Corte Interamericana de Direitos Humanos Serafina Conejo Gallo e

Transcrição

Corte Interamericana de Direitos Humanos Serafina Conejo Gallo e
176
Corte Interamericana de Direitos Humanos
Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor
vs.
Elizabetia
Memorial dos Representantes das Vítimas
2013
i
176
ÍNDICE
I. ÍNDICE DE JUSTIFICATIVAS.......................................................................................... iii
I.I – CASOS DA CORTE INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS.................iii
I.II – CASOS DA CORTE EUROPÉIA...................................................................................iv
I.III – DOCUMENTOS LEGAIS...............................................................................................v
I.IV – LIVROS E ARTIGOS JURÍDICOS..............................................................................v
II. LISTA DE ABREVIATURAS... ..........................................................................................v
III. DECLARAÇÃO DOS FATOS ..........................................................................................1
ANÁLISE LEGAL....................................................................................................................9
IV. DA ADMISSIBILIDADE ..................................................................................................9
V – DAS PRELIMINARES.......................................................................................................9
V.I – Sobre o não esgotamento dos recursos internos................................................................9
V.II – Violação do direito de defesa do Estado.......................................................................11
VI – MÉRITO..........................................................................................................................12
VI.I – Da violação ao artigo 24 da CADH..............................................................................12
VI.II – Da violação ao artigo 11 da CADH.............................................................................17
VI.III – Da violação ao artigo 17 da CADH............................................................................20
VI.IV – Da violação aos artigos 8 e 25 da CADH...................................................................23
VI.V – Da violação aos artigos 1.1 e 2 da CADH....................................................................25
VI – DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS...................................................................................25
VII.I – Serafina é membro da família de Adriana....................................................................26
VII.II - Do preenchimento dos requisitos para a concessão.....................................................28
VIII - DAS MEDIDAS REPARATÓRIAS ............................................................................30
ii
176
IX - SOLICITAÇÃO DE ASSISTÊNCIA...............................................................................30
I - INDICE DE JUSTIFICATIVAS
I.I – CASOS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Caso Durant y Ugarte Vs. Peru, 16/08/2000, Serie C, No. 68.................................................11
Caso Velásquez Rodrigues Vs. Honduras, 26/06/1987, Serie C, No. 1..............................11,25
Caso Cantos Vs. Argentina, 28/11/2002, Serie C, No. 97.......................................................11
Caso Castañeda Gutman Vs. Mexico, 06/08/2008, Serie C, No. 184......................................11
Caso Escher y otros Vs. Brasil. 06/07/2009, Serie C, No. 200 ...............................................11
Caso “Instituto de Reeducacion del Menor” Vs. Paraguai, 02/09/2004, Serie C, No.
112.......................................................................................................................................11,13
Caso de Los Hermanos Gomez Paquiyauri x Peru, 08/07/2004, Serie C, No. 110 .................11
Caso Furlan y familiares Vs. Argentina, 31/08/2012, Serie C, No. 246..................................12
Caso Yatama Vs. Nicarágua, 23/06/2005, Serie C, No. 127 ..............................................13,17
Caso Caesar Vs. Trinidad y Tobago, 11/03/2005. Serie C, No. 123 .......................................13
Caso Lori Berenson Mejia Vs. Peru, 25/11/2004, Serie C, No. 119........................................13
Caso Atala Riffo y Niñas Vs. Chile, 24/02/2012, Série C, No. 239...................15,16,17,18,22
Caso Artavia Murillo e Outros (“Fecundação in vitro”) vs. Costa Rica, 28/11/2012, Série C.
Nº 257..................................................................................................................................17,18
Caso dos Massacres de Ituango Vs. Colombia, 01/07/2006, Série C. No. 148 .......................17
Caso Fontevecchia e D’Amico Vs. Argentina, 29/11/2011, Série C, No. 238........................17
Caso Rosendo Cantú e Outra Vs. México. 31/08/2010, Série C, No. 216 ..............................18
Caso López Mendoza Vs. Venezuela, 01/09/2011, Serie C, No. 233......................................23
iii
176
Caso Chitay Nech e outros x Guatemala, 25/05/2010, Serie C, No. 212 ................................23
Caso Radilla Pacheco x México, 23/11/2009, Serie C, No. 209 .............................................23
Caso Aguado Alfaro y outro x Peru, 24/11/2006, Serie C, No. 158........................................24
Caso de lós “niños de la calle” Villagrán Morales y otros Vs. Guatemala. 19/11/1999, Série C
No.63........................................................................................................................................29
Caso Aloeboetoe e outros Vs. Suriname, 10/09/1993, Serie C, No. 15, §§15-97....................30
Opinião Consultiva OC 9/87 “Garantias Judiciales em Estados de Emergencia, 06/10/1987,
Serie A, no. 9...........................................................................................................................23
Opinião Consultiva OC-19/05, 29/11/2005, Serie 19..............................................................11
Opinião Consultiva, Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Sem Documentos, OC18/03. 17/09/2003 Serie A.......................................................................................................15
Opinião Consultiva OC-4/84, Série A No.4.Proposta de Modificação da Constituição Política
da Costa Rica relacionada à Naturalização, 19/01/1984..........................................................19
Opinião Consultiva OC-14/94, 09/12/1994, Série A No. 14...................................................25
Caso de La Unidad de Internación Socioeducativa. Medidas provisórias a respeito do Brasil.
Resolução de 20/11/2012.........................................................................................................26
Voto fundamente do Juiz Ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas com relação à Sentença da
Corte Interamericana dos Direitos Humanos no caso Escher e outros VS. Brasil,
06/07/2009................................................................................................................................12
I.II – CASOS DA CORTE EUROPÉIA DE DIREITOS HUMANOS
Caso de Philis Vs. Grécia, 27/08/1991.....................................................................................11
Caso de Powell e Rayner Vs. Reino Unido, 21/02/1990.........................................................11
Caso Schalk e Kopf Vs. Áustria, 22/11/2010...........................................................................22
iv
176
I.III - DOCUMENTOS LEGAIS
OEA, Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos – Orientação Sexual, Identidade De Gênero
e Expressão De Gênero: Alguns Termos e Normas Relevantes - Estudo elaborado pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos “CIDH” em cumprimento da resolução
AG/RES. 2653 (XLI-O/11): Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero,
23/04/2012...........................................................................................................................14,15
PAINEL
INTERNACIONAL
INTERNACIONAL
DE
DE
DIREITOS
ESPECIALISTAS
HUMANOS,
EM
ORIENTAÇÃO
LEGISLAÇÃO
SEXUAL
E
IDENTIDADE DE GÊNERO, Princípios de Yogiakarta........................................................14
ONU, Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral nº 19 – Ano de 1990........................22
I. IV – LIVROS E ARTIGOS JURÍDICOS
ARISTÓTELES, “Retórica”....................................................................................................12
FOUCAULT, Michel, “Os anormais”, pag.69/70 - 1974/1975...............................................16
BADILLA, Ana Elena. “El derecho a constituición y la protección de la família em la
normativa y la jurisprudência del Sistema Interamericano de Derechos Humanos”...............20
II. LISTA DE ABREVIATURAS
Art. – Artigo
CADH – Convenção Americana de Direitos Humanos
CEDH – Corte Europeia de Direitos Humanos
CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CtIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos
OEA – Organização dos Estados Americanos
ONU – Organização das Nações Unidas
v
176
TUNAI - Tutela Nacional da Infância
TEI - Tutela Estatal da Infância
vi
176
III - DECLARAÇÃODOS FATOS
1. O Estado de Elizabetia, localizado no continente americano, tornou-se
independente no início do século XIX e democrático a partir de 1960, quando proclamada a
Constituição Política atualmente em vigor. A capital do Estado é a cidade de São Benito e o
território é habitado pelo povo indígena granti desde épocas imemoriais. O Estado ratificou a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante “CADH”, “Convenção” ou
“Convenção Americana”); os instrumentos interamericanos em matérias de direitos humanos,
aceitando todas as suas cláusulas opcionais sem nenhuma reserva, assim como a competência
contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante denominada “Corte”)
em 1º de janeiro de 1990.
2.Elizabetia foi colônia de uma metrópole europeia desde o século XVI e
passou por momentos críticos em sua história. Neste período a elite colonial, por considerar
os costumes, a linguagem e a religião granti como bárbaros e imorais, castigava e torturava o
povo granti. Não se falava em direito ou garantia à liberdade nestes tempos, mas se usava o
açoite e a tortura como castigo por valores e identidades culturais considerados inaceitáveis.
3. A cidade de São Benito, ainda em tempos da colônia, foi construída sobre as
ruínas da antiga capital do reino granti, denominada de cidade de Bra’granti, destruída em
fevereiro de 1531 por um feroz ataque da potência colonial. Assim como os valores culturais
formados e trazidos pelo povo granti desde os seus primórdios, Bra’granti era considerada
uma das grandes maravilhas criadas pelo homem, com seus templos e esculturas
monumentais. A máxima divindade da religião granti era chamada Granti’Itna, e era
considerada um símbolo de perfeição porque, nascida como homem, se transformava-se na
metade da sua vida em mulher, permanecendo assim até a morte. A adoração à divindade
dava-se pela sua consideração como “origem da energia que mantinha o cosmos em
movimento”.
1
176
4. Após muitos séculos sendo aplicadas medidas de erradicação e
exterminação sistemática da cultura granti, sua língua desapareceu. Entretanto, existem ainda
vários elementos dessa cultura e identidade que foram assimilados aos costumes, tradições,
convicções e à própria idiossincrasia do povo de Elizabetia. Atualmente, apesar de constituirse como estado democrático desde 1960, o sudeste elisabetano ainda está marcado
culturalmente pela memória da servidão. Diversas famílias vivem em situação de muita
pobreza e analfabetismo nas fazendas, a serviço dos descendentes da aristocracia, daqueles
que outrora castigavam com açoites e tortura, embasados nos próprios valores e moral
admitidos.
5. No seio de uma dessas famílias nasceu Serafim ConejoGallo, àquela época
assim denominado, cujos pais eram trabalhadores agrícolas em uma fazenda de propriedade
da família Goblana do Atelo, descendente da aristocracia colonial, na província de Santa
Marta, sudeste de Elizabetia. Serafim, doravante denominado de vítima, desde pequeno
mostrava um comportamento identificado como feminino, o que era visto pela professora,
Dimay Salvacielo, como verdadeira aberração. Para os pais da vítima, seu comportamento era
o de uma criança normal e saudável, e apesar de não ser idêntico ao de outras crianças de sua
idade e “sexo”, não achavam que fosse em si mesmo um comportamento nocivo, ou que
pudesse provocar de algum dano às demais pessoas.
6. Serafim por diversas vezes sofreu açoites pelas mãos da professora, para
que “agisse normalmente”, ou seja, como as outras crianças. A professora por vezes
comunicava suas preocupações pessoais à Dona Antônia da Goblana do Atelo, patrocinadora
da escola da fazenda, dizendo-lhe que o pai e a mãe da vítima “não tinham perdido o índio”,
evidenciando um comportamento preconceituoso para com aquele. A esposa do Governador
de Santa Marta e Presidente Honorária da Tutela Nacional da Infância (TUNAI)
providenciou, a pedido de Dona Antônia da Goblana do Atelo, um processo de inspeção
2
176
sumário na casa da vítima. Na ocasião intervieram tão somente a professora e a esposa do
fazendeiro, e os pais foram questionados por terem mantido os “valores bárbaros da cultura
granti”.
7. Aos 11 anos de idade, no início da fase de transição para a idade adulta
durante a puberdade, a vítima foi removida por funcionários do Estado à Tutela Estatal da
Infância (TEI) e levada para a cidade de Virgínia, aonde foi internada em um Centro para
Menores Abandonados. Em evidente ação e omissão do Estado, a vítima foi abruptamente
retirada de sua casa e separada de sua família quando mais precisava da formação e base
familiar, do amor e afeto presentes no ninho familiar. Ela foi distanciada daqueles que a
amavam, genitores que a queriam bem, não porque seus gestos e expressões denotavam esta
ou aquela orientação sexual, mas porque era parte da entidade familiar, como prole e ser
humano.
8. Durante os cinco anos em que a vítima passou privada de sua liberdade no
Centro de Menores de Virgínia, sem que seus pais soubessem onde estava e convicta de que
eles mesmos a tinham abandonado ali, foi violentada em diversas ocasiões pelos seus
custódias e companheiros de internação. Em agosto de 1979, já com 16 anos, a vítima fugiu
de sua “dolorosa prisão” e foi para a capital do Estado. Em São Benito a vítima passou a
exercer a prostituição como SERAFINA, nome pelo qual passou a ser conhecida após
operações para implante de seios de silicone e arredondamento das formas de seu corpo e
rosto. A vítima então renunciou sua identidade masculina no final de 1985, aos 22 anos.
9. SERAFINA testemunhou a pandemia do HIV-AIDS no Estado, bem como a
morte de muitas de suas colegas de profissão. Foi uma das primeiras ativistas que reuniu as
companheiras para o desenvolvimento de estratégias de sobrevivência. Por meio de uma
estrutura informal denominada MARIPOSA, criada pela vítima em 1990, passou a praticar o
3
176
ativismo, educação e formação na comunidade transexual da capital do Estado e,
posteriormente, em todo o território de Elizabetia.
10. Por intermédio de sua luta incessante por sobrevivência e dos demais
integrantes das minorias, a vítima conquistou contatos por todo o Estado e continente
americano, vindo a conseguir uma bolsa de estudos para completar seu ensino secundário.
Aos 29 anos, chamada pelo nome masculino com que fora registrada ao nascer, para receber
seu diploma de graduação, SERAFINA decidiu que sua próxima batalha seria o
reconhecimento de seu nome e identidade como mulher, visto que tais atributos dissonavam
da grafia inicialmente inscrita em seus documentos.
11. Com o trabalho administrando projetos em benefício das minorias
SERAFINA adquiriu conhecimento do sistema judicial e legal e conheceu mais funcionários
e ativistas. Inicialmente apresentou pedidos administrativos de reconhecimento da sua
identidade perante o Registro Civil, nas varas de São Benito e Virginia, porém estes não
foram aceitos. Interpôs sete recursos de amparo perante a Câmara Constitucional da Corte
Suprema de Elizabetia, porém não obteve êxito. Depois de esgotar os recursos internos, no
dia 10 de fevereiro de 2000, SERAFINA ingressou com uma petição individual perante a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante “CIDH”), observando que
Elizabetia teria incorrido em responsabilidade internacional ao discriminá-la por não lhe
reconhecer a identidade de gênero.
12. O Poder Executivo no Estado de Elizabetia é alternado no poder a cada
cinco anos, entre dois partidos majoritários: o Partido Rosado, tradicionalmente vinculado à
direita e o Partido Celeste, historicamente associado à esquerda. De 2000 a 2005 o governo,
nas mãos do Partido Rosado opôs-se à admissibilidade da petição, argumentando que a CIDH
não era uma quarta instância. Depois que a Comissão declarou a Petição admissível em 2003,
o Estado opôs-se também ao mérito do assunto, com base em valores elisabetanos.
4
176
13. No dia 10 de março de 2005 a CIDH emitiu um relatório de mérito por
meio do qual declarou que a recusa do Estado de inscrever SERAFINA CONEJO GALLO
com esse nome e de sexo feminino no Registro Civil, violou os preceitos contidos nos artigos
2, 3, 5, 8, 11, 13, 18, 24, e 25, e deveria adotar as medidas de reparação e não repetição
cabíveis.
14. Após mudança do governo de Elizabetia em dezembro de 2005, para o
Partido Celeste, foram acatadas as recomendações da CIDH na petição P-3000-00, e
promulgada Lei de Identidade de Gênero. Em janeiro de 2010, como é tradição, aconteceu
uma nova mudança de governo e o candidato do Partido Rosado, Antonio da Goblana do
Atelo foi eleito como Presidente.
15. Ao abandonar o trabalho sexual SERAFINA conseguiu explorar com mais
atenção sua vida sentimental e reconheceu-se como mulher lésbica. No ano de 2010 iniciou
um relacionamento amoroso com ADRIANA TIMOR e, após uma convivência de um ano,
mesmo conscientes dos obstáculos e dificuldades que enfrentariam, em fevereiro de 2011
decidiram se casar.
16. Na data do dia 15 de março de 2011, SERAFINA e ADRIANA
apresentaram-se perante a Secretaria Nacional da Família para solicitar uma autorização para
contrair casamento, como disposto no Artigo 396 do Código Civil de Elizabetia. Na ocasião
peticionaram por escrito mencionando o artigo 9 da Constituição Elisabetana, norma de
maior hierarquia no país, que proíbe toda discriminação por orientação sexual. No dia 29 de
maio de 2011 a Secretaria Nacional de Família negou a petição por meio de um ato
administrativo, com fundamento na parte do artigo 396 do Código Civil que estabelece a
possibilidade de união por meio do casamento apenas entre um homem e uma mulher.
SERAFINA e ADRIANA apresentaram um recurso de reposição perante a Secretaria
Nacional de Família e este foi recusado.
5
176
17. Posteriormente, dentro do prazo legal, as vítimas interpuseram um recurso
judicial contencioso administrativo para obter a nulidade do ato decisório, reiterando a
necessidade de ser levado em consideração o preceito da não discriminação contido na
Constituição Política do Estado. Neste recurso expressaram também a necessidade de o
Estado levar em consideração o fato de que, de acordo com a legislação vigente, a instituição
do casamento era a única que lhes permitiria ser consideradas como “família” no sentido
dado à instituição pela ordem constitucional. Em 5 de agosto de 2011 esse recurso foi
resolvido negativamente, pelo 7° Tribunal Contencioso Administrativo, e de acordo com a lei
a resolução do Tribunal não é passível de nenhum recurso. Como decisão de instância única,
esta sentença transitou em julgado no dia em que foi proferida.
18. No dia 18 de novembro de 2011 SERAFINA e ADRIANA interpuseram
um remédio constitucional de amparo contra a decisão emitida pela 7ª Vara do Contencioso
Administrativo, reiterando os argumentos que tinham ali sido apresentados. De acordo com a
legislação competente em Elizabetia, esse recurso deveria ser decidido imediatamente, e,
apenas em caso de situações especialmente complexas, num prazo de três meses.
19. Ocorre que em 18 de fevereiro de 2012 o recurso foi rejeitado, sem a
pronúncia do mérito, pela 3ª Vara de Família, pois não teriam sido encontrados elementos
suficientes para considerar “manifesta arbitrariedade” na decisão questionada pelas vítimas.
Esta decisão foi apelada dentro do prazo legal, e em 16 de maio de 2012 o Tribunal
Colegiado de Causas Diversas do Distrito N° 5, em sede de recurso, confirmou a decisão da
3ª Vara de Família.
20. Como não houve o julgamento no prazo legal previsto do recurso
interposto pelas vítimas, no dia 1° de fevereiro de 2012, Mariposa apresentou sua petição
inicial à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A CIDH abriu o trâmite da petição
interposta por Mariposa em 10 de maio de 2012, notificando o Estado e iniciando a fase de
6
176
admissibilidade. O Estado alegou inicialmente que a petição não teria esgotado os recursos
internos, porque fora apresentada durante o período em que o recurso de amparo ainda estava
em curso, bem como que poderia ter sido utilizada a ação de constitucionalidade, que podia
ter sido ativada sob o art. 396 do Código Civil do Estado.
21. Em 22 de setembro de 2012, a CIDH emitiu o relatório de admissibilidade
179-12 e declarou que “no momento do pronunciamento de admissibilidade, os recursos
internos tinham sido definitivamente esgotados, portanto não era pertinente entrar a analisar a
situação de esgotamento no momento da interposição da denúncia.”. Pronunciando-se com
relação à alegação do Estado de possibilidade de uso da ação de inconstitucionalidade, a
CIDH declarou que “nas circunstâncias do caso não era necessário exigir o esgotamento da
ação de inconstitucionalidade”.
22. Com a recusa do processo de solução amistosa, foi emitido relatório de
mérito 1-13 no dia 3 de janeiro de 2013, e declarada pela Comissão a violação dos direitos
constantes dos artigos 11, 17, 8.1, 24 e 25, em relação ao artigo 1.1 da Convenção e, em
virtude do princípio iura novit curia, a violação do artigo 2 da CADH. O Estado manifestouse contra a análise da CIDH e anunciou que apresentaria o caso perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o que foi feito no dia 1° de fevereiro de 2013. A Corte
emitiu uma Resolução em 13 de fevereiro de 2013, dispondo que as colocações do Estado,
bem como as respostas às arguições processuais da Comissão e representantes das vítimas,
fossem tratadas como exceções preliminares, a serem analisadas e julgadas, com eventual
mérito, reparação e custos (sucumbência) na data de maio de 2013.
23. Para efeito do Pedido de Medida Cautelar, cabe narrar que na fase da
adolescência ADRIANA TIMOR sofreu a ruptura de um aneurisma cerebral congênito, e três
dias antes da audiência foi internada em um hospital público em decorrência de uma dor de
cabeça muito forte, visão nebulosa e perda de movimento da mão esquerda. Poucos minutos
7
176
após dar entrada no hospital, ADRIANA desmaiou e foi internada em estado de coma na
Unidade de Terapia Intensiva. SERAFINA, que acompanhou ADRIANA até o hospital,
informou aos médicos o ocorrido na adolescência da companheira.
24. Depois de ADRIANA ser estabilizada, 24 horas após sua internação, o
especialista em neurologia, doutor Gepeto Vargas, amigo próximo do casal, informou a
SERAFINA que ADRIANA efetivamente sofrera a ruptura de um aneurisma cerebral
congênito e que a hemorragia interna tinha sido controlada.
25. Com relação aos efeitos da hemorragia, segundo o médico existem duas
possibilidades de enfrentamento: a primeira alternativa, para a qual é necessário obter o
consentimento do cônjuge ou de um membro da família, consiste em realizar uma cirurgia
intracraniana no prazo máximo de uma semana, procedimento que possui estatística de 15%
de sobrevivência, porém com um bom prognóstico de a paciente manter a integridade de suas
faculdades; a segunda opção dada pelo médico é continuar monitorando a situação da
paciente, o que apresenta um menor risco (85% de chances de sobrevivência), porém existe a
certeza de que ADRIANA sofrerá, entre outros problemas, de Amnésia Anterógrada (perda
da capacidade de adquirir novas memórias).
26. SERAFINA conhece perfeitamente a opinião de ADRIANA com relação
ao modo de proceder em um caso assim, visto que a companheira passara pela mesma
situação na sua adolescência. Em mais de duas ocasiões Adriana tinha lhe dito que se
estivesse naquele estado novamente, preferia assumir o risco de morte a viver com Amnésia
Anterógrada. Porém os pais de ADRIANA estão mortos, sendo a vítima é filha única e ainda
foi excluída do convívio dos outros membros da família depois que se declarou lésbica.
Ademais, SERAFINA não pode assinar consentindo a cirurgia por não ser cônjuge, nos
termos da lei. Cabe ressaltar que como as vítimas não possuem ainda cinco anos de
8
176
convivência não foi iniciado o processo para a declaração judicial de união de fato, o que
tampouco teria os efeitos de “família” segundo o ordenamento jurídico de Elizabetia.
27. O médico de ADRIANA informou à SERAFINA que caso não haja a
assinatura de consentimento para a cirurgia, no prazo de cinco dias, a decisão será tomada
pelo Conselho Médico Regional, que provavelmente fará a escolha não desejada pela própria
paciente. Nesse mesmo dia, Mariposa interpôs o pedido de medidas cautelares objetivando a
determinação da Corte para que o Estado de Elizabetia permita a SERAFINA outorgar o
consentimento para a cirurgia da companheira.
ANÁLISE LEGAL
IV. Admissibilidade
28. O Estado de Elizabetia faz parte da CADH e reconhece a competência
contenciosa da Corte desde 1990. Assim, a Corte é competente para apreciar o presente, nos
termos do art. 62 da CADH.
V. Preliminares
V. I – Sobre o não esgotamento dos recursos internos
29. Alega o Estado elizabetano que a petição não deveria ser previamente
admitida pela CIDH, tendo em vista o não esgotamento dos recursos internos por parte das
vítimas, pelo fato de que, no momento da apresentação da petição perante a CIDH, haveria
ainda um remédio constitucional a ser julgado pela jurisdição interna. Segundo a legislação
aplicável a esse recurso, a autoridade judicial devia decidir imediatamente e apenas em casos
de situações especialmente complexas, num prazo máximo de três meses. Acontece que não
existe uma legislação que regule os limites da expressão “causas complexas”, deixando essa
decisão ao arbítrio discricionário dos julgadores. Três meses após a impetração deste recurso,
a jurisdição elisabetana não se julgou o mérito, tendo em vista não encontrar elementos
suficientes para considerar que a decisão questionada era “manifestamente arbitrária”. Tal
9
176
declaração demonstra que o presente caso não era uma das exceções das quais se permitia um
lapso temporal maior para a apreciação do recurso. Ora, se faltavam algum dos pressupostos
para o julgamento do mérito deste recurso, não se tratava de uma causa complexa, devendo,
assim, ser julgada de imediato. Portanto, está claro que houve um atraso injustificado, por
parte do Estado, na decisão do recurso, e nos termos da alínea “c” do artigo 31 do
Regulamento da CIDH, essa situação se trata de uma exceção a aplicabilidade da regra da
exigência do esgotamento dos recursos internos.
30. Ademais, a alínea “b” do artigo 46 da CADH, disciplina que a petição
deverá ser apresentada dentro do prazo de 6 (seis) meses, a partir da data em que a vítima
tenha sido notificada da decisão definitiva. No caso em tela, a decisão que denegou o
casamento entre as vítimas, transitou em julgado em 05 de agosto de 2011, ou seja, as vítimas
teriam até o dia 05 de fevereiro de 2012 para ingressarem com o processo perante a CIDH.
As vítimas fizeram uso de um remédio constitucional, apresentando a petição em 18 de
novembro de 2011, esperando que resultado fosse imediato. Com o temor de que a decisão
pudesse ultrapassar o prazo estabelecido pela norma supracitada, embora não sendo de um
julgamento complexo, as vítimas não tiveram outra opção a não ser em recorrer ao Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, por intermédio da CIDH no dia 01 de fevereiro de
2012, ou seja, apenas 4 dias antes do prazo final estabelecido pela CADH.
31. Quanto a alegação da falta do uso da ação de inconstitucionalidade, tal
declaração não deve prosperar. Inicialmente, a ação de inconstitucionalidade está
regulamentada no artigo 110 da Constituição elisabetana. Nele é estabelecido que qualquer
cidadão poderá interpor a título pessoal tal ação, desde que tenha a autorização prévia da
Promotoria de Direitos Humanos da República. É conhecido que a anuência da Promotoria
resulta de considerações jurídicas e de conveniência política. É claro que a petição se
apresentada a Promotoria não seria anuída por esta, tendo em vista as vertentes políticas
10
176
presentes no Estado elisabetano. O partido Rosado, atualmente no poder, segue a diretriz
conservadora, tal afirmação pode ser constada da declaração do senhor Presidente em seu
discurso de posse, que, em síntese, declarou que não permitiria, de modo algum, o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. Portanto, torna-se claro que esse recurso não seria efetivo, nem
idôneo para o caso concreto, contrariando o que esta Corte vem decidindo 1, aclarando que os
Estados devem manter em seus ordenamentos jurídicos recursos efetivos e rápidos, o que não
é o caso deste recurso de inconstitucionalidade. Assim, não basta que existam recursos, é
necessário que eles sejam efetivos 2.
V.II – Violação do direito de defesa do Estado
32. Alega o Estado, também, que a CIDH, ao incorporar no relatório de mérito
da petição apresentada violação que não havia sido suscitada no seguimento do processo,
teria violado o direito o seu direito de defesa. Tal afirmação não deve prosperar. Em que pese
todo o alegado, essa Corte já tem entendido que a CIDH tem independência e autonomia para
definir os contornos da demanda 3, desde que o faça nos termos dos artigos 41 e 44 a 51 da
CADH, o que aconteceu.
33. Além disso, este Tribunal pode examinar as violações de artigos da
Convenção não alegados pelas partes, tal premissa decorre não somente da CADH, mas
também do princípio iura novit curia, sentido que já foi adotado em outras ocasiões por essa
Corte e por outros tribunais de direitos humanos 4, no qual já vem sendo reiteradamente
1
CtIDH – Caso Durant y Ugarte Vs. Peru, 16/08/2000, Serie C, No. 68, §102; Caso Velásquez Rodrigues Vs.
Honduras, 26/06/1987, Serie C, No. 1, § 93.
2
CtIDH – Caso Cantos Vs. Argentina, 28/11/2002, Serie C, No. 97, §52.
3
CtIDH – Caso Castañeda Gutman Vs. Mexico, 06/08/2008, Serie C, No. 184, §40; Caso Escher y otros Vs.
Brasil. 06/07/2009, Serie C, No. 200, § 20; Opinião Constitutiva OC-19/05, 29/11/2005, Serie 19, Pontos
Resolutivos primeiro e segundo.
4
CtIDH – Caso “Instituto de Reeducacion del Menor Vs. Paraguai, 02/09/2004, Serie C, No. 112, §126; Caso
de Los Hermanos Gomez Paquiyauri x Peru, 08/07/2004, Serie C, No. 110, § 179; CEDH – Case of Philis x
Greece, 27/08/1991, Serie A, No. 209, §56; Case of Powell and Rayner x The United Kingdom, 21/02/1990,
Serie A, No. 172, §29.
11
176
validado pela jurisprudência internacional no sentido de que o julgador possui a faculdade e o
dever de aplicar as disposições jurídicas pertinentes a uma causa.
34. Sobre este princípio, brilhantemente explanou o Excelentíssimo Sr. Juiz
Roberto de Figueiredo Caldas 5: “O princípio de iura novit curia é clássico. A par de ser
máxima do Direito Romano, encontrou antes mesmo em Aristóteles (384 A.C. – 322 A.C.)
uma clara previsão, uma predicção, uma antecipação. Na abertura de sua obra “Retórica”, na
qual o filósofo explica a atribuição de um advogado, a posição de um juiz e o escopo das
promulgações legais, ele critica a retórica, a valorização exacerbada do não essencial em
detrimento dos fatos relevantes para a decisão judicial. Observe-se como se aplica com
perfeição o princípio iura novit cúria e a da mihi factum dabo tibi jus, outra máxima latina
consequente da primeira. Na concepção aristotélica, está inteiramente dentro da competência
do juiz decidir sobre a importância ou desimportância, sobre a justiça ou injustiça de um fato
sem tomar as suas instruções a partir das dos litigantes”.
35. Como no presente caso não houve mudança fática, ou seja, a invocação da
violação do artigo 2 da CADH não foi resultado de um fato diverso ao narrado na petição, o
Estado teve o direito de se defender dos fatos que poderiam resultar na violação da norma
supracitada. Assim, baseando-se no entendimento desta Corte 6, seria possível sim a aplicação
do princípio iura novit curia, no caso concreto pela CIDH.
36. Portanto, diante de todo o exposto, não existiu violação alguma ao direito
de defesa do Estado, tendo em vista que constitui um dever desta Corte o exame de violações
pertinentes ao caso concreto, baseando-se essa premissa, no consagrado e utilizado princípio
do iura novit curia.
VI. Mérito
VI. I. Da violação ao artigo 24 da CADH
5
Voto fundamente do Juiz Ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas com relação à Sentença da Corte
Interamericana dos Direitos Humanos no caso Escher e outros VS. Brasil, proferida em 6 de julho de 2009.
6
CtIDH – Caso Furlan y familiares Vs. Argentina, 31/08/2012, Serie C, No. 246, §59.
12
176
37. O artigo 24 da CADH estabelece a igualdade de todos perante a lei, bem
como o direito a nenhuma espécie de discriminação e igual proteção legal, no sentido de
garantia e efetividade dos direitos humanos.
Como sujeitos de direito, todos os seres
humanos possuem personalidade jurídica, ou seja, são titulares de direitos e obrigações. O
direito à igualdade, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. I,
primeira parte), bem como no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 26),
garante a todas as pessoas igualdade em dignidade e direitos, sem ressalvas, exceções ou
distinções quanto a determinados fatos ou direitos.
38. Adquiridos desde o nascimento, não é possível se cogitar na existência de
"direitos heterossexuais", mas em direitos humanos, como aqueles inerentes ao ser humano,
independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Deixar de reconhecer um
direito inerente ao ser humano é deixar de reconhecê-lo como tal, diminuir sua natureza e
essência. Segundo o entendimento desta Corte, além de garantir a efetividade e aplicação da
CADH, o Estado deve abster-se da edição de normas e práticas de qualquer natureza que
resultem na violação dos direitos e garantias previstos na Convenção Americana 7.
39. Na medida em que Elizabetia está negando a efetivação de um direito
reconhecido pela CADH, com base na orientação sexual das vítimas, não está sendo
cumprido o dever de garantia e proteção dos direitos humanos, pelo qual o Estado se
comprometeu frente ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos e seus nacionais ao
ratificar o Tratado. O cumprimento da CADH implica na possibilidade do livre exercício
responsável da sexualidade, na liberdade de escolha e luta pela felicidade pessoal de cada um
dos nacionais de Elizabetia.
7
CtIDH – Caso Yatama Vs. Nicarágua, 23/06/2005, Serie C, No. 127, § 189; Caso Caesar Vs. Trinidad y
Tobago, 11/03/2005. Serie C, No. 123, § 91; Caso Lori Berenson Mejia Vs. Peru, 25/11/2004, Serie C, No. 119,
§219; Caso Intituto de Reeducacion del Menor Vs. Paraguai, 02/09/2004, Serie C, No. 112, §206.
13
176
40. Há que pesar-se o direito à igualdade em contraponto às concepções
morais da sociedade, que não são as mesmas de ontem e não serão de amanhã. Trata-se de
justiça privar algumas pessoas de um direito essencial, enaltecendo valores históricos e
relativos que atualmente não prevalecem, nem se sustentam? A garantia de igualdade prevista
no ordenamento jurídico interno do Estado, bem como Tratados internacionais
supramencionados e supostamente obedecidos por Elizabetia, impede que concepções morais
guiem o reconhecimento de direitos fundamentais, como o de duas pessoas do mesmo sexo a
constituir uma entidade familiar. Ratifique-se, o Estado não pode privar direitos, amparado
pela "moralidade", uma vez que, caso o faça, não se tratará mais de ações moralmente
corretas, mas de atos ilícitos, e por consequência, injustos.
41. No ano de 2006 uma comissão internacional de juristas, juntamente com o
Serviço Internacional de Direitos Humanos realizou um projeto de desenvolvimento de
princípios jurídicos internacionais sobre a aplicação da legislação internacional às violações
de direitos humanos, chamados Princípios de Yogyakarta 8. De acordo com tais princípios
todas as pessoas devem desfrutar de todos os direitos humanos, bem como estar protegidas de
qualquer tipo de discriminação, seja em razão de sua orientação sexual ou identidade de
gênero. Discutiram-se ainda as questões da proibição pela lei de quaisquer discriminações e
da efetividade da garantia protecionista de modo a evitar distinções, exclusões ou
preferências baseadas na orientação sexual ou identidade de gênero, que anule ou prejudique
direitos inerentes ao ser humano como pessoa e cidadão.
42. Conforme já definiu estudo feito pelo Conselho Permanente da OEA 9, a
identidade de gênero ou a orientação sexual, como vivência interna e individual dos
8
Princípios de Yogyakarta. Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em
relação à orientação sexual e à identidade de gênero. Princípio Dois. 2006;
9
Orientação Sexual, Identidade De Gênero e Expressão De Gênero: Alguns Termos e Normas Relevantes Estudo elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos “CIDH” em cumprimento da resolução
AG/RES. 2653 (XLI-O/11): Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero. OEA/Ser.G
CP/CAJP/INF. 166/12. 23 abril 2012;
14
176
indivíduos, não são características estáticas das pessoas, mas particularidades dinâmicas, que
dependem da construção interior de cada um, bem como da percepção social que cada
indivíduo faz sobre si mesmo. Assim, o modo como a pessoa se sente intimamente, pode ou
não corresponder com seu sexo biológico, o que ocorreu com Serafina, cuja identidade de
gênero é feminina, bem como sua orientação sexual e de sua companheiro são femininas. A
orientação sexual, a identidade de gênero ou a expressão de gênero são entendidas no âmbito
do direito internacional como características que não podem ser controladas, e das quais uma
pessoa não pode ser separada, com o risco de sacrificar sua própria identidade 10.
43. De acordo com o entendimento desta Corte 11 para que se comprove que
houve discriminação em alguma decisão, não é necessário que esta tenha sido baseada
“fundamental e unicamente” na orientação sexual da pessoa, pois basta constatar que de
maneira explícita ou implícita se levou em consideração a orientação sexual da pessoa para a
tomada da decisão discriminatória. No caso em tela, duas mulheres estão sendo impedidas de
contraírem casamento e constituírem uma família, apenas porque ambas possuem o mesmo
sexo e a legislação de Elizabetia não regula essa modalidade de união matrimonial.
44. A proteção especial garantida por essa Corte 12 aos direitos humanos,
independentemente de quais desses direitos estejam reconhecidos por cada Estado em normas
internas, traz aos mesmos, como membros da Comunidade Internacional o dever de
cumprimentos dessas obrigações, sem discriminação alguma. Isso significa que o Estado, seja
em nível internacional ou em seu ordenamento interno, não pode atuar contra o princípio da
igualdade e não discriminação em prejuízo de um determinado grupo de pessoas.
10
Orientação Sexual, Identidade De Gênero e Expressão De Gênero: Alguns Termos e Normas Relevantes Estudo elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos “CIDH”. III. C. § 16;
11
CtIDH. Caso Atala Riffo y Niñas Vs. Chile, 24/02/2012, Série C, No. 239, §94;
12
Corte IDH. Opinião Consultiva, Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Sem Documentos, OC-18/03.
§100, 17/09/2003;
15
176
45. Segundo o grande filósofo e professor Michel Foucault 13: “O contexto de
referência é a família, o monstro é uma exceção, o indivíduo a ser corrigido é um fenômeno
corrente, é um sujeito incorrigível”. Foucault define como monstro “o fato de que ele
constitui em sua existência mesma, em sua forma, não apenas uma violação das leis da
sociedade, mas das leis da natureza (...) O monstro é o que combina o impossível com o
proibido”. Sob esta perspectiva, o Estado de Elisabetia está transformando seus nacionais em
monstros, na medida em que servem como demonstração daquilo que não se deve ser ou
tocar, tampouco amar. O amor homoafetivo não pode ser considerado "menos amor" apenas
por não atender os anseios da maioria. Não cabe ao Estado invadir o íntimo de uma pessoa e
dominar-lhe os sentimentos, coagindo-a a se "enquadrar" nos moldes da sociedade. Liberdade
exige respeito. E estando ausente a liberdade, ausente estará o amor.
46. Segundo o entendimento desta Corte 14 as alegações por parte de um Estado
de não existência de consenso quanto aos direitos das minorias sexuais não pode ser
considerado como um argumento válido para negar-lhes seus direitos humanos, ou para
perpetuar e reproduzir a discriminação que há muito tais minorias vem sofrendo. No âmbito
dos direitos humanos a interpretação deve sempre ser feita orientada pelo princípio pro
homine, ou seja, da forma mais favorável ao ser humano, caso, SERAFINA e ADRIANA.
47. O sexo das pessoas ou opções de afeto não pode ser considerado como um
fator de desigualdade jurídica, não é em absoluto restrição razoável ou idônea, nos termos do
Art. 9 da Constituição Elizabetana, onde consta explícita vedação de tratamento
discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo, orientação sexual ou identidade de
gênero dos seres humanos. De acordo com a própria lei interna o tratamento desigual ou
discriminatório que esteja baseado em algum desses aspectos é inconstitucional, além de
contrário ao “bem de todos” que deveria ser buscado pelo Estado.
13
14
Os Anormais. Michel Foucault, 69/70. 1974/1975.
CtIDH - Caso Atala Riffo y Niñas Vs. Chile, 24/02/2012, Série C, No. 239, §92;
16
176
48. Entende esta Corte 15 que uma distinção que carece de justificação objetiva
e razoável é efetivamente discriminatória, em uma atualidade em que o princípio fundamental
de igualdade e não discriminação entrou no domínio do “jus cogens”, repousando sobre ele a
estrutura jurídica da ordem pública internacional, como elemento proeminente no sistema
tutelar dos direitos humanos. Em que pese o Estado e seu ordenamento jurídico efetuarem o
chamado controle social, devem agir, em todo e qualquer ato ou decisão nos limites da
razoabilidade e proporcionalidade, levando em conta cada uma das pessoas que será atingida
por tal decisão ou ação.
49. De acordo com o entendimento da Colenda Corte 16 a CADH proíbe
qualquer norma, ato ou prática discriminatória baseada na orientação sexual de uma pessoa.
Nenhuma norma, decisão ou prática de direito interno, seja por parte de autoridades estatais
ou por particulares, podem diminuir ou restringir, de modo algum, os direitos de uma pessoa
a partir de sua orientação sexual.
50. O Estado violou assim o direito à igualdade das vítimas, consagrado no
artigo 24 da Convenção Americana de Direitos Humanos, cominado com o artigo 1.1 do
Tratado.
VI. II. Da violação ao artigo 11 da CADH
51. A CADH, em seu artigo 11, estabelece o princípio da proteção da honra e
da dignidade, que abrange toda e qualquer pessoa, em relação à proteção contra ingerências
arbitrárias ou abusivas do Estado. Segundo entendimento desta Corte 17, o âmbito de
privacidade garantido pela Convenção Americana, deve ser isento e imune às invasões ou
agressões abusivas ou arbitrárias por parte de terceiros ou da autoridade pública.
15
CtIDH - Caso Yatama Vs. Nicarágua, 23/06/2005, Série C, No. 127, §§184 e 185;
CtIDH. Caso Atala Riffo y Niñas Vs. Chile, 24/02/2012. Série C. Nº 239, §91.
17
CtIDH. Caso Artavia Murillo e Outros (“Fecundação in vitro”) vs. Costa Rica, 28/11/2012, Série C. Nº 257,
§142; Caso dos Massacres de Ituango Vs. Colombia, 01/07/2006, Série C. No. 148, §194; Caso Atala Riffo y
Niñas Vs. Chile, 24/02/2012, Série C, No. 239, §161; Caso Fontevecchia e D’Amico Vs. Argentina, 29/11/2011,
Série C, No. 238, §48;
16
17
176
52. O papel do Estado e do Direito em uma sociedade democrática, é o de
assegurar o desenvolvimento da personalidade de todos os indivíduos, permitindo que cada
um realize os seus projetos pessoais lícitos. Viver com honra e dignidade é poder construir as
próprias decisões e ideologias, os projetos de vida, inclusive no que concerne ao
estabelecimento de um relacionamento familiar, sem a interferência de terceiros ou do
Estado, o que caracteriza latente violação à CADH.
53. O Estado de Elizabetia não se propôs a pensar nas implicações que a
legitimação ou não de direitos traz a seus cidadãos. Como minorias, das quais as vítimas
fazem parte, seres humanos são tratados como “escória” da sociedade, na medida em que o
Estado demonstra desinteresse e hostilidade com relação a seus direitos e liberdades de
escolha.
54. Enquanto o Estado deveria estar promovendo a justiça social e o
tratamento isonômico aos seus cidadãos, está em contrário, agindo de forma intolerante e
preconceituosa, violando o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, segundo o qual todo
ser humano, sem exceção, têm direito a ser tratado de forma digna, bem como escolher a
própria opção afetiva sem sofrer humilhações ou ser marginalizado porque não se comporta
da maneira idealizada pela sociedade. Nas palavras do renomado autor Lewis Carroll, "Tudo
tem uma moral, basta encontrá-la”. Tratar seres humanos de forma desigual e degradante é
injusto e ilícito.
55. Segundo entende a Colenda Corte 18 a proteção assegurada pelo Artigo 11
da CADH abrange uma série de fatores relacionados com a dignidade do indivíduo,
incluindo, por exemplo, a capacidade para o desenvolvimento da própria personalidade,
18
CtIDH - Caso Artavia Murillo e Outros (“Fecundação in vitro”) vs. Costa Rica, 28/11/2012, Série C, No. 257,
§143; Caso Rosendo Cantú e Outra Vs. México. 31/08/2010, Série C, No. 216, §119; Caso Atala Riffo y Niñas
Vs. Chile, 24/02/2012, Série C, No. 239, §162;
18
176
identidade e relacionamentos pessoais. Engloba ainda aspectos da vida sexual e identidade
física, incluindo o direito à autonomia de estabelecer relações com outros seres humanos e
com o mundo à sua volta.
56. A noção de dignidade da pessoa é inseparável da igualdade de direitos, que
decorre da natureza do gênero humano 19, sendo incompatível com qualquer situação que leve
um grupo a ser tratado com hostilidade e discriminação, por ser considerado inferior a outro.
Criar diferenças de tratamento entre seres humanos os diminui e desclassifica, viola a honra,
dignidade e a ética do direito.
57. Não há nenhuma relação entre a opção afetiva de uma pessoa e sua maior
ou menor dignidade como ser humano. Mesmo depois de a homossexualidade ser
despenalizada ou deixar de ser considerada uma doença, ainda hoje as pessoas que fazem
essa escolha afetiva são constantemente humilhadas e diminuídas por terem uma orientação
sexual classificada como “diferente” das consideradas “normais”.
58. Há que se colocar acima de todo padrão social ou reação conservadora a
premissa de que todos merecem respeito, independentemente do determinado “jeito de ser”,
homossexual, ou heterossexual. Platão disse que “quem não começa pelo amor nunca saberá
o que é filosofia”, se começam massacrando o amor deste ou daquele indivíduo, terminarão
por tirar-lhe toda a autonomia, voltando ao estado de arbítrio estatal, onde não existem
direitos ou garantias fundamentais.
59. Com relação aos domínios do coração, amar muitas vezes não é uma
escolha, tampouco é simples e fácil, assim como as pessoas não são perfeitas e não o serão no
futuro. Dizer que uma família formada por um homem e uma mulher é a única entidade
possível, que um casal de heterossexuais forma a instituição perfeita, está distante de
19
CtIDH. Proposta de Modificação da Constituição Política da Costa Rica relacionada à Naturalização. Opinião
Consultiva OC-4/84, 19/01/1984, Série A, No.4.
19
176
expressar algo fático e verdadeiro. O Estado está pré-concebendo uma situação, julgando e
decidindo que uma família formada por pessoas do mesmo sexo não pode existir, que não é
digna de fazer parte da sociedade.
60. Elizabetia está impedindo as vítimas de viver uma vida digna, está
violando a honra e a dignidade de SERAFINA e ADRIANA, impedindo-as de serem felizes e
de existirem plenamente.
VI. III. Da violação ao artigo 17 da CADH
61. Os artigos 17º da CADH, 6º da Declaração Americana de Direitos e
Deveres dos Homens e o 15º do Protocolo de San Salvador, declaram a proteção do principal
núcleo de todas as sociedades: a família. Diante destas normas, a família deve ser protegida
pela sociedade e pelo Estado. Um dos métodos da consolidação e propagação da família é o
casamento. Este, por sua vez, está regulamentado no item 2 do art. 17 da CADH, trazendo o
direito do homem e da mulher de contraírem matrimônio, desde que dentro dos limites
estabelecidos pela legislação interna, ressalvando-se, entretanto, que tais normas deverão
respeitar o princípio da não-discriminação, também consagrado na CADH.
62. No que se refere ao tema, importa ressaltar que o direito a proteção da
família constitui-se em um direito completo, estritamente relacionado com os outros direitos
humanos e vinculado, principalmente, aos direitos à igualdade e a não discriminação. A
família, em sua constituição, deve partir do livre e pleno consentimento por parte das pessoas
envolvidas. No que tange à família, como instituição, é inadmissível a existência de qualquer
forma de discriminação no seio familiar, haja vista ser o afeto a essência deste fenômeno
social 20.
63. Elizabetia, em conformidade com a Convenção, declara que a família é a
unidade fundamental da sociedade e merece a proteção especial de todas as instituições do
20
Badilla, Ana Elena. “El derecho a constituición y la protección de la família em la normativa y la
jurisprudência
del
Sistema
Interamericano
de
Derechos
Humanos”.
Link:
http://www.corteidh.or.cr/tablas/a22086.pdf.
20
176
Estado (art. 85 da Constituição Política de Elizabetia). No entanto, Elizabetia adota um
critério discriminatório para que as pessoas possam obter o reconhecimento jurídico e status
de família.
64. Segundo o artigo 396 do Código Civil elizabetano, a família é derivada da
união livre de um homem e uma mulher, não se admitindo, de maneira alguma, outro tipo de
núcleo familiar que não seja baseado nessa estrutura. Nesse sentido, ao editar o artigo 406 do
mesmo diploma legal, o Estado confirmou que as uniões de fato – único instituto jurídico
interno que reconhece a relação homoafetiva – não são consideradas família, assim,
consequentemente, os casais homossexuais não teriam o reconhecimento do vínculo familiar,
impossibilitando-os de receber a proteção especial decorrente do artigo 85 da Constituição da
República.
65. Não obstante, o casamento, segundo as normas internas de Elizabetia, é um
instituto discriminatório, pois apenas pode ser estabelecido mediante o livre consenso entre
um homem e uma mulher, marginalizando totalmente os relacionamentos homoafetivos. Ao
fazer tal restrição, o Estado violou gravemente o princípio da não discriminação, da igualdade
e liberdade.
66. Segundo o princípio da igualdade, todas as pessoas devem ser tratadas de
maneira idêntica pelo Estado, respeitando-se as suas diferenças. Isso significa que todos tem
o direito de serem reconhecidos na sua identidade ainda que representem as minorias. Tornase indelével a identidade dos motivos determinantes da união heterossexual e da união
homoafetiva, ou seja, os fatores que caracterizam uma união entre pessoas de sexos opostos
são exatamente os mesmos que legitimam a união de pessoas do mesmo sexo, qual sejam, o
afeto e o projeto familiar.
Declarar então que uma união heterossexual, que têm os
princípios idênticos de uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo, pode ser considerada
21
176
família e restringir a outra desta mesma classe, fere indubitavelmente o princípio da
igualdade.
67. Por consequência prática, são violados também o princípio da não
discriminação e principalmente o da liberdade. Como um Estado que alega que todos têm a
plena liberdade de escolha se ao mesmo tempo discrimina, marginaliza aqueles que optarem
por uma relação homossexual? O princípio da liberdade está consagrado na CADH (art. 7) e
deve ser respeitado por todos os Estados-membros.
68. O critério para obtenção do reconhecimento jurídico do vínculo familiar
adotado pelo Estado afronta veementemente o entendimento firmado pela jurisprudência
desta Corte e de outros Tribunais Internacionais de direitos humanos 21.
69. O conceito de família não pode ser interpretado de maneira restrita, mas
deve ser aplicado de modo amplo, não podendo se limitar a relações fundadas no matrimônio.
A família deve derivar de uma convivência, um contato frequente, uma proximidade pessoal
e afetiva entre os membros. O Comitê de Direitos Humanos da ONU, ao interpretar o artigo
23 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, destacou que não existe uma
definição uniforme da de família, mas sim diversas modalidades de uniões familiares,
inclusive aquelas formadas por casais que não contraírem matrimônio 22.
70. Portanto, diante de todo o exposto, não pode existir em nenhum dos
Estados pactuantes da Convenção Americana de Direitos Humanos normas que restrinjam a
obtenção da qualidade de familiares, sabendo que esta decorre de uma convivência
harmônica, de uma troca de afetos, e acima de tudo, do amor entre os membros. É oportuno
ratificar que qualquer dispositivo legal que limite o conceito de "família" por qualquer
espécie de discriminação, contraria o espírito da Convenção Americana, e, portanto, está
tacitamente revogado, isso é, tem sua eficácia jurídica paralisada frente ao pacto de
21
CtIDH – Caso Atala Riffo y niñas Vs. Chile, 24/02/2012, Serie C, No. 239, §172 a 177; CEDH - Caso Schalk
y Kopf Vs. Austria, (No. 30141/04), 22/11/2010 , § 91.
22
ONU. Comitê de Direitos Humanos. Comentário Geral nº 19, § 2º.
22
176
submissão à CADH, nos termos do princípio da boa fé, consagrado no artigo 1˚ do mesmo
diploma legal. Ao ratificar o Pacto de San José da Costa Rica, o Estado se compromete a
adequar o direito interno às disposições deste Tratado Internacional, sendo que, qualquer
incompatibilidade, deve-se utilizar o critério interpretativo lastreado pelo princípio "pro
homine", ou seja, a norma mais benéfica à pessoa humana.
71. Assim, segundo a jurisprudência internacional relatada e a interpretação do
artigo 23 do PIDCP feita pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, as vítimas teriam o
direito de serem reconhecidas como família, o que não aconteceu no caso concreto. Como
consequência , Elizabetia, violou o direito à família que é garantido pela CADH às vítimas.
VI. IV. Da violação aos artigos 8 e 25 da CADH
72. O artigo 25 da CADH toda pessoa, sem distinção tem direito a um recurso
efetivo, ou seja, materialmente eficaz à atender a sua pretensão de contrabater a violação de
seu direito humano. Conjuntamente, o artigo 8.1, garante a todos os indivíduos o direito de
buscar ao judiciário quando tiverem uma pretensão e que a tramitação obedeça a uma
razoável duração.
73. Esta Colenda Corte, ao interpretar o artigo 25 da CADH, firmou o
entendimento de que o recurso da qual se trata tal norma deve ser efetivo, não bastando uma
mera formalidade recursal, tendo em vista que essa norma visa a proteção dos direitos
humanos por meio de um recurso que seja apto a identificar as violações a esses direitos e
também suficiente para repudiá-los 23. Busca-se, também, que esse meio seja capaz de mostrar
conscientizar a sociedade de que os direitos humanos devem ser respeitados, sob pena de
sanção amparada na jurisdição interna.
74. A 7ª Vara Contenciosa Administrativa, ao deixar de apreciar o recurso
apresentado pelas vítimas que buscava a nulidade do ato que denegou o reconhecimento do
23
CIDH - Caso Radilla Pacheco Vs. México, 23/11/2009, Serie C, No. 209, §139; Caso López Mendoza Vs.
Venezuela, 01/09/2011, Serie C, No. 233, § 184; OC 9/87 “Garantias Judiciales em Estados de Emergencia,
06/10/1987, Serie A, no. 9;Caso Chitay Nech e outros Vs. Guatemala, 25/05/2010, Serie C, No. 212, §190;
23
176
vínculo familiar entre elas – um direito humano previsto na CADH -, provou que Elizabetia
não propiciou os meios corretos para reconhecer e remediar, em âmbito interno, as violações
dos direitos humanos. O Estado declarou que para ser provido esse recurso, seria necessário
que houvesse uma ilegalidade no ato da autoridade, o que à luz do artigo 396 do Código Civil
elizabetano não havia ocorrido.
75. O Estado, ao fazer tal afirmação, contrariou o artigo 9º da Constituição da
República, a lei maior do Estado, que estabelece claramente que ninguém poderá ser
discriminado, dentre outros motivos, por sua opção sexual. Entretanto, principal ofensa foi
proferida em face da CADH, que estabelece a não discriminação. Portanto, diante dos fatos
narrados, restou-se cristalino que havia sim um ato de ilegalidade, o que deveria fazer com o
recurso fosse acolhido.
76. Também deve ser repudiada a existência de recursos ineficazes, que estão
ali apenas para maquiar o ordenamento jurídico visando a aparência de uma proteção. Para
contrabater isso, existe o chamado controle de convencionalidade, o qual, segundo esse
Tribunal 24, deve ser feito ex officio, pois a partir do momento em que o Estado ratifica um
tratado internacional, toda a sua legislação é vinculada, assim, todas as normas de direito
interno devem estar de acordo com o tratado internacional.
77. Embora previsto no artigo 24 da CADH, o direito a não discriminação não
foi garantido às vítimas. Ao declinar a pretensão das vítimas, mesmo o pedido estando de
acordo com todas as normas de direito internacional e principalmente pautado nos direitos
fundamentais delas, o Estado deixou as vítimas abandonadas, negando-lhes a proteção
judicial.
78. Não obstante, é assegurado a todos, também, um recurso rápido e efetivo.
Conforme já dissertado, o Estado deve garantir o livre e pleno exercício dos direitos
24
CIDH Caso Aguado Alfaro y outro Vs. Peru, 24/11/2006, Serie C, No. 158, §128.
24
176
reconhecidos pela CADH para todas as pessoas que se encontrem sob a sua jurisdição 25.
Entretanto, quando a 7ª Vara Contenciosa rejeitou o pedido das vítimas e, consequentemente,
atentou contra um direito humano, as vitimas não dispuseram de nenhum recurso para que
pudessem questionar a errônea decisão. A decisão emitida por aquele tribunal transitou em
julgado no mesmo dia, não podendo mais ser discutida.
79. Portanto, diante de todos os fatos narrados, o Estado violou os direitos de
garantia e proteção judicial estabelecidos pela CADH, merecendo, assim, a sanção.
VI. V. Da violação aos artigos 1.1 e 2 da CADH
80. Diante de todo o exposto, restou-se claro que o Estado de Elizabetia violou
sua obrigação perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, na medida em que não
está respeitando os direitos e liberdades estabelecidos na CADH e pelos quais se
comprometeu ao ratificar o Tradado, mas ao contrário, está expedindo e aplicando leis que
violam os preceitos internacionais instituídos.
81. Entende esta Corte 26 que a obrigação contida nos artigos 1.1 e 2 da
Convenção Americana corresponde a um princípio básico do direito da responsabilidade
internacional do Estado, respaldado pela jurisprudência internacional, segundo a qual os
Estados devem cumprir suas obrigações convencionadas e regidas pelo princípio da boa fé
(pacta sunt servanda), não podendo, por razões de ordem interna, deixar de assumir a
responsabilidade internacional já estabelecida.
VII – Da medida provisória
82. Em que pese a necessidade da resolução da lide trazida a essa Corte, tendo
em vista tratarem-se de direitos humanos, existe uma questão que demanda a apreciação
prévia deste Tribunal, nos termos do artigo 63.2 da CADH.Tal norma legal disciplina que em
25
26
Caso Velásquez Rodrigues Vs. Honduras, 26/06/1987, Serie C, No. 1, §91.
Opinião Consultiva OC-14/94 de 9 de dezembro de 1994. Série A No. 14, § 35;
25
176
casos de extrema gravidade e urgência e quando se fizer necessário para evitar dano
irreparável às pessoas, a Corte, poderá tomar medidas provisórias que considerar pertinente.
83. Conforme esta Corte vem firmando o entendimento 27, no Direito
Internacional dos Direitos Humanos as medidas provisórias tem um caráter não só cautelar,
no sentido de que preservam uma situação jurídica, mas fundamentalmente tutelar, em razão
de que protegem direitos humanos. Para que possa ser pedido a essa Corte o provimento
cautelar, será necessário que se prove uma extrema gravidade e urgência e é necessário que a
não concessão da medida possa acarretar em danos irreparáveis às pessoas.
84. Pois bem, Adriana Timor, companheira de Serafina Conejo Gallo, sofreu
uma ruptura de um aneurisma cerebral congênito com hemorragia interna. Para este tipo de
problema poderão ser utilizados dois meios de tratamento: I) o contínuo monitoramento da
situação, com uma taxa de sobrevivência de 85%, mas com a certeza de que Adriana sofrerá,
dentre outros problemas, de Amnésia anterógrada; II) Cirurgia intracraniana, com taxa de
sobrevivência de 15%, mas com a certeza que a paciente manteria a integridade de suas
faculdades mentais.
85. Conhecendo a opinião de sua companheira, Serafina pretende consentir
com a cirurgia intracraniana, uma tarefa pertencente a um cônjuge ou familiar da paciente.
Entretanto, como já é sabido, o Estado de Elizabetia não reconhece o vínculo familiar entre as
vítimas e os familiares sobreviventes de Adriana a excluíram do circulo familiar,
discriminando-a por sua opção sexual, não existindo nenhum familiar próximo e idôneo para
tomar tal decisão. Serafina, então, requer que lhe seja concedida a possibilidade de outorgar
seu consentimento em favor de Adriana pelos fatos e direitos abaixo expostos:
VII.I. – Serafina é membro da família de Adriana
27
Caso de La Unidad de Internación Socioeducativa. Medidas provisórias a respeito do Brasil. Resolução da
CtIDH de 20 de novembro de 2012, Considerando terceiro.
26
176
86. Conforme esta Corte tem firmado entendimento, o conceito de família não
pode ser interpretado de maneira restritiva, considerando somente como família aquela
proveniente do matrimônio. A base de toda a família é o amor. Seria uma grande injustiça
restringir a qualidade de família a apenas um instituto da sociedade. Ao afirmar isso,
consequentemente estaríamos declarando que só existiria amor no casamento.
87. Família seria a relação proveniente do amor, da convivência harmônica, de
um contato frequente, uma proximidade pessoal e afetiva entre os membros. Ela não deve ser
compreendida como uma mera formalidade, mas sim como um relacionamento que dê
segurança e traga prazer para os seus membros. A união pelo amor é o que caracteriza a
entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o afeto a mais pura exteriorização do
ser e do viver, de forma que a marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos
direitos humanos por ser forma de privação do direito à vida.
88. O tratamento dado ao casamento em Elizabetia é discriminatório, não
podendo o mesmo ser alcançado por todos. Contrariando a própria CADH, o Estado não
garante aos seus cidadãos à igualdade, não permitindo que os casais homossexuais tenham
acesso ao instituto de maior importância da sociedade, a família, que Elizabetia só confere
àqueles que tenham se casado. Se o Estado alterasse o regramento para a obtenção do
casamento, não discriminando mais nenhum cidadão, e permitindo que as relações entre
pessoas do mesmo sexo fossem reafirmadas por meio do matrimônio, não haveria dificuldade
em harmonizar o conceito de família trazido por esta Corte e por diversos Tribunais de
Direitos Humanos com o contexto fático existente no Estado.
89. Serafina e Adriana mantêm um relacionamento há mais de um ano e
buscam incessantemente os benefícios do casamento, para enfim poderem ser reconhecidas
como família. Conforme pode se constar, as vítimas tentaram por várias vezes se casar, o que
indica que havia entre elas um relacionamento apto a preencher os requisitos para o
27
176
reconhecimento do vínculo familiar. Embora a família não derive somente do casamento, é
sábio afirmar que as pessoas que resolvam contrair o matrimônio buscam, no mínimo, a
formação de uma família.
90. Portanto, diante da discriminação no procedimento para o casamento e
levando-se em conta principalmente o conceito de família dado por essa Corte e por outros
Tribunais de Direitos Humanos, Serafina preenche os requisitos para ser considerada familiar
de Adriana.
VII.II. Do preenchimento dos requisitos para a concessão
91. Estabelece o art. 62.3 do Regulamento desta Corte que para que possa ser
concedida a medida provisória é necessário que o fato seja urgente e grave, além de eventual
prejuízo de sua não concessão.
92. Pois bem, Serafina pretende consentir com a operação intracraniana, pois
sabe que essa é a vontade de sua companheira. Ao regulamentar sobre quem poderia
consentir com as resoluções médicas, o Estado entendeu, corretamente, que somente o
cônjuge ou os familiares da vítima poderiam dar esse consentimento. Conforme relatado,
Serafina preenche todos os requisitos para ser considerada familiar de Adriana, e na falta dela
não existe mais nenhuma pessoa que possa decidir sobre o seu futuro. Se for esse o caso, o
Conselho Médico Regional irá optar pelo curso de “menor risco para a vida da paciente”.
Ressalta-se que nessa opção a paciente irá conviver o restante de sua vida com Amnésia
Anterógrada.
93. Amnésia Anterógrada é a perda de memória para eventos posteriores ao
acometimento de uma doença ou de um evento traumático, ou seja, é a deficiência em formar
novas memórias. Embora a pessoa não se esqueça completamente do passado, o paciente
provavelmente perderá até mesmo a noção de quem são os membros de sua família, pois ela
não conseguirá realizar o feed back entre o futuro e o passado.
28
176
94. Esta Corte tem firmado o entendimento 28 de que o direito à vida,
consagrado no art. 7 da CADH, compreende não somente no direito de todo ser humano de
não ser privado arbitrariamente de sua vida, mas também do direito a um projeto de vida, que
é constituído em uma vida digna, segura e mantendo as integridades.
95. Se esta Corte não intervir neste momento, fazendo com que Adriana seja
submetida ao acompanhamento médico, caminhando assim contra a sua vontade, estará
admitindo uma violação ao direito à vida. Embora as chances de sobrevivência sejam de
85%, Adriana sofrerá de Amnésia Anterógrada e nunca mais conseguirá distinguir quem são
seus familiares, e, ainda pior, perderá a capacidade de se lembrar de acontecimentos que se
passaram a segundos.
96. Conforme a interpretação desta Corte, dentro do direito à vida está
implicitamente o direito a uma vida digna, o que não será o caso da paciente. Ademais, como
Serafina preenche os requisitos para ser considera familiar de Adriana, ela poderia escolher
qual o tratamento seria utilizado em sua companheira, sendo sabido por todos que a escolha
será a operação intracraniana, pois ela não espera somente Adriana sobreviva, mas sim que
ela tenha uma vida longa e com dignidade, atendendo, inclusive, o pedido da própria Adriana.
Se for ignorada a opção da pessoa que tem o direito de opinar sobre qual tratamento deve ser
realizado, além da eminente violação ao direito de liberdade de escolhas, estará também
sendo privada a vida de alguma pessoa de maneira arbitrária.
97. Portanto, diante do exposto, está clara a situação de urgência. Não
obstante, o requisito do periculum in mora está plenamente demonstrado, tendo em vista que
se essa Corte não intervir, a opção escolhida pelo Estado, irá violar o principal direito
tutelado pela CADH, o direito a vida, que conforme interpretação feita por esse Colendo
Tribunal, deve ser entendido de maneira ampla, concluindo que todos tem o direito à vida,
28
CtIDH – Caso de lós “niños de la calle” Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala. Sentencia de 19 de
noviebre de 1999. Série C No.63, §144.
29
176
mas a uma vida digna. Assim, comprovada a gravidade, a urgência e o periculum in mora não
a resta alternativa senão a concessão da medida provisória.
VIII – Das medidas reparatórias
98. Nos termos do artigo 63.1 da CAHD, a violação de algum dos direitos
protegidos por este diploma legal exige reparações. Havendo esta Corte entendido que existe
uma relação presumida entre as violações aos direitos humanos e o dano moral 29, esta claro a
necessidade de no caso em concreto a reparação em relação às vitimas. Não obstante, requerse, também, a criação de um órgão nacional em Elizabetia, buscando a defesa dos direitos dos
homossexuais. Requer-se, por fim, a mudança da legislação elizabetana, visando a
legalização do casamento homossexual e do reconhecimento do vínculo familiar proveniente
dessa relação.
IX – Solicitação de Assistência
99. Os representes das vítimas requerem a essa egrégia Corte Interamericana
dos Direitos Humanos que declare: a responsabilidade do Estado pela violação dos artigos
1.1, 2, 8, 11, 17, 24 e 25 da Convenção Americana dos Direitos Humanos. Requer-se,
também, a concessão da medida provisória em benefício das vítimas, tendo em vista a
inaceitável situação de gravidade e urgência. Declarada a responsabilidade do Estado de
Elizabetia, solicita-se que sejam aceitos os pedidos de reparação, gastos e custas feitos em
favor das vítimas.
29
CtIDH – Caso Aloeboetoe e outros Vs. Suriname, 10/09/1993, Série C, No. 15, §§ 15-97.
30

Documentos relacionados

EQUIPE 275 Caso Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor Vs

EQUIPE 275 Caso Serafina Conejo Gallo e Adriana Timor Vs Corte Europeia de Direitos Humanos .......................................................Crt EDH ou CEDH Organização das Nações Unidas ................................................................

Leia mais