lindonéia - Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes

Transcrição

lindonéia - Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes
LINDONÉIA
#02
1
LINDONÉIA
#02
Capa:Lygia Pape, Roda dos Prazeres, 1968
Roda dos Prazeres, de Lygia Pape, é um
círculo de tigelas com líquidos coloridos
para o público experimentar o “sabor” das
cores. Com o conta-gotas pode-se provar o
amarelo, o azul, o vermelho e os demais tons
disponíveis.
Da mesma geração artística e filiação estética
que Lygia Clark e Helio Oiticica, Lygia Pape
pertenceu, como eles, ao Grupo Frente (1953),
núcleo do Concretismo no Rio de Janeiro.
Ao longo dos anos cinqüenta, junto aos
demais artistas deste grupo, amadureceu as
divergências poéticas com os concretistas
de São Paulo, até chegarem à dissidência
Neoconcreta, formalizada em manifesto e
numa exposição, em 1959.
2
EXPEDIENTE
Revista Lindonéia #2 - AGOSTO de 2013
Grupo de Estudos Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes
Escola de Belas Artes-UFMG - Belo Horizonte/MG/Brasil
Contatos: [email protected]
Site: www.estrategiasarte.net.br
Coordenação do Grupo: Profa. Dra. Maria Angélica Melendi (Piti)
Editora deste número: Fabíola Tasca
Tradução do texto Trabajar en Arte Contemporáneo (Curatoria Forense) e Revisão
do texto Los exquisitos cuerpos de la miséria (Ivan Mejía R.): Adolfo Cifuentes
Revisão do texto O rato que ruge (José Schneedorf): Alice Costa
Projeto gráfico e diagramação: Melissa Rocha
Consultoria editorial: Hélio Alvarenga Nunes
COLABORADORES
Untitled (Go-Go dancing Plattform), p. 5 [Felix Gonzalez Torres é um artista natural
de Cuba e naturalizado norte americano, reconhecido por sua militância a favor dos direitos
do homossexuais; falecido em 1996]
Juliana Mafra e Samir Lopes [Inventário das ideias feitas, p. 9 ] são membros
do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Juliana Mafra é artista, professora
e doutoranda na EBA/UFMG. Samir Lopes é artista visual formado pela EBA/UFMG,
professor de desenho e pintura.
Jorge Menna Barreto [dexistir, p.15 ] é artista e pesquisador, doutor em Poéticas
Visuais pela ECA/USP. Práticas artísticas e discursivas se mesclam em sua trajetória, seja
enquanto artista, crítico, tradutor, educador ou professor. Atualmente é professor convidado
no curso de Arte: Curadoria, História e Crítica na PUC-SP.
Paulo Rocha [“Trabalhadores de Todo Mundo Descansem”: Pequenas
considerações sobre a superação da Arte e do trabalho, p.16 ]
é membro do Grupo
Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Graduado em filosofia pela UFMG. Integrante
do coletivo [conjunto vazio].
Nota:
Optamos por iniciar a revista com os nomes dos colaboradores, em detrimento
do uso habitual da organização via Sumário. Nada nos parece mais coerente
com a proposta desse número do que sermos guiados pela força de trabalho que
edifica a revista. Os autores Felix Gonzalez-Torres, Mierle Laderman Ukeles e
Brian Eno tem suas colaborações antecedidas pelos títulos de seus trabalhos,
diferentemente dos outros autores, cujas entradas são por seus nomes. Essa foi
a maneira de sinalizarmos que, nesses três casos, a colaboração constituiu-se
pela via da apropriação do trabalho em detrimento da negociação com o autor. A
colaboração de Jessé Souza participa ativamente deste número, embora não possa
ser encontrada aqui. O editorial disponibiliza as informações sobre o local onde
o texto pode ser encontrado. Tal manobra nos permitiu acolher o texto de Souza,
assinalando sua singularidade frente aos outros textos da revista, e convidar o
leitor ao exercício de certos deslocamentos. O número dois da Revista Lindonéia
opta por não diagramar textos teóricos separadamente de obras visuais, como o
fez nos dois números anteriores. Esta opção parece-nos pertinente com a intenção
de problematizar a canônica divisão social do trabalho. Assim, assumimos, com
Walter Benjamin [O autor como produtor], que a fronteira entre imagem e texto/
prática e teoria é aquela que urge ruir. Por isso, textos e imagens/ensaios e obras
visuais são aqui afáveis vizinhos, exercendo uma convivência horizontal e salutar.
Tales Bedeschi [Mesa de trabalho, p.21 ] é membro do Grupo Estratégias da Arte
numa Era de Catástrofes. Graduado pela UFMG com habilitação em Gravura (2006) e em
Licenciatura em Artes Visuais (2009). Professor de audiovisual do Centro Pedagógico da
UFMG. Atua frente a coletivos e redes de artistas como o PIA (Programa de Interferência
Ambiental) e Kaza Vazia – galeria de arte itinerante.
Cláudia Zanatta [A difícil arte de vender antenas, p.22 ] é artista e professora do
Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Desenvolve
atualmente pesquisas voltadas à arte participativa.
Touch Sanitation Performance, p.28 [Mierle Laderman Ukeles é uma artista norte
americana conhecida principalmente por seus trabalhos de Crítica Institucional. Em 1969
escreveu um manifesto intitulado Arte de Manutenção que discute o status artístico de
atividades laborais ordinárias como cozinhar, limpar, lavar, etc.]
Frederico Canuto [E., p.29]
é arquiteto e urbanista. Doutor em Poéticas da
Modernidade e professor da Universidade Federal de São João Del Rei. Tem como campo
de pesquisa a questão do comum na contemporaneidade a partir de diversos campos
disciplinares envolvendo o espaço, desde a arquitetura passando pela antropologia, arte,
geografia, literatura e filosofia.
Ariel Ferreira [Oferenda, p. 38 ] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era
de Catástrofes. Mestre em Artes pela EBA/UFMG e doutorando na mesma instituição.
Participou de várias exposições, entre elas: Bolsa Pampulha 2008; Rumos Itaú Cultural,
Trilhas do Desejo 2009-2009. Se Correr, Se ficar – individual na Galeria de Arte da CEMIG,
2004.
Bárbara Ahouagi [Costura, p. 40] é membro do Grupo Estratégias da Arte
numa Era de Catástrofes, bacharel em Gravura e licenciada em Artes pela Escola de
Belas Artes da UFMG, mestranda em Artes Visuais pela mesma instituição. Atua como
educadora no Curso de Figurino do NUFAC-MG, atuou como professora de Artes na
Prefeitura de Betim e sua produção atual trafega entre a performance, fotografia,
desenho e literatura.
Fábio R. R. Belo [Estética da existência e psicanálise: da liberdade
possível , p. 42] é professor adjunto de psicanálise na Universidade Federal de Minas
Gerais.
Ivan Mejía R. [Los exquisitos cuerpos de la miseria, p. 47] é
doutor em
História da Arte pela Universidad Nacional Autónoma de México. Atualmente realiza
pós-doutorado na Universidad Autónoma de Barcelona.
Jessé Souza [O que é a “dignidade humana”? Acerca da importância dos
Direitos Sociais em uma Sociedade Desigual, p. 127-158] é professor titular
de sociologia da UFJF, Diretor do CEPEDES (centro de estudos sobre a desigualdade
da UFJF) e autor de diversos livros sobre teoria social e classes sociais no Brasil
contemporâneo.
Fabíola Tasca [em obra project, p.5 3 ] é membro do Grupo Estratégias da Arte
numa Era de Catástrofes. Artista e pesquisadora. Doutora em Artes pela EBA/UFMG e
professora na Escola Guignard/UEMG.
Antonio Marcos Pereira [Sobre ser um crítico , p. 57] é doutor em Letras
pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor da Universidade Federal da Bahia
e escreve crítica literária para O Globo.
Melissa Rocha [Acertando os ponteiros, p. 66 e Trabalhando em estrelas
p. 63-65] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes, bolsista de
apotio técnico da FAPEMIG, mestre pela EBA-UFMG, artista e pesquisadora.
Jairo dos Santos Pereira [p. 71-76] é membro do Grupo Estratégias da Arte
numa Era de Catástrofes e graduado em Artes Visuais pela EBA/UFMG.
4
Curas milagrosas e a canonização de Basquiat, p. 77 [ Brian Eno é um
músico, compositor, produtor musical, cantor e artista visual britânico, um dos maiores
responsáveis pelo desenvolvimento da ambient music]
Thislandyourland [Área a construir, p. 82-84 ]
é formado pelas artistas Ines
Linke e Louise Ganz e desenvolve trabalhos em diversas mídias que relacionam arte,
natureza e cidade. Inês Linke é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de
Catástrofes. Artista plástica e cenógrafa. Graduada pela Universidade de Iowa, mestre
e doutora pela EBA/UFMG. Profa. Adjunta do DELAC/UFSJ. Membro do grupo de
pesquisa A.T.A. e coordenadora do projeto de extensão Urbanidades: intervenções.
Louise Ganz é artista visual, arquiteta, professora na Escola Guignard/UEMG e
doutoranda na EBA/UFRJ.
Curatoria Forense [Trabalhar em Arte Contemporânea, p. 85] é um grupo
multidisciplinar de trabalho dedicado à arte contemporânea na América Latina. Conduz
uma investigação de longo prazo, desenvolve atividades de maneira colaborativa junto
a gestões autônomas e assessora instituições culturais. Foi criado no ano de 2005 e
atualmente é coordenado por Jorge Sepúlveda T. (curador independente e crítico de
arte) e Ilze Petroni (investigadora de arte contemporânea). www.curatoriaforense.net
Cayo Honorato [Imagens digitais como dispositivos de mediação, p. 89]
é doutor em Educação/ Filosofia e Educação, pela FE/USP; mestre em Educação e
bacharel em Artes Visuais pela UFG.
José Schneedorf [O rato que ruge, p. 97] é membro do Grupo Estratégias da
Arte numa Era de Catástrofes. Artista plástico, pesquisador e professor da EBA/UFMG
e da Escola Guignard/UEMG. Mestre em Artes Visuais pela EBA/UFMG.
Maria Angélica Melendi [Trabalhar Cansa, p. 114 ] é coordenadora do
Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Doutora em Literatura Comparada
pela Faculdade de Letras da UFMG, professora associada do Departamento de Artes
Plásticas da EBA/UFMG e pesquisadora do CNPq. Pesquisa as relações entre memória,
política e artes visuais na América Latina, assunto sobre o qual tem publicado artigos em
livros, jornais e revistas acadêmicas nacionais e internacionais.
LINDONÉIA
#02
Felix Gonzalez Torres
Untitled (Go-Go Dancing Platform), 1991
madeira, lâmpadas, tinta acrílica e go go dancer em
traje de banho prateado, tênis, e Walkman.
5
EDITORIAL
por Fabíola Tasca
O número dois da Revista Lindonéia chega atravessado por um
tema, duas palavrinhas conectadas por uma partícula que sugere
adição, insinuando, assim, a jurisdição de territórios distintos.
Arte e Trabalho é o eixo problema desta edição, horizonte de
expectativa, plataforma de discussão. Binômio complexo e
instigante que nos convida a apreender certos desenhos da
modernidade, constitui aqui baliza incontornável (eis a aposta)
em relação às feições da contemporaneidade.
Vizinha da racionalização do trabalho, a Arte Moderna interpelou
as relações de produção capitalistas através de táticas como
negação, crítica, encenação, etc. Conceber um trabalho que
não seja entendido como condenação ou castigo (concepção
não exclusiva da tradição judaico cristã) é algo que se apóia na
existência da arte, uma vez que ela é historicamente compreendida
enquanto uma forma paradigmática de trabalho não alienado,
postulação, inclusive, de um não trabalho.
6
Como situar o fazer do artista hoje em relação a essa discussão
tão espessa que une e separa arte e trabalho? Uma discussão cujas
balizas não são mais aquelas que circunscreveram o território da
arte moderna. Quais as especificidades do panorama institucional
da arte na contemporaneidade e o modo como redescreve o
campo de manobras no qual podem se dar articulações entre
esses termos? Como artistas, obras e agentes do mundo da arte
problematizam a produção artística atual em suas conexões com
o mundo do trabalho?
Os autores aqui reunidos responderam tanto sublinhando os
vetores constitutivos do eixo problema, como prolongando
suas linhas de força e de fuga rumo ao esgarçamento e
ao desvio, certamente bem-vindos no contexto de uma
publicação que pretende investir em diagramações
contemporâneas. Diagramar esses vetores, seguir e
perseguir as direções que insinuam implica manejar a
convivência e o confronto de inúmeras possibilidades.
Frederico Canuto responde à proposição de Lindonéia
#2 apostando na multiplicidade do “e” em detrimento do
essencialismo filosófico existencialista do “é”. Uma fórmula
inclusiva, rítmica e múltipla desenha o percurso do texto
“E.”. Trata-se da celebração de uma síntese de raciocínio
que encoraja o acolhimento da pertinência do texto de
Cayo Honorato, “Imagens digitais como dispositivos de
mediação”, texto que se detém num esforço de análise
acerca de um dos equipamentos culturais belorizontinos, o
Memorial Minas Vale, abordando, nesse processo, questões
que tem implicações incontornáveis para o trabalho dos
mediadores, agentes proeminentes da cena artística e
cultural na atualidade.
Em “A difícil arte de vender antenas”, Cláudia Zanatta
problematiza a relação entre arte e trabalho a partir de
Jacques Rancière e Lilian Minsky, indagando sobre a
potência da arte em intervir no desenho do comum. A crença
nessa potência parece ser um ingrediente fundamental
do trabalho antológico de Mierle Laderman Ukeles, ao
qual aqui prestamos homenagem com a inclusão de uma
imagem de “Touch Sanitation Performance”, ação na qual
a artista incumbe-se do ritual de cumprimentar cada um
dos funcionários do departamento de saneamento da
cidade de Nova Iorque, algo em torno de 8.500 pessoas. As
fotografias de Jairo dos Santos Pereira também nos dão a
ver trabalhadores empenhados em tarefas de manutenção
diária, são funcionários da Universidade Federal de Minas
Gerais que, ali, parecem habitar o verbo intransitivo.
Inês Linke e Louise Ganz (Thislandyourland) participam
desta edição com imagens de “Área a construir”,
temporária edificação que teve lugar no evento Noite
Branca, em setembro de 2012, no Parque Municipal de
Belo Horizonte. Em “Mesa de trabalho” Tales Bedeschi nos
apresenta fragmentos de imagens de suas gravuras, nas
quais insinua-se um labor específico.
Ivan Mejían, no texto “Los exquisitos cuerpos de la miseria”,
discute o que compreende como uma energía não regulada,
não disciplinada e não mensurável: o caráter refratário dos
“corpos/sujeitos em condição de pobreza”, instâncias que
resistem à apropriação discursiva de elaborações teóricas
e artísticas que antes os idealizam e ficcionalizam na
tentativa de os compreender e representar. Em “Estética da
existência e psicanálise: da liberdade possível”, Fábio Belo
convoca o personagem Bartleby como aliado na evocação de
uma paisagem imaginária que avistamos com a sugestiva
expressão “liberdade possível”. O mini conto de Bárbara
Ahouaghi, “costura”, nos acena com a presença iminente
dessa paisagem: “soltou seu próprio fio e seguiu”.
É ainda essa a paisagem que avistamos a partir do texto de
Juliana Mafra e Samir Lopes, “Inventário das Ideias Feitas”?
Antonio Marcos Pereira, no texto “Sobre ser um crítico”,
discute a prática artística/crítica a partir de fronteiras
internas e externas, um dentro e um fora. Faz, assim, do
manejo desses limites impostos pelo discurso a potência
da questão da alimentação recíproca entre enquadramento
e experiência, questão corroborada pelo texto de Brian
Eno que nos oferece em tradução: “Curas Milagrosas e
a Canonização de Basquiat”. O texto de Eno é partícipe
da multiplicidade e da inclusão celebradas pela fórmula
“e”, recolocando a questão do trabalho artístico sob bases
essencialmente (ops!) discursivas. Nessas bases, Jorge Menna
Barreto comparece com “dexistir”, tapete, capacho, objeto-ponte
para certas experiências espaciais.
Em “Oferenda”, Ariel Ferreira conecta a noção de trabalho físico
com o aspecto espiritual, introduzindo o termo “improdutivo”
como indexador de especificidades relacionais entre arte e
trabalho. Melissa Rocha, em “Acertando os ponteiros” focaliza
trabalhos artísticos que incidem sobre a representação do
elemento “tempo”, lançando mão de mecanismos de desaceleração
como táticas de oposição à noção de tempo produtivo. Ilze Petroni
e Jorge Sepúlveda (Curatoria Forense) participam com um texto
em tom de manifesto, no qual apontam para a relevância atual
de se compreender a origem histórica, política e ideológica da
separação da esfera da arte daquela do trabalho. O texto de Petroni
e Sepúlveda dirige-se à auto-consciência dos autores enquanto
produtores, no sentido mesmo da advertência benjaminiana.
O texto de Jessé Souza, “O que é a ‘dignidade humana’? Acerca
da importância dos Direitos Sociais em uma Sociedade
Desigual”, embora não possa ser encontrado nesta revista,
dela é parte integrante. Publicado no livro Direitos sociais em
debate, organizado por Cláudia Toledo, via editora da FGV/RJ
e editora Campus, em 2012, o texto de Souza não percorre as
sendas da arte mantendo-se nos trilhos da ciência e, por isso
mesmo, pode nos oferecer elucidativos pontos de contato, na
medida em que reconstrói, minuciosamente, gêneses do mundo
moderno, residência da arte e do trabalho. O texto de Paulo
Rocha,“‘Trabalhadores de Todo Mundo Descansem’: Pequenas
considerações sobre a superação da Arte e do trabalho”, sinaliza
a proeminência do estético no “novo espírito do capitalismo” e
nos recorda a advertência de índole vanguardista: “não é possível
mudar a vida sem mudar o mundo”. José Schneedorf, “O rato que
ruge”, lança mão da produção do artista plástico contemporâneo
Banksy – seus ratos em estêncil e grafite – como mote para rever o
ideário sedimentado do artista enquanto trabalhador social.
Se o número dois de Lindonéia abre seu expediente com um
inventário de ideias feitas, vem encerrá-lo com um ensaio visual
no qual encontramos uma listagem de verbos. Trata-se de uma
anotação de trabalho que Richard Serra faz para si mesmo, em
1967-68, na qual o artista parece destilar sua atividade de ações
físicas elementares, tais como: cortar, dobrar, rolar, vincar,
torcer, etc. A explicitação destes procedimentos linguísticos
corrobora a intenção de enfatizar o momento procedimental em
detrimento de um momento intuitivo. As imagens que compõem
o ensaio visual de Maria Angélica Melendi nos endereçam para
esse momento no qual cada um dos artistas ali reunidos está
engajado num esforço singular de formalização e enfrentamento.
O número dois de Lindonéia dá ensejo ao lançamento da segunda
edição de em obra project [2012 – 2016]. Neste projeto, venho me
detendo nas tarefas de formalizar intuições, equacionar dúvidas
e visitar uma curiosa motivação. O êxito que creio alcançar no
exercício de tais atividades conecta-se delicadamente ao trabalho
de cada um dos autores aqui reunidos e aos quais venho, em
nome da Revista Lindonéia, agradecer.
Fabíola Tasca
Belo Horizonte, inverno de 2013.
LINDONÉIA
#02
INVENTÁRIO
DAS IDÉIAS
FEITAS
PREFÁCIO
Juliana Mafra e Samir Lopes
O Inventário das Ideias Feitas é uma lista de ideias que já foram
desenvolvidas em trabalhos de Arte Contemporânea, brasileiros
ou não.
Nele não há nenhuma informação sobre cada ideia e elas não se
encontram sob alguma classificação. Elas são listadas uma após
a outra, como num grande índice. Como anotou Barthes em seu
pequeno livro sobre si mesmo:
O índice de um texto não é somente um instrumento de
referência; ele próprio é um texto, um segundo texto que
constitui o relevo (resto e aspereza) do primeiro: o que há de
delirante (de interrompido) na razão das frases1.
O Inventário é assim. É apresentado o “resto” e a “aspereza” de
um texto que não está ali, naquela lista. O “primeiro texto”, o que
dá origem ao Inventário, não está escrito. Ele é cada trabalho de
arte que o inspira. Em empalhar um animal, por exemplo, estaria
contido um “primeiro texto”, o porco que Nelson Leirner enviou
ao Salão em Brasília, em 1967; em construir lugares não repressivos
para descanso, estão os Ninhos e também as Cosmococas de
1. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Estação Liberdade, 2003. p. 108.
9
www.estrategiasdaarte.net.br
Hélio Oiticica; assim como em Embrulhar, o trabalho de Christo
e Jeanne-Claude. Mas não é sempre assim. Algumas vezes, essas
ideias também foram inventadas.
Foi numa conversa sobre o Dicionário das Idéias feitas, de Flaubert,
que surgiu o desejo de fazermos como ele. Seu dicionário não
chegou a ser concretizado, pois Flaubert faleceu antes, inclusive,
de terminar o último capítulo de Bouvard e Pécuchet. Um seria a
continuação do outro. No segundo livro, os dois personagens,
depois de viverem todo tipo de experiência, terem estudado mais
de 1500 livros sobre agricultura, história, química, física, teologia,
filosofia, ginástica, hipnotismo, literatura, gramática, política,
pedagogia... e só acumulado fracassos, voltariam a ser copistas.
Nesse volume que não chegou a existir, nenhuma frase seria de
autoria de Flaubert, tudo seria copiado.
Entre os arquivos do escritor foram encontradas algumas pastas
que continham listas que Flaubert organizava para a escrita
de Bouvard e Pécuchet e também para o Dicionário das Ideias
Feitas. Nelas podemos observar um agudo senso crítico sobre a
sociedade que o rodeia. Flaubert parecia irritado com o que via
e ouvia, as vezes até mesmo mal humorado. Sua vingança seria
exaltar as convenções de sua época, levando-nos a rir de toda a
mediocridade que ele observava.
Numa dessas pastas se encontravam listados de A à Z, sob o título
O Catálogo das Opiniões Chiques, assuntos ligados às opiniões que
se deveriam ter sobre eles. Assim, para Ateu, se relacionava a
seguinte opinião: um povo ateu não saberia subsistir; e, ainda na
letra A, para Artistas encontramos: – todos farsantes. – Elogiar-lhes
o desprendimento. – Espantar-se de que se vistam como todo mundo. –
Ganham somas alucinantes, mas jogam tudo pela janela. – São sempre
convidados para cear. – A mulher artista é sempre dissoluta.
10
Em outra pasta denominada Catálogo das Ideias Convencionais,
foram encontradas as anotações: Defesa da escravidão, Escarnecer
dos Sábios e, entre outros, Comentar a respeito de um grande homem:
“Não é o que dizem!” Todos os grandes homens (não são o que dizem).
Aliás, não há grandes homens.
A terceira pasta continha os Trechos Extraídos de Autores Célebres,
nos quais Flaubert reunia as parvoíces encontradas nos grandes
mestres, que seriam copiadas por seus dois patetas. “Furiosos por
não haverem encontrado na ciência a certeza que procuravam,
vingar-se-iam sublinhando as tolices que, para o comum dos
homens, tomam o lugar da ciência em sociedade.”2
Enfim, listas, listas e mais listas... Lembro-me das de Sei
Shonagon3 : lista das “coisas desagradáveis”, lista das “coisas que
fazem o coração bater mais forte”, lista das “coisas difíceis de
dizer” ou da linda “lista das coisas elegantes”… Adoro listas!
Gostaria de lembrar também a importância dada às ideias, por
Marcel Duchamp. A Fonte, seu ready-made mais conhecido, se trata
de um urinol fabricado pela indústria, virado de cabeça para baixo,
assinado e datado por Duchamp, sob o pseudônimo R. Mutt, em
1917. Com este trabalho, o artista valorizava a ideia, em detrimento
da habilidade manual ou plástica. A Fonte e outros objetos já
feitos e que Duchamp transformou em arte, influenciaram toda
a arte feita desde essa época. Mesmo quando se valorizou mais
a expressão que a ideia, como no Expressionismo Abstrato, os
críticos se posicionavam sobre essa possível influência.
Com evidente parentesco com essas ideias de Duchamp, Sol
LeWitt, escreveu os Os Parágrafos Sobre a Arte Conceitual, em 1967 e
as Sentenças Sobre Arte Conceitual, em 1969, ambos definindo a Arte
Conceitual, que é implementada pelas ideias. Para Sol LeWitt,
“seja qual for a forma que possua no final, ele [o trabalho] deve
começar com uma ideia4” . Foi tentando, por intuição, descobrir
a ideia ou as ideias de cada trabalho de arte contemporânea
2. FLAUBERT, Gustave. Bouvard e Pécuchet. Tradução Galeão Coutinho e Augusto Meyer. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981. (Col. Grandes Romances). p. 310.
3. Filme: O Livro de Cabeceira (The Pillow Book). Peter Greenaway. 1996
4. LEWITT apud FERREIRA, Glória (org.). Escritos de artistas. Anos 60/70. Tradução Pedro
Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2006. p.177
visto, que foi se formando esta nossa lista, O Inventário das Ideias
Feitas. Para LeWitt, “as idéias não precisam ser complexas. Muitas
idéias bem-sucedidas são ridiculamente simples (...) parecem
inevitáveis.”
Por fim, gostaria ainda de dizer que este inventário não está
terminado, as ideias são infinitas, assim como os trabalhos já
realizados, esta lista sempre será incompleta.
12 de outubro de 2011
Juliana
Inventário das Ideias Feitas
Juliana Mafra e Samir Lucas
Empalhar um animal
Homenagear
Construir um altar para seu artista preferido
Queimar e registrar
Colecionar objetos que contenham a imagem de
uma importante obra de arte
Revirar e organizar arquivos públicos
Utilizar cigarros ou embalagens de
Criar uma máscara e usá-la em alguma situação
Profanar imagens sacras ou sagradas
Preparar uma receita utilizando todos
os ingredientes de uma lista de compras
encontrada num supermercado
Enterrar objetos
Fazer títulos que sejam trocadilhos
Construir um objeto baseado em outro já
existente usando um material diferente do
original
Fazer dobraduras com dinheiro
Colecionar águas sujas
Roubar
Construir uma fonte
Associar objetos
Fotografar-se em cenas eróticas
Utilizar uma ou mais cadeiras
Fabricar bebidas
Ressignificar obras antigas
Fotografar objetos ao vento
Construir um monumento a alguma pessoa de
que você goste
Colecionar objetos feitos durante conversas em
bares e restaurantes
Imprimir seu corpo na terra
Desvendar o segredo de antigos mestres
Refazer fotos conhecidas
Registrar todos os dias alguma ação que você
repita por muito tempo ao longo de sua vida
Utilizar cabelo
Partir objetos
Representar uma escultura cantante
Pendurar trabalho anônimo na parede de um
museu
Pintar a descrição de uma pintura
Utilizar fósforos
Fazer o espectador se ver através de
um espelho
Fazer escultura com pigmentos
Repetir
Fotografar idosos nus
Transformar uma máquina de
escrever
Criar um manifesto
Levar uma pintura para passear
Cortar sua própria roupa
Colecionar
Repintar obras encontradas em feiras
Apagar imagens ou palavras
Tingir a neve
Utilizar pombos
Fazer bandeiras com materiais diversos
Descobrir o volume cúbico das coisas e escrever nelas
Fotografar pessoas pobres felizes
ou tristes
Realizar viagens
Fazer um buraco portátil
Destruir dinheiro
Desenhar monstros
Fazer carimbos
Tricotar palavras
Fazer denúncias
Escrever/desenhar cartas
Utilizar incenso
Desenhar mapas
Utilizar insetos
Registrar suas ações em cartório
Dispender energia pra nada
Pedir várias pessoas para desenharem de memória
Falar de amor
Desenhar silhuetas
Embeber tecido em látex
Partir uma casa
Se acorrentar ao seu parceiro
Rasgar as roupas do vestuário
Refazer uma foto com o pó da poeira
de um museu
Fazer luminosos de néon
Catalogar
Fotografar nuvens
Pintar uma foto pixelada
Pintar o canto superior direito de
uma tela de preto
Fotografar tatuagens
Pintar uma pintura secreta
Mover uma montanha
Queimar uma obra de arte
Soletrar palavras utilizando objetos
Utilizar imagem de Jesus Cristo
Fazer frases
Copiar/ falsificar
Roubar conceitos de outras áreas
Jogar xadrez
Transformar brinquedos
Declarar / fazer declarações
Coletar
Classificar
Retorcer arame
12
LINDONÉIA
#02
Associar imagens sacras ao
nazismo
Refazer fotos com sementes
Fazer chuva artificial
Utilizar ímãs
Pintar datas
Listar diariamente todas as
pessoas que encontrar
Fazer calendários
Fazer mapas das cidades em que
esteve com marcação das ruas
por onde passou
Fazer esculturas com sangue
congelado
Recortar telas
Enlatar sua própria merda
Fazer uma fita de Moebius
Inflar balões com o ar de pessoas
diversas
Construir máquinas
Rasgar
Se fotografar travestido
Atirar garrafas de tinta
Tomar sol com objetos sobre a
pele, fazendo desenhos
Pintar com seu próprio sangue
Chicotear a parede com tinta
Criar imagens com sua urina
Construir lugares não repressivos
para descanso
Fotografar letras do alfabeto
encontradas ao acaso
Fotografar a trajetória de sua ejaculação
Fazer poema plástico
Utilizar o corpo como pincel
Construir obras moles
Pintar trabalhadores ou operários
Pintar com o ânus/vagina
Copiar o significado de uma
palavra de cerca de uma dúzia de
dicionários diferentes
Utilizar animais
Pintar uma linha interminável
Fazer nada
Desenhar com cinzas
Pintar cenas históricas de seu
país
Fazer algo para ser visto de Marte
Desenhar com fogo
Fazer espirais
Refazer fotos utilizando lixo
Fotografar o processo de uma
deterioração
Construir ilhas
Utilizar talco
Fazer peças de gelo
Fazer trouxas
Utilizar luz
Equilibrar objetos
Embrulhar
Produzir faixas
Tingir a natureza
Criar escultura com objetos do
cotidiano
Limitar o campo de visão
Refazer fotos com chocolate
Pintar frases
Pintar fotos desfocadas
Criar uma vestimenta/novos
costumes
Deixar objetos pelas ruas
Desenhar na cabeça
Enterrar
Depreciar mitos
Fotografar cães
Gastar dinheiro
13
Construir um costume cubista
Inutilizar um espaço
Transportar um espaço
Ficar em silêncio
Não ficar em silêncio
Libertar animais
Construir jardins
Se mudar para um museu
Fazer retratos com açúcar
Criar uma máscara sensorial
Pintar sombras
Convidar pessoas para dormir em sua cama e fotografá-las
Elaborar um concurso de animais enfeitados por seus donos
Abandonar uma mala num espaço expositivo e convidar os visitantes a
transportarem-na aleatoriamente
Reinaugurar lugares utilizando uma fita
Construir barcos de papel e colocá-los para navegar
Organizar o seu próprio enterro e o trajeto do féretro pelas ruas
Realizar uma performance para a sua câmera
Confeccionar carimbos
Criar panfletos em mimeógrafo
Fazer um livro
Dormir em locais públicos
Fotografar caixas d’água
Se fotografar como uma fonte
Seguir pessoas, fotografar e anotar
Espalhar aleatoriamente guardas-chuvas por uma montanha ou vale
Montar folhas verdes utilizando fragmentos de plásticos encontrados ao acaso
Colecionar contas de restaurantes nas formas anacíclicas
Escrever instruções
Camuflar seu corpo na natureza e fotografar
Fotografar a alteração de seu peso durante uma dieta
Bordar provérbios
Costurar palavras com fragmentos de brinquedos de pelúcia
Construir torres
Se fotografar com uma caveira
Encher armários de concreto
Desenhar sobre mapas
Pintar listras
Assinar objetos e pessoas
Confeccionar uma ou mais bandeiras
Desenhar ou pintar escadas
Explorar e exibir as possíveis variações de uma forma geométrica
Fotografar cadáveres
Fotografar gambiarras
14
Introduzir genes de fluorescência em células reprodutivas
LINDONÉIA
#02
Jorge Menna Barreto, dexistir, 2011.
15
“Trabalhadores de Todo
Mundo Descansem”: Pequenas
considerações sobre a
superação da Arte e do
trabalho
Paulo Rocha
16
LINDONÉIA
#02
Ne Travaillez Jamais”
Guy Debord
“meu trabalho me escapa
durmo para escapar do trabalho
mais tarde escreveremos sobre os muros
jamais trabalhem”
Gil Wolman
A história do trabalho revela seu paralelo com a tortura e a
submissão, principalmente se tomarmos a origem das palavras
“tripalium” e “labor”, um instrumento de tortura romano, um
instrumento para a submissão dos homens por outros homens.
Mesmo na narrativa mítica da Bíblia o trabalho é visto como uma
condenação, já que antes da expulsão do Paraíso, Adão vivia da
colheita generosa do que a natureza amigável fornecia, é por
causa da queda por provar da fruta do conhecimento que Adão
deve ganhar a sua vida com o suor e labor.
Devemos lembrar que mesmo no Feudalismo o trabalho não é
visto como um valor em si, sendo relegada a classe mais baixa, a
classe servil. O tempo livre do Senhor era gasto com o dispêndio
17
www.estrategiasdaarte.net.br
do que era produzido. É somente na modernidade, com a vitória
da burguesia, que um novo tempo é brutalmente instaurado (o
tempo da produção) e o trabalho passa a ser visto como um bem.
Segundo Guy Debord:
A burguesia é a primeira classe dominante para qual o
trabalho é um valor. E a burguesia que suprime todo o
privilégio, que não reconhece nenhum valor que não seja
decorrente da exploração do trabalho, identificou a este o
seu próprio valor como classe dominante, e fez do progresso
do trabalho o seu próprio1.
A promessa do trabalho adentra a contemporaneidade
por duas emblemáticas portas, perversamente complementares,
a de Auschwitz onde se pode ler no portão principal: “O
Trabalho Liberta” e as portas das fábricas, cujo modelo fordista
de trabalho alimenta a promessa da prosperidade que virá do
trabalho dedicado (e não menos alienado e alienante). É na nossa
modernidade tardia que a lógica do trabalho transborda e atinge
o cotidiano. O que antes, na Idade Média era chamado de ócio,
o tempo livre e o privilégio de uma vida folgada qual poucos
usufruíam acaba atualmente confinada no mesmo processo
alienante do trabalho. Os Situacionistas (seguindo uma indicação
de Henri Lefebvre) afirmariam que é somente partir da negação
do trabalho que se inicia a vida cotidiana, justamente o que resta
da vida quando dela se retiram todas as atividades especializadas.
Isso nos leva ao diagnóstico de que na sociedade burguesa a força
de trabalho tornou-se mercadoria, e que todo trabalho é alienado.
A esfera econômica da troca serviria como base da alienação,
sendo assim há uma ampliação da reificação para outros âmbitos
da vida, isso inclui a atividade especializada conhecida como
“Arte” 2.
18
1. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Tradução Tomás Rosa Bueno. Belo Horizonte:
Coletivo Acrático Proposta, 2003. 1ª Edição Pirata. p. 60.
2. Para melhor entendimento do que aqui chamamos de “Arte” ver o verbete “Arte como Ideologia”
do coletivo [conjunto vazio]: http://comjuntovazio.wordpress.com/2010/06/08/arteideologia.
Se seguirmos Walter Benjamin, no mundo burguês, a obra de arte
só pode ser duas coisas: ornamento e mercadoria3 . E é preciso
aqui atentar para uma afinidade essencial entre a natureza do
objeto artístico na contemporaneidade e a da mercadoria. Isso
explica não só porque a Arte é tão facilmente mercantilizável, mas
também porque cada vez mais nós temos a impressão de que é a
vida cotidiana colonizada pelo capital que se torna mais e mais
“estética”.
O que significa transformar um objeto banal em um objeto
artístico? Antes de qualquer outra coisa, é dissolver o seu uso
comum e, em última instância, dissolver o seu uso ou tornar o
uso o valor menos importante da coisa. Jamais respondemos para
que serve um objeto de arte. Ele, ao contrário, nos confronta com
um tipo de abertura que apenas de modo perverso conseguimos
restaurar dentro de um uso qualquer. E realmente é como a
perversão sexual: é preciso desviar o uso natural dos objetos
para torná-los artísticos. Só podemos dizer que uma intervenção
urbana é de algum modo “artística”, porque ela subverte o uso
cotidiano do espaço. Ao mesmo tempo, a esperança é que ela se
torne política quando o que determina o uso do espaço urbano
é o poder. Chantal Mouffe em Artistic Ativism and Agonistic Space se
pergunta corretamente se
(...) práticas artísticas podem ainda exercer um papel crítico
em uma sociedade onde a diferença entre arte e propaganda
tem se tornado turva e onde artistas e trabalhadores culturais
tem se tornado parte necessária da produção capitalista4
O problema não é apenas o fato de artistas e publicitários se
dissolverem em um mesmo papel social, mas bem mais se a
produção artística, mesmo a mais radical, não é cúmplice em seus
procedimentos daquilo que ela pretende recusar. Por exemplo,
3. BENJAMIN. Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Primeira Versão
[1935/1936]. In: Obras Escolhidas I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
2011.
4. MOUFFE, Chantal. Artistic Activism and Agonistic Space. In: Art & Research: A Journal of Ideas,
Contexts and Methods .Volume 1, 2007.
LINDONÉIA
não é certo que os efeitos de impacto e choque de uma intervenção
urbana sejam essencialmente diferentes de uma publicidade
(atualmente já se fala em “marketing de guerrilha”).
Transformar um objeto qualquer em mercadoria significa
também perverte-lo, tal dissolução desse uso comum do objeto
também relega esse valor a um status secundário. Isso quer dizer
que o objeto guarda propriedades para além da nossa apreensão
empírica (“sutilezas metafísicas”, diria Marx n’O Capital). Não
determinamos o que é o objeto na nossa relação direta com ele,
mas todas as suas propriedades são determinadas por seu valor
de troca. O uso é completamente submetido às leis de mercado,
ao imperativo de circulação de mercadorias, por isso a relação
de estranhamento tanto do trabalhador quanto do consumidor
frente às coisas que povoam e controlam o seu mundo. É preciso,
no entanto, instaurar uma mobilidade ilimitada no mundo
dos objetos para que eles se submetam pacificamente às leis
do capital. Eles podem ser usados para qualquer coisa. Há um
verdadeiro espírito estético no capitalismo mais do que um
espírito protestante5.
Um exemplo disso é a possibilidade de reintegração daquilo
que constrange a sociedade dentro da sua própria maquinaria.
Há uma apropriação do linguajar das movimentações estéticas
e libertárias pelas grandes empresas. Nessas configurações nos
parece evidente que o problema do capitalismo no futuro será a
utilização do tempo livre. O artista aparecerá então, não mais
como um pária ou crítico (como querem alguns), mas como
um organizador dos lazeres, cabendo a ele propor eventos e
situações. Qualquer um que já visitou uma loja da Apple sabe que
o vendedor, quase sempre misto de DJ e Designer, não vende o
produto mas suas potencialidades de uso e criação. Empresas
como o Google incorporam termos como “horizontalidade”,
“participação”, “criatividade”, “prazer”...
5. Para uma análise profunda e contundente desse aspecto ver: BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO,
Ève. O Novo Espírito do Capitalismo. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009.
#02
As qualidades que, nesse novo espírito [do capitalismo],
são penhores de sucesso – autonomia, espontaneidade,
mobilidade, capacidade rizomática, polivalência (em
oposição à especialização estrita da antiga divisão do
trabalho), comunicabilidade, abertura para os outros e
para as novidades, disponibilidade, criatividade, intuição
visionária, sensibilidade para as diferenças, capacidade
de dar atenção à vivência alheia, aceitação de múltiplas
experiências, atração pelo informal e busca de contatos
interpessoais – são diretamente extraídas do repertório
de maio de 68. Mas esses temas, associados nos textos do
movimento de maio a uma crítica radical do capitalismo
(especialmente à crítica à exploração) e o anúncio de seu
fim iminente, encontram-se, na literatura da nova gestão
empresarial, até certo ponto autonomizados, transformados
em objetivos que valem por si mesmos e são postos a serviço
das forças cuja destruição eles pretendiam apressar. A
crítica à divisão do trabalho, à hierarquia e à supervisão,
ou seja, ao modo como o capitalismo industrial aliena a
liberdade, está assim desvinculada da crítica à alienação
mercantil, à opressão pelas forças impessoais do mercado,
que, no entanto, quase sempre a acompanha nos textos
contestadores dos anos 706.
Tal previsão cria para aqueles que tiverem conhecimento,
mesmo que mínimo, das vanguardas artísticas do século XX
uma sensação de familiaridade e pavor já que as propostas
de emancipação e utopia foram invertidas e incorporadas à
lógica capitalista. O potencial disruptivo de tais vanguardas foi
transformado em glamour e novas tendências disponíveis para
todos os setores do consumo. Grande parte daqueles que são
atravessados por esses problemas (artistas engajados, artistas
políticos, artivistas ou outro nome qualquer que queiram dar)
respondem a questão tentando conciliar um fazer crítico com o
estético sem de fato atentar que em nossa época, as condições
para a criação de relações anticapitalistas, criativas, divertidas e
6. BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009. p. 130.
19
www.estrategiasdaarte.net.br
rizomáticas nunca foram tão propícias e estimuladas. Estaríamos
então simplesmente encarcerados no próprio ciclo de produção
que acreditávamos combater?
As vanguardas artísticas acreditavam no ideal emancipatório
e nas potencialidades do estético, assim como uma negação
do trabalho7 , talvez essas promessas tenham sido esquecidas
e provavelmente incorporadas na lógica dominante. Porém, é
necessário não perder o momento de verdade que elas enunciavam
com uma percepção muito clara que não é possível mudar a vida,
sem mudar o mundo. Toda crítica da arte e sua ultrapassagem
pretendida pelas vanguardas depende também de uma crítica do
trabalho, do capitalismo e do uso do tempo livre. As vanguardas
históricas (e também algumas vanguardas tardias) nos deixaram
um importante legado, elas levaram até as ultimas consequências
a destruição da linguagem e da comunicabilidade, assim como
os levantes revolucionários levaram às últimas consequências
a negação ao poder (e é por isso que elas radicalmente abriram
novas potencialidades).
Talvez as perguntas essenciais aqui sejam: O que fazer quando o
capitalismo é muito mais divertido e estético que a própria Arte?
O que fazer quando a Arte não carrega o potencial emancipatório
que antes teve? Onde se encontra a resistência quando tudo já
está vendido? Talvez essas questões não possam ser respondidas
sem que nos atolemos nas inúmeras contradições, mas tampouco
poderão ser evitadas por aqueles que acreditam que lidar com o
estético carrega um germe da emancipação. Então não podemos
ser ingênuos e fingir que todas essas contradições não estão à
mostra. Há um legado, há uma problematização deixada pelas
vanguardas estéticas e também políticas que foi posta de lado.
Questões essas que são as mesmas e urgentes: ultrapassar a Arte
e o capitalismo. *
20
7. Como mostra o livro: HOME, Stewart. Assalto a Cultura: Utopia, subversão e guerrilha na (anti)
arte do século XX. São Paulo: Conrad Editora, 1999.
LINDONÉIA
#02
Tales Bedeschi, Mesa de trabalho, 2012.
21
A DIFÍCIL ARTE DE
VENDER ANTENAS*
Cláudia Zanatta
O filósofo contemporâneo Jacques Rancière1 , no livro A partilha
do sensível2 , propõe uma definição para o conceito de política a
partir de uma separação baseada na posição e possibilidade de
participação dos indivíduos na sociedade. Nas palavras do autor:
… A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer
sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e
qualidades para dizer, das propriedades e dos possíveis
do tempo. A política é a constituição de uma esfera de
experiência específica em que certos objetos são colocados
como comuns e certos sujeitos vistos como capazes de
designar esses objetos e argumentar respeito a eles3.
A partir de tais afirmativas, se depreende que alguns indivíduos
estariam aptos (os que têm “competência para ver e qualidade
para dizer”) a deliberar em relação a questões que tocam a uma
coletividade; não todos os indivíduos.
22
* Texto originalmente publicado nos anais do 18º Encontro da ANPAP, Transversalidades nas
Artes Visuais, 21 a 26/09/2009, Salvador, Bahia.
1. Jacques Rancière, teórico argelino nascido em 1940, formula seu pensamento a partir do
contexto da recessão econômica e dos movimentos sociais contra o racismo aos imigrantes ilegais e
(ou) sem trabalho, ocorridos na França, nos anos 90.
2. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São
Paulo: Exo/ Editora 34, 2005, 69 p.
3. RANCIÈRE, 2005, p. 16, 17.
LINDONÉIA
As asserções propostas por Rancière têm suas origens no
pensamento platônico. No livro A República4 , Platão relaciona
a posição dos indivíduos na sociedade a atributos “naturais”
(qualidades físicas e morais), à educação e a modos de vida
específicos que possibilitariam a alguns estar mais preparados
que outros a atuar em determinadas funções públicas. Por
exemplo, segundo Platão, os filósofos, ao ter o tempo para estudar,
ensinar e pensar, estariam em melhores condições de fundar e
governar uma cidade, pois receberiam uma educação adequada
para tanto que lhes permitiria “… ver mil vezes melhor do que os
outros… pois teriam visto as verdadeiras realidades naquilo que
estas possuem de belo, justo e bom.”5
uma função social ativa (deliberativa e decisória) seria oriundo
das camadas da população vinculadas ao trabalho imaterial, ao
pensamento. Quem faria política seria, portanto, o indivíduo
que teria o tempo proporcionado pelas “mãos ociosas”, livres do
trabalho manual.
A sociedade ateniense ideal, para Platão, estaria dividida em três
classes: a dos governantes (na qual figurariam os filósofos), a dos
auxiliares e a do restante da população. Correto e adequado, na
cidade modelo do discurso platônico é cada um cumprir o papel
determinado pela função que exerce, seja ela a de governar,
defender, filosofar ou produzir bens materiais. A adequação
a esse modelo de sociedade calcada em divisões sociais bem
definidas supostamente geraria uma hierarquia harmoniosa
na cidade6 , harmonia que poderia vir a ser desestabilizada caso
alguém aspirasse a posições sociais que não lhe correspondesse,
posto que lhe faltasse preparação e instrução7 para exercer
outras atividades que não fossem as do trabalho a que estivera
“habilitado” a realizar. Em tal sociedade, ao trabalhador manual
não lhe seria dado o tempo para desenvolver as competências para
entender de assuntos que fugissem à suas atividades rotineiras,
o que redundaria em dificuldades para participar de atividades
políticas ligadas à governança, por exemplo. O sujeito político em
A partilha do sensível diz respeito à experiência comum, aos
modos de estar-junto humanos, a ‘um comum’ partilhado e
aos ‘recortes que nele definem lugares e partes respectivas’.
Nesse comum partilhado, definem-se lugares exclusivos,
segundo funções determinadas, aos quais os corpos são
assinalados e que indicam as maneiras pelas quais eles
podem tomar parte nesse comum8.
4. Platão. A República. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. São Paulo: Ática, 1989. Em
A República Platão apresenta o projeto de uma cidade e sociedade modelos que seriam governadas
por filósofos.
5. Platão, 1989, p. 46, 53.
6. Por isso (o legislador) introduz a harmonia entre os cidadãos mediante a persuasão ou a força,
levando-os a compartilhar entre si os benefícios que cada um está em condições de oferecer à
comunidade.” Platão, 1989, p. 54.
7. Não ter instrução, implica, no discurso platônico, em estar distanciado da verdade. Platão, 1989,
p. 53.
#02
É a partir dessas concepções do pensamento platônico que
Rancière nos apresenta o que vai chamar de “partilha do sensível”,
indicando que tal divisão tem como delimitadores sensíveis
comuns compartilhados por indivíduos que ocupam espaços e
tempos similares na sociedade:
A noção de partilha do sensível é relevante no contexto artístico,
pois, segundo Rancière, é justamente o “produtor de mimeses”
(leia-se o artista), quem desloca a divisão do sensível ao ter sua
prática vinculada tanto a um trabalho manual quanto intelectual.
E o mais importante: o “produtor de mimeses” propiciaria uma
partilha sensível democrática ao levar um trabalho privado a
ser exibido em uma cena pública. Isso lhe permitiria sair de
seu espaço doméstico de atuação e obter o tempo e a posição
para participar politicamente no espaço público. O produtor de
mimeses, portanto, teria os pés calcados em dois mundos: no
mundo do trabalho manual e no mundo do trabalho intelectual,
fazendo duas coisas ao mesmo tempo, o que perturbaria a ordem
da sociedade modelo platônica, na qual não se espera que tais
8. RANCIÈRE, 2005, p15.
23
www.estrategiasdaarte.net.br
atribuições sejam exercidas por um mesmo indivíduo. Deve-se a
isso, segundo Rancière, o fato de que, no livro III da República,
“o fazedor de mimeses” é expulso da cidade platônica ideal: mais
que por reproduzir imagens falsas, ele é expulso por desconcertar
a separação do sensível determinada na divisão da sociedade
proposta por Platão, em que um trabalhador manual não se
envolveria em atividades ligadas ao pensamento.
A capacidade de mesclar trabalho manual e intelectual levará o
artista a ser visto como um ser excepcional, apto a produzir obras
geniais. Ou seja, o artista teria as condições para, a partir de um
trabalho “ordinário”, produzir um trabalho com características
“extraordinárias, excepcionais”, com outra ordem do sensível
que não a que competiria ao trabalho manual ordinário e, além
de tudo, incluiria esse trabalho em uma cena pública, o que lhe
possibilitaria ocupar um lugar na coletividade, vinculado a uma
participação política ativa. Tais situações são as que colocariam
em xeque os limites que determinariam a divisão do sensível.
Na contemporaneidade a noção do artista como um ser
extraordinário é francamente contestada. No decurso da sua
historia, a arte se torna um processo cada vez mais intelectualizado,
que se afasta da manualidade e se distancia do trabalhador
comum, seja no que se refere à produção como ao desfrute da arte9.
Para constatar tal afirmativa basta ver que a arte quase sempre se
caracterizou por ser uma produção realizada predominantemente
pela classe média e alta; podemos afirmar que é produção de uma
elite (especialmente nos países considerados do Terceiro Mundo).
Compartilhar um determinado tipo de sensível oferecido pela arte
só é possível a quem pode elevar o olhar da produção do trabalho
que visa à manutenção das estruturas básicas de uma sociedade,
“roubando” um tempo que seria destinado a essas atividades,
posto que uma arte intelectualizada exige por parte de quem a
produz, tempo e informação.
24
9. A arte como a entendemos aqui se refere a produções que estão inseridas no sistema das artes
(galerias, museus, academias, mercado de arte).
Muitas propostas em arte contemporânea, com base em
preocupações que tocam a ideia da partilha do sensível,
determinada em suas bases pela divisão entre trabalho manual
e intelectual que dita lugares e tempos no social, atacam
frontalmente essa questão, buscando religar, estabelecer
conexões entre produtores de arte e público. Projetos em arte
contemporânea participativa surgem na esteira da vontade de
que o artista passe a ser considerado um produtor inserido na
escala do trabalho e de que o trabalhador comum passe muitas
vezes, da posição de um consumidor de arte, à de produtor de
arte10.
É a partir das assertivas provenientes do conceito da divisão do
sensível e do intento de trabalhar com as fronteiras existentes
entre produtores e espectadores que enfocamos a seguir uma
ação proposta pela artista brasileira Lilian Minsky. Elegemos
tratar aqui do trabalho de Minsky não por sua singularidade,
mas justamente por pensar que ele indica como funciona grande
parte das propostas artísticas que buscam a participação de quem
está distanciado do “mundo da arte”: o trabalhador “comum”. É
mediante o exemplo da proposta de Minsky que podemos verificar
situações compartilhadas com outros artistas que se dedicam ao
tema da arte pública participativa.
10. Um dos primeiros teóricos a pensar o trabalho artístico em relação a seus meios de produção
foi Walter Benjamin que, em um texto de 1934, propõe “o autor como produtor”. A partir de um
ponto de vista marxista, Benjamin propõe a posição do artista, como a de um produtor inserido em
relações determinadas pela divisão do trabalho. Na ideologia marxista, as relações produtivas são
o eixo das mudanças sociais e os meios de produção devem estar em função de uma coletividade.
Portanto, o trabalho artístico é visto como fruto de uma práxis social, diretamente vinculado a
uma cadeia de produção e consumo. Para Benjamin, o artista, como um trabalhador da escala
produtiva, teria a responsabilidade e as ferramentas para atuar na transformação dos aparelhos
culturais e ideológicos existentes. Caberia ao artista perceber e compreender o papel que ocupa
em uma ordem hierárquica, identificando sua posição dentro de uma determinada ordem social.
Para Benjamim, é a partir do momento em que reconhece qual é seu lugar e o lugar de sua obra
em um dado sistema social, que o autor como produtor pode direcionar seus intentos em busca de
transformar a sociedade, sendo responsável frente a uma coletividade pela sua atuação. A situação
ideal no processo produtivo dos criadores se daria quando produtores e espectadores passassem a
atuar em colaboração. Aqui teríamos a possibilidade da dissolução da linha divisória entre produtorespectador. Podemos perceber que muitas das iniciativas da arte participativa buscam exatamente
eliminar essas fronteiras entre produtor-espectador, inibindo a aura do artista como alguém dotado
de uma sensibilidade superior ou extraordinária. Quem frui é também quem produz, não estando
estas duas instâncias claramente definidas.
LINDONÉIA
Trocações
O trabalho de Minsky intitulado Trocações11
consta de uma ação realizada em 2006, no
centro da cidade de Porto Alegre, RS. Na ação,
a artista propõe a um vendedor ambulante de
antenas para televisão uma troca de posições:
Minsky ficará vendendo antenas em quanto o
Sr. Paulo Roberto (o vendedor) irá visitar uma
exposição em um “espaço de arte”12.
nunca havia entrado no Santander Cultural, que é onde ocorreu
parte de Trocações. “O Sr. Paulo Roberto trabalhava a menos de
cem metros do prédio visitado; nunca havia entrado ali e nem
sabia dessa possibilidade.”14 Minsky também
jamais havia trabalhado como vendedora
ambulante (isso dificilmente se esperaria de
um artista?).
#02
Trocações ilustra o que podemos entender
por divisão do sensível, pois no caso
específico aqui enfocado, artista e vendedor
ambulante ocupam lugares bem definidos
No Brasil, dados estatísticos de 2009, indicam
no contexto social brasileiro, contextos
que 93% da população jamais foi a uma
que raramente estabelecem contato e que,
exposição de arte13 e essa é a situação do Sr.
portanto, não compartilham um sensível
Paulo Roberto. Ainda que trabalhe todos os dias
comum. Em Trocações, Minsky nos diz
quase ao lado do principal museu de Arte do
que está tratando com dois universos
Rio Grande do Sul, o Sr. Paulo Roberto nunca
geograficamente muito próximos e ao
Fig. 1 Lilian Minsky vendendo antenas no centro
havia entrado no museu, seja para ver uma
mesmo tempo muito distantes. Poderíamos
da cidade de Porto Alegre, RS.
exposição ou simplesmente para conhecer o edifício. Também
dizer, socialmente, culturalmente, sensivelmente distantes.
11. A ação foi realizada como parte do projeto Perdidos no Espaço do Centro de Porto Alegre,
ocorrido em maio de 2006, em Porto Alegre, Brasil. Para mais informações, visitar o site em:
<http://www6.ufrgs.br/escultura/workshop>
12. A ação com o Sr. Paulo Roberto (vendedor de antenas) veio a partir de uma proposta junto ao
Perdidos para fazer trabalhos no centro de Porto Alegre, em maio de 2006, durante um workshop
do Santander Cultural, do qual o Perdidos participava. Na realidade, já fazia tempo que eu desejava
fazer um trabalho que tivesse o som do centro de Porto Alegre, com aquele caos sonoro. Muita
informação em muito pouco tempo: ‘Vale, vale... fábrica de calcinha, vendo ouro, compro ouro’... e
por aí vai. Sempre pensei em fazer uma ação envolvendo esses personagens tão presentes no centro
da cidade e tive então a ideia de fazer uma ‘troca de posições’. Desse modo, eu estaria fazendo
parte daquele caos sonoro e a pessoa que trocasse comigo também teria uma experiência diferente,
criando uma ruptura em suas ações cotidianas, um devir, em um ambiente bastante frequentado por
mim – uma exposição de arte. No dia marcado para a ação, uma pessoa foi escolhida no momento, o
Sr. Paulo Roberto, vendedor de antenas para TV. Falei com ele, lhe perguntando se aceitava fazer a
troca – eu ficaria vendendo antenas para ele e ele visitaria a exposição. E ocorreu a troca de ações.
Fiquei a vender antenas enquanto o Sr. Paulo Roberto foi visitar a exposição no Santander, guiado
por Fernanda Gassen, uma amiga fotógrafa. Na ação foram utilizadas duas câmeras de vídeo: uma
na rua, comigo, e outra registrou o Sr. Paulo visitando a exposição. Na edição foram mescladas
as duas situações, os dois universos tão geograficamente próximos e tão distantes”. Entrevista de
Lilian Minsky à autora, março de 2009.
13. O Ministério da Cultura fez uma análise referente ao acesso à cultura no Brasil e constatou que
90% das cidades não tem cinema, teatro ou museus. Somente 14% dos brasileiros vão ao cinema e
93% jamais foram a uma exposição de arte. Dados provenientes de:
<http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,MUL1055437-10406,00-GOVERNO+PROPOE
+MUDANCAS+NA+LEI+ROUANET.html.> Acesso em: 23 mar. 2009.
O que se detecta quando se trata de diminuir a distância existente
entre posições que determinam divisões do sensível é que muitas
propostas acabam justamente evidenciando a impossibilidade
de termos um sensível compartilhado em situações nas quais o
trabalho manual e intelectual estão separados. A ação de Minsky
parece confirmar essa impossibilidade. Como o próprio título
do trabalho indica, não há compartilhamento de posições, e sim,
troca (“trocações”).
Minsky e o Sr. Paulo Roberto somente compartilham o mesmo
espaço no momento de estabelecer a negociação para começar
a ação; ocasião em que a artista faz a proposta ao vendedor
ambulante. Depois, cada um deixa de fazer o que está habituado
e passa a exercer a função do outro por algum tempo, antes de
14. Entrevista feita pela autora a Lilian Minsky, março, 2009.
25
www.estrategiasdaarte.net.br
retomar suas atividades corriqueiras. Embora ocorra a troca de
posições, o espaço que cada um vai ocupar segue bem definido e
separado.
Ao vendedor de antenas, no caso de Trocações, não está aberta a
possibilidade de produzir arte, e sim a possibilidade de fruir arte
(com guia, diga-se de passagem). A visita do Sr. Paulo Roberto ao
centro cultural é mediada por um monitor que vai orientar a visita
à exposição. Já para Minsky, a venda de antenas não necessita de
guia algum. Ou seja, a atividade intelectual de ver revela aqui a
necessidade de apreensão de um código diferenciado (o da arte
contemporânea) que exige tempo e informação para ser acessado.
Cabe-nos perguntar: é devido a não necessitar de um código
específico para ser executada que a atividade diária do Sr. Paulo
Roberto não é considerada arte? E é por isso que ela é considerada
arte quando Minsky assume o lugar do vendedor e passa a exercer
sua atividade? O que está claro e que nem o vendedor ambulante
nem a artista colocam em dúvida em Trocações é que há um acordo
implícito de que a exposição no centro cultural se trata de arte.
Quando a ação acaba, cada um dos envolvidos retorna à sua
posição de trabalho habitual, com uma diferença: artista e
vendedor de antenas tiveram sua rotina de trabalho interrompida.
O Sr. Paulo Roberto visitou uma exposição de arte e, talvez, essa
aproximação faça com que volte ao museu em outras ocasiões.
A mudança de posições possibilita a ampliação de horizontes e
de conhecimentos para ambos os lados implicados na situação
de troca, ainda que provavelmente Minsky jamais volte a vender
antenas (na realidade, não se espera isso dela. Espera-se sim, que
o Sr. Paulo Roberto volte ao museu e visite outras exibições). A
Minsky lhe cabe continuar o trabalho de outro modo.
26
Ao terminar a visita ao centro cultural, o Sr. Paulo Roberto volta a
vender as antenas e está terminada sua participação em Trocações.
Para a artista é justo no momento em que ela deixa de vender
antenas que começa outra fase do trabalho: a edição do material
fotográfico e videográfico, o relato, a divulgação e inserção do
trabalho no sistema das artes por meio de narrativas e do registro
das imagens, de exposições. E é aqui, no nosso entendimento, que o
trabalho realmente se faz arte: nas instâncias de sua apresentação
pública. Não antes disso;
arte seria definida,
portanto,
sobretudo
por sua apresentação
em uma cena pública
(especialmente na cena
do sistema das artes).
Ponto importante a
considerar em trabalhos
de arte participativa é o
momento da produção
de registros, relatos e
sua publicização. Em
Trocações, a produção de
imagens fotográficas e
videográficas são feitas
pela artista; é também a artista quem solicita o direito de uso
das imagens do registro das ações. “Depois do sim, ele assinou
uma autorização para o uso da imagem, lhe perguntei se aceitava
fazer a troca – eu ficaria vendendo as antenas e ele iria visitar a
exposição. A instituição – Santander Cultural – já havia autorizado
a captação de imagens durante certo período.”15 (Reparemos aqui
que o Sr. Paulo Roberto não solicita o uso das imagens e não faz
registros fotográficos ou vídeográficos da ação em que participa).
No momento de tornar público proposições em arte participativa
se constata que, na quase totalidade dos casos, a voz do artista
passa a ser dominante: é o artista quem vai veicular tanto as
imagens quanto o relato do que ocorreu; é ele também quem vai
inserir o trabalho no mercado de arte ou prestar contas aos apoios
públicos ou privados que eventualmente subsidiam suas ações.
15. Lilian Minsky em entrevista feita pela autora, em março de 2009
Fig.2 Sr. Paulo
Roberto em visita
ao Santander
Cultural
LINDONÉIA
Outro ponto verificado é que raramente a iniciativa de começar
as atividades em arte pública participativa parte de quem não
ocupa a posição de artista. Depois, ao longo do processo, ocorrem
participações de todos envolvidos, mas no começo (a ideia de
fazer algo participativo) na quase totalidade dos casos, provém do
artista. Dificilmente (tomando como exemplo o caso de Trocações)
o vendedor de antenas procuraria um artista com a intenção
de trocar de posição com ele. Tal possibilidade dificilmente lhe
ocorreria. Por quê? Uma das respostas prováveis é que o vendedor
de antenas não tem o tempo necessário para pensar em tal
possibilidade ou para tentar acessar um discurso diferente ao
que está habituado (discurso esse que define um determinado
sensível). O que se percebe em grande parte dos casos, é que o
artista planeja (pode ser que seja somente inicialmente e depois
a continuidade do projeto seja realmente feita de decisões
conjuntas) e busca os recursos para que o projeto ocorra. Isso
se deve a que dispõe do tempo para tal? Ou se deve a outras
implicações?
que as posições (os lugares) de artistas e não artistas e as funções
de cada um seguem francamente estabelecidas ao menos em dois
momentos:
#02
1-No início do processo (a decisão de fazer um trabalho
participativo provém quase sempre do artista);
2-É o artista quem assume na quase totalidade dos
casos a tarefa de inserir as propostas no sistema das
artes.
No início desse texto falamos que a separação de lugares e
atribuições são pilares fundamentais sobre os quais se sustenta
a partilha do sensível e que muitas propostas em arte buscam
questionar tais separações. Mas o que se constata, na realidade,
é que, mesmo na arte participativa, ainda que os artistas tentem
continuamente apagar as fronteiras que estabelecem as divisões
do sensível, tal partição se mantém.
*
Poderíamos perguntar por que, em algumas instâncias o sensível
não é compartilhado. Uma das hipóteses é de que não há algo
em comum, não há contato. Pode-se perguntar então o que é o em
comum e quando há o em comum.
Pensamos que o em comum é um acordo mínimo que deve
existir entre as partes envolvidas nas propostas. No caso da arte
pública participativa, esse comum tem como base um código
compartilhado que vai permitir um acordo mínimo entre os
implicados que lhes possibilite trabalhar conjuntamente. Diríamos
que esse é o “comum” necessário, básico, fundamental. Sem uma
compreensão e compartilhamento de um comum é impossível a
participação nos processos. Mas tal acordo ocorre somente em
determinadas instâncias. Não verificamos, por exemplo, nas
obras participativas relatos nos quais o participante não artista
peça o direito do uso de imagem do artista ou tenha assumido
a instância da divulgação do trabalho como seu. Ou seja, o que
percebemos em grande parte dos trabalhos de arte participativa é
27
Mierle Laderman Ukeles, Touch Sanitation Performance, 1977–1980
LINDONÉIA
#02
E.
Frederico Canuto
E tudo parece-me deserto. Não, voltar a infância, isso nunca.
Sofre-se. O mundo é grande. E há tanta curiosidade e paixão, tanta
ignorância. Doloroso. Espera-se, está nas coisas, cegamente
imiscuído nelas. Que angustiosa, esta voracidade, esta fusão
analfabeta com a instável matéria do mundo! Agora sou inteligente.
Existo, existe o universo. Duas realidades distintas, inimigas,
inúteis. Sim, deite mais brandy. Sou um bêbado, claro1.
01.Proposta de Trabalho
Neste pequeno trecho do conto Brandy de Os Passos em Volta,
livro do poeta português Herberto Helder, a partícula E serve
para dar ritmo. Mesmo que não esteja ao longo de todo o texto,
desaparecendo no início, confere sonoridade. É a maneira do
poeta de lidar formalmente com a “desordem despudorada
da vida”, como dito em outro conto da obra, ou com o estágio
alcoólico descontrolado deste conto: conferido-lhe ritmo e
1. HELDER, Herberto. Os Passos em Volta. Rio de Janeiro: Azougue, 2005, p. 140.
29
www.estrategiasdaarte.net.br
constância através da linguagem. Mais ainda, aponta para uma
multiplicidade e simultaneidade de sensações, possibilidades que
se concretizam, literariamente, no texto escrito.
E é palavra inclusiva porque é sempre soma. Partícula contra o
reinado do “É”, de um essencialismo filosófico existencialista
segundo Deleuze em Mil Planaltos2 , é afirmação de uma
compossibilidade, convivência de inúmeras possibilidades, nas
palavras da crítica Silvina Rodrigues Lopes3 quando confrontada
pela poesia da multiplicidade do poeta português Herberto Helder.
E é afirmação não pela negação, mas por sua irrestritividade,
aceitando tudo.
Nesse sentido, para pensar arte e trabalho para além de um par
opositivo como normalmente elas são associadas – arte não
é trabalho – ou mesmo de igualdade – arte é trabalho – como
muitos fizeram ao longo do século XX ao discutir a arte como
instituição de saber, de produção, de sentido, de consumo,
propõe-se neste ensaio pensá-los a partir da partícula E em seus
múltiplos significados abertos a partir do que ela provoca: novas
formas de linguagem. Desta maneira, gostaria primeiramente de
trazer uma frase-fórmula literária, equivalente ao E, escrita por
Hermann Melville em seu livro Bartleby, O escrivão de Wall Street
4
e colocada em relevo de forma crítica por Deleuze em Crítica e
Clínica5 e Agamben em Bartleby Escrita da Potência 6: “I would prefer
not to”. O intuito é o de pensar contemporaneamente o par arte e
trabalho como um que pode ser problematizado como linguagem,
como o próprio E põe em discussão, para daí compreender seus
impactos formais na arte.
2. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 02. Tradução
Rafael Godinho. Lisboa: Assírio Alvim, 2007.
3. LOPES, Silvina Rodrigues. Inocência do Devir. Lisboa: Vendaval, 2002.
4. MELVILLE, Herman. Bartleby. O escrivão de Wall Street. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
5. DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: 34, 1997, p. 80-103;
143-153.
6. AGAMBEN, Giorgio. Bartleby o La Escrita da Potencia. Lisboa: Assírio Alvim, 2002.
30
02. Fórmula E
Bartleby, escrivão de um escritório de advocacia, sempre foi
trabalhador exemplar porque fazia o que se esperava dele,
tal como descrito pelo advogado de foro, narrador do livro de
Melville. Exemplar não em sua própria exemplaridade ou mesmo
singularidade, como Agamben coloca em sua primeira obra que
traz o personagem Melvilliano como questão, A Comunidade
que Vem. Exemplar porque é qualquer um, sendo exemplo a ser
seguido. Entretanto, num dia como outro qualquer7 , ao responder
à necessidade do chefe advogado que precisava de uma cópia, o
copista respondeu “I would prefer not to”. Para além de qualquer
motivo, ou mesmo das consequências que tal ato provoca ao longo
da narrativa, quero me ater na frase por si mesma – enquanto
forma escrita literária. Essa frase, ou partícula, é aberta e fechada,
coloca Delleuze em seu texto sobre a obra Bartleby ou a Fórmula.
Aberta porque “to” é verbo que pede uma complementação. Ou
seja, prefiro um a outro. Aberta a um complemento porque se
endereça a outro. Fechada porque “prefer” é intransitivo, não
precisando de complemento. Pode-se preferir não, simplesmente.
Preferir a negação.
Uma frase, uma forma, que põe em curto-circuito um modo de
fazer e produzir discurso: a afirmação sempre como apontamento
de uma possibilidade. “I would prefer not to” é potência porque
não afirma o que é, mas também ainda não se configura no que
virá. Potência em absoluto, como o filósofo italiano já colocou
em vários ensaios em que liga a questão ou Fórmula Bartleby à
filosofia aristotélica, assim como seus comentadores8 . Torna
inoperante a língua porque ela não diz nada que não seja o que
está dito. Assim, a frase de Bartleby não é manifesto político ou
social, pois não é nada além do que é, em sua inacessibilidade.
7. AGAMBEN, Giorgio. Arte, Inoperatividade, Política. In: CARDOSO, Rui Mota (org.). Crítica do
Contemporâneo. Conferencia Internacionais Serralves 2007. Porto: Fundação Serralves, 2007,
p.85.
8. AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’água, 2010,
p.107-120; PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben. Poesia, Filosofia, Crítica. Rio de Janeiro: Beco
do Azougue, 2010; MIRANDA (s/d); SEDLMAYER, S.; GUIMARAES, C.; OTTE, G. O Comum e a
Experiência da Linguagem. Belo Horizonte: EdUFMG, 2007.
LINDONÉIA
Em sua forma inacessível, coloca em relevo o discurso, em sua
maneira de produzir uma língua, produz um povo que falta, dirá
Delleuze9 .
Estendendo tal raciocínio, partindo de uma análise arquitetônica,
os próprios espaços narrativos do livro de Melville obedecem a
essa mesma intenção materializada num padrão formal. O espaço
do escritório, comum e ordinário como qualquer outro, porque lá
se fazem cópias, vai se tornando, na narrativa, espaço do habitar
de Bartleby até que ele seja levado a morar na rua, expulso. A
passividade do personagem – não porque negação, mas potência
ao não mover-se – torna-o imóvel e faz do local de trabalho sua
morada/passagem. Espaços projetados para um fim cujo uso os
refaz como espaço da vivência. Espaço como potência, pois, sua
(in)transitividade se dá na sua própria forma, definida não apenas
pela matéria, mas também conteúdo social, como colocarão
diversos pensadores desde o século XIX: Fourier, acerca das
passagens em Paris, explorado inclusive por Benjamin em Paris,
Capital do Século XIX 10; passando pelos anos 1960 com Tschumi11
em sua obra Architecture and Disjunction, Lefebvre12 entre outros,
até os anos 90 e o século XXI com Auge13 . Dirá Teyssot14 , a partir
da análise de Walter Benjamin do termo die Schwelle, o espaço é
limite mas, também limiar porque não são apenas contenedores
ou limites da vida, mas também zonas onde vidas são produzidas.
A própria parede, negação do outro lado e o dispositivo
arquitetônico mais radical porque separa - o que é contra a
natureza da arquitetura que é fazer conviver; ou o corredor
e a rua, espaços do circular e não do enraizar-se, tornam-se,
para Bartleby, as paisagens indiferentes descortinadas a sua
9. DELLEUZE, Gilles. Diálogos com Claire Parnet. Tradução José Gabriel Cunha. Lisboa: Relógio
D’água, 2004.
10. BENJAMIN, W. Paris. Capital do Século XIX. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da Literatura
e suas fontes. Volume 02. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 691-706.
11. TSCHUMI, Bernard. Architecture and Disjunction. New York: MIT Press, 1995.
12. LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Tradução Donald Nicholson. New York: Blackwell,
1992.
13. AUGE, Marc. Não Lugares. Por uma Antropologia da Supermodernidade. São Paulo: Papirus,
1996.
14. TEYSSOT, Georges. Da Teoria de Arquitectura: Doze ensaios. Tradução Rita Marnoto, Isabel
Almeida, Telma Costa, Paulo Providência. Lisboa: 70, e|d|arq, 2010. p. 235.
frente. Como novo desenho do mundo, um plano chapado de
tijolos como o de seu escritório, ou de pessoas e/ou automóveis
passando, como quando está na rua, prefere estar ali a olhar
indefinidamente. Tudo que passa se apresenta como uma nova
possível afirmação, potência não realizada. A parede de tijolos é
potencial paisagem, ainda que não o seja como tal.
#02
Nesta obra de Melville, afirmar é multiplicar para além de uma
negativa passividade.
03. Arte E Trabalho: das condições da obra a obra em si
Claire Bishop em seu texto A virada social: colaboração e seus
desgostos15 faz justamente um tipo de crítica parelha a este
raciocínio Bartlebiano. Bishop traça o potencial negativo para
a arte quando compromissada com a política, interessada
em justiça social, diminuição das desigualdades, entre outras
asserções “politicamente corretas” ou definitivas. No primeiro
parágrafo do texto, a autora enumera exemplares desta arte
comprometida com questões que estão além da arte, estando na
sociologia, política entre outros:
O canal de tevê na internet para idosos envolvidos em um
projeto de moradias em Liverpool (Tenantspin, 1999) do
Superflex; Annika Eriksson convidando pessoas a comunicar
suas idéias e habilidades na Feira de Arte Frieze (Do you
want an audience?, 2003); A Parada Social, para mais de 20
organizações sociais em SanSebastián (Social Parade, 2004)
de Jeremy Deller; Lincoln Tobier treinando moradores de
Aubervilliers, a nordeste de Paris, para produzir programas
de rádio de meia hora (Radio Ld’A, 2002); uma clínica de
aborto flutuante, A-Portable, do Ateliê Van Lieshout (2001);
o projeto de Jeanne van Heeswijk, que visa transformar
um shopping center condenado em centro cultural para
os moradores de Vlaardingen, em Roterdã (De Strip,
2001–2004); as oficinas de Lucy Orta em Joanesburgo (e em
15. BISHOP, Claire. A virada social: colaboração e seus desgostos. Concinnitas. Ano 09, vol. 01, n.
12, jul 2008. p. 145-155.
31
www.estrategiasdaarte.net.br
outros lugares) que ensinam novas habilidades de costura
e moda a desempregados e discutem solidariedade coletiva
(Nexus Architecture, 1995–); um espaço para a vizinhança
improvisado em um terreno vazio em Echo Park, Los
Angeles (Construction Site, 2005) do coletivo Tempora-ry
Services; Pawel Althamer tirando um grupo de adolescentes
“difíceis” de seus lares, no distrito operário de Bródno, em
Varsóvia, (inclusive seus próprios dois filhos) e os levando
para passear em sua exposição retrospectiva, em Maastricht
(Bad Kids, 2004);Jens Haaning, produzindo um calendário
que apresenta retratos em preto-e-branco de refugiados na
Finlândia que aguardam o resultado de seus pedidos de asilo
(The RefugeeCalendar , 2002).”16
Arte política, arte participativa, arte engajada ou arte colaborativa
são todos sinônimos quando confrontados com a questão do
trabalho na contemporaneidade. Todas objetivam equacionar
e produzir relações menos capitalistas e mais colaborativas,
auto-conscientes e/ou engajadas no mundo. Relações
mediadas cada vez menos pelo capital ou pelo consumo e
sim por outros paradigmas, mais politicamente vinculados a
uma vida comunitária e fraterna. E tal tendência se faz muito
contemporânea a movimentos políticos, econômicos e sociais
interessados em formas de trabalho menos desiguais, em direção
ao que aponta as nove teses para formas alternativas de produção,
texto-manifesto de Boaventura de Souza Santos presente na
coleção por ele organizada: Reinventar a emancipação Social, no
livro Produzir para Viver. Os caminhos da produção Não-Capitalista 17.
Estes exemplares, citados por Bishop, atestam a virada para uma
32
16.BISHOP, 2008. p. 146.
17. São nove as teses de Santos: da necessidade de serem pensadas novas formas alternativas
de produção econômicas, políticas, culturais e sociais interdisciplinarmente; a necessidade de tais
formas estarem inseridas em redes de colaboração e apoio mútuo; as lutas e soluções devem ser
criadas tanto dentro como fora do Estado; alternativas devem ser multi-escalares; devem vincular
participação e democracia econômica; devem produzir formas alternativas de conhecimento; ser
inclusivas e sinérgica com outras esferas da sociedade e da economia. SANTOS, Boaventura de
Souza. Produzir para Viver. Os caminhos da produção Não-Capitalista. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 64-74.
arte na qual o processo mais igualitário, por princípio, torna-se
o principal produto em detrimento da imagem produzida. Ou
seja, uma arte de resistência ou de alternativa ao paradigma
do biopoder contemporâneo, construída através de processos
mais igualitários atribui valor ao objeto artístico. Uma exogenia
artística, pois, todo valor vem de fora de si – da obra ao processo.
Entretanto, ainda que tais objetivos políticos tenham relevância,
é preciso pensar que tal nobreza dos fins não garante a qualidade
poética da arte em si. A arte tem impactos políticos, mas, ela não
pode se pautar pelo fazer política, cabendo a ela apenas lançar
luz sobre. A arte não é “fazer justiça”, mas, lançar novas questões
sobre a justiça. A arte não é trabalho, embora trabalhar faça parte
do “fazer arte”. A arte é sempre possibilidade, não podendo ser
decisória.
O que é assinalado de forma contundente pela crítica inglesa é a
responsabilidade da arte em abrir possíveis e não afirmar-se como
alternativa a um status quo, pois, assim, pode acabar se tornando
um novo. Serve a fórmula bartlebiana para compreender e
articular com Bishop pois ambos afirmam irrestritamente os
possíveis, da potência enquanto o que é, como tal, função da arte.
Não é tarefa da arte propor uma alternativa, mas construir um
olhar que permite pensar alternativas.
Assim, arte e trabalho na contemporaneidade estão além de uma
associação dada por pares, mas em sua consideração compossível,
em sua afirmação múltipla de compreensão de ambos, inclusive
como circunscritos fenômenos de linguagem – fenômenos pois
são processos inscritos no espaço geo(-)gráfico e temporal –
históricos.
Para tal imbróglio, esmiuçado e criticado por Bishop, o artista
belga Francis Allÿs, em seu vídeo feito em Lima, Peru, em
2002, denominado Quando a Fé Move Montanhas (When Faith
Moves Mountains) traz importantes contribuições e maneiras de
pensarmos acerca do trabalho e da arte e suas formas.
LINDONÉIA
04.O trabalho como falso leit-motiv
crítico
Neste trabalho de Allÿs, o que
assistimos é o artista contratar
centenas de trabalhadores peruanos
para, num dia e hora marcados,
munidos de uma pá, escavarem a areia
de uma montanha e deslocarem-na de
um lugar para outro. Allÿs coloca em
Figura 01: Francis Allys. When Faith Moves Mountains, questão as consequências do ato no
2002 (In collaboration with Cauhtemoc Medina and Rafael tempo histórico daquele lugar e uma
Ortega).
(in)visibilidade, ou nos termos aqui
usados, sua condição ou Fórmula E.
Figura 02: Francis Allys. The Making of Lima, When
Faith Moves Mountains, 2002. (In collaboration with
Cauhtemoc Medina and Rafael Ortega).
Nesta obra, impossível de ser realizada
solitariamente, Allÿs conclama e
uniformiza - com uma camiseta
branca - uma legião de moradores do
local para “fazer acontecer” a sua obra.
Numa primeira tentativa de asserção
crítica sobre a obra, apoiada nos dois
termos isoladamente (arte e trabalho),
aparece já a polaridade instaurada,
inclusive suas contradições com
outras estratégias performativas da
arte realizadas ao longo do século XX:
01.Arte é um trabalho. Logo, sendo um
trabalho, deve ser pensada e realizada
como tal: contrata-se e paga-se o
trabalhador, que não deve, por sua
vez, participar da obra, pois ali está
somente prestando um serviço.
Figura 03: Francis Allys. When Faith Moves
Mountains, 2002. (In collaboration with
Cauhtemoc Medina and Rafael Ortega).
O problema deste raciocínio,
ironicamente, é que os trabalhadores
não deveriam estar uniformizados de branco ou sequer ser objeto
de qualquer preocupação estética, visto que não fazem parte
da obra. O uniforme não deveria ser uma questão estética pois
não faz parte da obra. Usar ou não o uniforme é indiferente às
pretensões do artista.
#02
Ironia dupla porque o potencial imagético do trabalho está
justamente na imagem de um número grande de trabalhadores
uniformizados ao longo da encosta de uma montanha, perfazendo
uma linha que faz poeira, produzindo uma nova linha, portanto.
02. Arte não é trabalho. Logo, é condenável um artista
produzir uma obra e pagar outros para fazê-la.
Lógica pouco interessante, visto que tal expediente é
perpetrado por muitos artistas, cuja relação com a arte
é dada pela ideia e não pela produção e materialização
da mesma, a ser feita por terceiros, como no caso de
muitos artistas cujos ateliês contam com trabalhadores
contratados – de Damien Hirst a Jeff Koons.
Assim, aqui está um pensamento sobre a arte como linha de
trabalho na Modernidade que contribui numa (re)produção
contínua de determinados hábitos de exploração e dominação
do trabalho assalariado e, muitas vezes escravo, dentro de um
sistema maior capitalista. Em ambas possibilidades de discussão,
a arte está, e num âmbito mais geral, a obra em si, condicionada a
uma análise exterior a si mesma.
A “responsabilidade social” ou “politicamente correta” acaba
tornando a arte refém das próprias questões sobre as quais ela
pode lançar luz e novas possibilidades de pensamento. Sua
inacessibilidade ou passividade potencial, possibilitadora de
pensamento, torna-se indiferentemente passiva.
Ao vestir os trabalhadores de branco e alinhá-los ao longo da
montanha, uma linha se move vagarosamente e é isso que está
em questão. Esta é a imagem dada. É deste contexto que qualquer
33
www.estrategiasdaarte.net.br
análise deve partir. Ainda que o vídeo documente um processo,
como será colocado adiante, a radicalidade da obra está em seus
futuros possíveis.
Nesta obra, o artista aposta na produção de um espaço a partir
de um redesenho do existente: a montanha. Remodelando-a,
tanto prática como politicamente, com seus trabalhadores, pela
linha movente, fazendo-a não encaixar-se em discursos locais
ou globais, Allÿs produz outros sentidos sobre os diferentes
discursos pelo espaço. Ao deslocar montes de terra de um ponto
a outro na montanha, potencialmente são alteradas coordenadas
geográficas, histórias das pessoas com o lugar, eixos visuais até
então imóveis. Reconstrói-se uma paisagem, redesenha-se a
natureza, altera-se uma geografia dada como natural através de
um fazer, em dois registros indissociáveis: pictórico e tectônico18
. A linha de uniformizados é esse movimento.
No caso pictórico, ao mudar a montanha de lugar por alguns
metros, o que Allÿs intercepta e distorce são as “medidas” e
“referências” convencionais através de uma anulação da precisão
e objetividade pragmática dos dispositivos cartográficos
34
18.. A arquitetura, desde a Grécia até o século XVIII, sempre foi atrelada a um discurso simbólico.
Fazendo referência a discursos religiosos ou mesmo de uma aristocracia que foi perdendo poder, a
arquitetura sempre teve uma dimensão para além dela mesma, vinculada a indissociáveis crenças,
valores e rituais sócio-espaciais, como pode ser lido a partir das considerações de Christian
Noberg-Schulz em seu livro História da Arquitetura Ocidental. No entanto, a partir do século
XVIII a arquitetura redimensiona seu estatuto tendo em vista a morte de Deus e qualquer outra
exterioridade referencial pela racionalidade iluminista. A partir do conhecimento produzido e
centrado em si mesmo através de aparelhos óticos e modos de medição que permitiam produzir e
pensar projetos antes da própria construção, como coloca Alberto Perez-Gomes em Architecture and
the Crisis of Modern Science, a arquitetura se vê alçada a uma nova dupla condição: vista a distância
como elemento senão escultórico, faz parte de uma paisagem enquadrada, pelo olhar principalmente
– pictórica – e, em termos construtivos e estruturais, faz parte de uma paisagem funcional. Assim,
sua pictoricidade é afirmada pela visualidade que ela é capaz de produzir, aproximando-a de um
valor escultórico e até mesmo fotográfico; e sua tectonicidade – palavra etimologicamente ligada
a construção – ligada ao modo como é produzida. Na arquitetura moderna, produzida em finais
do século XIX até meados do século XX por Mies Van Der rohe, Walter Gropius e Le Corbusier,
para citar os maiores expoentes, tal pictoricidade ficou atrelada a uma relação imagética, e a
tectonicidade, ainda mais atrelada a questões estruturais ligadas ao funcionamento da edificação.
No entanto, na contemporaneidade, vários autores redimensionam o estatuto tectônico do edifício
não apenas a partir de seu funcionamento – considerado aqui como dimensão projetada e não vivida
– mas também pelo uso de usuários, como Bernard Tschumi (Architecture of Disjunction), Aldo
Rossi (L’architettura della città) e grupos de artistas como Situacionistas. Assim, a pictoricidade se
revela potencial para pensar a dimensão imagética da arquitetura, dado os sentidos que ela pode
produzir; assim como sua tectonicidade se vê hoje vinculada a noções corporais como apropriação,
uso, intervenções, o que reflete diretamente na questão histórica. A arquitetura deixa de ser vista
como exemplar histórico escultórico para ser pensado em termos de uso ao longo do tempo histórico.
domésticos, porque já íntimos, como Googlearth©, por
exemplo. O mapa ou imagem cartográfica que aparece na tela
do computador mostra a montanha no mesmo lugar, embora
ela não esteja mais lá. Alguns metros de deslocamento na tela do
computador não aparecem. Alguns metros de terra deslocados
dentro de um monte de terra, que é a montanha, é mover um grão
de areia dentro de um saco de areia: invisível.
Com a intervenção na paisagem feita pelo belga, o que
aparece na tela é um traço de um apagamento. Ou seja, um
resto de movimento, algo como um espasmo – um mover-se
permanecendo no mesmo lugar: uma marca invisível. Ou seja, é
um território novo porque a imagem produzida pela intervenção
anula a dimensão global e a racionalidade a ela vinculada. O que se
apresenta globalmente não condiz com o que há no local. Assim,
a representação racional não condiz com a apresentação poética.
Uma nova pictoricidade é alcançada pela mudança do traço de
areia de registro documental para expressividade. A montanha
vista pelo dispositivo Googlearth© é marca visível de um vazio,
tornando-se poética.
Do ponto de vista tectônico, o artista instala na realidade social
e física da cidade um desvio. Um desvio de alguns metros que,
através de novas rotinas e histórias surgidas com este trabalho,
será absorvido pela cultura local. Uma ínfima mudança
geográfica que destrói uma relação histórica nostálgica com o
lugar já existente. A montanha deixa de ser o lugar imóvel que
está presente a gerações a fio para se tornar objeto fabricado por
um agente externo, in progress. Como o próprio artista comenta:
When Faith Moves Mountains tenta traduzir tensões sociais
em narrativas que operam e intervém na paisagem
imaginativa de um lugar. A ação tem como objetivo infiltrar
na história local e na mitologia da sociedade peruana
(incluindo aí suas histórias da arte), inserir um outro rumor
em suas narrativas. (...) Naquele momento, a intervenção
tem como potencial se tornar um mito urbano ou fábula19.
Assim, aquilo que não aparece representado pelo olhar racional
progressista que cobre tudo, nem para os moradores que ali vivem,
configura-se nesta singularidade. Uma arquitetura constituída
de areia deslocada de sua origem é o que fica. Um novo território
inscrito na cultura local é nova história e geografia. Uma nova
implicação será requerida, tanto num nível pictórico quanto
tectônico, dos moradores, através de suas novas histórias, assim
como dos leitores cibernéticos. A linha branca de camisados não é
nada senão expressão imagética ou rastro humano, não visto por
satélite, da formação de um novo território.
05. Redesenho do Trabalho
Durante a 30a Bienal de Arte de São Paulo, o artista mexicano
Hector Zamora realizou a performance “Inconstância Imaterial”
na galeria Luciana Brito, em setembro de 2012. Uma coreografia
do trabalho manual transladada em sonoridade.
De alguma forma, nessa mesma Bienal, já haviam sido expostas
obras que problematizavam o trabalho a partir do potencial poético
do mesmo, desde primórdios do século XX mais precisamente. A
obra do artista Tehching Hsieh presente no evento, é exemplar.
Feita nos anos 70, trata-se de uma performance de duração de um
ano, onde a proposta foi fotografar a si mesmo de hora em hora
numa mesma posição e com uma mesma roupa num mesmo
lugar. Numa sala do pavilhão de exposições da Bienal temos a
máquina onde o artista “batia seu ponto” a fim de dar veracidade
às fotografias, os uniformes e outros materiais usados, além
de todas as muitas fotografias horárias/diárias do ano em que
ocorreu tal périplo. Uma maneira de pensar o trabalho pela arte
19. When Faith Moves Mountains attempts to translate social tensions into narratives that in turn
intervene in the imaginal landscape of a place. The action is meant to infiltrate the local history
and mythology of Peruvian society (including its art histories), to insert another rumor into its
narratives. (...) At that moment, it has the potential to become a fable or urban myth”. DOHERTY,
Claire (Ed.). Situation. Documents of Contemporary Art. London: MIT Press, 2009, p. 39-40.
através da exaustão física, de
uma repetição infindável de
fotos que eram as mesmas,
porém diferentes, porque
o próprio artista às vezes
estava sonolento, outras com
cabelos desgrenhados, outras
com o corpo visivelmente
torto. Usando no campo da
arte de práticas que aludem
a um trabalho assalariado
repetitivo,
como
uma
obrigação diária, um trabalho
a
ser
obsessivamente
cumprido, possivelmente no
espaço frio de uma fábrica,
Hisieh construiu sua obra.
Na sala da exposição, temos
um documentário da vida
de um artista que dedicou
um ano de sua vida a este
trabalho. E aqui, o que
Hsieh faz é expor um modo
de trabalhar onde aquele
que se vê frente à obra fica
impactado não com a obra,
mas com o discurso político
e mesmo com o esforço
empreendido pelo artista.
Há um escamoteamento:
a poética surgida n(d)este
excesso é o excesso factual e
não a obra produzida.
Nada estranho se pensarmos
como as relações entre arte e
Figuras 04 e 05: Tehching Hsieh.
One Year Performance, 1980-81.
Figura 06: Tehching
Hsieh. One Year
Performance, 1980-81.
foi expor o modo como o
canteiro de obras da construção
civil é lugar da produção de
mais-valia e exploração de mão
de obra; e finalmente nos anos
1960, quando o Brasil viveu
o auge econômico e pujança
na construção civil: o Milagre
Brasileiro), seu potencial reside
na consideração do desenho
técnico projetivo criador feito
pelo arquiteto como elemento
que reflete e supera a realidade
do construir, seja num canteiro
de obras de uma casa ou de um
grande empreendimento. Ou
seja, o meio – desenho técnico
de arquitetura – suplanta de
tal forma a realidade, que a
escamoteia.
vida nos anos 60 e 70 se tornaram mote para a primeira
objetivar transformar a segunda, fazendo da imagem
ou objeto de arte resultado supérfluo tendo em vista o
processo empreendido pelo artista.
Entretanto, Zamora traz novas considerações em relação
à questão trabalho e arte na medida em que o trabalho é
feito no lugar onde a própria obra ganha valor: a galeria
de arte. Enquanto com Tehching Hsieh temos uma
documentação extensiva da performance transformada
em obra por meio de fotografias e materiais usados ao
longo da atividade; com Zamora a documentação, o
processo e a obra são todos produtos que transformam
a galeria em espaço não apenas expositivo, mas também
produtivo.
Sérgio Ferro, arquiteto e autor nos anos 60 do texto
emblemático O Canteiro e o Desenho20 faz a seguinte
afirmação: “Desenho é bomba que separa”. No contexto
em que foi proferida (primeiramente dentro de um
núcleo da FAU/USP destinada à leitura das obras de Marx
a fim de apreender as relações econômicas e a produção
da arquitetura; depois, escrita num texto cujo objetivo
36
20. FERRO, Sérgio. O Canteiro e o Desenho (1976). In: __________. Arquitetura e
Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
Figura 07 a 09: Hector Zamora. Inconstância Imaterial, 2012.
Dessa maneira, a crítica
radical de Ferro se apoiava na
afirmação de que o desenho
se tornara meio de exploração
dos trabalhadores. O processo
de produção de edifícios era
abusivo, exploratório e desigual
porque o desenho escondia
relações sociais e de trabalho
inerentes à realidade do
canteiro de obras. E para Ferro
era problemático o arquiteto não
levar em conta justamente essa
faceta do seu meio expressivo:
não como representação, mas
reprodução de uma realidade
LINDONÉIA
em termos organizacionais de produção, distribuição e consumo
de um espaço a ser construído.
Nesse sentido, a obra de Zamora coloca em questão tais
condições do desenho ao transformar o processo de produção
em obra de arte. Entretanto, não a glamuriza, nem muito menos
a torna “politicamente correta”. Muito menos a transforma
em documentário, ainda que haja um vídeo que registre tal
processo. O que faz é expor a obra como produção redesenhando
ou reorganizando, por sua vez, as condições próprias em que a
realidade da construção se estrutura.
O processo de construção civil que ocorre nas grandes cidades é
feito por pedreiros e o objeto usual da construção, que é o tijolo, é
passado de mãos em mãos para ser assentado a fim de construir
uma parede. Ao expor tal processo e retirar dele o fim – construir
algo – Zamora coloca o processo em loop infinito porque nunca
termina. Sem término, sem utilidade, sem objetividade, numa
inconstância porque ora os tijolos passam rapidamente, ora mais
lentamente, ora caem no chão, despedaçando-se e ao som dos
gritos dos trabalhadores, algo nunca se realiza senão o realizar
mesmo.
Os gritos dos trabalhadores, passando tijolos uns aos outros,
recortado pelo som de tijolos caindo no chão transforma o
processo numa produção performática sonora, sendo o som
rastro momentâneo do desenho do canteiro.
entendido, por sua vez, como ação quase performance: uma
nova localização da montanha ou restos de tijolos quebrados ou
pilhas dos mesmos numa galeria foram ambos gerados por um
sistema de trabalho cujo objetivo foi o de organizar energia em
recursos a fim de realizar uma obra. Entretanto, ao otimizar tal
energia para realizar as obras, foram redesenhados ambos os
contextos e estes adquiriram novos sentidos e imagens. Esta
ação desestabilizadora consiste em tornar não-trabalho o que
é comumente associado ao regime de trabalho: não um não
trabalho, mas não-trabalho, uma fórmula E. O que ocorre nas
duas obras é uma aproximação funcional que torna inoperante
afetivamente o contexto “trabalho” pela arte. Arte E trabalho =
não-trabalho.
#02
Nessa fórmula, não há oposição, ironia, encenação ou qualquer
outro tipo de consideração da arte como campo que diagnostica
e expõe situações através da paródia ou de outros movimentos
de positivação ou negação. Não há interpretação ou discussão,
como se a arte fosse em si mesma um discurso sobre o mundo.
O que há, e esta é a especificidade através da qual a arte pode se
encaminhar a fim de deixar para trás resquícios polarizadores
modernos ou transformações da vida em arte como se assiste
hoje, com a segunda transformando-se em ativismo urbano, é
uma re-apresentação do mundo como imagem potencial. *
Ao terminar, os restos de tijolos jogados durante um tempo prédeterminado pelo artista são justamente o E. Não é resto, nem
parede, é rastro de uma [in]transitividade ou da perpetualização
de uma potência que ali está vibrando.
06. Não-trabalho
Nas duas obras – When Faith Moves Mountains e Inconstância
Imaterial – o rastro que permanece é o resto de um trabalho, este
37
www.estrategiasdaarte.net.br
38
Ariel Ferreira, Oferenda
LINDONÉIA
#02
* Ariel Ferreira
A performance ocorreu em uma praia. Durante a maré baixa do dia 10 de fevereiro de 2013
carreguei vários sacos contendo sal até a beira do mar e despejei todo o conteúdo em um
monte. Após a ação o monte se desfez aos poucos até desaparecer, absorvido pelas ondas
que vinham lamber aquele torrão salgado.
Minha intenção foi retornar ao mar algo que uma vez foi retirado do seu leito mediante o trabalho humano. O sal,
tornado momentaneamente uma mercadoria, seria consumido e reintegrado, em uma quantidade considerável
para um homem carregar sozinho, mas, de todo, insignificante se comparado à abundância da natureza.
A ação não contou com a chancela do mundo artístico nem precisou de autorizações para ser feita. Seu sentido
ambíguo percorre a indeterminação de três sentidos que podemos ter da palavra “trabalho”, neste caso: o esforço
de carregar; a ação artística; a oferenda a uma entidade da natureza. Se o esforço é obviamente um trabalho físico
ligado a um produto, enquanto uma oferenda é caracterizada pelo trabalho espiritual que pressupõe uma perda
improdutiva: o trabalho de arte seria a prática de comunhão, e co-ação, do aspecto espiritual com o aspecto físico.
39
Bárbara Ahouaghi, Costura, 2013
LINDONÉIA
#02
nos últimos meses passava ao menos vinte horas tecendo na esperança de findar. não sabia
ainda de onde vinha aquele fio entregue numa tarde chuvosa por pessoa incógnita junto
com quinhentos dinheiros e a ordem de serviço. o pão duro com café diário era fruto do
longo inverno sem trabalho. não havia o que pensar. trabalho aceito. começo da costura.
apenas um fio. apenas algumas horas. nada mais. aham. outro inverno aproximava-se, recusara outras propostas
na esperança dos outros quinhentos prometidos ao término da insólita peça. mente fixa no resultado. quase não
dormia. adquirira repugnante aspecto próximo de um babaji shivaísta. munido de suntuosa exaustão começou a
indagar pelas origens de seu labor. a origem do fio. a identidade daquela pessoa estranhada qual não reconhecera
nem o sexo. quase um ano preso a uma pequena ambição o cegara de todo e qualquer pensamento sensato.
* Bárbara Ahouagi
resolve então sair. abrir a porta, seguir aquele fio que se embrenhava em seus próprios pés. começou a seguir aquele
fio que já se embrenhava nos próprios pés. ralos, cuspes, sandálias, flores, fumaças, gasolina, urina, pés, vidas.
tudo aquilo começou a despertar certa percepção que transcendia os sentidos corpóreos. muita informação e a
sensação de que não o fio apenas: estava curvado e das pessoas não enxergava mais que os joelhos. num impulso
rápido e aflitivo se ergueu. a visão atroz. todos estavam curvados enrolados em costuras e fios andando pelas ruas
cegos e corcundas.
soltou seu próprio fio e seguiu
41
ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA E
PSICANÁLISE: DA LIBERDADE
POSSÍVEL
Fábio R. R. Belo
1. A conquista do neurótico obsessivo
Numa análise, uma das coisas mais importantes que o neurótico
obsessivo pode atingir é o reconhecimento de sua impotência.
De maneira geral, o obsessivo é aquele que acredita tudo-poder,
tudo-saber. Sua obsessão por organizar o mundo, dar sentido
fixo às coisas, é sinal dessa onipotência de várias faces.
42
Giorgio Agamben recupera de forma exemplar a teoria da potência
de Aristóteles para nos ensinar que só sabemos realmente de
nossa potência quando podemos, efetivamente, poder não fazer.
O exemplo é simples: o fogo pode apenas queimar. Ele não pode
não poder queimar. Assim também é com a maior parte dos
animais: podem apenas fazer o que determina sua potência
particular: uma formiga não pode não-poder-fazer seus buracos
na terra, mas o pianista pode não tocar seu piano.
LINDONÉIA
Nada torna tão pobre e tão pouco livre como esse
desconhecimento da impotência. Aquele que é separado
daquilo que pode fazer, pode, entretanto, ainda resistir,
pode ainda não fazer. Aquele que é separado da própria
impotência perde, por sua vez, antes de tudo, a capacidade
de resistir. E como é apenas o irritante [incendiário...]
reconhecimento daquilo que não podemos ser que garante
a verdade do que somos, também é só a lúcida visão
daquilo que não podemos ou podemos não fazer a que dá
consistência ao nosso agir1.
Ora, o que Agamben, via Aristóteles, está tentando demonstrar é
que alguém compelido ao fazer, que não consegue se distanciar
do que faz, é pobre em liberdade. Nossa liberdade é sempre
marcada por esse negativo de poder não fazer. Na neurose
obsessiva, preferir não fazer, finalmente, poder não-poder, é uma
libertação.
A compulsão do obsessivo – “ter que fazer”, “não poder não fazer”
– acaba por transformar a pulsão num tipo de instinto. Aquilo
que caracteriza a liberdade pulsional – poder ser e fazer, sempre
mantida a possibilidade de poder não ser e não fazer – é recusado
pelo obsessivo. Ao longo de seu processo analítico, o que se busca
é justamente um pouco mais de espaço para o reconhecimento
dessa impotência que se confunde com a liberdade.
A liberdade pulsional, compreendida de forma idealizada,
autorizaria a plena contingência do que somos e fazemos.
Humanos podemos matar crianças e adotar bebês na mesma
proporção. Podemos fazer arte e guerra: ao mesmo tempo.
1. Nulla rende tanto poveri e cosí poco liberi come questa estraniazione dell’impotenza. Colui che
è separato da ciò che può fare, può, tuttavia, ancora resistere, può ancora non fare. Colui che è
separato dalla propria impotenza perde invece, innanzitutto, la capacità di resistere. E como è
soltanto la bruciante consapevolezza di ciò che non possiamo essere a garantire la verità di ciò che
siamo, cosí è solo la lucida visione di ciò che non possiamo o possiamo non fare a dar consistenza
al nostro agire. AGAMBEN, Giorgio. Su ciò che possiamo non fare. Nudità. Roma: Nottetempo,
2009. p. 67-70.
Podemos prolongar a vida ou simplesmente suspendê-la.
Pensemos na morte que desejamos e na que desejamos evitar.
Voltarei a essa liberdade pulsional mais adiante no texto. Por
enquanto, desejo apenas marcar que a pulsão é um conceito que
nos permite pensar numa flexibilidade existencial, numa estética
da existência bastante ampliada, cujos limites nunca serão
completamente determinados.
#02
Não seria também, no fundo, contra um terrível desejo de morte,
que tudo desorganiza e confunde, que o obsessivo luta? Não seria
por esse motivo sua compulsão a controlar a vida, no sentido de
manter a vida viva, mais que vivê-la? Viver a vida de forma menos
onipotente não seria abrir-se à contingência? Ao que pode ou não
ser, inclusive no que tange a nós mesmos? Até que ponto estamos
dispostos a sermos outro?
Lição expandida para todos: a vida que temos não tem que ser
vivida necessariamente. Se esse pensamento, inevitavelmente,
traz a sombra terrível do auto-extermínio, precisamos dele, no
entanto, para mudarmos de vida, escolher outros caminhos. E só
conseguimos mudar quando reconhecemos que não precisamos,
que não somos obrigados a continuar a viver como vivemos. Que
há sim possibilidades – duramente conquistadas, fruto de muita
elaboração psíquica – de poder não fazer, de poder não viver
algumas formas de vida e de se autorizar, também no limite, a
poder não saber o que nos espera. Mais uma vez, pinto com cores
fortes esse quadro de liberdade idealizada. Evidentemente, “não
saber o que nos espera” levado ao extremo é tão opressivo quanto
desejar controlar todas as contingências que nos cercam.
2. Bartleby e o trabalho
Gostaria de comparar, brevemente, o que disse acima sobre
os neuróticos obsessivos e o personagem Bartleby, criado por
Melville2 . O objetivo dessa comparação é simples: Bartleby talvez
2. MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. Tradução: Irene Hirsh. São Paulo: Cosac & Naify,
2005.
43
www.estrategiasdaarte.net.br
seja o inverso de todo neurótico obsessivo. Quando o obsessivo é
compelido ao fazer, Bartleby se recusa a trabalhar.
A estória é bastante simples: Bartleby é um escrivão num escritório
de advocacia em Wall Street – centro nervoso do capitalismo.
Certo dia, ele simplesmente se recusa a trabalhar, respondendo
a seu patrão com a seguinte fórmula, a toda ordem dada a ele:
“prefiro não fazer” / “acho melhor não”.
É também verdade que na neurose obsessiva é comum
encontrarmos o sintoma da postergação, um não-fazer
compulsivo. Não é disso que se trata no caso de Bartleby: há de
fato uma suspensão do desejo, uma apropriação radical do desejo
de não fazer, de não ser.
Preferir não fazer, como faz o personagem de Melville, é o início
de toda liberdade possível. Obviamente, não se trata de ir até onde
Bartleby foi, isto é, poder inclusive poder não-viver. A literatura,
mais uma vez, mostra o que está em jogo, de forma muito radical:
a vida, como um todo, é determinada por esse distanciamento
de nossa potência. Reconhecer essa impotência, poder não fazer,
vale para todas as tarefas da vida, inclusive para o próprio viver.
3. Bartleby ou a contingência
Agamben3 faz uma interpretação bem interessante do conto de
Melville que pode nos ajudar a compreender a relação que desejo
estabelecer entre o trabalho compulsivo do neurótico obsessivo e
essa grande recusa de Bartleby.
Agamben interpreta a fórmula de Bartleby “I would prefer not
to”, como uma forma de dizer algo entre o ser e o não ser, algo
que anuncia o que poderia ser, mas que não será; anúncio da
potência formulado como impotência. Trata-se da fórmula da
contingência: aquilo que pode ser ou não.
44
3. AGAMBEN, Giorgio. Bartleby o de la contingencia. In: DELEUZE, Gilles; AGAMBEN, Giorgio;
PARDO, José Luis. Preferiría no hacerlo: Batleby el escribiente. Valencia: Pre-Textos, 2005. p. 93136.
Bartleby é um copista. Bela metáfora da neurose obsessiva: copiar,
repetir, fazer o mesmo, impedir o aparecimento da diferença, do
novo. Ao renunciar à cópia e jogar-se no abismo no nada fazer,
Bartleby mostra o outro lado da moeda obsessiva. O ideal de
um fazer pleno – talvez um fazer de uma vez por todas, o fim do
trabalho – é substituído pelo vazio absoluto do não fazer.
Agamben recupera de forma magistral o fato de Bartleby ter
trabalhado, antes de ir para o escritório de Wall Street, num “Dead
Letter Office”, isto é, num escritório de cartas não reclamadas.
Diz o filósofo:
Impossível sugerir mais claramente que as cartas não
reclamadas são a cifra de acontecimentos felizes que teriam
podido chegar a ocorrer, mas que não se realizaram. Porque
o que se realizou é, precisamente, a possibilidade contrária.4
Bartleby talvez deseje mostrar que toda carta é uma carta que pode
nunca chegar ao seu destino. Ao contrário do obsessivo “clássico”
que jamais admitiria uma carta perdida ou endereçada por
engano. É também o obsessivo, entretanto, aquele que escreverá
cartas nunca enviadas: porque são imperfeitas demais, porque
nunca dizem o suficiente ou nunca claramente o que realmente
precisa ser dito.
Pensemos, com Jean Laplanche, na situação originária de todo
bebê humano. Nós também somos, desde o início, intérpretes
de cartas e mensagens, provenientes do outro. Essas mensagens
sempre serão comprometidas com o inconsciente do outro, do
adulto que cuida desse bebê. Para sempre teremos a tarefa de
traduzir essas mensagens que vão compondo nossa própria
narrativa subjetiva. Para sempre também teremos que conviver
com a contingência própria a toda mensagem: poder ou poder não
ser compreendida. E ainda: talvez, o ideal seja perceber que uma
mensagem sempre guardará sua impossibilidade de tradução
4. AGAMBEN, 2005, p. 133.
LINDONÉIA
completa. Nesse sentido, é preciso pensar, como ideal de análise,
algo no meio do caminho: nem tanto o obsessivo desejo de tudo
saber, tudo traduzir; nem tanto a lassidão de Bartleby de poder
apenas nada saber.
4. Trabalho de análise como estética da existência
Há muitas maneiras de se pensar as relações entre a arte e o
trabalho. Diversos artistas já criticaram o excesso de trabalho
imposto pelo modo de produção capitalista. Jean Tinguely,
faz máquinas trabalharem o tempo todo: do nada para o nada.
Em diversas entrevistas, Tinguely admite que seu trabalho visa
criticar o excesso do consumo, de um fazer que gera mais fazer,
de um trabalho incessante5 .
Na mesma direção que Tinguely, temos a obra de Arhtur Ganson
que também produz máquinas que se movem incessantemente.
Pensemos na peça Machine with Roller Chain6, por exemplo .
Para além da crítica ao trabalho vazio imposto à classe
trabalhadora, podemos pensar nessas obras de Tinguely e Ganson
em termos mais individuais. Obras como as dos dois autores
podem ser usadas como metáforas importantes desse trabalho
psíquico próprio do neurótico obsessivo.
Conseguimos perceber o lado cômico e o lado angustiante
dessas obras7 . Assim como é possível rir do absurdo trabalho do
obsessivo que lava as mãos vinte vezes assim que chega em casa,
também conseguimos perceber sua agonia de não poder evitar
sua compulsão, sua angústia de não poder não fazer.
Disse mais acima que o fato de não sermos determinados
5. Algumas obras do autor em movimento:
<http://www.youtube.com/watch?v=147VidSX6J4>. Acesso em: fev. 2013.
6. A máquina pode ser vista em movimento no seguinte endereço: <http://www.youtube.com/
watch?v=Tcw7IvGJG9s>. Acesso em: fev. 2013.
7. . Observem esse ossinho da sorte ambulante, de Arthur Ganson. Notem como estamos próximos
do que Freud chamou Unheimliche, o estranho familiar, que produz algo de cômico, mas também nos
angustia. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=p0sMj6xQXFI&noredirect=1>. Acesso
em: fev. 2013.
pelo instinto nos abre um infinito campo de possibilidades
existenciais. Isso também é fruto de alegria e angústia. Ainda
pintando um quadro com as cores fortes da idealização, o trabalho
que podemos fazer sobre nós mesmos é um trabalho infinito.
Podemos nos transformar e dar à nossa existência formatos
inesperados. As contingências da “máquina do mundo” também
podem nos obrigar a recompor nossa forma de vida de maneiras
nunca pensadas. As grandes tragédias nos ensinam que há sim
grande desejo de inércia e imutabilidade. Qual mãe não trocaria o
terrível acidente que lhe retirou o filho pela muitas vezes tediosa
repetição do dia-a-dia da maternagem? Ao mesmo tempo, qual
mãe nunca desejou alguma libertação da repetição quase infinita
do cuidado com as crianças?
#02
Obviamente as possibilidades existenciais não são infinitas.
Nossa história libidinal, por assim dizer, marca alguns eixos e
trilhos difíceis de serem abandonados ou modificados. No limite,
entretanto, acredito, a partir da psicanálise, que, por sermos
sujeitos pulsionais, os limites de nossa flexibilidade existencial
nunca poderão ser suficientemente demarcados8 .
Se há algum elogio possível a ser feito a Bartleby – e acredito que
haja – é esse: ele nos ensina, de forma trágica, evidentemente, que
é possível poder não fazer. Pensar na liberdade como sustentada
pelo reconhecimento dessa impotência, como retorno a um
tempo originário marcado pela indecidibilidade da contingência,
retorno ao momento em que sempre poderemos ser ou não ser, é
fundamental para qualquer processo analítico.
5. Conclusão: a máquina do mundo
Gostaria de concluir esse artigo fazendo um breve comentário
à obra Máquina do Mundo, de Laura Vinci9 . Trata-se de uma
8. Cometi um curioso lapso, detectado por uma leitora atenta: escrevi “felixibilidade existencial”.
O lapso revela a verdade do que quero dizer: alguma felicidade oriunda da flexibilidade. Importante
pensar nessa metáfora e suas correlações morais, isto é, no que ela significa na prática ética
cotidiana.
9. A obra pode ser vista no endereço que se segue, assim como uma entrevista com a artista: <http://
www.inhotim.org.br/arte/artista/view/125>. Acesso em: fev. 2013.
45
www.estrategiasdaarte.net.br
máquina que leva pó de mármore de uma parte a outra. Como
as máquinas de Tinguely e Ganson, Máquina do Mundo parece
colocar em curso um trabalho infinito para nada ocorrer. Na
entrevista que a artista concede, há duas observações preciosas.
A primeira diz respeito à metáfora do mármore como elemento
fundamental da história da arte e da história humana. Elemento
que representa algo imutável, inflexível, intransigente. A dureza
do mármore, na obra de Vinci, entretanto, é reduzida ao pó e põese em movimento. Ali onde deveríamos esperar imobilidade, nos
deparamos com o movimento. Há algo de areia de ampulheta
nesse pó docemente descarregado de um lado a outro. Talvez o
tempo tenha sido o que restou de inflexível, o que permaneceu
na montagem, representado por esse ir e vir incessante, porém
esvaziado de todo sentido.
A segunda observação presente na entrevista da autora é que sua
obra nasce inspirada pelo poema homônimo de Drummond .10
Sem entrar em detalhes sobre esse complexo poema, gostaria de
pensar no encontro daquele eu-lírico com a máquina do mundo.
Como interpretar o fato do eu-lírico do poema recusar o sentido
de tudo, que a máquina do mundo lhe oferece de forma tão plena
e gratuita? Por que ele prefere baixar os olhos, prefere não saber o
que, supostamente, todos gostaríamos de saber?
Acredito que o eu-lírico “avalia o que perdera” certamente com
alguma melancolia. Abrir mão, entretanto, da “ciência sublime e
formidável”, da “completa explicação da vida” é também condição
de possibilidade de todo trabalho psíquico, de todo trabalho que
podemos fazer sobre nós mesmos, de todo trabalho ético a ser
feito.
Preferir não saber tudo para poder construir algum saber. Preferir
não ter todas as respostas, mas poder se alegrar – mesmo que
marcado por alguma melancolia – com a sedução dos enigmas. *
46
10. ANDRADE, Carlos Drummond. A máquina do mundo. In _______Poesia Completa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 301-304.
LINDONÉIA
#02
Los exquisitos
cuerpos de la
miseria
Iván Mejía R.
Esta vida fuera de la ley es fascinante porque uno crea allí su propia
excitación. Hay un sagrado aumento de la adrenalina.
Se está obligado a ir hasta el extremo de uno mismo (...)
El problema es que las cosas terminan
escapándose de las manos.
Larry Clark
En el campo intelectual1, las condiciones de pobreza y los pobres
han generado diversas ficciones teóricas visibles en cierta
producción teórica, estética y artística que han hecho de ello un
submundo al cual mirar, estudiar, objetualizar, como también
excluir, desechar, esconder o exterminar; sujetos a quien temer,
alguien a quien salvar, un cuerpo de estudio y de observación. Por
ello, más que volver a estos lugares comunes habría que revisar
la ideología que opera en estas construcciones; ya que como dice
Rey Chow:
[Hay] [...] un circuito de productividad que extrae su capital
de la privación de los otros, a la par que se niega a aceptar
1. Que Bourdieu definió como un sistema de fuerzas o agentes que van definiendo su posición dentro
del campo. En: BOURDIEU Pierre; Campo de poder, campo intelectual Itinerario de un concepto.
Montressor, 1980
47
www.estrategiasdaarte.net.br
su propia presencia en tanto que privilegiada [...] optan por
ver en la impotencia de otros una imagen idealizada de sí
mismos y se niegan a escuchar, en la disonancia entre el
contenido y la forma de su discurso, su propia complicidad
con la violencia2.
Ciertamente no se puede personalizar ni tampoco responsabilizar
a nadie en concreto de este tipo de violencia estructural ya
que se trata de una trama de decisiones asumidas en pos de la
producción de conocimiento en tanto capital simbólico3. Por ello
resulta difícil reconocernos en ese entramado, porque tendemos
a caer en el delirio de estar haciendo lo correcto, sin asumir que
la exclusión es un fenómeno mucho más universal de lo que se
admite, así como la incapacidad de constituirse uno mismo sin
excluir al otro, o la imposibilidad de excluirlo sin desvalorizarlo.
Situación que no hemos afrontado eficazmente porque resulta
más cómodo glorificar nuestros relatos teóricos, académicos, o
artísticos.
Este campo intelectual, en tanto campo de poder, estudia a
estos sujetos pero manteniéndolos lo más lejos posible mediante
procesos invisibles de violencia institucionalizada. Cuando
no, busca obsesivamente emprender campañas de salvación,
domesticar a aquellos “salvajes”, poner a trabajar a los “ociosos”
o disciplinar a los “criminales”, con la esperanza de que estas
poblaciones algún día lleguen a “mejorar” sus circunstancias,
normalizarlos e integrarlos a la sociedad y al mundo laboral.
En este sentido, tendríamos que cuestionar los «paradigmas de
48
2. CHOW, Rey. Writing Diaspora, Bloomington, Indianapolis (IN), Indiana University Press, 1993,
p. 14.
3. Bourdieu introduce la noción de “capital simbólico” que consiste en ciertas propiedades
impalpables, inefables y cuasi-carismáticas que parecen inherentes a la naturaleza misma del
agente. Tales propiedades suelen llamarse, por ejemplo, autoridad, prestigio, reputación, crédito,
fama, notoriedad, honorabilidad, talento, don, gusto, inteligencia, etc. Según Bourdieu, el capital
simbólico así entendido “no es más que el capital económico o cultural en cuanto conocido y
reconocido” (BOURDIEU, Pierre. Choses dites, París: Ed. de Minuit., 1987. p. 160). En efecto, lejos
de ser naturales o inherentes a la persona misma, tales propiedades sólo pueden existir en la medida
en que sean reconocidas por los demás. Es decir, son formas de crédito otorgados a unos agentes
por otros agentes (BOURDIEU, P. Creencia artística y bienes simbólicos. 1999 y en: BOURDIEU,
P. (1987). ”Habitus, code, codification”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, núm. 64.)
rescate»4 y las políticas de salvación que responden a la ansiosa y
humanista tarea de “civilizarlos” mediante la cultura, el arte y los
valores burgueses.
Algo de esta violencia estructural puede percibirse en el burdo
clasismo, pero hay otras formas más profundas y ocultas
difícilmente percibidas como tales, por ejemplo al hacer de
ciertos individuos objetos de estudio o soporte artístico; haciendo
de ellos curiosidades etnográficas que terminan siendo refinados
mecanismos de sometimiento; pues al reproducir las estructuras
sociales existentes se reproducen por ende, la desigualdad5,
represión y alienación a través de una violencia institucionalizada
que se corresponde con las estructurales de clase. Poderes, todos
ellos, que se inscriben en los cuerpos.
Sin embargo, estas poblaciones con su extraña
manera de mantenerse animadas en una especie
de vida presocial, sabotean las pretensiones
hiperfuncionalistas,
haciendo
imposible
someterlas a un contrato social, educarlas,
regularlas, controlarlas, medirlas y ordenarlas.
Al intentar comprenderlas, teoría y práctica
artística pocas veces son compatibles con la
situación de aquella parte de la población para su
subsistencia desarrolla actividades al margen de
la legalidad, pues tal como dice Laclau, el campo
de la representación es siempre: “un espejo turbio
y roto, interrumpido constantemente por un
“real” heterogéneo al cual no se puede dominar
simbólicamente”6.
Estos sujetos no son fácilmente aprehensibles, no saben de reglas
ni de límites, viven en la indisciplina, la desobediencia, y en una
4. SUNDER, Rajan, Ra. Real and Imagined Women. Gender, Culture and Postcolonialism,
Londres, Routledge, p. 6.
5. APUD en: FERNÁNDEZ, Herrería. (1993). “Violencia estructural”, Revista interuniversitaria,
22, 1995, pp- 21-38.
6. LACLAU, E.: op. Cit. 177.
FIG. 01 .Grasa de
cadáver embarrada
sobre una persona,
Teresa Margolles
LINDONÉIA
FIG. 02. Santiago
Sierra, “LÍNEA DE
250 CM. TATUADA
SOBRE 6 PERSONAS
REMUNERADAS” Espacio
Aglutinador. La Habana,
Cuba. Diciembre de 1999
actitud de indiferencia hacia “personajes ejemplares”; pasan
el tiempo delinquiendo como un impulso de desafío social.
Disfrutan su muy particular cotidianidad, su vagabundeo
predatorio, sus “buenas pasadas” en el orden construido por
el “fuer¬te”; moviéndose en infinitas variedades de pasos sin
sentido y sin objetivo. En tanto, el cuerpo y el deseo se vuelven
tan temibles, fascinantes, y exquisitas para ojos ajenos como el
campo teórico, académico y artístico.
Por ejemplo, en el arte durante las últimas décadas hemos visto
una frecuente presencia de estas poblaciones que ha causado
gran interés o mera curiosidad: Francis Alÿs (Antwerp, Bélgica,
1959) ha fotografiado vendedores “Ambulantes” (1992-2002) de la
Ciudad de México. Teresa Margolles (México 1963) ha embarrado
grasa de cadáver a una persona a la que remuneró. Santiago
Sierra (España, 1966) hizo que indígenas tzotziles aprendan el
idioma español (“11 personas remuneradas para aprender una
frase”, 2001); que invidentes tocaran y cantaran en una galería
(“2 maraqueros”, 2002); o que un niño en condiciones de calle
limpie el calzado de los asistentes a una inauguración (“Persona
remunerada para limpiar el calzado de los asistentes a una
inauguración sin el consentimiento de éstos”, 2000).
También, Alexander Apóstol (Venezuela, 1969) ha fotografiado
a delincuentes del Barrio de Antímano en Caracas, (“Them as a
Fountain”, 2003) o videado transexuales que se prostituyen en
Caracas, Venezuela (“Av. Libertador”, video, 4:30 min, 2006).
Tomas Ochoa (Ecuador, 1969), representa la relación foucaltiana
vigilancia-castigo-cuerpo de menores en el reformatorio en
Mendoza, Argentina (“5 Puntos”, video Installation, 2005) y con
emigrantes latinoamericanos aparentemente ‘integrados’ en
el mercado laboral español (“Indios medievales parte 2”, 2008).
El binomio de artistas Mauricio Dias (Brasil, 1964) & Walter
Riedweg (Suiza, 1955) filma a bailarines funk de las favelas de
Rio de Janeiro para establecer una conexión entre la escena del
Funk Carioca y el libro: Verdadera historia y descripción de un país de
salvajes, feroces y caníbales escrito en 1557 por Hans Staden (15271578) que funda en el imaginario europeo la representación del
trópico salvaje y del caníbal (“Funk Staden”, video-instalación,
2007). Y el artista Juan Manuel Echeverría (Colombia, 1947) filma
cantos de sobrevivientes campesinos, obligados a dejar su hogar,
para entrar a formar parte del conjunto de indigentes en las urbes
colombianas (“Bocas de ceniza”, video, 2003, 2004).
#02
FIG. 03. Santiago Sierra, “LÍNEA DE 10 PULGADAS RASURADA FIG. 04. Santiago Sierra “10 PERSONAS REMUNERADAS
SOBRE LAS CABEZAS DE 2 HEROINÓMANOS REMUNERADOS PARA MASTURBARSE”. Calle Tejadillo. La Habana, Cuba.
CON UNA DOSIS CADA UNO”. Calle Fortaleza 302. San Juan Noviembre de 2000
de Puerto Rico, Puerto Rico. 2000
49
Mauricio Dias &
Walter
Riedweg
“Funk Staden” video
instalación 2007
temor, e incluso erotismo; y no están exentos de agujeros y
fantasías, pues suelen proyectar determinadas ansiedades e
idealizaciones sobre estos cuerpos/sujetos.
En principio esta producción artística ha favorecido el
aparecimiento de estos sujetos en los territorios centrales o
intentos de inclusión de los desclasados para que adquieran
visibilidad social y presencia pública pero ¿de qué manera? en
realidad el emplazamiento de esta población ha sido un mero
pretexto intelectual pero nunca será incluida en el mundo del arte
ni en la historia en general más que desde el punto de vista de su
capacidad para sustraerse al orden de los discursos dominantes.
Más bien, al visualizar a esta población se transparentan los focos
de poder que permiten el surgimiento de saberes transformados
en discursos que siempre son un acto de poder; en el sentido en
que determinan lo que es visible y cómo es visible.
Al ir tras una población heterogénea compuesta por sujetos
desclasados: indigentes, inmigrantes, refugiados, personas sin
hogar, prostitutas, campesinos y demás individuos que fuera de
los estratos sociales sobreviven en condiciones de inhospitalidad,
rechazo, y exclusión, que forman guetos, favelas o ciudades
perdidas cuando no se dispersan por todo el espacio social, los
cuerpos quedan atrapados entre el voyerismo y un «paradigma
del rescate»7 , estereotipos que oscilan entre los extremos de la
victimidad/heroicidad, compasión/glorificación, prejuicio/
50
7. Ra Sunder Rajan, Real and Imagined Women. Gender, Culture and Postcolonialism, Londres,
Routledge, 1993, p. 6.
Aquí me parece necesario echar un vistazo, más que a la noción de
cuerpo o de sujeto, a las ficciones teóricas que se han construido
sobre los cuerpos/sujetos en condiciones de pobreza. Es a finales
del s. XVIII cuando esta se concretó como uno de los grandes
temas para diversas disciplinas; mismas que pusieron énfasis en
la distribución sobre los recursos más que en juicios morales sobre
los pobres, y como problema social más que individual. Y es en los
siglos XIX y XX cuando los pobres comienzan a ser idealizados en
diversas figuras teóricas. Muchas de éstas se construyeron desde
la filosofía, tal como lo expone Jaques Rancière en The pshilosopher
and his poor8 , quien encuentra representaciones como “plebe”,
“proletarios”, “masas” o “gente común”, articuladas por Marx,
Sartre o Bourdieu, entre otros filósofos o sociólogos que dejan
entrever cómo cada uno de ellos construyó su propio ideal del
pobre.
Se suman a este cuadro otros términos como “subalterno”
articulado por Gramsci9 , retomado después por los estudios
postcoloniales; los “condenados de la tierra” por Fanon10 ;
“pueblo” utilizado por Laclau11 ; o “multitud” discutido por Hard,
Negri12 y Virno13 . También, en el léxico de Bauman encontramos
otros términos como “parias”, “población excedente”, “superflua”,
“supernumeraria”, “innecesaria” y “desechable”, producida como
una consecuencia inevitable de la modernización14.
8. RANCIÈRE, Jacques. The pshilosopher and his poor, Duke University Press, 2004.
9. GRAMSCI, Antonio. Selections from the Prison Notebooks, London, Lawrence and Wishart, 1973.
Y GUHA, R “On some aspects of the historiography of colonial India” R. Guha (ed) Subaltern
Studies I: Writings on South Asian History & Society, New Delhi: Oxford University Press, India,
1982.
10. FANON, Frantz. Los condenados de la tierra, Ed. Fondo de Cultura Económica, 2009.
11. LACLAU, Ernesto. La Razón Populista, FCE, Buenos Aires, 2005, p. 177.
12. HARDT, Michel. y NEGRI Antonio; Multitud. Guerra y democracia en la era del Imperio. Ed.
Debate. 2004.
13. VIRNO, Paolo, Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporáneas.
Madrid: Traficantes de Sueños, 2003.
14. Zygmunt Bauman ha estudiado esta “población excedente” o “residuos humanos” en varios de sus
LINDONÉIA
en El dieciocho brumario de Luis Bonaparte18 y generó una muy
seria discusión.
#02
En dicho texto de 1852, Marx articuló el término
“lumpenproletariado” para referirse a una población sin historia,
el lastre de la humanidad, la “hez, el desecho y la escoria”
de la sociedad; aquellos proletarios irredimibles y alienados que
conformaban el “ejército de reserva”:
Alexander Apostol
(Caracas, Venezuela,
1969) From the series:
“Them as a Fountain“,
Fotografía Digital 100 x
100 cm. c/u. 2003
También viene al caso la noción de “vidas precarias” que sirve
a Butler para observar la distinción entre aquellas vidas que
merecen ser lloradas y aquéllas que no15. Así mismo, la figura de
homo sacer que Agamben retoma del derecho romano, que refiere
a una población producida a través de un complejo proceso legal
que transforma a ciertos sujetos en “nuda vida”, “situada fuera
de la jurisdicción humana”, desprovista de valor y al margen de
la ley16.
Resulta interesante observar que todas estas figuras relevan
una oscilación entre dos valoraciones opuestas. Por un lado,
encontramos figuras de pobres “dignos”, honestos, generosos,
trabajadores, que representan la fuerza de la revolución. Y
por otro, pobres “indignos”, antisociales, violentos, incívicos,
criminales, ociosos e improductivos17 ; es decir, una astilla para
el progreso. Estos últimos, conforman -en palabras de Marx- una
masa informe, difusa y errante, cuyo punto de partida se encuentra
libros, y para la elaboración de esta investigación se están consultando: (1996): Las consecuencias
perversas de la modernidad. Barcelona. Anthropos. (1997): Legisladores e intérpretes: Sobre
la modernidad, la postmodernidad y los intelectuales. Buenos Aires, Universidad Nacional de
Quilmes. (1998): Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Pre-Textos. Valencia. (1999): La
globalización: Consecuencias humanas. México, Fondo de Cultura Económica. (2000): Trabajo,
consumismo y nuevos pobres. Barcelona, Gedisa. (2001): La postmodernidad y sus descontentos.
Madrid, Akal. Y, (2005): Vidas desperdiciadas: La modernidad y sus parias. Barcelona, Paidós
Ibérica,
15. BUTLER, Judith; Vidas precarias. El poder del duelo y la violencia. Editorial Paidós, 2006.
16. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Pre-Textos. Valencia 1998,
p. 32.
17. Para profundizar en este tema pude consultarse: PEREYRA, Guillermo. (2007).
“Heterogeneidad, improductividad y ocio”. Revista de Investigación Social Andamios, junio/año vol.
3, número 006. Universidad Autónoma de la Ciudad de México.
…libertinos arruinados, con equívocos medios de vida y
de equívoca procedencia, junto a vástagos degenerados y
aventureros de la burguesía, vagabundos, licenciados de
tropa, licenciados de presidio, esclavos huidos de galeras,
timadores, saltimbanquis, lazzaroni, carteristas y rateros,
jugadores, alcahuetes, dueños de burdeles, mozos de cuerda,
escritorzuelos, organilleros, traperos, afiladores, caldereros,
mendigos; en una palabra, toda esa masa informe, difusa y
errante... 19
En esta cita, pareciera que Marx repudiaba algo que no pudo
delimitar conceptualmente y por lo tanto, enunciaba una larga
lista de adjetivos para intentar referirse a algo que se le escapaba
de las manos. Reaccionando contra Marx, Bakunin sostenía
que ese lumpenproletariado era la población verdaderamente
revolucionaria, ya que no tenía absolutamente nada que perder
y por lo tanto podía llevar a cabo una insurrección totalmente
destructora dirigida contra el Estado20. También Fanon vio en ese
lumpenproletariado –figura que sustituyó por la de Los condenados
de la tierra- una fuerza implacable dentro del orden social blanco
y burgués:
18. Escrito durante Diciembre de 1851 a marzo de 1852. Primera Edición: En la revista Die
Revolution, Nueva York, EEUU, 1852, con el título “Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte”.
Fuente: C. Marx y F. Engels, Obras escogidas en tres tomos, Editorial Progreso, Moscú 1979, Tomo
I, páginas 404 a 498. Edición Digital: Por la Red Vasca Roja; digitalizado y preparado por José
Julagaray, Donostia, Gipuzkoa, Euskal Herria, 25 de septiembre de 1997. Disponible en: http://
www.marxists.org/espanol/m-e/1850s/brumaire/brum1.htm
19. MARX, Karl. Op. cit. P. 137. Las cursivas son mías.
20. El anarquista Mijaíl Bakunin mantenía la opinión de que Marx exageraba la importancia de la
clase trabajadora, al tiempo que sostuvo que los intelectuales, los estudiantes, el lumpenproletariado
(los desclasados) y la clase media, representante de la democracia burguesa, eran los más probables
agentes de la revolución.
51
producción22. Sin embargo, Peter Stallybrass23 – siguiendo a
Otto Bauer24 - planteó que cuando Marx utiliza la categoría de
lumpenproletariado no estaba caracterizando a un sujeto sino
describiendo un proceso.
Still from “5 DOTS”,
Tomás Ochoa, Video
Installation,
1 Channels / 11min.
2005. © Tomás Ochoa
Imagen cortesía de
Tomás Ochoa y Adriana
Meyer
La cuestión es que hay una problemática naturaleza al tratar de
ir tras las huellas del pobre por la objetualización que la propia
búsqueda acarrea. Si bien, las “descripciones” aludidas producen
un fuerte efecto de verosimilitud, objetividad y neutralidad,
es posible visualizar ciertas idealizaciones que corresponden
más a la ideología del artista o del teórico que a la realidad del
pobre. Tampoco hay que caer en la ilusión de que a través del
arte y del discurso privilegiado se está ayudando a salvarlos25, e
identificar los focos de poder que permiten el surgimiento de
saberes transformados en discursos. Incluso, tendríamos que
preguntarnos si es posible configurar un espacio para quienes
han sido empujados a los márgenes de la historia o por contrario,
asumir nuestro fracaso al intentar comprenderlos, representarlos,
o describirlos, ya que nunca se puede estar en plena concordancia
con ellos porque son el límite absoluto de la historia y de lo social
y al incluirlos se opta por idealizarlos en relatos literarios26.
Ese lumpen-proletariat que como una jauría de ratas, a pesar
de las patadas, de las pedradas, sigue royendo las raíces
del árbol (…) constituido y pesando con todas sus fuerzas
sobre la “seguridad” de la ciudad significa la podredumbre
irreversible, la gangrena (…) los rufianes, los granujas, los
vagos, (…) esos subhombres (…) que oscilan entre la locura
y el suicidio… 21
Paul Mattick se sumó a la discusión sustentando que solo la
estrechez de miras de la pequeña burguesía – Marx indirectamente
aludido – podía señalar con desprecio al lumpenproletariado.
Pero que en esta figura podían ver la cara de su propio futuro
sino redoblaban sus esfuerzos por cambiar las relaciones de
52
21.. FANON, Frantz. Los condenados de la tierra, Ed. Fondo de Cultura Económica, 2009. Traducción
de Julieta Campos. Prólogo de Jean Paul Sartre. p. 80.
Las reiteradas visitas a esta especie de vida presocial, supone
un constante deseo voyerista de ver cómo es la vida de los que
están “del otro lado” o “allá abajo”. No viene al caso diferenciar
si este deseo es simple curiosidad o una búsqueda embelesada
por una política de la salvación; el hecho es que confirman la
imposibilidad de que estas poblaciones pudieran enunciarse a sí
22. MATTICK, Paul. (1935). “La hez de la humanidad”. La versión original, titulada “The scum
of humanity”, apareció en la revista International Council Correspondence [Correspondencia
Consejista Internacional] en marzo de 1935. La versión electrónica se puede consultar en la página
del Círculo Internacional de Comunistas Antibolcheviques. Traducido y publicado digitalmente por el
Colective Action Notes en: www.geocities.com/CapitolHill/Lobby/2379/ Y corregido por el Círculo
Internacional de Comunistas Antibolcheviques http://members.fortunecity.com/cica/ p. 10. 1935.
23. STALLYBRASS, Peter. (1990) “Marx and Heterogeneity: Thinking the Lumpenproletariat”, en
Representations, Vol. 0, num. 31, The margins of identity in Nineteenth-Century England, pp. 65-95
(p. 84). Hay una versión en español: STALLYBRASS, Peter. (2000). “Marx y la heterogeneidad”
Pensando en el lumpenproletariado.. Ojo Mocho n º 15. Argentina.
24. Citado por: RODRÍGUEZ Esteban, en: Vida lumpen: bestiario de la multitud. Colección Sociales,
Edulp, 2007.
25. R. Chow, Writing Diaspora, op. cit., p. 119
26. APUD en: Rey Chow, op. cit. p. 14.
LINDONÉIA
mismas27. Viene al caso la pregunta formulada por Gayatri Spivak
“¿Pueden hablar los subalternos?”28 y una posible respuesta sería
que la cuestión no es si los pobres puedan o quieran hablar o autoenunciarse, la cuestión más bien es que nadie está interesado en
escucharles, sólo en observarles.
Así, el estudio de la pobreza ha interesado sólo por el conocimiento
que se pueda producir. No parece posible escapar de la postura
antropológica que pretende mirar, observar y diseccionar al pobre
bajo el manto del conocimiento científico; ni evitar las cómodas
dicotomías de ellos/nosotros, bueno/malo, héroe/víctima, o
escapar de la trampa lingüística de víctimas/criminales, al
intentar referiros a esta población heterogénea.
Una población que para su subsistencia, realiza actividades al
margen de la legalidad y en la marginación social, que permanecen
ajenos a la modernidad y el capitalismo, y no necesariamente son
“víctimas colaterales”, como dice Bauman, aunque ciertamente
si una “población excedente”, supernumeraria, innecesaria y
desechable29. Su condición es la de estar negadas, sin un proyecto
que los incluya o al que deseen sumarse, pues no tienen el ánimo
de participar en un sistema que los ha hundido ya en el basurero
de la historia.
De igual manera, estos cuerpos se funden en la ansiedad de la
metafunción del Estado, en tanto que suministran el fundamento
para ejercicios de autoridad frente a la intensificación de los
temores, ante la amenaza a la seguridad social y personal, ante
el límite del proceso de descomposición, ante los parásitos, la
escoria social, que si no son exterminados es por el simple hecho
de que resultaría más costoso que simplemente dejarlos morir o
que se maten entre ellos.
#02
No hay posibilidad de negociación ni de diálogo con estos
cuerpos indisciplinados que eluden todo compromiso con las
convenciones sociales. Personajes anónimos que se dedican
prácticas que la sociedad no tolera: prostitución, vagabundeo,
delincuencia, ocio y que desprecia sus valores. Estas jóvenes vidas
urbanas, fútiles, insustanciales e intrascendentes, no cuentan con
un espacio visible ni con un proyecto global que pueda hacerse
objetivo; operan allí donde no se le espera: en las circunstancias
que el instante preciso de una intervención transforma en
situación favo¬rable, en la rapidez de movimientos, creando una
energía no regulada, no disciplinada, ni medible. Y desarrollan
diferentes y extrañas maneras de mantenerse animadas; no son
algo que deba ser rescatado, educado o dominado, son fuerzas y
energías que desbordan cualquier figuración teórica o artística. *
Por ello, las figuras de los pobres en el arte y en la teoría académica
no representan una inclusión de lo excluido dentro de una
ontología establecida. Aquellos que son irreales ya han sufrido
la violencia de la des-realización, la ocultación y la exclusión.
27. PERIS, Blanes, Jaume; La imposible voz, Memoria y representación de los campos de
concentración en Chile: la posición del testigo. Editorial Cuarto Propio, Chile, 2005.
28. G. C. Spivak, «Can the subaltern Speak?», en L. Grossberg y C. Nelson (eds.), Marxism and the
Interpretation of Culture, Urbana y Chicago, University of Illinois Press, 1988. pp. 271-313.
29. Zygmunt Bauman ha estudiado esta “población excedente”, “residuos humanos” en varios de sus
libros, pero para la elaboración de este texto se consultó: Modernidad y ambivalencia. En Beriain,
Josetxo (Comp.), Las consecuencias perversas de la modernidad. Barcelona. Anthropos. 1996.
Legisladores e intérpretes: Sobre la modernidad, la postmodernidad y los intelectuales. Buenos Aires.
Universidad Nacional de Quilmes. 1997. Trabajo, consumismo y nuevos pobres. Barcelona. Gedisa.
2000. La postmodernidad y sus descontentos. Madrid. Akal. 2001. La globalización: Consecuencias
humanas. México. Fondo de Cultura Económica. 1999.
53
Fabíola Tasca, em obra project, 2012-2016.
LINDONÉIA
em obra project - 2ª edição
1
8 (oito) títulos ocupacionais pintados sobre 8 (oito) camisetas. as
camisetas não são vendidas, não são doadas, não são emprestadas
e não devem ser compreendidas como alguma espécie de
brinde. as camisetas constituem uma classe de objetos muito
específica, como o são certos bilhetes de acesso. as camisetas
não são destinadas a uma ou outra pessoa determinada, mas,
estão prontas para serem adquiridas por um usuário que queira
assumir a relação de compromisso descrita nos seguintes termos:
8 (eight) occupational titles painted onto 8 (eight) t-shirts. the t-shirts
are not sold, are not donated, are not lent and should not be understood
as some sort of giveaway. the t-shirts constitute a very specific class of
objects, as are certain access tickets. the t-shirts are not meant for one
or another particular person, but are ready to be acquired by any user
who wishes to take on the relationship of commitment described in the
following terms:
2
vestir a camiseta.
enviar para a artista o seu relato sobre a(s) ação (ações) que você
realizou enquanto usava a camiseta, lembrando-se de mencionar
o tempo consumido na(s) tarefa(s).
wear the t-shirt.
send the artist your report on the action(s) that you performed while
wearing the t-shirt, remembering to mention the time consumed on the
task(s).
3
dúvidas frequentes:
como posso adquirir a camiseta? o que é um relato? como devo
enviar o meu relato? há algum formato para o relato? até quando
posso enviar o meu relato? o que eu vou fazer com o seu relato? o
que acontece se eu não enviar o meu relato?
#02
frequently asked questions:
how can I acquire the t-shirt? what is a report? how should I submit
my report? is there any format for the report? until when can I send my
report? what am I going to do with your report? what happens if I do not
send my report?
4
as camisetas são cedidas mediante assinatura do Termo de
Compromisso, conforme combinado com a artista. em caso de
não recebimento do relato até o dia 31 de dezembro de 2013 não
acontece nada e o seu nome não será mencionado como partícipe
do projeto.
the t-shirts are granted upon the signing of the Term of Commitment,
as agreed with the artist. in the case of not receiving the report until
December 31, 2013 nothing happens and your name will not be mentioned
as a participant in the project.
5
receberei os relatos via e-mail e/ou correio e, desde já, agradeço
pelo seu trabalho.
I will be receiving the reports via e-mail and/or post, and I thank you in
advance for your work.
Fabíola Tasca
Rua Califórnia 295 apt. 701, Sion.
Belo Horizonte MG 30315-500
[email protected]
55
www.estrategiasdaarte.net.br
6
ajudante de derrubada/ clearcutting helper (Michelly Zorzal Sugui)
instrutor de curso livre/ free course instructor (Barbara Mól)
analista de areias em fundição / analyst in foundry sands
desmembrador de mocotó dianteiro / separator of the cow´s front leg
instalador de lodo para sondagem / installer of muck for the standart
penetration test
varredor de vias provisórias / sweeper of ínterim lanes
modelador de corpos de prova / test body shaper
selecionador de castanha de caju / cashew nut picker
embalador de mudas e mudança / seedling and moving packer
afiador de tesouras ambulantes / sharpener of traveling scissors
7
se estamos de pleno acordo com as condições deste Termo de
Compromisso, assinamos o presente instrumento, na presença
de 2 (duas) testemunhas, em 2 (duas) vias de igual teor e forma.
if we fully agree with the conditions of this Term of Commitment, we sign
the present instrument, in the presence of 2 (two) witnesses, in 2 (two)
counterparts of same content and form.
Revista Lindonéia #2
_________________________________________________________
Fabíola Tasca - artista responsável/ artist in charge
56
LINDONÉIA
#02
Sobre ser
um crítico
Antonio Marcos Pereira
Há algum tempo me dei conta de que não conhecia textos
publicados aqui no Brasil que falassem sobre ser um crítico. Como
funciona esse trabalho? Como alguém se forma para executar esse
trabalho? Como um crítico é remunerado? Como se diferencia a
qualidade desse trabalho? Qual pode ser o plano de carreira de um
crítico? Encontrei discussões de outra ordem – sobre o problema
do valor estético, sobre definições concorrentes de crítica – mas
nada cujo foco estivesse em uma dimensão mais ordinária, mas
que também tinha sua importância. Afinal, ninguém negaria
que a crítica, além de ser uma dimensão do pensamento, é um
exercício profissional: pessoas são contratadas e remuneradas
como prestadoras de serviços especializados nessa capacidade,
e respondem por ela na condição de autores de material para
publicação, compiladores, jurados de concursos e avaliadores
de propostas concorrentes a recursos distribuídos por editais
públicos. Se tudo isso ocorre, esse exercício também pode
ser descrito, analisado, comparado, debatido a partir de suas
condições factuais de execução. Mas aí, curiosamente, ninguém
parece querer meter a mão1 .
1. No mundo anglófono a situação é algo diferente: publicações como o livro organizado por H. Aram
Veeser, Confessions of the Critics (New York: Routledge, 1996) e o conjunto de extensas entrevistas
realizadas por Jeffrey J. Williams, Critics at work (New York: New York University Press, 2004)
possibilitam uma retratação do exercício profissional dos críticos nos Estados Unidos que, embora
precise de alguma atualização e de dar conta também daqueles que ocupam lugares menores
57
www.estrategiasdaarte.net.br
Podemos levantar várias hipóteses sobre as razões disso. Uma seria
que o exercício crítico, embora seja exercício profissional, não dá
cobertor para ninguém, e bem poucos, aqui no Brasil, sobrevivem
exclusivamente dele. Meu caso é típico: sou professor e crítico
literário, e malgrado o prestígio talvez mais aparente do trabalho
como crítico, é o labor docente que responde não só pela carga de
trabalho maior, mas também pela remuneração mais relevante.
Embora eu possa confirmar isso em meu círculo próximo de
relacionamentos – no qual todos os críticos são ou jornalistas,
ou professores, ou alguma outra coisa além de críticos literários
– não tenho certeza quanto à impossibilidade, ou inexistência,
de um crítico tout court em exercício no Brasil: não tive acesso a
nenhum recenseamento do trabalho e de suas condições, e creio
mesmo que ainda não existe tal coisa. Indico isso apenas para
reafirmar minha crença de que a profissionalidade existe, mas
sua fisionomia é invisível ou, na melhor das hipóteses, muito
imprecisa e vaga entre nós.
Tenho me esforçado para operar contra esse caráter enevoado da
coisa procurando escrever a respeito de minha própria trajetória
como crítico, para ver se o comentário a respeito do que escrevi
diz se o que teve lugar comigo é paradigmático ou eventual. Em
um texto anterior 2, comentei o que me parecia ser um momento
esquecido porém importante, que é o momento em que emerge
o desejo de ser crítico, em que você acolhe o desejo de ocupar o
lugar de comentador da cultura a partir de um viés particular.
Tentei elaborar algo em torno desse tema aludindo à tradição
do Romance de Formação e à história, conhecida, de formação
profissional de Lévi-Strauss (que dizia ter se tornado etnólogo
graças a um telefonema).
Esse tipo de preocupação me aproximou de um texto de Brian
Eno, intitulado “Sobre ser um artista” 3. Nesse texto – na verdade,
58
na hierarquia da crítica, parece muito mais detalhado do que o que se poderia produzir no caso
brasileiro.
2. O texto é “Eu era um crítico juvenil”, e foi publicado na coletânea organizada por Milena Britto
de Queiroz, Leituras possíveis nas frestas do cotidiano (Salvador: FUNCEB, 2012, p. 29-43).
3. Em A year with swollen appendices (London: Faber and Faber, 1996, p. 373-374).
um apontamento relativamente breve, parte dos apêndices que
acompanham o diário que Eno escreveu durante o ano de 1995 –
Eno busca distinguir duas dimensões da atividade artística, uma
interna e uma externa, um “dentro” e um “fora”:
Trabalhar dentro é lidar com as condições internas do
trabalho – as melodias, os ritmos, as texturas, as letras,
as imagens: todas as coisas normais e cotidianas que
imaginamos que um artista faz.Trabalhar fora é lidar
com o mundo que circunda o trabalho – os pensamentos,
premissas, expectativas, lendas, histórias, estruturas
econômicas, respostas críticas, questões legais e assim por
diante. Você pode considerar que essas coisas são a moldura,
o enquadramento do trabalho.4
Essa distinção, rudimentar e didática, é proposta apenas para
ser problematizada por Eno: é sugerida como algo que se
conforma ao nosso entendimento tradicional das dimensões do
trabalho artístico, implicando em um conjunto de operações que
constituiriam a fatura da arte de fato, seu núcleo, e outro conjunto
que estaria à periferia, secundário, posterior. Uma coisa é a arte
pra valer, e a outra já é parte das consequências ou efeitos da arte
pra valer que foi feita. O texto prossegue encaminhando questões
em sequência, sugerindo a existência de trabalhos que “são quase
que só enquadramento, o que quer dizer que quase todo seu
poder deriva daquilo que pode ser dito a respeito deles, daquilo
que pode ser colocado em conexão com eles” (p.374), e apresenta
como exemplo disso o conto de Borges, “Pierre Menard, Autor do
Quixote”.
Relendo esse texto de Eno recentemente, pensei se havia um
paralelo possível entre o que ele elabora e o trabalho do crítico.
Qual seria a distribuição tradicional de interno e externo para o
trabalho do crítico? O que está “dentro” e o que está “fora”? Tentei
4. m A year with swollen appendices (London: Faber and Faber, 1996, (p. 373, tradução minha)
LINDONÉIA
várias alternativas, mas não consegui ir adiante. Consegui,
todavia, recuperar um episódio esquecido que parecia ter uma
conexão oportuna com essa discussão.
Quando eu estava fazendo o doutorado, por volta de 2004, vi
uma conferência do critico de arte Rodrigo Naves, na Escola
Guignard: ele era o convidado especial de um evento que a Escola
tinha promovido, e fez a conferência de encerramento. Não
lembro de muitos detalhes: quem foi o professor ou professora
que o apresentou, como ele introduziu os problemas, como os
desenvolveu, exatamente que temas explorou e que obras exibiu
e comentou. Mas lembro de alguns detalhes muito vividamente:
como o auditório estava lotado, e a veemência com que ele
conduziu a fala para uma peroração que era de fato um clímax,
um ponto polêmico que se transformava no ápice do argumento
de tal maneira que é quase apenas disso que me lembro com
clareza. Obviamente não lembro exatamente do que ele disse,
e não posso citar nada verbatim. Mas, por mais que a memória
seja errática e falha, confio nela agora, e lembro que ele disse
algo como “Leonardo Da Vinci, deixado na Praça Sete, sobrevive;
Duchamp, não”. A Praça Sete, uma espécie de núcleo do centro de
Belo Horizonte, com seu obelisco e suas várias faixas, pedestres,
carros, ônibus e o frenesi gasto característico do centro velho das
cidades grandes: imaginei a Mona Lisa na Praça Sete, e imaginei
lá também o Urinol de R. Mutt.
É claro que com isso Naves queria produzir uma taxonomia que
era também uma hierarquia. Da Vinci, na visão dele, funcionaria
“fora” do mundo da Arte, pois o que ele produziu era mobilizado
e mobilizava algo que não era parasítico com relação a um espaço
expositivo em particular, ou a condições preparadas de modulação
da atenção como as que a gente encontra nos locais em que a
Arte justifica a instituição que a abriga. Nesse sentido, Duchamp
era o primo pobre e espertinho, que inventou uma traquinagem
vampira, cujo funcionamento dependia totalmente do sistema
da Arte que, por sua vez, construído por Arte maiúscula como a
produzida por Da Vinci, poderia eventualmente fornecer algo do
seu sangue para a sobrevivência da forma parasitária. Pendurado
na Praça Sete, em seu conhecido obelisco, um ready made não
produziria nada – mas a Mona Lisa produziria, insinuava Naves,
um “Ohhh!”, ou alguma forma de encontro com o extraordinário,
do qual ela mesma seria uma instância.
#02
Essa classificação me incomodou muitíssimo à época, me pareceu
injusta e equivocada. Tive muita vontade de fazer uma pergunta,
propor um questionamento ao final – pois me parecia que há, sem
dúvida, diferenças entre o urinol de Duchamp e um quadro de Da
Vinci, mas talvez a coisa não seja tão simples assim. Ou, talvez,
o custo maior da simplificação seja um certo embotamento de
nossa capacidade de discriminação sutil, que é o que os leigos
chamam de sensibilidade e que, supostamente, é algo que deveria
ser apreciado e cultivado por nós, interessados em Arte. É bem
possível, pensava eu, imaginando as obras lançadas na Praça Sete,
que Da Vinci fosse muito ignorado também. Mesmo nos casos em
que fosse reconhecido, tal não se deveria a qualquer imanência da
obra que – digamos, apelando um pouco – exsudaria um aroma
sedutor, capaz de capturar e reconduzir a atenção dos passantes.
As pessoas que reconhecessem Da Vinci o fariam por força de
educação, instrução, desenvolvimento de um jeito de prestar
atenção que resulta na rotulação daquilo como Arte, e arte de
um tipo em particular: esse tipo, que grafamos em maiúsculas,
e diante do qual dizemos “Ohhh!”. Pela mesma via, observar um
ready made como Arte, do mesmo jeito que se observaria uma tela
de Da Vinci – ora, não era isso mesmo que se buscava pôr em xeque
com o ready made? Nesse sentido, se o ready made fosse ignorado
na praça, tudo estava correto e de acordo com o programado –
pois não me parece que fosse o caso tampouco de contemplá-los
lá no museu: um urinol, uma pá.
Provavelmente Naves percebia a complexidade da coisa – antes
de meu nascimento o homem já estava embrenhado com crítica
de Arte, e há um sedimento de reflexão e autocrítica quase
garantido, sustentando o que ele fazia na conferência, incluindo
aí a peroração bombástica que tanto me incomodou. Eu queria
59
www.estrategiasdaarte.net.br
debater, o que quer dizer que queria expor meu incômodo, ouvir
mais a respeito, alcançar algum esclarecimento e, com isso, sair
da perplexidade desagradada em que me encontrava – mas era o
momento final da conferência e do evento, era a hora de muitos
aplausos e eu, temeroso e estudantil, me contive.
Silenciei, os dias passaram, os anos passaram, e o incidente
retornou agora justamente porque eu desejava comentar o que
Eno tinha escrito sobre artistas, produzindo um paralelo com
os críticos. Se, há dez anos, não tive condições de responder ao
que me incomodava, e traduzir esse incômodo sob a forma de
uma interpelação dirigida ao crítico mais velho, colocaria agora
a questão, nem que fosse obliquamente, operando a partir da
longevidade do problema para mim. O que havia ali, no que Naves
propunha, que poderia ser acoplado à distinção proposta por Eno
para ser, depois, devidamente implodido, como Eno faz em seu
texto? Onde estava o cerne contraditório, o pulso de ambivalência
daquilo que eu recordava ter sido dito por Naves mas que depois,
tantas vezes, reapareceu para mim? E, por esse vai e vem do
pensamento, e talvez pela força do significante “moldura”, que
aparece no texto de Eno, lembrei de um trabalho de Mark Tansey. FIG. 02. O mito da
profundidade
Tansey já gerou fortuna crítica abundante ; seu trabalho convida
isso como poucos. Seus quadros parecem sempre aludir ou
comentar algum incidente da história da arte ou da crítica; seu
realismo é marcado pelo uso de clichês de fantasia e pela lógica da
ilustração dedicada a produzir comentários a respeito de Barthes,
Derrida, Greenberg, o estruturalismo e suas consequências e
5
FIG. 1. Mark Tansey,
Descartando a moldura.
60
5. Cito apenas dois casos: um, que de certa forma se transformou na referência incontornável sobre
Tansey, é o livro de Arthur C. Danto, Mark Tansey: Visions and Revisions (New York: Henry Abrams,
1992); outro, que é uma tentativa mais recente, e mais explícita, de explorar as conexões entre os
trabalhos de Tansey e o pensamento pós-estruturalista, é o livro de Mark C. Taylor, The picture in
question: Mark Tansey and the ends of representation (Chicago: The University of Chicago Press,
1999).
LINDONÉIA
outros temas do mesmo pacote.
Vemos esses personagens,
habitantes do nosso repertório
histórico e crítico, aludidos
nos títulos, aparecendo nos
quadros, em situações que
são insólitas e enigmáticas e,
simultaneamente, cristalinas.
Em “O mito da profundidade”,
de 1984, vemos um barquinho
salva-vidas cheio de gente no
meio do oceano. No barquinho
estão Rothko, Motherwell,
Frankenthaler e Arshile Gorky
e, inconfundível, Greenberg,
que, com o dedo em riste,
aponta para uma figura
andando
miraculosamente
sobre as águas: é, obviamente,
Pollock. Em “Derrida interroga
DeMan”, de 1990, há dois
homens, num enclave entre
as montanhas, em uma
situação precária e indecidível.
Como chegaram ali? Estão se
atracando? Estão dançando?
Estão à beira de um precipício,
e um exame mais cuidadoso
FIG. 03 .
revela que as montanhas são, aparentemente, feitas de texto,
Derrida interroga de
Man camadas e camadas de texto, texto sedimentado e compactado
formando tudo que há ali como sustentáculo do que quer que
estejam fazendo os protagonistas.
Esses trabalhos são uma espécie de Gaia Ciência do comentário
sobre a Arte: há jogo e provocação mesclados à erudição, que ao
mesmo tempo aparece como um saber enciclopédico, consistente,
incisivo e jocoso. Os “comentários” de Tansey à história e à crítica
de Arte são realizados com meios da Arte que é, por sua vez, parte
do comentário, em um mise en abyme que complica enormemente
a tarefa de alguém que, como é meu caso neste momento, quer
produzir um comentário ligeiro a seu respeito. No trabalho em
que Greenberg aparece, a mensagem se insinua claramente:
Pollock é capaz de operar milagres, e Greenberg aponta para esse
fato, dirigindo o olhar dos outros artistas para o feito excepcional;
o título, “Mito da profundidade”, parece apenas reiterar o que
sabemos a respeito de um núcleo de valorização da obra de
Pollock por Greenberg, que forja uma noção de “superfície” e a
propõe como um mérito e conquista do Expressionismo Abstrato
e da obra de Pollock em particular. Há, claro, um setor enigmático
no barquinho e seu arranjo peculiar, um coletivo formado por um
crítico e alguns artistas. Gorky e Frankenthaler? O que os explica
ali? E Rothko?
#02
Coisa semelhante ocorre com “Derrida interroga DeMan”, pois
tudo parece se oferecer à interpretação de maneira cristalina.
Assim, lembramos das complexas relações entre os dois críticos
e teóricos, e dos impasses de afiliação e parceria que emergem
a reboque da revelação do passado anti-semita de DeMan. A
ambiguidade do envolvimento dos personagens parece traduzir
precisamente isso, essa indecidibilidade entre dança e luta entre
os dois. Por sua vez, as montanhas feitas de texto são alusão óbvia
ao famoso “Não há nada fora do texto”, de Derrida. Perdura como
problema a relação evidente entre o trabalho de Tansey e uma
ilustração de Sidney Paget, de 1893, que representa o momento
final de conflito entre Sherlock Holmes e seu arquirrival, o
Professor Moriarty: quem, no jogo entre Derrida e DeMan, é
análogo a Holmes? Seria o caso de determinar e discriminar
precisamente a antinomia moral vitoriana, expressa na relação
de Holmes com seu rival, na relação entre os críticos? Isso não
seria perder de vista a pergunta, o interrogar presente no título
mesmo da obra?
O trabalho do qual recordei em particular – enquanto pensava sobre
como comentar o fato de ter lembrado da conferência de Naves
61
LINDONÉIA
enquanto comentava a distinção de Eno sobre possibilidades
do trabalho do artista e sua eventual correlação com o trabalho
do crítico – não foge dessa possibilidade de implicação didática.
Intitulado “Descartando a moldura”, nele vemos duas figuras
na entrada de uma caverna: água flui com força para dentro
do precipício aberto na pedra, e à beira desse precipício vemos
duas figuras. A cena como um todo parece reprisar o programa
didático do platonismo no célebre Mito da Caverna: a caverna
profunda, sujeitos postados à entrada, sombras projetadas na
parede, nosso ponto de vista ligeiramente deslocado no fundo da
caverna. Os dois homens parecem ter feito um enorme esforço
para se desvencilhar da moldura, imensa, vazia, que acabaram de
lançar nesse abismo escuro: está solta, no ar ainda, mal começou
sua trajetória de declínio. Mas na sombra que projetam na parede
da caverna o que vemos é um amálgama dos dois, uma entidade
monstruosa e tentacular, e é como se ambos estivessem, ainda,
nessa aparição metamorfoseada, aferrados à moldura.
Como explorar ponto a ponto a extensão da semelhança entre o
que vejo no quadro de Tansey e o que me parecia estar em jogo na
situação em ouvi o Naves advogando o “descartar da moldura” de
Da Vinci e Duchamp? Não me esqueço da veemência de Naves,
e me pergunto hoje sobre o sustentáculo daquela necessidade,
de conferir ênfase, de amparar o desempenho, enquanto
conferencista, no traço forte e na ponta seca de uma oposição
polar. Ao mesmo tempo, não esqueço minhas fragilidades,
dificuldades e incompetências à época, tão disponíveis à
lembrança quanto a voz de Naves se elevando ao final ao falar de
“Leonardo”. Poderia, imagino, dizer que nessa tela de Tansey eu
era um personagem e ele, outro, e que, no jogo que poderíamos
ter praticado caso tivéssemos interagido naquele evento em
2004, teríamos certamente nos dissipado nessa sombra residual
e enigmática, sem rosto ou assinatura, conformada pela moldura
que constituía o próprio pomo da discórdia. Isso, por sua vez,
me faria retornar ao trabalho de Eno, e à sua questão final, seu
arremate entre jogar a toalha e lançar o problema para outro
patamar resumindo tudo na pergunta “Será que há algo em um
trabalho que não seja, de fato, moldura?” Seja arte, seja crítica –
como responder a essa questão?
#02
Mas talvez não seja esse o caso: talvez esse investimento – voltado
para investigar os paralelos entre o que ocorreu comigo naquela
conferência e o que penso sobre o tema a partir do trabalho de Eno
e Tansey – resulte apenas na redução de uma potência ambígua
que está na tela, em sua alusão ostensiva à uma narrativa mítica,
fundadora, de oposição entre Realidade e Aparência, e que está
também na situação que vivi, em sua conexão patente com duas
escolas de compreensão da Arte e da, digamos, experiência
estética. Talvez, penso hoje, o mais interessante, do ponto de
vista da crítica e seu exercício, fosse justamente se esquivar da
estruturação unilateral da resposta, recusar a escolha de um lado
do problema, e acolher alguma forma de ambivalência não como
malefício, mas como força. Se faço isso, então o que eu faço não
é mais, nem menos, que recuperar algo da experiência e buscar
o que faz com que aquilo tenha sentido, e o que permite que tal
sentido seja comunicado – e se isso não é fazer crítica, não aprendi
ainda o que é. *
62
Melissa Rocha, série Trabalhando em estrelas, 2013
Melissa Rocha, série Trabalhando em estrelas, 2013
Melissa Rocha, série Trabalhando em estrelas, 2013
Acertando os
ponteiros
Melissa Rocha
Carlos trabalhou durante cinco anos em um estacionamento,
localizado em um edifício, em regime fixo noturno, com
uma jornada de 12 horas, em dias alternados. Ele controlava
a entrada e a saída de veículos, mas era também sujeito
a um tipo de controle especialmente rígido: a cada 25
minutos, deveria acionar um relógio, caso contrário, o
mesmo emitiria um sinal e o traço deste sinal poderia ser
recuperado pelo supervisor, configurando sua ausência
naquele momento. Este instrumento de controle parece o
ter afetado, profundamente, deixando sequelas importantes
que permanecem e parecem se agravar. Atualmente, durante
suas crises noturnas, Carlos só consegue se acalmar após
“acionar” um relógio desenhado na parede do seu quarto,
simulando o gesto que fazia, repetidamente, durante
todas as noites dos cinco anos em que trabalhou naquele
condomínio1 .
O relato acima, com ares de ficção, na verdade aponta para uma
situação pitoresca sobre um estudo de caso da psiquiatria, como
o relato do advento de uma categoria de patologias relacionadas
66
1. Relato de estudo de caso em uma série de estudos sobre Saúde Mental e Trabalho. O nome,
naturalmente, é fictício. ASSUNÇÃO, Ada; FRANCISCO, João Manuel; LIMA, Maria E. Aprisionado
pelos ponteiros de um relógio: o caso de um transtorno mental desencadeado no trabalho. In: Codo,
W & Jacques, M. G (orgs). Saúde Mental e Trabalho - leituras. Ed. Vozes, 2002. Disponível em:
http://adesat.org.br/userfiles/file/PDF/estudodecaso.pdf
às jornadas de trabalho, denominada Transtorno de Adaptação.
Interessa destacar aqui, não o distúrbio apresentado pelo
funcionário, mas, o apego ao ato desenvolvido ao longo da rotina
marcada pelo ritmo dos ponteiros a cada quarto de hora. Para
além do caráter opressor, imposto pela ditadura do tempo e das
relações de trabalho, o prolongamento da ação de vida pregressa
é a herança maldita que o condiciona ao cumprimento deste
insólito ritual.
Transladando o assunto para o âmbito das artes, tropeçamos no
trabalho obsessivo de Tehching Hsieh. Confusa ou ausente, a
margem que delimita os atos artísticos de sua própria vida nos
revela uma produção incrivelmente volumosa que impressiona
pelo período compreendido entre concretização e encerramento
dos projetos. Um trabalho em particular, a sua segunda
Performance de Um Ano (1980-81), tangencia a situação de Carlos
descrita anteriormente. Ainda como imigrante ilegal nos EUA,
o taiwanês Tehching Hsieh voluntariamente se submeteu ao
mecanismo de controle direcionado aos trabalhadores oficiais do
sistema, quando, diariamente, registrou sua imagem diante de
um relógio de ponto que deveria acionar a cada hora. As diferenças
entre o trabalho de Hsieh e o transtorno de Carlos residem
sob dois aspectos, tanto na ausência de dias descanso, como
também na frequência de acionamento do relógio, ampliando
exageradamente o controle estabelecido para uma jornada de
trabalho convencional: chegada, pausa para almoço e saída.
Nas fotografias da performance iniciada em 11 de abril de 1980 e
datada para se encerrar precisamente após 1 ano, observamos
nitidamente a transformação diária da fisionomia do artista
com o avanço da barba e cabelos sobre seu rosto. Outros
mecanismos também foram utilizados na documentação de sua
ação, como os cartões nominais que registravam os horários e o
próprio relógio de ponto. A montagem expositiva das 365 fotos,
perfiladas lado a lado, desnuda, diante dos nossos olhos, de
maneira aguda, a apresentação diária de nossa rotina, da vida
do cidadão médio, condicionada à execução de suas obrigações
empregatícias, visando ao alcance e manutenção
dos padrões sociais e econômicos de vida, desfrute
e posição digna enquanto um membro produtivo e
consumidor na sociedade.
O ato repetido, diluído nos compromissos pessoais
e profissionais aos quais estamos subordinados,
não aparenta, através de uma visada superficial, a
verdadeira dimensão de seu caráter massacrante.
Na obra de Hsieh, a compilação fidedigna e
sistematizada da automatização dos atos diários
nivela essa conduta com a de um portador de
um distúrbio compulsivo, escravo da satisfação
patológica, de uma necessidade incontrolável
e intermitente. Contudo, a ocupação do artista
consistia em apenas viver em função dos horários, não havia
nenhum trabalho específico a ser realizado ou um salário que
recebesse em troca, a não ser o dever de seguir atentamente o
regime dos ponteiros. Ainda que a ação não esteja situada em
vínculo formal de trabalho, a obrigação de cumprir os mesmos
protocolos a nivela com a rotina de todos os demais:
FIG. 01 :
Performance de
1 ano, Tehching
Hsieh, 1980-81.
O trabalho é indispensável porque produz riqueza. Mas
nem todos os trabalhos, para produzi-la, obrigam a
sofrer: alguns são agradáveis, até glorificantes; outros são
cansativos, desagradáveis, repugnantes. Quase todos os
trabalhos agradáveis são monopolizados pelas elites, os
outros são delegados às máquinas ou aos animais ou são
impostos aos escravos, aos forçados, aos estrangeiros, aos
indigentes e, por último, às classes médias compostas de
empregados, de funcionários e profissionais que se iludem
de pertencer às classes dominantes mas que, de fato,
representam uma nova forma de casta dominada2.
Por outro lado, distante dos propósitos que movem o mundo
capitalista, desvinculada de uma obrigação institucional e
2. DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Tradução de
Yadyr A. Figueiredo. Rio de Janeiro: José Olympio. 2001
67
FIG 04: Relógio
de Flipar, Rivane
Neuenschwander,
2005, 28ª Bienal
Internacional de
Arte de São Paulo
www.estrategiasdaarte.net.br
financeira que não somente o desejo pessoal do artista, a obra
de Hsieh toca de forma potente todas estas questões envolvidas.
A oposição entre o cotidiano real e o do trabalho artístico ocorre
justamente no terreno de conflito entre desejo e dever, profano e
ritualístico. Uma expressão popular ilustra de forma significativa
a posição do regente do tempo: quem trabalha de graça é relógio
e neste caso, também o artista. E novamente, Carlos em seu
depoimento:
FIG 02 e 03:
Performance de 1
ano, Tehching Hsieh ,
detalhe da instalação
na XXX Bienal
Internacional de São
Paulo
O desenho do relógio foi depois que parei de trabalhar.
Quando eu trabalhava eu dormia pouco, mas não desenhava
ele não. Desenhava assim de brincadeira, em casa, mas
eu não chegava a operar ele não... Agora, eu desenho e
fico operando ele, depois rasgo. Desenho de novo, rasgo,
desenho (...) 3
Assim como Carlos, outros artistas trabalharam na elaboração
de seu próprio instrumento cronológico, porém resguardando
diferenças óbvias entre estes mecanismos, como a finalidade e
a postura crítica. Rivane Neuenschwander, em seu Relógios de
Flipar (2005), deturpa a função essencial do mecanismo quando
determina que sua marcação será fixa: todos os algarismos que o
compõe são o zero. A aferição inexistente do tempo congela todos
os momentos, meses e dias em uma única medição, ou melhor,
em nenhuma. Se seguirmos o dito popular, tempo é dinheiro, este
trabalho de Rivane paralisa qualquer contagem.
A conduta de submissão aos recursos de monitoramento
adequados à sociedade industrial, há muito já não condizem com
as possibilidades de flexibilização proporcionadas pelo avanço
tecnológico:
3. ASSUNÇÃO; FRANCISCO; LIMA, 2002, p. 24.
68
Embora das primeiras concentrações industriais até hoje
tenham sido inventados o telefone e o fax, os celulares e o
correio eletrônico, milhões de empregados e profissionais
continuam a se mover entre a casa e o escritório, deslocandose para onde estão as informações, em vez de receber tais
informações na própria casa ou onde mais lhes convier. A
recusa do teletrabalho por parte das organizações é um
LINDONÉIA
O Grupo Poro opera na mesma linhagem destas obras, na
medida em que propõe pequenas burlagens às relações de
poder, subordinação e gerência com a disseminação de frases
imperativas de teor subversivo, através de ocupações urbanas
como faixas e panfletos. Em uma delas, se lê: PERCA TEMPO. A
perda proposta, na verdade, tornar-se-á um ganho: de qualidade
de vida, de ócio criativo e reflexivo.
#02
Na suspensão destes padrões que constituem a realidade em
que nos encontramos, quando o artista adapta o relógio correspondente simbólico do tempo - para operar segundo seu
ritmo, evidencia-se uma subversão dos parâmetros de controle,
uma perturbação nos padrões de orientação. A “realidade” que se
estabelece moldada pelo contexto, segundo Guy Debord (1967),
permanece ainda mais questionável:
FIG 05 : A meianoite é também
o meio-dia,
Marilá Dardot,
2004.
pecado contra a reconciliação do trabalho com a vida, isto
é, contra o cumprimento da mais benéfica das revoluções
permitidas pela sociedade pós-industrial. 4
Reincidente, a fuga dos parâmetros tradicionais de quantificação
surge no relógio preguiçoso de Marilá Dardot, A meia-noite é
também o meio-dia (2004), que pode ser visto através de sua duplaface, cuja aparência e presença são comuns nos ambientes nos
quais é imprescindível se ter ciência do horário: em rodoviárias,
estações de trem e fábricas. Contudo, uma particularidade de
seu funcionamento restringe sua eficácia produtiva na qual
o andamento dos ponteiros é forjado: a cada 2 segundos nos
relógios convencionais este caminha apenas 1. Desta forma,
com seu rendimento pela metade, apenas quando os ponteiros
atingem a posição de 12hs a medição coincidirá com a do horário
oficial, condição que dá título à obra.
Este tempo dilatado, mais lento, está em completa oposição ao
tempo produtivo, veloz, lucrativo, quantificado pela razão inversa
entre produção/informação e tempo gasto.
4. DE MASI, 2001, p. 27
A materialização da ideologia provocada pelo êxito concreto
da produção econômica autonomizada, na forma do
espetáculo, praticamente confunde com a realidade social
uma ideologia que conseguiu recortar todo o real de acordo
com seu modelo .5
De maneira mais sutil, o Poro dissemina mensagens similares,
desviando o conteúdo publicitário de seu assunto principal, o
estímulo ao consumo. Questiona, com uma singela frase, toda
a engrenagem que garantiria ao consumidor a satisfação de
seus desejos: direcionar seu tempo na aquisição de divisas para
gastá-las posteriormente, não necessariamente nesta ordem. Ao
deixarmos de agir segundo o fluxo, estamos interrompendo-o ou
criando obstáculos, realizando um detournement . 6
Apesar do mofo que repousa sobre a Sociedade do Espetáculo e
o conceito de Detournement, situados na segunda metade do
século passado, “a noção de Espetáculo continua sendo debatida
5. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997 [original: 1967],
p. 137
6. Uma tradução aceitável seria “desvio”, mas o termo também carrega o sentido de “rapto” ou
“subversão”. DEBORD, 1956; INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959.
69
www.estrategiasdaarte.net.br
embebidos pela noção de desvio, pelo estabelecimento da antiarte
e do território das negações. Tímida e institucionalizada, com
a parte de sua potência amortizada e embalada para venda embora pertinente - a abordagem artística do trabalho como
anti-trabalho ou não trabalho, atualmente, carrega certa poesia
quimérica, gauche e uma aura de deslocamento temporal.
*
FIG 06: Intervenção
do coletivo Poro
nas ruas de Belo
Horizonte
como modelo para explicar algumas transformações promovidas
pelo sistema capitalista no último século”7 , bem como suporte
referencial para os ativistas contemporâneos e na formação de
um repertório poético relevante. Ao observarmos a proliferação
de movimentos ansiosos por ocupações do espaço público,
objetivando manifestações diversas, do lazer ao protesto, das
ações ativistas que se confundem com a noção de ato artístico
na semelhança evidente entre a ideologia pretérita com a do
presente, acentua-se a maneira por meio da qual essa diluição dos
limites reforça esta retomada.
O caráter político que o conceito de trabalho sustenta,
contraditoriamente pode aproximá-lo do seu oposto: baderna, ócio
e caos. E todos estes conteúdos nos remetem aos procedimentos,
ainda pulsantes, do grupo Fluxus e dos situacionistas, ambos
7. ASSIS, Erico Gonçalves. Táticas lúdico-midiáticas no ativismo político contemporâneo, 2006, p.
29. Disponível em: http://pontomidia.com.br/erico/rodape/ericoassis-dissertacao.pdf
70
Jairo dos Santos Pereira
Jairo dos Santos Pereira
Jairo dos Santos Pereira
Jairo dos Santos Pereira
Jairo dos Santos Pereira
Jairo dos Santos Pereira
LINDONÉIA
#02
CURAS MILAGROSAS
E A CANONIZAÇÃO DE
BASQUIAT
Brian Eno
Frequentemente penso na seguinte história:
Nos séculos XVIII e XIX as pessoas estavam “tomando as águas”
para uma grande variedade de doenças. A essa altura o aparato
científico da medicina já estava bem desenvolvido, e já se fazia
um registro cuidadoso das condições dos pacientes, de seus
tratamentos e de seu progresso. Essa documentação era feita por
médicos de reputação e caráter: o trabalho que realizavam em
outras áreas nos permite fazer esse tipo de afirmação. Estavam
interessados em descobrir as propriedades especiais das águas
dos spas, e saber porque as curas eram, com tanta frequência,
efetivas. Eles fracassaram nesse projeto, e a busca pelos agentes
curativos foi gradualmente abandonada, a partir da premissa
de que, qualquer que fosse o equilíbrio especial de minerais
contido nas águas, era demasiado sutil para ser detectado pelos
instrumentos da época.
Os instrumentos contemporâneos são muito mais sensíveis, mas
eles revelam (repetidamente) que não há diferença consistente
77
www.estrategiasdaarte.net.br
entre a água dos spas e outros tipos de água. É apenas água,
exibindo a variabilidade natural dessa substância. O efeito dessa
não-descoberta (o repetido fracasso na identificação de qualquer
propriedade especial na água dos spas) fez com que o interesse
na cura pelas águas fosse diminuindo, o que já estava de qualquer
maneira em curso desde o final do século XIX, quando tais curas
começaram a sair de moda. Mas uma questão ficou sem resposta:
“Será que aqueles médicos dos séculos XVIII e XIX estavam
enganados, quer em sua observação quer em seus relatos, ou será
que havia mesmo algo na água?”
Uma solução possível apareceu alguns anos atrás. Descobriuse (um resultado colateral da exploração espacial) que períodos
prolongados em condições anti-gravitacionais fazem com que o
corpo precipite metais pesados para fora de si. Metais pesados
são, em sua maioria, tóxicos. Viajantes espaciais retornam à Terra
com menos desses metais (e, portanto, com menos toxicidade) em
seus sistemas. Agora pense mais uma vez no processo de “tomar
as águas”. Lembre que essas curas eram processos de longa
duração: o comum era que as pessoas permanecessem na água
por várias horas, todos os dias, por várias semanas ou meses. Na
água, é claro, você se aproxima de uma condição anti-gravidade.
Não seria possível que “tomar as águas” fosse uma maneira de
limpar o corpo da toxicidade dos metais pesados?
Não sei se é assim que a coisa funcionava, mas o que me interessa
é que poderia ser assim. É uma resposta que passa ao largo do
dilema implícito na questão original. A implicação era a seguinte:
se os médicos estavam corretos (as pessoas estavam sendo
curadas), então devia haver algo na água. Se não havia algo na
água, então os médicos estavam errados (as pessoas não estavam,
na verdade, sendo curadas). Mas agora uma nova possibilidade
emerge: não havia de fato nada na água, mas os médicos estavam
corretos. O que aconteceu foi que um novo conceito – dependente
de uma propriedade da água que nada tem a ver com sua estrutura
mineral – foi introduzido.
78
Há uma outra história, aparentada com a primeira:
Havia um famoso xamã na Indonésia que curava as pessoas
retirando de dentro de seus corpos massas sangrentas de alguma
coisa, e que dizia que essas massas eram as causas de suas
doenças. Essas sessões de cura eram conduzidas na penumbra, e
em meio a muita cerimônia e encantamentos misteriosos. Certa
feita, o xamã foi investigado por um grupo de médicos ocidentais,
que utilizaram câmeras de infra-vermelho para revelar o que de
fato ele estava fazendo – obviamente, ele estava retirando aqueles
nódulos úmidos não do corpo dos pacientes, mas de algum lugar
em seu próprio corpo. Era um truque. O único problema era que
o truque funcionava: ele tinha uma taxa de cura muito elevada.
Podemos dizer que isso não conta porque estava tudo na mente
dos pacientes: o truque os levava a usar seu próprio poder para
curar a si mesmos. Podemos não desejar aceitar esse tipo de
cura como aceitável cientificamente porque ela demanda que
acomodemos as complexidades da mente humana na equação
médica. E mesmo que aceitemos que os pacientes não são
simplesmente pessoas com as quais são feitas coisas até que eles
melhorem, mas sim pessoas que são manobradas em um estado
mental a partir do qual a cura irá prosseguir, será que podemos
igualmente aceitar que, portanto, não importa se esse estado
mental é produzido pela mais franca picaretagem? Até que ponto
estamos dispostos a aceitar os “efeitos placebo”?
Richard Williams é um jornalista britânico que durante
muitos anos escreveu sobre música. Há uma história famosa (e
verdadeira) do início dos anos setenta sobre como ele recebeu um
disco de rótulo branco (uma prensagem de teste distribuída antes
do lançamento) com gravações novas de John Lennon e Yoko Ono.
Era uma exclusividade. Ele fez uma longa resenha do disco para
a Melody Maker. O lado 1 tinha um formato bem normal – cinco
ou seis músicas – mas o que chamou sua atenção foi o lado 2, que
consistia em um tom contínuo de uns vinte minutos de duração
– uma onda senoidal pura. Esse tipo de experimento radical era
o que se podia esperar de John e Yoko e Wiliiams, claramente
LINDONÉIA
impressionado, fez uma longa e favorável resenha do trabalho.
No final das contas, a faixa era apenas um teste de tom – Williams
não sabia que era uma prática corrente entre os engenheiros de
som produzir uma faixa de tom puro para testar a impressão do
disco e monitorar coisas como a estabilidade do toca-discos e a
qualidade do vinil.
Todas as vezes que ouvi essa história, ela vinha acompanhada de
um riso desdenhoso. O sentimento era que Williams havia sido
pego: que ele deu mostras de ser tolo e fácil de ludibriar ao tomar
um teste de tom – entre todos os sons, o mais deliberadamente
privado de arte – por um trabalho artístico real. Eu percebia
a situação de maneira um pouco diferente. De fato, era
perfeitamente possível que John e Yoko tivessem lançado uma
coisa daquelas. Mas, mais importante que isso, por que Williams
não poderia ter tido uma experiência musical com um teste de
tom? Será que o fato de que ele obviamente teve tal experiência
não nos diz algo sobre a natureza das experiências artísticas em
geral?
Creio que temos dificuldade em aceitar isso porque nos coloca
diante de um dilema muito semelhante ao que aparece na história
do “tomar as águas”: se o crítico estava correto (se ele realmente
teve uma experiência artística) então deveria haver algo no teste
de tom. Mas nós sabemos que não há nada em testes de tom; logo,
o crítico deve ter se enganado: ele obviamente não estava tendo
uma experiência artística de fato. Ele só pensou que estava tendo
uma – do mesmo jeito que os pacientes do xamã da Indonésia
sentiam que haviam melhorado.
Agora passemos a Robert Hughes, e a algo que ele escreveu sobre
Jean-Michel Basquiat. Gosto muito de Hughes – acho que ele é um
pensador articulado, claro e inteligente, e, nesse sentido, bastante
incomum no universo dos que escrevem a respeito de arte. Mas
eu também gosto de Basquiat, ao passo que Hughes não o tolera.
Em seu livro “Cultura da Reclamação” (Culture of Complaint)
Hughes discute a canonização de Basquiat: como ele foi elevado à
condição de santo após passar por uma espécie de saga das belasartes-enquanto-rock-and-roll – descoberta, drogas, aceitação,
rejeição, redescoberta, mais drogas, e uma morte precoce.
Basquiat, é claro, também se beneficiou das distinções adicionais
de ser negro e ser apresentado como alguém que veio de uma
família pobre (o que não era exatamente a verdade). Mas, no
final das contas, ele foi uma figura notável dos anos oitenta: uma
vítima – de um racismo implícito e do abuso de drogas – e um
outsider precocemente carismático. Hughes olha sem simpatia
para as pinturas de Basquiat e as considera infantis e simplistas.
O talento dele, diz Hughes, não está em sua habilidade de pintar
em si, mas em sua habilidade de projetar a si mesmo (e tornar-se
projetável, se é que essa é a palavra correta) como um evento da
mídia – como uma estrela da arte.
#02
Há várias linhas de pensamento aqui. Algumas estão mais
claramente expostas que outras. Há a crítica à própria pintura
de Basquiat, com a qual podemos concordar ou não. Eu,
pessoalmente, gosto de suas pinturas. Eu também penso,
entretanto, que “qualquer um poderia ter feito” aquilo, e que
de fato muitas outras pessoas fizeram, de um jeito ou de outro,
de maneira mais ou menos interessante, com maior ou menor
compromisso. As pinturas expressam um sentimento de época,
e alguém tinha de aparecer com algo semelhante. No mundo
comum isso não seria uma crítica: o que está sendo dito é apenas
que alguém é parte de uma cena e que, por razões de todo o tipo,
um monte de gente fica interessada nos mesmos tipos de marcas
e sons e implicações de estilo de vida mais ou menos na mesma
época. Isso é o que se espera que aconteça, não é? Claro, mas a
existência dessa osmose vernacular, tão perigosamente próxima
da “mera moda”, constitui uma ameaça à mitologia do mundo da
arte. Essa mitologia se apoia na ideia dos gênios, pessoas que são
tão diferentes de todas as demais que suas conquistas devem ser
separadas e protegidas e cercadas por um palavrório complicado.
Sempre tive muitas suspeitas com relação a isso – e Hughes
também – mas agora outra ideia me vem à cabeça.
79
www.estrategiasdaarte.net.br
Será que essa produção de mitos é o processo pelo qual os adultos
criam experiências de valor para si mesmos? Quero dizer, será
que essa elaborada dança de romantização e manufatura de
carisma, esse processo de canonização, não é a maneira que
encontramos para construir para nós mesmos experiências que
sejam suficientemente carregadas de ressonância e profundidade
e autoridade para que sejamos desafiados e transformados por
elas? Será que nós somos como os pacientes do xamã, cooperando
com o artista ao criar uma atmosfera poderosa a ponto de permitir
que um exercício de prestidigitação faça a mágica acontecer para
nós? E será que ainda poderemos nos beneficiar se soubermos
como a coisa funciona? Será que temos de ser “crentes” ao invés
de “céticos” para alcançar o tipo correto de experiência? Será que
Richard Williams teria utilizado o teste de tom se ele soubesse
do que se tratava? E, afinal de contas, qual é exatamente o uso da
experiência, de qualquer experiência?
80
Transformar a nós mesmos. Certamente é algo assim que
estamos buscando quando observamos pinturas e assistimos
filmes e ouvimos música. Isso soa mais new age do que realmente
é. Transformar a nós mesmos é um processo que inclui atividades
como ligar o rádio quando estamos entediados – com a intenção
de mudar, e deixar de ser alguém que está entediado para se
transformar em alguém que está menos entediado, ou entediado
de uma maneira diferente. Mas é claro que preferimos pensar
que a arte que veneramos faz mais que apenas nos alimentar
de sensações que nos afastam da miséria de nossa existência
cotidiana. (E por que iríamos preferir isso? O que está errado
com a ideia oposta? Lembro de alguém dizendo que a criatividade
humana é uma tentativa desesperada de ocupar o breve espaço, ou
hiato sem fim, entre nascimento e morte.) Preferimos pensar que
a arte nos refaz de alguma maneira, nos torna mais profundos,
nos faz pessoas “melhores”. Certamente esse é o pensamento
que nunca é explicitado por trás do conceito de espaços públicos
subsidiados para a arte – não damos o mesmo tipo de endosso
cultural de alto nível para espaços públicos para a prática de skate,
ou discotecas públicas, ou zonas boêmias.
Há ainda a crítica implícita na sugestão de que o único real talento
de Basquiat era para a criação de carisma e a autopromoção.
Cada uma dessas críticas é baseada em premissas que não são
mencionadas: que Basquiat estava primariamente operando
como um pintor no sentido que Hughes dá a isso; que o mundo
da arte não deveria conspirar para criar “gênios” para si mesmo;
e que a autocriação é uma tarefa que não cabe no terreno dos
exercícios artísticos.
Suponha algumas coisas. Pare de pensar nos trabalhos de arte
como objetos, e comece a pensar neles como (para usar uma
formulação de Roy Ascott) gatilhos para experiências. Isso
resolve uma série de problemas: não temos mais que discutir se
fotografias são arte, ou se performances são arte, ou se os tijolos
de Carl Andre, a urina de Andres Serrano ou a canção Long Tall
Sally de Little Richard são arte porque dizemos “Arte é algo que
acontece, um processo, não uma qualidade, e todo tipo de coisa
pode fazer a arte acontecer”.
Agora suponha que o que torna um trabalho de arte um trabalho
“bom” para você não é algo que já está “dentro” do trabalho, mas
algo que acontece em você – assim, o valor de um trabalho de arte
está na extensão em que ele é capaz de ajudar você a ter o tipo
de experiência que você chama de arte. Dessa maneira é possível,
no contexto das expectativas apropriadas, que um teste de tom
se torne uma experiência musical. Também é possível que suas
experiências sejam muito diferentes das minhas – o que não nos
diz nada a respeito do teste de tom, mas nos diz tudo a respeito
de nossas percepções individuais do teste, nossas expectativas e
predisposições culturais distintas. Poderíamos então concordar
que não há nada absoluto a respeito do valor ou não-valor estético
de um teste de tom, e que não temos nem que considerar a questão
do valor estético buscando alcançar uma resposta única: algo pode
ter um valor para você e outro para mim, e valores diferentes para
nós dois num outro momento. O valor pode mudar para cada um
de nós. E o que é mais interessante é que também podemos dizer
que não há nada de absoluto a respeito do valor estético de um
LINDONÉIA
Rembrandt ou de um Mozart ou de um Basquiat.
#02
Suponha que você redescreva o trabalho do “artista” como sendo
o de “uma pessoa que cria situações nas quais você pode ter
experiências artísticas”. A partir daí você pode aceitar a noção de
que um artista é alguém que lhe convence, de um jeito ou ou de
outro, incluindo a mais cara-de-pau das falcatruas, que o teste de
tom que você vai ouvir é de fato um trabalho musical.
Suponha agora que essas estratégias utilizadas pelos artistas
incluam a criação de “eventos midiáticos”, redes de acontecimentos
e rumores que façam você acreditar que está na presença de
algo especial – o evento em si mesmo é modesto, mas a energia
circulando ao redor do evento é suficientemente poderosa para
que você seja infectado com entusiasmo, e se divirta muito. Será
que isso é ir longe demais?
Suponha que você possa pensar em si mesmo como o evento
midiático, como o próprio disparador da experiência, de tal
forma que qualquer coisa para a qual você simplesmente dirija
sua atenção seja misteriosamente transmutada em arte.
E suponha que as pessoas desejem isso, e desejem acreditar
nisso, e desejem ainda fazer com que outras pessoas creiam
nisso. Quem é então o artista? Você ou eles? Quem está fazendo
o paciente se sentir melhor? O xamã ou o paciente? Será que o
valor da experiência artística poderá ser encontrado na falta de
gravidade, na suspensão da descrença, e na entrega flutuante que
o trabalho produz – em vez de em suas propriedades minerais
objetivas?
(1993/4)
Texto retirado de A year with swollen appendices (London: Faber
and Faber, 1996, p.364-369). Título original: Miraculous cures and the
canonization of Basquiat
Tradução: Antonio Marcos Pereira.
81
Thislandyourland, Área a construir,2012.
LINDONÉIA
#02
Thislandyourland, Área a construir, 2012.
83
Thislandyourland, Área a construir, 2012.
LINDONÉIA
#02
Trabalhar em Arte
Contemporânea*
Curatoria Forense
Las penas y las vaquitas,
se van por la misma senda
El arriero
Atahualpa Yupanqui
Estávamos frente aos nossos computadores, a televisão estava
acesa num canal de notícias por assinatura. Nós gostamos de
manter acesa essa caixa que não é tão burra assim. De súbito
escutamos que “.... dos 10.000 artistas que temos na Argentina só
200 conseguem viver da sua arte”. Tratava-se de uma entrevista, no
Canal por assinatura C5N, a uma representante da Associação
Argentina de Galerias de Arte (AGAA) na qual se falava sobre o
auge do mercado na Argentina no ano de 2012.
*Título original: Trabajar en Arte Contemporáneo. Tradução Adolfo Cifuentes.
Desconhecemos a partir de que fonte era possível fazer essa
afirmação, ou se ela estava baseada em pesquisas com pretensões
mais ou menos científicas, se tinha existido algum tipo de método
ou se se tratava de uma simples resposta a uma pergunta aberta.
Finalmente, pouco importa, por que para nós esse número, esteja
ou não baseado nos fatos, já seria suficiente como fazendo parte
85
www.estrategiasdaarte.net.br
de um diagnóstico que não seria válido só para a Argentina, mas
também para outros países da região.
A frase foi tão contundente que ficamos pensando nela. Se esta
associação que reúne 32 galerias, declara que só 2% do total
estimado de produtores artísticos vivos, morando num país de 40
milhões de habitantes pode viver da sua produção, de que vive o
restante 98%?
Ficava claro que a participação dentro do sistema mercantil da
arte é restritiva, não inclusiva, flutuante, segundo as tendências
e modas, e altamente competitiva. Ficava claro também que
a participação como artista dentro do fluxo do intercâmbio
monetário de bens simbólicos (convertidos em mercadorias)
não é a única forma de gerar recursos econômicos para garantir
a reprodução material da vida. Ainda mais: sobretudo, ficava
claro que o mercado da arte não é uma condenação escrita, ou
uma promessa que tenha que ser inevitavelmente cumprida.
As pessoas podem ainda viver (ou subsistir) de outras fontes de
financiamento: bolsas ou subsídios públicos ou privados, circuitos
de festivais e/ou residências artísticas, estímulos, prêmios,
concursos, salões, projetos de gestão autônoma, etc. Estas
alternativas ao circuito tradicional das galerias constituem outros
modelos de mercado que funcionam sob lógicas diferenciadas,
em função das regras particulares de cada tipo de jogo e elas não
necessariamente se inscrevem nos moldes do capitalismo, seja
este selvagem ou temperado.
O que queremos dizer é que não importa como o artista
contemporâneo sobrevive, o importante é que consiga fazê-lo
através da especificidade das suas competências. Ou seja: fazendo
arte.
86
Fazer arte não é outra coisa que participar como produtor de um
processo indissoluvelmente material e social, enquanto que tanto
a criação quanto a recepção (da arte contemporânea) pertencem
ao processo social geral e não acontecem fora desse sistema.
Eles são indissoluvelmente materiais, também, porque criação
e recepção, em termos concretos, estão conectadas a processos
materiais no contexto dos diversos sistemas sociais de uso e
transformação dos materiais, e usam para isso meios materiais1.
Isto quer dizer que ser artista é participar de um sistema de
relações sociais de produção através de práticas especificamente
significantes2 . Ou podemos dizer ainda de um outro modo:
implica ao artista como trabalhador.
Entretanto, existe uma resistência em reconhecer que o artista é
um agente econômico (alem de simbólico) que estabelece relações
de intercâmbio (troca) do tipo laboral/profissional com outros
agentes e instituições do campo da arte.
A recusa poderia se dar estritamente em termos teóricos ou
conceituais, mas -e desde uma posição materialista - teoria e
práxis são falas articuladas e indivisíveis.
Por isso quem sustenta que as práticas artísticas contemporâneas
são uma esfera separada dos processos produtivos (de trabalho)
gerais estão reproduzindo a ideologia da arte (moderna)
autônoma burguesa por que
El burgués, que en su praxis vital se ve reducido a una
función parcial (los asuntos de la racionalidad de los fines),
en el arte se experimenta a sí mismo como «hombre», y aquí
puede desplegar todas sus disposiciones, con la condición
de que este ámbito quede rigurosamente separado de la
praxis vital3.
É dizer que, frente à alienação produzida pelo império da razão
instrumental era requisitada uma manobra de ficcionalização que
1. WILLIAMS, Raymond: Cultura. Sociología de la comunicación y del arte. Barcelona: Paidós,
1981.
2. Práticas que não se reduzem à mera generalização de objetos susceptíveis de mercado.
3. BÜRGER, Peter. Teoría de la vanguardia. Barcelona: Península, 1987. p. 103.
LINDONÉIA
dividisse as práticas e destrezas úteis de outras que não as fossem
porque presumia a imaginação, a criatividade e a expressão
subjetiva ligadas ao exercício da liberdade.
O processo é paradoxal. A dessacralização progressiva da arte
(sua secularização) está vinculada, parafraseando a Pierre
Bourdieu4 , a sua emancipação da supervisão social e ideológica,
do apadrinhamento econômico e dos encargos éticos e estéticos
da cúria e da monarquia. Em outras palavras: suas práticas e
tematizações deixam de estar regidas por interesses institucionais
externos. É assim que a arte fica liberada para experimentar em
e através de sua própria linguagem, porque redimida da função
de representação pode fazer o que lhe agrade. Esta conquista
implica também a emergência de um campo autônomo que
produza para si suas próprias regras de jogo, sua especificidade
na divisão do trabalho, o seu status como instituição legitimante
e legitimadora, sua própria ilusão e suas disputas materiais
e simbólicas particulares. Mas o marco econômico-social do
aparecimento da arte autônoma é o capitalismo industrial do
século XIX. É por isso que o correlato ideológico imediato da
nova esfera seja a necessidade de separar a criação simbólica do
trabalho obreiro da manufatura.
Esta noção de artista requer dividir o trabalho mercantil articulado
pela fórmula valor de uso / valor de troca. Que o obriga a se
abstrair das forças produtivas e da alienação social associada ao
operário para conceber conceitualmente um espaço de liberdade:
…las distinciones históricas entre diversos tipos de
habilidades humanas y finalidades básicas variables de su
uso está evidentemente relacionado con los cambios en la
división concreta del trabajo y modificaciones fundamentales
en las definiciones prácticas de los propósitos del ejercicio
de la destreza5.
4.. BOURDIEU, Pierre. Creencia artística y bienes simbólicos. Elementos para una sociología de la
cultura. Buenos Aires – Córdoba: Aurelia*Rivera, 2003.
5. WILLIAMS, Raymond. Palabras Clave. Un vocabulario de la cultura y la sociedad. Buenos Aires:
Nueva Visión, 2000. p. 42.
A destreza do artista, a habilidade criadora (um tanto demiúrgica)
é a saída abstrata para defender o “eu” frente às novas massas
obreiras. A ênfase posta na personalidade singular é o que
possibilita essas defesas, tomando como base o ideário romântico
e seu culto à paixão6.
#02
É assim como se constrói a noção paroquiana – teológica - de arte
que reclama para si valores de uma ritualidade pagã que gira em
torno da genialidade, originalidade, autenticidade y perenidade
transcendental. A um “eu” criador único e irrepetível.
Isto – que pertence a um contexto histórico específico - segue
operando no campo artístico contemporâneo porque é preciso
reproduzir dito sistema de crenças já que
El productor del valor de la obra de arte no es el artista sino
el campo de producción como universo de creencia que
produce el valor de la obra de arte como fetiche al producir la
creencia en el poder creador del artista7.
Acreditar – e fazer acreditar - nessa magia é parte de uma estratégia
de supervivência do campo da arte e, mais especificamente, da
“rede” institucional que se beneficia e financia através desta fé do
carvoeiro.
Nada mais econômica e simbolicamente eficiente que reproduzir
valores sacrossantos que colocam ao produtor de arte (como
aquele que possibilita a existência do campo) no espaço ilusório do
espírito transformador afastado das minúcias da cotidianidade e
das relações sociais materiais.
A eficácia radica justamente na confusão: desconhecer a origem
histórica / política / ideológica da separação da arte da esfera
do trabalho só beneficia a um setor do campo (geralmente aquele
6. LIPOVETSKY, Gilles. Modernismo y Posmodernismo. En: La era del vacío. Ensayos sobre el
individualismo contemporáneo. Barcelona: Anagrama, 1995.
7. BOURDIEU, 2005, p.339.
87
www.estrategiasdaarte.net.br
que possui os recursos) e empobrece e desabilita (financeira e
argumentativamente) aos outros.
Reproduzir a crença da qualidade inefável e quase mística da
arte e dos artistas é o que possibilita que não nos espantemos
frente ao feito de que a maioria deles não pode reproduzir
materialmente sua existência a partir de sua produção simbólica.
Por que pediriam uma justa remuneração por seu trabalho se este
pertence à ordem do excepcional?
É preciso romper o feitiço que precariza o artista e que nos anestesia
frente a notas como as da C5N. É urgente transparecer aqueles
interesses que subjazem na reprodução da crença do gênio porque
o trabalho e a condição do trabalhador não são propriedades do
capitalismo nem implicam necessariamente converter todos
os esforços em mercadoria. Viver dignamente e receber uma
retribuição justa pelo trabalho que se realiza é uma reivindicação
necessária.
O dinheiro não suja os desejos, nem as pretensões críticas, nem os
aportes a compreender como a sociedade e a cultura funcionam.
Muitas vezes o dinheiro é uma intermediação que nos distancia
favoravelmente, que desarticula o exercício direto da dominação
de uns sobre outros.
Postular e defender o direito pelo reconhecimento remunerado
do trabalho do artista não é outra coisa mais que reconhecer que
dentro do sistema de arte contemporâneo o produtor de arte
estabelece vínculos profissionais de diversos tipos com outros
agentes e instituições para a produção, circulação, difusão e
comercialização da arte. E que estas relações necessitam ser
explícitas e explicitadas para que o funcionamento do campo se
dê no marco de boas práticas profissionais com o objetivo de dar
conta que em...
88
El ‘rechazo’ de lo ‘comercial’ que es, de hecho, una denegación
colectiva de los intereses y de los beneficios comerciales,
las conductas más ‘anti-económicas’, las más visiblemente
‘desinteresadas’, aquellas incluso que, en un universo
“económico” ordinario serían las más despiadadamente
condenadas, encierran una forma de racionalidad
económica (...) y de ningún modo excluyen a sus autores
de los beneficios, aún económicos, prometidos a los que se
conforman a la ley del universo.” 8
Isso supõe reconhecer que um grande número de artistas que não
vivem de arte se encontram no limite já quase daquela obsolescência
da arte pela arte porque sua predisposição ideológica (produto
histórico do século XIX) os torna incapazes de administrar sua
obra (ou de delegar sua gestão) e com isso subvencionam através
de suas práticas e objetos a institucionalidade (pública e/ou
privada). Ao se negar a cobrar por seu trabalho acabam solitários
a espera de benefícios intangíveis do prestigio e do aplauso.
Acabam nesses 98% do universo que evidencia que a concentração
de capital não é, nem será, distribuída em tanto e em quanto não
seja exigida desde suas bases.
A reivindicação é uma forma de desconstruir as armadilhas
da freguesia que pretende que a arte só tenha capacidade
transformadora (em tanto momento afirmativo) no plano das
práticas estéticas e não nas relações sociais de produção.
Aqui nos encontramos.
Jorge Sepúlveda T. e Ilze Petroni
Curatoria Forense
www.curatoriaforense.net
8. BOURDIEU, 2003, pp. 115-156. As marcas em negrito são nossas.
LINDONÉIA
#02
IMAGENS DIGITAIS
COMO DISPOSITIVOS DE
MEDIAÇÃO*
Cayo Honorato
Aos mediadores que se fazem contrapúblicos
A presença crescente de imagens digitais nos museus e espaços
de exposição já foi percebida por Boris Groys como um fenômeno
contraditório, por confinar entre paredes o que justamente
poderia ultrapassá-las, circulando e se multiplicando através dos
meios de comunicação contemporâneos, sem nenhum controle
curatorial ou museográfico.1 Entretanto, uma instância “original”
dessas imagens, referida aos dispositivos materiais e simbólicos
de sua exibição, tem sido utilizada na mediação de acervos
virtuais, principalmente, como um recurso de aproximação
desses acervos ao público jovem.
*A pesquisa para a realização deste texto, feito a convite da comissão organizadora do 11o
Encontro Internacional de Arte e Tecnologia na UnB, contou com o apoio do Programa
Institucional de Apoio à Pesquisa da UEMG, em projeto com vigência de abril a dezembro de
2012, no qual a aluna Pompéa Auter Tavares participou ativamente como bolsista de iniciação
científica. Todas as informações usadas neste texto se encontravam publicadas, no momento em
que ele foi produzido. Pela colaboração, agradeço a Andrei Thomaz e Viviane Pinto.
É o que parece praticar o Museu das Minas e do Metal, em Belo
Horizonte. Com o intuito de contar a história econômica, social
e cultural de Minas Gerais, através da história da atividade
1. GROYS, Boris. From image to image file – and back. In: ___. Art power. Cambridge; London: MIT
Press, 2008, pp. 83-91.
89
www.estrategiasdaarte.net.br
mineradora no estado, como algo que se estende “do ciclo do ouro
à indústria dos microprocessadores”; o MMM se apresenta como
um “museu de imagem”, um “museu de atrações”, um “museu
contemporâneo”. Com quase 6 mil m2 de área distribuídos em 3
pavimentos, 18 salas de exposição e cerca de 50 atrações “lúdicas e
tecnológicas em 2D e 3D”, o museu mostra seu acervo quase todo
virtual por meio de “imagens cenográficas, efeitos holográficos
(miragens) e atrações interativas”; como às vezes se anuncia: de
“muita interatividade”.
Para tanto, o projeto museográfico selecionou 11 minas históricas
no estado de Minas Gerais, que abarcam a exploração de diferentes
minerais: água, alumínio, calcário, diamante, ferro, grafita,
manganês, nióbio, ouro, pedras coradas e zinco. Cada mina ou
mineral é apresentado por meio de uma vídeo-instalação mais ou
menos interativa; geralmente, um ou mais vídeos sincronizados
são acionados por um toque na tela, um apertar de botão ou
levantar de uma alça. Além disso, para que essas histórias saiam
dos livros e “ganhem vida”, cada mina é apresentada por uma
personagem fictícia ou histórica, com relevância para a história
de Minas. Desse modo,
O Imperador Dom Pedro II [ouro] desce em um elevador
virtual até as profundezas da terra, revelando as raízes do
Brasil; Dona Beja [?] conta a história da fonte que leva o seu
nome; o Homem de Lata [zinco] tira uma lição filosófica
e moral de improváveis experimentos químicos, e um
Bandeirante [calcário] descreve o descobrimento de pedras
preciosas e o desbravamento das terras do interior. 2
Ao menos é o que mais se divulga e isso não compreende todas
as atrações. Em todo caso, a tais vídeo-instalações e personagens
animados, credita-se a capacidade de oferecerem experiências
“altamente imersivas”, supostamente marcadas por uma riqueza
de sensações e memórias; em outros termos, acredita-se que uma
ênfase na sensorialidade e na percepção seja capaz de potencializar
90
2. CCPL. Museu das Minas e do Metal. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.
br/museus-e-espacos/museu-das-minas-e-do-metal/museu-das-minas>, acesso em 09/09/12.
a apreensão daqueles conteúdos históricos. Todavia, de que modo
esses dispositivos concebem seu público, particularmente, o
público jovem ao qual se endereça? Quais modos de subjetivação
eles produzem, permitem ou estimulam? Como se mostram
atentos a interações eventualmente divergentes?
De fato, apesar de estarem no museu, isto é, em um espaço
caracteristicamente exclusivo e apartado do cotidiano, essas
imagens têm algo de amplamente reconhecível: elas imitam
a linguagem da publicidade, dos programas de TV e dos vídeogames; como se atendessem às reivindicações dos educadores
críticos, de que tais espaços monumentais e sacralizados fossem
permeados por referências de baixa procedência, ou ainda, por
referências mais próximas ao repertório cultural dos visitantes
em geral. Porém, considerando-se que essas imagens também
simulam algo da convergência digital (integração das mídias,
mobilidade, desterritorialização), interessadas em algum
momento na excitação que isso pudesse provocar, na verdade, elas
se encontram instaladas no museu de um modo quase definitivo,
estabilizadas no espaço e no tempo, impossibilitadas até mesmo
de se contaminarem entre si. Dessa maneira, é possível prestar ao
projeto museográfico em questão uma autoria: o poder de haver
transformado o invisível em um visível a ser reverenciado3.
Como se vê, em tais casos, não terá sido suficiente trocar “arte”
(elitista) por “imagem” (democrática). Isso porque tais imagens
de nenhum modo propiciam uma interação real. Certamente,
elas não neutralizam por completo a ocorrência de processos
cognitivos por parte dos visitantes, tais como a associação entre
ideias presentes e ideias ausentes, a formação de hipóteses ou a
solução de problemas; o que na verdade nenhuma imagem teria a
capacidade de fazer. Mas elas não são capazes de objetivar, nem
mesmo de favorecer tais processos. No máximo, diante delas,
“[...] somos convidados a seguir associações pré-programadas,
que existem objetivamente. Em suma, [...] somos convidados a
confundir a estrutura mental de outra pessoa com a nossa”; o que
3. Boris Groys. From image to image file – and back, p. 85.
LINDONÉIA
para Lev Manovich é “[...] um tipo de identificação apropriado à
era informacional do trabalho cognitivo”4.
Contudo, em um caso específico, essa “estrutura mental” é
drasticamente lobotomizada. Uma daquelas atrações tem como
personagem um apresentador de TV animado, que dirige ao
visitante o seguinte convite: “Quer se tornar um milionário
FIG. 01. Arquivo
pessoal
hoje? É aqui mesmo!” Aos que se dispõem a ativá-la, com um
simples toque na tela, o apresentador prossegue, no que logo se
reconhece como um concurso de perguntas: “Valendo 100 mil
diamantes [algo assim], na sua opinião, a grafita é...” As opções
aparecem na tela: a) um metal, b) um vegetal, c) um mineral. O
4. Lev Manovich. On totalitarian interactivity. [1996] Disponível em: <http://www.manovich.net/
TEXT/totalitarian.html>, acesso em 09/09/12.
apresentador espera pela resposta, que aparentemente pode ser
escrita na tela com uma touch pen. Por alguns segundos, não
mais se ouve sua voz empostada. Suas pálpebras baixas sugerem
certo entorpecimento. Pode-se imaginar que estamos à beira da
interação, mas não.
#02
A lobotomia, no caso, não diz respeito ao caráter elementar da
pergunta, que serviria à introdução de uma taxonomia, por
exemplo; uma ciência eventualmente análoga à atividade dos
museus. As perguntas que vêm em seguida podem até ser mais
exigentes. É que, ao primeiro toque da caneta na tela, a resposta
certa se completa automaticamente. Portanto, mesmo que se
queira errar ou trapacear, somente será possível acertar; o que
talvez não se descubra à primeira tentativa. E para cada acerto
“seu”, é o apresentador quem recebe uma caudalosa chuva de
diamantes; uma ironia exemplar. Como se sabe, a acumulação
de pedras e metais preciosos, enquanto produção de riqueza
em abstrato, não tem limites.5 Tudo isso nos faz entender que
não haverá prêmio no final, que a possibilidade irrealizável de
se tornar um milionário faz parte do jogo, que isso não passa de
mentira.
Em uma segunda visita ao museu, enquanto anotava as frases que
o apresentador nos dirige, antes de se ativar o questionário, ouvi
de uma monitora: “Se quiser ouvir outra pergunta, é preciso tocar
na tela”. A situação me parece emblemática do tipo de “interação”
que se tem aí, sinalizando a prioridade desses dispositivos de
mediação auto-serviço; embora ela não faça justiça aos saberes
que esses “monitores” (assim o museu os denomina) elaboram,
por vezes de maneira divergente, nas fronteiras entre discursos
institucionais tão ambíguos.
Um recurso à memória: Quando era criança, no final dos
5. JAPPE, Anselm. A mineração e a busca do ilimitado. Disponível em: <http://www.
canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/archives/005031.html>, acesso em 09/09/12. [texto
produzido em colaboração com a artista Mabe Bethônico, para sua exposição Prática Desmembrada
no CCSP, de agosto a outubro de 2012.]
91
www.estrategiasdaarte.net.br
anos 1980, antes de conhecer um vídeo-game, conheci na
casa de um vizinho um MSX. Trata-se de um dos primeiros
microcomputadores pessoais a ser comercializado no Brasil. Mas
ele não me parecia mais do que um vídeo-game, exceto por um
programa: um chatterbot (um “robô que conversa”, provavelmente
um Eliza)6, que me fazia perguntas e processava minhas
respostas, como se entabulasse uma sessão psicoterapêutica. Em
geral, tais programas devolvem perguntas prontas ou genéricas
que, no entanto, podem parecer perguntas humanas, até que sua
falta de entendimento se torne evidente. Em todo caso, eu tive
medo da sua “perspicácia”, sobretudo, de que ele adivinhasse
meus segredos de criança.
Inaugurado em março de 2010 como política cultural do Governo
de Minas Gerais, o Circuito Cultural Praça da Liberdade (CCPL)
vem se afirmando como o maior conjunto integrado de cultura
do Brasil. Atualmente, o projeto reúne 08 museus ou espaços
culturais já abertos à visitação, além de outros 05 em processo
de implantação, que se propõem oferecer: arte, cultura, ciência
e tecnologia, entre outros recursos; em vista da educação e do
entretenimento do visitante, do cidadão, da população de Belo
Horizonte, do povo mineiro, de todas as pessoas. Assim o Circuito
define sua missão: “ampliar o capital humano através da cultura,
informação e educação, garantindo espaço para a inovação e
divulgação da cultura”8.
Isto não aconteceu, mas eu poderia ter perguntado àquela
monitora o que agora pergunto a Eliza: — E se eu não tocar na
tela? — Você acha que não tocar na tela é algo que se espera? —
Não, penso exatamente que o esperado é que eu toque na tela. —
Então por que não? — Eu tentei isso antes, mas me pareceu que
eu estava sendo enganado. — E você estava de fato? — Eu estaria
se tivesse acreditado naquilo. — Mas quais são as chances de que
acreditasse naquilo? — Nenhuma. — Não estou certa de que o
entendo completamente.7
A par de que tal vocabulário denote uma absorção da cultura
empresarial por esta política cultural9, a visão “ampliada” que o
Circuito tem de seus destinatários, com base em uma proposta de
inclusão social que enfatiza a interatividade [sic], de algum modo
pode ser explicada: além de uma suposta fonte de conhecimento
para o público escolar, espera-se que ele seja um “pólo de atração
de investimentos, de turismo e de criação de empregos e de
renda”10; incluindo-se aí o que possa atrair os “exigentes turistas
internacionais” que virão para a Copa do Mundo de 201411. De
fato, o Circuito reitera um papel não inteiramente novo do
governo na promoção da cultura: cortejar o mundo corporativo,
captar recursos, gastar com a gestão cultural (quase R$ 4 milhões
repassados a uma OSCIP, para que implemente um programa
de trabalho com duração de um ano)12, a fim de reduzir o gasto
direto com a cultura, bem como os protestos em contrário.
Mais do que comparar essas diferentes tecnologias: de um lado,
um algoritmo primitivo escrito nos anos 1960 e, de outro, a
expressão de uma “concepção absolutamente vanguardista em
ponto de museus”; parece-me importante, se possível, comparar
as experiências que uma e outra permitiram. Em todo caso, a
pobreza avarenta de experiências daquelas atrações me parece
ostentosa, ainda que suas imagens, porque elas afinal não existem
em si mesmas, possam nos dar o que discutir; quanto a isso, elas
certamente nos serão generosas.
***
92
6. Natural Language Processing. Eliza. Disponível em: <http://nlp-addiction.com/eliza/>, acesso em
09/09/12.
7. Esse diálogo, com tradução minha, foi produzido em 09/09/12 em interação com o programa
Eliza, mencionado na nota anterior.
8. CCPL. Termo de Parceria. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/
parceiros/termo-de-parceria>, acesso em 06/09/12. [PDF] grifo meu.
9. Por certo, o conceito de inovação, antes de estar associado ao mundo corporativo, pode ser
associado às vanguardas artísticas, mas justamente isso terá fornecido àquele mundo “um
instrumento valioso de projeção de uma imagem de si próprio como uma força progressista liberal”.
(Chin-Tao Wu, 2006, p. 148.)
10. CCPL. Perguntas frequentes. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/
component/content/article/28-topo/86-faq>, acesso em 07/09/12.
11. A expressão aparece atribuída ao então secretário de Estado de Turismo, Agostinho Patrus Filho,
quando em visita ao CCPL, em 30/06/11, segundo matéria publicada pela Imprensa Oficial. Cf.
Imprensa Oficial. Disponível em: <http://www.iof.mg.gov.br/index.php?/destaques/destaque/Estadoquer-incentivar-visitas-ao-Circuito-Praca-da-Liberdade.html>, acesso em 06/09/12.
12. CCPL. Termo de Parceria. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/
parceiros/termo-de-parceria>, acesso em 06/09/12. [PDF]
LINDONÉIA
Fruto de parcerias com a iniciativa privada, que no Brasil, nos
últimos 20 anos, tornaram-se uma condição para a economia
da produção cultural, o Circuito parece, no entanto, conferir
uma notoriedade inaudita ao papel das empresas na sociedade;
o que se pode pensar até mesmo em comparação ao legado dos
governos Reagan e Thatcher, que nos anos 1980 transformaram
as instituições culturais em agências de relações públicas, para
a melhoria da imagem corporativa13. Em alguns casos, como no
MMM e no futuro Museu do Automóvel, em parceria com a Fiat,
o “patrimônio histórico e cultural” que se pretende preservar e
valorizar se confunde com o próprio campo de negócios dessas
empresas, resultando no que se poderia chamar de “museus em
causa própria”. Em outros, como no Memorial Minas Gerais Vale,
o nome do espaço (ao qual se agrega o nome da empresa como
um verbo conjugado, significando “o que tem valor”) confundese com o próprio nome da empresa (que originalmente se refere
a um substantivo, a uma formação geográfica), sugerindo uma
indistinção entre suas finalidades; como se a memória do estado
tivesse valor, na medida em passa pela atuação da empresa.
Em tais casos, não se trata de simplesmente exibir a marca do
patrocinador junto ao museu, nem de alocar espaços do museu
para a exibição dos produtos da empresa; isto é, não mais se trata
do velho modelo de patrocínio que se costuma praticar no Brasil.
A EBX, uma holding que desenvolve negócios em “mineração,
energia, logística, petróleo e gás, real estate, fontes renováveis e
entretenimento”14, não faz um acordo com uma instituição cultural,
conforme o esquema “os agentes culturais ganham dinheiro,
a empresa ganha publicidade”. Isso porque, de certo modo, ela
mesma é essa instituição e os agentes são todos seus funcionários,
contratados ou estagiários. Na medida em que são providenciados
pela empresa15, os próprios conteúdos do MMM podem ser lidos
13. WU, Chin-Tao. Privatização da cultura: A intervenção corporativa nas artes desde os anos 80;
tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2006. pp. 145ss.
14. CCPL. Parceiros. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/component/
k2/item/76-parceiros#>, acesso em 08/09/12. grifo meu.
15. Isso só pode ser afirmado, sob a condição de que todos os profissionais envolvidos na concepção
e realização do MMM, “alguns dos melhores profissionais do mercado”, são funcionários ou
contratados da EBX. De fato, a lista desses profissionais abrange arquitetos, designers, montadores,
museógrafos, pesquisadores, professores universitários, restauradores etc.; o que certamente indicia
uma preocupação em legitimar os conteúdos do museu. Cf. Magnetoscópio. Projetos. Disponível em:
como propaganda, seja do campo de negócios dessa empresa, da
sua importância não só econômica, mas também sócio-cultural
[sic]; seja de seus discursos, invariavelmente autopromocionais,
sobre questões nas quais ela se vê “criticamente” implicada:
trabalho, território, história, meio ambiente etc. Mais do que
isso, (um exemplo constrangedor até de ser mencionado) o
MMM exibe conteúdos ligados à própria pessoa do presidente
da EBX, mantendo uma sala em homenagem a seu pai, cuja
trajetória estaria marcada (é o que se lê em um totem nesta sala)
por “incontestáveis contribuições para a construção de um Brasil
melhor”16.
#02
Certamente, não se poderia contestar que o MMM, nesse caso, não
observa o princípio da impessoalidade na aplicação de recursos
públicos. Afinal, ele parece mantido por recursos privados; seu
único atenuante por enquanto. A EBX divulga ter investido na
implantação e manutenção do museu cerca de R$ 30 milhões, sem
nenhuma contrapartida fiscal;17 uma fração ínfima dos US$ 15,7
bilhões investidos pela empresa entre 2011 e 2012,18 e menor ainda
se comparada ao patrimônio de seu presidente, avaliado em US$
30 bilhões19. Porém, do mesmo modo como não mais se trata de
patrocínio, tampouco se trata de um retorno ao mais velho ainda
modelo do mecenato, da pura doação. Embora possa parecer uma
bagatela (R$ 30 milhões equivalem, aproximadamente, a meio
milésimo de US$ 30 bilhões), o negócio deve ter sua importância,
a ponto de justificar a transferência do Rio de Janeiro para Belo
<http://www.magnetoscopio.com.br/mmm.htm>, acesso em 07/09/11.
16.. Curiosamente, essa sala não aparece na apresentação do MMM no website do Circuito. Cf.
CCPL. Museu das Minas e do Metal. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.
br/museus-e-espacos/museu-das-minas-e-do-metal/museu-das-minas>, acesso em 09/09/12.
17. Esse mesmo valor aparece tanto no balanço de 1 ano da atuação do MMM, quanto no de 2
anos, segundo diferentes fontes. Cf. CCPL. Museu das Minas e do Metal (MMM) comemora um ano
de funcionamento com visitação expressiva e ações educativas marcantes. [27/06/11] Disponível
em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/component/k2/item/164-museu-das-minas-edo-metal-mmm-comemora-um-ano-de-funcionamento-com-visita%C3%A7%C3%A3o-expressivae-a%C3%A7%C3%B5es-educativas-marcantes>, acesso em 07/09/11; Jornal Hoje em Dia.
Museu das Minas e do Metal atrai 120 mil em dois anos. [31/07/11] Disponível em: <http://www.
hojeemdia.com.br/noticias/economia-e-negocios/museu-das-minas-e-do-metal-atrai-120-mil-emdois-anos-1.16495>, acesso em 31/07/12.
18. EBX. EBX em números. Disponível em: <http://www.ebx.com.br/pt-br/grupo-ebx/Paginas/
EBXNumeros.aspx>, acesso em 08/09/12.
19. Forbes. Lists. World’s Billionaires. Disponível em: <http://www.forbes.com/profile/eikebatista/>, acesso em 08/07/12.
93
www.estrategiasdaarte.net.br
Horizonte, da diretora de projetos sociais e culturais da empresa,
que agora dirige a associação mantenedora do museu. Como se
sabe, o investimento costuma cobrar retorno.
Talvez seja esta a “inovação cultural” do Circuito: ele possibilita
uma nova modalidade de parceria público-privado, que não só rende
às empresas uma imagem pública mais consciente, socialmente
responsável [sic]; mas que parece posicioná-las na conjunção
de interesses públicos, licenciando-as a naturalizar e perpetuar
seu patrimônio ideológico privado20, neste caso, com base no
prestígio social de que ainda gozam os museus21. Conforme
seu balanço de um ano de funcionamento, o MMM “mostrou ao
público que veio pra ficar”22; uma pretensão que possivelmente
seria avalizada pelo Governo do Estado. Em matéria da Imprensa
Oficial, divulgando a importância dos museus em geral, para o
enriquecimento do currículo escolar, lê-se:
O Museu das Minas e do Metal é o retrato do processo de
desenvolvimento econômico, social e cultural do Estado.
Além de colocar a mineração e a metalurgia em perspectiva
histórica, desvenda o papel do metal na vida humana,
ilustrando sua diversidade, características, processos
produtivos e presença no imaginário coletivo.23
Não bastasse o respaldo governamental, afirmações desse
tipo, que chancelam a transformação da memória cultural em
patrimônio de credibilidade das empresas, têm sido pouco
notadas, e muito menos questionadas, por exemplo, dentre os
artistas, músicos, atores, arquitetos, jornalistas e executivos,
“brasileiros importantes” ou “grandes nomes”, que o website do
94
20. BETHÔNICO, Mabe & FONTE BOA, Maíra. Patrimônio ideológico. Revista Valise, v. 1, n. 2,
ano 1. Porto Alegre: PPGAV/ UFRGS, dezembro de 2011, pp. 15-25. [online]
21. Embora se apresente como um museu, o MMM não não está subordinado à Superintendência de
Museus e Artes Visuais, órgão vinculado à Secretaria de Estado de Cultura. Cf. Governo de Minas.
Cultura. Transparência. Disponível em: <http://www.cultura.mg.gov.br/transparencia>, acesso em
08/09/12. Para saber como o MMM deturpa o sentido de museu, cf. Mabe Bethônico & Maíra
Fonte Boa. Idem.
22. CCPL. Museu das Minas e do Metal (MMM) comemora um ano de funcionamento com visitação
expressiva e ações educativas marcantes. [27/06/11] Op. cit.
23. Imprensa Oficial. Além da sala de aula. [18/05/11] Disponível em: <http://www.iof.mg.gov.br/
index.php?/destaques/destaque/Alem-da-sala-de-aula.html>, acesso em 06/09/12
Circuito destaca como seus apoiadores e entusiastas; muitos deles
beneficiários pessoais do projeto.24 Um deles chega a comparar o
momento com a Revolução Francesa, quando finalmente “o povo
pôde se apropriar dos espaços do poder”; o que de resto traduziria
a palavra liberdade. Desta vez, no entanto, essa apropriação
é também um discurso do poder. Presente à inauguração de
um desses novos espaços, o então Governador do Estado teria
declarado:
Essa praça foi concebida para ser a praça do poder há
120 anos, quando Belo Horizonte foi construída para ser
a sede do Governo de Minas. Hoje, ela virou a praça do
povo. Vamos ter, aqui, o mais importante circuito cultural
do Brasil. E para quem está deixando o governo dentro de
uma semana, nada mais emocionante do que poder andar
pela praça e ver que a Praça da Liberdade, símbolo maior
de Belo Horizonte, da nossa capital, vai virar esse Circuito.
[...] Não dá para vocês imaginarem o que está acontecendo
dentro de cada um dos [sic] desses prédios. Cada um deles
tem uma concepção absolutamente vanguardista, o que
tem de melhor no mundo em ponto de museus, enfim, de
entretenimento, vai estar aqui entregue a vocês.25
Certamente, a Praça da Liberdade, em torno da qual se localiza
a maioria dos espaços que integram o Circuito, é um dos lugares
públicos mais antigos e emblemáticos de Belo Horizonte.
Construída entre 1895 e 1897, quando se fundou a nova capital,
a fim de exaltar o espírito republicano, a Praça sediou o Governo
de Minas até 2010, momento em que o poder executivo e a
administração pública estaduais foram transferidos para a recém
inaugurada Cidade Administrativa (erguida com os royalties do
nióbio extraído em Araxá), deixando sem destinação específica
(para além de que seriam espaços culturais) parte dos prédios em
que funcionavam o palácio, algumas secretarias e outros órgãos
públicos.
24. CCPL. Depoimentos. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/
depoimentos>. Acesso em 05/03/2012.
25.
CCPL. Aécio inaugura Novo Espaço. [19/03/10] Disponível em: <http://www.
circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/component/k2/item/96-a%C3%A9cio-neves-inaugura-novoespa%C3%A7o>, acesso em 07/09/12.
LINDONÉIA
Para a implementação do Circuito, algumas dessas antigas
edificações foram ou estão sendo restauradas e adaptadas,
de modo a contemplar as necessidades dos novos espaços
culturais, quais sejam: da oferta de condições de acessibilidade
à vontade de lhes agregar “contemporaneidade”. Em todo caso,
considerando-se que o conjunto arquitetônico e paisagístico
da Praça é tombado, tanto em âmbito municipal (1994) quanto
estadual (1977), o programa dessas intervenções nunca foi um
consenso entre os especialistas.26 O prédio em que o MMM está
instalado, a antiga sede da Secretaria de Estado de Educação, por
exemplo, é um dos primeiros empreendimentos arquitetônicos
da nova capital. Em sua adaptação, foram inseridos um volume
semelhante a um container, na parte posterior do terraço, e um
elevador panorâmico externo, que alteram a volumetria original
do edifício; o que para alguns desses especialistas significa uma
“descaracterização”. A propósito, salas do edifício podem agora
ser alugadas para eventos empresariais, casamentos etc.27 De
qualquer modo, chama a atenção que 05 das 13 “perguntas
frequentes” registradas no website do Circuito se preocupem
com justificar essas intervenções, que agora fazem parte do
cardápio.28
Além disso, o MMM implicou a desmontagem e desalojamento
de dois outros museus: o Museu da Escola de Minas Gerais, que
funcionava no andar térreo do mesmo edifício, com um acervo
de aproximadamente 6 mil peças, entre mobiliários, objetos,
fotografias, documentos textuais e arquivos de depoimentos
orais; e o Museu de Mineralogia Professor Djalma Guimarães
(MMPDG), do qual recebeu parte do acervo em comodato: cerca
de 3 mil amostras de minerais, rochas, gemas, meteoritos, fósseis
etc. Dois anos antes da inauguração do Circuito, o Museu da Escola
26. Benedito Tadeu de Oliveira. Patrimônio e desenvolvimento em Belo Horizonte. Revista
Arquitextos. Disponível em: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.080/282>,
acesso em 08/09/12.
27. MMM. Seu evento no MMM. Disponível em: <http://www.mmm.org.br/index.
php?p=9&pa=ini&n=31>, acesso em 10/09/12.
28. CCPL. Perguntas frequentes. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/
component/k2/item/86-perguntas-frequentes>, acesso em 08/09/12.
foi parcialmente transferido para o Instituto de Educação, em que
teve sede provisória até 2011, quando foi novamente transferido
para a então criada Escola de Formação e Desenvolvimento
Profissional de Educadores, situada a 5 km da Praça da Liberdade.
29
Por sua vez, o MMPDG, ligado à administração municipal, não
mais aparece nem mesmo no website da Prefeitura.30 O prédio em
que esse museu funcionava, o chamado “Rainha da Sucata” na
mesma Praça, é agora ocupado pela administração do Circuito.
#02
Em compensação, a museografia do MMM espera dar “nova
vida” à coleção do MMPDG. Além disso, reserva uma sala em
homenagem ao “importante geólogo mineiro”. Nela, a imagem
igualmente animada do Professor aparece como um vulto, ou
melhor, como saberia reconhecer a tradição popular: como
assombração.
***
Inúmeros são os desafios da mediação institucional (agora
entendida como trabalho do educativo nesses espaços), parte
deles em face da expansão das possibilidades comunicacionais,
instaurada pelas tecnologias digitais. Esse processo vem minando
a exclusividade das instituições culturais, enquanto depositárias
de um saber privilegiado. No caso do MMM, é preciso reconhecer
que suas articulações entre espaços físicos (história, localização e
arquitetura do edifício) e espaços virtuais (evocados pelas atrações
oferecidas aos visitantes) não se restringem às instalações do
museu. Atento às críticas que se pudesse fazer à sua função
afirmativa e reprodutora, o Educativo do MMM concebeu sua
própria rede social na Internet.31 Com isso, ele apresenta o museu
como um espaço absolutamente inclusivo, para “cada indivíduo”.
Ao mesmo tempo, entende que estudar os públicos é fazer
29. Governo de Minas. Educação. MAGISTRA. Museu da Escola. Disponível em: <http://magistra.
educacao.mg.gov.br/site/museu-da-escola>, acesso em 08/09/12.
30. PBH. Museus. Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?ev
ento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=enderecos&tax=16617&lang=pt_
BR&pg=6300&taxp=0&>, acesso em 08/09/12.
31. MMM. Rede MMM. Disponível em: < http://www.mmm.org.br/index.php?p=3>, acesso em
10/09/12.
95
www.estrategiasdaarte.net.br
branding; o que significa, neste caso, capitalizar suas histórias e
afetos para “tirar a mineração do senso comum da exploração”. 32
A propósito, outorgar publicidade à fala dos públicos, ou, como se
tem dito, outorgar-lhes “agência” tem se generalizado enquanto
ação mediativa dos educativos institucionais. Nem sempre,
contudo, isso tem resultado em transformações efetivas, seja
das instituições ou das políticas culturais. Em uma sociedade
da informação, mais do que incluir todo tipo de informação, é
preciso diferenciar essas informações quanto a sua relevância
pública. Segundo Julian Assange, fundador do WikiLeaks, há três
tipos de informação, enquanto pilares da história: aquela cuja
circulação é mantida por um sistema econômico e produtivo;
aquela que tende a desaparecer espontaneamente, sem que
ninguém esteja interessado em destrui-la; e a “informação de
terceiro tipo”, aquela em torno da qual há um trabalho intenso,
que não é individual, para que ela não venha a se tornar pública.
Esta é a informação que nos falta, para um engajamento mais
inteligente com o mundo; também, para que tenhamos um
mundo mais justo. 33 *
96
32. MMM. Rede MMM. Midiateca. “Case MMM” – Seminário Museus e Cidades Criativas.
disponível em: <http://www.mmm.org.br/index.php?p=8&c=966&pa=tv&pfr=0>, acesso em
10/09/12.
33.. OBRIST, Hans Ulrich. In: conversation with Julian Assange, part I. In: e-flux journal, #25 – may
2011. Disponível em: <http://www.e-flux.com/issues/25-may-2011/>, acesso em 10/09/12.
LINDONÉIA
#02
O RATO QUE RUGE
José Schneedorf
Sozinho [...] naquela rua, [...] em todas as ruas do mundo, no mundo inteiro – sozinho;
ele e o rato, natureza cinza equilibrada sobre quatro patas. [...] Estende a mão, mas o
rato foge num movimento brusco. [...] Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso,
subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. [...] O guarda o soltou
e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: “O
povo passa fome”. [...] Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja.
CAIO FERNANDO ABREU
1. RAIZ
FIG. 01 – BANKSY.
[sem título]. Adesivo.
Fonte: BANKSY, 2005,
p. 193.
Radicado(s) na denteada espetacular – denteada salteada por seus
contemporâneos desdobramentos que mais a fazem exclamar
– o(s) artista(s) plástico(s) Banksy, grafiteiro(s) por certidão,
responde(m) tanto à engrenagem quanto ao diapasão através de
uma tradição setorial de sua prolífica obra: os ratos urbanos, sua
alegoria primeira e maior, de furtadela, anonimato e pequeneza,
de completa igualdade acenando para o agrupamento tanto
quanto para a individuação. Como a face individual do corpo
trabalhador, com seu predicado histórico de pulsão insurgente
cidadã e citadina, representadas ambas em biografia confessa
97
www.estrategiasdaarte.net.br
(a face) e obra professa (a pulsão), a assinatura Banksy não se
observa singularmente, mas se observa. E observada observa,
“pois naquele ponto escuro do musgo eu sou mortal e nos meus
sonhos muitas vezes ali fareja, sem parar, um focinho híbrico”1,
afirma o rato.
elipses espetaculares e às consequentes honrarias meritórias
dos meros, dos préstitos adonados, dos corsários urbanos, dos
dignos metropolitanos licenciados, alçados a dignitários das
artes: “cinqüenta anos depois, a prática que reinscreve a arte é o
espetáculo”. 4 Reinscreve a arte, inscreve o grafite. Banksy:
Tudo isso são cálculos bastante laboriosos e a alegria que a
mente sagaz tem consigo mesma é algumas vezes o único
motivo pelo qual se continua calculando. [...] Vivo em paz no
mais recôndito da minha casa, e enquanto isso o adversário,
vindo de algum lugar, perfura lento e silencioso seu caminho
até mim. Não quero dizer que ele tenha um faro melhor que
o meu; talvez ele saiba tão pouco de mim quanto eu dele.2
Eles existem sem permissão. Eles são odiados, caçados
e perseguidos. Eles vivem em silencioso desespero em
meio à imundície. E contudo eles são capazes de prostrar
civilizações inteiras. Se você é sujo, insignificante e malamado, então ratos representam seu modelo definitivo.5
Não se vê como unidade(s) pessoal(is), mas se constata como
persona unitária. Não se apresenta individualmente, mas deixa
rastros de seus gestos, deixa indícios artísticos de sua camuflada,
rata presença. Ainda na dissensão formal salutarmente
permitida pela e na produção artística corrente, demonstra
coesões de conteúdo e coesões plástiticas – além da coesão
de uns para outras. É assinatura, a um só tempo, de sujeito e
objeto: descoberta como obra e recoberta como indivíduo, acerto
contemporâneo da tradição bissexta da anonímia autoral e/ou da
transindividualidade dos coletivos artísticos. Ergueu a si própria
primeiramente, por próprio esforço, mérito e risco – “instalei a
construção e ela parece bem-sucedida. Por fora é visível apenas
um buraco, mas na realidade ele não leva a parte alguma, depois
de poucos passos já se bate em firme rocha natural. Não quero me
gabar de ter executado deliberadamente essa artimanha”, 3 expõe
o rato –, então foi erguida ao pódio das artes contemporâneas,
decorrência do erguido pódio da grafitagem contemporânea,
não mais exclusivamente rueira: representatividade geracional
afluente, consenso crítico interinfluente, aposta mercadológica
aferente e unanimidade pública deferente. Eferentes todos
(geração, crítica, mercado, público e Banksy) a honras às
98
1. KAFKA, Franz. Um artista da fome / A construção. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 34.
2. KAFKA, 1998, p. 34.
3. KAFKA, 1998, p. 34.
Como a metrópole, o espetáculo é superfície ratoeira, “como a
sociedade [...], está ao mesmo tempo unido e dividido. Como a
sociedade, ele constrói a sua unidade sobre o esfacelamento”.6
Como o espetáculo, a metrópole é superfície hospedeira, expediente
e compromisso do grafiteiro, ensaiado no entendimento inato
e aquisitivo do entorno, exercitado no senso de oportunidade,
treinado na sobrevivência, formatado na agilidade assimilativa e
na agilidade da prática, diplomado (e diplomadas estas) na ágil
adaptação, temporal e espacial. Ubíquos metropolitanos, ratos
são arquétipos dos labirintos subterrâneos – “existem também
os que vivem dentro do chão. Nunca os vi ainda, mas as lendas
falam a seu respeito e eu creio firmemente nelas”7 , alega o rato
–, das admissibilidades e das subtaneidades, inevitáveis ambas;
crias urbanas por adaptação, do assalto e do asfalto clandestinas,
ligeiras e diligentes como aquele que as representa e que por elas
se faz representar, Banksy: “ratos são chamados ratos porque eles
farão qualquer coisa para sobreviver”. 8
Ratos desejosos e indesejados, ávidos, aquisitivos no saque e no
estoque, o cada dia, a cada vez – “nessa praça do castelo reúno
minhas provisões, acumulo aqui tudo o que capturo dentro da
4. FOSTER, Hal. Recodificação. Arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial
Paulista, 1996a, p. 129.
5. BANKSY. Wall and piece. London: Random House, 2005, p. 83, tradução nossa.
6. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 37.
7. KAFKA, 1998, p. 35.
8. BANKSY. Existencilism. London: Weapons of Mass Distraction, 2001, p. 23, tradução nossa.
LINDONÉIA
FIG. 02 – BANKSY.
[sem título]. Estêncil
e grafite. Fonte:
BANKSY. Cut it out.
London: Weapons
of Mass Distraction,
2004, p. 27.
construção acima das necessidades do momento”9 , declara o rato.
Vileza estrategista supérstite, resistente e indomesticável; por
tal perseguida, por tal também tolerada. Ratos em conformação
e conformidade a uma rat-art, cunho a princípio coincidente e
desapercebido do proveito semântico, posteriormente assim
batizado, o nomeio do artista à sua musa, da inspiração à guia:
“eu já vinha grafitando ratos por três anos antes de alguém dizer
‘é engenhoso isto ser um anagrama de arte’, e eu tive de fingir que
sabia disso o tempo todo”.10
2. SOLO
Tidos os ratos por arquetípicos dos subsolos das vias, das vilas e
das vilanias, tida a rat-art por arquetípica de operações reflexivas,
de réplicas que centralizam o periférico enquanto sustentam
uma semiautonomia, de práticas de dignidade inclusiva, de
integrações com integridade, de autonomeações autônomas,
pulsantes de processos cicatrizantes sociais. De Banksy a ratart firmou-se seu maior distintivo. Seus ratos permanecem sua
mais recorrente, revisitada e numerosa produção, nada restrita à
obsessão monomaníaca dentre sua testada e atestada prolixidade;
esta dentre os metamorfismos plásticos contemporâneos
que alargam os continentes sem perdas autorais. Seus ratos
permanecem também a sua mais autoralmente associável
produção, causando um imediato reconhecimento, através
da imediaticidade cognoscível do figurativo, nesse particular
99
9. BANKSY. Existencilism. London: Weapons of Mass Distraction, 2001, p. 23, tradução nossa.
10. KAFKA, 1998, p. 36.
zoomórfico
e
nada
afeito
à
palatabilidade
representativa dos
desenhos
afetivos
infantis,
quase
sempre transumano
no vozeio: agora
despidos dos balões
que caracterizam tais
desenhos, aforismos
críticos
dão-lhes
a
mesma
fala
humana, legendam
as imagens sem deixar de pertencê-las como um todo
compositivo, ou são por elas legendados, no tênue processo
circular que pauta as relações ilustrativas entre imagem e texto,
arriscando maior peso veicular para uma ou para outro. E
transumano nos paramentos: desde os guerrilheiros de boinas,
cigarrilhas e munições diversas até os munidos de giz e cartaz,
ou pincel, aerossol, óculos protetores e
máscara respiratória. Invariavelmente
dotados de sugestivas antenas. A escala
em tamanho natural, se não antrópico;
e regularmente no nível do chão; nesse
particular entendida a produção como
expressão do excluído desabrido e não só,
não mais extenuada numa euforia formal,
superlativa, numa demasia onicolor muito
presente na propedêutica grafiteira (e algo
ainda presente, em subgrupo), que não
permitia outra leitura que não epidérmica
– e que tanto estigmatizou a prática.
Urbes quaisquer delas avizinharam sempre entre si construções
e construtos, avizinham hoje ainda mais, metropolitanas,
convergentes, urgentes, concessoras e concessionárias dos
#02
FIG. 03 – BANKSY.
[sem título]. Estêncil e
grafite. Fonte: BANKSY,
2001, p. 23.
FIG. 04 – BANKSY. [sem
título]. Estêncil e grafite.
Fonte: BANKSY, 2005,
p. 86.
99
www.estrategiasdaarte.net.br
rápidos trânsitos e elos de ideias, obras e encontros, sobremaneira
para aqueles que delas se valhem: os da arte súbita, provocativa,
acareada em praça; os reflexivos, militantes por definição: o
crítico e historiador da arte Paul Ardenne anuncia a tradição de
origem britânica – como Banksy – de conceituar o artista como
trabalhador social – como Banksy –, um protagonista em palco
público apondo o cronista alerta, coadjuvante de exílios, ou
mesmo o herói romântico e herói do verso, herói mnemônico e
herói futurólogo. Expor no muro anuncia, por si.
Expor no muro anuncia o antagonista – sempre detentor da fala
inspirada – societário da micropolítica e da representação da
voz minoritária, inclinado à esquerda ou aclimado à anarquia,
de apreço ao manifesto: “a denúncia de uma aura de dominação
com recheio de arte, a tendência à receptibilidade das massas [...]
e a negligência do atrativo estético em favor da clareza políticodidática” 11 que está no semblante de simplicidade direta, objetiva,
afirmativa da grafitagem contemporânea, “representante dessas
massas e daquilo que as inspira em sua atitude revolucionária”.12
Expor na rua anuncia a adição de Ardenne13 da ambivalência
à tensão, compreendidas as três pelo ativismo do imediato,
relacionado à história momentânea, portanto sujeito à
tempestuosidade e à efemeridade da rua e do instante, à solvência
na realidade. Anuncia a imersão no concreto e na concretude,
no ir-e-vir diário, no cotidiano surpreendido: a defrontação
imediata, e não mediada, com o passante feito espectador, no
neologismo “autrismo” 14 que Ardenne cria: a disposição da obra
ao outro, o dever ao outro, o contato ao outro, o tocar o outro. E ao
100
11. ARDENNE, Paul. Arte contemporáneo y política: uma relación tensa y ambivalente. Revista
ESSE, Montreal, n.8, set. 2003. ISBN 0831-859X, não paginado. Disponível em: <www.esse.ca>
Acesso em: 18 nov. 2007. Entrevista a André-Louis Paré, tradução nossa.
12. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac & Naify, 2008, p. 89.
13. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 26. come. 2004. Rato empalhado – instalação clandestina
no Museu de História
14. Autrisme no idioma original francês, relacionado ao autre – o outro – em propositada analogia
ao autisme, o autismo: o desligamento psicológico da realidade externa para a criação mental de um
mundo autônomo, e a vivência exclusiva neste mundo exclusivo, a impossibilidade da comunicação.
A ressaltar que Ardenne entende os dois termos como pertencentes a diferentes âmbitos da reali .
outro o direito. Ao outro competirá o enfrentamento da obra e o
enfrentamento do inesperado da obra, caberá a administração de
sua relação com ela: seu comportamento ante ela ou dentro dela,
sua resposta pertence a si, igualmente pertence à obra.
Essa mais nova supremacia do conceito grafiteiro, político,
em muito explica a desafetação estética. A ideia, de fato nada
excludente ao intramuros, é de um relacionamento mais literal
e mais temporal, parte e partícipe – pauta da arte urbana, pauta
da arte relacional, pauta da arte contextual, pauta da arte política
– pretendida essa última sentença, seio das outras, menos
como divisória, setor a termo do campo, limítrofe, e mais como
fundamento explanatório de viés à literalidade específica, “pois a
obra de arte não é simplesmente um instrumento para ser usado
pela ou contra a ideologia: é em si mesma um ato ideológico”.15
É fato e dispensa prova, como é fato e dispensa prova serem
intramuros e extramuros ambos espaços públicos, coextensivos
para a arte.
E extensivos para Banksy do caráter furtivo, do feitio sorrateiro;
da ação de sorrate, pela calada, esquiva, tanto oportuna quanto
oportunista: sorrateiro é termo derivado “do latim subreptu:
‘tomado por astúcia’, com influência de ‘rato’” 16 preeminente. Da
vasta obra de solo contestatório, que realiza-se irônica, concisa,
direta; e oblíqua, veloz, como conveio ao proibitivo de suas originais
inserções apropriadoras e performáticas em reconhecidas galerias
e museus de diversos fusos, admissões autoafirmadas artificiais
no intramuros – admissibilidades autoafirmativas naturais do
extramuros. Enxertias forçadas de suas obras: interferências por
ele produzidas sobre cópias de obras renomadas do repertório
histórico da arte; ou sobre trabalhos anônimos, de autoria
desapegada ou desaparecida, preferencialmente de certo caráter
acadêmico, adquiridos em feiras de garagem comuns nas ilhas; ou
ainda paródias imagéticas de elaboração minuciosa, utilizando,
por exemplo, amostras arqueológicas falsas, caixas entomológicas
15. FOSTER, 1996a, p. 85.
16. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da lingua portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1614.
LINDONÉIA
FIG. 05 – BANKSY.
Pest control / Our time
will come. Instalação
no Museu de História
Natural de Londres.
Fonte: BANKSY, 2005,
p. 152-153.
ou ratos mortos empalhados, caracterizados tais exemplares
com atributos antitéticos em precisas miniaturas – nesses
últimos casos, objetivando as alegorias aos museus de Ciências e
História Natural. A completar a farsa, adicionam-se as molduras
correlatas e as respectivas etiquetas de identificação técnica,
a ratar, a adonar-se do espaço até a descoberta institucional
das peças, e sequente remoção ou propositada incorporação ao
acervo, tanto pelo aceite humorado ao crescente apelo público
de seu nome quanto pela subversão do subversivo. Crivos que
ocorrem, dependendo do local, no intervalo de poucas horas da
instalação até vários dias após. Burlarias, irônicas como é seu
hábito, não apenas à vigilância, ao policiamento, mas igualmente
ao acesso, ao processo seletivo, à autorização: “algumas pessoas
representam autoridade sem jamais ter possuído qualquer
autoridade própria”.17
Atos invasivos como os de um rato, ator evasivo como um rato,
jamais capturado, ao contrário: capturada ali para si a primeira
notoriedade. Atos de fôlego situacionista comparado também na
herança adulteradora das pinturas de Asger Jorn (1914-1973), todo
o conjunto de obras falsárias, intrusas, reuniu-se numa de suas
várias individuais – termo aplicado à marca – em cubo branco,
17. BANKSY, 2005, p. 28, tradução nossa
Crude Oils18 , de 2005, avisando já no texto de parede tratar-se
de uma exibição de remixagens, obras-primas, vandalismos e
parasitismos. Indistintamente. Aviso comprovado: o local – uma
pequena loja londrina alugada por temporada, espaço expositivo
próprio, característico do campo e do método – teve suas
quatro paredes forradas com os encartados e/ou descartados,
cópias originais ou cópias das cópias, via de reprodutibilidade
também característica do campo e do método. No centro do
cubo, em continuidade ao conteúdo invasivo, dispôs um plinto
com um busto humanamente artificial, como um manequim de
vitrine artesanalmente aprimorado, encapuzado à maneira dos
guerrilheiros, apenas os olhos a nu – um autorretrato intitulado
Banksy Busted. 19 E o chão, por sua feita, permaneceria por todo
o período da mostra demasiada e livremente ocupado por ratos,
bem cuidados e bem alimentados, por pré-requisito oriundo
do particular apreço emblemático: sanduíches e batatas-fritas
em embalagens abertas, típicas das cadeias de lanchonetes,
espalhavam-se propositadamente pelo piso, alusivos aos
restos ofertados pelas esquinas, padrão alimentar possível dos
roedores urbanos. A comprovar os cuidados, lâminas acrílicas
impediam que os animais escapassem; para evitar-lhes qualquer
constrangimento de hábitos ou dano físico, aos visitantes só se
permitia entrarem em grupos de três por vez.
#02
Ano passado, eu pus duzentas ratazanas vivas em uma loja
numa das ruas mais exclusivas de Londres [Westbourne
Grove, que atravessa os pólos comerciais de Nothing Hill e
Paddington]. Na noite da abertura, os vizinhos apareceram
com alguns policiais e seis diferentes inspetores públicos
de saúde e segurança, mas eles nunca conseguiram nos
embargar. 20
18. Pinturas brutas.
19. Banksy surpreendido ou Banksy capturado, ou ainda, coloquialmente, Banksy arruinado, sem
desprezar a alusão lipogramática a “busto”.
20. BANKSY. Absolute **** - beware, it’s Banksy – updated with location of Los Angeles show. LA
Weekly, Los Angeles, 13 set. 2006, não paginado. Disponível em: <www.laweekly.com/art+books/
art/absolute-/14435> Acesso em: 08 ago. 2008. Entrevista a Roger Gastman, tradução nossa.
101
www.estrategiasdaarte.net.br
O exclusivismo da região daria
proveito não somente à ironia, mas à
potencialidade tática: Banksy aproveitou
para abrir a exposição no mesmo dia e
horário da inauguração de um estúdio
de cabeleireiros logo ao lado, de modo a
misturar as audiências, acaso assegurar
sua própria indistinção em meio a estas.
Sentado próximo à porta, um esqueleto
trajado com a indumentária típica (quepe
e crachá inclusos) dos funcionários
institucionais credenciados: atendentes,
porteiros, seguranças – alvos artísticos
de Banksy em igual medida aos fardados:
são uniformizados ambos os grupos, estão
ambos no empecilho potencial de suas
ações intrusivas, portanto estão ambos
na origem de seu constante desvencilhar,
de sua contínua tarefa de superação,
de renovação de estratagemas – “houve
épocas felizes em que quase confiei a mim
mesmo que a inimizade do mundo contra
mim talvez tivesse cessado ou amainado”21,
assevera o rato.
A peça escultórica tinha pequenos pontos
da face derretidos em sutil gotejamento
– a reproduzir suor e/ou consumição
ao fardo serviçal – e bem serviu como
plataforma de escalada para os ratos, em
hilárias rotas internas ao uniforme, de
entrada pelas bainhas e saída pelos punhos
ou pelo colarinho, neste último com a
oportunidade de continuar ascendendo
pelo crânio. Banksy mencionou utilizar
os serviços do molde por considerá-lo tão
FIG 06– Vistas
parciais da
exposição
Crude Oils,
Londres, 2005.
Fonte: www.
artofthestate.
co.uk
102
21. KAFKA, 1998, p. 41.
atento e tão bem remunerado quanto seus demais colegas nos
museus londrinos. A celeuma com estes espaços, e com aqueles
em suas portarias, também reverbera a seleção inerente ao
custo da admissão: “Nada dispersa mais o entusiasmo que uma
pequena taxa de ingresso”. 22
3. BRITA
Na baliza entre afirmação
ideológica e plenitude plástica
– alternada de uma a outra
na preponderância, delicada
no equilíbrio – a pessoalidade
elusiva de Banksy se inscreve,
ou se descreve, numa elongação muito árdua de ser sustentada, FIG 7 – BANKSY.
na longa temporada de caça midiática que vemos e vivemos, [sem título]. 2012.
Estêncil. Fonte:
exemplar ou mesmo sobrelevada pela sanha sensacionalista e
detroitfunk.com
persecutória de seus tabloides conterrâneos, e, na alternativa do
coletivo, na manutenção de um convergido artístico, um núcleo
de uniformidade confocal, porque um grupo completamente
igualitário impulsionaria a exterioridade objetiva dos quarteirões
da manifestação ativista, mas pesaria a interioridade subjetiva
que alimenta as artes. A aceitação do processo – ou do simulacro
– da individualidade convém. Além de útil, coerente: “há aspectos
muito sugestivos no Individualismo”,23 maiusculizado dentro
dos agrupamentos multitudinários contemporâneos, somatórios
dos unos humanos, complementares entre si os ratos, alegorias
estes da igualdade daqueles, antinomias entre os conceitos de
‘multidão’ (heterogênea, composta da somatória de unidades
inteiras e completas em si) e de ‘povo’ (homogêneo, massa
uniforme, unitária), perfilados ambos pelo todo, em que pese a
contemporaneidade dar plena vantagem ao primeiro.
Hoje é a “multidão” e já não o “povo” quem caracteriza todos
os hábitos e as mentalidades da vida social: as modalidades
22. BANKSY, 2005, p. 72, tradução nossa.
23.. WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre: L&PM, 2003, p. 36.
LINDONÉIA
#02
de trabalho, os jogos de linguagem, as paixões e os afetos, as
formas de conceber a ação coletiva. O “povo” é de natureza
centrípeta, converge em uma vontade geral, é a interface
ou o reflexo do Estado. Pelo contrário, a multidão é plural,
admira-se da unidade política, não firma pactos com o
soberano, não porque não lhe relegue direitos, senão porque
é resistente à obediência, porque tem inclinação a certas
formas de democracia não representativa. 24
Em seu princípio, o grafite emergiu do adensamento urbano,
contexto que tem por natureza exceder o uno, o indivíduo; “o
grafite irrompeu mesmo numa cidade de signos, ao mesmo
tempo homogênea e fragmentada, não para ser consumido como
esses signos, mas para atacar esse consumo em seu próprio
campo”. 25 Por seus princípios, o grafite destina-se à consciência
da significação paradoxal, dos vínculos da referência e do
prover; no apuro, destina-se à consciência alheia e própria da
ambivalência do compromisso supramencionada em Ardenne,
ambivalência aqui exposta nas convenções da guerrilha urbana
estarem em certa medida herdadas, previamente formatadas; é
humano e é rato o manifesto do comprometimento ser também a
manifestação do comprometido, e vice-versa.
Como? Sua casa está protegida, fechada em si mesma. Você
vive em paz, aquecido, bem alimentado, único senhor de um
sem-número de corredores e recintos – e é de esperar que
deseja não só sacrificar, mas em certa medida abandonar
tudo? Na verdade, você tem a confiança de recuperar isso,
mas não está-se-á permitindo uma jogada alta demais?
Existiriam motivos racionais para tanto? Não, para algo
dessa natureza não pode haver motivos racionais. 26
Para o cada um da multidão, o grafite, como tudo o mais,
aponta: anzol do reparo, da atenção difusa das bandas em “ire-vir produto-consumista”.27 Desponta nos muros espessos da
24.VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud – para um análisis de las formas de vida contemporâneas.
Madri: Traficantes de Sueños, 2003, p. 130, tradução nossa.
25. FOSTER, 1996a, p. 79.
26. KAFKA, 1998, p. 40.
27. DEBORD, Guy. et al. Internacional situacionista, vol. I: la realización del arte. Madrid: Literatura
FIG 7 – BANKSY. [sem
título]. 2012. Estêncil
e grafite. Fonte: www.
banksy.co.uk.
variedade exponencial do consumo, uma razão direta. Banksy
parte daí, produto de seu tempo e de seu ambiente, consentâneo
ao comunal, lúcido e ciente de que “um muro é uma arma muito
grande. É uma das coisas mais obscenas com as quais você pode
atingir alguém”.28
Entendo que ele se refira à reserva cultural da qual
cada imagem é uma instância. [...] Tanto espacial como
temporalmente, portanto, [...] sua atração para artistas
de vanguarda que desejam perturbar tais ordenações do
sujeito e da sociedade. [...] Localmente, a valência da arte
[...], o ataque [,a] vocação, repensando a transgressão não
como uma ruptura produzida por uma vanguarda heróica
de fora da ordem simbólica, mas como uma fratura traçada
por uma vanguarda estratégica, dentro da ordem. Desse
ponto de vista, a meta da vanguarda não é romper de forma
absoluta com essa ordem (esse velho sonho foi abandonado),
mas o de expô-la em crise, registrando seus pontos não só
de falência (breakdown), mas de passagem (breaktrough),
as novas possibilidades que uma tal crise poderia abrir. [...]
Gris, 1999, não paginado. Disponível em: <www.geocities.com/autonomiabvr>. Acesso em: 18
ago. 2007, tradução nossa
28. BANKSY. Banging your head against a brick wall. London: Weapons of Mass Distraction, 2002,
p. 30, tradução nossa.
103
www.estrategiasdaarte.net.br
Finalmente, um espaço-tempo para além da redenção? Ou o
caminho mais rápido em direção à graça para estrategistassantos contemporâneos? 29
Raté adjetiva, no idioma francês, aquele que, faltante a sorte,
a competência ou a ocasião, não alcançou êxito pessoal ou
profissional. ‘Ratinhar’ verbaliza a economia exagerada.
‘Ratinheiro’ adjetiva aquele que pechincha, que regateia. ‘Ratice’
substantiva coloquialmente a excentricidade, a extravagância.
‘Ratinho’ substantiva cada um dos primeiros dentes de uma
criança. ‘Ratificar’ verbaliza a autenticação, a validade. A ratart confirma uma iconografia do pensamento marxista inserta
na persistência e na sujidade metropolitanas, uma tradução
imagética da já imagética espetacularização debordiana,
na qual à faina assoma-se um comodato contrapartido ao
FIG 06– BANKSY. universo do trabalho, um contínuo compulsório, um estatuto de
[sem título]. Estêncil compatibilidade que adula – e pressiona – para a pertença.
e grafite. Fonte:
tell-nobody.net
Na mercadoria e no espetáculo, todas as marcas do trabalho
produtivo e do suporte material são apagadas; elas nos
fascinam porque nos excluem, nos colocam na posição
passiva de sonhador, espectador, consumidor. No espetáculo,
nós nos tornamos conscientes dessa manipulação mágica
em cada ato de consumo. 30
Espetáculo exposto, explicitado, revisitado por Banksy, a
“condescender por um momento com o velho argumento sobre
a velha indústria cultural, tal como Adorno a propôs”,31 a revisar,
e verter esteticamente, ratificando, que “têm razão Horkheimer e
Adorno ao reiterar, em Dialética do esclarecimento, que o processo
da civilização não pode ser separado da opressão”,32 Banksy
abaixo-assina a predição marxista e debordiana de que a
revitalização estaria latente no se e no quando o homem obtivesse
esse esclarecimento, “como se o real, descartado por um pósmodernismo performático, tivesse sido mobilizado contra um
mundo imaginário de uma fantasia capturada pelo consumismo”.33
Nascido no berço da indústria e de sua consequente necessidade
sindical – a tradição grafiteira inalienável da tradição trabalhadora
– Banksy, prolífero proletário mural, ajustado e confortável,
orgulhoso até, na condição de plebe rude, salva na onipresença
dos ratos o operário revolucionário em si e por si, ao mesmo
tempo em que ressalva na onipresença dos ratos os inventários
oficiosos, inventários de prestadio, de subserviência e de apatia,
inventários de superindentificação com o ladeado enquanto
cativo da monotonia cotidiana redutiva à inércia política, isolado
e exilado no servilismo: o “espetáculo é a realização técnica do
exílio”. 34
Esses pontos de vista são o equivalente, pode-se dizer, de
um povo escolhido, ao qual o sentido da história encontrase supostamente atrelado, ou a uma classe específica,
104
29. FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. London: MIT
Press, 1996b, p. 140-186 passim, tradução nossa.
30. FOSTER, 1996a, p. 118.
31. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de
Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 23.
32. BÜRGER, 2008, p. 90.
33. FOSTER, 1996b, p. 166, tradução nossa.
34. DEBORD, Guy, 1997, p. 19.
LINDONÉIA
como o proletariado, destinado a ser o veículo do destino
histórico, em contraste com o qual nenhuma outra classe ou
pessoa – ou arte – possui um significado histórico decisivo e
derradeiro. 35
No cerne, a individuação da contemporaneidade, uma adequação
ambivalente: por um lado, operar em condição de súdito é
carregar consigo a aura de dominação com recheio de arte, é
usufruto, usurpação e uso dessa condição concomitantes. Por
outro lado, é uma perspicácia atual em relação às circunstâncias,
às oportunidades, ao possível; é uma destreza e uma consciência
que superam o lutar pelo inelutável, o agir de fora, que fazem
usança polar das construções políticas, em seus limites
divisórios ou factuais – as formas imperativas escorrendo para
representativas –, para idear, planear, em busca-vida delinearse e tratar “sempre de uma mesma familiaridade com o possível
[...] do oportunismo contemporâneo, [...] captar uma espécie de
aprendizagem da massa das novas condições do conflito [...].
Ambivalência da multidão” 36 de perícia correta para Banksy e para
sua linhagem, aprendizes pois da abrangência e da resistência
da vontade humana, da formatação da necessidade e do desejo
às alternativas ofertadas somar, aos mecanismos de dominação,
de coordenação e de consumo, um acômodo tectônico natural da
vida em sociedade, da vida em grupo – “mas toda essa beleza não
existe e eu preciso ir ao trabalho, quase contente com o fato de
que ele está em conexão direta com a praça do castelo, pois isso
me anima”. 37
Uma dinâmica de ascese para lá das estruturas, que põe elo de
ocupação ao de sobrevivência, no autônomo coexistindo ao
e no autômato, atenuada a convenção laboriosa na aptidão
laboriosa, humana. Considerada, sobremaneira, a temporalidade
perspéctica, prossecutora, processual: as condições do comum
e do comunal distam das ideias, mas comparem-se a termos
35. DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo:
EDUSP, 2006, p. 29.
36. VIRNO, 2003, p. 131, tradução nossa.
37. KAFKA, 1998, p.51.
seculares essas e aquelas, também e portanto as opções e ciências,
daí se convalesçam os ressarcimentos. Restituições paulatinas e
esporádicas, aprimoramentos sazonalmente lentos, episódicos
de solavancos. Surpresas da nau que não partem da tripulação
nem dos ratos, tampouco da capitania,
mas da energia de movimentação
de todos eles, somada a ventos,
tempestades e marés. Do movediço
em si. Tudo indica: a continência
na Era do Espetáculo concede a um
traquejo, a uma interdependência
na Era da Informação e/ou da
Consequência. Especificamente o
indica a rataria grafiteira urbana, na
qual sobeja a dignidade e a ciência
(de si e do outro) do trabalhador e do
comunitário contemporâneos, ciência
basal da pirâmide, mais informada
que espetacular, trazida da última
para a primeira, novidadeira nesses
mesmos termos seculares. Enfim,
assimilado qual o “grau de autonomia
das audiências diante dos dispositivos de comunicação”38 e do
peso crescente da cidadania e da opinião pública, que ampliamse no mesmo passo em que amplia-se a inumerável variedade de
fontes (mais e mais acessíveis) nas quais se pode buscar – e dispor
e contrapor e justapor – o mesmo dado, adentrando uma etapa
de portabilidade, mobilidade, conectividade, simultaneidade,
interatividade, velocidade – e de fragilidade, dados a dependência
da alimentação energética e o sucateamento dos recursos: os
novos Maios.
38. FILHO, João Freire. A sociedade do espetáculo revisitada. Revista FAMECOS: mídia, cultura e
tecnologia, Porto Alegre, N.22, p.33-46, 2003. ISSN 1415-0549, p.45.
#02
FIG 10 – BANKSY.
Reject false icons.
Instalação escultórica.
Fonte: BANKSY, 2004,
p. 30.
105
www.estrategiasdaarte.net.br
4. AREIA
Reputada a malha da informação encontrar-se hoje em sua
aurora, suas primeiras esquinas, indiciando conhecimentos
individuais cada vez mais horizontais e menos verticais, e
dobrando-se entre a potencialidade e a efetivação, ainda distante
de sua plenitude de alcance a distintas circunstâncias globais e
estágios civilizatórios diversos, persevera o valor da colaboração
entre arte e trabalho, a arte trabalhadora no convés de que “nada
no mundo é mais comum que pessoas malsucedidas com talento,
abandonando o barco antes de encontrar algo pelo qual valha a
pena ficar”.39 Colaboração fenomenológica atenta às inexoráveis
sucessividades históricas e ao porvir que ensejam, atenta às
tendências contemporâneas, aí inclusas as das artes plásticas,
que deitam louros ao grafite. Não há no exame espetacular
regressão ou retrodição, pela latência e pelo entendimento de
seu devir estar na exata mensura de seu próprio entendimento,
de suas potências negativas e positivas. Ainda presente, menos
rente, menos epidérmico, ele possibilita: “as classes médias – que
Debord vaticinara, antes, que seriam absorvidas pelo proletariado
[...] – ocupavam, agora, todo o espaço social”. 40
A segunda moeda, o plenipotenciário petróleo, a partir de cujo
esgotamento e cujo comprometimento ambiental se insinuam
novas configurações econômicas globais, direcionando
investiduras artísticas, investigações científicas e soberano
capital – e então soberanias – no sentido das energias limpas,
testemunha a capacidade histórica ímpar de renascer a si
própria da conjunção do construto econômico capitalista ao
construto social democrático, nesses seus primeiros capítulos.
Fênix de artimanhas internas do capitalismo – Plano Marshall
especificamente – satirizadas no Grão-Ducado de Fenwick, pequeno
país – rato – europeu fictício apresentado na obra de Leonard
Wibberley 41 da qual esse artigo se empresta o título. Reviravoltas
106
39. BANKSY, 2005, p. 205, tradução nossa.
40. FILHO, 2003, p. 41.
41. WIBBERLEY, Leonard. O rato que ruge. Lisboa: Bertrand, 1961
da capacidade daquelas (as artimanhas) e deste (o capitalismo) de
fazer uso de si mesmo para perseverar sua própria sobrevivência:
“Eu adoro o modo como o capitalismo acha um lugar – até para
seus inimigos. Estamos definitivamente na alta da indústria do
descontentamento. Quero dizer, quantas tortas são necessárias
para o Michael Moore ir até o fim?”. 42
Tal conjunção muito acoberta e muito estratifica, mais e melhor
admite, reconhece e mesmo se alimenta da diferença, da contraargumentação, da espontaneidade e da permissividade, vide qual o
lado grafitado do extinto muro de Berlim, vide o apelo consumidor
no aceite das minorias. Tal conjugação expande espaço. Expande
Banksy. Agrega e, assim, relativiza. O artista produtor de
imagens, ciente, pode fazer o mesmo, noutra subversão circular,
e “essas especulações nos conduzem à economia de tais imagens
e eventos nos dias de hoje [...] em relação a como essas imagens
funcionam num discurso de ‘crise’ para reinjetar um sentido de
realidade em nossas vidas”. 43 Banksy:
Eu andei fazendo algumas coisas para pagar as contas, e
[...] aí há uma distinção realmente importante a ser feita. Se
for algo em que você realmente acredita, fazer um trabalho
comercial não se transforma em merda tão somente por ser
comercial. Por outro lado, você só pode ser um socialista
rejeitando o capitalismo por completo, porque a ideia
de que você pode casar um produto de qualidade com
uma qualidade visual, e tornar-se parte daquilo mesmo
considerando-o capitalista, é muitas vezes uma contradição
com a qual você não pode conviver. Mas algumas vezes é
perfeitamente simbiótico. 44
42. COLLINS, Lauren. Banksy was here – the invisible man of graffiti art.The New Yorker, New York, 14
maio 2007, não paginado. Disponível em: <www.newyorker.com/reporting/2007/05/14/070514fa_
act_collins?printable
=true> Acesso em: 01 nov. 2007, tradução nossa.
43. FOSTER, 1996a, p. 126.
44. BANKSY, Banksy – the naked truth. Swindle magazine, V.8, Los Angeles, 22 set. 2006, não
paginado. Disponível em: <swindlemagazine.com/issue08/banksy> Acesso em 19 maio 2008.
Entrevista a Shepard Fairey, tradução nossa.
LINDONÉIA
para a astúcia, e vice-versa, a manutenção depender de si própria,
a militância autogerir-se, o protesto-humor grafiteiro gerar
recursos para si mesmo, para sua continuidade e expansão – “seja
como for, preciso ter a garantia de que em alguma parte talvez
exista uma saída fácil de alcançar, completamente aberta, onde,
para me evadir, já não tenha mais de trabalhar”47, quadra o rato.
A contemporaneidade comprovou sobremaneira que o sucesso e
o risco do questionamento de um sistema (social, mercadológico,
artístico, ou todos eles) está na precisa inserção nesse sistema,
está em agir por (e de) dentro dele, “se você entrar totalmente no
jogo talvez possa expô-lo, isto é, você talvez revele o automatismo
ou mesmo o autismo desse processo, por meio de seu exemplo
exagerado”.48 Retribuição ou reversão por via de inserção, via
de proveito, via de oportunidade (percebida ou criada, ocasional
ou ocasionada), via de apropriação, via de posse – vias caras à
arte contemporânea ––, um presente desmuro, a ponderar, ou
destilar, que os indivíduos “nem estão integrados (o [...] sujeito
composto na contemplação), nem dispersos (o que é o efeito de
grande parte da cultura popular: o sujeito entregue à intensidade
esquizóide da mercadoria)”.49
FIG 11– BANKSY. [sem
título]. Estêncil. Fonte:
BANKSY, 2005, p. 87.
“E não são apenas os inimigos externos que me ameaçam”45,
dá-se o rato. De encontro ao espetáculo ou não, a produção de
imagens da arte não é, estrita ou necessariamente, espetacular.
Essa é sua valência. Sua lida imagética é linguagem. Se sim de
encontro, valer-se das rachaduras, escavar o concreto, abrigar
a lacuna, obter a fenda – funciona fazê-los espetacularmente,
por interioridade sistêmica. Afrontas urbanas não só visam,
questionam ou propõem outros termos ao sustento material
dos pares e dos párias como, para praticá-lo, requerem para si
o sustento, a manutenção, “a luta de classes, que um educado
por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas
e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais
[que] se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da
coragem, do humor, da astúcia”. 46 Assenta-se hoje do paradoxo
45. KAFKA, 1998, p. 35
46. BENJAMIN, 1994, p. 224.
#02
Depuro debordiano quinquagenário é a hora, o eferente
distanciamento qualifica uma anterioridade na objetificação das
relações humanas, compreende um possível intercâmbio entre
ingerência e inerência. Tudo já preexistia. Agora se pode associar
a verificação da prova ao apogeu do réu, quando a soberba deixa
pistas, quando “a aparência da mercadoria é mais decisiva que
sua verdadeira utilidade, espontânea e não mediada, e seu
empacotamento simbólico gera uma indústria da imagem e uma
nova ‘estética da mercadoria’”.50 Quando dos produtos materiais
do trabalho tornados agentes sociais – descritivos, definidores,
representativos, condicionais, relativos: não obstante à aparência
da mercadoria, a aparência do próprio homem, que aquela
consome, usa, veste, vive, anima, entranha, na supremacia
47. KAFKA, 1998, p. 35.
48. FOSTER, 1996b, p. 131, tradução nossa.
49. FOSTER, 1996b, p. 136, tradução nossa.
50. FILHO, 2003, p.39
107
www.estrategiasdaarte.net.br
das corporações, o poder de fato, que incita o uso das marcas,
e marca com as marcas, num espetáculo que entende que “se a
sobrevivência consumível é algo que deve aumentar sempre, é
porque ela não pára de conter em si a privação”,51 numa frontalidade,
num interposto criando completudes frágeis, intermediando
vínculos nos quais o
espetáculo “não é um
conjunto de imagens, mas
uma relação social entre
pessoas, mediada por
imagens”.52 Para Banksy,
“cada imagem conta uma
mentira”53.
FIG 12 -BANKSY. [sem
título]. Estêncil e
grafite. Fonte: banksy.
co.uk
108
Aparência, imagem e posse,
reais ou representadas,
e então posição e casta,
limitantes ou excludentes,
sempre integraram a
condição humana, até
a condição animal, bem
como
as
integraram
as faculdades outras. “Se a correção dessa hipótese se tivesse
patenteado, eu teria ido embora, para construir em outra parte,
uma vez que nunca fui dado à conquista nem afeito ao ataque. Sem
dúvida, porém, eu era moço e ainda não tinha uma construção”54,
desveste-se o rato. Mas nunca pareceram haver descontrolado em
autoridade de aparência ilimitada como na contemporaneidade,
impregnadas e interferentes a todo o tecido social – e desde o
fim do milênio sinalizando uma extenuação, advertindo um
esgotamento e pondo em cheque a sobrevivência estrutural da(s)
espécie(s). Até mesmo a sobrevivência do planeta. Apresenta-se
aí o limite. A insídia de avaliar (e julgar) o ser pelo ter sentenciada
por Marx – ou pelo parecer ter, parafraseada por Debord – não
51. DEBORD, 1997, p. 32.
52. DEBORD, 1997, p. 14.
53. BANKSY, 2002, p. 36, tradução nossa.
54. KAFKA, 1998, p. 58.
é algo assim tão novo
nas relações humanas
e em suas condutas.
Tais códigos estão
imemoriais de todos
os dispositivos sociais,
em maior ou menor
grau – provavelmente
estão a propósito da
conjugação do verbo
agrupar,
humana
sobremaneira,
pois
da rataria tanto grupo
quanto dispositivos sociais prestam-se aqui à parábola, ou à
hipérbole, ou ainda à metonímia. Nova é a independência das
imagens. A independência dos objetos. A reificação. Novo é o
Graal da celebridade: imagem súpera. Ainda mais nova é a histeria
de substituição frequente dos bens muito antes de sua real
obsolescência, “o tempo de permanência dos objetos de consumo
nas prateleiras tem obviamente encurtado de uma maneira muito
radical”;55 o tempo de consumo dos objetos também. Novíssimas,
pois, são as consequências: “nós não precisamos mais de heróis,
nós só precisamos de alguém para dar cabo do lixo reciclável”56.
5. HÚMUS
Partilhas responsivas, responsabilidades partilhadas, agora se
acautela “uma preferência bem nítida pela história que chora
[na qual] o anúncio do ‘rumo ao pior’ jamais pode ser feito sem
prazer”57, quiçá se avança “por meio da alegria que se desenvolverá
o Individualismo do futuro”58. Agora a representatividade dos
ratos bifurca-se de maneira plana, pouco interdita como é de se
55. HUYSSEN, 2000, p. 28.
56. BANKSY, 2005, p. 174, tradução nossa
57. DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Petrópolis: Vozes,
1993, p. 159.
58. WILDE, 2003, p. 78.
FIG 13 – BANKSY. [sem
título]. Estêncil. Fonte:
i.thisislondon.co.uk
LINDONÉIA
#02
FIG 14 – BBANKSY. [sem
título]. 2008. Estêncil e grafite.
Fonte: banksy.co.uk
esperar das ruas, exorcizando papéis sociais na
contemporaneidade: em viagem a Nova Iorque (tida capital
ocidental, cultural e econômica, megacidade que Banksy
regularmente visita de obras os muros), à ocasião das falências
bancárias e da grande contração de índices da Bolsa de Valores
norte-americana (2007-2009), uma nova série de ratos, agora
agigantados e habilmente executados em sua enormidade,
em painéis que chegam a completar a fachada lateral de um
edifício, senão sobrepor-se aos costumeiros outdoors, críticos e
(in)posicionais. Nesse primeiro suporte, o de maior repercussão:
um rato de indumentária empresarial (punho branco e
colarinho branco engravatado, crachá, guarda-chuva e maleta
desprendendo, em virtude do excesso, cédulas de dinheiro,
cuja pata que a segura está respingada de vermelho), sob o
mote, também em vermelho, Let them eat crack – entre “Deixeos devorar o craque” e “Que eles engulam a quebra”, num triplo
sentido de alusão à hiperatividade suspeita de seus operadores, à
quebra da Bolsa e à polêmica (então célebre) frase atribuída à
guilhotinada rainha francesa Maria Antonieta, supostamente
proferida em 1788 em resposta aos protestos de que o povo não
tinha pão para comer: “Se não têm pão, que comam brioches”.
Grande parte da execução diretamente em aerossol, à mão
livre, aparentemente sem desenho prévio, já seria virtuose nos
pequenos formatos, e o é ainda mais nas corajosas escalas destas
últimas rat-arts. A desafiadora monumentalidade muralista
lhe é frequente e peculiar, mas raramente o fora para os ratos:
seus regulares tamanhos naturais dão iconografia à esgueira,
à astúcia, ao instinto de sobrevivência. Também ao reclame, ao
proclame, ao conclame. Bem como ao âmbito, à insignificância, à
minoridade. Primeira leitura de imagens: seu nome cresceu, seus
ratinhos cresceram. Seu nome incluiu-se, seus ratinhos também.
Segunda: superação imaginária da facticidade majoritariamente
insuperável. Ou: nivelamento.
109
www.estrategiasdaarte.net.br
Você pode até vencer a corrida de ratos, mas você continua
sendo um. A corrida humana é uma competição injusta
e estúpida. Muitos dos corredores não têm nem mesmo
tênis decentes e água limpa para beber. Alguns corredores
nasceram com ampla vantagem na largada, e ainda com
possíveis ajudas mais à frente no caminho, e mesmo assim
os juízes parecem estar do lado deles.
Não é surpresa que muitos competidores
desistam por completo, para sentar na
arquibancada, comer porcarias e gritar
ofensas. O que nós precisamos nesse páreo
é de muito mais raias. 59
Talvez, para lá de mais paridade,
menos competição e menos corrida.
Ou menos natalidade. Rateio, rateação,
rateamento: a divisão igualitária, a
parte ou a quantia que cabe a cada um
dos apostadores. A expressão ‘corrida
de ratos’, coloquial e tradicional no
idioma inglês, denomina as sugestivas
rodas recreativas para roedores, que
se exercitam e se cansam dentro de
suas gaiolas, circulando sem sair
do lugar. Em seu duplo sentido,
fôra imortalizada na composição
homônima de Rita Marley, gravada por
seu marido Bob Marley em 1976:
FIG 15 -BANKSY. [sem título].
2004. Estêncil e grafite. Fonte:
BANKSY, 2004, p. 5.
110
Ah! Muito violenta / [...] Esta é a corrida de ratos / Alguns
para o bem, outros bastardos, alguns mascarados / [...]
Alguns monstruosos, alguns bandidos, alguns provocadores
/ [...] Os ratos dançam / A violência política enche a cidade
/ [...] Corrida de ratos, corrida de ratos, corrida de ratos
/ Quando pensam que é tudo paz e segurança / Vem uma
repentina destruição / Segurança coletiva, que certeza? /
[...] Não esqueçam a sua história / Conheçam seu destino /
59. BANKSY, 2005, p. 90, tradução nossa.
Quando a água é abundante / O estúpido morre de sede /
Corrida de ratos, corrida de ratos, corrida de ratos / Oh, é
uma desgraça ver a raça / Humana em uma corrida de ratos,
corrida de ratos.60
Todos esses novos ratos – e seus novos agigantamentos –
comungaram a personificação de outros perfis econômicos
e sociais, seus antagonistas, e essa nova atribuição à rataria
infere uma salutar superação, pois compreender-se como rato e
empreender como rato também outorga autoridade à autoridade,
e imputa a si próprio e, por procuradoria, a seus pares, uma
inferioridade constitutiva, um espaço e uma tática periféricos.
Uma inferioridade romântica. A revisão dos ratos itera que uma
vontade geral e generalista – de um povo – está sendo ultrapassada
na contemporaneidade por uma ação coletiva de indivíduos
particulares – de uma multidão – ; a pertinente remodelação
semântica elaborada pelo filósofo Paolo Virno, atravessada na
rat-art – o individualismo como meio de atingir o socialismo,
60. MARLEY, Rita. Rat race. In: MARLEY, Bob. Rastaman vibration. Kingston: Island Records,
1976.
FIG 16 – BANKSY.
[sem título]. Estêncil
e grafite. Fonte: www.
banksyunmasked.co.uk
LINDONÉIA
que hoje bem licencia circunvolver a contingência, contraverter a
asserção do escritor e dramaturgo Oscar Wilde: “é, portanto, por
meio do Socialismo, que atingiremos o Individualismo”.61
Num aspecto, essa crença na capacidade de transformar
pela vontade se apoiava numa crença [...] mais específica no
‘povo’, disposto a ser transformado e portanto a participar,
criativamente e com toda a inteligência e engenhosidade
[...], a visão essencialmente romântica de um artista. 62
Exatamente nesse ponto da argumentação se observa que “há
sempre um instante em tais movimentos em que a tensão original
da sociedade secreta precisa explodir numa luta material e profana
pelo poder e pela hegemonia, ou fragmentar-se e transformar-se,
enquanto manifestação pública”.63 Banksy itera a argumentação,
a manifestação e a explosão, entranhando ao calabouço rueiro
o afeto grafiteiro à “Quadrilha dos Ratos: como muitas pessoas,
eu tenho a fantasia de que todo o pequeno perdedor impotente
irá agrupar-se e conspirar. Que todo animal daninho adquirirá
algum bom equipamento, e então o subterrâneo tomará o chão e
arrasará esta cidade”. 64
Exatamente nesse ponto da argumentação [...] introduz
a arte, à qual não atribui tarefa menor que a de tornar a
unir as “metades” do homem que foram arrancadas uma
da outra. Quer dizer, já dentro da sociedade da divisão do
trabalho, a arte deve possibilitar a formação da totalidade
das capacidades humanas que o indivíduo, em sua esfera de
atividades, se vê impedido de desenvolver. 65
O hegemônico qual o seja está, por filosofia estrutural ou por
61. WILDE, 2003, p. 38.
62. HOBSBAWM, E. J. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p.453-454.
63. BENJAMIN, 1994, p. 22.
64. BANKSY, 2001, p. 21, tradução nossa. O termo original inglês para ‘Quadrilha dos Ratos’
utilizado por Banksy, The Rat Pack, é uma analogia, em troça, ao conhecido grupo de atores dos anos
dourados hollywoodianos, The Brat Pack (algo como ‘A Quadrilha Malcriada’ ou ‘A Quadrilha Sem
Modos’), dentre os quais contavam-se Dean Martin, Sammy Davis Júnior e, especialmente, Frank
Sinatra – atores de suspeitadas relações ou conivências com a Máfia italiana, então enormemente
poderosa nos Estados Unidos.
65. BÜRGER, 2008, p. 99.
estruturalismo filosófico, alicerçado também no escrúpulo, no
receio, na discordância, na contestação – mesmo quando assim
não se conceba. Qualquer hegemônico é predisposto ao escrutínio
e à altercação, essa predisposição é seu próprio imperativo.
Questionáveis são portanto e mais o discurso oligárquico e suas
razões, não arriscar-se-ia a também sê-lo o discurso oclocrático, se
em seu lugar? “’Utopia’ é um dos ideologemas mais corrompidos,
exposto por Orwell e Huxley como compondo uma só coisa com a
distopia, isto é, com o totalitarismo”. 66
#02
“Camaradas – disse ele – eis aí um ponto que precisa ser
esclarecido. As criaturas selvagens, tais como os ratos
e os coelhos, serão nossos amigos ou nossos inimigos?
Coloquemos o assunto em votação. Apresento à assembléia
a seguinte questão: os ratos são camaradas?”. 67
Orwell arrisca-se acima à
justaposição dos ideários,
senão
indissociação,
constatada, senão aceite,
também por Benjamin:
“Mas
conseguem
eles
fundir essa experiência
da liberdade com a outra
experiência revolucionária,
que
somos
obrigados
a
reconhecer,
porque
ela foi também nossa: a
experiência
construtiva,
ditatorial, da revolução?”.68
À pura e simples substituição das tessituras e dos tecidos, não
se pressagia cessão de espaço, no porvir, a outras circunstâncias
de embate, de conduta, de postura? E de autoconsideração e
desígnio?
FIG 17 – BANKSY. [sem
título]. Estêncil. Fonte:
www.artofthestate.
co.uk
Entre a benfeitoria da oposição e o risco da aposição, a interrogação
66. FOSTER, 1996a, p. 133.
67. ORWELL, George. A revolução dos bichos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 13.
68. BENJAMIN, 1994, p. 32.
111
www.estrategiasdaarte.net.br
que reverte ao direito de ser instruído é: se, por um lado, o libelo
é livre por definição, por outro, a quem compete, e a quem não,
o direito a instruir? E com que nível de idoneidade, de preparo
e de amadurecimento se pode exercer esse jus? Em que termos
se mensura e legitima a habilidade, se classificam as aptitudes?
Que parâmetros servem de medida para a homologação dessa
classificação? Quem homologa? Será mais, às portas de outra era,
diante do diante, pensar esses direitos – e deveres – nos termos
históricos das bandas, dos grupos, dos coletivos, das comunidades
ideológicas, dos partidos? Ou revê-los nas posições, disposições e
exposições dos indivíduos?
Assim, o Individualismo não exerce nenhuma coação sobre
o homem. Diz-lhe, pelo contrário, que não permita que
nenhuma coação se exerça sobre ele. [...] A Evolução é a lei da
vida, e não há evolução senão rumo ao Individualismo. [...] O
Individualismo será natural e altruísta. Afirma-se que uma
das conseqüências da descomunal tirania da autoridade é
[...] expressar o anverso de sua exata significação. O que é
verdadeiro para a Arte, é verdadeiro para a Vida. A Arte é
Individualismo, e o Individualismo é uma força inquietante
e desagregadora. Nisto reside seu grande valor, pois o que
procura subverter é a monotonia do tipo, a escravidão do
costumeiro, a tirania do habitual e a redução do homem ao
nível da máquina.69
Inquietante e desagregadora, a arte subverte a escravatura da
repetição e do costumário, “sem dizer que, muitas vezes, um
acaso conduz fácil à pista do distúrbio, ao passo que a busca
sistemática pode malograr por longo prazo”,70 secunda o rato,
e o acaso é ninhada da arte. (In)definir como ratos os do topo
e os da base resenha a fábula A Construção, do escritor Franz
Kafka 71 – que costura todo este artigo – na qual o rato narradorprotagonista atua como uno e solitário personagem, à exceção
da ameaça etérea de um possível igual – “quero conceder, porém,
que aí existe uma falha, como de resto sempre há uma falha onde
112
69. WILDE, 2003, p.50-74.
70. KAFKA, 1998, p. 48-49.
71. KAFKA, 1998, p. 34-60.
se possui um único exemplar de alguma coisa”72. Igual ou maior,
a um só tempo próximo e distante, que põe a pique suas crenças
e sua fortaleza, o castelo subterrâneo continuamente construído,
em tédio, privação e racionalização operários. E que nunca
se apresenta – “mas tudo continuou inalterado”73 – gerando a
tensão exponencial que serve ao incômodo do desconhecido
tanto quanto do semelhante. O rato de Kafka indicia a si próprio
como rato em imprecisos e raros momentos – “às vezes é como se
meu pelo rareasse”74, ou: “mesmo que estejamos completamente
saciados, mostraremos, sem sentir, nossas garras e nossos
dentes um para o outro” 75 –, mas jamais anuncia a si próprio
72. KAFKA, 1998, p. 38.
73. KAFKA, 1998, p. 60.
74. KAFKA, 1998, p. 40.
75. KAFKA, 1998, p. 59.
FIG 18 – BANKSY.
[sem título]. 2011.
Interferência em
estêncil sobre placa
viária. Fonte: banksy.
co.uk
LINDONÉIA
como tal. Transita bipolar do sufocamento ao contentamento,
trafega de tal modo pela dubiedade que tanto é entendido pela
crítica como trabalhador ora cegado por construtos dos quais
sequer se dá conta, ora satisfeito pela alienação – “esse consolo
também faz parte dos contos de fadas” 76 –, quanto como um
burocrata da mais alta patente, dado a limpar vestígios, às voltas
com administração, regulamento, planos de defesa e rotas de
fuga cada vez mais ensimesmadas, labirínticas em suas próprias
fundações, aterrorizado pela iminência do outro resoluto.
#02
Inquietante e aquietante, desagregadora e agregadora, a ratada
de Banksy subverte a monotonia do tipo: igualar como ratos os
do topo e os da base sócio-econômica propõe que a individuação
corrente frutifica depor-se como antagonista, para repor-se – a
si bem como a todo e qualquer um, na multidão de indivíduos
suplantando a massa – como protagonista. A aguardar
futuros desdobramentos da rat-art. O desenvolto envoltório
Banksy conter um ou conter muitos resume a proposição
contemporânea, emblema a contemporaneidade da proposta.
Sua unicidade-pluralidade, corporificada de individuação, não se
põe solucionada, mas provisória, é portanto perfeita sinopse para
o “inventário do ir-remediável”77. A saber.
*
76. KAFKA, 1998, p. 53
77. ABREU, Caio Fernando. Inventário do ir-remediável. Porto Alegre: Sulina, 1995.
113
Trabalhar Cansa*
Maria Angélica Melendi
*Para Cesare Pavese e Richard Serra
114
LINDONÉIA
#02
DISCIPLINA
O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos,
um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos
nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros
transeuntes, cada um sabe que está sozinho
e que tem sono — perdido no seu próprio sonho,
cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos.
Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos
a fixar o trabalho que agora começa.
Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono
e pensamos com calma os pensamentos do dia
até que o sorriso vem. Com o regresso do sol
estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento
menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente
e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer.
A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares.
Nada pode turvar a manhã. Tudo pode
acontecer e basta levantar a cabeça
do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam
e que ainda não fazem nada passam na rua
e alguns até correm. As árvores das avenidas
dão muita sombra e só falta a erva
entre as casas que assistem imóveis. São tantos
os que à beira-rio se despem ao sol.
A cidade permite-nos levantar a cabeça
para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos.
Cesare Pavese, em Trabalhar Cansa (Lavorare Stanca)
Tradução de Carlos Leite.
115
www.estrategiasdaarte.net.br
Constantin Brancusi
Em sua oficina, c. 1923-25
116
LINDONÉIA
#02
Diego Rivera
Em sua oficina, c. 1930
117
www.estrategiasdaarte.net.br
David Smith
Em sua oficina, c. 1945
118
LINDONÉIA
#02
Marcel Duchamp
Em sua oficina, c. 1950
119
Andy Warhol
Trabalhando em Flowers, 1965
120
LINDONÉIA
#02
Richard Serra
Trabalhando em Splashing, 1968
121
Ligya Pape
Roda dos prazeres, 1968
122
LINDONÉIA
#02
Helen Frankenthaler
Em sua oficina, 1969
123
www.estrategiasdaarte.net.br
124
Robert Smithson
Trabalhando em Glue Pour, 1970
LINDONÉIA
#02
Hélio Oiticica
Em sua oficina, c. 1970
125
Michael Heizer
Trabalhando em Circular Planar Displacement Drawing, to be erased by first rain. c. 1970
126
LINDONÉIA
#02
Gordon Matta-Clark
Trabalhando em um caminhão grafitado, 1973
127
www.estrategiasdaarte.net.br
Mierle Laderman
Hartford Wash: washing, 1973
128
LINDONÉIA
#02
Anna Maria Maiolino
Por um fio, 1976
129
www.estrategiasdaarte.net.br
Anna Bella Geiger
Brasil nativo/ Brasil alienígena, 1977
130
LINDONÉIA
#02
Alfredo Volpi
Em sua oficina, 1978
131
Giuseppe Penone
Trabalhando em The hidden life within. c. 1980
132
LINDONÉIA
#02
Joseph Beuys
Trabalhando em 7000 carvalhos, 1981
133
José Leonilson
Caderno de Anotações, 1981-83
134
LINDONÉIA
#02
Marina Abramovic
Balkan Baroque, 1997
135
www.estrategiasdaarte.net.br
Lucian Freud
Em sua oficina, 2005
136
LINDONÉIA
#02
Seth Wulsin
Trabalhando em 16 Tons, 2006
137
www.estrategiasdaarte.net.br
138
Richard Serra
Verb list, 1967-68
LINDONÉIA
#02
TO ROLL - rolar
TO CREASE - vincar
TO FOLD - dobrar
TO STORE - armazenar
TO BEND - dobrar
TO SHORTEN - encurtar
TO TWIST - torcer
TO DAPPLE - salpicar
TO CRUMPLE - enrugar
TO SHAVE - barbear
TO TEAR - rasgar
TO CHIP - desbastar
TO SPLIT - dividir
TO CUT - cortar
TO SEVER - romper
TO DROP - soltar
TO REMOVE - remover
TO SIMPLIFY - simplificar
TO DIFFER - diferir
TO DISARRANGE - desarranjar
TO OPEN - abrir
TO MIX - misturar
TO SPLASH - espirrar
TO KNOT – laçar
TO SPILL - derramar
TO DROOP - inclinar
TO FLOW - fluir
TO CURVE - curvar
TO LIFT - levantar
TO INLAY - inflar
TO IMPRESS - impressionar
TO FIRE - incendiar
TO FLOOD - inundar
TO SMEAR - difamar
TO ROTATE - girar
TO SWIRL - rodar
TO SUPPORT - suportar
TO HOOK - conectar
TO SUSPEND - suspender
TO SPREAD - espalhar
TO HANG - pendurar
TO COLLECT - coletar
OF TENSION – de tensão
OF GRAVITY – de gravidade
OF ENTROPY – da entropia
OF NATURE – da natureza
OF GROUPING – de agrupar
OF LAYERING – de camadas
OF FELTING - feltragem
TO GRASP - compreender
TO TIGHTEN - apertar
TO BUNDLE - agrupar
TO HEAP - amontoar
TO GATHER - reunir
TO SCATTER - espalhar
TO ARRANGE - organizar
TO REPAIR - reparar
TO DISCARD - descartar
TO PAIR - emparelhar
TO DISTRIBUTE - distribuir
TO SURFEIT - fartar
TO COMPLIMENT - elogiar
TO ENCLOSE - delimitar
TO SURROUND - cercar
TO ENCIRCLE - circundar
TO HOLE - furar
TO COVER - cobrir
TO WRAP - embrulhar
TO DIG - cavar
TO TIE - atar
TO BIND - amarrar
TO WEAVE - tecer
TO JOIN - unir
TO MATCH - combinar
TO LAMINATE - laminar
TO BOND - vincular
TO HINGE - depender
TO MARK - marcar
TO EXPAND - expandir
TO DILUTE - diluir
TO LIGHT - iluminar
TO MODULATE - modular
TO DISTILL - destilar
OF WAVES – por ondas
OF ELECTROMAGNETIC – de eletromagnética
OF INERTIA – da inércia
OF IONIZATION – por ionização
OF POLARIZATION – da polarização
OF REFRACTION – por refração
OF TIDES – das marés
OF REFLECTION – por reflexão
OF EQUILIBRIUM – de equilíbrio
OF SYMMETRY – da simetria
OF FRICTION – da fricção
TO STRETCH – esticar
TO BOUNCE - saltar
TO ERASE - apagar
TO SPRAY - pulverizar
TO SYSTEMATIZE - sistematizar
TO REFER - referir
TO FORCE – forçar
OF MAPPING – de mapeamento
OF LOCATION – de localização
OF CONTEXT – do contexto
OF TIME – do tempo
OF CARBONIZATION – da carbonização
TO CONTINUE - continuar
139
www.estrategiasdaarte.net.br
140
*

Documentos relacionados