Crack: um novo nome para uma velha conhecida

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Crack: um novo nome para uma velha conhecida
"Crack: um novo nome para uma velha conhecida"
Alice A. M. Chasin, Irene Videira Lima e Maria das Graças S. de Jesus*
Nos últimos anos a mídia vem destacando o uso, entre os usuários, de uma "nova
modalidade de droga" : o crack.. O que nem sempre é lembrado é que o crack é, na verdade,
uma forma de uso da cocaína como veremos a seguir.
A cocaína é uma substância que foi isolada da planta coca por Albert Niemann em
1860, e desde então já foi utilizada como componente de tônicos, estimulantes e refrigerantes,
inclusive a Coca Cola, de onde foi excluída como ingrediente ativo desde 1903. Seu potencial de
abuso foi rapidamente reconhecido e,
apesar da controvérsia, seu uso foi controlado pelo
"Harrison Act" em 1914.
Embora o uso da coca seja sabidamente anterior à civilização Inca, seu uso é mais
comumente associado a esse império, onde teve grande influência simbólica. A planta era
cuidadosamente cultivada em plantações e foi determinante do poder político como uma das
prerrogativas do sistema.
Há várias lendas Incas relacionadas com a origem da coca. Numa delas, consta que
uma linda mulher foi executada por adultério, cortada ao meio e queimada. De uma parte de
seus restos mortais cresceu a planta coca que se desenvolveu para ser consumida apenas
pelos homens em memória da bela adúltera. Em outra, a coca é descrita como uma planta
criada pelo deus Inti e seus descendentes dela se alimentariam: serviria para mitigar a fome e a
sede dos Incas, os descendentes dos deuses, que assim poderiam resistir `as privações
terrestres. Por ser-lhe atribuída origem divina, seu uso era um privilégio reservado aos membros
das classes elevadas e o mascamento indiscriminado era visto como sacrilégio.
A cocaína é, portanto, de origem vegetal e integra
um conjunto de alcalóides
sintetizados pelo gênero Erytroxylum, planta originária da América Latina. Dentre as
aproximadamente 200 espécies do gênero, há duas largamente cultivada nos Andes e regiões
amazônicas: a Erytroxylum novogranatense variedade trujjilo e a Erytroxylum coca.
A Erytroxylum novogranatense variedade trujjilo é cultivada legalmente no Peru sendo
sua produção destinada à indústria farmacêutica (onde a cocaína é utilizada como anestésico),
sendo que as folhas remanescentes, descocainizadas, são utilizadas como flavorizante de
refrigerantes. As folhas dessa variedade são também comercializadas sob a forma de "ervas",
acondicionadas em embalagens individuais de cerca de 5,0 g e se destinam à feitura de chá,
referido como estimulante e largamente utilizado pelas populações andinas. Cada porção
dessas folhas contém aproximadamente 5,0 miligramas de cocaína, quantidade suficiente para
produzir alteração do humor e aumento da frequência cardíaca.
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A Erytroxylum coca contém entre 0,5 a 2% de cocaína e constitui a principal fonte do
tráfico ilícito. Para se extrair a cocaína da planta, as folhas são maceradas com um solvente
apropriado, após o que são descartados deixando uma pasta grossa marrom (a pasta de coca
bruta) que contém cocaína na forma básica na proporção de 70 a 85%. Esta é a forma de tráfico
para os laboratórios clandestinos onde a pasta é refinada, fornecendo um pó branco, geralmente
na forma de cloridrato de cocaína que é misturado com vários adulterantes, constituindo-se
assim a "droga de rua".
A cocaína na forma de sal - o cloridrato de cocaína - é utilizada pelos usuários por
aspiração nasal ("cafungada"), por via oral ou por injeção intravenosa ("picada"). Esta forma não
se presta para ser fumada porque se decompõe com o aumento da temperatura.
A cocaína que se presta para ser fumada é a cocaína na forma básica - "base livre" da
cocaína - já que se volatiliza às temperaturas elevadas. Esta forma de base livre pode ser
oriunda da pasta bruta ou resultante da extração do pó refinado. A comercialização geralmente
é feita em pequenos pedaços cristalinos, aos quais dá-se o nome de crack, expressão derivada
do ruído resultante da combustão.
O uso da cocaína na forma de crack, ou seja, fumada é comparada em termos de
velocidade de absorção à via intravenosa ("picada"). A extensa área de superfície dos pulmões
favorece a efetiva absorção desta forma da cocaína. A ação é rápida e os efeitos intensos são
comparáveis aos que se seguem a uma "picada" e ocorrem em 1 a 2 minutos. A duração dos
efeitos, também à semelhança da via intravenosa, é considerada curta, o que requer a utilização
de novas quantidades para manter o estado de intoxicação.
O ato de fumar cocaína apresenta o agravante de facilitar o reforço associado à
dependência, tanto por constituir uma via de administração socialmente aceita ( não requer a
parafernália associada a "drogas" ilícitas, como agulhas, seringas, etc ) como por não oferecer
riscos de transmissão de AIDS, hepatite, etc.
Este fato concorre para o desenvolvimento de padrões de uso diversos daqueles
relacionados ao uso do sal de cocaína intranasalmente, quer do ponto de vista das
características do comportamento de busca (dependência se desenvolve mais rapidamente),
como em termos de saúde pública. Além dos sintomas clássicos associados ao uso da cocaína,
como complicações cardíacas (infarto do miocárdio, arritmias, etc.) e cerebrais, o uso de crack
está associado a lesões graves de pulmão e córnea.
Estas características particularizadas
explicam porquê o crack
é considerado,
erroneamente, uma outra "droga" que não a cocaína, a substância de maior potencial de abuso
que se conhece e cujo recrudescimento nas últimas décadas encontra terreno fértil em uma
sociedade com valores que admitem a crença de que a alteração do humor através de
substâncias químicas é correta, aceitável e faz parte da vida.

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