1. A proposta de datação no século VII aC

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1. A proposta de datação no século VII aC
DEUTERONÔMIO: ESCRITO DE MOISÉS OU
UMA FRAUDE PIEDOSA?
Tiago Abdalla T. Neto*
Determinar a autoria e o Sitz im Leben do Deuteronômio é desafiador, desde
que a erudição bíblica vem propondo diversas possibilidades para a origem do livro.
Sugestões que remontam à época de Moisés até o período pós-exílico são feitas e não se
chega a um consenso geral. Portanto, faz-se necessária a exposição das várias propostas
de datação do livro e uma conclusão sobre aquela que mais adequadamente faz jus ao
texto.
Em 1805, W. M. L. de Wette propôs que o Deuteronômio provinha de uma
fonte à parte do restante do Pentateuco, cuja origem se deu no século VII a.C., pouco
antes do reinado de Josias.1 Mais adiante, tal tese fora sustentada por K. A. Riehm2 e,
então, desenvolvida, estabelecida e popularizada entre os eruditos por Julius
Wellhausen, em 1876, o qual via a composição do livro por profetas da época de Josias
que o esconderam no templo para, em seguida, ser “achado” e dar impulsão à reforma
promovida pelo rei, legitimando a adoração central em Jerusalém.3 Apesar de ser
contestada por vários estudiosos, a proposta de uma autoria não mosaica para o livro,
dentro do século VII, continua a receber o apoio maior da academia teológica.4
1. A proposta de datação no século VII a.C.
Alguns pontos importantes observados por aqueles que defendem uma data do
século VII a.C. para o Deuteronômio devem ser aqui contemplados. Primeiramente, o
desenvolvimento legal e religioso hebreu que o livro parece apresentar. Na lei a respeito
da escravidão, há algumas diferenças entre o Código da Aliança (C.A. – Êx 20 - 23), em
1
DE WETTE, W.M.L. Dissertatio critico-exegetica, qua deuteronomium a prioribus Pentateuchi libris
diversum, alius cuiusdam recentioris auctoris opus ese monstratur. Halle: 1805.
2 SELLIN, Ernst, FOHRER, George. Introdução ao Antigo Testamento. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1977.
v. 1. p. 230.
3 LASOR, William S., et al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999. p. 124;
THOMPSON, J.A. Deuteronômio: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1982. p. 57;
WALKER, L.L. “Deuteronomy”. In: TENNEY, Merril C. The Zondervan pictorial encyclopedia of the
Bible. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1976. v. 2. p. 112; PINTO, Carlos Osvaldo. Foco e
desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006. p. 159-160.
4 Ver THOMPSON, J.A. Op cit. p. 56-65.
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Êxodo 21.1-11, e Deuteronômio 15.12-18.5 A prescrição em Deuteronômio demonstra
uma preocupação mais humanitária, pois, ordena que o escravo alforriado seja
recompensado pelo seu trabalho (Dt 15.13-14), algo completamente ausente no C.A.
Enquanto em Êxodo, apenas o escravo homem sai à forra (Êx 21.2, 4, 7), em
Deuteronômio há uma igualdade de direitos (Dt 15.12).
Além disso, a escola deuteronomista desenvolve um conceito transcendente de
Deus.6 O santuário não é mais o lugar em que Deus habita (cf. Sl 76.3), mas o lugar no
qual ele fez “habitar seu nome” (Dt 12.11; cf. 1 Sm 7.13; 1 Rs 3.2; 5.17; 8.17-20, 44,
48). Assim, a fim de corrigir a ideia de que Deus habitava no templo, o deuteronomista
acrescentou, no livro dos Reis, à frase “lugar da tua habitação” a expressão “nos céus”
(cf. 1 Rs 8.30, 39, 43, 49). Ainda na tentativa de combater a imaginação popular acerca
de Deus, o Deuteronômio descreve a Arca da Aliança com uma função meramente
educativa, na qual ela contém as tábuas com os dez mandamentos e ao seu lado é
depositado o livro da Lei que é lido para o povo, a fim de ensinar o temor ao Senhor (Dt
31.26 com os vv. 12-13). Isso parece uma mudança radical com a ideia proposta por
outras partes do Pentateuco, nas quais a Arca é representada como a carruagem ou trono
divino (Êx 25.10-22) sobre o qual Deus se assenta e vai adiante do povo para dispersar
seus inimigos (Nm 10.33-36).
Historicamente, a reforma religiosa e a restauração da adoração no templo em
Jerusalém, sob os reinados de Ezequias e Josias, é um fenômeno que sugere um
ambiente propício para a reforma profética contida e promovida no Deuteronômio. Pais
da Igreja já sugeriam que o livro da lei encontrado por Josias (2 Rs 22) era o
Deuteronômio7 e maioria dos principais proponentes da redação do livro no século VII
a.C. reconhecem que o livro foi composto entre a queda de Samaria no reino do Norte
(722 a.C.) e o começo do reinado de Josias, sendo o propulsor, não o resultado da
reforma descrita em 2 Reis 22 e 23.8
A centralização do culto em Jerusalém narrada em 1 Reis 23.8-20, 27, sob o
governo de Josias, encontra um paralelo forte com a centralização do culto ordenada em
WELLS, Roy D. “Deuteronomist/Deuteronomistic historian”. In: MILLS, Watson E., BULLARD,
Roger Aubrey (eds). Mercer Dictionary of the Bible. 2 ed. Macon, G.A.: Mercer University Press, 1998.
p. 210.
6 WEINFELD, Moshe. “Deuteronomy, book of”. In: FREEDMAN, D. (ed.). Anchor Bible Dictionary.
New York: Doubleday, 1992. v. 2. p. 175-176.
7 SELLIN, Ernst, FOHRER, George. Op cit. p. 230.
8 Ver THOMPSON, J. A. Op cit. p. 56-65.
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Deuteronômio 12 e difere da pluralidade de locais de adoração permitidos no C.A. (Êx
20.24). A celebração da Páscoa no lugar central de adoração, “escolhido por Deus”,
prescrito em Deuteronômio 16.1-8 encontra uma semelhança significativa com a
celebração promovida por Josias em Jerusalém, no templo (2 Rs 23.21-23).
Por fim, os conhecidos Tratados Vassalos de Esaradon (VTE),9 do século VII,
assemelham-se com a estrutura da aliança de Deuteronômio. Em ambos os casos, a
população inteira era reunida para fazer o juramento de lealdade e não se
comprometiam apenas por si mesmos, mas, também, pelas futuras gerações (cf. Dt 29.911, 14; VTE 4-7).10 Tanto no VTE quanto no Deuteronômio é requerido do vassalo que
ame “com todo o coração e toda a alma” o seu suserano (Cf. Dt 6.5).11 Além disso, a
série completa de maldições diante da quebra da Aliança em Deuteronômio 28.23-35
aparece na ordem idêntica das linhas 419-430 dos VTE, caso os reinos vassalos se
rebelassem contra o imperador assírio e, por consequência, contra Ashur, o deus
assírio.12
2. Outras propostas de datação pós-mosaicas
Outros estudiosos, por entenderem ser inadequada a datação no século VII
a.C., vêm propondo datas distintas para a redação do núcleo principal de Deuteronômio,
tanto antes quanto depois das reformas de Ezequias e Josias.
Adam C. Welch e Theodor Oestreicher propuseram uma data do décimo
século, entre os reinados de Davi e Salomão, para a redação do Deuteronômio. 13 A
argumentação é que a reforma de Josias (2 Rs 22 – 23) não tinha por alvo a
centralização do culto em Jerusalém, mas a purificação dos elementos pagãos assírios
(cf. 2 Rs 23.4-20, 24). A reforma preocupou-se, portanto, com Kultreinheit (pureza de
culto) e não com Kulteinheit (unidade de culto).14 Além disso, ela fora iniciada alguns
anos antes da descoberta do livro, não depois (2Cr 24.3). O “livro da lei” apenas deu um
novo ímpeto à reforma.
9
A sigla VTE corresponde ao inglês Vassal Treaties of Esarhaddon.
WEINFELD, Moshe. Op cit. p. 170.
11 Idem. Ibid.
12 Idem. Ibid.
13 THOMPSON, J. A. Op cit. p. 53-55; ARCHER, Gleason L., Jr. Merece confiança o Antigo
Testamento?. 3 ed. São Paulo: Vida Nova, 1984. p. 488-189. Após analisar as várias propostas de datação
para o Deuteronômio, J. A. Thompson chega a uma conclusão próxima àquela que Welch e Oestreicher
defendem. Ver sua obra citada, p. 66-67.
14 THOMPSON, J. A. Op cit. p. 53; ARCHER, Gleason L., Jr. p. 488.
10
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Afirma-se também que Deuteronômio 12.13ss. não faz apologia a um santuário
central, necessariamente, mas aos santuários autorizados de YHWH. O texto, assim, é
uma defesa do Yahwismo contra o Baalismo e a tradução do texto hebraico proposta por
Oestreicher é: “Guarda-te que não ofereças os teus holocaustos em todo lugar que vires,
mas em qualquer lugar que o Senhor escolher em qualquer das tuas tribos”.15 Deste
modo, o texto expressava, de forma diferente, a mesma verdade contida em Êxodo
20.24: “Façam-me um altar de terra e nele sacrifiquem-me os seus holocaustos e as suas
ofertas de comunhão, as suas ovelhas e os seus bois. Onde quer que eu faça celebrar o
meu nome, virei a você e o abençoarei” (Êx 20.24). Seria incrível a exigência de que
toda a população deveria subir a Jerusalém na época da colheita, quando a ausência total
das fazendas não poderia ocorrer. Portanto, o adorador iria ao santuário de Javé mais
próximo.16
Segundo Welch, várias leis de Deuteronômio são demasiadamente primitivas
para a monarquia judaica posterior, mas não para o início da monarquia, em um
momento de transição com o período de Juízes.17 Ele defendeu que as tradições contidas
no Deuteronômio eram produto do movimento religioso iniciado por Samuel, no Norte
de Israel, que alcançaram sua forma escrita durante o período da monarquia unida.18
Assim, a prescrição da lei de homicídio cujo autor fosse desconhecido, que orientava o
exercício do julgamento por meio de sacerdotes (Dt 21.-9) como, também, o
regulamento sobre a proibição ou permissão de determinados grupos estrangeiros
participarem da assembléia do Senhor (Dt 23.1-8), encontrariam sentido no período
transitório Juízes - Reino Unido e não na época da monarquia do século VII.
Teólogos como R. K. Kennett e G. Hölscher propõem uma data para o livro no
período exílico e pós-exílico em círculos sacerdotais.19 O entendimento deste Sitz im
Leben dá-se por questões como a impossibilidade de que um reformador da época de
Josias escrevesse leis como as que constam nos capítulos 13 e 17, quando a grande
maioria das cidades de Judá, inclusive Jerusalém, estavam contaminadas pela idolatria
conforme testificam os livros de Reis e Crônicas. Tais leis implicariam na morte de
comunidades inteiras em Israel no século VII.
15
THOMPSON, J. A. Op cit. p. 53.
Idem. p. 54.
17 ARCHER, Gleason L., Jr. p. 489.
18 THOMPSON, J. A. Op cit. p. 54; SELLIN, Ernst, FOHRER, George. Op cit. p. 241.
19 MANLEY, G.T. “Deuteronômio, livro de”. In: DOUGLAS, J.D (ed.). O novo dicionário da Bíblia. São
Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966. v. 1. p. 412; THOMPSON, J. A. Op cit. p. 65-66; ARCHER, Gleason
L., Jr. p. 489-491.
16
4|Página
Ainda dizem que dificilmente a lei de Deuteronômio 17.15, que trata sobre reis
estrangeiros, poderia ter sido escrita quando um príncipe da casa de Davi estivesse
assentado firmemente sobre o trono. Hölscher, outrossim, identificou paralelos de
linguagem em textos de Malaquias e Neemias com aquela encontrada em
Deuteronômio, o que favorece uma data pós-exílica (cf. Ml 1.2, 6, 8; 2.1-2, 4-5, 8; 3.1,
3; Ne 13.25-27).20
3. A proposta de datação e autoria mosaicas
Vários estudiosos do AT e egiptologistas defendem a autoria mosaica do livro
de Deuteronômio, seguindo as tradições judaica e cristã.21 Há muitas indicações que
favorecem tal proposta. Primeiramente, o próprio texto afirma a atividade redatorial de
Moisés que “escreveu esta lei” e, uma vez mais, “... Moisés terminou de escrever em um
livro as palavras desta lei ...” (Dt 31.9, 24-26). Há um consenso de que as menções
sobre a redação mosaica da lei refiram-se, pelo menos, aos capítulos 12 – 26.22 Todavia,
com as indicações adicionais da exposição da lei por parte de Moisés em 1.1 – 4.40, 5.1
– 26.19, 27, 28.1 – 31.8, sua autoria pode se estender a estas partes do livro, também,
além do cântico no capítulo 32 que é atribuído a ele (cf. 31.19, 22).23
As referências a ocasiões que devem ter suscitado os sentimentos de Moisés
aparecem de forma inesperada no texto, favorecendo sua autoria, como a “casa da
servidão” (5.6; 7.8; 8.14), a lembrança do ataque amalequita (25.17ss), do peso em
julgar o povo (1.9-12) e das murmurações da nação (9.22-24).24 Ainda mais, as
recordações de detalhes como a irrigação artificial das plantas no Egito (11.10) e o
horário da partida do Egito (16.6), além da menção da intercessão de Moisés em favor
de Arão depois da quebra da aliança (9.20ss), cujo incidente não é referido no relato de
Êxodo, combinam muito bem com um autor que experimentou tais situações, mas, não
20
THOMPSON, J. A. Op cit. p. 66.
KLINE, Meredith G. “Two tables of the covenant”. In: WESTMINSTER THEOLOGICAL
JOURNAL, v. 22, no. 2, 1960. p. 133-146; HOUSE, Paul R. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo:
Vida, 2005. p. 214-215; MANLEY, G.T. Op cit. p. 412-414; ARCHER, Gleason L., Jr. Op cit. p. 173183; WALKER, L.L. Op cit. p. 112-116; ROBINSON, George L. “Deuteronomy”. In: ORR, James. The
international Standard Bible encyclopedia. Grand Rapids, Michigan: Eerdans, 1943. (Versão eletrônica
disponível em Bíblia Online 3.0 – Módulo Avançado); KITCHEN, K. A. The Old Testament in its context
2: from Egypt to the Jordan. United Kingdom: Biblical Studies, 1971. Disponível em
http://www.biblicalstudies.org.uk. Acessado em Março de 2009. p. 4-8.
22 THOMPSON, J. A. Op cit. p. 49; MANLEY, G.T. Op cit. p. 413.
23 KITCHEN, K. A. Op cit. p. 4-5.
24 MANLEY, G.T. Op cit. p. 413; WALKER, L.L. Op cit. p. 114.
21
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fariam qualquer sentido caso viessem da lavra de alguém que desejasse promover uma
reforma religiosa no século VII a.C.25
O posicionamento de Israel no livro se dá, claramente, não dentro de Canaã,
mas fora, prestes a adentrar nela. Isso é indicado pelo fato de que a terra ainda será
possuída ou herdada pelo povo, a qual ficava além do Jordão (3.20, 25; 4.5, 14; 5.31;
11.30; 12.10; 18.9).26 Em nenhum momento do livro há qualquer referência a Judá e
Efraim, ou Norte e Sul, enquanto nações separadas. As tribos são vistas como entidades
distintas (1.13, 15; 5.23; 12.5, 14), mas contidas no todo (29.10), como a expressão
“todo o Israel” deixa transparecer (1.1; 5.1; 13.11; 21.21; 27.9; 29.2; 31.1, 7, 11;
32.45).27
A perspectiva contrária à influência da religiosidade cananita que o autor de
Deuteronômio apresenta, é de um perigo futuro a ser enfrentado por Israel, não uma
realidade presente na qual o povo está envolvido, como se deu na reforma de Josias (2
Rs 23.4-24). Isso pode ser constatado pela exortação a uma lealdade exclusiva ao
Senhor, não servindo “deuses que não conhecestes” (Dt 11.28, grifo do autor; cf. 13.2,
6, 13).28 Caso aqueles que defendem a autoria do livro no século VII dizem que o
objetivo do grupo reformador profético era abolir os “lugares altos” (B`mot) e
centralizar o culto no templo em Jerusalém, por que eles nunca são mencionados? Não
se faz referência alguma aos “lugares altos” e não é nem deixada subtendida Jerusalém
como o local central de adoração.29 Como observou com perspicácia o teólogo Carlos
Osvaldo Pinto:
... parece claro que se Deuteronômio foi uma “fraude piedosa”
projetada para legitimar Jerusalém como santuário único, seu autor fez
um péssimo trabalho, pois a cidade jamais é mencionada no livro. Ao
contrário, Deuteronômio prescreve a construção de um altar no monte
Ebal, na região de Samaria, rival de Jerusalém, e a celebração da
renovação da aliança ali!30
A leitura feita pelos que defendem uma data na época da reforma josiânica, de
que o Deuteronomista apresenta um conceito posterior e transcendente de Deus,
diferente de outras fontes encontradas no Pentateuco, como, por exemplo, a menção do
25
WALKER, L.L. Op cit. p. 114-115.
ROBINSON, George L. Op cit. (Versão eletrônica); ARCHER, Gleason L., Jr. Op cit. p. 175-176.
27 ARCHER, Gleason L., Jr. Op cit. p. 179; WALKER, L.L. Op cit. p. 115; ROBINSON, George L. Op
cit. (Versão eletrônica).
28 WALKER, L.L. Op cit. p. 115.
29 MANLEY, G.T. Op cit. p. 412-413.
30 PINTO, Carlos Osvaldo. Op cit. p. 160.
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templo não sendo mais o lugar da habitação de Deus, mas do “nome de Deus”,31 cai por
terra quando se examina o texto cuidadosamente. O uso dos textos de Deuteronômio
12.11 e de 1 Reis 8.30, 39, 43, 49 para fundamentar sua perspectiva (textos,
classicamente, atribuídos ao Deuteronomista), é inconsistente com seu contexto
próximo. No capítulo 12 de Deuteronômio, o santuário central é apresentado como local
da própria habitação e presença de Deus nos versos 5, 7 e 18. O mesmo se dá em 1 Reis
8, nos versos 13, 63-65. A não ser que se divida o texto em uma colcha de retalhos,32 é
impossível ver uma distinção entre os conceitos de “presença de Deus” e “nome de
Deus” nos escritos assim chamados deuteronomistas. A observação de Walter Kaiser
auxilia no entendimento desta questão:
O próprio von Rad notou, porém, que o “nome” já estava presente em
Êxodo 20:24 e Êxodo 31. O “nome” aqui, como na teologia
antecedente, representava a totalidade do ser, do caráter e da natureza,
assim como foi empregada a palavra “nome” na proibição dada no
Sinai quanto a tomar o nome do Senhor Deus em vão.
... Não existe nenhuma evidência no sentido de que Deuteronômio ou
Moisés rejeitavam de qualquer forma este assim-chamado [sic]
conceito dialético da habitação divina. O céu não é a moradia
exclusiva de Deus – Ele pode “sentar-se” ou “estar entronizado” ali,
mas Ele também “tabernaculava” na terra. E Deuteronômio
acrescentou à lista das Suas manifestações de Si mesmo a Israel – o
lugar onde faria Seu nome (Sua pessoa) habitar. Aquilo de que Deus
já era dono, Ele agora abertamente possuiu ao mandar “colocar” ou
“chamar” Seu nome sobre ele.33
Um fator final que favorece a escrita de Deuteronômio no segundo milênio, na
época de Moisés e não no primeiro milênio, época de Josias, é a semelhança muito
maior de tratados do segundo milênio com o livro do que com os do milênio posterior,
conforme a argumentação de Weinfeld.34 K. A. Kitchen afirma claramente: “À luz de tal
padrão de medida tangível (especialmente quando as formas do primeiro milênio são
completamente diferentes) datar Deuteronômio cerca de 621 a.C. ... é simplesmente um
erro grotesco, sem nenhuma base, na verdade”.35
31
WEINFELD, Moshe. Op cit. p. 176. Ver a argumentação apresentada na página 4 desta monografia.
O próprio Weinfeld reconhece o suposto “conflito” entre o verso 13 e os demais versículos do texto de
1 Reis 8. Sua explicação é que o Deuteronomista reeditou essa oração salomônica, acrescentando a
expressão “nos céus” nos versos que se referiam ao lugar da habitação de Deus (v. 30, 39, 43, 49), a fim
de combater uma idéia antiga de que Deus habitava no templo. Ver WEINFELD, Moshe. Op cit. p. 175176.
33 KAISER, Walter C. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1984. p. 138.
34 WEINFELD, Moshe. Op cit. p. 169-171. Ver exposição acima, página 5.
35 KITCHEN, K. A. Op cit. p. 9.
32
7|Página
O livro de Deuteronômio é uma renovação da aliança do Sinai e sua estrutura
em muito se assemelha com as formas encontradas nos tratados de vassalagem hititas da
última metade do segundo milênio.36 As seguintes características são comuns tanto em
Deuteronômio quanto nos tratados hititas: (1) Título ou Preâmbulo (Dt 1.1-5)37; (2)
Prólogo Histórico (Dt 1.6 – 3.29)38; (3) Estipulações ou Mandamentos (Dt 4, 5 – 26)39;
(4) Depósito do Texto e Leitura Pública (Dt 31.9-13, 24-26)40; (5) Testemunhas (Dt
31.16-30; 32.1-47)41; Bênçãos e Maldições (Dt 28.1-68)42.
Quando se compara o livro de Deuteronômio com os tratados neo-assírios e
neo-babilônicos (primeiro milênio) percebe-se pouca semelhança. Nestes não há a
menção de bênçãos que acompanham as maldições.43 Também não existe qualquer
prólogo histórico nem indicação de depósito do texto e leitura posterior, o que é típico
do segundo milênio.44 Kenneth Kitchen, ainda, observou que o uso da palavra hebraica
B=r't (aliança) juntamente com a*l> (juramento) em uma construção literária de
hendíade, conforme aparece em Deuteronômio 29.12, 14 (NVI), é compartilhada apenas
KLINE, Meredith G. “Two tables of the covenant”. In: WESTMINSTER THEOLOGICAL
JOURNAL, v. 22, no. 2, 1960. p. 140-142; KITCHEN, K.A. Ancient Orient and Old Testament. London:
Inter-Varsity, 1966. p. 98-99.
37 KITCHEN, K.A. Ancient Orient and Old Testament. p. 92, 96. Todos os dezenove tratados hititas com
o começo conservado contêm o Preâmbulo. Ver KITCHEN, K.A. “The fall and rise of covenant, law and
treaty”. In: TYNDALE BULLETIN, v. 40, no. 1, 1989. p. 126.
38 KITCHEN, K.A. Ancient Orient and Old Testament. p. 92-93, 96. O Prólogo Histórico ocorre em vinte
e dois de vinte e quatro documentos hititas bem preservados. Ver KITCHEN, K.A. “The fall and rise of
covenant, law and treaty”. p. 126.
39 KITCHEN, K.A. Ancient Orient and Old Testament. p. 93, 97. As estipulações sobrevivem em todos os
vinte e quatro textos hititas em bom estado. Ver KITCHEN, K.A. “The fall and rise of covenant, law and
treaty”. p. 126.
40 KITCHEN, K.A. Ancient Orient and Old Testament. p. 93, 97. O depósito do texto é explícito em
quatro documentos e a leitura pública em outros quatro, ainda que não apareça em seis documentos
completos. Todavia, dez textos em bom estado estão dissolvidos nesta parte. A probabilidade é que
houvesse até dezessete textos contendo esta seção. Ver KITCHEN, K.A. “The fall and rise of covenant,
law and treaty”. p. 126.
41 As testemunhas se encontram presentes em vinte documentos. Os deuses pagãos que eram invocados
como testemunhas do tratado não aparecem na Renovação da Aliança em Deuteronômio. Porém, o
Cântico de Moisés (Dt 31.16-20; 32.1-47) e o próprio Livro da Lei (Dt 31.26) ocupam essa função como
testemunhas da Aliança. Ver KITCHEN, K.A. Ancient Orient and Old Testament. p. 93, 97;
__________________. “The fall and rise of covenant, law and treaty”. p. 126; KLINE, Meredith G. Op
cit. p. 142.
42 Aparecem, também, nos tratados hititas, mas na ordem inversa. Quinze bons textos hititas possuem esta
seção na parte final, semelhantemente, ao livro de Deuteronômio. Em outros dez textos esta seção foi
perdida. Ver KITCHEN, K.A. Ancient Orient and Old Testament. p. 93, 97; __________________. “The
fall and rise of covenant, law and treaty”. p. 127.
43 KITCHEN, K.A. “The fall and rise of covenant, law and treaty”. p. 128-129; ______________. Ancient
Orient and Old Testament. p. 96.
44 KLINE, Meredith G. Op cit. p. 139-141; KITCHEN, K.A. Ancient Orient and Old Testament. p. 95;
KITCHEN, K.A. “The fall and rise of covenant, law and treaty”. p. 132-133.
36
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com os tratados hititas do segundo milênio, não encontrando qualquer paralelo nos
tratados do milênio posterior.45
Agora, se tomamos a natureza e a ordem de quase todos os elementos
da aliança do Sinai e suas renovações, como brevemente alistadas
acima e as comparamos com os padrões dos tratados da parte final do
segundo milênio e os tratados do primeiro milênio já delineados, é
notavelmente evidente que a aliança do Sinai e suas renovações
devem ser agrupadas com as alianças da parte final do segundo
milênio; são inteiramente diferentes em estrutura das alianças do
primeiro milênio e compartilham apenas o indispensável núcleo
comum (título, estipulações, testemunhas e maldições) e alguma
terminologia. Em outras palavras, diante da total evidência agora
disponível, a visão original de Mendenhall está correta, de que na
forma a aliança do Sinai corresponde aos tratados do fim do segundo
milênio e não àqueles do primeiro.46
Diante de todas as posições expostas neste trabalho, para o autor, atribuir o
texto encontrado em Deuteronômio a Moisés e datá-lo no segundo milênio é a opção
mais plausível e honesta a se fazer em uma perspectiva científica. Obviamente, isto não
exclui pequenas edições posteriores, provavelmente, inseridas por algum editor da
geração seguinte a Moisés (cf. Dt 2.10-12; 34).47
Tiago Abdalla T. Neto*
Pastor da igreja Batista Nova Esperança e professor de teologia do Seminário Batista
de Guarulhos. Bacharel em Teologia pelo Seminário Bíblico Palavra da Vida (SBPV)
Mestre em Teologia Bíblica pelo Seminário Teológico Servo de Cristo e Mestrando
em Teologia e Exposição do AT pelo SBPV
KITCHEN, K.A. “The fall and rise of covenant, law and treaty”. p. 131.
KITCHEN, K.A. Ancient Orient and Old Testament. p. 98-99.
47 PINTO, Carlos Osvaldo. Op cit. p. 161.
45
46
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