Barroco_linguagem tonal - História da Cultura e das Artes

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Barroco_linguagem tonal - História da Cultura e das Artes
História da Cultura e das Artes
Ano letivo: 2012/2013
BARROCO: CODIFICAÇÃO DA LINGUAGEM TONAL
Índice
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Tratados teóricos do período barroco .................................................................................... 2
1.1 Johan Joseph Fux ................................................................................................................ 2
1.2 Jean-Philippe Rameau ......................................................................................................... 4
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História da Cultura e das Artes
Ano letivo: 2012/2013
1) Tratados teóricos do período barroco
1.1 Johan Joseph Fux
Tratado Gradus ad Parnassum (Degraus para o Parnaso), 1725, Johan Joseph Fux (16601741): Fux, compositor e teórico austríaco, publica em 1725, em Viena, Gradus ad Parnassum,
o tratado de composição mais influente na música europeia desde o século XVIII. Estando o
original em latim foi traduzido para alemão, italiano, inglês e francês na sua totalidade ou em
parte entre 1742 e 1773. É uma obra apresentada em forma de diálogo (forma bastante arcaica),
em que o nome Josephus se associa ao próprio compositor, o aluno (posição humilde de quem
quer aprender), e o nome Aloysius está relacionado com o nome de Palestrina, o grande mestre.
Esta obra teve uma grande importância e exerceu uma grande influência como manual de
composição. Foi utilizado extensivamente por Haydn, Mozart e Beethoven para fins
pedagógicos, sendo citado e adaptado em muitos tratados de composição posteriores.
Desempenhou um papel importante na organização do pensamento musical ocidental.
Excerto
Josephus: Venho ter convosco, reverendo mestre, para me instruir nos preceitos e leis da
música.
Aloysius: O quê? Desejas aprender composição musical?
Josephus: Esse é, na verdade, o meu desejo.
Aloysius: [...] Mas conheces todas as coisas que dizem respeito a intervalos, classificação de
consonâncias e dissonâncias, variedade dos movimentos e as quatro regras que foram
mencionadas no livro anterior?
Josephus: Tanto quanto sei, nada disso me é desconhecido.
Aloysius: Demos então início ao nosso trabalho, tomando como ponto de partida o próprio
Deus, três vezes grande, fonte de todas as ciências.
Josephus: Antes de começarmos as nossas lições, reverendo mestre, permiti-me primeiro que
pergunte o que se entende por contraponto, uma palavra muito comum que se ouve
frequentemente nos lábios não só dos peritos mas também dos ignorantes em música.
Aloysius: Fazes bem em perguntar porque esse é, de facto, o principal objeto do nosso estudo e
trabalho. Deves saber que, nos tempos antigos, se escreviam pontos em vez das modernas notas
pelo que uma composição onde se escreviam pontos contra pontos era chamada contraponto.
Esse termo é usado agora apesar da mudança nas notas e a designação de contraponto significa
uma composição elaborada de acordo com as regras da arte. O contraponto, como género,
compreende um número de espécies que examinaremos sucessivamente. Comecemos pois com
a espécie mais simples, a saber:
Primeira lição – Da nota contra nota. [...] É a mais simples combinação de duas ou mais vozes
e de notas de igual valor totalmente constituída por consonâncias. O tipo de notas é irrelevante
desde que tenham o mesmo valor. [...]
Segunda lição – Da segunda espécie de contraponto. Antes de assumir a explicação desta
segunda espécie de contraponto, repara primeiro que estamos agora a lidar com o tempo duplo,
cuja medida ou compasso é constituído por duas partes iguais uma das quais consiste no
abaixamento da mão e outra no seu levantamento. Em grego, o abaixamento da mão é chamado
thesis, o levantamento arsis e, para nossa maior conveniência, proponho que usemos estas duas
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palavras alternadamente no presente exercício. Esta segunda espécie acontece quando contra
uma semibreve se tomam duas mínimas das quais a que cai sobre a thesis deve ser sempre
consonante enquanto a outra, na arsis, pode ser dissonante se se mover por grau conjunto entre
a nota precedente e a que se segue mas tem de ser consonante se resultar de um salto. A
dissonância, pois, é admitida nesta espécie de contraponto apenas por divisão, isto é, quando
preenche o espaço que ocorre entre duas notas separadas por um salto de terceira. [...]
Terceira lição – Da terceira espécie de contraponto. Esta terceira espécie de contraponto é a
combinação de quatro semínimas contra uma semibreve. Nota, para começar, que quando cinco
semínimas se seguem umas às outras por grau conjunto, ascendente ou descendente, a terceira
deve ser novamente consonante enquanto a quarta pode ser dissonante se a quinta for
consonante […].
Quarta lição – Da quarta espécie de contraponto. Esta espécie surge quando contra uma
semibreve se tomam duas mínimas, ambas colocadas no mesmo e único grau e unidas por uma
ligadura. A primeira ocorre na arsis, a segunda na thesis. É geralmente designada por ligadura
ou síncopa e tem duas variedades - a consonante e a dissonante. Uma ligadura consonante é
aquela cujas duas mínimas, na arsis e na thesis são ambas consonantes. [...] Uma ligadura
dissonante é aquela cuja primeira nota, na arsis é consonante (como regra invariável) mas cuja
segunda, na thesis, é dissonante. [...]
Quinta lição – Da quinta espécie de contraponto. Esta espécie é chamada contraponto florido
porque deve florescer como um jardim de pequenas flores com todo o tipo de ornamentos,
melodia agradável, movimento gracioso e fácil e uma elegante variedade de figuras. Tal como
na divisão usamos todas as outras espécies comuns da aritmética como contar, somar, subtrair e
multiplicar, assim esta espécie não é mais do que uma amálgama e uma combinação das
espécies precedentes de contraponto nem há mais nada de novo a dizer sobre o assunto a não ser
sobre a elegância da melodia sobre a qual te exorto para que tenhas o mais extremo cuidado e
esforço, sem nunca perder isso de vista. [...]
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1.2 Jean-Philippe Rameau
Traité de l´harmonie (Tratado de Harmonia), Paris, 1722, Jean-Philippe Rameau (1683-1764):
Rameau, teórico e compositor, é considerado o músico francês mais importante do século
XVIII. Foi com o pai, organista em Dijon, que Rameau iniciou os seus estudos musicais,
continuando-os em grande parte como autodidata. Frequenta com 12 anos de idade o colégio
dos Jesuítas em Godrams, cuja formação se tornou relevante no desenvolvimento do seu
pensamento teórico. Após uma curta viagem a Itália e de uma temporada como organista em
Avignon e, mais tarde, em Clemont-Ferrand, partiu para Paris, onde se torna organista em várias
igrejas menores e onde publica em 1706 o seu primeiro livro de Piéces de clavecin. Entretanto,
regressa a Dijon, onde substitui o pai como organista da catedral de Notre Dame, ocupando
depois o mesmo cargo em Lyon. Regressa em 1715 a Clemont-Ferrand, também como
organista, dedicando-se paralelamente a estudos teóricos sobre a música, refletidos no seu Traité
de l´harmonie, publicado em Paris em 1722. Até então, com quase 40 anos de idade, Rameau
era praticamente desconhecido. Foi como teórico, através da publicação deste tratado, bem
como do segundo livro de Piéces de clavecin (1724), que começou a despertar as atenções.
Mais tarde, de 1731 a 1753 torna-se organista, maestro e compositor de La Poupilière, um
período da sua vida extremamente produtivo. Inicia a sua produção operática com Hippolyte et
Aricie (Paris, 1733), que tal como as outras óperas de Rameau, cria uma agitação entre os
músicos mais conservados e fieis a Lully. Surge assim a polémica lullistes/ramistes, com, por
um lado, os defensores de Rameau e, por outro, os que o criticam violentamente, acusando-o de
subverter a tradição da ópera francesa, muito associada a Lully. Os lullistas caracterizavam a
sua música como difícil, pesada, forçada, mecânica e pouco natural, como também a
consideravam muito ornamental e com uma clara influência italiana. No entanto, as suas obras
começam a ter mais sucesso, sobretudo após a apresentação da comédie-ballet La Princesse de
Navarre (Versalhes, 1745), por ocasião do casamento do delfim com a infanta Maria Teresa,
que confirmou o seu triunfo junto da corte, levando-o a ser nomeado Compositeur de la
Chambre du Roi. Entretanto, em 1752, vê-se envolvido numa nova guerra musical: a Querelle
des Boufons.
A Querrelle des Boufons consistiu numa disputa musical e literária em Paris entre 1752 e
1754, sendo desencadeada pela representação em Paris de La Serva Padrona, um intermezzo de
Pergolesi, por uma companhia itinerante de ópera italiana. Surge uma polémica entre os méritos
da ópera francesa e italiana e, consequentemente, acerca de qual das línguas será a mais
musical. Esta disputa envolveu muitas das principais figuras filosóficas da época e resultou na
publicação de mais de 60 cartas e panfletos. Sendo assim, os adeptos da ópera francesa,
aristocratas, tradicionalistas e defensores de Rameau opuseram-se aos amantes da opera buffa
italiana, representantes da vanguarda, como Rousseau, Grimm ou Diderot. Neste contexto,
Rousseau, um dos mais severos críticos da música francesa, escreveu em 1752 um intermezzo,
Le devin du village (O adivinho da aldeia), uma obra que valoriza a naturalidade, a simplicidade
e a expressão dos sentimentos, por oposição à tradição artificial e estilizada anterior. Um aspeto
importante a referir é que Rameau, que vinte anos antes se tinha envolvido na polémica
lullistes/ramistes, onde foi criticado por ser demasiado inovador e por não escrever como Lully,
é agora considerado pela mesma fação como reacionário e como o maior representante da
tradição musical francesa. Criticado nos anos 30 pela influência italiana, os defensores da ópera
italiana criticam-no agora por não ter sido suficientemente italiano.
Rameau passou os últimos anos da sua vida a escrever textos polémicos e novos ensaios
teóricos, acabando por falecer em Paris, em 1764, vítima de tifóide. Em suma, Rameau tornou4
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se, quase no final da sua vida, uma das maiores figuras da história musical francesa: um teórico
reconhecido por toda a Europa e o principal compositor francês do século XVIII.
Ao longo de toda a sua vida, Rameau se interessou pela teoria ou, mais propriamente, pela
“ciência” da música. Entre as suas obras teóricas é de referir o seu Traité de l´harmonie,
publicado em Paris, em 1722, onde Rameau propõe a partir da razão refletir acerca da
experiência. Como explica no prefácio do tratado: “Chegaram até nós escritos dos antigos que
tornam muito claro que só a razão lhes permitiu descobrir a maior parte das propriedades da
música”, concluindo que é importante considerarmos “a razão a favor da experiência”. Ocorre
assim um apelo constante a uma reflexão racional acerca da experiência musical, de modo a
interrogar e aprofundar os princípios da música. É de referir que as suas ideias foram evoluindo
e amadurecendo ao longo da sua carreira, mas baseiam-se em alguns conceitos básicos, muito
inovadores, que já estão presentes no seu primeiro tratado. Considerando a harmonia a base de
toda a música, Rameau defende a sua origem nos princípios naturais de um corpo em vibração.
Destaca-se assim o conceito de “corpo sonoro” (corps sonore), que entrando em vibração irá dar
origem ao “som fundamental” (son fondamental), a unidade essencial da harmonia - toda a
música é construída a partir do som fundamental, sobre o qual se constrói as harmonias. A partir
da conceção do som fundamental, desenvolvem-se três conceitos essenciais na sua teoria
harmónica: a “geração harmónica” (génération harmonique), a “inversão harmónica”
(renversemente) e o “baixo fundamental” (basse fondamentale).
GERAÇÃO HARMÓNICA: O primeiro conceito está relacionado com o facto de um som
fundamental gerar uma função harmónica, ou seja, ser naturalmente divisível em determinadas
partes, das quais derivam as consonâncias primárias da música: a oitava, a quinta e a terceira
maior, cuja combinação dá origem à tríade maior. Sendo assim, estes intervalos, tal como o som
fundamental, estão naturalmente presentes quando um corpo entra em vibração. É ainda de
referir que Rameau acrescentou às consonâncias perfeitas o intervalo de 3ª menor, embora tenha
encontrado dificuldades em explicar a tríade menor com base “em princípios naturais”. Sendo
assim, o som fundamental é a base da geração harmónica e da composição musical.
INVERSÃO DOS ACORDES: A inversão dos acordes está intimamente relacionada com o
conceito da “identidade das oitavas”: sendo a oitava o mais perfeito de todos os intervalos, os
sons devem ser dispostos dentro da mesma oitava, uma vez que a sua função harmónica não se
altera. Considerando o acorde como um elemento fundamental da música, Rameau postulou a
sua construção por terceiras no interior da oitava, assim alargando a tríade até ao acorde de
sétima, e por terceiras e quintas descendentes aos acordes de nona e de décima-primeira. Não
fazendo sentido considerar todos os acordes como diferentes, o objetivo da inversão é procurar
sempre a base de um acorde, na medida em que muitas vezes apenas se organizam de uma
maneira diferente. Esta foi uma descoberta importante e, talvez, o conceito mais polémico, na
medida em que se tratava de um conceito novo e nada óbvio para as pessoas da época.
BAIXO FUNDAMENTAL: Este conceito tem uma grande importância a nível teórico, mais
do que a nível prático. Uma vez que o som fundamental quer esteja ou não presente na base de
um intervalo ou acorde é considerado como o seu tom gerador e a sua raiz harmónica, a
sucessão das harmonias constituída pelas fundamentais dos acordes constitui o baixo
fundamental. Consiste sobretudo num trabalho intelectual sobre as composições, uma vez que a
linha do baixo fundamental é uma linha teórica, uma linha imaginária composta por todos os
sons fundamentais. É ainda de referir que quando o baixo fundamental apresenta saltos de
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quartas ou de quintas é estável tonalmente, sendo que a utilização de terceiras e sextas serve
para modular. Este exercício intelectual é sobretudo utilizado para se analisar ou refletir sobre a
estrutura harmónica da obra – perceber como progride a harmonia dos graus.
Para além destes três conceitos Rameau, definiu a hierarquia dos graus e considerou
os acordes da tónica, da dominante e da subdominante como os pilares da tonalidade. Rameau
considerou a existência de uma fundamental e de uma dominante, que é uma nota cinco graus
acima da fundamental, sendo a nota hierarquicamente mais importante. No entanto, cinco graus
abaixo à fundamental existe a subdominante, pois encontra-se abaixo da dominante, isto porque
a harmonia se gera ascendentemente em relação à fundamental. Também se referiu às
cadências, que proporcionavam as bases da progressão harmónica na música. Classificou a
cadência perfeita (cadence parfaite), mas também a cadência imperfeita, a cadência evitada e a
cadência interrompida.
Baseando muitas vezes as suas obras teóricas no “critério do ouvido” e no “bom gosto”,
Rameau defendia que a finalidade da música era a expressão, assim como agradar ao ouvido e
mover as paixões. Considerou sempre a harmonia como mãe da música, da qual resulta o
carácter e a coerência da expressão musical.
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