zico maria ribeiro paula dib alice ruiz

Transcrição

zico maria ribeiro paula dib alice ruiz
REVISTA DO ITAÚ PERSONNALITÉ N O 23 | ANO 6
ZICO
Dez histórias do
camisa 10 que
emocionou o mundo
MARIA RIBEIRO
PAULA DIB
ALICE RUIZ
EXEMPLAR DISTRIBUÍDO NAS
AGÊNCIAS PERSONNALITÉ
EDITORIAL
V
´ sobre foto de Bongarts/Getty Images
ilustração de zoran lucic
encer a (quase) imbatível Espanha na final da Copa
das Confederações por 3 a 0 deu à seleção do Brasil a
confiança que faltava para chegar à Copa do Mundo de 2014
como uma das favoritas. A menos de um ano do início do
campeonato mais aguardado do planeta, a Revista Personnalité
traz na capa um dos maiores jogadores brasileiros de todos
os tempos. Mesmo não tendo ganhado um mundial com a
camisa canarinho, Arthur Antunes Coimbra, o Zico, viveu e
transpirou o futebol nacional como poucos. E, como bem disse o comentarista Fernando Calazans, “se Zico não ganhou a
Copa, azar da Copa do Mundo”.
Em entrevista exclusiva, o jogador lembra que, quando
ainda não era o craque da família, matou aula para assistir aos
irmãos jogando bola. Dá para imaginar essa cena? – a primeira de muitas vividas por Zico e contadas na reportagem “10
histórias do camisa 10”. Nosso quarteto da edição apresenta
ainda a atriz Maria Ribeiro, a poeta Alice Ruiz e a designer
Paula Dib, que trabalha criando uma conexão entre design,
artesanato e mercado.
Além dos quatro personagens principais, trazemos outras
reportagens, como a que expõe o efeito transformador do trabalho de dois arquitetos noruegueses, que mudaram o jeito de
viver em algumas cidades da Escandinávia apenas ouvindo os
desejos dos habitantes. Prepare-se também para uma viagem
até o Japão: selecionamos os jardins mais lindos e emblemáticos do país. Vale destacar a turma que reunimos em nossa
seção Cá entre Nós, que abre a revista: Fernando Meligeni,
Sarah Chofakian, Marcos Caruso e Mônica Waldvogel.
Enfim, você tem em mãos uma edição que é uma seleção
de craques, com histórias de vida que convergem em uma
forma muito especial de ver o mundo e encarar os desafios
que nos são colocados diariamente.
Um abraço e boa leitura,
André Sapoznik
Itaú Personnalité
´
ilustração feita por zoran lucic
sobre foto de zico de 1986, servindo a
seleção brasileira na copa do méxico
Colaboradores
expediente
Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor
Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretor
de Núcleo Tato Coutinho Diretor Financeiro Agenor S. Santos
Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de
Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba
Nesta edição o jornalista e roteirista carioca
Pedro Só, 45 anos, entrevistou Zico. “É
impossível ficar imune ao fascínio de um ídolo
carismático, inteligente e com muita história
para contar. Um brasileiro admirável não só pelo
talento esportivo, mas pela trajetória e postura.”
Pedro, que trabalhou nas revistas Bizz e Vip e
foi editor executivo do Globoesporte.com,
é editor-chefe da revista Billboard.
O fotógrafo Gil Inoue nasceu em São Paulo,
mora em Nova York há quase dez anos e diz
ainda querer achar o melhor café espresso do
planeta. Atualmente, aos 36 anos, pretende, um
dia, terminar de ler Em busca do tempo perdido.
Nesta edição, fotografou a escritora Alice Ruiz.
“Ela foi muito acolhedora. Saí de lá achando que
precisamos de mais poetisas no nosso mundo.”
fotos: arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal
Trazer a natureza para dentro da casa das pessoas
é uma das buscas da fotógrafa Marina Klink,
48. Colaboradora da Folha de S.Paulo e Vogue,
hoje viaja com sua exposição Antártica - A última
fronteira, seleção de 22 fotos do livro homônimo.
Na página 58, ela abre seu diário e álbum de
viagem durante uma jornada literária pelo rio
Negro. “Além do convívio interessante com autores
consagrados, encarei uma imersão na floresta,
programa imperdível e gratificante.”
fotos: arquivo pessoal / Adriana Vichi / Ottmar Parachin / arquivo pessoal
O jornalista paulistano Celso Unzelte, 45, é
um dos apresentadores do programa Loucos
por futebol da ESPN, além de fazer parte do
time de comentaristas do Cartão verde, da TV
Cultura. Com 15 livros publicados, a maioria sobre
o universo do futebol, ele é o responsável pela
reportagem sobre os mascotes da Copa. “Foi
uma oportunidade única de escoar muita
informação que eu não tinha onde publicar.”
Diretor de Redação Décio Galina Editora Lia Bock Direção de
Arte Vanina Batista Editora de Arte Cyntia Fonseca Produtora
Executiva Kika Pereira de Sousa Assistente de Produção Juliana
Carletti Departamento Comercial Supervisora de Projetos
Especiais e Planejamento Comercial Ana Carolina Costa Oliveira
Assistente Comercial da Diretoria Gabriela Trentin Assistente
de Arte Marketing Publicitário Fabiana Cordeiro Gerentes de
Contas Paulo Paiva e Roberta Rodrigues Executivo de Contas
Marcelo Milani Gerente de Contas On-line Marco Guidi Executiva
de Contas On-line Fernanda Siqueira Assistente de Tráfego
Comercial Aline Trida Para anunciar [email protected]
Representantes Internacionais Sales Multimedia, Inc. (USA)
[email protected] Argentina Roberto Rajmilevich
[email protected]; BA Romário Júnior DF Alaor Machado MG
Rodrigo Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller RJ
Juliana Rocha RJ (Trip e Tpm) X² Representação RS/SC Ado
Henrichs SE Pedro Amarante SP Interior Daniel Paladino
Pesquisa de Imagens (coordenação) Aldrin Ferraz Bibliotecário
Daniel de Andrade Estagiárias Nataly Rodrigues e Gabriela Lie
Produção Gráfica Walmir S. Graciano Produtor Gráfico Cleber
Trida Tratamento de Imagens Roberto Longatto e Roberto
Oliveira Revisão Ecila Cianni (coordenação), Adriana Rinaldi,
Janaína Mello e Marcos Visnadi Projetos Especiais e Eventos
Coordenação Regina Trama Editora de Arte Ana Luiza Gomes
Assistente Mariana Beulke Trade e Circulação Diretora Daniela
Basile Analista de Trade Renata Vilar Gerente de Circulação
Adriano Birello Analista de Circulação Vanessa Marchetti
Projetos Digitais Diretor de Mídias Eletônicas de Custom
Publishing Beto Macedo Editores de Arte Débora Andreucci
e Diego Maldonado Assistente de Arte Julia Vargas Gerente
de Negócios Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo Coordenação
Ana Rosa Sardenberg Videomaker Marco Paoliello e Lucas Kiler
Assistentes de Produção e Finalização Viviane Gualhanone e
Danielle Belo Editor de Vídeo Pitzan Oliveira Produção Bruno
Oliveira TV Trip Direção Joana Cooper Diretora Assistente Anice
Aun Editora Daniela Guimarães Produção Ricardo Rezende
Relações Públicas Taís Neri Assistentes de RP Rafael dos Santos
e Monalisa de Oliveira Estagiária Verônica Centeno Colaboraram
nesta edição Edmundo Clairefont (edição), Kiki Tohmé (arte),
Ana K. Rodrigues, Barbara Gancia, Carol Sganzerla, Celso Unzelte,
Fernanda D’Angelo, Kelly Cristina Spinelli, Leticia de Castro, Letícia
González, Lívia Aguiar, Luciana Lancellotti, Pedro Só, Rogério
de Moraes, Rosane Queiroz (texto) Carol Quintanilha, Fernando
Young, Gil Inoue, Marcelo Correa, Marcos Vilas Boas, Marina Klink,
Nelson Mello, Paula Giolito e Renata Ursaia (fotos) Zoran Lucic
(ilustração) Isabela Queiroz (styling) Ana Hora (produção)
Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando Chacon,
André Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Ligia
Benavente e Mariana Couto de Arruda Colaboradores DPZ
Propaganda Marcello Barcelos e Maria Pestana Capa Sebastião
Marinho/Agência O Globo Quarta capa Colorsport/Corbis
Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora
e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité.
Endereço para correspondência: rua Cônego Eugênio Leite, 767,
05414-012, São Paulo, SP.
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A Trip Editora, cons­ci­en­te das questões am­bi­en­tais e sociais,
utiliza papéis Suzano com certificado FSC
(Forest Stewardship Council) para
impressão deste material.
A Certificação FSC garante que uma
matéria-prima florestal provenha de um
manejo considerado social,
ambiental e economicamente adequado.
Impresso na Pancrom – Certificada na
Cadeia de Custódia – FSC
Colaboradores
Colaborador de publicações como Bravo e
Vogue, o carioca Fernando Young começou
a trabalhar com fotografia aos 15 anos. Hoje, aos
29 anos, guarda no currículo cliques de gigantes
como Gilberto Gil e Fernanda Montenegro. Nesta
edição, cuidou dos retratos da atriz Maria Ribeiro.
“Foi maravilhoso! Sua casa é encantadora e sua
família nos recebeu superbem. A Maria tem um
olhar sereno e uma presença encantadora.”
Interessado em poesia e filosofia, Marcelo
Correa, 40, mergulhou, a pedido da Revista
Personnalité, em uma outra paixão: o futebol.
Fotógrafo há 16 anos, o carioca fez as fotos do
craque Zico para a reportagem de capa desta
edição. “Ele faz parte da minha memória
de infância. Apesar de eu ser vascaíno, era
impossível não parar para ver o Zico jogar. Foi
nesta condição de carinho que fui fotografá-lo.”
Por nove anos, a jornalista Carol Sganzerla,
32, trabalhou na revista Tpm, onde foi de
estagiária a diretora de redação. Em 2012,
recebeu o Esso, principal prêmio do jornalismo
nacional. Hoje, escreve perfis, como o que
fez nesta edição, com a atriz Maria Ribeiro.
“Foi como rever uma amiga. Conversamos
regularmente desde que ela começou a assinar
uma coluna na Tpm, quatro anos atrás. Foi uma
delícia. A Maria é uma pessoa extremamente
agradável, muito gentil.”
´ 31, nasceu em
O ilustrador Zoran Lucic,
Sabac, na Sérvia, e mora em Bijeljina, na Bósnia.
Interessado nas diferenças, formou-se em design
gráfico, mas começou ilustrando pôsteres de
bandas punks. A partir da página 76, ele ilustra
os clássicos mascotes dos mundiais da Fifa.
“Foi nostálgico ver alguns deles, me lembrei da
Itália, sede da primeira Copa do Mundo de que
recordo mais claramente.”
sumário
10 Cá entre Nós
Música, gastronomia, cinema, moda e futebol –
dicas de quem sabe viver bem
15 Prestígio
O mestre e o aprendiz
16
48
64
Não faltam momentos marcantes na carreira de Antônio
Fagundes. Mas foi em 2012, quando subiu pela primeira vez
em um palco ao lado do filho, que se sentiu mais prestigiado
16 filme da vida
A viagem de Maria Ribeiro não é relacionada à fama, mas sim
ao tempo. A morte do pai, o filme que está fazendo sobre os
24 Receitas de família
Os antigos cadernos de receitas da poeta Cora Coralina
e da família Wessel trazem nas entrelinhas ensinamentos de vida
32 “A beleza salvará o mundo”
A designer Paula Dib trabalha criando uma conexão entre o design,
o artesanato e o mercado. Ela pesquisa as comunidades onde
trabalha e busca uma real transformação através da arte
40 A fantástica fábrica de ideias
Conheça os dois noruegueses que compraram um trailer e viajaram
900 dias ouvindo pessoas para reinventar a arquitetura: “Um projeto
lindo, mas que torna a vida desconfortável, é um fracasso”
32
fernando young/ marcos vilas boas/ gil inoue / marcelo correa
Los Hermanos e suas buscas revelam sua ânsia por olhar para trás
48 Mulher de palavras
74 A cara da Copa
Poeta e esposa de Paulo Leminski por 20 anos, Alice Ruiz
Do leão Willie ao tatu-bola Fuleco, passando por mascotes criados
é também letrista. Foi parceira de Itamar Assumpção
na Ásia e na África, saiba como nasceram os 13 personagens que
e já trabalhou com Zélia Duncan e Arnaldo Antunes
marcaram a história dos mundiais
56 viagem literária
82 Ilusão de ótica
Diário de bordo da fotógrafa Marina Klink dá detalhes
Na tradição zen-budista, a perfeição dos jardins japoneses
da rotina sem internet do encontro de escritores realizado
é uma homenagem aos espíritos da natureza. Conheça
durante um cruzeiro pelo rio Negro, na Amazônia
quatro dos mais lindos jardins do Japão
64 AS DEZ histórias do camisa 10
Mergulhamos na trajetória de Zico. Um dos maiores
90 Primeira Pessoa
A BASE
craques do futebol brasileiro abriu o jogo sobre as
A empresária Glória Kalil escolheu um tapete para representá-la.
razões de seguir no mundo da bola
“Ele faz parte da história da família, sempre foi nossa base”, diz
cá entre nós
cá entre nós
gastronomia, moda, cinema, esporte e música – convidados especiais abrem suas preferências
_objetos de desejo
sarah chofakian, estilista
_água na boca
Javier Peña, chef
Os sapatos de Sarah Chofakian nascem em seu escritório, em
São Paulo. Antes de chegarem às clientes, todos passam por seus pés
O espanhol Javier Peña, do restaurante Porto, em São Paulo, ensina uma
receita de tapa com tempero tropical: petiscos de palmito e presunto ibérico
por Kelly Cristina Spinelli
por Kelly Cristina Spinelli
Tapa hispano-brasileira
Ingredientes
1 pedaço de 30 cm de palmito
pupunha (ou em conserva)
80 g de chorizo espanhol picante
80 g de presunto ibérico pata negra
1 cebola picada
2 dentes de alho picados
Toucinho a gosto
Azeite
A ideia que Javier Peña tinha do Brasil
foi posta em xeque logo em sua primeira
semana no país. O espanhol de 32 anos
desembarcara em São Paulo, em março,
com a missão de comandar e renovar
o cardápio do restaurante Porto. “Achei
que ia encontrar samba e festa”, diz, entre
risadas. “Mas me assustei. Choveu
a semana inteira. E não tive pique para
festa nenhuma, de tanto trabalho.”
Nascido em Valladolid, Javier passou
por México, Coreia do Sul e Filipinas,
sempre em restaurantes espanhóis, até ser
convidado a assumir a casa paulistana.
O chef dividiu com a Revista Personnalité
os sabores que fazem sua cabeça.
1. UM SABOR INDISPENSÁVEL.
Feito à mão
“Não criamos nada no computador.
Desenhamos tudo a lápis. O laptop é
onde respondo cerca de 300 e-mails
por dia, e é também o que garante a
trilha sonora do escritório.”
10
Família
“Meu filho, Luiz Benine Netto,
se tornou o diretor financeiro
da marca. Divido minha sala
com ele, estamos juntos nesta
foto do porta-retratos.”
Miudezas
“Herdei este gaveteiro do meu
avô armênio, Krikor. Ele tinha uma
dessas lojas que vendem de tudo.
Aqui, guardo pecinhas para os
sapatos e tudo que é pequenino.”
Azeite. Desde criança como todos os dias torradas
com azeite e tomate no café da manhã. É o segredo
desta minha carinha jovem [risos].
4. QUAIS OS MELHORES INGREDIENTES
BRASILEIROS?
A carne é muito boa. As frutas também. Fiquei
impressionado com a manga, é uma maravilha!
E o mamão, o melão...
2. O QUE NÃO PODE FALTAR NA COZINHA?
Mariscos. Na Espanha comemos muitos peixes e
frutos do mar.
3. DE ONDE VEM SUA INSPIRAÇÃO?
nelson mello
test drive
“Os sapatos da futura coleção
têm marcas que indicam o salto, a
palmilha, o couro que será usado.
Quando ficam prontos, passo um
dia com eles no pé para aprovar.”
Estampas
“Não compro muito livro de
sapato. Quando viajo, trago
livros de texturas, estampas
tradicionais. É nesses detalhes
que me inspiro.”
carol quintanilha
Cartilha
“Faço uma cartilha de cores a
cada coleção, corto em forma de
coração, de trevo... E depois uso
muito para consulta.”
Modo de preparo
Leve o palmito ao forno por 2
horas a 145-150 graus (o palmito
em conserva não passa por essa
etapa). Retire do forno e corte
em pedaços de cerca de 8 a 10 cm,
que serão usados como barquinhos
recheados. Grelhe cada barquinho
por alguns minutos, até que
estejam macios. Reserve.
Refogue a cebola e o alho em
uma panela com um pouco de
azeite. Quando a cebola estiver
transparente, acrescente
o chorizo espanhol picado,
o presunto ibérico e o toucinho.
Mexa por 3 minutos. Recheie
os palmitos e sirva.
Rende 4 porções.
Dos pratos da minha mãe. Aprendi a cozinhar com
ela e minha avó. Temos um “arroz Heloísa” no nosso
cardápio em homenagem a ela.
5. POR QUE UM PEIXE TATUADO NO BRAÇO?
Fiz no Brasil! Em homenagem ao novo
restaurante. Tenho muitas tatuagens, uma para
cada país por onde passei.
6. UMA RECEITA ESPANHOLA.
Sopa de grão-de-bico com bacalhau. É uma receita
da Sexta-Feira Santa. Adoro todo prato que se come
com colher.
11
Experimente
Porto
R. Amauri, 225.
Tel.: (11) 3077-1111
O restaurante Porto faz parte
do Menu Personnalité.
Conheça os pratos em:
itaupersonnalite.com.br/experiencia
cá entre nós
cá entre nós
_Passe a passe
FErnando meligeni, comentarista esportivo
_trilha sonora
marcos caruso, ator, diretor e escritor
O tenista relembra o gol de Ronaldo que abriu o caminho para a vitória sobre
a Alemanha e o pentacampeonato mundial ao Brasil em 2002
por Edmundo Clairefont
Aos 60 anos, o artista e autor de teatro entra em cena com a trilha sonora
de sua vida, construída por clássicos da música brasileira
por fernanda d’angelo
2
3
1
4
5
5. “SAMBA DO AVIÃO”,
TOM JOBIM
Ainda hoje, todas as vezes
que aterrisso no Rio, cantarolo
na memória. é um clássico.
6. AS MÚSICAS
DE PAOLO CONTE
Compositor e cantor italiano.
Adoro a desconstrução e
certa anarquia de suas
letras e melodias.
12
7
7. “O BÊBADO
E A EQUILIBRISTA”,
JOÃO BOSCO E ALDIR BLANC
Não consigo desatrelá-la da voz
de Elis Regina e, sempre que
ouço, me emociono.
divulgação / ricardo correa
2. “RANCHO DA GOIABADA”,
CHICO BUARQUE, JOÃO BOSCO
E ALDIR BLANC
Me apaixonei pela letra dessa
música e a escolhi para cantar
num show de calouros quando
estava no colegial.
4. “CONSTRUÇÃO”,
CHICO BUARQUE
Me lembro de ir ao Mackenzie –
onde eu estudava em São Paulo
– e subir a rua Dr. Vila
Nova cantando “Construção”.
Essa música me leva aos tempos
negros da ditadura.
6
divulgação / reprodução
1. “BARRACÃO”,
ELIZETH CARDOSO
Cantava com minha tia Ruth,
quando morei com ela na
adolescência. Nós tínhamos o
disco de Elizeth e pelo menos
uma vez por semana
colocávamos para tocar.
3. “TORÓ DE LÁGRIMAS”,
ANTÔNIO CARLOS & JOCAFI
Quando estava namorando
a Jussara Freire [atriz], minha
primeira esposa, resolvemos ligar
o rádio do meu fusca e
combinamos que a música que
estivesse tocando seria a nossa
canção. Era “Toró de lágrimas”.
“Fui ver esse jogo na rua, num bar, ao lado de um monte de amigos.
Eu me vesti de verde e amarelo e fiquei lá, diante do telão, aquela
tensão. Brasil e Alemanha, clássico na final, sempre jogo difícil. Quer
dizer, era para ser difícil. Mas o Ronaldo deixou fácil. Aquele primeiro
gol dele... Nossa, esse foi o gol! O chute do Rivaldo, um rebote errado
do Oliver Kahn, lembra? O cara era o grande goleiro do momento.
E o Ronaldo ainda faria mais um. Sensacional!
Era um baita time, esse do Brasil. Uma turma fortíssima.
Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Roberto Carlos... Lembro que, quando
o juiz encerrou a partida, a seleção virou penta e a rua virou uma
bagunça. Do nada, apareceu até um trio elétrico. E do nada mesmo.
Eu estava numa esquina da Faria Lima, aqui em São Paulo. Ela se
transformou naquela confusão que só quem ganhou uma Copa do
Mundo conhece.”
FICHA TéCNICA
BRASIL 2 X 0 ALEMANHA
Domingo, 30/6/2002, Yokohama, Japão
Brasil Marcos, Lúcio, Edmílson e Roque
Júnior; Cafu, Gilberto Silva, Kléberson,
Ronaldinho Gaúcho (Juninho Paulista)
e Roberto Carlos; Rivaldo e Ronaldo
(Denílson). Técnico: Luiz Felipe Scolari.
Alemanha Kahn, Linke, Ramelow, Metzelder,
Frings, Hamann, Jeremies (Asamoah),
Schneider, Bode (Ziege), Neuville e Klose
(Bierhoff). Técnico: Rudi Voller.
Gols Ronaldo aos 21 e aos 33 minutos
do segundo tempo.
O primeiro gol de ronaldo: oliver kahn no limite
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Prestígio | antônio fagundes
cá entre nós
Por Rogério de Moraes
_
O mestre e o aprendiz
_o filme da minha vida
Mônica Waldvogel, jornalista
Antônio Fagundes escolhe o encontro com o filho Bruno, no palco da montagem
de Vermelho, como um dos momentos mais marcantes de seus 47 anos de carreira
A apresentadora de TV aponta o drama romântico Casablanca
como uma das histórias do cinema que “tatuaram” sua alma
por Rosane Queiroz
14
Química em cena
Ganhador de três Oscars (melhor filme,
diretor e roteiro adaptado), Casablanca
é apontado pelo American Film Institute
como o número um entre os cem melhores filmes de amor da história do
cinema. “A melhor cena é a da
despedida entre Ilsa e Rick”, diz
Mônica. “Ele despacha o amor de
sua vida em prol de uma causa.”
Ivan Abujamra/Divulgação
“As time goes by”
“You must remember this, a kiss is just a kiss...”
A música tema de Rick e Ilsa é destaque da trilha
sonora. A canção, escrita em 1931 por Herman
Hupfeld, foi regravada por artistas como John
Lennon, Frank Sinatra, Nat King Cole e Rod Stewart.
divulgação
Triângulo amoroso
Mônica Waldvogel se diz “toda
tatuada de histórias, cenas
e personagens”. O clássico
Casablanca (1942) é uma dessas
marcas. Dirigido por Michael Curtiz,
a história se passa na Segunda
Guerra Mundial, quando o exilado
americano Rick Blaine (Humphrey
Bogart) ajuda outros refugiados
a escapar dos nazistas por
Casablanca, no Marrocos. Quando
um casal pede seu apoio para
deixar o país, ele reencontra Ilsa
(Ingrid Bergman), grande paixão
do passado, agora casada com
Victor Laszlo (Paul Henreid),
líder da resistência tcheca.
Com 47 anos de carreira artística, Antônio Fagundes coleciona momentos
marcantes em suas diversas passagens
por TV, cinema e teatro. Mas poucas,
segundo o ator, se comparam com a que
viveu em março de 2012, quando subiu
ao palco pela primeira vez ao lado de seu
filho, o também ator, Bruno Fagundes.
A experiência se deu com a montagem
de Vermelho, peça do norte-americano
John Logan que, a partir de um fato real
na carreira do pintor russo Mark Rothko
(1903-1970), constrói uma ficção. Como
de fato aconteceu em 1958, o artista precisava pintar uma série de telas que lhe
foram encomendadas. Para o trabalho, e
aqui entra a ficção, decide contratar um
ajudante, com o qual desenvolve uma
Antônio fagundes e o filho bruno dividindo
o palco pela primeira vez na peça vermelho
relação conflituosa. “Foi uma experiência
maravilhosa, especialmente porque era
um texto com personagens que tinham
o nosso perfil”, conta Fagundes. O ator
explica que havia tempos ele e Bruno planejavam contracenar no palco, mas não
encontravam o texto certo. Sem saber, pai
e filho receberam, de pessoas diferentes,
a indicação para o texto de Logan. Quando se falaram para dizer que haviam encontrado a peça ideal, perceberam que se
tratava do mesmo texto. “Não fomos nós
que encontramos o texto. Foi ele que nos
encontrou”, brinca.
Da experiência de dividir o palco com
o filho, o veterano ator revela o prazer
de poder compartilhar com Bruno seu
encanto pelo teatro. “Foi emocionante
ver que ele tem a mesma paixão que tenho pelo palco.” Mas completa dizendo
que, apesar de todo o aspecto emocional,
quando o espetáculo começa a coisa
muda. “Logo você esquece que é seu filho e enxerga só o profissional.” Bruno é
fruto do casamento de Antônio Fagundes
com a atriz e dramaturga Mara Carvalho.
O interesse artístico surgiu cedo, como
recorda o pai: “O Bruno atua desde os
13 anos. Ele é muito dedicado, faz aula
de canto, cursos de interpretação, se
prepara de verdade para a carreira”.
A experiência semeou em Fagundes o
desejo de repetir a dose: “Foi algo muito
especial para nós dois, vamos procurar
novas oportunidades de trabalhar juntos
outra vez no teatro”.
Por Carol Sganzerla Fotos Fernando Young
filme
da vida
Maria Ribeiro, 37 anos, é vidrada na
passagem do tempo. A morte do pai,
o filme que está dirigindo sobre a banda
Los Hermanos e suas buscas revelam,
como ela mesma diz, uma ânsia
por voltar lá atrás, remexer e observar.
Bem-vindos à ampulheta de Maria,
atriz, escritora, apresentadora,
diretora e mãe de dois garotos
16
À
s sete da manhã de uma segunda-feira, Maria inicia
uma rotina que vem cumprindo há seis meses. De sua
casa em Itanhangá, zona oeste do Rio de Janeiro, corre para
o aeroporto Santos Dumont. Leva junto uma sacola com
alguns jornais e algumas peças de roupas. Quarenta minutos
e algum atraso depois, desembarca em Congonhas. Chega
acompanhada da amiga e atriz Monica Martelli, sua parceira
de ponte aérea desde que passaram a dividir o sofá do Saia
justa – que tem ainda as jornalistas Astrid Fontenelle e
Barbara Gancia. Enquanto cruza a cidade em direção ao
estúdio põe o papo em dia, checa os e-mails no celular e
repassa os temas que serão discutidos no programa do GNT.
Almoça, escolhe o figurino, faz o cabelo, a maquiagem.
Segue para o cenário, ganha uma xícara de chá, encaixa o
ponto no ouvido, o microfone na camisa, cruza as pernas e
assim permanece nas 2 horas de gravação.
Minutos antes, um dos produtores conta que Maria é
a mais CDF das quatro. Ela reforça o comentário dizendo
que tem passado os fins de semana estudando. E muito. “É
infinitamente mais interessante do que fazer novela. Sou paga
para ler livro, ficar mais informada”, solta a atriz, com os
olhos acompanhando o trabalho dos técnicos. “Agora, é uma
exposição punk para mim. Tô mostrando o que tenho de
mais íntimo. Não sou fofinha, demoro a ser compreendida.
Tem gente que me acha antipática, radical.”
Por “antipática e radical” leia-se assumir algumas
posições, digamos, politicamente incorretas, como quando
contou que é paranoica e às vezes se acha gorda; que pega
estrada pelo acostamento e que fuça o Instagram do marido,
o ator Caio Blat, 33 anos. Mas Maria acha que vale a pena, diz
ser terapêutico ser franca na televisão, terreno onde o adjetivo
é raro. Não gosta de se dividir em duas personalidades,
como muitos atores fazem. “Não quero que as pessoas me
idealizem.” Até porque passa longe de seus interesses ser
mais famosa do que é. Se acontecer, prefere que o motivo seja
um trabalho. Por ora, está prestes a voltar ao ar com a série
Copa Hotel, no GNT, no papel de uma médica (a segunda
temporada tem início previsto para 30 de setembro), e cogita
fazer novela. Mas não tem, como diz, “a viagem da pop star”.
A viagem de Maria é outra. Tem mais a ver com sua
18
maria ribeiro
fotos: arquivo pessoal
Personnalité
“Estou
onde
imaginava
estar
nos meus
melhores
sonhos”
relação com o tempo. Gosta de voltar lá atrás, remexer,
observar. A primeira vez que sentiu a passagem dos anos tinha
25. Juntou, então, as aflições que batiam à porta e as comprimiu
no curta-metragem Vinte e cinco. Escreveu, dirigiu, atuou. Era
o ano de 2001 e a atriz tinha recém-saído da novela A padroeira,
na Globo, pois o diretor Walter Avancini havia morrido e o que
assumiu a trama demitiu metade do elenco. Passou um mês
digerindo aquela dor. Até que ouviu do amigo e dramaturgo
Domingos Oliveira: “Eu não sou o Domingos porque alguém
disse que eu era. Eu disse que eu era”. Pegou o dinheiro que
ganhou com a tal novela e foi montar seu curta.
Com o filme em andamento, topou, no jornal, com a lista dos
melhores discos do ano e nela figurava o Bloco do eu sozinho, do
Los Hermanos. Já tinha visto a banda se apresentar na PUCRJ, onde cursava jornalismo, mas foi esse álbum que a tocou.
“Era justo o momento em que eu estava sentindo a passagem
do tempo, emocionada. Um dia encontrei o Rodrigo Amarante
no Baixo Gávea e falei: ‘Rodrigo, prazer, eu sou a Maria, estou
fazendo um filme e queria muito usar o disco na trilha. Pode?’.
Mandei um VHS e eles toparam.”
Acima, no casamento com caio Blat em 2007; e com os filhos,
joão e bento. Na página ao lado, na infância, com o pai,
Leonídio, e com a mãe, Marina
19
Personnalité
maria ribeiro
_
“O repertório é sempre
generoso e borbulhante”
Como todos e seus vizinhos, deixei-me enlevar por seu
papel em Tropa de elite. Mas, quando fui comunicada
de que Maria faria parte da formação do Saia justa 2013,
deu branco: “É aquela que fez Cidade de Deus, né?”.
Sempre ouvi que, depois de um tempo no ar, ocorria
certo desgaste de material entre as apresentadoras do
programa. Por isso, não dei sequer um Google no nome
delas antes de conhecê-las pessoalmente. Queria me
ela encontra em casa, nos jantares que promove. “O Caio
cozinha e ela organiza tudo de um jeito sofisticado. Ela
é muito generosa na hora de receber, sempre tem muita
comida, eles são exagerados”, entrega a amiga e roteirista
Antonia Pellegrino.
Antes da mudança para essa casa que o marido planejou
e construiu em Itanhangá, três anos atrás, Maria tinha um
maior convívio social na rua. “Ela acordava e saía. É ativa, tem
necessidade de se movimentar. Então, foi um trauma quando
mudamos. Lá é isolado, o acesso é difícil, só tem mato; e antes
ela tinha conta na padaria, na banca, na farmácia. Colocamos
a casa à venda, mas ela foi se acostumando, mudou os hábitos,
hoje fica dois, três dias inteiros sem sair. A mudança só
fortaleceu a relação”, conta Caio, que é pai de Bento, 3 anos.
(Maria tem ainda João, 10, fruto de seu relacionamento com o
ator Paulo Betti.)
Sempre que possível, o casal trabalha junto. Em outubro
está previsto o lançamento do longa-metragem Pele de
cordeiro, de Paulo Morelli, em que vivem a história de
sete amigos que querem ser poetas, se encontram para
escrever cartas para si mesmos e as leem dez anos depois.
No cinema, já contracenaram em Histórias de amor duram
Onze anos depois eles aceitaram uma segunda proposta de
Maria: gravar um documentário sobre o grupo. Mas dessa vez
ela custou a receber um “sim”. Tentou registrar os shows que
marcaram o término da banda, em 2007, e a apresentação que
abriu para o Radiohead, em 2009; mas só em 2012, na turnê
comemorativa dos 15 anos, a banda concordou com a ideia.
Hoje, depois de percorrer 14 cidades e acompanhar
inúmeros shows, tem nas mãos um primeiro corte e um título
provisório, bem ao estilo Maria: Los Hermanos – Esse é só
o começo do fim da nossa vida. “Tem momentos íntimos de
camarim, de quarto de hotel, mas não forcei uma relação. O meu
Los Hermanos não é sensacionalista, o foco não é na separação.”
concentrar apenas na minha própria performance.
Mas é claro que Maria não deixou. Logo de cara, foi
tratando de se apresentar: “Sei tudo a seu respeito, conheço seu trabalho, meu ex-marido é seu amigo...”. Nem
mesmo Margaret Thatcher teria se mantido impassível
diante de tamanho poder de envolvimento.
Com a Maria, nem que tentasse, não conseguiria
exercitar uma característica minha fundamental, a de
ser nojentamente esnobe quando me convém. Ela vai
revelando de si no que parecem ser baldes, mas na
verdade são doses medicinais de verdade. Ora deixa
jorrar litros de ironia a seu respeito, ora pinga uma confidência (devo admitir que o fato de desgostarmos dos
casa de vidro isolada no mato
momentos, joga acolá uma ideia genial para o programa.
É fácil entender a adoração de Maria pelo grupo. Sua
adolescência, regada a Tom Jobim, João Donato, Baden Powell,
não tinha espaço para um grupo teen. “O Los Hermanos me
libertou. Eu me sentia muito representada por eles. Nos 45 do
segundo tempo consegui uma banda para ser groupie”, conta.
“Tudo o que me reprimia passei a me permitir. Eu não sou fácil
de rir, de dançar, fico me vendo de fora...”
Cair na noite nunca foi programa para Maria. Os amigos,
arquivo pessoal / divulgação/gnt
mesmos conhecidos tem nos unido à beça). E, noutros
O repertório é sempre generoso e borbulhante. Se ao
menos eu a deixasse falar um pouco mais, não é mesmo,
quem sabe os assinantes do GNT não pudessem usufruir
melhor deste patrimônio da humanidade?
Barbara Gancia, 55 anos, é apresentadora do Saia justa,
colunista da Folha de S.Paulo e da Bandnews FM
20
de cima para baixo: lançando tropa de elite em berlim
com o primo e diretor josé padilha e wagner moura;
ao lado, com o primo em 1995; com os colegas do filme
Pele de Cordeiro; e no sofá do Saia Justa
no alto, na sala de casa, em itanhangá (rio de janeiro)
21
maria ribeiro
Essa franqueza que você encontrou no mundo
do Domingos não tinha em casa?
Não. Mentir era uma coisa normal. Meu pai, por exemplo,
tinha um irmão que passei anos achando que era meu primo.
Um monte de histórias. Então passei anos mentindo. Mentia
besteiras, quase que como um medo de falar a verdade.
apenas 90 minutos (Paulo Halm, 2010), trama em que se
apaixonam pela mesma mulher. Agora, se preparam para
iniciar os ensaios da montagem de Os irmãos Karamázov.
As referências culturais de Maria começaram cedo,
devido à proximidade que tinha com o primo e diretor José
Padilha (de Tropa de elite 1 e 2, filmes em que ela atuou como
Rosane, mulher do Capitão Nascimento) e com seu irmão
Otávio Leonídio, dez anos mais velho. Quando chegou à
família, a caçula encontrou também os irmãos Isabel e Leo
(hoje com 46 e 50 anos). “Maria magnetizou a atenção da
casa, era uma criança sorridente e disponível”, descreve
Otávio. “Desde cedo fomos muito próximos, tínhamos uma
identificação via música e literatura. Eu ouvia João Gilberto
e Tom Jobim, lia Machado de Assis e Rubem Braga. Isso
a influenciou. Acho até que a escrita dela tem a ver com
Rubem, crônicas com tom confessional. A essência da Maria
tem a ver com a palavra.”
É com esse tom confessional que Maria assina sua coluna
na revista Tpm há quatro anos – eventualmente também
escreve perfis para o jornal O Globo. Quem acompanha sabe
que ela nasceu numa família tradicional do Rio de Janeiro,
que cresceu em um casarão com empregados, que estudou em
colégios de elite (São Patrício e Gimk), que seu pai foi um alto
executivo e sua mãe, dona de casa; que se separaram quando
ela tinha 9 anos, que passavam as férias na casa de Angra
dos Reis (RJ). E que seu primo e seu irmão se tornaram seus
parceiros. “Tinha um afeto muito forte ali. Eram as pessoas
que me davam carinho. Meus pais foram muito negligentes
na minha adolescência”, deixa escapar.
Ela quer falar mais.
_
“Maria não é só isso”
“Maria Ribeiro é indevassável. Bonita como ela só,
é reservada, educada, danada. Refinada, eu poderia ter dito. Mas não se trata disso porque a Maria
não tem frescuras. Verdade que pessoalmente
tenho bons motivos para gostar dela. Além de
provocante companheira de trabalho, fez um filme
terno e inteligente sobre mim no qual ela afirma
que se sentiu em casa quando chegou na minha
casa! Não é preciso dizer mais. É evidente que
Maria deseja fazer de nossos destinos um só. Não
trabalhamos juntos ainda o suficiente. Maria vive
muito trancada no mundo dela, privacidade essa
que piora muito quando ela casa. Talvez Maria não
confesse isso, mas sua noção de amor é radical.
Exagerada ela é também, segundo sua justiça
interior inflexível. Recentemente, sofreu uma grande perda e resistiu estoicamente. ‘O homem tem
Aos 37 anos, casada, com dois filhos, com seus projetos,
é onde imaginava chegar?
Total. Estou talvez no ano mais intenso da minha vida...
Perdi meu pai [em março, por complicações de saúde]. Foi
avassalador. Mas sou muito feliz com a minha vida e muito
feliz de saber que fui eu mesma que botei cada pedra. Estou
onde imaginava estar nos meus melhores sonhos. Porque,
aos 20 anos, quando pensava em uma pessoa bem-sucedida,
pensava no lado profissional. Acho importantíssimo, mas o
que me dá alegria é que desenvolvi um olhar para a vida.
O que a perda do seu pai mudou em você?
Foi uma revolução, porque a gente brigava muito, mas éramos
parecidos. Ele vibrava com as minhas coisas. Era um cara
muito passional, controlador, forte, agressivo muitas vezes.
Ele não era fácil, só que era louco por mim. Era um ótimo pai
de criança. Me levava para pescar, me ensinou a dirigir lancha
em Angra, a dirigir carro. Dizia que eu tinha que dirigir como
homem. A sensação que tenho é que não foi a maternidade e
sim ter perdido o meu pai o que me tornou adulta.
Que outra lembrança forte tem da infância?
O closet da minha mãe. Era enorme, ela tinha roupas incríveis,
meus pais tinham muitos jantares. Lembro de botar o pé no
sapato dela. Era uma forma de estar perto, de trazer esse lado
feminino. Minha mãe tem uma coisa delicada, é aquela pessoa
que manda flores no dia seguinte de um jantar. Tenho isso
e, apesar de ser mais desconfiada, presto muita atenção no
outro. Já meu pai era totalmente autocentrado.
que ser maior que o seu sofrimento’, ela poderia
para isso. Belos filhos, casa, marido, reconhecida
na profissão. Ela apenas faz parte da turma que
quando finaliza um filme ou peça pergunta: ‘E daí,
é só isso?’, ‘Que trabalho vamos fazer agora?’. Quem
aí conhece The heiress (A herdeira) de William
Wyler? Sucesso de Olivia de Havilland na beira dos
anos 50. E também da jovem Bibi Ferreira. Alguém
aí quer produzir essa peça? Melhor modo de aproveitar uma entrevista é marcar encontros e armar
negócios. Precisamos conversar só nós dois, Maria.
Trocar informações secretas. Três já é passeata.
Obrigado por eu ter te conhecido.”
Domingos Oliveira, 76 anos,
é ator, diretor e dramaturgo
no alto, reunião da equipe de cozinheiros e atendentes do tickets,
um grupo que albert gosta de chamar de “tropa de elite”
22
Divulgação/guga melgar / Assistente: Felipe Ovelha / Make: Nat Rosa /
Produção: Ana Hora / Styling: Isabela Queiroz
ter dito. Mas não que seja triste. Não tem motivos
Como foi sua adolescência?
No colégio, eu era a garota que fazia teatro e no teatro era a
garota patricinha. Com 19 anos, participei da leitura da peça
Amores, na casa do Domingos Oliveira. “Comecei a chorar no
meio. Falei: ‘É isso! Achei. Essa é a minha gente’.” Tinha uma
coisa franca, despudorada, de falar de sentimento.
Você vai fazer um filme sobre seu pai?
Filmei meu pai quando vendemos a casa de Angra, um
lugar idílico onde passei minha infância e adolescência.
Sempre achei ele um personagem carismático. Um cara
por quem as minhas amigas se apaixonavam. Em janeiro,
dei para um amigo montador assistir. E ele falou: “Maria,
seu pai é um filme”. Ainda não sabia que meu pai ia morrer.
Talvez o que eu tenha de mais importante para contar
seja exatamente essa história. Mas é um filme que eu
preciso ter coragem de fazer.
Você foi escolhida para fazer a peça?
Não. Mas não importava, eu tinha descoberto que existia um
lugar no mundo para mim. Comecei a ver Woody Allen, Todas
as mulheres do mundo [ filme de Domingos Oliveira, de 1966],
Truffaut. Gosto dessa coisa do cotidiano, da vida privada, que
tem um riso amargo no fim. Depois, o Domingos me chamou
para fazer a peça Confissões de adolescente e ficamos dez
anos grudados. Ele é certamente a pessoa mais importante da
minha vida profissional.
Na página ao lado, maria em sua casa; e com domingos
oliveira em registro do filme domingos, dirigido por ela
23
Por Luciana Lancellotti
Cora coralina em seu fogão a lenha
na cidade de goiás velho
Vicência Brêtas Tahan, filha de Cora Coralina
Fotos do acervo da família cedidas por
O TEMPO
COMO
INGREDIENTE
Sabores, aromas e texturas impressos em páginas
amareladas pelo tempo trazem de volta recordações
que atravessam gerações. Mais do que o beabá do
preparo de pratos e comidinhas, os antigos cadernos
de receitas da poeta Cora Coralina e da família
Wessel trazem nas entrelinhas ensinamentos de vida
25
Arroz e poesia
avermelhada dos grãos, uma espécie de
apelo lúdico involuntário, guardado na
memória em tons vivazes. “A saudade
é tanta que há pouco tempo perguntei
para a minha mãe o que a vovó colocava
na receita e a resposta foi simples: colorau, acredita?”
Igualmente precisas são as recordações que ela tem de Cora preparando
doces no fogão a lenha, em tachos de
cobre, contando histórias deliciosamente intermináveis para a família,
durante manhãs e tardes inteiras. O
favorito da neta era o de buriti, fruto
típico da região do Cerrado, originário
das palmeiras mais altas do Brasil. O
sabor, adocicado, levemente ácido, lem-
_
Puxa (para
meus netos)
de Cora Coralina
Ingredientes
1 kg de rapadura
½ kg de amendoim torrado e triturado
sem casca
1 xícara (chá) de água
modo de preparo
Corte a rapadura em pequenos pedaços e leve a uma panela ou tacho com
Paula Giolito / arquivo pessoal / Fotos do acervo da família
a água. Deixe ferver até ficar uniforme,
26
cedidas por Vicência Brêtas Tahan, filha de Cora Coralina
“Ah, que sabor tinha o arroz da vovó...” A
vovó, no caso, era a poeta Cora Coralina
(1889-1985), que teve seu primeiro livro
publicado aos 76 anos de idade e exerceu,
durante a maior parte da vida, a profissão de doceira. Cora, aliás, nasceu Ana
Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas. Uma
das netas, Ana Tahan, herdou não só seu
nome, como também uma verdadeira coleção de histórias cheias de sabor. “Quando morávamos em Anápolis, no interior
goiano, cada vez que eu sabia que viajaria
para a casa da vovó, em Goiás Velho, ficava feliz da vida por causa do arroz.” A
receita devia ser mesmo especial, já que
crianças costumam ter predileção pelos
doces. Mas o que fascinava Ana era a cor
bra um pouco o damasco. “Tinha a textura da banana-passa, ela mandava para
a gente, despachava pelo correio, uma
verdadeira festa.” As famosas receitas
eram anotadas por Cora em um caderno espiral que a mãe de Ana, Vicência
Brêtas Tahan, guardou e publicou em
um livro, Cora Coralina, doceira e poeta
(editora Global), consultado até hoje
pela família e por milhares de leitores.
Já as poesias, Cora narrava para
o pai de Ana – as palavras eram datilografadas diante de uma janela em
frente ao rio. A poeta ficava sentada em
uma poltrona grande, no canto da sala.
Era possível avistá-la pela porta, que
ficava sempre aberta. Muita gente des-
conhecida entrava para conversar – a
escritora recebia todos e proseava por
um bom tempo, até a hora em que decidia se recolher.
Como jornalista, Ana identifica a
riqueza desse legado. Mais do que a
herança de um rico receituário, Cora
deixou um exemplo de vida. Foi militante de causas nobres, voluntária da
Revolução Constitucionalista de 32 e
brigou pelo direito feminino ao voto.
Em seus versos estavam o presidiário,
a mulher da vida, os menores abandonados, entre tantas outras classes
discriminadas. Palavras carregadas de
grande contribuição social, pinceladas
em múltiplos sabores.
no topo, ana tahan, neta de cora coralina. na página ao
lado, cora coralina prepara doces, sua especialidade
27
em ponto de calda firme (faça o teste:
coloque um pouco de água fria em um
recipiente e pingue a calda para ver se
junta, não se dissolvendo). Coloque o
amendoim e deixe apurar em ponto
de bala. Retire do fogo e coloque em
uma assadeira untada com manteiga
para esfriar (só até conseguir trabalhar
com as mãos). Quando conseguir pegar com as mãos untadas, puxe como
se fosse fazer bala de coco e forme
cordões, que serão estendidos em uma
tábua. Depois de frio, corte em pedaços de mais ou menos 15 centímetros e
enrole em palhas de milho secas, que
já devem estar cortadas e preparadas.
Amarre as pontas.
nhar. Durante a Segunda Guerra, porém,
na passagem pelo campo de concentração, logo informou que era cozinheiro.
“Foi um reflexo rápido: se ele trabalhasse
na cozinha, não morreria de fome”, conta. “Acabou aprendendo a cozinhar na
prática e salvou a vida assim.”
Já no Brasil, László construiu um defumador no sítio da família, onde preparava embutidos, sabores que a memória
de István também traz de volta até hoje.
“Por conta de toda essa relação com a
comida, adquiri o hábito de utilizar a entrada de serviço quando chego em casa.”
A explicação é elementar: “É ali que está
a cozinha, o centro de tudo”.
Wessel conta que os húngaros e seus
descendentes são muito tradicionais
com relação à comida. “Tenho amigos
que podem ser servidos com verdadeiros
banquetes, mas, se não houver um goulash ou alguma especialidade da Hungria
à mesa, a refeição não está completa.” E
conclui: “Falando nisso, faz tempo que
minha mãe não prepara aquelas coxinhas
de ameixa, preciso cobrá-la”.
_
Sopa de frutas
vermelhas
da família Wessel
Ingredientes
½ garrafa de vinho tinto
150 g de açúcar
1 pedaço de canela
½ fava de baunilha ou
½ colher (chá) de essência
400 g de morango
300 g de amora
300 g de framboesa
1 pitada de sal
6 folhas de hortelã para decorar
Suco de 1 limão
Suco de 1 laranja
modo de preparo
Leve ao fogo o vinho, o açúcar,
a canela, a baunilha e os sucos
de limão e de laranja. Ferva por
10 minutos para o álcool evaporar.
Deixe esfriar. Passe na peneira
e bata no liquidificador com
Cozinha e sobrevivência
morango restante cortado em
gombóc, de aparência parecida com a de
uma coxinha. O sabor, no entanto, é doce.
A massa, à base de batatas, é recheada
com ameixas ou uvas, depois cozida e
empanada, para ser servida morna e polvilhada com açúcar. “Para o paladar brasileiro é uma receita praticamente virada
ao avesso, mas eu adoro.”
A relação da família com a cozinha
vem de longa data, com histórias relatadas em vários livros, como Os Wessel
(editora Francis). São cinco gerações dedicadas ao ramo das carnes e um aprendizado que garantiu a sobrevivência de
László, pai de István. Embora tivesse sido
o mais jovem mestre açougueiro a se diplomar em Budapeste, ele não sabia cozi-
István com sua cadela joly; no topo, sua mãe, eva, que passou
para a família o gosto pela cozinha; e, na página ao lado, a
família wessel na tradicional atividade de encher linguiça
28
fatias, acrescente a amora e a
framboesa. Leve à geladeira
por 2 horas. Sirva em pratos
fundos com uma bola de sorvete
e decore com folhas de hortelã
fritas por cima.
renata ursaia / arquivo pessoal
“Passei minha infância na Hungria, em
plena época de comunismo stalinista”,
conta István Wessel. “Nessa situação, não
havia muita oportunidade de fazermos
grandes comemorações, com pratos especiais.” Mas o sabor da comida do dia a dia,
preparada pela avó, é trazido pela memória ainda hoje. “Quando nossa família chegou ao Brasil, em 1957, minha avó tinha 72
anos, e cozinhou até uns 80 e poucos.” Um
dos pratos daquela época, ele reproduz
com frequência: a clássica sopa de frutas
vermelhas, servida no país natal como
entrada, mas preparada por ele como sobremesa. As receitas, em húngaro, foram
preservadas pela mãe de István.
Outro quitute da infância é o szilvás
metade do morango. Misture o
Baixe a Revista Personnalité no iPad
e assista ao vídeo com István Wessel
Maria Ribeiro pergunta:
como nossa natureza
influencia o que somos
e o que
fazemos?
Paula Dib responde:
Acho que o fenômeno não está nas coisas, mas na relação
que a gente alimenta com elas. É de onde você olha, é
a sua perspectiva. Por isso acredito que a nossa natureza
é que determina como pisamos e caminhamos no mundo.
A questão é o quanto a gente está conectado com essa
essência, o quanto olhamos e respeitamos a nossa natureza.
30
31
Por Leticia de Castro Fotos Marcos Vilas Boas
“a
beleza
salvará
o
mundo”
A designer e articuladora social Paula Dib entende
a comunidade antes de transformá-la com ações criativas e artísticas.
E quando fala em beleza se refere à “beleza do esmero,
do tempo e do cuidado”
Personnalité
E
scola Villier’s High School, periferia de Londres.
A maioria dos alunos é estrangeira. Episódios de violência são frequentes. Paula Dib chega à instituição com a
missão de promover uma convivência mais pacífica. Ela ouve
os alunos e percebe um traço em comum: todos expressam
claramente o desejo de “deixar uma marca” no mundo.
Depois fala com professores e funcionários. Pronto. Isso é
suficiente para Paula estimular os alunos a desenhar suas interpretações sobre o que havia sido conversado. As criações
viram uma grande mandala, instalada no pátio da escola, em
uma área descrita por muitos como um espaço sem muito
significado. Com isso, o ambiente na escola se transforma e
os problemas diminuem. “A ação permitiu que os estudantes
fortalecessem os vínculos de convivência e trabalhassem melhor as diferenças”, conclui. A fala otimista, os olhos verdes
e o sorriso largo anunciam uma moça de pretensões simples,
entregue ao trabalho artesanal. Mas não se engane: Paula Dib
– designer, consultora e articuladora social – é, antes de tudo,
uma transformadora.
Aos 36 anos, ela conseguiu o
que ONGs e, às vezes, comunidades
inteiras passam anos buscando:
reunir artesanato e design criando
produtos úteis, bonitos, competitivos e, claro, rentáveis. E Paula fez
isso com as mãos. Com arte. Habilidosa e criativa, foi aprendendo a
ler as demandas das mais diversas
comunidades por onde passou para
ajudar a transformar arte e matériaprima locais em produtos úteis.
Quando dizemos “com as mãos” é de forma intencional, já
que o fato de a designer só possuir uma delas não altera nem
as habilidades nem a disposição da moça. Paula nasceu sem
parte do braço esquerdo e lida com isso com enorme discrição e naturalidade. “Não sei como seria ser diferente do que
eu sou. Uso as ferramentas que tenho da melhor forma possível. Meus pais nunca fizeram disso uma diferença muito
grande, sempre me incentivaram a descobrir o meu jeito de
fazer as coisas”, comenta a designer.
A grande transformação de Paula se deu aos 18 anos,
quando ganhou dos pais uma viagem para a Austrália. Tinha
acabado de concluir o ensino médio em uma escola Waldorf
e passado no vestibular para o curso de artes plásticas. Mas
Churrasco de caranguejo com o missionário que a acolheu
Paula Dib
“Adoro a parte
criativa, mas
tornar essas
criações viáveis
economicamente
é fundamental”
_
É arte. É fonte
de renda
O escoamento dos produtos é uma
etapa importante dos projetos em que
34
Paula se envolve, já que gerar renda é
uma de suas principais metas. Por isso,
cada ação tem uma forma específica de
comercialização. A empresa Caboclo,
por exemplo, responsável pelo trabalho com os sapateiros do Ceará, vende
prioritariamente para fora do país, mas
aceita encomendas nacionais por e-mail.
Geralmente, as ONGs com que ela trabalha articulam vendas em grandes feiras
de artesanato, como a Craft Design e a
Paralela, que têm foco em produções
autorais e manuais. Lá, as peças são vendidas principalmente para lojistas. Para
o consumidor final, é possível encontrar
peças em lojas como Conceito Firma
arquivo pessoal
Casa, Histórias na Garagem e Tok & Stok.
arquivo pessoal
achou que um giro pelo mundo faria bem antes de iniciar a
nova etapa da vida. Partiu para Queensland para passar sete
meses estudando inglês. Chegando lá, não se encantou com
as praias. Queria conhecer um outro lado do país, aquele da
natureza selvagem, dos costumes
tradicionais. Com a ajuda de um
professor, conseguiu autorização do
governo para conhecer uma tribo
aborígene em Darwin, no norte do
país, e participar de um projeto que
ensinava os moradores a lidar com o
lixo de forma responsável. “Acabei ficando dois meses com a tribo. O que
eu mais gostava era observar como
aquelas pessoas trabalhavam, como
se relacionavam”, recorda Paula.
Mesmo sem perceber, ela estava
começando a trilhar os primeiros passos do caminho profissional que adotaria muitos anos depois. Hoje, à frente da
Trans.Forma Design, ela desenvolve projetos de geração de
trabalho e renda junto a comunidades de artesãos urbanas e
rurais, resgatando técnicas de produção tradicionais e ajudando no desenvolvimento e escoamento de produtos – a
comercialização dessa produção é parte fundamental do seu
trabalho. “Adoro a parte criativa, mas a articulação para tornar essas criações viáveis economicamente é fundamental.”
O início dessa trajetória se deu uns cinco anos depois da
viagem à Austrália, quando ela concluiu o curso de desenho
industrial na Faap. Após uma nova temporada fora do país,
voltou para São Paulo e assistiu a algumas palestras sobre
35
De cima para baixo, três projetos de paula: mandala feita em escola
de londres; brinquedos confeccionados em vilarejo de moçambique;
e sapateiro do ceará, cujo produto passou de R$ 8 para R$ 60
Personnalité
_
Relíquias e memórias
a produção artesanal brasileira no museu A Casa e se apaixonou por aquele universo. “Achei fascinante. Fazia todo
sentido para mim”, conta a designer, que logo se engajou em
um trabalho voluntário com marceneiros da favela paulistana
Monte Azul. Desde então, nesses últimos dez anos, ela se associou a ONGs, fundações e inúmeras prefeituras, pondo em
prática mais de 40 projetos no Brasil e em países como Moçambique e Inglaterra.
1
2
Objetos adquiridos nas andanças pelo mundo preenchem a casa de Paula
21
19
Forma e conteúdo
O que Paula mais busca nas ações que comanda é uma coerência entre forma e conteúdo, não apenas nos produtos que
ajuda a desenvolver, mas também nos processos que levam
à criação desses produtos. “Em todos os casos, projetar um
caminho para melhoria pede um olhar atento às nuances e
particularidades de cada lugar. Um passo depois do outro que
vão conduzir a um modelo de desenvolvimento adequado.”
Tudo começa com uma observação atenta e minuciosa
da comunidade em que o projeto será encampado. Logo
que chega, a designer gosta de sair com os artesãos para um
passeio pela cidade, de ouvir as histórias das pessoas, do
lugar e de observar como se relacionam. “A Paula é extremamente sensível, capaz de captar as coisas rapidamente e de
conquistar a confiança das pessoas. Isso é fundamental para
o tipo de trabalho que desenvolvemos”, diz a também designer Renata Mendes, parceira de Paula em vários projetos.
A partir dessa observação, das conversas informais, Paula
faz um diagnóstico das necessidades e características daquela comunidade, levando em conta que tipo de matériaprima está disponível e que tipo de produtos pode ser criado
de forma sustentável. Com essas informações, parte para a
definição dos produtos, que podem ser utensílios domésticos, peças de decoração, brinquedos, calçados.
Dessa forma ela conseguiu recuperar, junto a um grupo
de sapateiros na região do Cariri, Ceará, produtos e técnicas
muito antigas que estavam se perdendo. “Com a instalação
de indústrias de calçados na região, os sapateiros artesãos
começaram a perder espaço e, para fazer frente à concorrência, aumentaram brutalmente a produção, reduziram
custos, tudo para poder vender produtos mais baratos para
a população local”, conta a designer. O primeiro passo do
projeto foi resgatar o tempo e o cuidado com a produção de
cada peça. Assim, os artesãos puderam se ater aos detalhes e
se esmerar mais na fabricação, o que mudou o produto final.
1. Escultura xavante de Barra do
12. Depois de dar workshop
Garça, Mato Grosso, comprada
na Venezuela, Paula visitou o
durante trabalho com indígenas
artesão que faz estes bonecos
2. Tecido africano de Pemba, Mo-
13. Durante trabalho com
çambique, que Paula coleciona e
rendeiras no Maranhão, Paula
com que faz almofadas e roupas
comprou filós (lamparinas de
3
20
querosene) para sua coleção
3. Azulejos do Recife que
ganhou de grupo que visitou
14. Bonecos da cidade de
Esperança, na Paraíba, que fi-
4. Ex-votos de Juazeiro usados
caram famosos ao virarem uma
para fazer promessas relaciona-
cadeira dos irmãos Campana
das a problemas de saúde
15. Marionetes da cidade de
5. Integrante da tribo Massai,
Bodocó, Pernambuco, compra-
no Quênia, tirou o colar do pes-
das quando visitou um curtume
4
17
18
coço para dar à designer
16. Durante pesquisa com
6. Paula coleciona filós, um tipo
mestres de brinquedos em
de lamparina. Esta é feita de cera
Recife, Paula ganhou ratinhos
e foi comprada no Ceará
e borboletas
7. Escultura do centro Mestre
17. Calangos do Centro Mestre
Noza, em Juazeiro do Norte, Ceará
Noza, de Juazeiro do Norte,
6
16
que faz esculturas em madeira
14
8. Castiçais esculpidos
em ébano na comunidade
18. Minimáquina de costura
Mtwara, Tanzânia
feita por artesão do Ceará com
5
15
latas de óleo
13
9. Azulejos Guludos feitos
por Paula junto com grupo
19. Peneiras para lavar arroz
de mulheres de Moçambique
de Pemba, Moçambique. São
12
feitas com furos de pregos
10. Sinos de bode de Exu,
Pernambuco. Paula os coleciona
20. Maraca xavante de Barra
11
10
do Garça, Mato Grosso
11. Escultura de madeira oca
36
usada por meninas da comunida-
21. Colheres esculpidas
de Masasi em rito de passagem
em ébano pela comunidade
para a vida adulta
Mtwara, na Tanzânia
9
8
7
Personnalité
Paula Dib
ao artesanato da ONG Comunidade Solidária, fundada por
Ruth Cardoso), destaca a força criativa da designer. “Ela
tem uma capacidade de inovação absurda. Consegue olhar
para o artesanato e para a tecnologia e aliar essas duas linguagens no seu trabalho.”
maquiagem: Omar Bergea / Agradecimentos: Secretário Ricardo Teixeira - SVMA/Parque do Ibirapuera
“Paula tem uma
capacidade de
inovação absurda
e Consegue aliar
artesanato e
tecnologia”
38
Pé na estrada
Com uma rotina de trabalho intensa, nos municípios mais
remotos do país (e do mundo), Paula passa pouco tempo
em casa, vira e mexe está em algum vilarejo nos grotões do
país. Seu principal companheiro nessas jornadas é o poeta
Manoel de Barros. Ao fim de cada dia, depois da imersão no
trabalho dos artesãos, ela se refugia nas palavras do poeta
cuiabano. É lá que encontra inspiração para suas criações
e para encarar a realidade muitas vezes árida que se apresenta no caminho: a pobreza e a falta de perspectiva que a
maioria dessas comunidades enfrenta no dia a dia.
“Eu acredito que a beleza salvará o mundo. A beleza
do esmero, do tempo, do cuidado”, crava a designer. Seu
trabalho é baseado nessa premissa. Tanto que, além dos
tradicionais relatórios, necessários para as empresas que a
contratam, todo seu trabalho é documentado em forma de
“gotas”, pequenas narrativas livres e poéticas que ela escreve e divide, quase diariamente, com o marido, o escritor
Antonio Lino, sempre que está fora de casa. É uma espécie
de diário de bordo que o casal compartilha.
Quando esteve em Moçambique, na África, no trabalho
que considera até hoje o mais marcante de sua carreira, ela
escreveu: “Tenho certeza que é possível encontrar visões
que contrariam a minha, mas esta é a que meus olhos otimistas insistem em me mostrar. Não estou cega às injustiças, não. Guardo em mim referências de muitos mundos e
sei bem reconhecer a penúria desta gente. Talvez por isso,
nestas horas, saltem aos meus olhos os sorrisos, e seja verdadeiramente impossível não reconhecer o valor deles”.
Além da poesia de Manoel de Barros, Paula carrega
sempre consigo uma câmera fotográfica. Gosta de registrar detalhes dos lugares por onde passa, das pessoas com
quem produz, do clima. “Funciona como um exercício
para o olhar, para nunca cair na mesmice, para estar sempre atenta e curiosa.”
“Eles precisavam produzir uma quantidade enorme, pois
o preço era baixo. Nós devolvemos a eles o tempo e o esmero na produção. Os sapatos ganharam qualidade e valor
agregado”, afirma Paula. Depois disso, os calçados de couro
que antes eram vendidos para a população local a cerca
de R$ 8 passaram a ser exportados por aproximadamente
R$ 60. Hoje, são vendidos em países como Japão, Espanha
e Finlândia. O projeto, feito em parceria com a empresa Caboclo, à qual Paula se associou, conseguiu também organizar em uma rede vários artesãos que trabalhavam de forma
isolada, aumentando a capacidade produtiva de todos.
Com essa abordagem, Paula se tornou uma referência
no design nacional. “O design e o artesanato eram muito
distantes, havia um desprezo pelo artesanal. Há uns 20
anos vemos uma aproximação, e a Paula se tornou um dos
grandes nomes nessa área”, diz a jornalista e crítica de
design Adélia Borges, que dá o curso de história do design
na graduação de desenho industrial da Faap. “Como aluna,
Paula também sempre se destacou. Era extremamente interessada e já demonstrava esse olhar social”, completa.
Para o coordenador do curso e professor da disciplina
ecodesign, Milton Francisco, Paula está na vanguarda de um
movimento que começou há três décadas no design brasileiro. “Desde os anos 1980, as questões ambientais estão na
pauta. Paula amplia essa discussão e propõe uma ação social
em seus projetos. E isso não é usado como marketing, ela
tem uma atuação muito bem fundamentada e séria”, afirma.
Também parceira de Paula em alguns projetos, Jô Masson, coordenadora executiva da Artesol (braço dedicado
Baixe a Revista Personnalité no iPad
e assista ao vídeo com Paula Dib
39
Por Edmundo Clairefont
Conheça os dois noruegueses que
entraram num trailer, viveram
por quase três anos sob o frio
ártico, transformaram uma ilha
marcada pela tragédia, levaram
luz a uma cidade deprimida
e criaram um novo tipo de
arquitetura: “Escutamos as
histórias das pessoas. Cada lugar
e cada cliente são fantásticos
de algum jeito. É só ouvir”
40
B
DIVULGAÇão
A
FANTÁSTICA
FÁBRICA
DE IDEIAS
odø é uma cidade gelada onde vivem 49 mil pessoas. Se você esticar
o dedo e apontar a localização no mapa
da Noruega, o dedo vai roçar o Círculo
Ártico. Bodø fica um pouco acima dele.
Em 2005, dois jovens estudantes de
arquitetura estacionaram um trailer vermelho numa praça da cidade. Nos últimos dois anos e meio, eles vinham rodando a Europa em busca do que mais tarde
resumiriam como “a nossa grande escola”. Buscavam um tipo de iluminação.
Era dia em Bodø, mas parecia noite.
Por conta da posição geográfica, quando
o verão se vai, o sol vai junto. Em temporadas críticas, a região conta com luz
natural por três horas diárias. A cor do
céu ao meio-dia é a cor de uma tardinha
acima, Håkon e Erlend instalam o projeto de iluminação
em bodø, que no inverno recebe apenas 3 horas de luz solar
41
– o mais sutil, o mais crepuscular, o mais
morno almoço que se pode imaginar.
Por três meses, a dupla de arquitetos
viveu ali, enquanto o inverno se aproximava. Postavam-se diante do trailer a
cada manhã. Sobre suas cabeças, na lataria do carro, os dizeres em preto e branco: “Fantastic Norway: Architects”. “As
pessoas vinham conversar”, conta Erlend
Haffner, 33 anos. “Elas diziam o quanto
estavam sentindo falta de bons espaços
públicos, de poder aproveitar a rua. Foi aí
que tivemos uma ideia...”
Seis anos depois, no dia 22 de julho de
2011, Erlend e seu sócio Håkon Aasarød,
34, trabalhavam em Oslo. Às 15h20, cada
um em uma parte da cidade, ouviram um
baque. O chão tremeu. Um complexo de
O Fantastic Norway nasceu em 2004
como um projeto de dois estudantes que
dividiam um incômodo. “Nós víamos essa
era do arquiteto estrela”, explica Haffner.
“E era algo que me parecia em declínio.
Celebridades que rodam o mundo para
construir prédios que são iguais; que
estão ali apenas para serem visíveis. Projetos desenvolvidos sem o entendimento
do contexto, das pessoas, do lugar...”
Não é muito difícil rabiscar a noção
do que ele quer dizer. Uma boa parte da
arquitetura contemporânea mais famosa
é fundeada numa imposição de valores.
“Às vezes, alguns projetos são mais esculturas do que prédios funcionais”, diz
Erlend. De certa forma, sugerem autohomenagens ao arquiteto. Considere
franquias como a dos museus Guggenheim. Ainda que a unidade Las Vegas,
desenhada pelo holandês Rem Koolhaas,
seja tão impressionante e abilolada quanto é a cidade-cassino dos EUA, quem já
foi a Bilbao – e viu a violência do Guggenheim espanhol (concebido por Frank
ao lado, o futuro da ilha de utøya: uma pequena vila está
sendo construída no que antes foi um cenário de horror
42
poucos dias antes do Natal. Fazia um frio
brutal. De repente, a gente acordou com
um barulho. Era o coral da cidade. Eles
haviam cercado o carro e cantavam canções natalinas. Queriam mostrar gratidão, porque a gente ajudou essa comunidade a salvar a praça central, que estava
prestes a se tornar um shopping center.”
No final desses quase três anos na
estrada, o trailer vermelho estacionou em
Bodø. “Com a falta de luz natural, as pessoas praticamente não usavam o espaço
público”, diz Erlend. “Elas viviam dentro
de casa ou dos shoppings. E reclamavam
disso.” A dupla passou semanas pensando em como atrair as pessoas para a rua.
o trailer vermelho
Em 2003, a dupla botou os pés na estrada. Compraram o trailer vermelho por
12 mil coroas (R$ 4.300). Atravessaram
o país, rumo ao norte, nos 900 dias e 7
mil quilômetros que se seguiram. Desenvolveram trabalhos em 12 cidades. Mais
tarde, iriam até Itália e Alemanha.
“O método era estacionar o carro e
morar em cada parada por uns tempos”,
explica Erlend. “Para chamar atenção,
arranjávamos performances e shows em
volta do nosso trailer.” Com as semanas,
conquistavam a confiança, um pouco
como se a cidade confessasse suas dificuldades a dois novos moradores.
“Lembro de uma experiência muito
bonita”, conta o arquiteto. “Aconteceu em
Narvik, no norte. Håkon e eu dormíamos
no trailer. Era nossa última noite ali, uns
DIVULGAÇão / FolhaPress / Photos12.com/Other Images
ARQUITETURA HUMANA
Gehry) com o que lhe está à volta – pode
entender a importância do contraponto
proposto por Haffner e Aasarød.
As criações do Fantastic Norway
estabelecem uma outra hierarquia de
interesses: querem erigir algo que torne a
vida mais confortável e o ambiente mais
harmonioso. “Esses grandes prédios com
grandes assinaturas são como bolos de
casamento com a data de validade vencida”, diz Håkon. “A gente acredita que
a sociedade também deseja projetos que
surjam por meio de um contato direto
com quem será afetado. Isso começa pelo
diálogo com as pessoas do local.”
O conceito da dupla nasceu de uma
epifania. No segundo ano de faculdade,
em 2002, Erlend e Håkon viajaram a um
vilarejo no norte do país. Participavam de
uma excursão universitária para conhecer a diversidade da arquitetura regional.
Jogando conversa fora com alguns artistas de rua, descobriram que o marco zero
da cidade seria vendido a uma empresa.
O plano era botar a coisa toda abaixo.
Os dois estudantes abandonaram a
excursão. Iniciaram no local uma campanha para impedir a destruição do
Patrimônio Histórico. Håkon lembra que
imprimiram folhetos, escreveram artigos,
convidaram entidades, empresários e políticos a um debate. Por fim, desenharam
uma série de alternativas para revitalizar
o centro. Seis meses depois, convenceram
as autoridades. A venda acabou cancelada. No local, um espaço aberto para mercadinhos de rua foi inaugurado.
“Aquilo foi um clique”, diz Erlend.
“A gente percebeu que manter uma relação próxima com culturas específicas
torna os projetos melhores. É muito mais
do que construir. É transformar. Para isso
acontecer, você precisa ter um entendimento real de como as coisas funcionam.
Incluir os mitos locais nos projetos e os
materiais que são típicos: só com um diálogo próximo ao cliente – que pode ser
um cidadão, um governo ou uma empresa – daria para fazer diferente.”
divulgação
edifícios do governo havia sido atacado
por uma bomba. Oito pessoas morreram.
Horas mais tarde, um segundo ataque, na ilha de Utøya, periferia da capital.
Ali funcionava um acampamento de
verão. Cerca de 500 pessoas no local. Boa
parte delas, crianças e adolescentes. O
extremista xenófobo Anders Breivik atracou no píer, sacou uma pistola e disparou.
Sessenta e oito pessoas morreram.
Nos meses que seguiram ao massacre
– o maior da história da Noruega –, a administração divulgou um plano para criar
um monumento dedicado às vítimas. Foi aí
que a Erlend e Håkon tiveram uma ideia.
a dupla
comprou
um trailer
e passou
900 dias
ouvindo as
pessoas
acima, cena do filme Copacabana Palace (1962), do diretor steno,
com trilha sonora de joão gilberto e tom jobim. na foto, estão
Gloria Paul, Walter Chiari, Paolo Ferrari e Sylva Koscina
43
Personnalité
Uma lâmpada especial acendeu sobre a
cabeça dos arquitetos. Eles lembraram
de um tipo de iluminação terapêutica que
simulava a luz do sol. Encontraram uma
pracinha e instalaram temporariamente
50 desses aparelhos. “Foi um sucesso”,
afirma. “As pessoas frequentavam e
perceberam que poderiam valorizar os
imóveis” . Hoje, oito anos depois, há um
plano para que seja algo permanente.
caravana mundial
Em Utøya, o Fantastic Norway desenvolveu uma proposta que não se contentava
em oferecer apenas um recanto reverente
às vítimas do massacre de 2011. Projetaram um espaço comunitário. “Nós conversamos com os gerentes da ilha, mas
sobretudo com os sobreviventes”, conta
Erlend. “Era evidente que as pessoas não
queriam perder o local para uma memó-
ria triste. Não haveria sentido em torná-lo um lugar deserto, sem nenhum uso. E
se pudéssemos unir as duas coisas? Nossa
ambição passou a ser a recriação de uma
noção de solidariedade e diversidade.
Imaginamos uma pequena vila, com ruas
pequeninas, um campanário e uma praça
central bem no topo da ilha, que antes
tinha o horizonte dominado por um edifício branco, símbolo daquele dia terrível.
Essa nova vila criaria a noção de comunidade, de novidade, e melhoraria as instalações. Era um estímulo à utilização do
destino, que é lindo.”
Esse jeito de fazer arquitetura levou o
Fantastic Norway a engrossar sua lista de
reconhecimentos. Erlend e Håkon foram
convidados para a Bienal de Veneza.
Receberam homenagens na Rússia. Visitaram Índia e China. Ganharam um bem
produzido programa de televisão local
o trailer do fantastic norway durante a jornada
de quase três anos e 7 mil quilômetros pela noruega
44
divulgação
“um projeto
lindo que
torna a
vida mais
difícil é um
fracasso”
em que investigam a arquitetura do dia a
dia. A revista britânica Monocle dedicou
um artigo ao projeto da ilha. A semanal
The New Yorker publicou uma reportagem sobre a atuação da dupla em locais
afetados por tragédias. O escritório conta
hoje com nove funcionários e equipes na
Finlândia, Groenlândia, Austrália, Escócia, Suécia e, em breve, Brasil.
praticadas bairro a bairro, mais do que
depositar a solução somente na conta de
gestores públicos. “Parques com grandes
áreas verdes são boas opções, claro. Mas
algumas casas têm tanto concreto desnecessário.” Há como planejar jardins nos
pátios, tetos verdes com pequenas áreas
plantadas, calçadas polvilhadas de árvores, “formas simples de absorver a água e
que deixam a cidade bonita”.
BRASIL FANTÁSTICO
Erlend Haffner, casado com uma designer mineira, pretende morar no Brasil
no ano que vem. Quer lançar o Fantastic
Brazil nos mesmos moldes da experiência que originou o escritório: o trailer
vermelho deve voltar a rodar, numa primeira etapa, em BRs de estados como São
Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Erlend define as cidades brasileiras
como “fascinantes”. Nos últimos cinco
anos, tem passado temporadas de até três
meses para conhecer os pontos cardeais
do país. Primeiras impressões:
• Admira a Brasília de Niemeyer, embora
concorde: “é uma cidade pouco talhada
para o conforto”. Fã de Lina Bo Bardi e
Paulo Mendes da Rocha, pensa que as
metrópoles, voltadas ao automóvel, poderiam ganhar bolsões dedicados a uma
rotina de mais pés nas calçadas.
• Gosta do povo e da comida. Pensa em
construir, no interior de Minas Gerais,
uma “escola do café”. Quer melhorar a
produção da bebida (noruegueses entendem do tema: consomem 13 quilos per
capta por ano; os brasileiros, 5 quilos).
• Acha graça no humor nacional mais
comezinho, aquele que, diante da pronúncia heterodoxa de seu nome (lê-se
“Arlan”), desistiu e batizou-o de Orlando
(ele às vezes se apresenta assim).
• Lembra que enchentes poderiam
ser reduzidas com métodos simples,
45
“É curioso”, ele continua, “porque de
longe a gente escuta e pensa nesse clichê
da ‘selva de concreto’ e esquece que nisso
aí moram verdades e soluções. Tornar
a selva de concreto em uma um pouco
mais colorida é o tipo de solução trabalhosa, mas possível e democrática.”
O arquiteto anda animado com sua
aventura brasileira. “Eu fico pensando
em quanta coisa há para fazer aí. O tanto de possibilidades para trabalhar com
empresas que desenvolvem responsabilidade social. Jeitos de fazer a vida de
trabalhadores, de cidades ou bairros,
funcionarem. Acho fantástico como
vocês adoram a rua e acho triste como
muitas vezes vocês não podem viver
nelas. Quero ouvir e ajudar a encontrar
o tipo de solução que nasce e se desenvolve nas vizinhanças. Acho que essa
é a nossa diferença.”
Talvez seja isto: a marca do Fantastic Norway é não ter uma marca, mas
um jeito. Ou um mecanismo sutil de
fazer transformações radicais. Algo que
torna a dupla norueguesa um dos mais
interessantes capítulos da arquitetura
contemporânea. “Eu penso o seguinte”,
diz Erlend, “um espaço ou construção
desconfortável, uma sala, um quarto ou
uma escada que pareçam bons, mas que
tornam a vida do usuário um inferno, que
ignoram aquilo que faz a vida mais fácil,
isso tudo, pra mim, é fracassar.”
paula dib pergunta:
Se faltar
poesia
na vida,
onde você vai buscar?
alice ruiz responde:
Nas pessoas. Gente é minha musa, e assim não tem
como a poesia acabar em minha vida.
46
47
Por Ana K. Rodrigues Fotos Gil Inoue
mulher
de
palavras
Poeta, letrista, esposa de Paulo
Leminski por 20 anos e parceira
de Itamar Assumpção, Alice Ruiz
sempre esteve à frente do seu
tempo: “Eu já era feminista antes
de existir essa nomenclatura –
me chamavam apenas de rebelde”
Alice ruiz escreve sobre vidro na edícula de casa,
no bairro de pinheiros (São Paulo)
48
A
quela tarde em São Paulo trazia um clima que lembrava
o da cidade natal dela, Curitiba. O frio e as nuvens no
céu davam pistas da chuva forte que chegaria em questão de
minutos. Mas dentro da casa térrea em que a poeta e letrista
Alice Ruiz escolheu para viver, no bairro de Pinheiros, era
diferente. Diante do jeito tranquilo da anfitriã, em meio a seus
objetos de família, algumas plantas e livros, a tempestade que
se avizinhava perdia a importância. Aos 67 anos, Alice é um
monumento discreto da cultura brasileira. “Quanto mais
leio seus poemas, haicais e letras, mais me surpreendo com
a grandeza de sua obra”, diz a compositora Ná Ozzetti.
Por 20 anos, Alice Ruiz foi casada com o poeta Paulo
Leminski (1944-1989). Ao lado dele, escreveu versos e
canções, num processo que poliu o talento da dupla.
Mesmo assim, a escritora e doutora em literatura brasileira
Noemi Jaffe faz questão de reforçar a individualidade da
escritora: “Alice nunca esteve a tiracolo de Leminski. Seu
trabalho e sua personalidade eram – e continuam sendo –
acima, no sentido horário, alice ruiz canta com zélia duncan
e alzira espíndola (2005); em retrato de 1983; ao lado das filhas,
áurea e estrela (1994); abraçada a Paulo Leminski (1944-1989). Na
página ao lado, ela, em casa, na edícula onde costuma escrever
de desafio, de indagação e, o que é mais incrível, também
de equilíbrio e conciliação”. Autora de 21 livros e um
dos nomes a representar o país na Feira do Livro de
Frankfurt (em outubro), o olhar de Alice também mirou
a condição feminina, um de seus temas constantes.
Embora a parceria com o marido tenha sido a mais
frequente e longeva, Itamar Assumpção é outro dos
artistas que gravitaram em sua produção. Para ele,
escreveu mais de 20 letras. Trabalhou ainda com Zélia
Duncan, Zé Miguel Wisnik, Alzira Espíndola e Arnaldo
Antunes (leia box na página 53).
O casamento com Leminski trouxe três filhos. O
primogênito, Miguel Ângelo, foi vítima de um linfoma aos
10 anos. Pouco depois nasceu Áurea, hoje uma jornalista
de 42 anos. A caçula, Estrela, dez anos mais nova, seguiu os
passos familiares na música e na literatura. “Fui aluna de
minha mãe em oficinas de haicai [forma poética de origem
japonesa marcada pela concisão]”, conta Estrela. “Sempre
50
alice ruiz
Dico Kremer / Drika bourquim / Vilma slomp
Personnalité
a acompanhava quando ela se reunia para compor com o
Itamar, o Arnaldo e o Wisnik. Sou amiga dos filhos deles.”
Junto com a filha, Alice vem se dedicando na
administração do vasto legado deixado por Leminski, que,
além de poesia, inclui traduções (que vão de Satyricon, de
Petrônio, a Pergunte ao pó, de John Fante), biografias (como a
do poeta japonês Matsuo Bashô), peças publicitárias e letras
de canções, como “Verdura”, parceria com Caetano Veloso.
Em fevereiro, a Companhia das Letras lançou Toda poesia,
a reunião da obra poética de Leminski, um dos livros mais
vendidos do ano. Alice organizou a coletânea e escreveu na
apresentação: “Este livro é antes de tudo uma vida inteira de
poesia. Curta, é verdade, mas intensa, profícua e original”.
Mas aqui Alice prefere falar de si: “Já falei demais do Paulo, o
tempo todo”, explica com jeito quando a conversa envereda
para o marido. E, assim, sua vida intensa e dedicada à poesia
foi tema de uma tarde de prosa. Entre goles de chá de hibisco e
comentários sobre horóscopo – somos, ela e eu, aquarianas.
“quanto mais
leio seus
poemas mais
me surpreendo
com a
grandeza de
sua obra”, diz
ná ozzetti
51
Personnalité
alice ruiz
“Curitiba é
muito fria.
eu ficava
lendo boa
parte dos
recreios”
Você se achava alguém fora do esquadro quando jovem?
Ah, sim! Por exemplo: eu dizia que nunca iria me casar.
Ficava observando a vida de homens e mulheres casados
e vendo como a vida deles era interessante, mas a delas, não.
Ao mesmo tempo, existia aquele discurso de que o casamento
era um horror para o homem e uma maravilha para a mulher.
Mas, se você olhasse na vida real, a mulher não tinha descanso
nunca, vivendo alienada do mundo. A maioria não trabalhava
fora nem tinha terminado os estudos, porque sempre se pensou
que, se ela ia casar, não precisava seguir estudando. As opções
de profissões eram muito limitadas. Elas acabavam ficando
naquele mundinho que antes vinha pelo pai e, quando
se casavam, passava a vir por meio do marido.
E você entendia isso na época?
Já tinha isso muito claro. Mas creio que se deu de verdade ao ler
Simone de Beauvoir — acho que foi Os mandarins — aos 18 anos.
Depois, Memórias de uma moça bem-comportada. Finalmente,
O segundo sexo. Foi uma confirmação do que acreditava. Pensei:
“Que rebelde, que nada, eu estou certíssima”!
_
“Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva”
Como foi seu início na literatura?
Comecei muito menina. Escrevia sem saber que aquilo
era poesia. A poesia que me apresentavam na escola era
diferente. Em casa, o único livro que tínhamos era a Bíblia. Foi
quando entrei no ginásio que deparei com a Biblioteca Estadual
do Paraná e pirei. Chegava a matar aulas para ficar entre os
livros. Curitiba é muito fria – agora mudou um pouco, mas
antigamente a gente tinha só três meses de calor. O resto
do ano, um frio danado. Boa parte dos recreios, eu ficava lendo.
Como na estrofe acima – parte da música “Socorro”, ícone do álbum Um som (1998) de Arnaldo Antunes – a poesia de Alice Ruiz
se consagrou na voz de gente como Itamar Assumpção, Zé Miguel
Wisnik e Zeca Baleiro. “Vários de seus poemas são escritos como
se fossem música e por isso tantos compositores puseram melodia
neles”, diz a escritora Noemi Jaffe. Para Alice “compor canções
é fazer poesia de outra forma”. Desde os tempos do movimento
lucila wroblewski / arquivo pessoal
Vanguarda Paulista — turma que se encontrava no Teatro Lira Pau-
52
Mas quando você pensou: “Quero ser poeta”?
Até aquele momento eu experimentava tudo. Já escrevia sobre
a natureza, tema básico do haicai, linguagem que gosto muito.
Mas também escrevia sobre várias outras coisas, numa forma
mais livre, sem métrica rígida. Aí fui ler poetas que também
escreviam daquele jeito. Ao mesmo tempo, já traduzia algumas
letras de música sem saber que estava preparando a letrista
que viria a me tornar. Foi tudo acontecendo ao mesmo tempo.
lista, na Benedito Calixto, em São Paulo, entre as décadas de 1970
e 1980 — Alice tinha seus poemas musicados. Isso não mudou
com o passar dos anos. Naquela época, verdade, a toada era mais
de contestação. Hoje, ouvimos Alice em melodias mais doces,
como na música “Sol, lua e estrela” do álbum Pé com pé (2005),
do Palavra Cantanda, em que questiona: “Quando a lua chega,
de onde mesmo que ela vem?”. A poesia de Alice é tão forte que,
muitas vezes, se torna o alicerce dos álbuns. Quase nada (2010),
de Zeca Baleiro, por exemplo, leva o nome da canção da poeta.
Não é coincidência sua filha Estrela seguir esse caminho...
Ah, não. Um pouco é pelo DNA, outro tanto pela convivência,
pela atmosfera na qual ela cresceu. Mas não dá para tirar os
méritos, porque sem trabalho a coisa não acontece. Só o talento
não garante tudo. Escolher o lado artístico é escolher
Na página ao lado, alice ruiz em foto produzida em 1990; à direita,
a escritora com itamar assumpção, para quem escreveu 20 músicas
Ali ela diz: “Nem mesmo sei qual é a parte da tua estrada no meu
caminho”. Poesia. Como na canção “Sem receita”, que está no
álbum Pérola aos poucos (2003), de Zé Miguel Wisnik, em que
questiona: “Quem pode saber como se tempera o coração?”.
Não esconda, Alice, por certo, você sabe.
53
Personnalité
a insegurança. É flertar com o risco, e isso exige muita coragem.
É simplesmente não escolher o lado material da vida.
Dentro dessa tendência, gosto muito da Luci Collin e da
Noemi Jaffe, mulheres que possuem prosa recheada de poesia.
Quando lançou seu primeiro livro, Navalhanaliga (1980),
você já pensava sobre questões feministas?
Eu era completamente ligada a isso desde muito antes,
no final dos anos 60 e início dos 70. Inclusive, escrevi vários
ensaios sobre a condição da mulher e os tenho bem guardados.
Um dia farei alguma coisa com eles. Mas é engraçado que
eu já era naturalmente feminista, mas ainda não existia
essa nomenclatura – me chamavam apenas de rebelde,
principalmente em casa, onde era a ovelha negra.
Qual a diferença entre fazer canção e fazer poesia?
Há uma grande discussão sobre isso. A letra boa de verdade
tem várias características da poesia, como a ideia e trama
na linguagem, que são fundamentais tanto para uma quanto
para a outra. O que muda entre poesia e letra é o timing,
é o tempo de absorção. No papel, o tempo de assimilação
da poesia é outro: você tem o livro, pode ir e voltar quando
quiser. Pode ler de manhã, depois volta à tarde, quando está
feliz ou triste. Até que de repente aquilo faz sentido. Agora, a
letra da música tem de cativar na primeira frase. Tem também
outra diferença importante: a poesia em papel a gente sempre
faz sozinho, e a letra para canção não.
na página ao lado, alice no quintal de casa, onde adora cuidar
das plantas. Sobre os vidros da edícula, ela disse que sempre os
deixa sujos para os passarinhos evitarem colisões fatais
54
Mas vocês brigavam?
Ah, sim. Uma troca tão intensa como a nossa era também
sujeita a brigas, mas não picuinhas. Eram coisas fundamentais,
sobre conceitos, discussões sobre ideias. Itamar era muito
brigão, mas também um doce de pessoa.
Como você vê a cena musical atual?
Ainda não senti o mesmo que na época da Vanguarda
Paulistana, de que participei e sabia ser uma coisa realmente
nova, um real movimento. Um grupo de pessoas voltado
para uma linguagem nova, porque depois do Tropicalismo
não tinha acontecido mais nada realmente significativo. Mas
agora, 30 anos depois, não consigo identificar nada parecido
com aquilo. Então, estava mais do que na hora de haver um
florescimento. De qualquer forma, acho que vale esperar um
pouco o filtro do tempo fazer a sua ação. Uma coisa que vale a
pena notar é que nunca teve tanta mulher compondo quanto
agora – sem entrar no mérito da qualidade –, o que é um
grande avanço.
fotos divulgação
O que agrada você na atual literatura brasileira?
Tem um monte de gente boa fazendo coisas incríveis.
E não apenas pessoas muito novas. Demorei um tempo para
me sentir e me entender com a minha obra e me ver como
escritora madura. Há pessoas que não são tão jovens e que
estão publicando seus primeiros livros. Quando você é novo e
se expõe, tem duas coisas que podem atrapalhar a sua trajetória
ou seu processo criativo, que são opostas. Uma é a crítica
destrutiva, que pontua o que falta em você e, de repente, isso te
bota para baixo. A outra é o elogio, que pode passar a sensação
de que você está pronto. Quando se é mais maduro, mais seguro,
quando já se trabalha com a sua produção há bastante tempo
e já expôs seu trabalho ao crivo de pessoas cuja sensibilidade
você admira, as críticas e os elogios não fazem tanta diferença
no seu processo. Acho que o ideal é publicar um pouco mais
tarde. Tem muita gente apresentando uma linguagem própria,
inovadora. É interessante este híbrido que está pintando no ar,
uma prosa permeada de poesia. Isso é quase um movimento.
Você fez parceria com Itamar Assumpção (1949-2003)
em mais de 20 letras. Foi com ele que você tinha
mais afinidade?
Sim. Não cheguei a viver isso com outra pessoa com
quem compus, e sinceramente não sei se vou chegar a ter
esse tipo de relacionamento de novo. A gente costumava
brincar que parceria era igual a casamento: uma troca
completa de consciência – só que sem o sexo, sem
o romance e as coisas desagradáveis.
maquiagem: omar bergea
Esse livro foi um resultado desse tipo de conflito?
Mergulhei fundo nos estudos sobre a condição da mulher.
O Navalhanaliga tem muito a ver com isso, sim. Até então
eu ficava vendo as mulheres com aqueles nomes de livros As
nuvens ao cair da tarde, A menina e a borboleta... Então, pensei:
“tenho de achar um nome radical, como ‘navalha na liga’”. O
nome do livro, num primeiro momento, era uma homenagem às
prostitutas, porque no passado elas eram as únicas que usavam
armas para se defender. As mulheres eram todas frágeis, mas,
como aquelas viviam na rua, tinham de cuidar de si mesmas
e, por isso, levavam sempre uma navalha sob a roupa. Achei
o nome bom. Num segundo momento, me dei conta de que a
navalha corta e a liga une. Estava pronto.
alice ruiz
55
Personnalité
fotos e texto Marina Klink, em depoimento a Lívia Aguiar
29 de abril –
Férias de tudo
VIAGEM
É claro que faz muito calor em Manaus. Minha
filha Tamara e eu chegamos na hora do almoço. Viemos para participar de um cruzeiro literário, a terceira edição do Navegar é Preciso.
Conosco, embarcaram mais 78 passageiros.
São aficionados por literatura, seis integrantes
do grupo de jazz Projeto Coisa Fina e os escritores Frei Betto, Xico Sá, Marina Colasanti
e Affonso Romano de Sant’Anna. A proposta
do projeto é promover um encontro entre
escritores e leitores durante um cruzeiro pelo
rio Negro. A Amazônia como pano de fundo.
Neste ano, o jovem e premiado chileno Ale-
LITERÁRIA
jandro Zambra, autor do romance A vida privada das árvores, não pôde vir. Em seu lugar,
ganhamos uma mesa com Cadão Volpato.
Partimos no fim da tarde. A embarcação
Iberostar Grand Amazon, com 75 camarotes
e três deques, desliza sobre as águas escuras.
O rio Negro é um colosso. Como se seus 720
quilômetros de superfície navegável surgissem qual um asfalto maleável. Em sua bacia
há mais água doce do que em toda a Europa.
Nesta época do ano, o afluente do Amazonas
sobe até 10 metros, ampliando os igarapés,
que são pequenos braços de rio. Eles cortam
a floresta e inundam a mata de igapós. Os
canais abertos nos igapós (a floresta inundada) em geral são fechados no alto pela
copa das árvores, deixando a impressão de
claustros aquáticos. Invadindo esse refúgio
Diário de bordo da fotógrafa Marina Klink dá detalhes
da rotina sem internet do encontro de escritores realizado
durante um cruzeiro pelo rio Negro, na Amazônia
natural, a conexão com a minha vida, com a
minha rotina – e com o sinal do celular – vai
se distanciando. Olho para a Floresta Amazônica, tão rica, tão viva. É preciso reaprender a
viver sem internet. A bordo, noto um pouco
de timidez dos escritores, meio separados dos
demais. Vou rabiscando essas impressões no
papel quando Frei Betto surge e se oferece
para ministrar aulas de meditação, bem cedinho. Programo meu despertador. Durmo ao
som da floresta.
ponte rio negro, em manaus. o cruzeiro literário
Viajar é preciso leva escritores e fãs a conviver
na selva durante cinco dias
1o de maio – Clarice
me faz chorar
Hoje sim, meditação com Frei Betto. Mais
tarde vamos em lanchas visitar os locais
em que 16 botos-cor-de-rosa são alimentados diariamente. São umas graças, rosa
mesmo, e quase cegos. Os botos parecem
sorrir o tempo todo. Clique.
Voltamos para admirar o encontro com
Affonso. Ele fala de como se inspirou para
publicar mais de 40 livros: “Ao escrever, a
primeira perplexidade tem que ser a do escritor. Todo autor que se preze está lidando
com o inconsciente. A literatura é isso, uma
experiência mágica”. Ao fim do almoço, seguimos a Novo Airão (a 180 quilômetros de
Manaus), onde fica a Fundação Almerinda
Malaquias. A missão é capacitar jovens. Há
venda de artesanato. Tudo é muito simples.
Ao lado do porto, alguns índios se divertem
no rio. Clique.
No fim da tarde, a conversa que eu mais
esperava: Xico Sá e Cadão Volpato. Big Jato,
o primeiro romance de Xico, ocupa boa parte
do papo. Mas o jornalista cearense faz uma
30 de abril –
Frei Betto samba
pausa para contar como encontrou P. C.
Farias, o tesoureiro de Collor que estava foragido em 1993. Com muito humor, revela que
foi num boteco de praia, tomando uma ca-
Acordo cedo, antes de o sol raiar, mas per-
didas no meio da paisagem. Clique. Depois
mulher que esperava seu amado todos os
chacinha, que ouviu de uma fonte o paradei-
co a meditação por minutos. Subo para o
dessa breve experiência de selva, a primeira
dias no alto de um rochedo. Ela o sabe de cor
ro: Londres. Na sequência, engrenado, Xico
deque do navio. Café da manhã com frutas
parte literária do encontro: uma conversa com
e recita com uma emoção hipnotizante.
ainda fala da importância da leitura como
acompanha a alvorada. A paisagem é incrí-
Frei Betto. Ele tem 56 livros publicados! O que
No fim da tarde, entramos de lancha
vel. A distância entre as margens do rio
mais gosto são os relatos de seu tempo como
pelos igapós. Um macaco bugio dorme em
lia que lê para sair do lugar, fisicamente ou
e a ausência de vento nos dá a impressão
preso político. Quando a ditadura o enclau-
um galho, mas acorda com o grito de algu-
metaforicamente. À noite, saímos de lancha
de navegarmos no mar.
surou, em 1969, os homens usavam cabelos
mas pessoas no barco. Me irrito com elas.
novamente para tentar ver jacarés – em vão.
Pegamos uma lancha e entramos na
curtos. Quando saiu, quatro anos depois, a
Faço uma foto do bicho acordado. Clique. À
A lancha parece flutuar. As águas escuras se
floresta pela primeira vez. O guia nos mostra
moda era cabelo comprido. Após o almoço,
noite, apresentação do Projeto Coisa Fina.
misturam com o breu da noite e vemos as
ervas medicinais, animais escondidos e como
uma conversa com Marina Colasanti, filha de
O grupo de jazz homenageia Moacir Santos,
árvores refletidas como um espelho. Para fe-
se tira água potável de um cipó. Ao meu lado,
italianos, nascida na África e que se mudou
compositor que fez pouco sucesso no Brasil,
char a jornada, a atriz carioca Clarice Niskier
Xico Sá – “Olha que perfume! Olha que lou-
para o Brasil com 11 anos. Ela é casada com o
foi para Hollywood compor trilhas sonoras e
nos oferece a leitura de um texto ainda em
cura o cheiro desta árvore!” – encosta o nariz
poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna
morreu na Califórnia. Ao final do show, eles
teste: “A lista”. Várias pessoas choram e va-
no tronco e funga ruidosamente. Fico para
e tem dezenas de livros e traduções. Marina
puxam um sambinha. Chamam o Frei Betto.
mos dormir pensando em amizades, tempos
trás fotografando flores e sementes escon-
nos brinda com um conto de fadas sobre uma
E não é que ele tem samba no pé?
perdidos, prioridades da vida.
NO ALTO, UM BOTO COR-DE-ROSA DOMESTICADO “sorri” para a foto.
na página ao lado, os escritores affonso romano sant’anna e
marina colasanti; macaco flagrado em passeio de lancha em
igapó; índia nada perto da fundação almerinda malaquias
58
hábito, a diferença que pode fazer uma famí-
59
2 de maio –
Praia e futebol
“ande sempre
com um
livro. ao fim
da semana,
ficará
surpreso
com quanto
leu”
Consigo ir à meditação mais uma vez – a últi-
todos os escritores. Hora de ouvir conselhos.
ma. Amanhã já estaremos de volta a Manaus,
“Ande sempre com um livro”, diz Frei Bet-
ao sinal do celular e à realidade. Saímos pela
to. “Mesmo que você saiba que não vai ter
manhã para ver a floresta. Trombamos com a
nenhum minuto para ler. Ao final da semana
feliz presença de diversos macaquinhos, que
ficará surpreso com quanto leu.” Xico Sá faz
entram no barco e comem da nossa mão. Na
troça: “Ande sempre com um livro. Ele pelo
volta, Xico Sá entrevista Cadão Volpato, que
menos dá uma dignidade, um ar intelectual,
lançava seu primeiro romance, Pessoas que
mesmo que você não leia nem uma pági-
passam pelos sonhos. Ele fala das suas refe-
na”. Chamam minha filha Tamara para falar.
rências literárias, especialmente autores latino-
Apesar de tímida (ela tem apenas 16 anos),
americanos como Jorge Luis Borges e Juan
compartilha a experiência de publicar um li-
Rulfo. Em seguida, ainda que meio nublado,
vro (Férias na Antártica) com as duas irmãs,
muita gente se anima de ir à Praia do Tupé.
sobre as viagens que fazemos anualmente
O lugar é lindo: de um lado, uma prainha rasa
para o Polo Sul.
e uma vista de Manaus ao longe. O outro lado
No fim do dia, a despedida do navio é
da pequena ilha se parece com uma margem
com champanhe no deque e mais uma apre-
de rio, com águas mais profundas e vista para
sentação do Projeto Coisa Fina. Muita gente
a mata. Surge uma bola e os homens se jun-
dança, inclusive – e de novo – o Frei Betto,
tam para uma pelada. Outros nadam. Clique.
com ainda menos pudores. É difícil acreditar
Para fechar o encontro, uma mesa com
que amanhã estaremos em São Paulo.
3 de maio –
Vovô Affonso
Acordo cedo para ver o encontro do Negro
com o barrento Solimões. Infelizmente está
nublado. Não é tão bonito quanto outros
que já vi. Ainda assim, parece mágica. Outra
mágica é a volta do 3G. Impossível escapar
à realidade. Fazemos o check-out do navio,
visitamos o Teatro Amazonas em Manaus e
nos preparamos para ir embora. Já na despedida, a Tamara diz ao Affonso e à Marina:
“Eu queria adotar vocês como meus avós!”.
Affonso responde: “Pois vamos procurar um
cartório e registrar, porque eu também quero ser seu avô”. Clique.
Descobrimos que todos os escritores são
projetamos quando lemos. Porque quem lê
acessíveis. Descobrimos o criador por trás
também, de certa forma, pratica uma espécie
para um objeto principal. No Navegar É Pre-
das obras. Conhecemos o ser humano que é
de ficção: imaginamos as mãos e a figura
ciso, o encontro e a vivência com os autores
igual a nós, com sentimentos que conflitam
desses seres especiais, os literatos. Caem as
empacotam uma experiência de descobertas.
com os personagens que criam e que nós
máscaras. Fica a amizade.
Ao cabo, acho que a selva é uma moldura
60
A EMBARCAÇÃO IBEROSTAR (vista de dentro e de fora) LEVA
80 PASSAGEIROS PELA ROTA AMAZÔNICA; na página ao lado,
escritores e fãs de literatura aproveitam a praia do Tupé
61
Baixe a Revista Personnalité no iPad
e assista ao vídeo com Marina Klink
Alice Ruiz pergunta:
Qual
seu
poeta
preferido?
Zico responde:
Vinicius de Moraes. Mais pelas músicas.
62
63
Por Pedro Só, do Rio de Janeiro Fotos Marcelo Correa
Ele fez 826 gols e há quem diga que não era o craque da
família. Perdeu a Copa do Mundo mais lamentada de todas,
mas ganhou todos os títulos possíveis com o Flamengo. É
conhecido como “deus do futebol” no Japão. Foi parar no
Uzbequistão e encarou os riscos da vida de treinador em
Bagdá. Aos 60 anos, Zico abre o jogo sobre a razão de seguir
no mundo da bola: “Posso fazer um livro sobre cada uma
dessas experiências aí”. A Revista Personnalité seleciona as
melhores passagens para você
10
Adalberto Diniz/Editora Abril
10 HISTÓRIAS DO CAMISA
MARACANã: ZICO COMEMORA GOL DE RONDINELLI,
NA FINAL do carioca de 1978. o flamengo bateu
o vasco por 1 a 0 e sagrou-se campeão
O
maior ídolo da história do Flamengo. O craque da melhor
seleção brasileira a perder uma Copa do Mundo. Tema
de música de Jorge Ben Jor (“Camisa 10 da Gávea”). Irmão
mais novo do fantástico Edu, o atacante do América do Rio de
Janeiro que disputou vaga na seleção com Pelé. Ator de um
filme horroroso (sinopse: “uma cientista maluca, um clone do
jogador, uma tremenda confusão: Uma aventura do Zico”)
e que o levou, um dia, a dizer: “Disso eu me arrependo”.
Um dia, cinco décadas atrás, uma tia portuguesa do jovem
Arthur Antunes Coimbra apodou o menino mirrado de
Arthurzinho. Depois, atualizaram-no Arthurzico. Na rua, virou
Zico. Na rua, o menino Zico juntava frutas e flores que sua mãe
cultivava no quintal da casa em Quintino, subúrbio do Rio. Daí,
vendia na feira. Com o dinheiro, comprava figurinhas e pão
de mel. Na rua também, jogava bola como quase ninguém –
excetuando seus irmãos mais velhos, Antunes, Nando e Edu.
Antunes, dizia o pai de Zico, era o craque da família. Para Zico,
era Edu. Para a torcida do Flamengo, é Zico.
Na seleção brasileira, participou de 72 jogos, fez 52 gols,
venceu 52 vezes, empatou 17 e perdeu só três. Disputou três
Copas do Mundo e estava em campo na trágica derrota para
os italianos (3 a 2 na segunda fase da Copa de 82, na Espanha).
“Faltou entrosamento à seleção naquele jogo”, comenta Zico.
Pelo Flamengo, tornou-se o maior goleador do antigo Maracanã:
333 gols em 435 jogos. Venceu quatro vezes o Campeonato
Brasileiro. Levantou sete vezes a taça do Carioca. Na Udinese,
fez o pé de meia. Foi contratado por US$ 4 milhões (maior valor
pago por um jogador até então). A federação italiana ameaçou
suspender a compra (havia um boato de que times poderosos,
como Roma e Juventus, na disputa por seu passe, fizeram
66
pressão para embargar o negócio). O povo de Udine revoltouse. Ameaçou um movimento separatista se o Galinho não
fosse. Em 1983, ele foi. Retornou ao time da Gávea em 1985, de
onde se despediu em 1989 – do time e do futebol. Dois anos
depois, desistiu da aposentadoria. Topou jogar no Japão, que
só organizaria sua liga nacional em 1993. Num país que travava
seus primeiros contatos com atletas de primeira linha, virou
ídolo do Kashima Antlers – e, logo, Deus do Futebol. Ficou até
1994. Então, pendurou as chuteiras de vez. Passaria a técnico.
Comandou o próprio Kashima, além de Fenerbahçe, na
Turquia, Bunyodkor, no Uzbequistão, Olympiakos, na Grécia,
CSKA Moscou, na Rússia, a seleção do Japão e a do Iraque, da
qual se desligou em novembro último. No ano que vem, será
tema do samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense: “Arthur
X – o reino do Galinho de Ouro na corte da Imperatriz”.
O que leva um nome lendário do futebol a passar dias
trancado em um quarto de hotel em Bagdá, com todos os
deslocamentos envolvendo medidas de segurança, ameaças
de bomba e metralhadoras apontadas por toda parte? Por
que esse homem – “Deus” no Japão, amado pela maior
torcida do Brasil – segue encarando aventuras como técnico
no Uzbequistão? O que há por trás de um ex-atleta que
decide lidar com dirigentes envolvidos em corrupção e
antiprofissionais que comandam clubes na Grécia?
Arthur Antunes Coimbra, 60 anos, o Zico, o Galinho de
Quintino, o Camisa 10 da Gávea, responde de primeira: “Eu
gosto de futebol”. E com a objetividade que caracterizou seu
jogo, completa: “É sempre o desafio, pô! Quero ter história pra
contar. Você passa por esta vida e quer deixar alguma coisa.
Posso fazer um livro sobre cada uma dessas experiências aí”.
acima, o menino zico em um de seus primeiros treinos no campo
da gávea. ao lado, o craque no jogo contra a polônia pela copa
do MéXICO (16/6/1986). vitória do brasil: 4 a 0
zico
arquivo pessoal e Bongarts/Getty Images
Personnalité
67
Personnalité
zico
4 A PRIMEIRA NAMORADA
Casado desde 1975 com a primeira namorada, Sandra Coimbra
– estão juntos desde que ela tinha 14 anos, e ele, 17 –, Zico conta
com os três filhos para ajudá-lo a tocar os negócios na Zico Participações e no Centro de Futebol Zico (CFZ), inaugurado em
1995 no Recreio dos Bandeirantes, a 15 quilômetros de sua casa.
O mais velho, Júnior Coimbra, mora em Nova York e administra
os projetos internacionais, que seguem em expansão nos Estados Unidos e na Europa, além de contratos com multinacionais
como a Sony. Bruno e Thiago trabalham no CFZ, onde cuidam
também da escola Zico 10, projeto iniciado em 2008 e que atende cerca de 45 mil crianças em todo o Brasil. “A ideia é botar
para estudar, antes de qualquer coisa. Milhões de garotos abandonam a escola antes de terminar o ensino fundamental.”
Quando está em casa, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio
de Janeiro, Zico é um avô como muitos outros. Curte passar horas montando aviõezinhos com os cinco netos e os mima como
bem entende. “Pai, pra que tanta bala pros garotos?”, reclama
o filho Bruno. Em junho, realizou o desejo do neto mais velho,
Felipe, 5 anos, e o levou ao amistoso do Brasil com a Inglaterra
no Maracanã para conhecer o jogador que o menino idolatra
nas partidas de videogame, o atacante inglês Wayne Rooney.
3 AS PELADAS COM O IRMÃO
1 MAMÃE, EU QUERO MAMAR
Arthur foi o único dos seis filhos de seu Antunes e dona Matilde a não concluir uma universidade. “Eu era bom aluno, só fui reprovado no segundo
ano ginasial, quando comecei a matar aula para ver partidas dos meus irmãos que já eram jogadores [Antunes, Nando e Edu].” O científico (como era
chamado o ensino médio) do craque foi profissionalizante em contabilidade
e ele chegou a cursar até o quarto ano de educação física.
Sim, é verdade que o caçulinha da família de classe média de Quintino
(subúrbio da zona norte carioca) mamou no peito até bem tarde. Ele
tenta minimizar, dizendo que foi “só” até os 5 anos, embora o site oficial
ziconarede.com.br informe que foi até os 6 e o jornalista Ricardo Setti,
da revista Veja, aposte em 11.
Como eram as peladas em Quintino?
“A gente fechava a rua dos dois lados”,
conta Zico. “Não passava carro mesmo...
Eram boas as peladas! Porque tinha o
pessoal da Funabem [Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor], que ficava ali
do lado, menores infratores, caras que
jogavam a sério. O Dario [Dadá Maravilha] era um deles, jogava de beque e
virou atacante depois de levar um baile
do meu irmão, o Zeca.”
José Antunes, morto em 1997, fez carreira como jogador usando o sobrenome
da família. Foi uma inspiração para Zico.
Com ele, o Galinho aprendeu a importância da velocidade. De Edu, o mais técnico
da família, observou os dribles. “Ele era
malabarista, infernizava os zagueiros.
Lembro de um jogo de preliminar do Flamengo em que ele levou a bola do meio
de campo até a área com embaixadinhas
e a cabeça. A torcida aplaudiu de pé.”
“só se deve
entrar no
futebol
por amor à
bola, nunca
por outros
interesses”
O escritor – e flamenguista – Ruy Castro já comparou a arte de Zico em gols a croquis de Leonardo da Vinci.
No entanto, se a paixão pelo Flamengo foi passada pelo pai – o alfaiate português José Antunes Coimbra –, no
palpite do irmão Edu, o pendor artístico pode ter vindo da mãe, Tidinha. “Ela tinha um caminhar serelepe,
ágil”, diz Edu. “Se nascesse hoje jogaria bola e seria mais craque do que ele. Sem falar que era a própria poesia,
via tudo com olhos atentos à beleza, sempre no meio das flores e frutas do pomar lá de casa.”
Fundada em 1939, um dos estabelecimentos mais tradicionais de Quintino era a Fábrica de Pianos Péricles
Delarue (hoje Rei dos Pianos), e Matilde pôs o pequeno Arthur para estudar o instrumento. Ele aprendeu a
tocar, mas deixou de lado (interesse só retomado quando foi morar na Itália, nos anos 80, e comprou um
órgão): nada era páreo para a obsessão pelo futebol, fosse jogo de botão, totó ou à vera.
68
entre os pais, dona matilde e seu antunes (janeiro de 1982);
aos 13 anos, com a faixa de campeão (1966) pelo time de futsal
juventude de quintino. na página ao lado, na sala de troféus
de sua casa, na barra da tijuca
Arquivo pessoal
2 O PIANISTA DE QUINTINO
69
Personnalité
zico
7 DESPEJADO NA GRÉCIA
Zico diz que os irmãos não o orientaram formalmente e que
só quando já estava na escolinha do Flamengo, lá pelos 15 anos,
é que ganhou respeito maior entre eles. “O Antunes era fominha e reclamava pra caramba, era muito chato na pelada. Lembro de um contra-ataque em que eu dominei a bola e podia ter
passado pra ele, mas percebi que o goleiro estava adiantado e
de bicicleta mandei direto pro gol. Em vez de me xingar, ele
disse: ‘Pô, esse moleque vê tudo mesmo!’”, Zico conta e ri.
O conceito científico de inteligência espacial só foi desenvolvido no começo dos anos 1980, mas o jovem Zico logo
percebeu que aquilo era “um dom especial”. “Eu passo em
um lugar uma vez e já mapeio mentalmente, sei voltar sozinho. Já corrigi muito motorista no Japão. Eles mostrando o
mapinha e eu: ‘Não, é por aqui’. Dirijo em qualquer lugar do
mundo sem me perder.”
No Flamengo, que o consagrou como campeão mundial de
1981, ele aliou o senso espacial ao entrosamento com rara
inteligência. “A gente tossia, era uma jogada. Espirrava,
era outra. Nos entendíamos de uma maneira única, jogar
ficava fácil”, afirma Adílio, companheiro de meio de campo. “Acho que esse tipo de entrosamento faltou à seleção
brasileira no jogo contra a Itália em 1982. A história poderia
ter sido diferente”, conta o velho amigo. Zico, porém, encara
com serenidade a decepção daquela tarde em Barcelona: “A
principal lição daquela derrota é que em Copa do Mundo
cada jogo é uma decisão. No dia em que você erra daquela
maneira, volta pra casa inapelavelmente”.
Como diz o comentarista Fernando Calazans, cronista
do jornal O Globo, “se Zico não ganhou a Copa do Mundo,
azar da Copa do Mundo”.
zico Cobra falta no maracanã vestindo a camisa 10 do
flamengo, equipe pela qual se tornou o maior goleador
da história do estádio, com 333 gols em 435 jogos
70
Arquivo pessoal e Colorsport/Corbis/Andrew Cowie
6 “Se o ZICO NÃO GANHOU A COPA...”
Rodolpho Machado/Editora Abril
5 INTELIGÊNCIA ESPACIAL
O título da Copa da Ásia de 2004, à
frente do Japão, e os dois anos (2006
a 2008) em Istambul, na Turquia, pelo
Fenerbahçe, foram pontos altos como
treinador. Por outro lado, viveu pesadelos como o de Atenas, em 2010, quando
comandava o Olympiakos. Disposto a
não pagar a multa rescisória, o presidente do clube resolveu demiti-lo por
intermédio de um oficial de Justiça,
com um despejo a reboque. “Eu tinha
uma semana para deixar a minha casa.
Sozinho na cidade, empacotei tudo
sem ajuda de ninguém.” Os dirigentes
gregos chegaram a mudar de ideia,
falaram que o Zico poderia ficar, mas
daí já era tarde e ele foi embora. Mais
tarde, recebeu tudo o que era devido e
o dirigente foi preso. “É incrível: três
dirigentes com quem trabalhei foram
parar na cadeia! Esse, o da Turquia e o
do Uzbequistão... Mas com esse último,
ao menos comigo, tudo foi correto.”
“passo em um
lugar uma vez
e já mapeio
mentalmente, sei
voltar sozinho”
8 CIDADÃO DO MUNDO
Zico conhece a Ásia como poucos diplomatas. Morou por 15 anos no Japão e circulou pela região
treinando a seleção local. Entusiasta da fotografia digital, tem arquivos organizados com as imagens
que registra nas andanças pelo planeta. É um leitor ávido de obras sobre futebol, que devora durante
voos e deslocamentos – seja para Tóquio ou para Petrolina, no Ceará. O maior artilheiro da história
do mais famoso estádio do mundo tem viajado muito. E, por isso, vem faltando à pelada que frequenta há três décadas, às quartas-feiras, no Rio. Mas garante que ainda aguenta 80 minutos de partida.
“Dor, eu só sinto no joelho [o esquerdo, que passou por seis operações]. Não tenho personal trainer,
essas coisas: o que faço é musculação – sempre que dá – e corro, só que dentro da piscina.”
no alto, com a mulher, sandra, em atenas (grécia), onde foi
técnico do olympiakos (2010); à direita, a camisa rasgada foi
a menor das tristezas na derrota para a itália na copa de 1982
71
Personnalité
zico
_
A carreira do craque
9 “VOCÊ É BOBO,
MUITO SANTINHO”
COMO JOGADOR
Flamengo (1971-1983 e 1985-1989)
Títulos: Copa Libertadores da América
Zico sempre demonstrou coragem e
imensa autoconfiança, mesmo diante
de missões espinhosas – topou jogar a
Copa de 1986 sem condições físicas (um
de seus raros arrependimentos), aceitou
ser ministro dos Esportes no governo
Collor e trabalhou por quatro meses na
gestão da presidente Patricia Amorim no
Flamengo, até sair, magoado, em outubro de 2010. A mulher, Sandra, classifica
o marido como “muito caxias”. “Eu já
disse muito a ele: ‘Você é muito bobo,
muito santinho’. Por outro lado, sempre
o admirei por nunca fazer algo que fosse
contra seus princípios. Engolir sapo, ele
não engole.” Segundo consenso familiar, a
única pessoa capaz de obrigar Zico a fazer
o que não quer é Sandra. “Quando algum
dos filhos quer pedir uma coisa mais complicada pra ele, fala comigo antes. Já ouvi
de todos: ‘Meu pai te obedece!’.”
(1981); Copa Europeia/Sul-Americana –
Mundial Interclubes (1981); Troféu Ramón
de Carranza, na Espanha (1979 e 1980);
Campeonato Brasileiro (1980, 1982, 1983
e 1987, no Módulo Verde da Copa União);
Campeonato Carioca (1972, 1974, 1978,
1979, 1981 e 1986)
Udinese (1983-1985)
Kashima Antlers (1991-1994)
Seleção brasileira (1976-1989)
Copas do Mundo de 1978 (3ª colocação),
1982 (5ª colocação) e 1986 (5ª colocação)
COMO TREINADOR
Kashima Antlers, Japão (1999)
Fenerbahçe, Turquia (2006-2008)
Títulos: Campeonato Turco (2007);
Supercopa da Turquia (2007)
Bunyodkor, Uzbequistão (2008-2009)
Títulos: Campeonato nacional (2008);
Copa do Uzbequistão (2008)
CSKA Moscou, Rússia (2009)
Títulos: Copa da Rússia (2009);
10 GALINHO X PINTINHO
Supercopa da Rússia (2009)
Seleções:
Japão (2002-2006)
Títulos: Copa da Ásia (2004)
Iraque (2011-2012)
72
Arquivo pessoal / Agradecimento: São Cristovão Bar e Restaurante/São Paulo
Olympiakos, Grécia (2009-2010)
tilheiro do “clássico das multidões”, com 19 gols. Da Espanha,
onde mora desde 1980, após longo período atuando pelo Sevilla, Pintinho faz duas perguntas para o craque:
Apontado por Zico como o jogador que melhor o marcou ao
longo de toda a carreira, Carlos Alberto Pintinho foi um dos
destaques do time do Fluminense que ficou conhecido como
A Máquina, bicampeão carioca em 1975 e 76. Formou um meio
de campo memorável com Rivellino e Dirceu. “Ele era muito
técnico e não recorria à violência”, diz o craque rubro-negro.
“É sempre mais difícil enfrentar quem sabe jogar bola.” O extricolor (que também atuou pela seleção) lembra dos muitos
Fla-Flus disputados: “Era todo um calvário, muitas vezes não
conseguia dormir pensando em um jeito de parar o cara. Me
dei bem muitas vezes graças ao posicionamento, a 1 metro dele,
tentando me antecipar. Acabava que o Zico é quem me seguia
em certos lances. Mas lembro de um jogo traumatizante [Fla 4
x 1 Flu, em março de 1976, marco da afirmação do Galinho como
ídolo no Maracanã], depois quase fui parar no psicólogo. Ele
fez quatro gols, um deles numa cobrança de falta por baixo da
barreira que me deixou com cara de tonto”. Zico é o maior arna página ao lado, ele bate uma bola no campinho que tem em
casa; Acima, com os filhos, Thiago, bruno e júnior, nos anos 1980
Galo, como você vê a seleção brasileira hoje?
Em um momento de transição e renovação. Há uma geração
que está indo e outra que está chegando. Só que os jovens
são as maiores esperanças da seleção. Aos poucos, acho que
Felipão deve dar uma cara ao time.
E que conselho daria aos garotos que estão começando
a praticar futebol agora?
Tenho percebido que hoje há muita influência da família,
uma pressão sobre a criança que pensa em jogar futebol.
Ela passa a ser uma esperança de ascensão social para os
pais. O meu conselho é: só se deve entrar para o futebol
por amor à bola, nunca por outros interesses.
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Personnalité
Por Celso Unzelte ILUSTRAÇÕEs Zoran Lucic´
A
cara
da
Copa
Do leão Willie ao tatu-bola Fuleco, passando por
mascotes criados na Ásia e na África, saiba como
nasceram os 13 personagens que marcaram a história
dos mundiais e descubra os que fizeram mais sucesso
O pai de todos
A Copa do Mundo da Inglaterra, em 1966, foi a primeira a apresentar um mascote oficial. Às vésperas do torneio,
a Football Association, a federação inglesa de futebol, buscava uma forma de ajudar a custear a organização e
atrair a atenção do público. Estimulada pelo exemplo dos pequenos clubes locais, que vinham utilizando elefantes
(Coventry City), senhores gordinhos (Bradford City), príncipes (Port Vale) e até camarões (Southend United)
como mascotes, a FA buscava uma versão que sintetizasse o orgulho britânico de ter inventado o esporte mais
popular do globo. Assim, encomendou ao ilustrador Reg Hoye a missão de desenvolver o mascote de todas as
Copas. O artista apresentou quatro propostas: um garoto e três tipos de leão (o animal-símbolo dos bretões). World
Cup Willie, um leãozinho vestido com a Union Jack (a bandeira britânica), foi o escolhido. Inspirado em Leo
Francis Hoye, o filho do desenhista, à época com 12 anos, Willie inaugurou a lucrativa tradição.
Campeã: Inglaterra Colocação do Brasil: 11º lugar
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A águia voou
Laranja amarga
Calcula-se que a adoção do mascote inglês tenha gerado um ganho em publicidade e propaganda de
US$ 2 milhões (US$ 14 milhões em valores atuais). Logo, todas as Copas a partir dali passaram a ter
seus mascotes. Em 1970, no México, surgiria a primeira figura humana: Juanito Maravilla, um garotinho
de sombreiro e camisa da seleção local. Apesar da boa aceitação internacional, Juanito foi considerado
“inofensivo demais” pela população local. Afinal, representava o modo passivo como os mexicanos não
queriam ser vistos pelo mundo. Por conta disso, três meses antes do início da Copa, foi apresentada a águia
Pico, criada por Lance Wyma, publicitário americano. Criou-se ali uma cisão curiosa:
Pico agradou a população local e fez sucesso. Mas, basicamente, só ali. A águia acabaria ignorada
no resto do mundo, coberta pelo sombreiro e pela irreverência de Juanito.
No Brasil, nenhum mascote fez mais sucesso que o símbolo do mundial de 1982. Um dos principais produtos
de exportação ibéricos, a laranja ajudou a enfeitar as ruas durante a inesquecível campanha da seleção de Zico,
Sócrates e companhia, liderados por Telê Santana – muitas vezes, com a licença poética da troca de seu uniforme
original: saía o vermelho e azul, do escrete espanhol; entrava o amarelo e azul do Brasil. Pela criação do Naranjito,
os publicitários Jose Maria Martín Pacheco, então com 28 anos, e Dolores “Lola” Salto Zamora, com 21, de
Sevilha, embolsaram um prêmio de 1 milhão de pesetas (R$ 30 mil em valores de hoje). No concurso, foram
inscritos 586 desenhos e selecionados três finalistas. Na votação final, feita por telefone, o Naranjito recebeu
10 milhões de votos, mais que seus outros dois concorrentes juntos.
Campeã: Itália Colocação do Brasil: 5º lugar
Campeão: Brasil
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Os outros mascotes
da Copa do Mundo
Tip e Tap (1974) O desenhista Horst Schäfer
atualizou os traços de dois personagens
do jornal Saarbrücken, dos anos 1950.
Gauchito (1978) Seu nome é uma abreviação
do termo “gaúcho”, usado para designar
o homem do campo.
Pique (1986) “Pique”, em espanhol,
significa “picante”. O mascote é uma
pimenta típica, chamada chili jalapeño.
Striker (1994) Criado pela equipe de animação dos estúdios Warner Brothers, seu nome
foi escolhido em um concurso nacional.
Footix (1998) Criado pelo artista Fabrice
Pialot. Nome escolhido em referendo do
qual participaram 19 mil franceses.
Ato, Kaz e Nik (2002) As criaturas futuristas
eram membros de um time de “atmoball”,
esporte fictício parecido com o futebol.
Zakumi (2010) ZA é a sigla oficial para
África do Sul, e kumi, palavra que designa
o número dez.
Polêmica geométrica
Primeiro mascote que não era gente nem bicho nem fruta, mas um amontoado de formas geométricas,
o boneco Ciao (saudação italiana utilizada tanto para a chegada quanto para a partida) inovou.
Até por isso, desagradou aos mais tradicionalistas. Formado por 23 cubos com as cores da bandeira
da Itália, país-sede do mundial de 1990, sua cabeça era uma bola de futebol no modelo
mais clássico, de gomos pretos e brancos, que havia sido lançada em 1970.
O Ciao foi também o primeiro mascote das Copas do Mundo criado e animado por computação. Seu nome,
escolhido em um concurso promovido pelo comitê organizador por meio das extrações da loteria esportiva,
foi divulgado em julho de 1989, um ano antes do torneio. A palavra ciao, considerada harmoniosa
e de fácil pronúncia, recebeu 761.601 votos dos italianos.
Campeã: Alemanha Colocação do Brasil: 9º lugar
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encalhado
ameaçado de extinção
Algumas Copas do Mundo tiveram mascotes em dose dupla ou tripla. Isso não significa, necessariamente, que
os lucros também tenham vindo em dobro. Ao contrário: Goleo, apesar de eleito pelos usuários do site da Fifa
como o mascote preferido da história das Copas, mostrou-se um fracasso de vendas. Seu nome é o resultado da
junção das palavras “gol” e “leo” (leão, em latim). Foi criada nos Estados Unidos pelos estúdios de Jim Henson,
o mesmo da série de TV Muppets. Único mascote das Copas criado diretamente como um boneco de pelúcia,
tinha como fabricante exclusivo a Nici, uma indústria de brinquedos da Bavária. O resultado, porém, foi um
desastre: Goleo encalhou nas prateleiras e a Nici pediu concordata.
Divulgado pela primeira vez em março de 2012, o tatu-bola que simboliza a Copa brasileira causou
grande polêmica em torno da escolha de seu nome, afinal, decidido por uma votação em um site
que envolveu quase 1,7 milhão de pessoas. O resultado, divulgado pelo Fantástico, rendeu críticas.
Ganhou Fuleco ( junção das palavras futebol e ecologia), escolhido entre as opções Amijubi
(amizade e júbilo) e Zuzeco (azul e ecologia). As opções foram elaboradas por um comitê que
contou com a participação do ex-jogador Bebeto e da escritora Thalita Rebouças.
Muita gente fez a associação imediata com substantivos depreciativos em português,
como fuleiro. Indiferente, porém, ninguém ficou ao bichinho, também conhecido
como tatu-bola da caatinga, espécie ameaçada de extinção. Especialmente crianças
entre 5 e 12 anos, que aprovaram o desenho do mascote.
Campeã: itália Colocação do Brasil: 5º lugar
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Por Letícia González
Ilusão
de ótica
De tão impecáveis, os jardins japoneses nem
parecem reais. Na tradição zen-budista, sua
perfeição homenageia os espíritos da natureza
O Rikugi-en é um dos quatro jardins mais
emblemáticos do Japão. Tem 87 mil metros quadrados, mas jeito de pátio privado.
Fica perto do centro da capital, mas não dá
vista para arranha-céus ou para a Torre de
Tóquio. Dentro dele, o desenho é clássico,
e as mudanças sazonais também. Há um
lago, lanternas de pedra, uma ponte e muitos caminhos curtos por onde se pode andar devagar, observando a alternância da
paisagem. Em abril, o lugar se enche dos
últimos modelos de câmeras fotográficas
por causa das flores de cerejeira, as sakuras. No outono, volta a receber as câmeras,
desta vez atraídas pelo kouyou, o fenômeno que deixa as folhas de bordo vermelhas.
Então o horário do parque se estende e as
árvores recebem uma iluminação noturna,
ritual que é repetido ano após ano.
“As quatros estações são muito importantes na estética japonesa e na vida
cotidiana das pessoas”, explica o designer
japonês Keizo Hayano, dono de um estúdio
de jardinagem em Tóquio e de uma editora
de e-livros sobre os jardins mais famosos
do país. “As plantas crescem e morrem de
acordo com a estação, o que ajuda o observador a visualizar as mudanças”, diz ele.
Nesse ciclo, algumas plantas já adquiriram
história própria no Rikugi-en: um dos pés
de azaleia tem 300 anos e segue florescendo. Um dos únicos da era Edo (1603-1868)
na cidade, o jardim é exemplo de espaço
nobre transformado em público. Foi criado
como residência de um senhor feudal em
1702 e, no século seguinte, comprado pela
família Iwasaki, fundadora da montadora
Mitsubishi, que o doou à cidade em 1938.
TPG/Keystone Brasil
RIKUGI-EN, Tóquio
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diomedia/Robert harding/christian kober
RYOAN-JI, Kyoto
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Chegar à varanda deste jardim, em Kyoto,
é um pouco como chegar à sala da Mona
Lisa, no Louvre. É o momento em que a
imagem das fotografias se desdobra pela
primeira vez ao visitante e a antecipação
é sobreposta pela realidade. Ryoan-ji é
o templo zen mais famoso do mundo.
Como a Mona Lisa, parece menor ao vivo.
Também como a Mona Lisa, enfeitiça o
observador no exato momento em que
ele se prepara para deixá-lo. São apenas
250 metros quadrados e 15 rochas circundadas por musgo sobre um chão de
cascalho branco. Todos os dias, os monges
do templo fazem o seu desenho com um
rastrelo. “Um arranjo tão abstrato fascina
e desorienta as pessoas”, acredita o designer Keizo Hayano. Estudioso com mais
de 20 anos de experiência em jardinagem
tradicional, ele conta que não há origem
certa para o desenho do Ryoan-ji. Alguns
enxergam nele uma tigresa carregando
seus filhotes sobre a água. “Há muitos
palpites. Como não conhecemos o criador ou suas intenções, podemos fazer
associações livremente.”
O porquê de as 15 pedras não poderem ser vistas ao mesmo tempo de
nenhum ângulo também é um mistério.
A parte que não deixa dúvidas é o uso
da paisagem seca, conhecida como
karesansui, que inclui apenas pedras
e poucas plantas e tem influência do
pensamento zen-budista. “As crenças
budistas não têm uma forma e não podem ser vistas com os olhos. É possível
que os monges quisessem expressar no
jardim seu domínio da mente e o ensinamento ‘conhece a ti mesmo, observa a
ti mesmo’”, afirma Hayano.
THE ADACHI MUSEUM OF ART, Yagusi
cobrir a terra com seixos, um ritual nativo
para honrar os espíritos da natureza. Mais
tarde, noções mais elaboradas, como o uso
de lagos artificiais, chegaram da China,
e as escolas locais evoluíram até criar um
design japonês para o mix de água, rocha,
areia e plantas.
No Adachi, há seis jardineiros responsáveis. São eles que decidem até onde os
galhos crescerão e, se algo sai do controle,
quando uma árvore será substituída por
outra reservada, plantada à parte com décadas de antecedência. O preciosismo dá
um perfume irreal ao cenário, efeito que a
direção cultiva. “Queremos que as pessoas
se emocionem e vivam momentos fora da
realidade aqui. Não acho que exista outro museu no mundo com árvores extras
e uma equipe inteira comprometida em
cuidar do jardim”, se orgulha o gerente de
relações públicas Wataru Takeda.
divulgação
Na coleção de pintura japonesa do Museu
Adachi, há um quadro misterioso. Ao vêlo de perto, o visitante tem a sensação de
que as folhas podem se mexer. Isso acontece porque o fundador, Zenko Adachi,
abriu um buraco na parede quando estava
montando o museu, em 1970, e aplicou
ali uma moldura. Com o gesto, decretou
que o jardim externo, visível pelo buraco,
fosse exibido como mais uma obra de arte.
Hoje, as plantas atraem visitantes tanto
quanto a coleção de quadros, e o Adachi é
eleito há dez anos o jardim mais bonito do
Japão pela revista The Journal of Japanese
Gardening. Sua vocação é, de fato, servir de
banquete visual, já que andar por entre as
árvores está proibido. Nem todos os jardins
japoneses têm essa regra. Muitos são ideais
para flanar ou meditar. No Japão, a arte da
jardinagem evoluiu ao longo de milhares de
anos, começando com o gesto simples de
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No século 16, generais japoneses conhecidos
como xoguns faziam as primeiras tentativas
de unificar os feudos. Para demonstrar que
estava de acordo com os novos ventos do
país, a família Maeda, que controlava a região de Kanazawa, decidiu gastar sua fortuna em jardins e não reforçar o castelo. Assim
surgiu o Kenrokuen. A fonte de água, que
usa pressão natural, é a mais antiga do país.
Além dela, o jardim tem um grande lago no
centro, riachos e cascata. É que a água, assim
como em outras culturas, está intimamente
ligada à vida e à pureza, nas crenças locais,
e os japoneses acreditam que ela limpe a
energia ruim no dia a dia. Atravessar a ponte
ou lavar as mãos são gestos carregados desse
simbolismo. É por isso que no Kenrokuen (e
em milhares de jardins do país) a água abunda, e há bacias para lavar as mãos a caminho
da casa de chá.
Em um dos lagos do local, a ilhota artificial mostra três clássicos dos jardins japoneses: o formato do Monte Horai, a montanha
dos imortais na crença do taoísmo, e as rochas que representam a tartaruga e a grua,
símbolos de longevidade e fortuna. Alguns
ensinamentos de manuais com mais de mil
anos também aparecem ali, como truques
de perspectiva, miniaturização e assimetria.
Para o americano Douglas Roth, editor
da revista The Journal of Japanese Gardening, a combinação desses princípios tem
fortes efeitos psicológicos. “São técnicas
baseadas no tamanho do corpo humano
e no nosso senso de percepção. Mais que
algo de nobres, é um estilo de vida que
sempre esteve presente também na casa
das pessoas. Ele integra o indivíduo à
natureza e deixa o dia a dia harmonioso,
mais calmo. É algo genial.”
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guiziou franck/hemis/afp
KENROKUEN, Kanazawa
DPZ
PRIMEIRA PESSOA | GLÓRIA KALIL
POR Lia Bock FOTO Tuca Reinés
_
A BASE
Este tapete foi comprado por Horácio e Elvirinha, avós de Glória Kalil,
em 1925, em Paris. Chegou a São Paulo de navio e há 30 anos estica
seus mais de 5 metros de comprimento na casa da empresária.
“Ele faz parte da história da família, sempre foi nossa base”, diz.
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O TAPETE JÁ PASSOU PELAS CASAS DA MÃE E DO TIO
DE GLÓRIA. HOJE ELA NEGOCIA DOÁ-LO PARA UM MUSEU FRANCÊS
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