amor, uma análise critico-conceitual: mitos
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amor, uma análise critico-conceitual: mitos
41 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues AMOR, UMA ANÁLISE CRITICO-CONCEITUAL: MITOS, CRISES, AMBIVALÊNCIAS E SENTIDOS Edson Francisco Machado de Lima 1 (Orientador) Prof. Dr. Kleber Fernando Rodrigues 2 FAFICA RESUMO: O presente trabalho de pesquisa tem como objeto de estudo o amor na contemporaneidade e busca como objetivo estudá-lo mediante seu fenômeno histórico em seus mitos, crises, ambivalências e sentidos – construídos pela humanidade. Apresentando suas características principais, foca-se em compreendê-lo no tempo presente, de acordo com o fenômeno da modernidade. Diante disso, três populares formas atribuídas ao amor foram analisadas neste trabalho, sendo elas: Eros, Philia e Ágape. A metodologia utilizada se constituiu da abordagem qualitativa e procedimento bibliográfico fundamentada em autores como: GIDDENS (1991), HALL (2001), BAUMAN (2004), GHIRALDELLI (2011), FREUD (1996), ARISTÓTELES (2001), KIERKEGAARD (2005) e MORIN (2000). Partindo desse referencial, analisamos como as sociedades foram modificando os conceitos de amor, no intuito de adequá-los às múltiplas culturas. Por fim, torna-se evidente no resultado deste projeto a ideia de complexidade. Assim, Eros, Philia e Ágape fazem parte de um todo, chamado amor, que se deixa construir e desconstruir de acordo com o pensamento de cada época e cultura, e, isso justifica a constante incerteza que o faz sobreviver a tantas significações, modificando sua aparência, sem perder a essência. 1 Graduando em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Caruaru – FAFICA. Estudante de Iniciação Cientifica – NUPESQ – FAFICA. 2 Doutor em Sociologia - Universidade Sorbonne - Paris V - René Descartes Docente e Pesquisador do NUPESQ- FAFICA. Docente do Instituto Federal da Pernambuco - IFPE. Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 41 42 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues PALAVRAS-CHAVE: Amor; Desejo; Felicidade. ABSTRACT The present research has as an object of study the love in contemporary and seeks as objective study it through his historical phenomenon in their myths, crisis, ambivalence and senses - built by mankind. Presenting its main features focuses on understand it at the present time, according to the phenomenon of modernity. Thus, three popular forms ascribed to love were analyzed in this work, namely: Eros, Philia and Agape. The methodology used was composed of qualitative research and literature procedure based on authors such as GIDDENS (1991), HALL (2001), BAUMAN (2004), GHIRALDELLI (2011), FREUD (1996), ARISTOTLE (2001), KIERKEGAARD (2005) and MORIN (2000). Starting this referential, we analyze how societies were changing the concepts of love, in order to adapt them to the multiple cultures. Finally, it is evident result of this design in view of the complexity. Thus, Eros, Philia and Agape are part of a whole, called love, that lets you build and deconstruct according to the thinking of every time and culture , and this justifies the constant uncertainty that makes surviving so many meanings, modifying their appearance, without losing the essence. KEY WORDS: Love, Desire, Happiness. 1 - INTRODUÇÃO A contemporaneidade tem vivido uma crise generalizada em vários sentidos, em especial no sentido moral. Conceitos que antes eram tidos como essenciais, no momento presente se tornaram nada mais que, meros fatores culturais, julgados como antigos e muitas vezes descartáveis, o que atinge de forma bem Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 42 43 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues significativa os relacionamentos humanos, em todos os seus aspectos. Este trabalho dedicar-se-á a analisar o fenômeno e as múltiplas facetas do amor. Relação esta que ultrapassa, em muitas vezes, os limites do afeto, pois a proximidade se torna tamanha que não são mais dois corpos. Agora passam a existir dois corpos e uma só alma, como prega a grande máxima do casamento cristão: “E os dois formarão uma só carne” (Cf. Mt 19, 5). 3 O Amor na história da humanidade foi retratado e interpretado de várias formas: poesias, músicas, artes plásticas, esculturas, teorias e muitas outras expressões. Estes e muitos outros tipos foram os que a humanidade encontrou para tentar traduzir o que chamavam de amor. Contudo é interessante perceber a vontade humana de querer transportar para ascoisas, o belo do sentimento, podendo agora ser contemplado e tocado fora da pessoa que o sente. Para uma boa análise filosófica tem-se, em primeiro lugar, a tentativa de esvaziar o conceito atual do que se conhece como amor, levando em conta tudo que pode vir a influenciá-lo. E consequentemente por meio de uma linha histórico-filosóficocultural, pretende-se reconfigurar o conceito vislumbrando assim a criação de uma crítica para a atual condição discutida do tema amor. 2 - MODERNIDADE E SUAS INTERPRETAÇÕES É fundamental, antes de qualquer observação sobre algum aspectoda sociedade, questionar-se sobre as realidades atuais e as crises vividas em cada campo de pesquisa, de acordo também, com o seu tempo histórico-social-cultural. 3 BIBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução: Centro Bíblico Católico. 172. ed. São Paulo: Ave Maria, 2007. Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 43 44 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues No campo do relacionamento, vive-se uma época de crise, cuja identidade está sendo colocada contra parede e cada vez mais questionada. Vale ressaltar que, sociólogos, filósofos, psicólogos usam de alguns termos para explicar estes momentos de passagem vividos atualmente. Diante disso, Modernidade tardia (SOUZA, 2010), consequências da modernidade (GUIDDENS, 1990), modernidade liquida (BAUMAN, 2004), pós-modernidade (HALL, 2001), hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004) e muitos outros títulos sustentam essa grande procura pelo “telos” 4 que está guiando essa sociedade. Os modos de vida colocados em ação pela modernidade nos livraram, de uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social. Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças características dos períodos anteriores. No plano da extensão, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; com termos de intensidade, elas alteraram algumas das características mais íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana (GIDDENS, 1990, p. 21). Em consonância com o que foi dito, a existência agora não está fundamentada somente no tradicionalismo, mas o que emerge com força Stuart Hall vai chamar de descentramento do sujeito 5 , ou seja, aquilo que antes se mantinha na periferia graças 4 Ponto ou estado de caráter atrativo ou concludente para o qual se move uma realidade; finalidade, objetivo, alvo, destino. 5 Termo usado por Stuart Hall, em seu livro, A identidade cultural na pósmodernidade (2006). “asidentidadesmodernasestãosendofragmentadasargumentamqueoqueacontece uàconcepçãodosujeitomoderno,namodernidadetardia,nãofoisimplesmentesuade Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 44 45 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues a grande força que o centro exercia nos modos de vida de cada um, está sendo fragmentada e deslocada, dando lugar assim a um grande centro cheio de diversidades. Porém, em constante interconexão modificando-se a si mesmo a todo momento, e, por consequência os modos de pensar e estar na vida social. Nos relacionamentos, essa fragmentação se mostra de forma bem contundente, pois os ideais de um relacionamento seguro e duradouro não mudaram, mas a fácil interação e a grande proximidade causada pela evolução tecnológica, fizeram com que os novos relacionamentos se tornassem mais adaptáveis ao que cada um procura, fazendo assim da liberdade a grande causadora de dúvidas e mantenedora da extensa briga com o tradicionalismo clássico. Em virtude disso, a tradição abre um leque ressignificativo para tratar da ligação entre passado, presente e futuro. Como enfatiza Anthony Giddens: Nas culturas tradicionais, o passado é honrado e os símbolos valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um modo de integrar a monitoração da ação com a organização tempo-espacial da comunidade. Ela é uma maneira de lidar com o tempo e o espaço, que insere qualquer atividade ou experiência particular dentro da continuidade do passado, presente e futuro, sendo estes por sua vez estruturados por práticas sociais recorrentes. A tradição não é inteiramente estática, porque ela tem que ser reinventada a cada nova geração conforme esta assume sua herança cultural dos precedentes. A tradição não só resiste à sagregação,masseudeslocamento.Elasdescrevemessedeslocamentoatravésdeum asériederupturasnosdiscursosdoconhecimentomoderno” (p. 34) Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 45 46 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues mudança como pertence a um contexto no qual há, separados, poucos marcadores temporais e espaciais em cujos termos a mudança pode ter alguma forma significativa.( GIDDENS, 1990, p. 38) Assim, para uma boa análise do amor, enquanto ambivalente, polissêmico e sujeito a constantes crises, a modernidade é um fator primordial. O amor vive em constantes ressignificações seja ele, Eros, Philia ou Ágape, e todas essas especulações são baseadas fundamentalmente na seara da modernidade enquanto influenciadora primeira no campo do conhecimento e da atitude prática de cada ser. Dessa feita, a modernidade histórica foi, e é fundamentalmente marcada pela preponderância do ser subjetivo, que não busca mais, exclusivamente, entender o que se encontra fora dele – como acontecia com os clássicos e os medievais. Os modernos também tinham como característica os ideais românticos, mas agora envolvidos por essa percepção racional, na qual, esta perspectiva muitas vezes se sobressai quando se fala de modernidade. Watt nos diz que: A maioria dos mitos do mundo ocidental origina-se de figuras ou histórias clássicas e bíblicas. Ainda me lembro d[e] quanto me entusiasmou saber que Fausto, Dom Quixote e Dom Juan não eram nem clássicos nem bíblicos, mas criações modernas. (WATT, 1997, p. 14) Partindo dessa premissa, Watt nos mostra que além da racionalidade em foco, o romantismo estava presente e se manifestava de forma bem explícita nas produções artísticas, teóricas, e literárias daquela época. Logo, o amor a ser tematizado nesse trabalho, abordará o ser moderno enquanto, subjetivo, Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 46 47 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues complexo, plural, e diverso coexistindo para fundamentar o sentido da vida que manifesta no amor. Portanto, o amor e a modernidade tem essa relação dialógica e interativa, que envolvem símbolos, por vezes sacralizados, mas que precisam ser pensados de forma pedagógica e filosófica. E como diz Paulo Freire, é preciso sim, dar espaço para o risco que se apresenta em qualquer área do conhecimento, seja ele do campo prático ou teórico. É próprio do pensar certo, a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico, O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo. (FREIRE, 1996, p. 35) 3 - EROS, ÁGAPE E PHILIA – CONCEITOS GERAIS COMUNS Por ser amado, o amor não cabe em si. Por ser encantado, o amor revela-se. Pétala - Djavan Certamente o amor tem características peculiares, que se manifestam de formas diferentes para cada situação, porém, na sociedade moderna é de caráter comum diferenciar o amor em três tipos, ou mesmo três formas de percebê-lo, que seriam: Eros, Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 47 48 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues Ágape e Philia. Logo poder-se-ia elencar aqui vários tipos, subsequentes dos amores escritos acima. Os conceitos comuns são bem distintos, porém através de alguns estudos percebe-se uma correlação de tamanha proporção que se torna difícil conceituar de forma válida aquilo que com o decorrer da história, graças a uma cultura que visava o controle social através de uma alienação generalizada, tirava o foco da origem e do sentido original para assim construir julgamentos morais desprovidos de profundidade filosófica. A internet se tornou o grande portal de conhecimento na atualidade. Os sites de relacionamentos, blogs, e até as páginas de pesquisa são constantemente editadas, segundo os moldes da pessoa que se diz administrador e pode mostrar aquilo que quiser sem nenhuma repreensão. Numa perspectiva comum, bem difundida e encontrada com grande proporção na internet temos para Eros 6 , Ágape 7 e Philia 8 , algumas interpretações interessantes. Ao pesquisar no Google as palavras, Eros, Ágape e Philia encontra-se: Eros, o amor paixão. O amor que cega, que nos faz surdos e mudos. Tira-nos a razão, enlouquece, [...] Philia, o amor amizade. O amor companheiro de todas as horas. O amor que nos faz poder contar com outro a todo e qualquer momento. O amor que nos faz cúmplices, íntimos, amigos.[...] Ágape, amor que tudo compreende. Tudo aceita. Tudo constrói. Um amor que de tão imenso, 6 Eros (em grego Ἔρως; no panteão romano Cupido) era o deus grego do amor. Hesíodo, em sua Teogonia, considera-o filho de Caos, portanto um deus primordial. 7 Ágape (em grego "αγάπη", transliterado para o latim "agape") 8 Philia" (em grego: "φιλíα" transliteração para o latim:"philia") Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 48 49 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues extrapola a vida a dois e é compartilhado com todos os que estão à volta. (MAIA, 2012) Partindo dessa premissa, percebe-se que para o ser humano moderno é necessária essa partição e conceituação individual de cada coisa, pois se assim não for, pode gerar dúvidas sobre o que realmente vem a ser aquilo que esta sendo observado. Por isso, no intuito de se perceber a profundidade existente em cada conceito é necessária a busca e o entendimento das origens. Em caráter convencional tem-se no ocidente, a origem grega como principal fonte de estudos. E a partir desta, este estudo se comprometerá em analisar as crises culturais, a que se atribuem o amor em suas vária acepções e sentidos. 4 - EROS: ORIGENS AMBIVALÊNCIAS E SENTIDOS Várias tradições narram o nascimento de Eros, e, isso fala muito de suas características, pois em cada uma percebe-se alguma das várias atribuições do amor. Uma das mais citadas é a tradição de Hesíodo 9 , no seu poema mais conhecido, chamado: Teogonia 10 , que narra as origens dos deuses, sua genealogia e a organização do universo. Hesíodo diz que Eros era um dos deuses primordiais juntamente com Caos, Terra e Tártaro. E segundo o poeta, Eros, o deus mais belo dos deuses imortais, tinha como função inicial a 9 Hesíodo (em grego: Ἡσίοδος, transl. Hēsíodos) foi um poeta oral grego da Antiguidade, geralmente tido como tendo estado em atividade entre 750 e 650 a.C., por volta do mesmo período que Homero. Sua poesia é a primeira feita na Europa na qual o poeta vê a si mesmo como um tópico, um indivíduo com um papel distinto a desempenhar. 10 Teogonia, também conhecida por Genealogia dos Deuses, é um poema mitológico em 1022 versos hexâmetros escrito por Hesíodo no séc. VIII a.C., no qual o narrador é o próprio poeta. Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 49 50 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues união das partes do mundo ,ou seja, transformar o Caos inicial em Cosmos. É de suma importância perceber toda a cosmologia pregada pelos filósofos iniciais, de certa forma baseia-se na união das partes, para a busca da harmonia. Percebe-se isso em Empédocles, quando tenta explicar que além dos quatro elementos primordiais: água, fogo, terra e ar; existia dentro destes o que a tradição passou a chamar de forças – o amor e o ódio. Por esse motivo, o amor aqui não se identifica com sentimento ou mesmo genitalidade, mas vontade/propensão de união para fins organizacionais e harmônicos. Continuando as observações têm-se: Terra que é a segurança, enquanto Tártaro nada mais é que as “profundezas nevoentas” e insegurança, ou seja, esses dois últimos são matéria. Em contrapartida, Eros e Caos eram forças de coesão e separação responsáveis pela organização do mundo. Diante disso, fica um questionamento: por que se usa na sociedade o Eros com frequência em expressões relacionadas ao sexo? É simples e ao mesmo tempo complexo responder isto, pois, num outro relato mítico Eros é filho de Afrodite, e sua mãe percebe que o filho mesmo com o passar do tempo não cresce (envelhece), e isso entristece Afrodite, até que outra deusa conversando com ela diz que a razão dele não crescer é por que ele se encontra sozinho, e se ela quisesse que ele crescesse teria que ter outro filho. Sendo assim Afrodite não hesitou e teve logo outro filho Anteros, que ao se relacionar com Eros, fez com que este último crescesse e ficasse robusto. Dando assim a característica principal do amor, que ele só pode crescer quando há relação de interação direta e mútua. Então aí está a resposta da pergunta, e mais ainda a grande diferença de Eros e Caos. O primeiro é responsável por atrair tudo que há, e para que aconteça isso é necessário que existam primeiramente dois “corpos” e em segundo plano a interação Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 50 51 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues erótica (relação íntima de vontade). Sendo assim, destes nascerá a harmonia. É importante entender que a relação erótica aqui frisada nada tem a ver com a genitalidade ou sentimento, mas sim tem conexão direta com a vontade como propensão a união em busca do belo/bem/harmonia. Assim o prazer obtido no sexo é semelhante em certo sentido à função erótica primordial, no que concerne a função de gerar o belo. Por isso, no decorrer do trabalho, implicitamente, ficará evidente a interdependência que há entre Ágape, Philia e Eros. Contudo, no decorrer da história este – Eros – passou a ser atribuído somente ao amor enquanto sexual, Philia ficou sendo interpretado como amizade e Ágape como o amor de Deus/fraternal. 4.1 - EROTISMO E SEXUALISMO Em suma, via-se que o Amor em suas origens teve quatro funções como diz Ghiraldelli: “[...]força cósmica, amor erótico/sexual, amor de amizade e amor fraterno cristão[...]”(GHIRALDELLI, 2011. p 11) e que somente as três últimas chegaram até as pessoas de forma explícita. No entanto, quando se fala de atração física ou espiritual, estar-se falando daquele sentido perdido ligado ao cosmos. Não obstante, em tempos modernos tendem-se, em primeiro lugar, a exaltar os amores de mãe, de Deus, da amizade, em detrimento do amor sexual/erótico, quando na verdade, como nos diz Ghiraldelli citando Freud informalmente que: Freud foi o responsável por dizer que todos os amores são derivações do amor erótico. Os amores estariam ligados a uma base de ‘energia’ psicofísica pertinente a cada um de nós, o que ele denominou de Libido. [...] uma vez que, Freud construía sua teoria, a própria Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 51 52 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues noção de amor erótico, no âmbito popular, começou a ser reduzida ao exclusivo ‘desejo de ter relações sexuais’”(FREUD apud GHIRALDELLI, 2011. p 11) Partindo dessa premissa, o erotismo não seria somente o desejo sexual em si, mas em síntese seria essa energia peculiar que se impele também ao sexo, porém mais ainda se dá um sentido/vontade/prazer de vida, manifestado assim também na religião e no relacionamento amical. Zygmunt Bauman no seu livro “AMOR LÍQUIDO – Sobre a fragilidade dos laços humanos”(2004) mais especificamente no Capítulo Segundo: “Dentro e fora da caixa de ferramentas da sociabilidade”(p. 55) nos informa de maneira clara as várias funções do sexo na história da sociedade, mas sobretudo faz uma crítica usando as palavras do sexólogo Volkmar Sigusch, onde ele afirma que “salvo as exceções, nossa cultura não produziu uma ars erótica, mas sim uma scientia sexualis.”(SIGUSCH apud BAUMAN, 2004 p.56) É como se Antero, irmão de Eros e “gênio vingativo do amor rejeitado”, tivesse tomado de seu irmão o domínio sobre o reino do sexo. “Hoje, a sexualidade não condensa mais o potencial do prazer e felicidade”. Ela não é mais mistificada positivamente com êxtase e transgressão, mas negativamente, como fonte de opressão, desigualdade, violência, abuso e infecção mortal. [...] A ciência sexual continua a existir, porque a miséria sexual se recusa a desaparecer”, pois “Eros agora pode ser encontrado em toda parte, mas não permanecerá por muito tempo em lugar nenhum [...] se quiser encontrá-lo Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 52 53 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues escreva para posta restante e mantenha a esperança. (BAUMAN, 2004, p. 56-7) É incrível ver que os relatos mitológicos estão presentes em todos os tempos, pois se por um lado Antero toma o reino do sexo do seu irmão Eros. Por outro lado se fala na modernidade de uma diferenciação drástica entre amor e sexo, eque como nos diz Ghiraldelli citando Kant em seu programa “Hora da coruja”, Kant sendo o Filósofo defensor de uma moral da não objetivação do outro, ou seja, não transformar o outro em um meio, viu no sexo uma atitude quase correta, que para a salvação desta condição indecente, seria o casamento a melhor opção, pois ali haveria a promessa e esta mesmo que não cumprida irá dar o caráter de deliberação consciente aquele ato. 4.2 - DESEROTIZAÇÃO DO AMOR Certamente, na sociedade ao se perguntar a alguém, o que seria o amor, ter-se-ia uma resposta um tanto que clássicoromântica. E se fosse questionado a respeito do que seria o sexo, muitas respostas seriam dadas, porém, será que todas estariam relacionadas diretamente ao amor? Ghiraldelli faz um jogo para explicar em que estado de crise e alienação a sociedade está em relação a Eros. Chegamos à ideia que se expressa de maneira esquisita em nossa linguagem: o “fazer amor é tomado por “fazer sexo”, porém, sem nenhum erotismo. Pois o próprio sexo se reduz ao que é genital. Ora, para um grego, uma conversa assim implicaria erro semântico, algo que não faria sentido. Como poderia o amor se separar de si mesmo, ou seja, de Eros? ”(GHIRALDELLI, 2011 p.17) Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 53 54 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues Daí poder-se-ia perguntar: onde estaria a outra parte de Eros? O filósofo vai ressaltar que, tanto um extremo como outro é incompleto, e faz do conceito um mero termo circunstancial porque: Ao utilizarmos outras palavras para amor, apertamos os botões que fizeram a máquina da linguagem vomitar o estranho vocabulário que fala em ‘amor verdadeiro’, sendo que este, muitas vezes, tem de ser entendido como aquele que se opõe ao sexo. ”(GHIRALDELLI, 2011 p.17) Diante disso, defronta-se com uma crise de identidade conceitual que nem se sabe mais aquilo que é tão intimo e pessoal. “Alienamos o amor. Nós o partimos em dois, e, no cotidiano, nem sempre ficamos com a melhor parte” (GHIRALDELLI, 2011 p17). Nesse sentido, vê-se uma concordância nos pensamentos de Bauman e Ghiraldelli, para assim tentar entender uma mesma crise no que concerne as cisões feitas ao longo das épocas dos conceitos amor e sexo, dando a este entendimento que se tem hoje, um caráter de alienação e depreciação de tais conceitos. No que concerne à atividade sexual Bauman citando Fromm indica que: Nesse papel, o orgasmo sexual “assume uma função que o torna não muito diferente do alcoolismo e do vicio em drogas”. Tal como estes, ele é intenso – mas transitório e periódico. A união é ilusória e, no final, a experiência tende a ser frustrante, diz Fromm, por ser separada do amor [...] Qualquer que seja a capacidade geradora de fusão que o sexo possa ter, ela vem de sua Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 54 55 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues “camaradagem” com o amor. (BAUMAN, 2004 p.62-3) Outros motivos também são atribuídos a esse processo de “deserotização” do amor. Como a demonização do sexo, tanto quanto a idealização perfeita do amado/a fazendo dele um deus intocável e que não pode ser corrompido. Todas essas alienações são cabíveis para a explicação deste fenômeno no qual o amor foi partido em dois. A geração de filhos, por meio do sexo, talvez tenha parte no inicio dessa crise, pois, para os antigos, a geração seria o sinônimo de benção, da parte dos deuses. No cristianismo não foi diferente, em até certo tempo, tinha-se este pensamento, porém com o advento do capitalismo os casais passaram a ter menos filhos, sem que necessariamente passassem a fazer menos sexo. Baseado nisso, com advento da ciência pós-renascimento, onde a Igreja perde sua força, os métodos de contracepção começaram a aparecer mais popularmente. Em contrapartida, a Igreja católica em seu rito de casamento, além da promessa da monogamia, existia também a condição de aceitação do ideal de procriação como requisito importante no ato do matrimônio. Abraçando o Matrimônio, ides prometer amor e fidelidade um ao outro. É por toda a vida que o prometeis? [...] Estais dispostos a receber com amor os filhos que Deus vos confiar, educando-os na lei de Cisto e da igreja?(IGREJA CATÓLICA, Ritual do Matrimônio, p. 35) Sendo assim, na celebração do casamento católico devem coexistir a disposição de procriar e o amor, em sua instância monogâmica, no qual o Bauman nos ajuda a entender isso Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 55 56 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues fazendo uma correlação com a dissociação do sexo, instigador de prazer, mas agora separado das tarefas de procriação. O amor e disposição de procriar eram companheiros indispensáveis do sexo do homo faber 11 , da mesma forma que as uniões duradouras que ajudavam a criar eram “produtos principais” – não “efeitos colaterais”, muito menos rejeitados ou refugos, dos atos sexuais. [...] Libertado das tarefas de construção e ressentido dos esforços exigidos por elas, o homo consumens 12 pode empregar seus poderes sexuais de formas novas e imaginativas.(BAUMAN, 2004, p. 66) Em suma a capacidade sexual era uma ferramenta usada pelo homo faber, para erigir e manter as relações humanas. No homo consumens, não mais preocupado com tarefas de procriação, usa de tudo, no sentido de consumir e obter prazer individual, contrariamente ao que incialmente vimos, no qual, Eros deve ser mútuo e propenso à união harmônica. 5 - INTERPRETAÇÕES SOBRE O PRAZER E DESEJO Decerto, pode-se sentir prazer ao ouvir uma música, comer ou dançar. O prazer seria popularmente aquilo que por algum momento transmite felicidade e “a determinação de suas características depende da função que se atribui às emoções, e por 11 Homo faber: conceito do ser humano como ser capaz de fabricar ou criar com ferramentas e inteligência. 12 O “Homo consumens” é o ser humano que desenvolveu a capacidade de consumir bens naturais sem se preocupar com o futuro. Representa o lado da espécie que é mais ‘demens’ que ‘sapiens’ Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 56 57 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues isso está relacionada com a teoria geral das emoções” (ABBAGNANO, 1970 p.786). Assim, cada pessoa pode sentir prazer ou não em diferentes situações, dependo de fatores internos e externos que estarão em interação naquele instante. Sigmund Freud, nos seus textos explica de forma bem clara a natureza do prazer, suas características, e de que forma ele se mantem no ser humano. Uma das explicações inovadoras utilizadas por Freud, no campo da filosofia e da psicologia, foi a relação do prazer com o mito grego de Thánatos 13 e Eros, para explicar a interação entre vida, morte, desejo, amor e prazer, que por fim geraria o que ele conceitua como libido. No seu livro, O mal-estar na civilização (1996), Freud expõe em primeiro lugar a ideia da, busca do prazer em virtude do sentimento de felicidade. Para isso ele se apega a entender primeiro as ambivalências, que fundamentam o princípio da felicidade, e, até que ponto o sofrimento tem relação direta com esta sensação. Como vemos, o que decide o proposito da vida é simplesmente o programa do principio do prazer. [...] O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. (FREUD, 1996, p 84) Partindo dessa premissa, pode-se dizer que a felicidade não pode ser contínua, sem que haja essa constante e repentina sensação de prazer. Logo, o teórico indica isso, por meio da 13 Tânato (do grego θάνατος, transl. Thánatos, "morte"), também referido como Thanatos, é a personificação da morte. Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 57 58 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues poesia de Goethe, quando o mesmo diz que: “nada é mais difícil que suportar uma sucessão de dias belos”. (GOETHE apud FREUD, 1996, p.84) Sendo assim, essa sensação de prazer só é proporcionada pelo potencial de infelicidade que se estar propenso a sentir, ou seja, o sofrimento, que para Freud, se apresenta de três direções. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens.(FREUD, 1996, p 83) De forma bem direta, o estudioso caracteriza, os relacionamentos humanos como o mais penoso e critico que qualquer outro, porque “Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas” (FREUD, 1996, p 85) e essa atitude de afastamento também parece ser sofrível. Para solucionar essa dicotomia de sentidos, o argumento mais contundente parece ser a inter-relação de necessidade que há nos conceitos, vida e morte, como forças diferentes, porém conectadas. Para fundamentar isso Freud cita o poeta-filosofo Schiller quando este diz que “fome e amor movimentam o mundo”. (FREUD, 1996, p 121) A fome podia ser vista como representando os instintos que visam a preservar o indivíduo, ao passo que o amor se esforça na busca de objetos, e sua principal função, favorecida de Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 58 59 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues todos os modos pela natureza, é a preservação da espécie. (FREUD, 1996, p. 121) É dessa antítese entre instintos do ego e instintos objetais que nasce o conceito de libido. Libido essa entendida agora como, energia destes dois pulsos que controlam o ser humano, o pulso de morte e de vida. Então, conceituando essas duas pulsões tem-se em primeiro lugar que, As pulsões de vida visam então, o estabelecimento e manutenção de formas mais diferenciadas e mais organizadas, a constância e mesmo o aumento das diferenças de nível energético entre o organismo e o meio. [...]E a pulsão de morte propriamente dita, visa à redução completa das tensões, a um (re)conduzir o ser vivo para um estado inorgânico, que seria a forma mais primitiva do ser: o estado inanimado. [...] Esta ambivalência ocorre em todos os relacionamentos humanos, já que as pulsões de vida e de morte, a sexualidade e os impulsos destrutivos e agressivos, estariam no sujeito desde sua concepção. (LAPLANCHE e PONTALIS apud ALMEIDA, 2007, p. 5 6) Confuso poder-se imaginar que as ditas Pulsões de Vida lutam para que o indivíduo permaneça vivo objetivando morrer do seu próprio modo... Neste sentido, Eros seria conservador no sentido de procurar meios de manter a vida, mas se questionarmos mais profundamente, não seria só a Pulsão de Vida, já que Tânatos sempre tende a impulsionar o organismo vivo a retornar ao inorgânico, denotando também uma característica conservadora. Torna-se complicado pensar na Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 59 60 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues possibilidade de que a vida humana possa ter sido evocada do inorgânico, mediante a ação de forças externas, como se o surgimento das formas mais complexas de vida não viesse da própria evolução, dos processos já existentes como matéria animada. Assim, a vida e a morte representam início e fim, respectivamente, ou fazem parte de um todo cíclico sem início e fim (Inorgânico– Orgânico–Inorgânico)?( ALMEIDA, 2007, p. 6) Portanto o amor no seu caráter de prazer é bem mais rico, conceitualmente, do que se conhece comumente. Este amor, tanto abarca os desejos que não morrem no ser humano, como também, trabalham de forma silenciosa proporcionando ao ser o sentido de viver, como indica Ghiraldelli, mostrando essa imortalidade dos desejos, porém, sem externá-lo. A loucura do amor é, portanto o fogo que permite que, quando os desejos sexuais se mostram naturalmente abrandados, ainda exista a chama ou a lembrança desta, de maneira a dar vida longa ao namoro por meio de uma sólida amizade. (GHIRALDELLI, 2011, p 35) E é este fogo que agora vai proporcionar o sentido necessário a vida. A felicidade. Esta, marcada por momentos bons e ruins, mas direcionada sempre a busca do bem para si e para os outros de forma dialógica e interativa. Pois, o sexo é por excelência essa seara das ambivalências, ora sentindo êxtase, ora repulsa. Dessa forma, o sentido/vontade de viver se torna presente. 6 - PHILIA: ORIGENS, AMBIVALÊNCIAS E SENTIDOS Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 60 61 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues Diferentemente de Eros que é fundamentado na necessidade natural, condicionado por características prédeterminadas, tratar-se-á agora de uma relação marcada pela vontade livre deliberada e formadora de princípios de justiça e cidadania. Diante disso, os conceitos a serem tratados no decorrer deste tópico abordará a temática do amor enquanto Philia. Assim, Philia se traduz comumente como amor, ou amor de amizade. Visto que um dos primeiros textos a aparecer esse termo é a Ética a Nicômaco de Aristóteles (século I a. C.), cuja expressão é utilizada nos textos do filósofo para designar amizade, ou mesmo aquele amor que está de certa forma, a serviço de outrem. Outras manifestações de amor também são atribuídas a esse termo, por exemplo, o amor de mãe, as relações trabalhistas e muitos outros. Contudo o aspecto que se perpetuou na história foi a interpretação deste amor enquanto amizade. É importante perceber que, Aristóteles não tem a intenção de provar o sentimentalismo do amor Philia, como se vê corriqueiramente. Ao invés disso, ele fundamenta na atitude da amizade, mais do que nas outras relações, o caráter deliberativo de vontade, ou seja, o uso da liberdade que iniciado numa amizade, apresenta-se como característica louvável para os antigos. Diferentemente dos amores Eros – que se pressupõe dele o prazer individual-físico – e, Ágape – que se apresenta como o amor de Deus, ultrapassando qualquer pensamento humano e manifestando-se na humanidade por meio da caridade incondicional. – podem ser confirmados na fala de Aristóteles quando diz A amizade ajuda os jovens a evitar o erro; ajuda os velhos, amparando-os em suas necessidades e suprindo as atividades que declinam com o passar dos anos; e os que estão no vigor da idade, ela estimula a prática de nobres ações, pois com amigos – “dois que Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 61 62 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues andam juntos” 14 – as pessoas são mais capazes de agir e pensar. (ARISTÓTELES, Ética à Nicômaco, 2001, p.168) Aristóteles elenca três fatores que convivem dentro do ato amical e que são ambivalentes entre si. Estes fatores são: a busca do bem, a utilidade e o prazer. Para o filósofo, a amizade deve estar baseada, sobretudo, na busca do bem do(s) outro(s), assim as características de utilidade e do prazer são presentes quando essa busca do bem acontece. Contudo, se a motivação inicial tem seu fundamento nestes dois últimos, pode ocorrer que amizade se desvie do caráter deliberativo consciente, para se fundamentar uma busca, em que de alguma forma, a amizade se torna, não um fim, mas um meio para alcançar alguma coisa. Assim pensando, o filósofo se torna taxativo e ortodoxo afirmando que “a amizade perfeita é aquela que existe entre os homens que são bons e semelhantes na virtude”(ARISTÓTELES, Ética à Nicômaco, p.172), pois ele mesmo informa por meio da literatura estudada na época que: Uns dizem que a amizade seja uma forma de semelhança [...] outros, pelo contrário dizem que os semelhantes são entre si como <<panelas a bater uma contra as outras>> 15 [...] Eurípedes, por exemplo, diz que <<quando a terra está seca tem desejos de uma tempestade de chuva e quando o venerável céu está cheio de chuva, tem desejos de se abater sobre a terra>> 16 , e Heráclito: “o que se opõe é o que é amigo”, e “de notas diferentes nasce a mais bela melodia”, e ainda: todas as coisas são geradas 14 Homero, Odisséia, XVII, 218. HESIODO, trabalhos e dias, 25 16 Fr. 898, 7-10, NAUK 15 Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 62 63 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues pelo antagonismo” 17 ; enquanto Empédocles e outros sustentam o ponto de vista contrário, segundo o qual o semelhante busca o semelhante. (ARISTÓTELES, 2001, p. 169). Em consonância com isso, as ambivalências existem, e, a partir dessas nasciam os mais variados sentidos dentro da relação de amizade. A busca do bem é primordial, porém a utilidade e a geração de bem estar são necessárias para a harmonização do universo, antes pensada de forma cósmica – Eros e Caos – ligada a natureza. Agora transplantada para o ambiente social-politico humano. Estas características antes elencadas por Aristóteles se configuram muito bem na realidade atual da sociedade, pois, parece haver na contemporaneidade um relativismo tal que atrapalha o trabalho da consciência no agir ético do ser social humano. Philia diz respeito a deliberação, ou seja, escolher não por meios externos, mas sim através de uma razão consciente e desprendida, vinculada à vontade. Diferentemente de Eros, que pode ser interpretado como desejo, ou seja, aquilo que de certa forma não se pode controlar. Nessa perspectiva, Philia nasce também desse desejo em virtude do prazer, pois ninguém se torna amigo de outrem por pura caridade. A amizade se caracteriza, principalmente, por essa busca do bem do outro, porém, o parceiro também deve ser esse agente proporcionador de prazer mútuo. Diante disso, o amor Philia é marcado por esta característica deliberada em vista do bem para si e para os outros, pois o sentido de justiça que está ai intrínseco, é uma atitude, livre e desprendida das realidades de utilidade/funcionalismo e 17 Fr. 8, DIELS. Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 63 64 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues prazer, sendo que estes últimos são consequências inevitáveis do ato da vontade livre. Na contemporaneidade, assim como Eros, Philia se transformou no que diz respeito as suas origens, visto que, esse termo sendo muito usado na formação das palavras, afim de explicar sua etimologia. Um bom exemplo disso é o termo Filosofia (Philia – Filo –amor, Sophia – Sofia – Sabedoria). Então o amor Philia trata dessa eterna busca do bem racional, por meio do relacionamento de alteridade e liberdade. 7 - ÁGAPE: ORIGENS, AMBIVALÊNCIAS E SENTIDOS Ágape, também traduzido como amor, tem sua origem na cultura judaico-cristã. Jesus Cristo 18 , por meio de sua vinda a terra manifestou um amor diferente, ou seja, este amor não se enquadrava nos tipos de amor já conhecidos. Isto acarretou, nos indivíduos daquela época, uma nova concepção de Deus e de amor, pois Deus tornava-se próximo, enquanto este amor baseado na caridade sobrevivesse entre os homens. Esse amor era o amor de Deus para com os homens. Segundo o apóstolo Paulo e outros, como ficou registrado no Novo Evangelho, o amor de Deus tornava-se claro no amor pelo vizinho, fosse esse vizinho amigo, desconhecido, ou inimigo. Jesus rompeu com a ideia de fazer justiça. Submeteu a justiça ao amor. E aposentou a justiça como reparação e 18 Jesus Cristo também chamado de Jesus de Nazaré, é a figura central do cristianismo. Para a maioria dos cristãos. Jesus é Cristo, a encarnação de Deus e o "Filho de Deus", que teria sido enviado ao mundo para salvar a humanidade. Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 64 65 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues colocou em seu lugar a Lei do Amor. (GHIRALDELLI, 2011, p. 10-11) Nessa perspectiva, o cristianismo propagou essas atitudes de Jesus, pois por meio do “perdão” 19 (ARENDT, 1958, p. 23841) o homem pode alcançar a libertação dos pecados, mas só se alcaçaria isso na livre decisão pelo amor incondicional, ou seja, “o homem exerce a liberdade de pecar, mas também ele, pela liberdade do ato do perdão – que deve vir do fundo do coração sincero –, pode recomeçar”(GHIRALDELLI, 2011, p. 39) Assim sendo, “aceitar o preceito do amor é o ato de origem da humanidade [...] passagem decisiva do instinto de sobrevivência para a moralidade.”(BALMAN, 2004, p. 98) Ágape trouxe ao mundo essa característica de evolução humanística e solidária, baseada não somente nos atos externos, mas primeiramente no amor ao próximo fundamentado no amor próprio 20 . Nesse sentido, “[...] ao trazer a liberdade para perto da palavra ‘amor’, contaminou esta ultima em toda sua aplicação. Trouxe também para o interior do amor erótico-romântico, [...], tudo que precisava para ser o amor romântico per excellence, a saber, a liberdade.” (GHIRALDELLI, 2011, p 41) Em contrapartida, esta forma de amar se tornou alvo de várias críticas, fundadas no argumento de que se tornaria impossível viver um amor que necessariamente seja incondicional e logicamente unilateral. Um dos estudiosos que tematizaram este assunto foi Kierkegaard dizendo que: É algo esquisito que uma pessoa não busque o seu interesse pessoal, é esquisito que não devolva as injúrias; é algo esquisito e 19 Arendt atribui a Jesus a invenção do Perdão Amar o Próximo como a si mesmo. (Cf. Mc 12, 31) 20 Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 65 66 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues embaraçoso que perdoe seus inimigos e quase se preocupe em saber se fez o suficiente em favor de seus inimigos, é esquisito que esta pessoa sempre se coloque na posição errada, jamais onde há vantagens em ser corajoso, altivo, desinteressado: tudo isso é esquisito, afetado e meio maluco, em suma: algo que se pode rir, quando alguém, mesmo sendo mundo, está seguro de, como cristão, estar de posse da verdade e da felicidade, tanto aqui quanto lá em cima. (KIERKEGAARD, 2005, p. 234) Nesse trecho, Kierkegaard usa do argumento contraditório para defender a tese de que, logicamente não é possível obter a posse da felicidade, simplesmente pelo fato da adesão e manifestação externa de alguma fé. De forma que, ao fazer obras de caridade, sem a premissa aparente da recompensa, condicione esse discurso muitas vezes exclusivista e hierárquico, defendido pelo Agapismo 21 . É interessante perceber que, Ágape, em seus princípios, detinha-se amor de Deus para com o homem, porém, no decorrer da história, esta perspectiva foi atribuída também ao amor ao próximo. Sendo assim, o homem atingiria a característica de Deus no que diz respeito ao amor. Diante disso, poder-se-ia retirar de Deus a criação desse tipo de amor, e atribui-la ao homem. Sob este aspecto, “o amor natural ainda não é o eterno, ele é a bela vertigem da infinitude”. O amor que não sofreu a transformação da 21 AGAPISMO(in. Agapism). Termo empregado por Peirce para designar a "lei do amor evolutivo", em virtude da qual a evolução cósmica tenderia a um incremento do amor fraterno entre os homens (Chance, Love andLogic, pp. 266 ss.). Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 66 67 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues eternidade é precisamente o amor imediato que pode tornar-se infeliz e cair no desespero, pois: “[...] o que torna o homem desesperado não é a má sorte, mas é que lhe falta o eterno; desespero consiste em carecer do eterno; desespero consiste em não ter se submetido à transformação da eternidade pelo ‘tu deves’ do dever”(KIERKEGAARD apud GUERREIRO, 2010, p.145) Assim sendo, por meio de sua capacidade de pensar, o homem busca num ser superior, a perfeição, que só pode ser pensada a partir da imperfeição, sendo esta última, a realidade existente. Esta, que é dada ao ser humano para que ele busque um sentido de viver, um desses encontrados pela humanidade, foi o que se conhece como Deus. 8 - CONSIDERAÇÕES FINAIS Certamente, conceitos como liberdade e livre-arbítrio, são fundamentais para o entendimento destas questões relacionadas ao amor, muitas vezes pré-conceituado. A grande diferença desses dois, dá-se justamente no campo social, pois o primeiro diz respeito à condição de vontade, e, o outro se fundamenta no respeito às necessidades humanas em favor do bem, para si em primeiro lugar, e, depois para os outros. Desta feita, a escolha mesmo realizada na individualidade através do exercício da liberdade, se projeta para o coletivo. Nisso, o indivíduo que antes buscava sua realização, agora vê-se parte de uma comunidade, vislumbrando assim também as necessidades do outro. É preciso que haja um entrelaçamento desses conceitos de forma dialógica e complexa. Entretanto, o que seria essa complexidade? Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 67 68 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues A complexidade é um problema, é um desafio, não é uma resposta. O que é a complexidade? [...] Num primeiro sentido, a palavra complexus significa aquilo que está ligado em conjunto, aquilo que é tecido em conjunto. E é este tecido que se deve conceber. Tal como a complexidade reconhece a parte da desordem e do imprevisto em todas as coisas, também reconhece uma parte inevitável de incerteza no conhecimento. É o fim do saber absoluto e total. A complexidade tem a ver, ao mesmo tempo, com o tecido comum e com a incerteza.(MORIN, 2000, p. 495) Ao seguir essa ótica, percebe-se que, mais do que a lucidez consciente e o entrelaçamento coeso de ideias, a complexidade necessita dessa constante incerteza, para que pontos antes estipulados como fixos, possam ser descosturados e recolocados onde se possibilite um melhor entendimento dessa harmonia construída dentro da confusão. Esse processo de reconfiguração de conceitos só é possível graças a um constante processo de evolução e involução. Poder-se-ia facilmente se questionar sobre essa ideia de evolução que a sociedade atual eleva, subjugando assim as sociedades que antes viveram, pois é preciso entender a cegueira que aflige a contemporaneidade, como enfatiza Morin. A ciência tornou-se um fenômeno central; o conhecimento científico estimulou o desenvolvimento técnico, o qual evidentemente reestimulou o conhecimento científico, mas esse desenvolvimento científico também permitiu a criação da bomba atômica, etc. Estamos num círculo vicioso em que é justo distinguir aquilo que é Revista Diálogos – N.° 11 – Mar/Abr ‐ 2014 68 69 Amor, uma análise crítico‐conceitual... – Lima & Rodrigues científico, técnico, sociológico, político[...] Mas é preciso distingui-los, não dissociá-los. E há sempre a cegueira, a incapacidade de olhar-se a si próprio. (MORIN; LE MOIGNE, op. cit., p. 34.) Concomitantemente com o que foi dito, o amor vive nessa constante luta por identidade, porém diferente desse sentimento contemporâneo relativista, o amor busca ser entendido por todos. Decerto que as ambivalências e polissemias existem, mas compete ao ser humano, por meio da alteridade, este caráter da decisão em favor do bem social. Em suma, Eros, Philia e Ágape admitem em seu processo conceitual, essa constante crise de identidade. Mediante isso, é preciso fundamentar e entender o amor, de forma que as partes e o todo sejam fortemente equivalentes em essência e existência. Partindo sempre dessa proposta da complexidade, abandona-se o reducionismo, e dá-se lugar à criatividade e ao caos. 9 - REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 1. ed.Saopaulo: Mestre Jou, 1970. ÁGAPE Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81gape>. Acesso em: 16 jul. 2013. ALMEIDA, Bruno Henrique Prates. Pulsão de morte: Convergências e Divergências entre Sigmund Freud e Wilhelm Reich. 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