram inúmeras, desde a carência de recursos humanos – em especial na fase inicial – até a dificuldade de se traçar
uma estratégia de animação de redes sociais, quando toda a prioridade do Programa
estava voltada para a capacitação dos agentes comunitários nas técnicas de mediação.18
Apesar das dificuldades, o Programa conseguiu reunir, com a colaboração de alguns
agentes comunitários, informações relevantes para a confecção do mapa, sem contudo
estabelecer uma conexão entre elas. Na ausência de um planejamento prévio aliado a
uma clara estratégia metodológica de conexão entre essas informações, os dados coletados
não se comunicaram.
Com o propósito de suprir essa lacuna, o Programa está desenvolvendo um passoa-passo19 como estratégia para a confecção permanente do mapeamento social das duas
cidades-satélites, o qual contém as seguintes fases:
a) definir a área geográfica a ser mapeada com limites claros;
b) definir as fontes de informação e a metodologia adequada (documentos de órgãos oficiais, visitas às instituições, entrevistas pessoais ou por telefone, entre outras);
c) recrutar os agentes comunitários para a coleta dos dados e estimular que o
façam com o auxílio de alguns moradores;20
d) criar um formulário para a identificação e o cadastramento;21
e) organizar um banco de dados apto a promover o cruzamento dessas informações.
18. Hoje, a avaliação é a de que o fato de o Programa ostentar três pilares não significa necessariamente que eles devam
ser construídos um a um. Havendo uma estrutura mínima, o ideal é que os três sustentáculos de um programa de
justiça comunitária sejam desenvolvidos em conjunto, uma vez que há íntima relação entre eles. A título de exemplo,
é a partir de uma programação eficiente das atividades voltadas à animação de redes sociais que se podem atrair
demandas para a mediação efetivamente comunitária, com largo impacto social.
19. A formulação desse passo-a-passo foi uma adaptação da experiência desenvolvida pela equipe psicossocial do Programa Justiça Comunitária da sistematização sugerida por Lycia Tramujas Vasconcellos Neumann e Rogério Arns Neumann
(Desenvolvimento comunitário baseado em talentos e recursos locais – ABCD. São Paulo: Global; Instituto para o
Desenvolvimento Social (IDIS), 2004).
20. O Programa Justiça Comunitária conta com alguns “amigos do Programa”. Em geral, são ex-agentes comunitários
que, por alguma razão, desligaram-se do Programa sem, contudo, deixarem de contribuir para a realização de
atividades pontuais.
21. Ver Anexo I.
28
Justiça Comunitária – Uma experiência
A fim de adotar uma metodologia coerente com a estrutura do Programa, a equipe
interdisciplinar reduziu a área – e as suas expectativas – objeto do mapeamento, transformando essa tarefa de difícil execução em algo viável, envolvente e eficiente. A partir
dessa redução e da consciência de que a cartografia social é uma atividade em permanente construção, adequaram-se as etapas desse processo à capacidade estrutural, para
não gerar novas frustrações.
A definição territorial da área mapeada e de suas limitações obedeceu ao critério de
local de moradia de cada agente comunitário, o que possibilitou, inclusive, maior inserção
dos agentes em sua comunidade. Optou-se por localizar deficiências e necessidades, mas
também talentos, habilidades e recursos disponíveis. Essa estratégia possibilita que o
mapeamento sirva de espelho para a comunidade que, ao se olhar, tenha consciência de
seus problemas, mas também conheça as suas potencialidades, o que é essencial para a
construção de uma identidade comunitária.
Esse método também torna possível investigar em que medida as soluções para os
problemas comunitários já existem ali mesmo, exatamente naquela comunidade que, por
razões histórico-estruturais de exclusão social, não enxerga nenhuma solução para os
seus problemas, senão por meio do patrocínio de uma instituição externa àquele habitat.
Essa conexão entre problemas e soluções promove “um senso de responsabilidade pela
comunidade como um todo, o que cria uma espiral positiva de transformação social”.22
Para que essa conexão efetivamente aconteça, é indispensável que o processo de
mapeamento não tenha por objetivo tão-somente a confecção de um banco de dados,
repleto de informações úteis, porém sem ligação entre si. A construção permanente do
banco de dados é, sobretudo, um meio de fortalecer relações e criar novas parcerias.
Segundo Lycia e Rogério Neumann, “ao identificar os recursos locais, os moradores
passam a conhecer o potencial de sua comunidade e começam a estabelecer novas conexões, ou fortalecer as já existentes, entre os indivíduos, seus grupos e as instituições
locais, assim como entre esses atores, e as causas que são importantes para o desenvolvimento daquela comunidade”.23
Nesse sentido, apresenta-se a seguir as informações a serem coletadas para o
mapeamento social do Programa Justiça Comunitária. Esse processo, sob essa nova
formatação, teve início em 25 de agosto de 2006.24
22. NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos; NEUMANN, Rogério Arns, Desenvolvimento comunitário baseado em talentos
e recursos locais – ABCD, cit., p. 26.
23. Ibidem, p. 23.
24. Nessa data teve início o semestre letivo de 2006 da Escola de Justiça e Cidadania, oportunidade em que se apresentou
a nova metodologia de captação das informações relativas à comunidade, a fim de que os agentes comunitários
possam contribuir de maneira mais efetiva para a confecção do mapeamento social.
Justiça Comunitária – Uma experiência
29
RECURSOS DISPONÍVEIS25
Associação de Moradores
Estas organizações são fundamentais por sua capilaridade e pelo potencial de produzir capital social e protagonismo comunitário, ou seja, por sua capacidade de
mobilização em torno de interesses e valores comuns. É um contraponto à cultura
de dependência de apoio institucional externo. É interessante que a identificação
das associações inclua a informação sobre seu funcionamento (local, periodicidade
de reuniões, dentre outros) bem assim as suas realizações.
Instituições em geral
Entidades públicas = escolas, hospitais, postos de saúde, parques, bibliotecas, etc.;
Associações e instituições = igrejas, clubes, cooperativas, centros comunitários,
etc.
O elenco destas instituições deve ser acompanhado de um levantamento quanto ao
acervo de recursos que cada uma delas pode oferecer. Por exemplo, é importante
registrar se uma escola pública possui – e/ou está disposta a oferecer – salas para
reuniões abertas aos finais de semana, computadores, cursos de alfabetização de
adultos, quadras de esportes, educadores voluntários, conselhos de pais e mestres, sinergia entre a escola e a comunidade, organização estudantil, etc.26
Habilidades pessoais
Em toda comunidade, é possível identificar líderes, voluntários, bordadeiras, cozinheiras, artistas, educadores, mediadores “natos” de conflitos, etc. Essas pessoas,
entretanto, muitas vezes estão “soltas” e poderiam potencializar seus talentos se
firmassem parcerias ou simplesmente se tivessem maiores oportunidades de expressar as suas habilidades. O mapeamento pode auxiliar no desencadeamento
desse processo.
DIFICULDADES
É indispensável que o formulário de informações coletadas para a confecção do
mapa tenha um espaço destinado ao registro dos problemas da comunidade, segundo a perspectiva da própria comunidade. Além disso, é interessante classificar
o problema de acordo com a sua natureza: estrutural, social, pessoal27 . Essa classificação, quando efetuada pelo próprio agente comunitário, em comunhão com as
pessoas entrevistadas, pode provocar uma reflexão importante sobre o contexto
nos quais repousam os conflitos – individuais ou coletivos – daquela comunidade.
Assim, problemas como desemprego, analfabetismo, ausência de saneamento, falta de hospitais e escolas, violência doméstica, crianças de rua, crime organizado,
gangues de jovens, alcoolismo, evasão escolar, crimes, abuso infantil, problemas
psicológicos, dentre outros, comporão um mosaico útil para impulsionar uma reflexão coletiva acerca de suas circunstâncias.
25. NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcelos; NEUMANN, Rogério Arns, Desenvolvimento comunitário baseado em talentos
e recursos locais – ABCD, cit., p. 53-61.
26. Ibidem, p. 64.
27. Ibidem, p. 24.
30
Justiça Comunitária – Uma experiência
Embora não haja um momento de conclusão do mapeamento social, eis que se
trata de um processo permanente na mesma medida da dinâmica social, é fundamental
que os resultados parciais sejam objeto de partilha e debate na comunidade. Além disso,
é importante que, periodicamente, sempre que possível, haja uma análise dos resultados
alcançados a partir da confecção do mapa, tais como parcerias, empreendimentos ou
eventos desencadeados a partir desse processo.
2.3. Animação de redes sociais
2.3.1. As redes sociais
As redes sociais são a expressão dos contornos da contemporaneidade. Para Manuel Castells, “redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos
processos produtivos e de experiência, poder e cultura”28. O padrão de organização em
rede caracteriza-se pela multiplicidade dos elementos interligados de maneira horizontal.
Os elos de uma rede se comunicam voluntariamente, sob um acordo intrínseco que revela os traços de seu modus operandi: “o trabalho cooperativo, o respeito à autonomia de
cada um dos elementos, a ação coordenada, o compartilhamento de valores e objetivos,
a multiliderança, a democracia e, especialmente, a desconcentração do poder.”29
Há um processo simbiótico entre participação política, exercício da autonomia e
solidariedade entre os membros de uma comunidade organizada em rede. As redes permitem maximizar as oportunidades para a participação de todos, para o respeito à diferença e para a auto-ajuda em um contexto de mútua assistência. Participação traz mais
oportunidade para o exercício dos direitos políticos e das responsabilidades. Para se ter
acesso aos recursos comunitários, o nível de atividade e de compromissos dos grupos
sociais aumenta e a auto-estima cresce, após a conquista de mais direitos e recursos. Há
uma reciprocidade entre os vários componentes dessa cadeia “ecológica”, na medida que
implica retroalimentação.30
Castells declara que “o principal agente da mudança atual é um padrão de organização e intervenção descentralizada e integrada em rede, característica dos novos movimentos sociais”.31
28. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução de Roneide Venancio Mayer com a colaboração de Klauss Brandini
Gerhardt. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 497 (A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, v. 1).
29. MARTINHO, Cássio. O projeto das redes: horizontalidade e insubordinação. Aminoácidos, Brasília, Agência de Educação para o Desenvolvimento (AED), n. 2, p. 101, 2002.
30. FOLEY, Gláucia Falsarella, Justiça comunitária: por uma justiça da emancipação, cit., p. 123-127.
31. “Pelo fato de que nossa visão histórica de mudança social esteve sempre condicionada a batalhões bem ordenados,
estandartes coloridos e proclamações calculadas, ficamos perdidos ao nos confrontarmos com a penetração bastante
sutil de mudanças simbólicas de dimensões cada vez maiores, processadas por redes multiformes, distantes das
cúpulas de poder. São nesses recônditos da sociedade, seja em redes eletrônicas alternativas seja em redes populares
de resistência comunitária, que tenho notado a presença dos embriões de uma nova sociedade, germinados nos
campos da história pelo poder da identidade”. E conclui: “o caráter sutil e descentralizado das redes de mudança social
impede-nos de perceber uma espécie de revolução silenciosa que vem sendo gestada na atualidade” (CASTELLS,
Manuel. O poder da identidade. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. p. 426-427.
A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, v. 2).
Justiça Comunitária – Uma experiência
31
A leitura de que as redes revelam novas formas de relações sociais também é
compartilhada por Roberto Armando Ramos de Aguiar, para quem “as redes vão possibilitando a combinação de projetos, o enfraquecimento dos controles burocráticos, a
descentralização dos poderes, o compartilhamento de saberes e uma oportunidade para
o cultivo de relações horizontais entre elementos autônomos”.32
Essa nova estrutura que vai se consolidando como alternativa ao sistema oficial
está associada à prática da mediação: “Como a verticalidade e as estruturas piramidais
vão sendo confrontadas pelas redes, a solução dos conflitos tende a abandonar as formas clássicas e judicializadas para admitir novas formas de composição de conflitos como a mediação, que consiste na possibilidade de discussão mediada dos problemas para
se chegar a um acordo final”33. Essas experiências permitem que a lógica da rígida estrutura da linguagem judicial ceda lugar à retórica, à arte do convencimento, ao
envolvimento. É o que ele denomina “direito dialogal, que respeita as diferenças e radicaliza
a democracia”.34
Mas, afinal, diante da centralidade do mercado e da retração estatal que marcam
os tempos atuais, em que malhas sociais essas redes são construídas? Quais são os
espaços possíveis para a reinvenção da emancipação?
Para Sousa Santos, as sociedades capitalistas são constituídas de seis estruturas,
seis esferas de relações sociais, as quais produzem seis formas de poder, de direito e de
conhecimento de senso comum. São espaços centrais para a produção e reprodução das
relações de poder, mas são também suscetíveis de se converterem em “lugares centrais
de relações emancipatórias”35 , a partir de práticas sociais transformadoras. Apesar de
cada esfera guardar autonomia em relação às demais, posto que apresentam dinâmicas
próprias, a ação transformadora em cada uma delas só pode ser colocada em movimento
em combinação com as demais.36
Em cada espaço dessa estrutura multifacetada, a ação transformadora destina-se a
construir condições para que os paradigmas emergentes possam ser experimentados em
oposição à reprodução dos velhos padrões de dominação. Esses espaços são os seguintes: a) a esfera doméstica, cujo paradigma dominante é constituído pela família patriarcal, em contraposição à emergência da democratização do direito doméstico, baseado na
autoridade partilhada, na prestação mútua de cuidados, dentre outros; b) o espaço da
32. E acrescenta: “Isso enseja uma profunda revisão tanto no momento da gênese normativa, nas formas de sua construção, como também aponta para novas formas de aplicação, manutenção e controle dos que vivem no interior
dessas relações, onde não há lugar para a lentidão, nem espaço para assimetrias acentuadas, nem oportunidades de
acumulação de poder pelos velhos detentores da máquina burocrática. É uma outra dimensão da democracia emergindo” (AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Procurando superar o ontem: um direito para hoje e amanhã. Notícia
do Direito Brasileiro, Nova série, Brasília, Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, n. 9, p. 71, 2002).
33. Ibidem, p. 76.
34. Ibidem, mesma página.
35. SOUSA SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo:
Cortez, 2000. p. 271.
36. Ibidem, p. 334-342.
32
Justiça Comunitária – Uma experiência
produção, no qual reina o expansionismo capitalista a ser transformado em um novo
padrão pautado em unidades de produção baseadas em cooperativas autogeridas; c) o
mercado, no qual o consumo voltado para as satisfações individualistas possa ser
direcionado para as necessidades humanas, por meio do estímulo a um consumo solidário; d) o espaço comunitário propriamente dito, em que a “sociedade colonial”37, representada por antigas formas de organização pautadas na exclusão das diferenças, possa
dar espaço à identidade múltipla, inacabada, valorizando o senso comum emancipatório
orientado para uma ação multicultural e democrática; e) a esfera da cidadania, constituída pelas relações entre o Estado e a sociedade e entre os membros da sociedade;
nesse espaço, o paradigma emergente é voltado à democracia radical, à realização dos
direitos humanos, transformando as relações de poder em autoridades partilhadas; f) o
espaço mundial, no qual o paradigma do desenvolvimento desigual e da soberania exclusiva seja transformado em soberania recíproca e democraticamente permeável.
Nesses espaços estruturais, a construção do paradigma emergente pressupõe uma
tripla transformação: do poder em autoridade partilhada; do direito despótico em direito
democrático; e do conhecimento-regulação em conhecimento-emancipação.
Os espaços privilegiados para a formação dessas redes solidárias, na perspectiva
do Programa Justiça Comunitária, são três das seis esferas indicadas por Sousa Santos: o
espaço doméstico, o comunitário e o da cidadania. Nesses espaços, é possível reinterpretar
os conflitos, instrumentalizando-os para o exercício da autonomia, sob uma perspectiva
solidária.
A autonomia é a capacidade de autodeterminação de um ser humano ou de uma
coletividade. Segundo Franco, é o “poder de se administrar por si mesmo, criando as
normas – nomos, para si mesmo – auto”. Mas, conforme adverte esse autor, o exercício
da autonomia pressupõe uma relação de poder, de vez que cada um, em sua autosuficiência, não se volta à realização da humanização. Assim, para romper com a lógica
do poder, a autonomia deve se universalizar, por meio da construção de um “mundo
unificado por comum-humanização”.38
O conceito de autonomia com o qual opera o Programa Justiça Comunitária tem,
portanto, essa dimensão da alteridade. O seu desenvolvimento ocorre nos locais em que
as pessoas erigem suas vidas e enfrentam as dificuldades, em comunhão com as outras.
É nessas arenas locais – doméstica, comunitária e da cidadania – que os cidadãos podem
desenvolver a capacidade de refletir, dialogar e decidir em comunhão os seus conflitos,
dando ensejo à realização da autonomia política, no sentido de resgate do auto nomos e
da radicalização da democracia39. Essa requer mais participação popular, menos exclusão
37. SOUSA SANTOS, Boaventura de Sousa, A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência., cit., p. 339.
38. FRANCO, Augusto. Ação local: a nova política da contemporaneidade. Brasília: Agora; Instituto de Política; Fase,
1995. p. 61 e 80.
39. MOUFFE, Chantal. Deliberative democracy or agonistic pluralism? Social Research, v. 66, n. 3, p. 745-758, 1999.
Disponível em: <http://vweb.hwwilsonweb.com/cgi-bin/webspirs.cgi>. Acesso em: nov. 2002.
Justiça Comunitária – Uma experiência
33
social e, conseqüentemente, mais justiça social. São nessas esferas que o cidadão comum sente que é possível intervir na vida política, exercitando a cidadania. São nesses
espaços que as pessoas constroem suas relações e fazem escolhas ao longo da vida. São
esses os espaços em que se tece a teia da vida.40
2.3.2. As redes sociais em movimento
Conforme já assinalado, o mapeamento social permite a descoberta das vocações,
talentos e potencialidades da comunidade e de seus membros. No decorrer da permanente sistematização e análise dos dados coletados, é importante que haja um movimento que conecte as iniciativas e organizações comunitárias, colocando-as em permanente
contato e diálogo.
A animação de redes sociais tem por objetivo promover capital social, cujo grau,
embora não possa ser mensurado41, pode ser avaliado a partir da presença dos seguintes elementos na comunidade: sentimento de pertença, reciprocidade, identidade na diferença, cooperação, confiança mútua, elaboração de respostas locais, emergência de
um projeto comum, repertório compartilhado de símbolos, ações, conceitos, rotinas, ferramentas, estórias e gestos, relacionamento, comunicação, realização de coisas em
conjunto.
Mas, como promover esses encontros em face de uma realidade que estimula o
ceticismo na comunidade e até mesmo um certo grau de resignação de seus membros
em relação aos temas afetos à vida política? Conforme Neumann assevera, “nas comunidades de baixa renda, a alta migração de moradores, a violência, a insegurança e a
desconfiança de tudo e de todos tendem a quebrar as relações sociais e a isolar as
pessoas em suas casas e espaços. Não permitindo que compartilhem anseios, dúvidas e
medos. Um trabalho de desenvolvimento de uma comunidade de dentro para fora deve
começar por aproximar as pessoas e ajudá-las a construir ou fortalecer as relações e
confiança mútua”.42
Nesse sentido, é fundamental que os agentes comunitários e a equipe interdisciplinar
mantenham em suas agendas permanentes contatos com a comunidade, por meio de
reuniões previamente organizadas.
Para preparar as reuniões, deve-se:43
• verificar se há infra-estrutura no local (se o espaço comporta o número de pessoas, se há barulho, etc.);
40. CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval
Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1997.
41. FRANCO, Augusto de. Capital social. Brasília: Instituto de Política; Millennium, 2001. p. 62.
42. NEUMANN, Lycia Tramujas Vasconcellos; NEUMANN, Rogério Arns, Desenvolvimento comunitário baseado em talentos
e recursos locais – ABCD, cit., p. 32.
43. Ibidem, p. 30.
34
Justiça Comunitária – Uma experiência
• levantar as necessidades de material;
• definir o facilitador;
• elaborar a pauta da reunião a ser divulgada com antecedência;
• elaborar um acolhimento inicial;
• elaborar uma dinâmica na qual todos possam participar;44
• fechar a reunião, “amarrando” o que foi deliberado;
• confirmar eventuais tarefas assumidas individualmente ou em grupo;
• divulgar a data de uma próxima reunião.
A reunião também deve propiciar que o tema que a ensejou seja objeto de reflexão, abordagem e troca de saberes diferenciados, incluídos o dos técnicos que eventualmente participem e daquele produzido localmente. Também deve haver um espaço
para falar do futuro, que é sempre um norteador dos esforços comunitários.
Ao proporcionar esses encontros e promover esses diálogos, os agentes comunitários agem como tecelões, contribuindo para que essa teia social se revele coesa o suficiente, indicando que aquele aglomerado humano lançou-se na aventura de construir a
sua comunidade.
44. A experiência do Programa Justiça Comunitária revelou que, quando realizadas em pequenos grupos, as reuniões
tendem a ser mais eficientes, porque propiciam um ambiente mais acolhedor e possibilitam maior conexão. As
dinâmicas envolvendo grandes grupos tendem a privilegiar somente os mais extrovertidos, o que facilita que as
decisões sejam do tipo “assembleísticas”, ou seja, prevalecem o argumento e a perspectiva daquele que levar mais
aliados e, por conseqüência, tiver maior número de adesões.
Justiça Comunitária – Uma experiência
35
3. OS ATORES E A SELEÇÃO
3.1. Os agentes comunitários
Para que o programa de justiça a ser desenvolvido seja efetivamente comunitário,
é indispensável que seus principais operadores sejam integrantes da comunidade na qual
se pretende atuar, porque não haveria sentido algum se a abordagem efetivamente comunitária de realização da justiça dependesse da atuação de técnicos sem qualquer afinidade com a ecologia local, ou seja, a linguagem e o código de valores próprios.
O palco privilegiado da justiça comunitária é a comunidade que, embora permeada
por dificuldades sociais, agrega membros com talentos e habilidades, os quais são
potencializados quando mobilizados por um trabalho comunitário que efetivamente traduza as aspirações e necessidades locais.
O fato de os agentes comunitários necessariamente pertencerem aos quadros da
comunidade na qual o Programa opera é essencial para que haja sintonia entre os anseios
e as ações locais. É por meio do protagonismo dos agentes locais que a comunidade
poderá formular e realizar a sua própria transformação.
3.2. O perfil dos agentes comunitários
Os requisitos mínimos, as responsabilidades e os compromissos exigidos para o
melhor desempenho dos agentes comunitários em suas atividades são os seguintes:
3.2.1. Requisitos pessoais
• idade mínima: 18 anos;
• grau de instrução mínimo: 2º grau completo (ensino médio);45
• experiência anterior: participação e/ou interesse em trabalhos sociais, voluntariado,
movimentos populares;46
45. No início do Programa, era suficiente que os candidatos soubessem ler e escrever. Logo em seguida, passou-se a
exigir o primeiro grau completo (ensino fundamental) para, ao final, demandar o segundo completo (ensino médio).
Essa decisão resultou da constatação de que algumas habilidades essenciais para o bom desenvolvimento das atividades
inerentes às atribuições dos agentes comunitários – habilidade de comunicação, potencial cognitivo para assimilação
do conteúdo teórico da capacitação e discernimento para relatar os casos atendidos de forma objetiva, destacando os
pontos essenciais envolvidos em cada conflito – faziam-se presentes com maior intensidade no agrupamento social
que apresentava um grau maior de escolaridade. Ressalte-se, porém, que a relevância dessas habilidades deu-se em
razão, dentre outras, do enorme desafio de construção conjunta – membros da equipe interdisciplinar e os agentes
comunitários - de um modelo de mediação comunitária. Isso significa afirmar que, tão logo a prática desse novo
modelo de mediação comunitária seja consolidada e parte dos agentes comunitários se convertam em capacitadores
da técnica de mediação, o Programa poderá rever o grau de exigência relativo à escolaridade mínima, de maneira a
incluir, em seus quadros, um número maior de membros da comunidade.
46. Inicialmente, buscou-se selecionar lideranças comunitárias para o desempenho da função. Na primeira seleção, contudo, não foi possível o preenchimento de todas as vagas com esse perfil, seja pela dificuldade, à época, de localização das lideranças na comunidade, seja porque as lideranças identificadas guardavam forte vínculo político-partidário.
36
Justiça Comunitária – Uma experiência
• aptidões e características de personalidade: capacidade comunicativa, iniciativa,
sociabilidade, autenticidade e criatividade;
• ser residente, no mínimo, por 2 (dois) anos no local onde atuará como agente
comunitário;
• primariedade criminal;
• não ter envolvimento direto com militância político-partidária.
3.2.2. Responsabilidades e compromissos
• resguardar o sigilo em relação aos casos atendidos;
• ter disponibilidade e disposição para atuar ativamente nos espaços comunitários:
residências, instituições, escolas e templos religiosos, entre outros;
• ter disponibilidade e disposição para freqüentar os cursos, reuniões e capacitações
promovidos pela Escola de Justiça e Cidadania, às sextas-feiras, no período vespertino e,
eventualmente, nos finais de semana.
3.3. As etapas da seleção
O fato de o Programa Justiça Comunitária contar com a atuação voluntária de
agentes comunitários não significa prescindir de um cuidadoso processo de seleção. Ao
contrário, exatamente porque a atividade é voluntária, o nível de compromisso que se
espera deve ser aferido, analisando-se em que medida os propósitos do Programa guardam sintonia com os anseios e com o perfil do candidato a agente comunitário.
No decorrer destes seis anos de implementação do Programa Justiça Comunitária,
foram realizados alguns ajustes na condução da seleção, a fim de aprimorar os procedimentos47. A partir da observação e avaliação permanente da atuação dos agentes comunitários, foi possível a elaboração de mecanismos que possibilitaram: a) melhor elaboração do perfil exigido para a função de agente comunitário; b) melhor definição dos procedimentos de recrutamento e seleção; e, c) melhor análise dos dados coletados na seleção.
O processo seletivo, conduzido pela equipe psicossocial do Programa, é realizado
em duas fases: recrutamento e seleção propriamente dita. O recrutamento é o processo
de captação de membros da comunidade interessados em se candidatar à atividade proposta. A seleção é o procedimento que facilita a identificação e escolha dos candidatos
A análise dos trabalhos desenvolvidos pela primeira turma de agentes proporcionou ao Programa uma constatação
importante: a condição de líder não implica necessariamente bom desempenho no papel de agente comunitário. Ao
contrário, o que se verificou é que, por vezes, alguns agentes operavam de maneira assistencialista, clientelista e
verticalizada, o que é incompatível com o propósito do Programa, que busca exatamente estimular a autonomia da
comunidade e o diálogo em relações estabelecidas horizontalmente.
47. O histórico de todos os processos seletivos e suas modificações é mostrado no Anexo II.
Justiça Comunitária – Uma experiência
37
com o perfil mais adequado para o desempenho das atividades do Programa. As etapas
desse processo serão discutidas a seguir.48
3.3.1. O recrutamento
Na fase inicial do processo seletivo, é importante divulgar a descrição das atividades
gerais inerentes à função de agente comunitário, bem assim a definição dos requisitos
minimamente exigidos, a fim de que a adesão do candidato ao processo de seleção seja
consciente, ou seja, que haja adequação entre as suas expectativas e as propostas do
Programa.
3.3.1.1. Divulgação do processo seletivo
• procurar instituições diversas49, tais como escolas, associações de moradores,
prefeituras comunitárias, ONGs, entre outras, que realizem eventos comunitários nos
quais possa haver divulgação do Programa e da seleção;
• promover eventos para a divulgação da seleção na comunidade;
• distribuir folhetos de divulgação do Programa50 e colar cartazes nos espaços da
comunidade, com a colaboração de agentes comunitários já atuantes;
• divulgar na mídia escrita e falada somente quando necessário. O ideal é que se
possa ir pessoalmente à comunidade, para que haja um direcionamento mais apurado na
busca dos possíveis candidatos.
3.3.1.2. Cadastramento dos interessados
• cadastramento de todos os interessados a serem convidados a participar da reunião de esclarecimento mais detalhado dos objetivos e atividades do Programa.51
3.3.1.3. Esclarecimentos sobre o Programa
• realização de reunião de esclarecimento aos prováveis candidatos sobre a proposta do Programa (objetivos, atividades, requisitos, capacitação, compromisso, dedicação, entre outros). Essa reunião é realizada nos Centros Comunitários correspondentes a
cada localidade na qual o Programa opera;
48. Todo o processo de recrutamento e seleção está ilustrado, de maneira simplificada, no fluxograma do Anexo III.
49. Por ocasião de um determinado processo seletivo, a equipe psicossocial remeteu cartas às organizações sociais,
solicitando a indicação de pessoas com as características desejadas. Esse mecanismo de recrutamento, porém,
mostrou-se inadequado para a identificação do perfil procurado, porque muitas instituições – em especial as lideradas
por representantes de perfil tradicional – encaminhavam pessoas carentes de emprego, sem qualquer experiência em
trabalhos comunitários ou identidade com os propósitos do Programa. A equipe psicossocial e a coordenação decidiram, então, visitar pessoalmente as instituições comunitárias, para apresentar o Programa, divulgar a seleção e
esclarecer minuciosamente o perfil exigido. Essa forma de divulgação mostrou-se mais adequada, a julgar pelo
número de candidatos que surgiram com o perfil adequado.
50. Ver Anexo IV.
51. Na verdade, o ideal é que esse cadastro seja realizado ao longo do ano, sempre que possível. Assim, havendo um
novo processo seletivo, a equipe psicossocial entra em contato com os cadastrados, para verificar se o interesse em
se candidatar permanece.
38
Justiça Comunitária – Uma experiência
• aqueles que se identificarem com a proposta, são solicitados a fazer a inscrição
por ocasião da reunião.
3.3.1.4. Inscrição dos interessados
• inscrição, por meio de preenchimento de formulário específico52, no qual constam questões objetivas e subjetivas, formuladas a partir da análise da descrição de
atividades e conseqüente avaliação técnica dos requisitos necessários ao desempenho
das mesmas.
3.3.2. A seleção
Como fase preparatória deste processo, é realizado um estudo minucioso das
atividades desempenhadas pelos agentes comunitários, com a finalidade de elaborar o
perfil que direcione as habilidades e aptidões que deverão ser identificadas no processo
seletivo. Nesse sentido, todo o processo seletivo é voltado para a identificação dos candidatos que ostentem as características adequadas à execução das atividades do Programa, descritas a seguir.
Atividades inerentes à função de
agente comunitário de justiça e cidadania
1. Atender, individualmente solicitantes (individuais ou coletivos) que estejam envolvidos em um conflito.
53
2. Preencher formulário
específico com os dados e a demanda dos solicitantes.
3. Refletir com a equipe interdisciplinar, instalada no Centro Comunitário de Justiça
e Cidadania, sobre as possibilidades de encaminhamento do caso atendido.
4. Caso a demanda não seja adequada à mediação, e havendo interesse dos
solicitantes, o agente comunitário poderá encaminhá-los aos núcleos de assistência judiciária gratuitos ou sugerir que procurem um advogado de sua confiança, para o ajuizamento da competente ação judicial.
5. Caso a demanda seja administrativa, informar às pessoas ou grupos sobre os
órgãos competentes e documentos necessários para o melhor encaminhamento
do caso.
6. Se o caso ostentar vocação para a mediação, esclarecer sobre essa técnica de
resolução de conflitos e estimular que todos os participantes do conflito experimentem essa possibilidade.
7. Mediar, em parceria, conflitos entre pessoas ou grupos interessados em solucioná
los sem a intervenção do Poder Judiciário, com vistas a obter um acordo mutuamente aceitável.
52. Ver Anexo V.
53. Ver item 10.2 e Anexo II.
Justiça Comunitária – Uma experiência
39
8. Fazer o acompanhamento contínuo do caso atendido, mesmo que já tenha havido a celebração formal do acordo.
9. Procurar integrar-se à comunidade, participando dos eventos comunitários e/ou
promovidos por entes públicos.
10. Incentivar a construção de redes na comunidade, para a busca coletiva das
soluções mais adequadas aos problemas comuns.
11. Divulgar o Programa Justiça Comunitária na comunidade, mediante distribuição de panfletos, reuniões com grupos diversos, entrevistas nos meios de
comunicação, apresentação de peças teatrais, dentre outros.
12. Participar dos encontros interdisciplinares semanais da Escola de Justiça e
Cidadania.
13. Realizar levantamento das instituições e dos movimentos sociais que operam
na área de atuação correspondente a cada agente (confecção do mapeamento
social).
14. Partilhar com a comunidade as informações coletadas na confecção do
mapeamento social.
15. Buscar a integração entre a comunidade e as instituições mapeadas, visando à
animação de redes sociais
16. Solicitar ajuda à equipe psicossocial, sempre que necessário, para a reflexão e
compreensão do papel desempenhado.
17. Buscar atualizar-se constantemente, por meio de leituras, debates com os
demais colegas, presença nas aulas da Escola, entre outros.
18. Executar outras tarefas, correlatas às já descritas, que possam surgir com o
desenvolvimento do trabalho.
3.3.2.1. Análise dos formulários de inscrição
Esta etapa consiste na leitura crítica dos formulários preenchidos pelos candidatos,
observando-se os requisitos objetivos exigidos e identificando os traços pessoais relevantes, que serão melhor avaliados na dinâmica de grupo e na entrevista.
3.3.2.2. Dinâmica de grupo
Este mecanismo é um processo vivencial que busca, a partir do contato grupal,
promover a integração, o aprendizado e a reflexão. No contexto seletivo, é uma alternativa que possibilita aprofundar o conhecimento dos candidatos, bem como observar as
características descritas dos perfis apresentados e a desenvoltura de cada candidato em
situação de grupo.
Nesta etapa, são formados grupos compostos por, no máximo, vinte e cinco pessoas, oportunidade em que se aplica uma dinâmica específica, a ser definida pela equipe
40
Justiça Comunitária – Uma experiência
psicossocial54 . A adoção da dinâmica de grupo como uma etapa da seleção favoreceu a
avaliação dos candidatos, pois as situações de vivência grupal possibilitaram melhor
visualização de características, tais como sociabilidade, criatividade e potencial de estabelecer relações horizontais na interação grupal.
3.3.2.3. Entrevista de seleção
A entrevista é uma técnica de seleção levada a efeito pela equipe psicossocial, que
possibilita interação mais próxima com o candidato. Por meio da entrevista, é possível
confirmar ou refutar as impressões havidas durante a dinâmica de grupo, o que possibilita melhor identificação dos candidatos que se revelam mais adequados à função, a partir
de suas características pessoais, experiências profissionais e sociais, identificação com o
Programa e com trabalhos comunitários.
3.3.2.4. Referências judiciais e sociais
Trata-se de uma pesquisa desenvolvida em duas esferas: verificação no sistema
judicial quanto à primariedade criminal do(a) candidato(a) e pesquisa realizada na vizinhança do(a) candidato(a), a partir dos dados por ele(a) fornecidos no formulário de
inscrição. Essa segunda etapa tem por objetivo averiguar em que medida os membros da
comunidade conhecem e respeitam o(a) candidato(a) e se há algo de natureza grave em
seu comportamento que possa comprometer a sua atuação para a promoção da paz
social.
Essa medida foi adotada após o Programa ter afastado – por problemas específicos
– um agente comunitário que foi selecionado no período em que só havia aferição de
eventual registro criminal no sistema judicial. Embora esse agente comunitário ostentasse, à época, primariedade criminal, era conhecido na comunidade por sua conduta social
inadequada, o que só foi possível constatar, infelizmente, após a atuação do mesmo no
Programa.
3.3.2.5. Escolha dos candidatos
Cabe à equipe psicossocial, em conjunto com a coordenação e, quando possível,
com os representantes das instituições parceiras, a escolha e conseqüente credenciamento
dos candidatos que atenderam ao perfil requerido para o desempenho das atividades de
agente comunitário de justiça e cidadania. Uma vez definido o quadro dos novos agentes,
o Programa remete aos candidatos não selecionados uma carta de agradecimento pela
participação do processo seletivo.
54. Ver Anexo VI.
Justiça Comunitária – Uma experiência
41
3.4. O quadro atual de agentes comunitários de justiça e cidadania
Nos dias 8 e 9 de novembro de 2005, os agentes comunitários de Taguatinga e
Ceilândia foram convidados a expressar a compreensão do trabalho que realizam, por
meio de uma dinâmica de grupo promovida pela equipe interdisciplinar55, cujo objetivo
era o de identificar as representações do grupo, quanto ao seu papel na comunidade. O
resultado está ilustrado a seguir.
Ser agente comunitário, para os agentes de Ceilândia, é “ser transformador e
compromissado, estar capacitado a agir na comunidade de forma solidária, alegre e criativa, disposto a construir a paz e ajudar a resolver conflitos, promovendo a cidadania”.
Para os agentes de Taguatinga, o agente comunitário é “pessoa que sabe cooperar,
mobilizar, respeitar as diferenças, transmitindo segurança e confiança, ajudando e motivando as pessoas a encontrar a melhor solução para os conflitos, respeitando o seu limite
e o limite do outro”.
Agentes comunitários e perfis
Ademar da Costa Santos, 52
anos, nível superior incompleto, Técnico de segurança do
trabalho.
Deus Eli Cândida de Oliveira,
45 anos, 2º grau completo,
dona de casa.
Arnaldo Bezerra Maia, 45 anos,
2º grau completo, Motorista.
Elisabeth da Silva Nakatani,
35 anos, 2º grau completo,
Alfabetizadora.
Célia Maria Ferreira Régis Barbosa, 52 anos, curso superior
em Letras, dona de casa.
Eulenice Marques de Oliveira,
47 anos, 2º grau completo,
Promotora legal popular.
55. A dinâmica foi iniciada com uma busca individual em revistas e jornais de figuras representativas que pudessem
completar a frase: “Ser agente é...”. Em seguida, foram formados pequenos grupos para compartilhar as escolhas e
montar um painel com as figuras selecionadas. Finalmente, solicitou-se a construção de um único conceito do grupo,
a partir de todos os painéis.
42
Justiça Comunitária – Uma experiência
Fernando Belchior Fontinele,
30 anos, superior incompleto,
Servidor público.
Jacira dos Santos Moura, 24
anos, 2º grau completo, Promotora legal popular.
Francisca das Chagas Freire
Gomes, 35 anos, 2º grau completo, dona de casa e artesã.
José Roberto Monteiro Gomes, 31 anos, 2º grau completo, Body piercing.
Francisco Amaral Medeiros, 52
anos, 2º grau completo, Militar aposentado.
Juciária Rios Debian Soares, 47
anos, superior completo, dona
de casa.
Gardênia Moura Elvas,42 anos,
2º grau completo, artesã.
Lindalva do Nascimento, 57
anos, superior completo, Professora aposentada.
Hernandes Assis de Freitas,
25 anos, superior incompleto,
estudante.
Luzenildes Miranda da Silva, 30
anos, curso superior em Letras,
Professora.
Hilda Teixeira Vilaça, 31 anos,
2º grau completo, estudante.
Luzia Lúcio Lopes Araújo, 50
anos, 2º grau completo, dona
de casa.
Justiça Comunitária – Uma experiência
43
Maria das Dores Santos Sousa,43 anos, superior incompleto, Corretora.
Maria de Lourdes Vieira Bueno,
52 anos, superior completo,
Professora aposentada.
Sara Guimarães Bernardino
Bastos, 47 anos, superior incompleto, dona de casa.
Sifízia Mota Figueiredo,
30 anos, superior completo,
Administradora.
Maria Suely Ribeiro, 48 anos,
2º grau completo, Auxiliar técnica em comunicação.
Silvina da Conceição A. Alves,
31 anos, 2º grau completo,
Manicure.
Marilene Conceição Santos,
38 anos, 2º grau completo,
Professora.
Valdeci Pereira da Silva, 48
anos, 2º grau completo, Servidor público.
Roberta Lins Lopes Fontinele,
29 anos, superior completo,
Administradora.
Wilson Francisco de Almeida,
38 anos, Professor de educação física e estudante de
direito.
Rosilene Pereira dos Santos
Torres, 34 anos, superior incompleto, estudante.
44
Justiça Comunitária – Uma experiência
4. AS ATIVIDADES DOS AGENTES COMUNITÁRIOS
Cada agente comunitário atua na área adjacente ao seu local de moradia, atendendo às demandas individuais e/ou coletivas que lhe forem apresentadas diretamente pelos
cidadãos ou encaminhadas pelo Centro Comunitário respectivo.
A depender da natureza do conflito apresentado, várias são as possibilidades que
podem ser propostas pelos agentes comunitários aos solicitantes. O encaminhamento
sugerido ao caso concreto é definido em uma reunião entre os agentes comunitários e a
equipe interdisciplinar que atua no Centro Comunitário de Justiça e Cidadania. De qualquer sorte, sempre que possível, o agente comunitário buscará estimular o diálogo entre
as partes em conflito, propondo, quando adequado, o processo de mediação.
Basicamente, as atividades desempenhadas pelos agentes comunitários são as
seguintes: 1) informação jurídica; 2) mediação comunitária; e 3) criação e/ou animação
de redes sociais.
4.1. Informação jurídica
O desconhecimento dos cidadãos de seus direitos e dos instrumentos disponíveis
para a sua efetivação constitui um dos obstáculos para a realização da justiça, porque a
linguagem forense, cunhada no ordenamento jurídico pelos seus operadores, e ainda o
formalismo e a complexidade do sistema processual dificultam o acesso ao sistema judicial. Nesse sentido, a democratização da informação jurídica é um dos pressupostos da
igualdade entre os cidadãos, razão pela qual a sua promoção é uma das atividades desenvolvidas pelos agentes comunitários de justiça e cidadania.
Essa frente de atuação do Programa revela uma dimensão tridimensional: preventiva, emancipatória e pedagógica. É que a democratização da informação jurídica, ou
seja, o esclarecimento dos direitos dos cidadãos e das vias para efetivá-los contribui
para: a) prevenir futuros litígios que, por vezes, são deflagrados pela mera ausência de
informação; b) empoderar as partes em disputa, para que eventual processo de mediação possa proporcionar um diálogo em situação de igualdade; c) reunir condições para
que o cidadão saiba buscar, na via judiciária, a satisfação dos seus direitos, quando e se
necessário.
As atividades de informação jurídica do Programa têm por base o uso de recursos
pedagógicos criados sob a inspiração da arte popular, o que contribui para o fortalecimento das raízes culturais brasileiras e o resgate da identidade cultural entre os membros da
comunidade. Nesse sentido, uma das atividades dos agentes comunitários na Escola de
Justiça e Cidadania é a produção de materiais didáticos, tais como cartilhas, musicais,
cordéis e peças teatrais que, ao mesmo tempo em que utilizam uma linguagem acessível
do direito, veiculam padrões culturais populares.
Justiça Comunitária – Uma experiência
45
4.1.1. Reflexões práticas. Informação jurídica
Inicialmente, o Programa Justiça Comunitária denominava esta atividade “orientação jurídica”, a qual englobava tanto as informações de natureza preventiva, úteis nas
situações pré-conflitos, quanto as informações necessárias para as situações pós-conflitos. Nesse último caso, buscava-se capacitar os agentes comunitários para a orientação
dos solicitantes interessados em buscar a efetivação de seus direitos perante o Poder
Judiciário.
A princípio, essa atividade mostrava-se indispensável, sobretudo após a realização
de um levantamento qualitativo interno, que mostrou o quão inseguros os cidadãos se
sentem quando estão prestes a ingressar no sistema judicial formal, seja na condição de
autor, réu ou testemunha. A pesquisa revelou ainda que é freqüente o medo de se estar
na presença de um juiz ou mesmo o constrangimento em receber das mãos de um oficial
de justiça uma intimação ou citação judicial.
Contudo, após a análise das estatísticas56 dos atendimentos, que demonstraram
excessiva centralidade na atividade de orientação jurídica pós-conflito e, diante do baixo
número de mediações realizadas, o Programa decidiu restringir a atividade de orientação
pós-conflito à informação jurídica pré-conflito. A uma porque, em razão de sua especialidade, a tarefa de orientação jurídica exige intensa presença dos profissionais do direito
(advogados, defensores públicos) na condução da atividade, o que afasta a possibilidade
de protagonismo dos agentes comunitários. A duas porque, na medida que há entidades
públicas e privadas57 constituídas para esse fim, o Programa de Justiça Comunitária pode
concentrar seus esforços em outras atividades, para as quais não há possibilidade de
substituição, otimizando assim seus recursos.
Assim, a partir de agosto de 2006, o Programa Justiça Comunitária do Distrito
Federal decidiu investir no aspecto preventivo dessa atividade e orientou os agentes
comunitários a incentivar os solicitantes, envolvidos em litígios já instaurados, a buscar a
efetivação de seus direitos perante o Poder Judiciário, recorrendo para tanto à assistência
judicial prestada pelas universidades, pela Defensoria Pública ou por advogados da confiança dos solicitantes.
4.2. Mediação comunitária
O conflito não pode mais ser visto como algo necessariamente negativo. Posto que
inerente à vida, o conflito é o resultado natural das diferenças entre os seres humanos.
Assim, uma nova concepção de justiça deve atribuir sentido positivo aos conflitos, visando superá-los de forma criativa e, quando possível, solidária.
56. Ver item 9.1.
57. Além da Defensoria Pública, a população economicamente vulnerável do Distrito Federal conta com a assistência
jurídica oferecida pelos núcleos de prática jurídica de algumas Faculdades de Direito públicas e privadas. As informações relativas a esses serviços estão sistematizadas no “Guia de Encaminhamentos”, que integra este trabalho.
46
Justiça Comunitária – Uma experiência
O processo judicial, como ferramenta para a resolução de conflitos, exalta o contraditório, divide dialeticamente o certo do errado, atribui culpa e identifica, ao final, ganhadores e perdedores. Mesmo quando o processo judicial celebra a conciliação e formaliza a
composição judicial, o acordo nem sempre se mostra eficaz no que diz respeito ao senso
de justiça que cada parte leva ao processo porque, muitas vezes, dados os riscos da
sucumbência, a adesão ao consenso é movida por uma razão meramente instrumental.
Nesse sentido, há que se construir, por meio da razão dialógica, um consenso sobre
a justeza da solução que ajude a edificar a ética da alteridade. Os protagonistas do
conflito, quando interagem em um ambiente favorável, podem tecer uma solução mais
sensata, justa e fundamentada em bases satisfatórias, tanto em termos valorativos quanto
materiais.
Uma ferramenta eficiente para essa nova abordagem é a mediação. Com precisão
e simplicidade, Littlejohn conceitua mediação como um “método no qual uma terceira
parte imparcial facilita um processo pelo qual os disputantes podem gerar suas próprias
soluções para o conflito”.58
Qualquer que seja a técnica de mediação a ser aplicada, os elementos essenciais
que a caracterizam são os mesmos: a) o processo é voluntário; b) o mediador é terceira
parte desinteressada no conflito; c) o mediador não tem poder de decisão; d) a solução é
construída pelas partes em conflito.
Quando operada em base comunitária, a mediação ganha especial relevo, na medida que os mediadores são membros da própria comunidade. Nesse sentido, embora
imparciais em relação aos interesses dos participantes, integram a ecologia local, o
que os tornam aptos a identificar quais são os valores relevantes para a construção da
solução.
Além disso, a dinâmica da mediação comunitária fortalece os laços sociais, na medida que opera para e na própria comunidade, convertendo o conflito em oportunidade de
tecer uma nova teia social. Na mediação efetivamente comunitária, a própria comunidade
produz e utiliza o conhecimento local para a construção da solução do problema que a
afeta. Em outras palavras, a comunidade abre um canal para “dar respostas comunitárias
aos problemas comunitários”.
Para tanto, a confecção do mapeamento social59 é fundamental para que os agentes comunitários possam sugerir eventual encaminhamento dos participantes da mediação comunitária à rede social60, após a compreensão do contexto em que se situa o
conflito. Assim, ao mesmo tempo em que se opera com uma abordagem voltada para o
futuro, buscando evitar que aquele problema se perpetue, esse enfoque de mediação
possibilita a reflexão sobre as circunstâncias em que repousam os conflitos.
58. LITTLEJOHN, Stephen W. Book reviews: The promise of mediation: responding to conflict through empowerment and
recognition by Roberto A. B. Bush and Joseph P. Folger. International Journal of Conflict, p. 103, jan. 1995.
59. Ver item 2.2.
60. Ver “Guia de Encaminhamentos”, que integra este trabalho.
Justiça Comunitária – Uma experiência
47
Nesse sentido, ainda que não haja acordo, a mediação não será considerada necessariamente falha, porque o objetivo é o aperfeiçoamento da comunicação e da participação da comunidade na criação e/ou animação de redes sociais. A idéia subjacente é a de
que a participação nas mediações comunitárias empodera os protagonistas do conflito e
proporciona meios para administrá-lo pacificamente.
Quanto a esse aspecto, adota-se aqui o modelo transformativo de Bush e Folger61,
segundo o qual “a mediação é exitosa (1) se as partes se conscientizarem das oportunidades de empoderamento62 e reconhecimento apresentadas durante o processo; (2) se
as partes foram ajudadas a clarificar suas metas, opções e recursos para fazer escolhas
livres; (3) se as partes foram estimuladas ao reconhecimento em qualquer direção que a
decisão tenha sido tomada”.
4.2.1. Reflexões práticas. Mediação comunitária
Atualmente, diante da diversidade de abordagens e técnicas de mediação, é necessário que a seleção do profissional ou escola que irá capacitar os mediadores de um
programa de justiça comunitária seja cuidadosa, a fim de que o treinamento seja adequado à realidade da comunidade onde o programa atua e respeite o perfil dos agentes
comunitários. Nesse sentido, é preciso verificar se os materiais didáticos e os professores
utilizam uma linguagem apropriada para esse público específico.63
Além do cuidado na seleção da escola de capacitação em técnicas em mediação, é
fundamental que se defina o tipo de conflito que o programa pretende preferencialmente
atender. É bem verdade que a comunidade tem a sua própria demanda, e se o que se
pretende, em última instância, é estimular a autonomia da comunidade, não haveria
muito sentido em se escolher a priori as demandas que serão atendidas. Contudo, a
realidade comunitária é tão múltipla e as necessidades são tão extensas que uma definição prévia da natureza da demanda a ser preferencialmente atendida pode trazer benefícios ao programa e à capacitação dos agentes comunitários. Assim, se a escolha priorizar
o atendimento aos conflitos familiares, por exemplo, será fundamental que a capacitação
em mediação seja realizada por profissionais especialistas nessa área.
No caso do Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal, as estatísticas64 revelam que as mediações familiares ganharam excessiva centralidade, desde o início do
Programa até agosto de 2006, quando então alterações estruturais foram levadas a efeito, com o intuito de imprimir um caráter mais comunitário e menos interpessoal aos
conflitos preferencialmente atendidos pelo Programa.
61. BUSH, Robert A. Baruch; FOLGER, Joseph P. The promise of mediation: responding to conflict through empowerment
and recognition. San Francisco, CA: Jossey-Bass, 1994. p. 81.
62. Do inglês empowerment. Trata-se de um anglicismo, uma vez que essa palavra não integra a língua portuguesa. “O
processo de empoderamento reúne atitudes individuais (auto-estima, auto-eficácia) e habilidades (conhecimento,
aptidões e consciência política) para capacitar ações individuais e colaborativas (participação política e social), a fim
de atingir metas pessoais e coletivas (direitos políticos, responsabilidades e recursos)” (SCHWERIN, Edward W.
Mediation, citizen empowerment and transformational politics. London; Westport, Connecticut: Prager, 1995. p. 81).
63. Os quesitos para a aferição da adequação da abordagem dos cursos de capacitação em mediação às particularidades
do Programa estão expostos no item 7.3.2.
64. Ver item 9.1.
48
Justiça Comunitária – Uma experiência
Muito embora as mediações familiares, quando realizadas com técnicas adequadas, proporcionem todos os benefícios da mediação – reflexão sobre as circunstâncias
que envolvem o conflito; compreensão da perspectiva do outro participante no conflito;
diálogo solidário a respeito da divergência de interesses; empoderamento e emancipação
das partes; resgate de laços afetivos; e respeito entre os participantes –, o Programa
Justiça Comunitária optou por desenvolver técnicas de mediação que também fossem
adequadas a lidar com conflitos de maior impacto social, não se limitando, portanto, aos
conflitos familiares.65
Assim, durante a realização dos cursos de formação em diferentes técnicas de
mediação66, o Programa Justiça Comunitária iniciou um movimento de construção e consolidação de uma metodologia de mediação adequada aos conflitos efetivamente comunitários. Esse processo resultou na elaboração de um fluxograma67, de um formulário68 e de
um roteiro69 que contêm o passo-a-passo da mediação e os princípios que norteiam a
conduta ética do mediador.70
Uma das medidas adotadas foi introduzir a possibilidade de os participantes
diretamente envolvidos no conflito convidarem, mediante mútua anuência, terceiros –
membros da rede pessoal e social das partes – para atuarem como suportes das partes
do conflito e como colaboradores na construção de uma solução pacífica voltada para o
futuro. Essa é uma técnica simples, mas com vocação para atuar sistemicamente, eis que
proporciona maior envolvimento e conseqüente compromisso entre todos aqueles que
direta ou indiretamente são afetados pelo conflito.
Sem prejuízo da consolidação dessa nova metodologia que favorece a mediação de
conflitos com maior impacto social, o Programa manteve o atendimento às mediações
familiares, seja pela relevância social dessa demanda, seja porque o fato de a mediação
ser familiar não descaracteriza necessariamente a sua natureza comunitária. É verdade
que a técnica de mediação para esses casos requer menor participação da comunidade –
em razão da matéria envolver questões de foro íntimo – e maior atuação da equipe
interdisciplinar, eis que, por vezes, o caso é delicado do ponto de vista psicossocial ou
juridicamente complexo, por envolver, por exemplo, interesse de criança. Contudo, por
65. Isso não significa afirmar que os conflitos familiares não tenham impacto social. O que se buscou foi a ampliação das
demandas para além da seara familiar.
66. Os cursos de capacitação em mediação realizados no decorrer dos seis anos de execução do Programa Justiça
Comunitária foram os seguintes: Workshop de Mediação (prof. Luis Alberto Warat), novembro de 2000; Curso de
Formação em Mediação e Negociação para Agentes Comunitários de Justiça e Cidadania (profs. Luis Alberto Warat e
Lígia Maria Dornelles), agosto, setembro e outubro de 2001; Curso de Mediação Comunitária para os Agentes Comunitários de Justiça e Cidadania de Taguatinga (prof. André Gomma de Azevedo), setembro e outubro de 2002; Curso
Modelo Zwelethemba (prof. John Cartwright), outubro de 2005; e Curso de Mediação Técnico-comunitária (profas.
Célia Regina Zapparolli, Reginandrea Gomes Vicente, Lilian Godau dos Anjos Pereira Biasoto e Glaucia Vidal), outubro
de 2006.
67. Ver Anexo VII.
68. A consolidação desse formulário, que se encontra no Anexo VIII, foi resultado de um trabalho conjunto dos agentes
comunitários, da equipe interdisciplinar do Programa Justiça Comunitária e da equipe docente do Curso de Mediação
Técnico-comunitária, professoras Célia Regina Zapparolli, Glaucia Vidal, Reginandréa Gomes Vicente e Lílian Godau
dos Anjos Pereira Biasoto, realizado em Brasília, entre os dias 6 e 15 de outubro de 2006.
69. Ver Anexo IX.
70. Um dos aspectos que envolvem a ética do mediador é a confidencialidade, cujo termo a ser assinado pelas partes, no
início da sessão de mediação, encontra-se no Anexo X.
Justiça Comunitária – Uma experiência
49
todas as razões já expostas, a emancipação e o empoderamento que se pretende com a
aplicação das técnicas de mediação também são importantes, quando desenvolvidas na
esfera doméstica, no seio familiar.
4.3. Formação e/ou animação de redes sociais
O desenvolvimento local, quando integrado e sustentável, possibilita a emergência
de comunidades capazes de identificar e mobilizar recursos locais, além de conhecer suas
vocações e reais capacidades. O agente comunitário, como articulador de uma rede de
cidadania, identifica – em comunhão com os representantes dos movimentos sociais já
instituídos – as carências comunitárias que possam ser transformadas em oportunidades
de mobilização social e promoção de mediações de natureza coletiva. Esse processo contribui para restituir à comunidade a capacidade da autodeterminação, diante de seus
conflitos.
A diversidade inerente a qualquer espaço comunitário, quando fragmentada, pode
se transformar em atrito social. Um dos papéis do agente comunitário é, pois, ter um
papel ativo na restituição do tecido social, criando e/ou valorizando uma teia de relações
que integrem diversas iniciativas e que promovam desenvolvimento local multifacetado.
É interessante observar, porém, que esse processo não é unilateral. Enquanto age
na qualidade de “tecelão” desta trama social, o agente comunitário é envolvido em um
emaranhado de transformações em sua esfera subjetiva e relacional. É na alteridade, nas
relações concretas advindas de sua atuação transformadora, na reflexão coletiva dos
problemas comunitários, nas discussões sobre os direitos humanos e sobre o respeito às
diferenças, nas reflexões sobre subjetividades, dentre outros, que o agente comunitário
pode experimentar a exata dimensão da construção da democracia, da solidariedade e da
paz.
Para tanto, a equipe interdisciplinar do Programa, juntamente com os agentes comunitários respectivos de cada região, organizam reuniões freqüentes na comunidade,
com o objetivo de: a) reforçar os vínculos entre os agentes e a comunidade; b) conhecer
a rede de serviços disponível e de movimentos sociais; c) mapear os problemas comunitários; d) captar demandas para a mediação comunitária; e) identificar e estabelecer
diálogo com as lideranças locais; f) conhecer os espaços físicos passíveis de realização
das sessões de mediação; g) divulgar os objetivos e o funcionamento do Programa;
h) avaliar permanentemente o impacto da atuação do Programa.
Por meio do desenvolvimento da atividade voltada à formação e/ou animação de
redes sociais, o Programa Justiça Comunitária reforça a sua aposta na realização da
justiça por meio da ação cidadã que se desenvolve à medida que esses novos atores
sociais, tecelões dessa rede de iniciativas solidárias, multiplicam, na diversidade, as
atividades voltadas ao bem-estar comunitário.
50
Justiça Comunitária – Uma experiência
4.3.1. Reflexões práticas. Formação e/ou animação de redes sociais
Há duas espécies de rede que podem ser desenvolvidas nesta atividade. A rede
social e a rede local.
A rede social é aquela composta de inúmeras entidades – públicas e privadas –
prestadoras de serviços, associações de moradores, movimentos sociais, organizações
religiosas, dentre outras. Para que se tenha conhecimento desses módulos organizacionais,
o Programa deve confeccionar o mapeamento social71. Conforme já foi destacado, não
basta localizar as inúmeras iniciativas comunitárias e colocá-las sobre um mapa visível
para todos os membros do Programa. Para que a rede funcione como um elemento
integrador da diversidade72, o Programa deve colocá-la em movimento, o que significa
proporcionar encontros, diálogos, trocas de informações e partilha de experiências entre
todos os seus componentes. Somente assim a rede se potencializa, possibilitando que as
organizações que a compõem multipliquem suas iniciativas, por meio do fluxo de informações e encaminhamentos recíprocos.
A rede social é uma referência fundamental para os agentes comunitários, quando
necessário o encaminhamento do solicitante a um serviço não atendido pelo Programa,
ou mesmo quando frustrada a tentativa de mediação.
Além disso, quando há uma estreita relação entre o Programa de Justiça Comunitária e a rede social, a Escola de Justiça e Cidadania73 pode contribuir para a dinamização
da rede, oferecendo aos seus integrantes cursos de técnicas em mediação, para que cada
qual, em sua atuação social, possa adotar técnicas que valorizem o diálogo e a autonomia
na gestão dos conflitos.
A rede local, por sua vez, é aquela que se forma a partir de um conflito específico.
Uma das primeiras providências do agente comunitário, quando solicitada a sua ajuda, é
analisar se aquele problema aparentemente individual oferece potencial coletivo. Ou seja,
é preciso investigar em que medida aquele conflito não é resultado de um problema
subjacente a outros membros da comunidade. Se afirmativo, é fundamental que todos os
afetados pela questão sejam mobilizados, para que se busque uma solução definitiva,
mas construída por e para todos. Trata-se de uma medida simples, com enorme potencial
de criação de solidariedade, a partir do conflito.
71. Ver item 2.2.
72. CURTY, Ana Luisa. A ética nos dá o sentido. In: ÁVILA, Célia M. (Coord.). Gestão de projetos sociais. 2. ed. São Paulo:
AAPCS, 2000, p. 52.
73. Ver Capítulo 7.
Justiça Comunitária – Uma experiência
51
5. A EQUIPE INTERDISCIPLINAR
5.1. O papel da interdisciplinaridade
A abordagem interdisciplinar é uma alternativa à fragmentação do saber, inerente à
epistemologia positivista. Trata-se de uma ferramenta apropriada para a construção de
um conhecimento integrado que rompa com as fronteiras e o hermetismo das disciplinas.
O diálogo entre as diversas áreas do conhecimento proporcionado pela
interdisciplinaridade, contudo, não resulta de uma mera justaposição de conteúdos, mas
de uma atitude que implica reciprocidade, compromisso mútuo e integração entre diferentes perspectivas acerca de um mesmo objeto.74
Adotar uma postura interdisciplinar, porém, não implica desqualificar a especificidade
de cada área do conhecimento. Ao contrário, segundo Gadotti, deve haver uma “fragmentação necessária no diálogo inteligente com o mundo e cuja gênese encontra-se na
evolução histórica do desenvolvimento do conhecimento. Nesta visão de interdisciplinaridade, ao se respeitar os fragmentos de saberes, procura-se estabelecer e compreender a relação entre uma totalização em construção a ser perseguida e continuadamente a
ser ampliada pela dinâmica de busca de novas partes e novas relações”.75
No campo do trabalho social, a interdisciplinaridade ganha especial relevo porque
promove a articulação das diversas áreas da ciência com a vivência e o saber comunitários; dois pólos do conhecimento que raramente se comunicam. Nesse sentido, o movimento em direção a essa unidade compartilhada do saber pressupõe a colaboração integrada e permanente de diferentes atores unidos por um propósito social comum. Em
razão da adoção desse enfoque, o Programa Justiça Comunitária conta com uma equipe
interdisciplinar para o permanente diálogo com os agentes comunitários, conforme se
verifica a seguir.
5.2. A equipe interdisciplinar do Programa Justiça Comunitária
A execução do Programa conta com a participação de uma equipe interdisciplinar
que dá suporte técnico e administrativo às atividades desempenhadas pelos agentes
comunitários e é composta de servidores e estagiários do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e dos Territórios, das seguintes áreas do conhecimento: Direito, Serviço Social,
Psicologia e Dramaturgia, além da equipe administrativa.
74. É essa abordagem integrativa que atribuímos à proposta interdisciplinar do Programa Justiça Comunitária, embora,
para alguns autores, esse enfoque não configure a interdisciplinaridade, mas a transversalidade, conceituada como o
“trânsito entre os vários saberes que gera um tipo de conhecimento em rede que permite tratar a realidade como
múltipla, como uma espécie de síntese interdisciplinar”(MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações. São Paulo: Summus, 2005. p. 13).
75. GADOTTI, Moacir. Interdisciplinaridade: atitude e método. Disponível em: <http://www.paulofreire.org/Moacir_Gadotti/
Artigos/Portugues/Filosofia_da_Educacao/Interdisci_Atitude_Metodo_1999.pdf>. Acesso em: 3 nov. 2006.
52
Justiça Comunitária – Uma experiência
Em reuniões periódicas efetuadas nos Centros Comunitários de Justiça e Cidadania, esse corpo técnico examina as demandas trazidas pelos agentes comunitários, sob
diferentes perspectivas profissionais. Essa análise, somada à experiência e o conhecimento local dos agentes comunitários, propicia que a abordagem do conflito, construída
sob a ótica de diversos saberes, indique possibilidades múltiplas para o encaminhamento
das demandas levadas ao Programa.
A técnica desenvolvida nessa reunião busca superar a fragmentação das disciplinas e dos pontos de vista, valorizando as convergências. É essa abordagem holística do
tema relacionado à demanda que pode propiciar uma relação epistemológica entre as
disciplinas.76
Essa reunião, que se articula para a análise de casos concretos, possibilita ainda
constatar a adequação ou não da demanda para a mediação e quais os encaminhamentos
possíveis para a rede social, quando for o caso. Nesse sentido, além de assegurar que o
saber local participe desse diálogo, a presença do agente comunitário é fundamental para
a sua permanente capacitação em informação jurídica, mediação comunitária e animação
de redes sociais.
5.3. Apresentando a equipe interdisciplinar
76. MUSZKAT, Malvina Ester, Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações, cit.
Justiça Comunitária – Uma experiência
53
Coordenação
Gláucia Falsarella Foley
Coordenadora – Graduada em Direito pela PUC-SP e Mestre em Direito pela Universidade
de Brasília. É juíza titular do 3º Juizado de Competência Geral de Samambaia, Coordenadora do Programa Justiça Comunitária e Central de Atendimento ao Idoso do TJDF.
Secretária Executiva
Vera Lúcia Soares Secretária executiva – Bacharel em Ciências Econômicas pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF).
Núcleo de Apoio Psicossocial
Vânia Sibylla Pires
Assistente Social – Bacharel em
Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Pós-graduada em Socionomia e
Psicodrama (Federação Brasileira de Psicodrama), Pós Graduada em Políticas Sociais (UERJ).
Beatriz Medeiros Martins
Psicóloga – Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário de Brasília (UNICEUB) e Mestre pela Universidade de Brasília, com especialização em
Psicoterapia Somática pelo Instituto Internacional de Biossíntese de Heiden, Suíça.
Tatianna Cristina Rodrigues de
Souza
Psicóloga – Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário
de Brasília (UNICEUB)
Núcleo de Apoio Jurídico
54
Amanda Regis Martins Rodrigues Moreira
Orientadora jurídica em Taguatinga – Bacharel em Direito pela
Universidade Católica de Brasília, com especialização em Direito Civil.
Fernanda da Silva Teixeira de
Aquino
Orientadora jurídica em Ceilândia – Bacharel em Direito
pelo Centro de Ensino Superior
de Brasília (CESUBRA).
Mirian Bruno da Costa
Orientadora jurídica em Taguatinga – Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do
Planalto Centrai (FIPLAC).
Benílson da Costa Ataíde
Orientador jurídico em Ceilândia – Bacharel em Direito pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF),
com especialização em Direito
Público.
Justiça Comunitária – Uma experiência
Núcleo de Dramaturgia e Produção de Material Didático
Laci Augusto da Silva
Técnico judiciário – Cursos de Aprofundamento na Linguagem Teatral e Formação de Personagem pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal.
Responsável pela produção de peças teatrais com os agentes comunitários e produção de
material didático.
Núcleo de Apoio Administrativo
Adélia Nunes Fernandes
Secretária administrativa – Taguatinga – Estudante de Direito na Universidade Católica de
Brasília.
Estagiárias
Ana Flávia Silva Marques de
Menezes
Estagiária de Serviço Social.
Daniela de Souza Ponte
Estagiária de Direito.
Danielle Cristina dos Santos
Estagiária de nível médio.
Justiça Comunitária – Uma experiência
Roberta Janaína de Alencar
Correia
Estagiária de Psicologia.
Thaís Costa Pereira
Estagiária de Psicologia.
Ismar Gonçalves Pereira
Motorista.
55
6. OS CENTROS COMUNITÁRIOS DE JUSTIÇA E CIDADANIA
6.1. A finalidade
O locus de atuação dos agentes comunitários é a comunidade e seus inúmeros
espaços públicos – não necessariamente estatais – e privados que podem acolher as
atividades desempenhadas pelos agentes comunitários, sejam elas as sessões de mediação, sejam as reuniões na comunidade.
Contudo, é importante que haja um local que possa dar suporte ao agente comunitário em algumas situações: a) para a análise interdisciplinar da demanda e decisão
quanto aos encaminhamentos possíveis; b) para as situações em que as partes envolvidas no conflito não aceitam submeter-se à sessão de mediação em nenhum dos locais da
comunidade propostos pelo mediador; c) para as situações em que os próprios mediadores sentem-se inseguros para realizar a mediação, em local distinto daquele onde se
encontra a equipe interdisciplinar.
Além disso, para que o Programa possa ser avaliado e reciclado permanentemente,
é necessário que seja providenciado o registro da natureza e quantidade das demandas,
dos respectivos encaminhamentos e finalizações, do perfil dos solicitantes, do grau de
satisfação em relação ao atendimento, da atuação e eventuais dificuldades de cada agente comunitário, dentre outros.
Essa estrutura organizacional mínima conta com uma equipe administrativa que
também se instala em um local físico que reúna todas as informações relevantes para os
agentes comunitários e para o Programa: é o Centro Comunitário de Justiça e Cidadania.
Por fim, um Centro, como o nome já indica, é um espaço de convergência para
que os agentes comunitários possam se encontrar, partilhar experiências, além de
confraternizar.
6.2. A estrutura física
O Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal possui um Centro Comunitário
de Justiça em cada cidade satélite na qual opera. O de Taguatinga reflete o padrão ideal
de um Centro Comunitário, por se tratar de um espaço cujas instalações se assemelham
a uma casa, o que propicia um ambiente familiar, favorável ao diálogo. Muito embora a
construção esteja localizada no mesmo terreno do Fórum de Taguatinga, a distância entre os dois prédios e a plantação de árvores ao redor da casa conferiram um ambiente
menos “forense” e “mais comunitário” ao Centro.
O Centro Comunitário de Ceilândia, por sua vez, está instalado no interior do prédio
do Fórum, o que dificulta a criação de um ambiente favorável ao diálogo entre os membros da comunidade, em busca de “respostas comunitárias aos problemas comunitários”.
Além disso, quando convidadas a participar de uma sessão de mediação, as partes
podem sentir um certo desconforto, quando não desconfiança, de dialogar em uma ambiente que, em última instância, poderá ser o cenário de seus julgamentos.
56
Justiça Comunitária – Uma experiência
A fim de superar essa dificuldade em Ceilândia, o Programa, que mantém parceria
com a Universidade de Brasília, buscará utilizar o espaço oferecido pelo Núcleo de Prática
Jurídica da UnB para as sessões de mediação comunitária, o que proporcionará benefícios
ao Programa e aos alunos que atuam como estagiários naquele Núcleo, que terão a
oportunidade de partilhar uma experiência que não se aprende na faculdade.
O Centro Comunitário padrão deve contar com uma sala para o atendimento ao
público, algumas salas de trabalho para as equipes interdisciplinares e, ainda, salas para
as sessões de mediação, com mesas redondas e isolamento acústico. No caso do Centro
de Taguatinga, foi possível a instalação de um espaço para a organização e o desenvolvimento das atividades teatrais, conforme se verifica nas ilustrações a seguir.
Centro Comunitário - Núcleo de Dramaturgia
Centro Comunitário - Secretaria Administrativa
Centro Comunitário - Núcleo Psicossocial
Escola de Justiça e Cidadania
Curso de Mediação 2
Centro Comunitário - Núcleo Jurídico
Escola de Justiça e Cidadania
Curso de Mediação
Justiça Comunitária – Uma experiência
57
6.3. Materiais e equipamentos do Centro Comunitário77
Centro Comunitário de Justiça e Cidadania
Material permanente – secretaria/recepção
1 mesa para a secretaria
3 cadeiras giratórias
1 armário de aço de 2 portas
1 mesa para o microcomputador
1 mesa para o telefone
2 sofás
1 bebedouro
1 quadro de avisos
Material permanente - sala de mediação
1 mesa redonda
8 cadeiras giratórias
Material permanente - sala do núcleo jurídico
1 mesa
3 cadeiras giratórias
1 armário de 2 portas
1 mesa para o microcomputador
Material permanente - sala do núcleo psicossocial
1 mesa redonda
6 cadeiras giratórias
1 armário
1 mesa para o microcomputador
1 armário de pastas suspensas
1 quadro de avisos
Material eletro-eletrônico
1 impressora laser
3 computadores
1 scanner
77. É oportuno ressaltar que essa é a estrutura que dispõe o Programa Justiça Comunitária, em razão do apoio institucional que recebe, seja do próprio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, seja dos parceiros institucionais.
Isso não significa, porém, que a ausência de tais recursos inviabilize a implementação de programas de justiça
comunitária.
58
Justiça Comunitária – Uma experiência
7. A ESCOLA DE JUSTIÇA E CIDADANIA
“Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”.78
A Escola de Justiça e Cidadania do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios integra o Programa Justiça Comunitária e está fisicamente instalada no Centro
Comunitário de Taguatinga79. Suas atividades pedagógicas centrais são desenvolvidas
todas as sextas-feiras, no período vespertino.
Sem prejuízo do suporte que a equipe interdisciplinar oferece aos agentes comunitários, em qualquer dia da semana, nos respectivos Centros Comunitários, esse encontro
semanal de todos os agentes com a equipe do Programa é indispensável para o aprendizado coletivo, que se extrai da partilha das dificuldades e soluções encontradas no decorrer da atuação concreta de cada agente comunitário. Nesse sentido, o funcionamento da
Escola é permanente, na mesma medida que as atividades desempenhadas pelos agentes comunitários têm natureza contínua.
A seguir, serão apresentados os princípios norteadores, os objetivos e as atividades
e materiais já desenvolvidos pelo Programa, bem assim aqueles que, embora ainda não
tenham se materializado, integram o planejamento para o próximo período.80
7.1. Pressupostos epistemológicos
A Escola tem por pressuposto epistemológico a construção do conhecimento a partir da leitura crítica da realidade. O processo de aprendizado não constitui mera transferência mecânica de conhecimento. Cada aluno, antes de tudo, é um cidadão que conhece
o mundo, independentemente do grau de escolaridade que ostenta e, nessa qualidade,
dispõe de um conteúdo mínimo para a reflexão sobre os temas relativos à cidadania.
Assim, a programação da Escola não se pauta na transmissão de conceitos específicos
sem qualquer pertinência com o saber e com a realidade social de seus alunos.
Se o processo de aprendizado é um ato de conhecer criticamente o contexto social
em que se vive, a construção do conteúdo do curso deve levar em consideração o conhecimento do agente comunitário inserido nesse “universo vocabular”81 . A partir da identificação desse conhecimento, a Escola busca recriar, reelaborar e conferir novos significados aos temas ligados à cidadania que integram o objeto do aprendizado.
Esse processo ostenta uma dimensão política, eis que direcionado para o desenvolvimento de uma consciência crítica da realidade, não se limitando a operar somente na
78.
79.
80.
81.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.
Ver Capítulo 6.
Esse planejamento se refere ao período de agosto de 2006 a julho de 2007.
FEITOSA, Sonia Couto Souza. Método Paulo Freire. Parte da dissertação de mestrado defendida na FE-USP (1999)
intitulada Método Paulo Freire: princípios e práticas de uma concepção popular de educação. Disponível em: <http://
www.paulofreire.org/Biblioteca/metodo.htm>. Acesso em 3 nov. 2006.
Justiça Comunitária – Uma experiência
59
esfera cognitiva. Além disso, ao refletir sobre o seu papel na sociedade e na história, o
aluno é desafiado a pensar caminhos para a transformação da realidade. A leitura crítica
da dinâmica social, denunciando a realidade, permite a projeção utópica de uma outra
realidade que impulsiona a ação transformadora.82
A abordagem política da Escola é essencial para a desejada (re)apropriação da
gestão dos problemas comunitários pelos próprios membros da comunidade. E essa reflexão se faz a partir da realidade vivenciada, e não de fórmulas institucionais previamente elaboradas a partir do saber técnico. É o que afirma Edgar Morin: “(...) a redução
do político ao técnico e ao econômico, a redução do econômico ao crescimento, a perda dos referenciais e dos horizontes, tudo isso conduz ao enfraquecimento do civismo,
à fuga e ao refúgio na vida privada, a alternância entre apatia e revolta violenta e, assim, a despeito da permanência das instituições democráticas, a vida democrática se
enfraquece.”83
Os princípios, pois, com os quais a Escola opera, revelam o compromisso da descoberta de novas dimensões e possibilidades da realidade, com vistas à sua transformação.
Além da política, o processo de educação pode desenvolver uma dimensão humanista,
quando se constitui em meio de comunicação e compreensão entre seres humanos. Para
tanto, a Escola buscará, no próximo período, reforçar a dimensão das relações humanas,
abrindo canais de permanente interlocução com a comunidade. Assim, serão desenvolvidas “atividades abertas”84 , para que os temas desenvolvidos nas aulas da Escola sejam
levados à discussão na comunidade, para melhor compreensão dos indivíduos – o respeito às suas identidades e diversidades – que compõem aquele grupo social.
Não basta que a comunidade e seus membros sejam objeto de discussão em sala
de aula. A alteridade pressupõe um conhecimento entre pessoas que se comunicam, que
interagem. Conforme afirma Morin, “(...) a compreensão humana vai além da explicação.
A explicação é bastante para a compreensão intelectual e objetiva das coisas anônimas
ou materiais. É insuficiente para a compreensão humana. Esta comporta um conhecimento de sujeito a sujeito”.85
Ao pressupor que o processo de aprendizado deva ser múltiplo, eis que resulta do
encontro de diferentes interpretações da realidade, a Escola de Justiça e Cidadania pretende contribuir para a construção de uma “ecologia de saberes”, conforme expressão
talhada por Sousa Santos86 . Segundo o autor, “(...) a lógica da monocultura do saber e do
82. GADOTTI, Moacir. Paulo Freire: a prática à altura do sonho. Disponível em: <http://www.paulofreire.org/Paulo_Freire/
Vida_e_Obra/gadotti_pf.htm>. Acesso em: 3 nov. 2006.
83. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne
Sawaya; revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000. p. 112.
84. Ver item 7.5.
85. MORIN, Edgar, Os sete saberes necessários à educação do futuro, cit., p. 94-95.
86. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SOUSA
SANTOS, Boaventura de (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: “um discurso sobre as ciências”
revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. p. 790.
60
Justiça Comunitária – Uma experiência
rigor científicos tem que ser questionada pela identificação de outros saberes e de outros
critérios de rigor que operam credivelmente em contextos e práticas sociais declarados
não-existentes pela razão metonímica. Essa credibilidade contextual deve ser considerada suficiente para que o saber em causa tenha legitimidade para participar de debates
epistemológicos com outros saberes, nomeadamente com o saber científico. A idéia central da sociologia das ausências neste domínio é que não há ignorância em geral nem
saber em geral. Toda ignorância é ignorante de um certo saber e todo saber é a superação de uma ignorância particular. Deste princípio de incompletude de todos os saberes
decorre a possibilidade de diálogo e de disputa epistemológica entre os diferentes saberes. O que cada saber contribui para esse diálogo é o modo como orienta uma dada
prática na superação de uma certa ignorância. O confronto e o diálogo entre os saberes é
um confronto e diálogo entre diferentes processos através dos quais práticas diferentemente ignorantes se transformam em práticas diferentemente sábias”.
7.2. As atividades de capacitação dos agentes comunitários
A capacitação dos agentes comunitários parte da problematização de temas extraídos da realidade social, com enfoque nos direitos humanos. A programação curricular87
prevê aulas de noções básicas de direito, debates sobre cidadania e direitos humanos,
cursos e oficinas em técnicas de mediação e de animação de redes sociais.
A formação dos agentes comunitários procura não somente assegurar o bom desempenho de suas atividades, como também estimular a reflexão crítica sobre suas escolhas pessoais e sobre a conjuntura social. Nesse sentido, o sistema de aprendizagem
adotado deve ser amplo, promovendo uma integração de aspectos cognitivos, emocionais e sociais, envolvendo as dimensões pessoais, profissionais e institucionais presentes
no contexto vivencial do agente. A Escola deve, pois, operar com dinâmicas participativas
que contribuam para a formação do sujeito social como protagonista na construção de
um saber não fragmentado, possibilitando novas leituras e novas relações com o mundo
e consigo.
Apesar do enfoque holístico, a capacitação dos agentes comunitários tem também
por objetivo o bom desempenho de suas atividades, quais sejam a democratização do
saber jurídico, a mediação comunitária e a animação de redes sociais. Para tanto, as
atividades da Escola programadas para o próximo período letivo são as seguintes:
• promoção de debates sobre os temas ligados à cidadania, com representantes da
militância da área social e/ou jurídica correspondente;
• elaboração e produção de material didático, utilizando ferramentas lúdicas e artísticas, para traduzir a linguagem jurídica, com vistas à democratização do acesso à
informação relativa aos direitos dos cidadãos;
87. Ver item 7.3.
Justiça Comunitária – Uma experiência
61
• apresentações e debates públicos dos temas veiculados pelos materiais didáticos,
de maneira a estimular a mobilização social, pela efetivação dos direitos dos cidadãos;
• promoção de atividades acadêmicas interdisciplinares, voltadas ao intercâmbio
de pesquisas e produção de conhecimento;
• publicação de um boletim periódico para a veiculação de informes sobre as
atividades do Programa e de artigos acadêmicos interdisciplinares sobre os temas relacionados à justiça comunitária.
7.3. A programação curricular
O currículo é um percurso de aprendizagens a serem construídas no processo de
formação e envolve a seleção de conteúdos significativos para a formação do aluno, cujas
abordagens são dispostas em mecanismos acadêmicos variados: aulas, seminários, oficinas, ateliês, debates e atividades de dramaturgia, dentre outros.
Considerando que a Escola busca contextualizar o processo de aprendizado na
realidade social de seus alunos, não se pode traçar previamente um programa curricular
rígido, à revelia das necessidades e expectativas dos agentes comunitários. Nesse sentido, a programação do conteúdo e o respectivo calendário semestral são estabelecidos de
acordo com as metas específicas do Programa, em sintonia com os parceiros institucionais
e com os próprios agentes comunitários.
O conteúdo curricular básico inclui cursos e oficinas para a capacitação nas técnicas
de mediação comunitária e de animação de redes sociais, bem como aulas de noções
básicas de direito e debates de temas jurídicos, com enfoque nos direitos humanos,
conforme se verifica a seguir.
7.3.1. Cidadania e noções básicas de direito
No início do Programa, a programação curricular era mais rígida e privilegiava matérias essencialmente jurídicas, tais como: Organização do Estado e Direitos e Garantias
Fundamentais; Direito de Família; Direito do Consumidor; Direito das Minorias Sociais
(negros, mulheres, homossexuais, portadores de deficiência física, idosos, etc); Direito
de Moradia (locação, posse, propriedade, concessão de uso, etc); Direito Previdenciário;
Juizados Especiais Cíveis e Criminais.
Essas disciplinas correspondiam às necessidades dos agentes comunitários, diante
das demandas mais freqüentes para o desempenho da atividade de orientação jurídica.
Entretanto, após as modificações implementadas a partir de agosto de 2006, restringindo
a atividade de informação jurídica à sua formatação preventiva – ou seja, produção de
material didático para esclarecimentos à comunidade quanto aos seus direitos – as disciplinas jurídicas perderam centralidade.
62
Justiça Comunitária – Uma experiência
O planejamento para o segundo semestre de 2006 privilegiou a realização de cursos e oficinas de técnicas em mediação, considerando o destaque que essa atividade
ganhou, desde que o Programa passou a concentrar esforços no sentido de elaborar, em
comunhão com os agentes comunitários, um formulário e um roteiro contendo o passo-apasso88 da técnica de mediação efetivamente comunitária.
Quanto às disciplinas jurídicas, optou-se por abordar cada matéria na medida das
necessidades e das possibilidades de produção do material didático e artístico a ser divulgado e apresentado na comunidade.89
Os temas relacionados à cidadania e aos direitos humanos foram inseridos na programação do segundo semestre de 2006, obedecendo à seguinte dinâmica:90
1. investigação temática: consulta ao grupo sobre temas que revelem o vocabulário e o universo dos alunos. O contato com os assuntos propostos se dá a partir da
mobilização dos alunos sobre os recortes de jornais veiculando matérias sobre cidadania
(discriminação racial; violência doméstica; juizados especiais; menoridade penal e violência contra o idoso, dentre outros) oferecidos em sala de aula;91
2. escolha – preferencialmente por eleição – dos temas principais e secundários;92
3. escolha dos educadores que serão convidados para problematizar a temática
escolhida;
4. desenvolvimento da aula propriamente dita, a partir da perspectiva do professor
e sua praxis, dos alunos e da equipe interdisciplinar;
5. desfecho da aula que considere possibilidades de ação concreta visando a transformação social. Por exemplo, a confecção futura de um material didático para provocar a
reflexão sobre o tema na comunidade.
7.3.2. Os cursos e as oficinas de mediação
Em razão da variedade de abordagens possíveis das técnicas de mediação, um
programa de justiça comunitária que pretenda contratar um curso de capacitação nessa
área deve adotar alguns quesitos para a adequação do enfoque do treinamento às particularidades do Programa. Para tanto, o Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal
desenvolveu os seguintes quesitos:
88. Ver Anexos VIII e IX.
89. Ver as cartilhas de fotonovela e cordel, que integram este trabalho.
90. FEITOSA, Sonia Couto Souza. FEITOSA, Sonia Couto Souza. Método Paulo Freire. Parte da dissertação de mestrado
defendida na FE-USP (1999) intitulada Método Paulo Freire: princípios e práticas de uma concepção popular de
educação. Disponível em: <http://www.paulofreire.org/Biblioteca/metodo.htm>. Acesso em 3 nov. 2006.
91. Ver Anexo XI.
92. Secundários são temas cuja discussão prévia é pressuposto para a melhor abordagem dos temas principais. Po
exemplo, se o tema principal é a menoridade penal, é interessante que se conheça o conteúdo do Estatuto da Criança
e do Adolescente.
Justiça Comunitária – Uma experiência
63
Descrição das atividades
1. Conhecimento e análise do perfil dos agentes comunitários e do método de
mediação atualmente aplicado no Programa.
2. Desenvolvimento de um método de mediação comunitária que tenha impacto
social, não se limitando à atuação em conflitos interpessoais e familiares.
3. Oferecimento de aulas em carga horária compatível com as necessidades do
Projeto e sob metodologia adequada ao perfil dos 40 agentes comunitários.
4. Utilização de simulações para o treinamento prático dos alunos.
5. Oferecimento de treinamento a todos os membros da equipe interdisciplinar do
Programa Justiça Comunitária para que, na qualidade de mediadores, sejam
habilitados a supervisionar as mediações realizadas pelos agentes comunitários
e para que sejam multiplicadores da metodologia de mediação comunitária.
6. Avaliação de desempenho dos agentes comunitários e dos membros da equipe
interdisciplinar, em relação às técnicas de mediação desenvolvidas no curso.
Produtos esperados
1. Proposta metodológica para a realização do curso de mediação, contendo:
a) especificação das técnicas a serem utilizadas;
b) material didático;
c) cronograma;
d) metodologia de avaliação do curso.
2. Relatório de realização da capacitação em mediação de conflitos, contendo:
a) descrição dos conteúdos abordados durante o curso;
b) relatório de avaliação do capacitador/capacitado quanto ao curso ministrado;
c) certificados de participação no curso de mediação, desde que cumpridas as
exigências a serem definidas pelo capacitador.
3. Instrumentos elaborados conjuntamente durante o curso:
a) declaração de abertura da sessão de mediação;
b) formulário que descreva o procedimento com todas as etapas da mediação, a
ser utilizado como um roteiro para o mediador;
c) definição dos critérios mínimos para habilitação dos agentes comunitários
para o desempenho das funções de mediador e co-mediador;
d) definição dos critérios mínimos para habilitação dos membros da equipe
interdisciplinar para a supervisão das mediações e para a multiplicação e treinamento da metodologia desenvolvida.
Questões objetivas
1. A carga horária da capacitação.
2. O preço da consultoria.
3. A descrição dos profissionais que ministrarão as aulas (formação profissional,
experiência).
4. Detalhamento do material pedagógico utilizado no curso e responsabilidades de
reprodução do mesmo.
5. Detalhamento do conteúdo programático.
64
Justiça Comunitária – Uma experiência
Adequação do curso ao perfil dos agentes comunitários
1. A linguagem empregada no material pedagógico e nas aulas é adequada a um
público cuja escolaridade é, em média, o segundo grau completo?
2. Há previsão de aplicação do conteúdo teórico, por meio da realização de simulações, oficinas e recursos audiovisuais?
3. Já foram oferecidas capacitações em mediação para membros da comunidade?
Se afirmativo, quando? Onde? Qual a entidade atendida? Houve avaliação de
resultados?
4. Qual o método de supervisão a ser utilizado?
5. O enfoque teórico e técnico da mediação adotado é voltado para conflitos
comunitários?
De qualquer sorte, sem prejuízo da valiosa contribuição de especialistas no tema, o
enfoque de mediação a ser desenvolvida por um programa de justiça comunitária deve
ter feição própria, o que significa afirmar que é indispensável que haja uma participação
ativa dos mediadores na construção da própria metodologia, sob pena dessa atividade
transformar-se em algo litúrgico, que obedece a padrões técnicos, porém inadequados
àquela realidade social.
Nesse sentido, a Escola de Justiça e Cidadania do Programa Justiça Comunitária
promove oficinas para o desenvolvimento da técnica de mediação, as quais são distribuídas no calendário semestral, com uma previsão de carga horária que leve em consideração a necessidade da participação ativa dos agentes comunitários na construção de
uma abordagem própria e adaptada à realidade em que o Programa Justiça Comunitária
opera.
O formulário do passo-a-passo da sessão de mediação deve estar sempre aberto
às mudanças que a experiência concreta demanda. Para tanto, conflitos simulados são
levados à sala de aula, para que os agentes comunitários vivenciem diferentes papéis –
participantes diretos e indiretos do conflito, mediador e co-mediador – inclusive o de
mediadores-observadores. Todas as oficinas são gravadas em vídeo, com vistas a registrar
o processo de aperfeiçoamento da atuação dos alunos.
Essa reflexão coletiva – e interdisciplinar – das nuanças particulares da atuação de
cada agente é essencial para a integração do grupo, em seu processo permanente de
aprendizagem crítica.
Conforme já assinalado, o Programa Justiça Comunitária vem consolidando uma
metodologia de mediação comunitária, cuja formatação resulta do aprendizado advindo
Justiça Comunitária – Uma experiência
65
dos cursos já realizados, da experiência de seis anos de execução do Programa e da
elaboração de um formulário e de um roteiro93 que contêm o passo-a-passo da mediação
e os princípios que norteiam a conduta ética do mediador.
É oportuno ressaltar que a capacitação em mediação não pode se restringir ao
treinamento técnico das etapas do processo de mediação. O curso de capacitação, assim
como as oficinas, devem prever em seu conteúdo oportunidades para refletir sobre: a)
noções sobre outros meios alternativos de solução de conflitos (arbitragem, conciliação,
negociação); b) o papel transformador do conflito; c) estratégias de comunicação, incluindo as técnicas de identificação entre posição e interesse94; d) princípios éticos que
devem nortear a atuação do mediador95; e) a questão da neutralidade e imparcialidade;
f) os modelos e tipos de mediação.96
7.3.3. Capacitação para a animação de redes sociais
As atividades pedagógicas desenvolvidas pela Escola incluem ainda a intensificação
da interação dos agentes comunitários com a sua comunidade, por meio da elaboração e
divulgação de materiais didáticos e da promoção de eventos artísticos que provoquem o
debate sobre direitos individuais e coletivos.
Para essas atividades, os agentes comunitários desempenham um papel atuante,
em parceria com a equipe interdisciplinar, articulando os eventos, elaborando o material
didático e apresentando publicamente o seu conteúdo, por meio de criações artísticas.
Essa mobilização em torno de temas ligados à cidadania é um dos mecanismos
possíveis para a animação de redes sociais, na medida que aproxima membros da comunidade que partilham o mesmo interesse e os coloca em contato, em um encontro crítico,
repleto de possibilidades de construção de laços solidários.
93. A elaboração do formulário e do roteiro, que se encontram nos Anexos VIII e IX, foi resultado de um trabalho conjunto
feito pelos agentes Comunitários, a equipe interdisciplinar do Programa Justiça Comunitária e a equipe docente do
Curso de Mediação Técnico-comunitária, professoras Célia Regina Zapparolli, Glaucia Vidal, Reginandréa Gomes Vicente
e Lílian Godau dos Anjos Pereira Biasoto, realizado em Brasília, entre os dias 6 e 15 de outubro de 2006.
94. Conforme ilustra Célia Regina Zapparolli: “Como exemplos de discrepância entre posições e interesses, temos duas
situações muito corriqueiras: 1) nos casos de separação, os interesses ocultos traduzem-se, muitas vezes, no
descompasso das partes na decisão de se separarem, algo de natureza emocional que acaba por exteriorizar-se em
posições jurídicas rígidas e exigências radicais quanto a partilha, alimentos, guarda, visitas e, na manipulação da
prole, uma violência que acaba por gerar danos morais/psicológicos imensuráveis e sua perpetuação, modelo que se
repete pelas gerações; 2) já, em grande número de casos de natureza criminal, a vontade das partes, a versão dos
fatos e as possibilidades acabam sendo moldadas exclusivamente às opções jurídicas e não estas àquelas, perdendo
o acusado ou condenado a oportunidade de, como protagonista, no momento de maior impacto, rever seus próprios
atos e reformular suas condutas.” (ZAPPAROLLI, Célia Regina. A experiência pacificadora da mediação: uma alternativa contemporânea para a implementação da cidadania e da justiça. In: MUSZKAT, Malvina Ester (Org.). Mediação de
conflitos: pacificando e prevenindo a violência. São Paulo: Summus, 2003. p. 54).
95. Os princípios norteadores da ética do mediador integram o roteiro do passo-a-passo da mediação, conforme mostra
o Anexo IX.
96. ZAPPAROLLI, Célia Regina; VIDAL, Glaucia; VICENTE, Reginandréa Gomes; BIASOTO, Lílian Godau dos Anjos Pereira.
Apostila do Curso de Mediação Técnico-Comunitária, realizado em Brasília, entre os dias 6 e 15 de outubro de 2006.
Brasília: 2006.
66
Justiça Comunitária – Uma experiência
7.4. O corpo docente
O papel do educador é ampliar a visão de mundo permeada pelo diálogo. Nesse
sentido, o corpo docente deve ser definido a partir da escolha democrática dos temas a
serem debatidos em sala de aula, buscando-se pertinência entre o tema objeto da aula e
a atuação prática de cada educador.
Longe de representar um transferidor de conhecimentos, o professor deve se colocar como um coordenador do debate, problematizando as discussões e, por meio do
diálogo, auxiliar os alunos para que reinterpretem e recriem o saber local, que é permanentemente gerado na prática social.
É atribuição do educador criar condições para a compreensão mútua e a comunicação produtiva, o que significa possibilitar o surgimento de questionamentos, debates,
extrapolações e ilações nas interações desenvolvidas durante as aulas. Para tanto, é
necessário garantir uma “atmosfera de respeito mútuo, onde divergências são acolhidas,
visões distintas confrontadas, bases de desacordo compreendidas, soluções comuns buscadas e, sobretudo, onde errar não significa falta de conhecimento e sim sinal de que uma
estrutura está em construção. Pode-se dizer que, de fato, a interação social do grupo é
não só formativa como também construtiva de um novo saber e de uma nova forma de
relacionamento interpessoal”.97
No Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal, o corpo docente é composto
por profissionais atuantes na área correspondente ao tema a ser desenvolvido. Além
desses convidados, atuam como educadores os membros da equipe interdisciplinar, que
conhecem as necessidades cognitivas dos agentes comunitários: desde as suas dificuldades em relação às idiossincrasias do universo jurídico, até a construção de uma metodologia
própria de mediação comunitária.
7.5. As atividades abertas da Escola de Justiça e Cidadania
Esta atividade tem por objetivo promover maior integração entre a comunidade, a
Escola de Justiça e Cidadania, os agentes comunitários, as instituições sociais e a universidade, de maneira que todos esses entes possam concorrer para o processo de efetivação
da cidadania.
A partir da definição de um interesse comum dos atores envolvidos, designa-se
uma data para a reflexão sobre o tema, por meio de diferentes instrumentais – mesa
redonda com convidados, vídeos, filmes, debates, trabalhos em grupos, entre outros.
Tendo em vista o amplo e visível interesse da comunidade pela questão relacionada ao
Direito de Família, a primeira atividade aberta a ser designada pelo Programa Justiça
Comunitária98 terá como objeto a discussão deste tema, sobretudo pela possibilidade de
97. DAVIS, C.; SILVA, M.A.S.S.; ESPÓSITO, Y. Papel e valor das interações sociais em sala de aula. Cadernos de Pesquisa,
São Paulo, n. 71, p. 54, nov. 1989.
98. Essas atividades serão levadas a efeito no primeiro semestre de 2007.
Justiça Comunitária – Uma experiência
67
potencializar o uso da cartilha O direito de saber, produzida pelo Programa com a participação dos agentes comunitários99 . Também já estão sendo agendadas algumas apresentações da peça A teia da vida, encenada pelos agentes comunitários em vários espaços
sociais, inclusive em Faculdades de Direito.100
7.6. Interlocuções institucionais
A Escola deve estar aberta e disponível para se constituir em campo de pesquisa e
permanente interlocução com as instituições nacionais e internacionais de diferentes naturezas: universidades, Tribunais de Justiça, parlamentos, institutos de pesquisa, governos, dentre outras.
No decorrer destes seis anos de execução, o Programa Justiça Comunitária interagiu
com inúmeras instituições, cujo diálogo proporcionou permanente reflexão crítica de seus
pressupostos teóricos e de sua operacionalização, fator indispensável para o aperfeiçoamento de qualquer programa desta natureza.
A seguir, o registro de algumas interlocuções institucionais.
2001
25/9 – Apresentação do Programa Justiça Comunitária no 1º Fórum Brasília de
Responsabilidade Social e do Terceiro Setor, com o tema A realização da justiça sem
jurisdição.
Palestrantes: Gláucia Falsarella Foley, Juíza Coordenadora do Programa Justiça Comunitária e Marcelo Girade, Secretário Executivo do Programa Justiça Comunitária.
Local: Brasília
25 e 26/10 – Apresentação do Programa Justiça Comunitária, a convite do Banco
Mundial, no 1º Fórum Temático Regional Empoderamento e Ação: Construindo uma Agenda
para a Redução da Pobreza.
Palestrantes: Desembargador Edmundo Minervino, Presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios e Marcelo Girade, Secretário Executivo do Justiça
Comunitária.
Local: México
8/11 – Apresentação do Programa Justiça Comunitária na III Mostra Nacional de
Trabalhos da Qualidade do Judiciário, promovida pelo Superior Tribunal de Justiça.
Palestrante: Desembargador Edmundo Minervino, Presidente do Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e dos Territórios.
Local: Brasília
99. Ver cartilha de fotonovela que integra este trabalho.
100. Ver vídeo da apresentação teatral ocorrida em 27 de outubro de 2006, em Taguatinga, que integra este trabalho.
68
Justiça Comunitária – Uma experiência
26 e 27/11 – Participação na II Câmara Técnica – Balcões de Direito do Ministério
da Justiça, para troca de experiências entre os parceiros e a avaliação dos trabalhos
desenvolvidos pelos programas que possuem convênio com o Ministério da Justiça.
Palestrantes: Doutora Carmem Bittencourt, Juíza Coordenadora do Programa
Justiça Comunitária e Marcelo Girade, Secretário Executivo do Programa Justiça
Comunitária.
Equipe interdisciplinar: Vera Lúcia Soares, Secretária Executiva, assistente social
Vânia Sibylla Pires e psicóloga Tatianna Souza.
Agentes comunitários presentes: Hilda Teixeira, Ana Cristina Cruz Guimarães, Ranilda
Rosana da Silva e Luzenildes Miranda da Silva.
Local: Brasília
2002
26/4 - Apresentação do Programa Justiça Comunitária no 4º Fórum Nacional de
Cidadania Empresarial, com o tema Programa Justiça Comunitária: a realização da justiça
sem jurisdição e recebimento do Troféu de Empresa Cidadã.
Palestrante: Doutora Carmen Bittencourt, Juíza Coordenadora do Programa Justiça
Comunitária.
Local: Brasília
6 e 7/6 – Apresentação do Programa Justiça Comunitária na VII Conferência Nacional dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
Presentes: Iaris Cortês (parceira do Projeto, membro da OAB/DF), Vera Lúcia Soares, Valdeci Pereira da Silva, João Evangelista, Luzenildes Miranda e Edilene Aparecida
dos Santos.
Local: Brasília
25 e 26/10– Apresentação do Programa Justiça Comunitária no Seminário Internacional Hacia la Elaboración de um Plan de Acesso a la Justicia, a convite do Tribunal
Supremo de Justicia de la República Bolivariana de Venezuela e do Instituto de Estudios
Jurídicos Del Estado Lara.
Palestrante: Marcelo Girade, Secretário Executivo do Programa Justiça
Comunitária.
Local: Venezuela
2004
6/2 – Visita ao Programa Justiça Comunitária de membros da Suprema Corte de
Honduras, da Venezuela e do Banco Mundial.
Apresentação do Programa por Marcelo Girade, Vera Lúcia Soares, Vânia Sibylla,
Tatianna Souza e Eginaldo Pinheiro. Tradução: Elizete Neres.
Local: Brasília
Justiça Comunitária – Uma experiência
69
5/3 – Palestra sobre justiça restaurativa para os agentes comunitários, em Ceilândia,
proferida pela Professora Grabrielle Maxwell, representando o Centro de Pesquisa de
Crime e Justiça da Nova Zelândia.
Presentes: Juíza Gláucia Falsarella Foley, procurador de justiça Renato Sócrates, do
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, e Renato de Vitto, da Secretaria da
Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça.
Local: Brasília - Ceilândia
28 a 31/3 – Participação do Programa no Fórum Temático A Modernização do Poder
Judiciário na Venezuela: resultados e perspectivas, a convite do Banco Mundial e do
Tribunal Supremo de Justicia de la República Bolivariana de Venezuela.
Palestrante: Marcelo Girade, Secretário Executivo do Programa Justiça Comunitária.
Local: Venezuela
3/5 – Apresentação do Programa Justiça Comunitária no Tribunal de Justiça do
Estado do Acre, por ocasião do reinício das atividades do programa naquele Estado.
Palestrante: Vera Lucia Soares, Secretária Executiva do Programa Justiça
Comunitária.
Local: Acre
17/4 - Apresentação do Programa Justiça Comunitária nas Faculdades de Pedagogia e Filosofia da Universidade Católica de Brasília.
Palestrantes: Vera Lucia Soares, Secretária Executiva e assistente social Vânia Sibylla.
Local: Brasília
19/7 - Apresentação do Programa Justiça Comunitária no evento Justiça Comunitária: uma perspectiva internacional, a convite do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) no Afeganistão e da ONG norueguesa Norwegian Refugee Council.
Palestrante: Gláucia Falsarella Foley, Juíza Coordenadora do Programa Justiça
Comunitária.
Local: Afeganistão
13/8 - Apresentação do Programa Justiça Comunitária no I Seminário Mato-grossense
da Justiça Comunitária, a convite do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.
Palestrantes: Desembargador Estevam Maia, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, desembargador Natanael Caetano, juíza Gláucia
Falsarella Foley e assistente social Vânia Sibylla Pires.
Local: Mato Grosso
8/10 - Visita de uma comitiva de membros do Congresso Nacional Alemão à Escola
de Justiça e Cidadania de Taguatinga e ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios.
Local: Brasília
70
Justiça Comunitária – Uma experiência
25/10 - Apresentação do Programa nos 14º e 15º Cursos de Formação de Líderes
para o Exercício da Cidadania, Módulo III – Mobilização social: sujeitos em ação.
Palestrante: Assistente social Vânia Sibylla Pires, da equipe psicossocial que atuou
como instrutora e coordenou o módulo.
Local: Brasília
2005
29/1 - Apresentação do Programa Justiça Comunitária no Encontro Especial de
Formação da Campanha da Fraternidade de 2005, na Universidade Católica de Brasília.
Palestrante: Assistente social Vania Sibylla Pires, da equipe psicossocial.
Local: Brasília
19/4 - Apresentação do Programa Justiça Comunitária no Seminário Jurídico sobre
Direitos Humanos do Tribunal Justiça de Minas Gerais, promovido pela Seção Judiciária de
Minas Gerais do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em parceria com a Associação
dos Juízes Federais de Minas Gerais.
Palestrante: Juíza Gláucia Falsarella Foley.
Local: Minas Gerais
14 a 17/6 – Apresentação do Programa Justiça Comunitária na Conferência Internacional de Acesso à Justiça por Meio Alternativo de Resolução de Conflitos, promovida
pela Secretaria de Reforma do Judiciário e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Palestrante: Juíza Gláucia Falsarella Foley.
Local: Brasília
2006
24/3 – Apresentação do Programa na Faculdade de Psicologia da Universidade Católica de Brasília para os alunos do estágio básico do Curso de Psicologia.
Palestrantes: Psicólogas Beatriz Martins e Tatianna Souza, da equipe psicossocial.
Local: Brasília
18/5 – Apresentação do Programa Justiça Comunitária no Seminário para Implantação do Programa Justiça e Comunidade, a convite do Tribunal de Justiça do Estado de
Roraima.
Palestrante: Juíza Gláucia Falsarella Foley.
Local: Roraima
29/6 – Apresentação do Programa Justiça Comunitária na Conferência Internacional Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança, promovida pela Secretaria
de Reforma do Judiciário, Secretaria Nacional de Segurança Pública e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Justiça Comunitária – Uma experiência
71
Palestrante: Juíza Gláucia Falsarella Foley.
Local: Brasília
10/8 - Apresentação do Programa Justiça Comunitária no Seminário Justiça e Comunidade, promovido pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados e pelo IESB.
Palestrante: Juíza Gláucia Falsarella Foley.
Local: Brasília
5 a 8/9 – Apresentação do Programa Justiça Comunitária no II Congresso Brasileiro
Psicologia: Ciência & Profissão.
Palestrante: Psicóloga Beatriz Medeiros Martins, da equipe psicossocial.
Local: São Paulo
A programação para ampliar esse diálogo institucional, a partir do primeiro semestre de 2007, inclui as seguintes atividades:
1. criação de um centro de pesquisa interinstitucional para reunir diferentes grupos
institucionais, ONGs, universidades, entre outros, com o propósito de produzir conhecimento específico para a área de justiça comunitária;
2. formação de um grupo de estudos envolvendo a equipe de estagiários e terceiros externos ao Programa, visado o intercâmbio dos temas, sob uma perspectiva
interdisciplinar;
3. produção de artigos acadêmicos, a partir das experiências surgidas no cotidiano
do Programa.
7.7. O boletim periódico
A confecção de um boletim periódico tem por pretensão a fluidez das informações
programáticas e pedagógicas da Escola de Justiça e Cidadania. Nele, estarão contidas as
informações necessárias para uma ampla divulgação das atividades do Programa na comunidade, além de servir como convite à reflexão interdisciplinar do Programa.
Esse periódico terá como conteúdos importantes as datas e locais das visitas à
comunidade, esclarecimentos sobre o que é a mediação, as datas e locais das apresentações de teatro, lista com todos os núcleos de assistência jurídica gratuita, textos e artigos
produzidos pelos agentes comunitários e pela equipe interdisciplinar.101
101. A confecção desse boletim ainda não foi agendada, tendo em vista a priorização de outras atividades para o próximo
período. Uma possibilidade é o estabelecimento de parcerias com departamentos de comunicação das universidades
interessadas em contribuir para a divulgação do Programa na comunidade.
72
Justiça Comunitária – Uma experiência
7.8. Avaliação do processo de aprendizagem
Considerando o pressuposto de que o processo de aprendizagem não implica transferência de saber, a Escola não desenvolveu nenhum recurso tradicional de aferição de
aprendizagem cognitiva. Isso não significa afirmar, porém, que não haja mecanismos de
avaliação permanente do desempenho dos agentes comunitários, dentro e fora da sala de
aula.
Cada agente comunitário é acompanhado por meio do registro de seu processo
contínuo de aprendizagem, identificando-se as suas habilidades e dificuldades.
Quando constatada alguma dificuldade – seja relacionada com o grupo, com a
equipe ou com as atividades inerentes ao desempenho da função – de um agente comunitário, ele é convidado a participar de uma reunião com o suporte psicossocial, para que
eventuais dificuldades possam servir de oportunidade para a reflexão e crescimento. De
qualquer sorte, independente de qualquer dificuldade específica, é papel da equipe
interdisciplinar observar constantemente a atuação de cada agente comunitário.
A equipe interdisciplinar irá desenvolver, no decorrer do próximo ano, um estudo
para a criação de indicadores dos aspectos a serem considerados na análise do processo
de aprendizagem, para melhor avaliação do desempenho dos agentes comunitários. Os
indicadores, que também permitirão avaliações comparativas, serão voltados para a aferição das seguintes características: liderança, capacidade de reflexão nas aulas, inserção
na comunidade, desempenho nas mediações e nas reuniões na comunidade, dentre
outras.
7.9. Os recursos pedagógicos
Os recursos pedagógicos utilizados na Escola de Justiça e Cidadania são produzidos com o propósito de democratizar o acesso à informação dos direitos do cidadão, por
meio da decodificação da linguagem jurídica em narrativas acessíveis e atraentes à
comunidade.
Além de buscar facilitar a compreensão do conteúdo, a apresentação desse material também procura preservar a memória e as raízes culturais brasileiras, promovendo
um diálogo entre tradição e manifestações artísticas populares contemporâneas. Esse
encontro de diferentes “gerações culturais” é parte do exercício da cidadania, na medida
que promove a reflexão sobre a conjuntura de diferentes grupos sociais, o respeito à
diferença e a abertura para novas referências estéticas.
Os materiais passíveis de serem utilizados e/ou elaborados pela Escola de Justiça e
Cidadania são os seguintes:
• recortes de jornal e assinatura de periódicos e/ou convênio com bibliotecas para
que os alunos tenham acesso às matérias relativas à cidadania e à justiça;
Justiça Comunitária – Uma experiência
73
• elaboração interdisciplinar de cartilhas na forma de fotonovelas, literatura de
cordel, xilogravura, dentre outros;
• apresentação de peça teatral, utilizando-se das mais variadas matizes musicais,
tais como repente, hip hop, capoeira, etc.;
• guia de encaminhamento para partilhar alguns dados do mapeamento social;
• material promocional para esclarecimento dos objetivos do Programa e do procedimento seletivo de novos agentes comunitários;
• produção de vídeos com o registro de demandas ilustrativas;
• produção de filmes de ficção para a divulgação do Programa Justiça Comunitária,
tendo por fio condutor temas relativos aos conflitos mais freqüentes na comunidade;
• exposição de fotografias com a memória do Programa Justiça Comunitária, para
debate;
• exibição de filmes temáticos em sala de aula e na comunidade, com temática
pertinente ao conteúdo curricular do Programa, para posterior debate;
• dinâmicas que envolvam pesquisa na internet;
• produção de relatos e artigos que registrem a experiência dos agentes comunitários, da equipe interdisciplinar e dos parceiros institucionais;
• montagem de uma biblioteca popular que contenha obras da literatura brasileira
e de temas relativos à justiça e cidadania, dentre outros.
7.10. Materiais e equipamentos da Escola de Justiça e Cidadania
Materiais e equipamentos
60 cadeiras
1 cadeira para o professor
1 mesa para o professor
1 quadro-negro
1 bebedouro
1 flip chart
1 TV de 29’’
1 DVD/Vídeo
1 notebook
1 projetor multimídia
1 tela para projetor
1 filmadora digital
1 câmara fotográfica digital
1 espelho para as atividades de dramaturgia
1 mapa de cada comunidade
1mapa da cidade
1 mapa do Brasil
1 globo terrestre
1 aparelho de som
74
Justiça Comunitária – Uma experiência
8. AS PARCERIAS INSTITUCIONAIS
8.1. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT)
É missão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios garantir o pleno
exercício do direito, indistinta e imparcialmente, a toda a sociedade do Distrito Federal e
Territórios.
Na qualidade de unidade executora, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios permanece na coordenação do Programa Justiça Comunitária, responsável por
sua implementação direta, por meio do fornecimento de infra-estrutura, equipe interdisciplinar e confecção de material promocional e pedagógico necessários para a boa
execução do Programa.
As atividades desenvolvidas pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, em comunhão com os parceiros, incluem a elaboração do planejamento anual da
Escola de Justiça e Cidadania, a capacitação dos agentes comunitários para o bom desempenho de suas atividades, o registro e controle dos casos levados aos Centros Comunitários e o acompanhamento das atividades desenvolvidas pelos agentes comunitários e
pela equipe interdisciplinar.
8.2. Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ)
A Secretaria de Reforma do Judiciário, órgão específico singular, integrante da estrutura regimental do Ministério da Justiça, a que se refere o artigo 2º, inciso II, alínea “e”
do Anexo I do Decreto n. 5.535, de 13 de setembro de 2005, foi criada com o objetivo de
promover, coordenar, sistematizar e angariar propostas referentes à reforma do Judiciário. Tem como papel principal ser um órgão de articulação entre o Executivo, o Judiciário,
o Legislativo, o Ministério Público, governos estaduais, entidades da sociedade civil e
organismos internacionais, para a promoção e difusão de ações e projetos de melhoria do
Poder Judiciário.
No sentido de contribuir ativamente com o aprimoramento dos serviços jurisdicionais,
a Secretaria de Reforma do Judiciário atua em cinco frentes: realização de diagnósticos e
pesquisas sobre o Poder Judiciário; elaboração de iniciativas e estímulo a projetos de
modernização da gestão do Judiciário; articulação quanto a mudanças na legislação processual civil, penal e trabalhista (alterações infraconstitucionais); articulação em relação
a alterações na Constituição (reforma constitucional) e promoção e efetivação do acesso
à justiça.
O acesso à justiça é considerado um direito humano e um caminho para a redução
da pobreza, por meio da promoção da equidade econômica e social. Onde não há amplo
acesso a uma justiça efetiva e de qualidade, a democracia está em risco e o desenvolvimento não é possível. Assim, a ampliação do acesso à justiça no país é uma contribuição certeira na ampliação do espaço público do exercício da cidadania, na promoção e
defesa da coesão social de grupos e segmentos populacionais e no fortalecimento da
democracia.
Justiça Comunitária – Uma experiência
75
Visando efetivar o referido acesso à justiça, garantido pela própria Constituição
Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, a Secretaria de Reforma do Judiciário
decidiu apoiar a iniciativa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios na
realização do Projeto de Justiça Comunitária, por considerá-lo uma maneira de se promover o amplo processo de democratização da justiça, e a concretização de uma justiça
efetivamente cidadã, que aborda o conflito como oportunidade de criação de uma rede de
cidadania, paz e solidariedade.
8.3. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)
Desde 2003, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento passou a
considerar entre os fatores determinantes para a retomada do desenvolvimento do país a
questão do apoio à modernização do sistema de justiça brasileiro. Nesse sentido, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento vem dando uma importante contribuição na área, ao apoiar a introdução de novos modelos de acesso à justiça, como a justiça
restaurativa e comunitária, a justiça sem papel, e a descentralização dos juizados especiais federais. Para além disso, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
tem colaborado na produção de estudos, como o diagnóstico das Defensorias Públicas no
Brasil, modelos comparativos de funcionamento dos conselhos de justiça, o mapeamento
das experiências de resolução pacífica de conflitos e o diagnóstico do Ministério Público
dos Estados. Em síntese as atividades desenvolvidas no âmbito dos projetos do Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento são inovadoras e têm colaborado para a
construção de uma agenda nacional voltada para a reforma do Judiciário.
Nesse contexto, o primeiro projeto de cooperação técnica foi firmado em 2003,
com recursos próprios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, com a
Secretaria de Reforma do Judiciário, que foi a Assistência Preparatória BRA/03/023 (Programa de Modernização da Gestão do Sistema Judiciário), no âmbito da qual vários estudos de apoio ao processo de reforma do Judiciário foram realizados.
Em 2004, com novas inserções de recursos do fundo temático do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (TTF), um novo projeto de cooperação foi firmado, o Projeto BRA/04/023 (Promovendo Acesso Universal e Equidade no Sistema de Justiça Brasileiro) e, posteriormente, o Projeto BRA/05/009 (Promovendo Práticas
Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro) teve sua implementação iniciada.
Em 2005, para dar continuidade às ações deflagradas na Assistência Preparatória
BRA/03/023, foi assinado o Projeto BRA/05/036 com a Secretaria de Reforma do Judiciário, com vistas a fomentar a modernização da Justiça brasileira, por meio da produção
de subsídios ao processo de reforma do Judiciário, como, por exemplo, elaboração de
estudos, projetos de lei, promoção de workshops e seminários e implantação de projetospiloto que sejam iniciativas inovadoras na administração da justiça, em consonância com
o mandato da Secretaria.
Em 2006, mais uma iniciativa de cooperação técnica na área de justiça foi
estabelecida, dessa vez para apoio ao projeto Justiça Comunitária. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento tem buscado contribuir para o fortalecimento do
76
Justiça Comunitária – Uma experiência
projeto nas áreas de capacitação de agentes, estruturação da Escola de Justiça e Cidadania, desenho de estratégias de ampliação da auto-sustentabilidade da justiça comunitária
no Distrito Federal e estabelecimento de marcos iniciais para uma futura avaliação dessa
iniciativa.
Ademais, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento tem interesse na
disseminação de melhores práticas na área de acesso à justiça nos diversos Estados do
Brasil e em vários países do mundo. Nesse sentido, as lições aprendidas no contexto da
implementação do Projeto no Distrito Federal podem oferecer importantes subsídios para
o estabelecimento de novas iniciativas de justiça comunitária em outras localidades do
Brasil e do mundo.
8.4. Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF)
A Defensoria Pública do Distrito Federal é instituição essencial à função jurisdicional
do Estado e tem por obrigação constitucional assegurar assistência jurídica integral e
gratuita a todos que comprovarem insuficiência de recursos. Considerando que a instituição se encontra instalada em todos os fóruns e cidades-satélites do Distrito Federal, a
Defensoria Pública do Distrito Federal colabora no atendimento contencioso e orientação
jurídica à comunidade em geral e, em especial, aos agentes comunitários de justiça e
cidadania, além de contribuir com as atividades da Escola de Justiça e Cidadania, ministrando cursos e seminários e participando das reuniões, sempre que necessário. As demandas individuais que ensejam a propositura de ações judiciais são remetidas à Defensoria
Pública do Distrito Federal por meio dos Centros Comunitários.
8.5. Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT)
O Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios é a instituição incumbida da
defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais
indisponíveis e, ainda, de zelar pelo efetivo respeito aos direitos assegurados constitucionalmente. Nesse sentido, colabora com o Projeto Justiça Comunitária, por meio de
seus membros, atuando como instrutores nas atividades da Escola de Justiça e Cidadania
e do Centro de Justiça e Cidadania. O Ministério Público, por meio da Promotoria de
Justiça de Defesa da Comunidade (PROCIDADÃ), contribui para o Programa Justiça Comunitária, referendando os acordos mediados pelos agentes comunitários de justiça e
cidadania, nos termos do artigo 585, inciso II do Código de Processo Civil e do artigo 57,
parágrafo único da Lei n. 9.099/95.
8.6. Universidade de Brasília (UnB)
A Universidade de Brasília integra o seu Núcleo de Prática Jurídica na implementação
da rede comunitária, colocando à disposição os recursos humanos de sua Faculdade de
Direito – professores e funcionários – e sua infra-estrutura física e técnica para a elaboração e execução do projeto pedagógico da Escola de Justiça e Cidadania.
Além disso, o Núcleo de Prática Jurídica poderá remeter ao Centro Comunitário de
Justiça de Ceilândia as demandas que apresentarem potencial para a mediação, assim
Justiça Comunitária – Uma experiência
77
como o Centro poderá remeter aos profissionais e estagiários do Núcleo os casos coletivos
que ensejam a propositura de ação judicial.
A Universidade de Brasília possibilita e incentiva seu corpo discente a desenvolver
projetos de pesquisa acadêmica na área de mediação comunitária, tendo por objeto a
execução do Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal.
8.7. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República
A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República é o órgão
do Governo Federal incumbido da coordenação da implementação da política de direitos
humanos em nosso país. No bojo de suas atribuições, apóia o desenvolvimento de ações
de prevenção à violência e de empoderamento da comunidade. Um dos mecanismos de
viabilização de ações nessa área é a efetivação de parcerias, por meio de convênios, para
a implantação de Balcões de Direitos.
Uma descrição geral dos Balcões envolve a prestação de serviços de orientação
jurídica gratuita, de mediação de conflitos e informação sobre diretos humanos. No cerne
desse serviço está a ênfase na capacitação de pessoas da comunidade para que disponham de conhecimento e instrumental adequado para promover e defender os direitos
humanos.
Na prática, cada Balcão assume características próprias relacionadas às peculiaridades e às necessidades de cada comunidade, dando maior relevância a um ou outro tipo
de serviço. No caso do Projeto Justiça Comunitária, existe ênfase clara na mediação de
conflitos realizada por cidadãos das cidades de Ceilândia e Taguatinga, apoiados pela
estrutura do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios e do conjunto dos
parceiros.
Assim, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
permanece como parceiro relevante, fornecendo os recursos destinados ao ressarcimento das despesas necessárias à atuação dos agentes comunitários. Além disso, acompanha todo o processo de intercâmbio entre as metodologias, buscando subsídios para o
desenvolvimento e aprimoramento de outros projetos que envolvem mediação comunitária de conflitos por ela apoiados.
78
Justiça Comunitária – Uma experiência
9. OS CASOS CONCRETOS
9.1. As estatísticas
É importante ressaltar que as estatísticas seguintes expressam as atividades
efetivamente desenvolvidas durante quatro dos seis anos de execução do Programa,
tendo em vista que, por quase dois anos, a ausência de recursos financeiros impossibilitou a restituição dos valores desembolsados pelos agentes comunitários no desempenho
de suas atividades, o que fez com que o número de casos se reduzisse a quase zero.
Atendimentos por Modalidade
Modalidade
Mediação
Quantidade
Porcentagem
387
13,90%
Orientação
2.397
86,10%
Total
2.784
100,00%
Atendimentos por área jurídica
Justiça Comunitária – Uma experiência
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Modalidade
Quantidade
Mediação
Porcentagem
387
13,90%
Orientação
2.397
86,10%
Total
2.784
100,00%
Número de pessoas atendidas diretamente
Distribuição de cartilhas durante as
apresentações do Programa, visitas
à comunidade e divulgação do
Programa
905
Mediação (considerando 2 pessoas
envolvidas em cada conflito)
774
Informação jurídica
2.397
Total em 45 meses de efetiva atuação
4.076
Número de pessoas atendidas
indiretamente (4 pessoas
por família)
11.136
9.2. O perfil das demandas
Conforme já destacado quando da análise das atividades desenvolvidas pelos agentes
comunitários102 , os dados estatísticos revelam uma excessiva centralidade na atividade
de orientação jurídica pós-conflito, ao lado de um número baixo de mediações. Esse fato
ensejou a reformulação da atividade de informação jurídica, destacando-se o seu aspecto
preventivo, por meio da produção de materiais didáticos e artísticos voltados a traduzir o
vocabulário jurídico para a linguagem popular.
Assim, a partir de agosto de 2006, o Programa Justiça Comunitária do Distrito
Federal orientou os agentes comunitários a incentivar os solicitantes envolvidos em litígios já instaurados a buscar a efetivação de seus direitos perante o Poder Judiciário,
recorrendo, para tanto, à assistência judicial prestada pelas universidades, pela Defensoria
Pública ou por advogados da confiança dos solicitantes. O objetivo dessa medida foi
atribuir centralidade à mediação comunitária e, por conseqüência, alterar o perfil dos
casos atendidos pelo Programa.
A análise da estatística revela ainda que a demanda mais significativa – em ambas
as atividades, orientação jurídica e mediação – é a que envolve o Direito de Família.
Embora ainda não tenha sido realizada uma avaliação externa para a análise desses
dados, há uma percepção da coordenação do Programa de que o alto índice de casos
familiares se explica por dois fatores. De um lado, a demanda familiar é efetivamente
majoritária na comunidade. De outro, o Programa desenvolveu uma metodologia de mediação efetivamente comunitária somente após quase seis anos de execução. Considerando que essa nova técnica se aplica, com pertinência, a toda e qualquer demanda
102. Ver Capítulo 4.
80
Justiça Comunitária – Uma experiência
comunitária, não se limitando às que veiculam conflitos estritamente interpessoais e familiares, acredita-se que, no decorrer do próximo ano (2007), o número de mediações
familiares tenderá a diminuir – embora permaneça majoritária, em razão da realidade
social – por força do aumento do número de demandas com maior impacto social e
comunitário, como, por exemplo, conflitos de vizinhança ou os que envolvam direitos
coletivos.
9.3. Os conflitos criminais
Embora a mediação comunitária seja um instrumento eficiente e adequado para a
resolução de conflitos em contextos de violência, o fato de o Ministério Público deter o
monopólio da ação penal103 requer que os programas de justiça comunitária – coordenados ou não por entes estatais – estabeleçam parcerias institucionais que possibilitem que
a demanda criminal passível de transação penal104 seja encaminhada para a mediação
comunitária, com a anuência do Ministério Público e do juiz.
Uma vez consolidada a metodologia de mediação comunitária desenvolvida no Programa Justiça Comunitária, e havendo interesse dos representantes do Ministério Público
e do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, nada impede, a princípio, que
haja a remessa de algumas demandas criminais passíveis de transação penal para a
mediação comunitária e o para o encaminhamento à rede social mapeada pelo Programa.
É importante ressaltar ainda que a aplicação de técnicas restaurativas e o uso da
mediação em alguns casos criminais já vêm ocorrendo por força da implementação do
Projeto de Justiça Restaurativa no Juizado Especial do Núcleo Bandeirante do Distrito
Federal.105
O objetivo desse Programa106 é resgatar a convivência pacífica no ambiente afetado
pelo crime, em especial naquelas situações em que o infrator e a vítima têm uma convivência próxima, que pode se projetar para o futuro. Nesse procedimento, as pessoas
envolvidas e afetadas pelo fato se reúnem com um facilitador para dialogarem sobre o
crime e suas conseqüências.
103. Conforme o artigo 129, I da Constituição Federal: “São funções institucionais do Ministério Público: I - promover,
privativamente, a ação penal pública na forma da lei.”
104. O instituto da transação penal está previsto no artigo 76 da Lei n. 9.099/95, cujo caput prevê o seguinte: “Havendo
representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o
Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, a ser especificada na
proposta (...).”
105. No projeto piloto do Distrito Federal, a Justiça Restaurativa está destinada aos delitos considerados de menor
potencial ofensivo, ou seja, aqueles cuja punição prevista seja de até 2 anos de privação de liberdade.
106. A coordenação do Programa é de responsabilidade do juiz Asiel Henrique de Sousa e está sendo implementado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, com
o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que também dá suporte a duas outras iniciativas implementadas em São Caetano do Sul-SP, sob a coordenação do juiz Eduardo Rezende de Mello, e
em Porto Alegre-RS, coordenado pelo juiz Leoberto Narciso Brancher, ambos titulares das Varas da Infância e
Juventude.
Justiça Comunitária – Uma experiência
81
9.4. Ilustração de alguns casos concretos107
Da totalidade de casos registrados no Programa Justiça Comunitária, destacam-se
os seis casos relatados a seguir, pela variedade e riqueza das demandas. Ressalta-se
especial atenção para o “caso da vaca” – pelo qual a metodologia de mediação efetivamente
comunitária trouxe um impacto social extremamente positivo – e o “caso das mães de
crianças especiais”, pois, embora ainda não encerrado, trata-se de um caso com potencial
para desdobramentos interessantes na área de formação de redes e defesa de direitos
coletivos.
Os demais casos, também submetidos à mediação comunitária, contribuíram para
a pacificação social e restauração dos vínculos afetivos, sociais ou familiares.
9.4.1. O “caso da vaca”
O solicitante procurou o Programa Justiça Comunitária para solucionar um conflito
de vizinhança em uma área rural do Distrito Federal. Segundo o solicitante, a sua propriedade vinha sendo constantemente invadida por uma vaca pertencente ao dono da
chácara vizinha, fato que vinha lhe causando prejuízos financeiros, na medida que o
animal destruía a cerca de arame farpado e a sua plantação de maxixe, financiada com
empréstimo bancário.
Como se trata de uma área rural próxima ao limite com o Estado de Goiás, a equipe
interdisciplinar decidiu acompanhar os dois agentes comunitários responsáveis pelo caso,
a fim de oferecer o suporte necessário ao atendimento.
Na primeira visita in loco, foi realizada a pré-mediação com cada parte, separadamente, oportunidade em que foram esclarecidos as posições e interesses das partes: o
solicitante queria que o solicitado se desfizesse da vaca ou que providenciasse uma cerca
elétrica. O solicitado afirmou que não construiria uma cerca elétrica em terreno alheio. As
famílias estavam muito desgastadas emocionalmente com o conflito e ambas tinham
interesse em resgatar a comunicação, já que o pai do solicitante era amigo do solicitado
e, no passado, as crianças de ambas as famílias brincavam juntas no rio, cenário do
conflito.
Reveladas as posições e interesses, as partes foram convidadas a participar de
uma sessão de mediação, a qual poderia contar, inclusive, com a participação de terceiros
aptos a contribuir para a construção de uma solução pacífica para o conflito. Ao final
desse primeiro contato, as partes demonstraram maior flexibilidade, em especial o solicitado, que chegou a ventilar a possibilidade de vender a vaca.
107. Além dos casos registrados no corpo deste texto, foram selecionados outros, cujos depoimentos foram colhidos no
vídeo, que integra este Relato de Experiência.
82
Justiça Comunitária – Uma experiência
Na sessão de mediação, que durou aproximadamente três horas e meia, o solicitante se fez presente acompanhado de sua mãe, sua cunhada e dois primos. O solicitado,
por sua vez, levou consigo dois rapazes que trabalhavam em ambas as chácaras: do
solicitante e do solicitado. Primeiramente, o solicitante – visivelmente emocionado – manifestou o desgaste causado pelas sucessivas rupturas da cerca pelo animal. Em seguida,
o solicitado expôs que estava disposto a vender a vaca, mas que essa solução poderia
não ser definitiva, porque a localização da cerca poderia ensejar que, no futuro, novos
animais aprendessem a rompê-la, visando beber a água do rio, próximo à divisa entre as
propriedades.
Os agentes comunitários providenciaram um flip chart para que todos os presentes
pudessem desenhar as características geográficas da área em questão. Esse recurso foi
fundamental para que a solução do conflito surgisse.
Um dos convidados – técnico agrícola – do solicitante sugeriu que uma nova cerca
fosse instalada em local que possibilitasse que os animais bebessem a água do rio. Para
tanto, o solicitante se dispôs a recuar a sua propriedade em alguns poucos metros. O
solicitado, por seu turno, ofereceu as madeiras para a confecção da cerca.
Facilitadas pelos agentes comunitários – que buscaram sempre o enfoque do futuro
e não o julgamento do passado – as partes foram envolvidas em uma atmosfera mais
amigável e sugeriram um mutirão para a construção e instalação da cerca. A cunhada
ofereceu o carro para o transporte da madeira. Nesse momento, a mãe do solicitante –
cuja única manifestação, em quase três horas de mediação, foi ter se referido ao solicitado como “mentiroso” – ofereceu-se para fazer o almoço de celebração do acordo entre as
famílias, no dia do mutirão.
Ao final, enquanto o acordo era redigido, as partes manifestaram o quão importante foi para aquelas famílias a retomada de uma velha amizade e, ainda, a certeza de que,
no futuro, eventuais conflitos que surjam entre eles serão facilmente resolvidos pelo
diálogo.
Por fim, é oportuno ressaltar que o solicitante já havia ajuizado uma ação judicial,
a qual foi extinta sem julgamento de mérito, por desistência do autor. Em razão do acirramento do conflito, o autor sentiu-se ameaçado e decidiu renunciar ao pleito, dias antes
da data designada para a audiência de conciliação.
9.4.2. O “caso dos irmãos”
A solicitante procurou o Programa Justiça Comunitária afirmando que vendeu um
lote ao irmão, mediante a promessa de pagamento do valor em duas parcelas, em espécie. Após o pagamento da primeira parcela, contudo, o irmão lhe entregou um veículo
para que fosse vendido e, assim, quitar o seu débito com a irmã. Ocorre que a solicitante
é portadora de deficiência física, o que dificultava a venda do veículo. O irmão, por sua
Justiça Comunitária – Uma experiência
83
vez, alegava que não tinha tempo para vendê-lo e entregou o veículo a um terceiro
irmão, o qual efetuou a alienação, mas não repassou o valor à solicitante. Após alguns
anos sem contato com o irmão, a solicitante resolveu buscar o Programa Justiça Comunitária. Realizadas pesquisas pelo Centro Comunitário com o objetivo de localizar o solicitado, a mediação foi marcada e realizada na residência da solicitante, tendo em vista suas
dificuldades de locomoção.
No decorrer da mediação, o solicitado mostrou-se bastante sensível às dificuldades
enfrentadas pela irmã. O acordo foi celebrado mediante o pagamento do débito e do
compromisso do irmão em ajudar sua irmã, no que fosse possível. É interessante observar que, neste caso, as partes preferiram não formalizar o acordo celebrado.
9.4.3. O “caso da fumaça”
O solicitante procurou o Programa Justiça Comunitária narrando uma série de problemas relacionados à vizinhança. Afirmou que sua vizinha possuía muitas árvores cujos
galhos invadiam e sujavam o seu quintal e que promovia constantes queimadas de lixos
e entulhos, fatos que o incomodavam. Além disso, o solicitante afirmou que a vizinha era
idosa, implicava com os seus filhos e que não conseguiu qualquer acordo com a mesma,
apesar de sua esposa já ter tentado uma vez. A mediação foi sugerida e aceita pelas
partes. Na sessão, a vizinha também reclamou que, certa vez, o solicitante providenciara
o corte de suas árvores, sem a sua permissão, fato que contribuiu ainda mais para o
acirramento do conflito entre ambos.
Diante da pergunta da mediadora em relação à fumaça, a vizinha esclareceu que
realmente fazia fumaça em seu lote quando precisava queimar lenha para cozinhar para
os seus netos, cuja mãe é alcoólica. Narrou ainda que quando não possui dinheiro suficiente para a compra do gás, ela prepara as refeições utilizando-se da lenha que seu
quintal lhe oferece, justamente porque possui muitas árvores. Nesse momento, o solicitante
demonstrou total perplexidade e compaixão, o que possibilitou que ambos conversassem
com detalhes sobre possíveis medidas que poderiam ser tomadas por ambos para a
melhora do relacionamento vicinal: horário e local para a colocação do lixo, poda das
árvores, etc.
O solicitante celebrou o acordo – que não foi formalizado a pedido das partes –
doando um botijão de gás para a sua vizinha.
9.4.4. O “caso das amigas que trocaram as casas”
Duas famílias promoveram a troca de suas respectivas casas entre si. Contudo, no
momento da vistoria dos imóveis, a solicitante observou que a casa que recebera possuía
um número menor de cômodos. Diante da reclamação da solicitante, a solicitada comprometeu-se, mediante acordo escrito com firma reconhecida, a construir mais dois cômodos,
a fim de compensar a diferença. Ocorre que o acordo não especificou o tamanho dos
84
Justiça Comunitária – Uma experiência
cômodos, a quantidade de portas e janelas e a qualidade do material a ser utilizado e o
acabamento. Como os cômodos novos foram entregues sem pintura, cerâmica, portas e
janelas, a solicitante procurou o Programa Justiça Comunitária, buscando uma possibilidade de mediação.
Na sessão de mediação, os terceiros trazidos por cada parte eram profissionais da
área de construção. Quando uma das partes sugeriu os primeiros traços do acordo, os
terceiros puderam participar e contribuir para a celebração do acordo.
Houve consenso quanto ao fato de que caberia à solicitada providenciar a pintura
dos cômodos. Após, o impasse foi restabelecido quando se discutiu da necessidade ou
não de se aplicar massa nas paredes. Após muitas sugestões, chegou-se ao consenso de
que os cômodos deveriam seguir o padrão dos demais já existentes, ou seja, sem massa,
mas com pintura, desde que a tinta obedecesse à mesma cor dos demais quartos já
pintados. Quanto à ausência de cerâmica e de porta e janela, a solicitada concordou em
pagar o valor de R$ 100,00 para a solicitante, divididos em cinco parcelas.
Em seu depoimento, a solicitante revelou que a construção conjunta do consenso
devolveu-lhe a esperança de resgatar a amizade de dezesseis anos que tinha com a
solicitada, rompida por força desse conflito.
9.4.5. O “caso do DVD extraviado”
O solicitante procurou o Programa Justiça Comunitária, afirmando que deixou um
aparelho de DVD de seu automóvel em um auto-elétrico para manutenção. Na data combinada para a entrega do serviço, o solicitante constatou que o aparelho havia sido extraviado e a proprietária do auto-elétrico comprometeu-se a restituir o valor correspondente, mediante um adiantamento de R$ 160,00.
O solicitante aguardou o pagamento do valor restante por aproximadamente um
ano, sem tomar qualquer iniciativa perante o Poder Judiciário, porque não acreditava que
a demanda justificasse tal medida. A agente comunitária responsável pelo caso sugeriu,
então, a mediação, o que foi aceito por ambas as partes.
No decorrer da sessão de mediação, a proprietária do auto-elétrico reconheceu a
responsabilidade pelo extravio e aceitou pagar o valor restante. O objeto da discussão
passou a ser, então, a exata quantia que faltava a ser paga. O valor que o solicitante
apresentava era o dobro do valor reconhecido pela proprietária do negócio. A questão era
saber exatamente quanto valeria um aparelho tal qual o extraviado, considerando que o
mesmo era usado.
O solicitante propôs então que a proprietária lhe entregasse um aparelho usado da
mesma marca e com as mesmas características do extraviado. A sugestão do solicitante
foi aceita pela proprietária, desde que lhe fosse restituído o valor de R$ 160,00 que havia
Justiça Comunitária – Uma experiência
85
sido paga quando do extravio do aparelho. Embora o solicitante tivesse consciência de
que esse valor poderia ser compensado a título de indenização pelo tempo em que foi
privado do uso do aparelho, o solicitante aceitou a proposta e demonstrou intensa satisfação por ter resolvido um conflito que, no seu entender, não justificaria uma demanda
judicial.
9.4.6. O “caso das mães de crianças especiais”
Um agente comunitário foi contatado pela mãe de uma criança portadora de necessidades especiais, solicitando ajuda para que a empresa de ônibus interestadual que os
transporta diariamente, da região do entorno para uma escola de alunos especiais no
Distrito Federal, aceitasse o uso do passe livre para acompanhantes emitido pelo Governo
do Distrito Federal, para uso restrito da área do Distrito Federal.
A primeira sugestão da equipe interdisciplinar foi investigar se havia outras mães
partilhando do mesmo problema, uma vez que a escola em questão é para crianças
especiais. De fato, constatou-se que o conflito não se limitava ao âmbito individual. O
agente comunitário buscou reunir esse grupo de mães, a fim de que os interesses de
todas fossem revelados. A partir desse momento, uma rede de mães que partilham do
mesmo problema foi criada, o que contribuiu positivamente para o processo de
empoderamento daquele grupo.
A discussão do caso entre a equipe interdisciplinar e alguns agentes comunitários
também sugeriu fosse realizada uma pesquisa jurídica para a compreensão dos direitos
envolvidos na demanda. Constatou-se que a legislação federal não prevê passe livre para
acompanhantes de portadores de deficiência, nos transportes interestaduais ou semiurbanos.
De qualquer sorte, as empresas foram contatadas pelo Programa, mas somente
uma delas aceitou o convite para uma sessão de mediação. No dia do encontro, a empresa não se dispôs a negociar, tampouco a ajudar a mobilizar as demais empresas para um
encontro de mediação, porque considera que já realiza o suficiente em termos de responsabilidade social.
Diante da impossibilidade de submeter esse caso a uma sessão de mediação, não
restará outra alternativa senão a busca pela efetivação dos direitos das crianças portadoras de necessidades especiais perante o Ministério Público Federal, o Conselho Nacional
dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (CONADE) da Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidência da República e a Comissão de Direitos Humanos da
Câmara dos Deputados, para eventuais providências judiciais e/ou legislativas. Essa iniciativa, contudo, dependerá do grau de mobilização e interesse dessa rede de mães, cuja
oportunidade de consolidação nasceu do conflito.
86
Justiça Comunitária – Uma experiência
10. REGISTRO E MEMÓRIA
10.1. O sistema de banco de dados
A construção de um banco de dados108 surgiu da necessidade de o Programa contar com um instrumento que possibilitasse uma eficiente prestação de contas de todos os
atendimentos realizados pelos agentes comunitários, a todos os órgãos apoiadores –
Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Secretaria de Reforma do Judiciário do
Ministério da Justiça –, aos demais parceiros institucionais do Programa, ao Tribunal de
Contas da União, às Secretarias de Recursos Orçamentários e Financeiros e de Controle
Interno do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, à imprensa; ao público
atendido pelo Programa e a todos os que se interessem em conhecer o Programa.
A compilação dos dados relativos às demandas auxilia na construção dos indicadores quantitativos para a avaliação de impacto do Programa na comunidade, a partir das
seguintes informações:
1. dados sócio-econômicos da população atendida: nome do solicitante; sexo;
endereço; telefone; data/local de nascimento; faixa etária; profissão; ocupação; renda individual; renda familiar; grau de escolaridade; situação conjugal; filhos; se mora
sozinho;
2. informações sobre a natureza das demandas classificadas de acordo com as
seguintes áreas do direito: família, sucessões, moradia, obrigações, responsabilidade civil, contratos, consumidor, previdenciário, trabalho, criminal, direitos humanos, registros
públicos e outros;
3. visualização dos andamentos dos atendimentos:
• atendimentos finalizados e em andamento;
• tempo de resposta para a comunidade;
• atuação/ produtividade de cada agente;
• modalidades dos atendimentos: informação jurídica; encaminhamento para outros órgãos; mediação comunitária de conflitos ou formação de redes.
10.2. Registrando as atividades
Todas as atividades resultantes das demandas são registradas em um formulário
padronizado109, que veicula informações relevantes acerca do perfil sócio-econômico dos
108. Segundo informações fornecidas pelo técnico em informática Auto Tavares da Câmara Júnior, responsável pela
construção do banco de dados, “o banco de dados utilizado para a solução é o banco de dados corporativo do TJDFT,
qual seja o Caché, que é um banco de dados orientado a objetos com múltiplas camadas de acesso relacional e
hierárquico. A operacionalização da solução é feita em arquitetura J2EE Java”.
109. Ver Anexo XII.
Justiça Comunitária – Uma experiência
87
solicitantes, da natureza das demandas, das iniciativas que eventualmente os solicitantes
tomaram antes de procurar o Programa, dentre outras. A finalidade é sistematizar essas
informações em gráficos estatísticos que revelem informações preciosas para as avaliações e o aperfeiçoamento do Programa.
Além das informações úteis para efeitos estatísticos, esse material é também utilizado pela equipe interdisciplinar no acompanhamento de cada caso, por meio do registro
dos encaminhamentos eventualmente sugeridos e dos resultados das sessões de mediação, caso aconteçam.
88
Justiça Comunitária – Uma experiência
11. O TRABALHO VOLUNTÁRIO
11.1. A natureza do trabalho voluntário
O trabalho voluntário se caracteriza pela doação de tempo, dedicação, habilidades
e talentos a uma atividade de interesse social. É a conjugação da ética da solidariedade
com a participação cidadã. Nesse sentido, a motivação do voluntário pode repousar tanto
na generosidade e compaixão, quanto no senso de indignação e inconformismo diante da
desigualdade e injustiça sociais.110
É interessante observar, porém, que a relação que se estabelece entre o voluntário
e a comunidade beneficiada é bilateral. O voluntário, além de doador, faz-se receptor de
novas experiências que possibilitam o aprendizado pessoal e profissional, o reconhecimento e o respeito comunitário, o prazer de ser útil, a descoberta da auto-estima, o
sentimento de pertença, o descobrimento do sentido de comunidade.
A comunidade, por sua vez, além de proporcionar esses benefícios aos que a ela se
dedicam voluntariamente, abre-se para novas possibilidades de trabalhos coletivos, criação de vínculos de solidariedade, estabelecimento de parcerias, respeito à diversidade,
enfim, compromisso com o interesse comunitário.111
Essa reciprocidade de benefícios, aliada à partilha de saberes, permite a construção
de ações em rede entre os diversos atores, serviços, programas e movimentos sociais.
Assim, o trabalho voluntário constitui importante instrumento de desenvolvimento social
porque permite a intensificação dos níveis de compreensão da realidade, a realização
coletiva com eficiência e criatividade e o empreendedorismo com cooperação.
Para que a experiência com o trabalho voluntário tenha êxito, é fundamental investigar em que medida o programa beneficiado apresenta objetivos compatíveis com as
expectativas e com o perfil do voluntário. Na medida que a remuneração nessa atividade
é de natureza não-material, é preciso que haja uma identidade do teor do programa com
os anseios espirituais e/ou político-ideológicos e/ou afetivo-pessoais do voluntário.
Além disso, é necessário que se esclareça que, uma vez estabelecidos os limites da
atuação de acordo com a disponibilidade pessoal, o voluntário assume um compromisso
com um projeto que busca eficiência e impacto social positivo. Nesse sentido, é preciso
que o voluntário esteja consciente da responsabilidade social assumida quando da adesão a um programa.
110. VILLELA, Milú. Faça Parte e o I Congresso Brasileiro do Voluntariado. In: PEREZ, Clotilde; JUNQUEIRA, Luciano Prates
(Orgs.). Voluntariado e a gestão das políticas sociais. São Paulo: Futura, 2002. p. 16.
111. PEREZ, Clotilde; JUNQUEIRA, Luciano Prates (Orgs.). Voluntariado e a gestão das políticas sociais. São Paulo:
Futura, 2002.
Justiça Comunitária – Uma experiência
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11.2. A adesão voluntária. Questões práticas
Os agentes comunitários do Programa Justiça Comunitária do Distrito Federal desempenham as suas atividades sob a regência da Lei n. 9.608/98, que dispõe sobre o
serviço voluntário.112
Inicialmente, as despesas relativas à atuação dos agentes eram calculadas
por estimativa, e a respectiva restituição era efetuada através de um valor mensal fixo.
Nessa época, embora o número de atendimentos não fosse expressivo – considerando o momento inicial do Projeto –, os agentes estavam sob intensa capacitação na Escola
de Justiça e Cidadania, o que implicava gastos significativos com transporte e
alimentação.113
Posteriormente, conforme os agentes comunitários adquiriam experiência, o ressarcimento das despesas passou a variar conforme o número e a natureza dos casos
atendidos. Segundo os cálculos estimados pela equipe administrativa do Programa, cada
atendimento implicava número aproximado de telefonemas, transporte e alimentação.
Assim, por ser a mediação um processo bilateral, que exige o convencimento e a presença de ambas as partes, os gastos a serem ressarcidos eram maiores do que os relativos
às demandas que redundavam em orientação jurídica, cuja dinâmica implicava menor
número de contatos e deslocamentos.
A opção pelo ressarcimento por estimativa ocorrido nesses dois períodos justificava-se pela dificuldade – quando não impossibilidade – de se documentar cada gasto
efetuado no cotidiano do agente comunitário. Era inviável exigir, por exemplo, a juntada
de recibos de uma passagem de ônibus ou de um telefonema local.
Contudo, considerando que uma das interpretações possíveis do artigo 3° da Lei
n. 9.608/98 é a de que o ressarcimento só pode ocorrer mediante a comprovação documental dos gastos, o Programa redefiniu os critérios do cálculo do ressarcimento.
Atualmente, a sistemática adotada é a restituição dos valores gastos – respeitado o limite
orçamentário – baseada nos dados registrados em um formulário, no qual cada agente
comunitário assume a responsabilidade pela declaração das despesas relativas aos casos
efetivamente atendidos. Esse método, que a princípio ostentava difícil implementação,
mostrou-se relativamente simples, eis que foram adotados alguns mecanismos de
monitoramento entre o conteúdo das declarações e as realizações, o que foi edificante
para imprimir maior transparência e ética na gestão do Programa.
É bom ressaltar que, no caso do Programa Justiça Comunitária, esse ressarcimento
tem sido possível graças ao convênio firmado com a Secretaria de Estado de Direitos
112. O teor da Lei do Voluntariado encontra-se no Anexo XIII.
113. Essa capacitação abrange tanto a presença na Escola de Justiça e Cidadania – nas aulas que ocorrem todas as
sextas-feiras e nos cursos de mediação realizados em alguns finais de semana – como também as idas ao Centro
Comunitário de Justiça e Cidadania para orientação dos casos levados pelos agentes comunitários à equipe
interdisciplinar.
90
Justiça Comunitária – Uma experiência
Humanos da Presidência da República. Em se tratando, pois, de recursos públicos, a
eficiência e transparência de sua gestão obedece não somente a um imperativo ético,
como também às normas de Direito Público.
É oportuno destacar que a Lei do Voluntariado prevê que o ressarcimento veiculado
em seu artigo 3° ostenta natureza indenizatória, e não remuneratória. Isso significa afirmar que o desembolso desses valores não gera vínculos trabalhistas e/ou previdenciários,
desde que observados os demais critérios adotados na legislação obreira.
É conveniente destacar ainda que a Lei do Voluntariado exige a confecção de um
Termo de Adesão114, a fim de que as partes protejam-se mutuamente contra eventual
divergência de interesses e expectativas. Esse instrumento, quando redigido de maneira
clara e objetiva, é fundamental para estabelecer as condições sob as quais o trabalho
voluntário será realizado.
Por fim, é necessário esclarecer a razão pela qual um Programa coordenado por um
Tribunal de Justiça optou por dispor de um trabalho de natureza voluntária. Não se trata
de buscar diminuir a demanda judicial, mesmo porque as atividades dos agentes comunitários podem, muitas vezes, instigar aquele cidadão resignado em buscar efetivar seus
direitos perante o Poder Judiciário. O que na verdade se pretende é assegurar que os
agentes comunitários, na qualidade de membros engajados em ações comunitárias, possam compartilhar a linguagem e o código de valores comunitários e, dessa forma, contribuir para a formulação de um saber local. Assim, não haveria qualquer sentido em destinar servidores do Tribunal de Justiça, por exemplo, para o desempenho de uma tarefa
que é essencialmente comunitária, porque realizada pela, para e na comunidade.
114. O Termo de Adesão do Programa Justiça Comunitária encontra-se no Anexo XIV.
Justiça Comunitária – Uma experiência
91
12. EM BUSCA DA AUTO-SUSTENTABILIDADE DO PROGRAMA
Embora o Programa Justiça Comunitária opere com agentes comunitários voluntários, a restituição do valor efetivamente desembolsado no desempenho das atividades é
fundamental para a viabilidade do Programa, sobretudo em comunidades socialmente
vulneráveis. Esse ressarcimento, contudo, demanda a existência de recursos para tal fim,
o que nem sempre é possível, seja para entidades da esfera privada ou pública.
A fim de assegurar a auto-sustentabilidade financeira dessas iniciativas, é indispensável que haja um amplo diálogo entre instituições que pretendam investir, por sua
relevância social, na disseminação de programas de justiça comunitária.
O Programa Justiça Comunitária oferece a proposta descrita a seguir, não como o
único caminho a ser trilhado em busca dessa necessária auto-sustentabilidade, mas como
uma contribuição ao debate.
12.1. Uma proposta para a reprodução nacional de um programa de
justiça comunitária em larga escala e de baixo custo
A execução de um programa de justiça comunitária com potencial para a reprodução em escala federal e com capilaridade suficiente para atingir pequenos municípios
requer a participação de entidades públicas e privadas interessadas na promoção de um
amplo processo de democratização da realização da justiça.
Para que um programa como esse ganhe contornos nacionais, sem prejuízo do
respeito às particularidades regionais, é necessária a convergência de esforços entre os
seguintes entes públicos e privados: Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da
Justiça, Tribunais de Justiça Estaduais, Governos Estaduais e Municipais e empresas públicas ou privadas que queiram imprimir a responsabilidade social em suas marcas.
À Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça caberia a coordenação da elaboração de diretrizes gerais de um programa de justiça comunitária, com a
colaboração de parceiros das universidades, dos Tribunais de Justiça, do Legislativo, das
ONGs e OSCIPs, dentre outros.
Os Tribunais de Justiça Estaduais, por meio de suas Escolas da Magistratura, seriam estimulados a criar as Escolas de Justiça e Cidadania, voltadas para a capacitação de
agentes comunitários de justiça e cidadania, nas áreas de noções básicas de Direito,
direitos humanos e técnicas de mediação comunitária e de animação de redes sociais.
Essa iniciativa poderia ser ampliada, para que as Escolas também oferecessem
capacitação em mediação forense – técnica passível de ser adotada nos processos judiciais já instaurados – aos servidores dos Tribunais que demonstrassem habilidade e interesse nessa atividade.
92
Justiça Comunitária – Uma experiência
Os Governos Municipais teriam por atribuição a seleção e o credenciamento de
agentes comunitários de justiça e cidadania, segundo os critérios genéricos estabelecidos
pela coordenação da Secretaria de Reforma do Judiciário.
A instalação dos centros comunitários de justiça e cidadania é de fundamental
importância, na medida que oferecem suporte interdisciplinar para a atuação dos agentes
comunitários e para o registro e controle dos casos atendidos. Nesse sentido, os Governos Estaduais poderiam auxiliar os Governos Municipais a instalarem um centro comunitário em um espaço físico dotado de, no mínimo, duas salas (uma para a mediação
comunitária e outra para a secretaria), um computador, um telefone e uma equipe
interdisciplinar composta por servidores públicos – um advogado, um psicólogo e um
assistente social.
Por fim, para que os programas possam ter auto-sustentabilidade financeira no que
se refere à atuação dos agentes comunitários, sem custos significativos para o Estado e
sem o risco de desvio de verbas públicas, a iniciativa privada poderia integrar o programa, participando de um movimento intitulado por exemplo Construindo uma Justiça de
Paz: adote um agente comunitário de justiça e cidadania.
Cada agente comunitário selecionado pelos Governos Municipais seria contratado
pela empresa participante – com todos os encargos sociais, trabalhistas e previdenciários
– para desempenhar funções de acordo com o perfil profissional de cada um. Assim, um
marceneiro, por exemplo, seria lotado na empresa parceira para exercer as funções de
marcenaria. A carga horária, contudo, é que seria alterada: o marceneiro trabalharia por
4 horas e as horas restantes seriam destinadas ao programa de justiça comunitária, cuja
atuação seria submetida ao controle quantitativo e qualitativo de cada centro comunitário. Essa medida evitaria a formação de uma categoria burocrática de agentes estatais,
além de preservar a identidade profissional e a auto-estima de cada agente comunitário
de justiça.
Justiça Comunitária – Uma experiência
93
13. A AVALIAÇÃO DO PROGRAMA
13.1. Avaliação. Conceito e objetivos
As parcerias firmadas entre as agências internacionais, as entidades públicas e as
organizações da sociedade civil para o desenvolvimento de projetos na área social têm
sido cada vez mais freqüentes, seja em razão da escassez de recursos exclusivamente
públicos para esse fim, seja por força da ampliação dos canais democráticos de participação da sociedade no controle e gestão de programas sociais.
Por um imperativo ético, é recomendável que os atores envolvidos na efetivação
dessas parcerias estabeleçam instrumentos avaliativos voltados para o permanente
monitoramento da execução dos programas e seu efetivo impacto social.
A definição de avaliação descrita a seguir é precisa, na medida que veicula o conceito associado às suas finalidades: “Avaliação é uma forma de pesquisa social e aplicada,
sistemática, planejada e dirigida, destinada a identificar, obter e proporcionar de maneira
válida e confiável dados e informação suficiente e relevante para apoiar um juízo sobre o
mérito e o valor dos diferentes componentes de um programa (tanto na fase de diagnóstico, programação e execução), ou de um conjunto de atividades específicas que se realizam, foram realizadas ou se realizarão, com o propósito de produzir efeitos e resultados
concretos, comprovando a extensão e o grau em que se deram essas conquistas, de
forma tal que sirva de base ou guia para uma tomada de decisões racional e inteligente
entre cursos de ação, ou para solucionar problemas e promover o conhecimento e a
compreensão dos fatores associados ao êxito ou ao fracasso de seus resultados.”115
Trata-se de um valioso instrumento, na medida que pode proporcionar os seguintes
benefícios aos programas sociais:
• melhor controle e racionalização na utilização de recursos;
• aferição do grau de satisfação dos usuários em relação ao serviço prestado;
• aferição do impacto causado pelo programa;
• diagnóstico de problemas e suas circunstâncias na execução do programa;
• redirecionamento da execução;
• maior facilidade na captação de recursos;
• sistematização dos resultados para maior controle social.
115. REIS, Liliane G. da Costa. Avaliação de projetos como instrumento de gestão. p. 3. Disponível em: <http://
www.rits.org.br/gestao_teste/ge_testes/ge_tmesant_nov99.cfm>. Acesso em: 3 nov. 2006.
94
Justiça Comunitária – Uma experiência
Em geral, as avaliações buscam a aferição do índice de eficiência, eficácia e efetividade
de um programa social, cujos conceitos são os seguintes: “Eficiência diz respeito à boa
utilização dos recursos (financeiros, materiais e humanos) em relação às atividades e
resultados atingidos”116. Em poucas palavras, menos recursos com maiores benefícios. Já
a eficácia permite observar “se as ações do projeto permitiriam alcançar resultados previstos”117. É a relação de pertinência e adequação entre meios e fins. E enfim a “efetividade
examina em que medida os resultados do projeto, em termos de benefícios ou mudanças
gerados, estão incorporados de modo permanente à realidade da população atingida”118.
Embora seja difícil estabelecer o nexo causal, trata-se de comparar o impacto antes e
depois da implementação do programa social.
13.2. A subjetividade da avaliação
A avaliação de programas sociais não pode ser exclusivamente técnica porque o
sucesso ou não de um programa está ligado a valores e expectativas de seus usuários
membros da comunidade que compõe o público-alvo.119
O avaliador, ainda que revestido de rigor científico, não é o único capaz de explicar
e analisar os fatos sociais120. Ao contrário do que afirma o paradigma positivista, a subjetividade é inerente a qualquer avaliação porque “decisões que dizem respeito a quais
informações devem ser coletadas, escolha da amostra, seleção de critérios e princípios,
métodos de tratamento estatístico passam a ser percebidos como envolvendo julgamentos de valor (Holland, 1983)”.121
Nesse sentido, a fim de que a avaliação não fique limitada ao universo subjetivo do
pesquisador, as vozes dos sujeitos sociais que integram o programa devem ser ouvidas.
“As análises dos sujeitos sociais envolvidos nos serviços/programas sobre estas experiências não podem ser ignoradas, mas reconhecidas como portadoras de racionalidade e
analisadas sob a luz das conexões histórico-sociais que conformam tais discursos”122.
Isso não significa afirmar, por óbvio, que não deva haver fundamentação quanto às escolhas realizadas ao longo do processo avaliativo.
13.3. Momento da avaliação
De uma maneira geral, um programa social pode e deve ser avaliado a qualquer
momento. A depender, contudo, do período em que se realiza a avaliação, os objetivos e
as técnicas se diferenciam, conforme se verifica a seguir.
116. VALARELLI. Leandro Lamas. Indicadores de resultados de projetos sociais. p. 14. Disponível em: <http://
www.rits.org.br/gestao_teste/ge_testes/ge_tmes_junho2002.cfm>. Acesso em: 3 nov. 2006.
117. Ibidem, p. 14.
118. Ibidem, mesma página.
119. DESLANDES, Suely Ferreira. Concepções em pesquisa social: articulações com o campo da avaliação em serviços de
saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 103-107, jan./mar. 1997. Disponível em:
<www.scielo.br/pdf/csp/v13n1/0228.pdf>. Acesso em: 3 nov. 2006.
120. Ibidem, p. 105.
121. Ibidem, p. 104.
122. Ibidem, p. 105.
Justiça Comunitária – Uma experiência
95
Período inicial, também denominado ex-ante ou “ponto zero”: o objeto é a formulação e implementação do programa. Nesse momento, busca-se investigar a pertinência,
a viabilidade e a eficácia em potencial do projeto. O objeto dessa avaliação é o território
e sua história; o público alvo, suas demandas e talentos; a estrutura organizacional; a
coerência do programa em relação aos objetivos e instrumentos; e o exame dos marcos
conceituais, dentre outros.
Durante a execução: o objeto é o desenvolvimento do programa. Esta avaliação
busca investigar em que medida a proposta original está sendo ou não cumprida. É um
instrumento que permite a identificação de problemas e eventuais correções de rumo.
Avaliação final: os resultados do programa estão sob análise. É a avaliação dos
efeitos e do impacto social provocados pelo programa, sendo fundamental para auxiliar
na tomada de decisões quanto à continuidade ou não do programa.
13.4. A avaliação do Programa Justiça Comunitária
Conforme se verifica no corpo do presente relato, a equipe do Programa Justiça
Comunitária dedicou esforço contínuo para armazenar, sistematizar e analisar os dados
relativos à sua execução.
A partir desse constante processo de identificação dos êxitos e fragilidades do Programa, foi possível a adoção de providências que ensejaram algumas alterações
operacionais, na busca de seu aperfeiçoamento. Muito embora essa constante auto-avaliação tenha sido extremamente valiosa, era imperioso que o Programa tivesse condições
estruturais de se submeter a um profissional capacitado, para desenvolver uma avaliação
externa. Em seis anos de execução, esta é a primeira oportunidade em que essa contratação
será possível.
Tendo em vista que o Programa Justiça Comunitária encontra-se em profundo processo de replanejamento123, a avaliação deverá ser feita em duas etapas. Em um primeiro momento, a avaliação terá por objetivo a realização de um diagnóstico da atual situação do Programa.
Para tanto, será levado a efeito um levantamento in loco dos dados das atividades
desenvolvidas pelo Programa. Todos os atores sociais inseridos na comunidade e de alguma forma envolvidos com o Programa – membros da equipe, agentes comunitários, usuários e entidades que compõem as redes locais – serão entrevistados.124
A partir do confronto dessas informações com os dados já armazenados pelo banco
de dados do Programa, será possível a identificação da motivação do usuário na busca do
123. Todas as mudanças previstas e planejadas foram descritas neste Relato de Experiência.
124. A seleção dos entrevistados obedecerá aos critérios de gênero, natureza das demandas, natureza dos atendimentos
– mediação ou orientação jurídica – e território, consideradas as diferentes áreas das cidades-satélites de Taguatinga
e Ceilândia.
96
Justiça Comunitária – Uma experiência
serviço, do tipo de demanda mais acionada até o momento, do nível de satisfação do
usuário e das sugestões locais, diante de possíveis obstáculos constatados.
O resultado dessa avaliação inicial será fundamental, seja para eventual correção
de algum aspecto operacional previsto para o ano de 2007, seja para servir de base
comparativa para a segunda etapa da avaliação, cujos traços ainda serão definidos.
Se, de um lado, essa permanente construção a que se submete o Programa Justiça
Comunitária traz a insegurança natural que embala os projetos pioneiros, de outro, contribui para torná-lo um sonho sólido, passível de resistir às mais intensas dificuldades.
Não fossem o compromisso, a lealdade e a convicção com que a equipe interdisciplinar
deste Programa perseguiu seus objetivos estratégicos, por certo este relato de experiências teria dado lugar a um livro de memórias.
Justiça Comunitária – Uma experiência
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. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo:
Cortez, 2000.
VALARELLI, Leandro Lamas. Indicadores de resultados de projetos sociais. Disponível
em: <http://www.rits.org.br/gestao_teste/ge_testes/ge_tmes_junho2002.cfm>. Acesso em: 3 nov. 2006.
VILLELA, Milú. Faça Parte e o I Congresso Brasileiro do Voluntariado. In: PEREZ, Clotilde;
JUNQUEIRA, Luciano Prates (Orgs.). Voluntariado e a gestão das políticas sociais. São
Paulo: Futura, 2002.
ZAPPAROLLI, Célia Regina. A experiência pacificadora da mediação: uma alternativa contemporânea para a implementação da cidadania e da justiça. In: MUSZKAT, Malvina Éster
(Org.). Mediação de conflitos: pacificando e prevenindo a violência. São Paulo: Summus,
2003.
ZAPPAROLLI, Célia Regina; VIDAL, Glaucia; VICENTE, Reginandréa Gomes; BIASOTO,
Lílian Godau dos Anjos Pereira. Apostila do Curso de Mediação Técnico-Comunitária, realizado em Brasília, entre os dias 6 e 15 de outubro de 2006. Brasília: 2006.
100
Justiça Comunitária – Uma experiência
Anexos
Justiça Comunitária – Uma experiência
101
102
Justiça Comunitária – Uma experiência
Anexo I - Formulário Instituições/Entidades
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS - TJDFT
CADASTRO DE INSTITUIÇÕES/ENTIDADES
1. Identificação da Instituição/Entidade
Nome / Razão Social:
Tipo de Pessoa:
( ) Física
( ) Jurídica
CNPJ/CPF:
Endereço:
Bairro:
Cidade:
UF:
Telefones:
Fax:
E-mail:
HomePage:
CEP:
O que faz:
Área de Atuação: ( ) Educacional
( ) Trabalho
( ) Outra:
( ) Esporte/Lazer
( ) Saúde
( ) Segurança
( ) Social
Áreas Específicas: ( ) Abrigamento ( ) Abuso sexual ( ) Alcoolismo ( ) Alfabetização ( ) Atdo. à criança
( ) Atdo. à mulher ( ) Atdo. ao adolescente ( ) Atdo. ao idoso ( ) Atdo. jurídico ( ) Dependência química
( ) Documentação civil ( ) HIV/AIDS ( ) Inserção no mercado
( ) Port. de necessidades especiais
( ) Serv. médicos ( ) Serviços odontológicos ( ) Serviços profissionalizantes
( ) Serviços psicológicos
( ) Serv. psicopedagógicos ( ) Serv. psiquiátricos/Saúde mental ( ) Vítimas de violência ( ) Outras:
2. Responsável pela Instituição
Nome:
Função:
Telefones:
E-mail:
Profissão:
3. Informações Complementares
Funcionamento: ( ) Segunda
( ) Terça
( ) Quarta
( ) Quinta
( ) Sexta ( ) Sábado ( ) Domingo Horário:
Especialidades dos Profissionais: ( ) Assist. social ( ) Educador ( ) Enfermeiro ( ) Fisioterapeuta
( ) Fonoaudiólogo ( ) Hebiatra ( ) Médico ( ) Neurologista ( ) Nutricionista ( ) Pedagogo ( ) Pediatra
( ) Prof. Ed. Física ( ) Psicólogo ( ) Psicopedagogo ( ) Psiquiatra ( ) Terapeuta ocupacional ( ) Outros:
Tempo Aprox. 1o Atendimento:
Período de Férias/Recesso:
Remuneração do Serviço: ( ) Convênio
( ) Preço Mercado ( ) Outra:
( ) Gratuito
Facilitadores de Frequência ao Serviço: ( ) Nenhum
( ) Outros:
Vinculação religiosa: ( ) Nenhuma
( ) Outra:
( ) Pgto. de acordo c/ renda
( ) Alimentação
( ) Afro-brasileiras
( ) Católica
( ) Pgto. Simbólico
( ) Transporte
( ) Espírita
( ) Vale-transporte
( ) Evangélica/Protestante
Formas de Encaminhamento/Ingresso:
Clientela: ( ) Criança ( ) Adolescente ( ) Adulto ( ) Idoso ( ) Casal ( ) Família
Faixa Etária:
de
a
anos
Restrições/Observações:
4. Serviços Prestados/Atividades Desenvolvidas
Serviço/Atividade
Especialidades dos Profissionais
Observações
5. Obtenção dos Dados
Data:
Forma de obtenção: ( ) Visita
Entrevistador(es):
( ) Telefone
Entrevistado:
( ) Reunião
( ) Outra:
Função/Profissão:
Observações e Impressões do Entrevistador:
Justiça Comunitária – Uma experiência
103
Anexo II - Histórico da seleção no Programa Justiça Comunitária
Ao longo desses cinco anos, foram realizados seis processos seletivos para agente
comunitário de justiça e cidadania, a saber:
Processo
Seletivo
Seleção 1
Seleção 2
Seleção 3
Seleção 4
Seleção 5
Seleção 6
Período
out. a
dez./2000
abr. a
jun./2002
mai. a
jun./2003
out. 2004 a
ab./2005
set. a
out./2005
jun. a
ago./2006
Cidade
Ceilândia
Taguatinga
Ceilândia e
Taguatinga
Ceilândia e
Taguatinga
Ceilândia e
Taguatinga
Ceilândia e
Taguatinga
Justificativa
Início do
Programa
Expansão do
Programa
Preenchimento
de vagas
existentes
Preenchimento
de vagas
existentes
Preenchimento
de vagas
existentes
Preenchimento
de vagas
existentes
Recrutamento
Divulgação
na mídia.
Carta às
instituições.
Esclarecimentos sobre o
Programa.
Preenchimento de
formulário.
Carta às
instituições.
Esclarecimentos sobre
Programa.
Preenchimento de formulário.
Entrega de
currículo e
carta de encaminhamento.
Carta às
instituições.
Esclarecimentos
sobre o Programa.
Preenchimento
de formulário.
Entrega de
currículo e carta
de encaminhamento.
Reunião em
escolas ativas
na comunidade.
Esclarecimentos
em grupo sobre
preenchimento
de formulário.
Reunião em
associações e
escolas
representativas
de cada setor
com vaga.
Distribuição
de folder nos
setores c/vaga.
Fixação de cartaz nos locais
visitados.
Preenchimento
de formulário.
Reunião em
associações e
escolas
representativas
de cada setor
com vaga.
Distribuição
de folder nos
setores c/vaga.
Fixação de cartaz nos locais
visitados.
Preenchimento
de formulário.
Seleção
Análise do
formulário.
Curso de
formação.
Entrevista
individual.
Prova escrita.
Prova oral.
Entrevista
individual.
Dinâmica de
grupo.
Pesquisa
sócio-jurídica.
Análise do
formulário e
do currículo.
Dinâmica de
grupo.
Entrevista
individual.
Pesquisa
sócio-jurídica.
Pesquisa na
comunidade.
Análise do
formulário.
Dinâmica de
grupo.
Entrevista
individual.
Pesquisa
sócio-jurídica.
Análise do
formulário.
Dinâmica de
grupo.
Entrevista
individual.
Pesquisa
sócio-jurídica.
Análise do
formulário.
Dinâmica de
grupo.
Entrevista
individual.
Pesquisa
sócio-jurídica.
N.
inscritos
143
70
Ceilândia: 106
Taguatinga: 34
Ceilândia: 36
Taguatinga: 14
Ceilândia: 40
Taguatinga: 15
Ceilândia: 48
Taguatinga: 23
N. vagas
30
25
Ceilândia: 5
Taguatinga: 3
Ceilândia: 7
Taguatinga: 4
Ceilândia: 7
Taguatinga: 3
Ceilândia: 10
Taguatinga: 4
104
Justiça Comunitária – Uma experiência
Anexo III - Fluxograma do recrutamento e seleção de
agente comunitário de justiça e cidadania
Pressupostos:
• descrição das atividades dos agentes;
• descrição do perfil do agente.
Necessidade de novos agentes
Divulgação da seleção
Reunião de esclarecimentos
aos interessados
Preenchimento do
formulário de inscrição
Candidatos com qualificação
insuficiente em relação à
descrita no perfil
Resultados
desfavoráveis
Triagem inicial
1ª
2ª
3ª
4ª
etapa:
etapa:
etapa:
etapa:
análise dos formulários
dinâmica de grupo
entrevista individual
pesquisa social/judicial
Não selecionado
Aprovação final
Carta de agradecimento
Selecionado
Justiça Comunitária – Uma experiência
105
106
Justiça Comunitária – Uma experiência
Anexo IV - Folder capa e verso
Justiça Comunitária – Uma experiência
Anexo IV - Folder miolo
107
Anexo V - Formulário de Inscrição
FORMULÁRIO DE INSCRIÇÃO
1. Dados pessoais
Nome completo:
Sexo: ( ) Feminino
( ) Masculino
Data de nascimento:
/
/
Endereço:
Telefones para contato:
Referências pessoais:
Vizinhos(as)
Telefones correspondentes
Do trabalho (nomes)
Telefones correspondentes
Configuração familiar:
Você tem filhos?
( ) Sim
( ) Não
Grau de instrução: (
(
(
(
Você estuda?
( ) Solteiro(a)
( ) Viúvo(a)
( ) Outros
)
)
)
)
Quantos?
1º grau
2º grau
Superior
Pós-graduação
( ) Não
( ) Casado(a)
( ) Separado(a) judicialmente
Qual?
(
(
(
(
)
)
)
)
Completo
Completo
Completo
Completo
( ) Sim
(
(
(
(
)
)
)
)
Incompleto
Incompleto
Incompleto
Incompleto
Onde?
Turno:
2. Trabalho
Atividade/Ocupação:
Endereço/Local:
Telefone:
Horário de trabalho:
Salário atual:
Renda familiar:
3. Vida comunitária
Participa atualmente de algum movimento/organização comunitária?
( ) Sim
Qual?
Há quanto tempo?
( ) Não
Já participou de algum movimento/organização comunitária?
( ) Sim
Qual?
Quando?
( ) Não
Já precisou utilizar órgão do sistema judiciário?
( ) Sim
Por que?
( ) Não
Há quanto tempo mora nesta cidade-satélite?
108
Justiça Comunitária – Uma experiência
4. Agente comunitário de justiça e cidadania
O que você conhece a respeito do Programa Justiça Comunitária?
Por que razão você quer ser um agente comunitário de justiça e cidadania?
Quem o(a) convidou para participar desse processo seletivo:
Assinale com um X a sua disponibilidade para se dedicar ao Programa, incluindo o atendimento na comunidade e a
participação nas reuniões e nos cursos de formação.
Manhã
Tarde
Noite
Segunda-feira
Terça-feira
Quarta-feira
Quinta-feira
Sexta-feira
Sábado
Domingo
5. Conte a sua história de vida:
Justiça Comunitária – Uma experiência
109
Anexo VI - Dinâmica de Grupo de Seleção/2006
PROCESSO SELETIVO DE VOLUNTÁRIO
2ª ETAPA - DINÂMICA DE GRUPO
Objetivos:
• Conhecer os candidatos pré-selecionados;
• Observar os candidatos em situação de grupo;
• Identificar as habilidades dos candidatos de acordo com o perfil exigido, tais como: interação,
participação, criatividade, habilidade verbal, atenção, memória.
Material necessário:
Revistas, cartolina, tesoura, cola e canetinhas coloridas.
Desenvolvimento da dinâmica:
1º Momento: acolhida e aquecimento (5 min.)
• Entregar o crachá aos candidatos;
• Boas vindas;
• Explicação do processo seletivo (continuidade da seleção – 2ª etapa);
• Descontração dos candidatos (ao som de uma música caminhar pela sala, se esticar, espreguiçar, consciência do corpo, da respiração, do momento).
2º Momento: apresentação (25 min.)
À medida que caminham pela sala, encontrar um parceiro para formar uma dupla; então se
apresentam um ao outro (nome, onde nasceu, o que faz, situação familiar, etc.). Após todos se
apresentarem, formar um círculo e apresentar o companheiro ao grupo todo, um apresenta o
outro.
3º Momento: explicação do programa (10 min.)
Objetivos do Programa
Atividades dos agentes (orientação, mediação, formação de redes)
Procedimentos de atuação
4º Momento: discussão de caso (40 min.)
Pedir para formar subgrupos de cinco pessoas (de acordo com número no crachá), entregar
folha com uma história de conflito entre vizinhos; então cada pequeno grupo lê a história e
discute sobre ela, após 20 minutos cada grupo deverá apresentar como ajudaria nessa situação, caso fosse um agente comunitário. A forma de apresentação fica a critério de cada grupo.
História: Em uma rua residencial, com pouco movimento de carro, morava uma senhora muito
solitária que gostava de cultivar plantas. Nessa mesma rua havia vários garotos que gostavam
de jogar bola na rua. Algumas vezes a bola caía no jardim da senhora, ela ficava muito chateada e discutia com os garotos. Um dia essa senhora ficou muito zangada e furou a bola, um
dos garotos se aproximou dela e ela segurou firme em seu braço. A mãe desse garoto ficou
sabendo e foi lá tirar satisfações com a senhora, juntamente com outras mães: foi um bateboca geral. A partir desse episódio, sempre havia provocações tanto da senhora, quanto dos
garotos e das mães. Não havia mais sossego naquela rua. Uma das vizinhas que conhecia um
agente comunitário e não tolerava mais tanta confusão em sua rua, solicitou que o agente
ajudasse nessa questão.
5º Momento: o candidato e o Programa (40 min.)
Nesse momento, repassar aos candidatos folha com duas questões para que eles respondam
individualmente: o que eu posso oferecer ao Programa Justiça Comunitária? O que o Programa
Justiça Comunitária tem a me oferecer?
6º Momento: compartilhamento (5 min.)
Saber dos candidatos como estão e como foi a dinâmica para cada um.
110
Justiça Comunitária – Uma experiência
Anexo VII - Fluxograma de funcionamento da mediação
Divulgação
Teatro
Boca-a-boca, meios de
comunicação, cartilha,
folder e outros.
O solicitante procura o Programa por meio do agente comunitário correspondente à sua
área de moradia ou a Centro
Comunitário.
Triagem e pré-mediação
O agente comunitário marca o
atendimento com o solicitante,
ouve a história e preenche formulário de atendimento.
Pré-mediação 2 - continuidade – Sendo possível a mediação, o agente comunitário marca o atendimento com
o solicitado, ouve a história
e preenche formulário de atendimento.
Sendo apenas uma informação jurídica, com a ajuda do
Guia, o agente já encaminha o
solicitante.
Discussão de caso
O agente comunitário leva o
caso ao Centro Comunitário
para discussão em conjunto
com a equipe técnica e demais
agentes comunitários para verificar a possibilidade de realizar a mediação comunitária.
Encaminhamentos externos
para a rede social
Com a ajuda da equipe, encaminhar ao órgão responsável
– jurídico, saúde, educação e
outros.
MEDIAÇÃO
Encontros
das partes
mediadores e
observadores
Estimular a formação de uma
rede entre indivíduos que
compartilham do mesmo problema.
Justiça Comunitária – Uma experiência
Encaminhamentos internos
para informação sobre encaminhamentos externos:
• jurídico
• psicológico
• social
Etapas da mediação
(apostila)
111
Anexo VIII - Formulário de mediação
RELATÓRIO DE MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA
Nº
Nome do(a) mediador(a):
Centro Comunitário:
Triagem/Pré-mediação
1. Dados dos participantes
Data
Nome
Endereço
Telefone
2. Convidados indicados para participar da mediação
Convidados
Discussão do caso
1. Resumo das decisões em supervisão ou estudo de casos
O(a) relator(a) deverá relacionar, a cada encontro de supervisão ou estudo de caso, as decisões e identificando a estratégica a ser adotada na mediação.
Data
Decisões/Estratégias
Observações:
Mediação
1. Dados dos encontros de Mediação
Data do encontro
Nome do(a) mediador(a)
Nome do relator(a)
2. Convidados presentes no encontro de mediação
Nome
Parentesco
1.
2.
3.
4.
5.
112
Justiça Comunitária – Uma experiência
3. Encontro de mediação
3.1. Escuta dos participantes – A situação de conflito
Relatar o que é essencial.
Relato do participante 1:
Razões do problema para o participante 1:
Relato do participante 2:
Razões do problema para o participante 2:
Obs.: Pode ser que haja um número maior de pessoas envolvidas no conflito; portanto, utilize a mesma
forma acima para todos os envolvidos.
3.2. Escuta dos participantes e convidados – Problemas relacionados
Anote o que cada pessoa fala sobre o conflito, como é atingido por ele e suas raízes.
O(a) senhor(a)
diz:
O(a) senhor(a)
diz:
O(a) senhor(a)
diz:
O(a) senhor(a)
diz:
3.3 Identificar os fatores de risco e recursos locais
Durante a escuta dos participantes, o(a) relator(a) deverá identificar os fatores de risco e os recursos
locais existentes.
Fatores de risco
Recursos locais
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Justiça Comunitária – Uma experiência
113
3.4. Propostas e compromisso para a solução do problema
Propostas p/solução do problema
Executor da ação proposta
Responsável pelo acompanhamento
1.
2.
3.
4.
5.
3.5. Encaminhamentos internos e externos
O(a) relator(a) deverá relacionar, se necessário, qual o encaminhamento e o local.
Encaminhamento interno
Encaminhamento externo
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Aprovação do Centro Comunitário
Assinatura do(a) mediador(a)
Data
Assinatura do(a) relator(a)
Data
O Centro Comunitário aceita este relatório como completo.
Assinatura do(a) servidor(a) do Centro Comunitário
114
Data
Justiça Comunitária – Uma experiência
Anexo IX - Roteiro do mediador
ROTEIRO DO MEDIADOR
PASSO 1: ENTREVISTA DE TRIAGEM E PRÉ-MEDIAÇÃO
• Converse separadamente com as pessoas diretamente envolvidas no conflito para
tentar conhecer o problema. Nessa entrevista, deve ser colhida a percepção das partes
e entendida a dinâmica e a essência do conflito;
• Explique resumidamente a proposta da mediação e encoraje as pessoas a se encontrarem em uma mediação comunitária: “Fazemos parte de um programa chamado Justiça
Comunitária que presta atendimento gratuito em mediação comunitária. A mediação é
um procedimento no qual nós, mediadores, trabalhamos com as pessoas em situação
de conflito com outras pessoas e procuramos ajudá-las a resolver essa situação”.
• Discuta com as partes a possibilidade de outras pessoas participarem do atendimento.
Lembre às partes que as pessoas não serão testemunhas, e que elas servirão para
contribuir de forma positiva nos encontros de mediação. Registre o nome, telefone e
qual a relação da pessoa com a situação que será mediada;
• Registre o nome, endereço e telefone de todos os entrevistados e a data em que a
entrevista foi realizada;
PASSO 2: PREPARAÇÃO DO ENCONTRO DE MEDIAÇÃO
2.1. DISCUSSÃO DE CASO E RESUMO DAS DECISÕES
• Leve o caso para discussão com a equipe no Centro Comunitário, de acordo com a
necessidade. Ressalta-se que a discussão de caso realizada com a equipe do Centro Comunitário é a oportunidade de aprendizagem contínua para todos os mediadores do Programa, sendo um recurso que pode ser utilizado em diferentes
momentos do processo de mediação.
• O (a) relator (a) deverá relacionar as decisões e estratégias a serem adotadas na
mediação, definidas na discussão de caso.
2.2. CONVITE PARA A MEDIAÇÃO
O mediador e co-mediador devem fazer o contato com as pessoas que irão participar do encontro.
PASSO 3: SESSÕES DE MEDIAÇÃO
3.1. APRESENTAÇÃO
• Apresente-se, informando os nomes dos participantes da sessão de mediação,
mediadores, co-mediadores e observadores, apresentando-os como mediadores, independente da formação de origem dos mesmos.
• Crie um ambiente favorável à informalidade, diminuindo a rigidez na apresentação, o que possibilita maior apropriação por todos daquele espaço, facilitando o
bom andamento da mediação.
3.2. O QUE É MEDIAÇÃO E DIRETRIZES DE FUNCIONAMENTO DO ENCONTRO
• Pergunte se as partes sabem porque estão ali reunidas;
• Retome o que é a mediação, o processo de atendimento e o tempo provável de
duração do encontro;
• Ressalte a confidencialidade do processo;
• Fale sobre a conduta necessária para o bom funcionamento do encontro: não
julgar; respeitar a fala do outro, silenciando-se enquanto o outro fala; ouvir a
condução do mediador, que irá garantir que as bases de respeito sejam cumpridas, funcionando como um facilitador que incentivará todos a contribuir para a
construção da paz comunitária.
Justiça Comunitária – Uma experiência
115
Algumas sugestões para a fala do mediador:
“Agradecemos por vocês estarem aqui voluntariamente e gostaríamos de esclarecer
que não somos juízes nem advogados; logo não julgamos e nem aconselhamos os
participantes. Procuramos facilitar para que os participantes envolvidos no conflito
construam uma solução. O respeito é uma das bases do nosso trabalho; assim, para
que todos tenham a oportunidade de se manifestar, enquanto um de nós estiver
falando, todos os outros aguardarão a sua vez de falar. Primeiramente, vamos ouvir
cada um de vocês. Nosso trabalho não é decidir quem está certo ou errado, mas
possibilitar que cada um possa compreender as preocupações do outro. Nós, mediadores, manteremos sob sigilo todos os assuntos tratados nos encontros de mediação. Da mesma forma, as demais pessoas presentes deverão firmar, igualmente,
este compromisso. Não estamos aqui para pressioná-los a chegar a alguma conclusão ou alcançar algum acordo, se vocês não estiverem preparados para tal. Os
resultados deste encontro dependem de vocês. Se alcançarem algum acordo, podemos, se quiserem, redigi-lo para cada um assinar. Nossa sugestão é que vocês se
concentrem em alcançar uma perspectiva de futuro, ou seja, em formas de resolver
a situação e possibilidades de vocês interagirem futuramente. Incentivamos a todos
contribuírem para a construção da paz comunitária”.
3.3. ASSINATURA DO TERMO DE CONFIDENCIALIDADE
O mediador convida os participantes a assinarem o termo de confidencialidade.
3.4. ESCUTA DOS PARTICIPANTES – A SITUAÇÃO DE CONFLITO
• Abra espaço para que uma das partes, voluntariamente, exponha a situação que
o trouxe para mediação. Cada participante será ouvido por todos;
• Esclareça que todos devem permanecer na reunião durante os relatos;
• Trabalhe com uma escuta ativa, fazendo perguntas informativas, reflexivas e circulares, durante a fala dos participantes;
• Busque o interesse oculto de todos os participantes;
• Pergunte sobre o que cada participante pensa ser a razão do problema que está
vivenciando.
• O(a) relator(a) fará as anotações de cada manifestação dos participantes;
3.5. ESCUTA DOS PARTICIPANTES – PROBLEMAS RELACIONADOS
• Garanta que o tempo de fala seja eqüitativo entre os participantes e também
assegure que todas as pessoas presentes tenham a oportunidade de falar
livremente;
• Todas as pessoas terão a oportunidade de explicar como aquele conflito as atingiu
e o que pensam sobre eventuais problemas relacionados ao conflito principal e
suas circunstâncias;
• O(a) relator(a) fará as anotações de cada manifestação dos participantes;
3.6. IDENTIFICAR OS FATORES DE RISCO E OS RECURSOS LOCAIS
• Durante a escuta dos participantes, o (a) relator (a) deverá identificar os fatores
de risco e os recursos locais existentes:
3.7. PROPOSTAS E COMPROMISSO PARA A SOLUÇÃO DO PROBLEMA
• Encoraje as partes no encontro de mediação a fazer propostas para a solução do
problema e a buscar múltiplas opções, através de discussão aberta, livre e criativa;
• As propostas ou idéias lançadas somente vão gerar compromissos quando acordadas por todos;
• As propostas acordadas deverão ser detalhadas, com indicação das pessoas que
possam acompanhar cada uma delas.
116
Justiça Comunitária – Uma experiência
3.8. ENCAMINHAMENTOS INTERNOS E EXTERNOS
O (a) relator (a) deverá relacionar, se necessário, qual o encaminhamento e o local
mais adequado para o atendimento.
3.9. ENCERRAMENTO
Estimule que a reunião seja encerrada com um gesto que simbolize o compromisso
dos participantes e dos convidados com as propostas para a construção da paz
comunitária.
PASSO 4: SUBMETENDO O RELATÓRIO
O(a) relator(a) submeterá o relatório integralmente preenchido ao Centro Comunitário
para ser registrado.
CONDUTAS ÉTICAS DO MEDIADOR
• Tenha formação técnica e recicle-se;
• Mantenha o clima de respeito entre as partes, suspendendo a sessão ou o processo, caso isso
não seja possível;
• Defina e descreva o processo de mediação, antes de iniciar a sessão;
• Dê-se por impedido quando tiver com algum dos participantes relacionamento familiar, afetivo,
profissional ou comercial anterior;
• Dê-se por impedido de pleitear ou aceitar dos mediados comissões, doações ou vantagens,
de qualquer espécie, além dos honorários estabelecidos;
• Mantenha sigilo sobre o que passar e se declarar nas sessões, salvo prévio e expresso consentimento dos participantes;
• Somente dialogue separadamente com um participante com o consentimento do outro, lembrando-se que o que for dito nesse atendimento é sigiloso;
• Seja imparcial no processo de mediação;
• Assegure-se de que os participantes, no processo de mediação, tenham informações suficientes para decidir;
• Oriente os participantes a obterem uma revisão legal do acordo, antes de subscrevê-lo;
• Suspenda a mediação quando sua continuação puder lesar qualquer dos mediados, houver
risco para uma das partes e ou familiares ou quando uma das partes agir de má-fé;
• Finalize a mediação quando considerá-la inviável ou ainda quando não se sentir mais
capacitado.
Justiça Comunitária – Uma experiência
117
Anexo X - Termo de Confidencialidade
TERMO DE CONFIDENCIALIDADE
Data
e
(nome das partes)
aceitam participar desta mediação, objetivando a administração do conflito referente a (relatar
a situação):
e
(somente os primeiros nomes) ficam
cientes que, na hipótese de uma das partes ajuizar ação judicial com o mesmo objeto, o
processo de mediação será suspenso imediatamente.
Sendo imprescindível a via judicial ou a representação criminal, os mediadores deverão ser
comunicados pelas partes e a mediação será suspensa.
A mediação é gratuita.
O mediador é imparcial e a mediação é sigilosa. Além dos encontros com as partes, poderão
ocorrer encontros em separado com qualquer uma delas, conforme assim decida o mediador.
Tudo o que for falado nos encontros de mediação será mantido em sigilo.
O sigilo acordado neste termo não será observado caso haja a constatação pelo mediador de
crime de qualquer ordem e/ou violência contra crianças, adolescentes ou idosos. Nesta hipótese, a mediação será suspensa e o Ministério Público será comunicado.
Os mediadores e observadores não poderão testemunhar ou produzir laudos a respeito das
partes ou fatos noticiados na mediação, amparados neste termo e no sigilo profissional. Também os mediadores e observadores não poderão atuar profissionalmente para qualquer uma
das partes desta mediação.
Assinam este termo.
Partes:
Mediador:
Co-mediador:
Observadores:
Convidados:
118
Justiça Comunitária – Uma experiência
Anexo XI - Dinâmica de jornais
OFICINA DE CONSTRUÇÃO DO PROGRAMA
CIRRICULAR EM DIREITOS HUMANOS
O objetivo desta dinâmica é selecionar a temática a ser trabalhada nas oficinas de direitos humanos da Escola de Justiça e Cidadania, a partir do universo vocabular dos alunos.
A metodologia1 utilizada foi o uso de dinâmicas e dramatizações, a partir de matérias de
jornais e revistas previamente selecionadas, a respeito de temas ligados à cidadania e aos
direitos humanos (discriminação racial, violência doméstica, juizados especiais, menoridade
penal, violência contra o idoso, dentre outros).
As matérias foram espalhadas pelo chão da sala de aula, de maneira que todos tivessem
acesso às manchetes. Os agentes comunitários deveriam então se dividir em duplas ou trios,
para a escolha do tema que mais lhes chamassem a atenção. Após a leitura da matéria selecionada, as equipes dramatizariam a situação abordada na reportagem.
O resultado da primeira aplicação dessa dinâmica, ocorrida em 29.9.2006, resultou na
dramatização e posterior discussão dos seguintes temas: o trabalho da empregada doméstica
e os diversos estigmas que o acompanham; a violência doméstica; a questão dos portadores
de deficiência física; desigualdade social no Brasil e igualdade no direito de votar; exercício de
cidadania e mobilização popular para a defesa dos interesses da comunidade; trabalho infantil,
desemprego e pobreza; organização comunitária; violência contra idosos e métodos alternativos de solução de conflitos.
Ao final, os agentes comunitários refletiram sobre aspectos gerais que permearam todas
as matérias. Tendo em vista a recente edição da Lei denominada “Maria da Penha”, os agentes
decidiram pautar o tema da violência doméstica como o primeiro a ser tratado nas aulas de
direitos humanos programadas para o ano letivo de 2007 na Escola de Justiça e Cidadania.
1. Segundo a equipe de assistência social do Programa, a técnica utilizada foi a do Jornal Vivo, aperfeiçoada pelo
criador do psicodrama, Jacob Levi Moreno. A opção por este recurso teve por objetivo permitir que os alunos “se
sentissem” nas reportagens e, dessa forma, pudessem recontá-las, a partir do olhar e sensibilidade de cada um.
É um teatro que, ao contrário do tradicional, em que os expectadores não participam, os atores e expectadores
incorporam papéis e apresentam a trama ao vivo.
Justiça Comunitária – Uma experiência
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Anexo XII - Formulário de atendimento
FORMULÁRIO DE ATENDIMENTO
n.
/
1. Identificação do(a) agente
1.1. Nome:
1.2. Telefone:
2. Identificação do formulário
2.1. Data do atendimento:
/
/
2.2. Data do recebimento:
/
/
2.3. Local de atendimento:
2.4. Solicitação:
( ) Via Centro
( ) Via agente
3. Conhecendo o(a) solicitante
3.1. Nome:
3.2. Endereço:
3.3. Telefone(s):
3.4. Data de Nascimento:
3.5. Mora em? ( ) Taguatinga
/
/
( ) Ceilândia
3.6. Há quanto tempo?
3.7. Idade:
( ) 10 a 15 anos
( ) 16 a 18 anos
( ) 19 a 24 anos
( ) 25 a 34 anos
( ) 35 a 44 anos
( ) 45 a 54 anos
( ) 55 a 64 anos
( ) Mais de 65 anos
3.9. Situação atual:
( ) Empregado(a)
( ) Desempregado(a)
( ) Aposentado(a)
( ) Pensionista
( ) Autônomo(a)
( ) Estudante
( ) Não respondeu
3.10. Renda familiar:
( ) Até 1 salário mínimo
( ) 1 a 2 salários mínimos
( ) 3 a 5 salários mínimos
( ) 6 a 10 salários mínimos
( ) Mais de 10 salários mínimos
( ) Não tem renda
( ) Não respondeu
3.11. Grau de escolaridade:
( ) Não alfabetizado
( ) Primário incompleto
( ) Primário completo
( ) 1° grau incompleto
(
(
(
(
( ) 3° grau completo
( ) Pós-graduação
( ) Outros
3.8. Profissão/Ocupação:
3.12. Situação Conjugal:
( ) Solteiro(a)
( ) Casado(a)
( ) Outra situação Qual?
)
)
)
)
1°
2°
2°
3°
grau
grau
grau
grau
completo
incompleto
completo
incompleto
( ) Separado(a)
( ) União estável
3.13. Possui filhos: ( ) Sim Quantos?
3.14. Mora sozinho(a): ( ) Sim
( ) Não
( ) Não Número de pessoas que moram na casa:
3.15. Como ficou sabendo do trabalho do agente comunitário:
( ) Rádio
( ) Jornal
( ) Televisão
( ) Igreja
( ) ONG
( ) Associação
( ) Amigo(a)
( ) Outros
Qual:
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( ) Viúvo(a)
( ) Vizinho(a)
( ) Tribunal de Justiça
Justiça Comunitária – Uma experiência
4. Conhecendo a situação/problema
Alguma vez o(a) solicitante procurou ajuda para essa situação?
( ) Sim
( ) Não
Qual?
A quem procurou/recorreu?
Quando?
Qual o encaminhamento que foi dado?
Qual a situação atual?
5. Conhecendo a situação/conflito
O que aconteceu/está acontecendo? O que o(a) solicitante está querendo?
6. Encaminhamentos
Orientações da equipe interdisciplinar:
Justiça Comunitária – Uma experiência
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Anexo XIII - Lei do Voluntariado
LEI N. 9.608, DE 18 DE FEVEREIRO DE 1998
Dispõe sobre o serviço voluntário e dá outras
providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Artigo 1º - Considera-se serviço voluntário, para fins desta Lei, a atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição
privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos,
recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade.
Parágrafo único - O serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de
natureza trabalhista previdenciária ou afim.
Artigo 2º - O serviço voluntário será exercido mediante a celebração de termo de adesão
entre a entidade, pública ou privada, e o prestador do serviço voluntário, dele devendo constar
o objeto e as condições de seu exercício.
Artigo 3º - O prestador do serviço voluntário poderá ser ressarcido pelas despesas que
comprovadamente realizar no desempenho das atividades voluntárias.
Parágrafo único - As despesas a serem ressarcidas deverão estar expressamente autorizadas pela entidade a que for prestado o serviço voluntário.
Artigo 3º-A - Fica a União autorizada a conceder auxílio financeiro ao prestador de serviço
voluntário com idade de dezesseis a vinte e quatro anos integrante de família com renda
mensal per capita de até meio salário mínimo. (Incluído pela Lei n. 10.748, de 22/10/2003)
(Regulamento).
§ 1º - O auxílio financeiro a que se refere o caput terá valor de até R$ 150,00 (cento e
cinqüenta reais) e será custeado com recursos da União por um período máximo de seis meses,
sendo destinado preferencialmente: (Incluído pela Lei n. 10.748, de 22/10/2003).
I - aos jovens egressos de unidades prisionais ou que estejam cumprindo medidas sócioeducativas; e (Incluído pela Lei n. 10.748, de 22/10/2003).
II - a grupos específicos de jovens trabalhadores submetidos a maiores taxas de desemprego. (Incluído pela Lei n. 10.748, de 22/10/2003).
§ 2º - O auxílio financeiro poderá ser pago por órgão ou entidade pública ou instituição
privada sem fins lucrativos previamente cadastrados no Ministério do Trabalho e Emprego,
utilizando recursos da União, mediante convênio, ou com recursos próprios. (Redação dada
pela Lei n. 10.940, de 2004).
§ 3º - É vedada a concessão do auxílio financeiro a que se refere este artigo ao voluntário
que preste serviço a entidade pública ou instituição privada sem fins lucrativos, na qual trabalhe qualquer parente, ainda que por afinidade, até o 2º (segundo) grau. (Redação dada pela Lei
n. 10.940, de 2004).
§ 4º - Para efeitos do disposto neste artigo, considera-se família a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco, que
forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e mantendo sua economia pela contribuição de seus membros. (Incluído pela Lei n. 10.748, de 22/10/2003).
Artigo 4º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Artigo 5º - Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, 18 de fevereiro de 1998; 177º da Independência e 110º da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
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Justiça Comunitária – Uma experiência
Anexo XIV - Termo de adesão
TERMO DE ADESÃO AO SERVIÇO VOLUNTÁRIO
(Lei n. 9.608, de 18 de fevereiro de 1998)
Nome:
Identidade:
CPF:
Endereço:
Por meio do presente instrumento, o(a) voluntário(a) acima descrito(a) adere aos termos
e princípios reguladores do Programa Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios, comprometendo-se a desempenhar, gratuita e voluntariamente, as
atividades de Agente Comunitário de Justiça e Cidadania.
A presente adesão não gera vínculo empregatício ou funcional, tampouco cria quaisquer
obrigações de natureza previdenciária ou afins, nos termos do parágrafo único do artigo 1° da
Lei n. 9.608/98.
Após iniciar a devida capacitação na Escola de Justiça e Cidadania, o(a) Agente Comunitário de Justiça e Cidadania atuará na comunidade na qual está inserido(a), exercendo as
seguintes atividades: 1) informação dos cidadãos quanto aos seus direitos; 2) facilitação para
a resolução pacífica dos conflitos individuais e/ou coletivos; 3) criação/valorização de redes
associativas com base comunitária.
Muito embora a presente adesão tenha motivação de natureza educacional, social, cívica
e solidária, o Programa Justiça Comunitária efetuará, nos termos do artigo 3° da Lei n. 9.608/98,
o ressarcimento das despesas realizadas pelos(as) Agentes Comunitários(as), no desempenho
de suas atividades voluntárias, conforme critérios estabelecidos no Anexo I.
As condições de exercício das atividades voluntárias do Programa Justiça Comunitária,
estão estabelecidas no Anexo II deste instrumento. O prazo de vigência do presente Termo de
Adesão é de
até
.
Declaro que aceito atuar na condição de voluntário(a), nos termos do presente
instrumento.
Testemunhas:
Justiça Comunitária – Uma experiência
Assinatura do(a) agente comunitário
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