"Desenha aí, ô", ou a anorexia epistêmica

Transcrição

"Desenha aí, ô", ou a anorexia epistêmica
Latusa Digital – ano 1 – N° 6 – junho de 2004
“Desenha aí, ô” ou a anorexia epistêmica
Angela Folly Negreiros*
Os que praticam a psicanálise já devem ter recebido em seu consultório
sujeitos que passaram pela experiência da psicanálise e que chegam com
queixas quanto ao trabalho de interpretação do analista anterior. Há uma
queixa sobre o que podemos chamar de ‘interpretação demais’: “Minha análise
anterior me ensinou tudo sobre meu funcionamento mental, mas isso não
adiantou nada!”. A outra queixa, quanto à ‘interpretação de menos’, é a de que
seu analista não dizia nada, o que foi piorando seu mal-estar.
Hoje há uma novidade, uma queixa nova, contemporânea aos chamados novos
sintomas e, porque não, em relação aos analistas de orientação lacaniana: a
queixa de uma interpretação difícil: “Não fiquei naquele analista porque não
entendia nada do que ele dizia”. Percebemos também que, a esses sujeitos,
não interessa muito entender... Um deles resumiu a queixa com um chiste.
”Tive vontade de dizer: desenha aí, ô”. Esta queixa não é, porém, privilégio de
jovens desprovidos, digamos, de facilidade de expressão e o chiste afinal é um
bom sinal da presença do Outro. Ela pode revelar algo que vai além da
demanda de amor incondicional, da demanda de imagem, da demanda de
facilitar a compreensão, da demanda de fechamento. Isto não é novo. O novo
é que isto vem se apresentando quase como uma epidemia em alguns sujeitos
que nos procuram hoje, nos quais encontramos um tipo de funcionamento
mental que os atrapalha em suas tentativas de seguir a trilha de um saber.
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Aderente da Escola Brasileira da Psicanálise (EBP).
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Estariam mais tontos nossos proponentes à análise, que nem sempre se
apresentam chistosos como aquele rapaz? O certo é que, grau acadêmico à
parte, eles demandam que o analista “desenhe”, com suas palavras, um
esquema de ordem e de paz. Não são pedidos de análise, poderíamos dizer,
são pedidos de cuidados. O trabalho com o saber fica só com o analista.
Interpretar, do latim interpretare. 1. Ajuizar a intenção, o sentido de; 2.
Explicar, explanar ou aclarar o sentido de (palavra, texto, lei, etc.); 3. Tirar de
(sonho, visão, etc.) indução ou presságio; 4.Traduzir ou verter de língua
estrangeira ou antiga; 5. Representar (no teatro, cinema, televisão); 6. Julgar,
considerar, reputar.
A definição do ato de interpretar, tal como lemos no Aurélio, já nos dá uma
pista sobre o que é, desde os primórdios da psicanálise, objeto de discussões.
Pois logo que foi descoberta a força que pode adquirir a palavra do psicanalista
para o analisando sob transferência, passou a ser questionado o que um ganho
de saber pode trazer de imaginário e até de arbitrário para a situação da
análise. Transferência e interpretação formam um par logo descoberto por
Freud, um par que, na direção do tratamento, pode levar ao melhor ou ao pior.
Estamos falando de extremos: de uma análise que chega a um bom termo por exemplo, uma análise terminada – e de uma análise que, por exemplo, é
interrompida por um acting-out ou uma passagem ao ato. Mas falamos
também de condições para que uma análise possa acontecer.
Lacan vai ligar a transferência ao saber. A interpretação não pode operar sem
o sujeito-suposto-saber, ou seja, sem a transferência. O matema do sujeito
suposto saber nos apresenta a face significante da transferência: a partir de
um significante qualquer do analista põe-se em marcha um movimento de
significação, o qual podemos chamar de busca de sentido, e que revela outro
movimento de estrutura, chamado por Miller de fuga de sentido. Este é o nome
de um de seus seminários1, no qual ele afirma: “Uma análise é fazer a
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MILLER, J.-A. “A fuga do sentido”. Em: Lo real y el sentido. Buenos Aires: Edigraf S.A, 2003.
Aula de 12/07/1995.
2
experiência por excelência da fuga do sentido”. As queixas quanto à
interpretação citadas acima dizem respeito às vicissitudes dessa experiência.
Sabemos também que o analista não é só um sujeito suposto saber para seu
analisando, sua causa significante, mas encarna também sua causa objetal. A
cadeia significante deixa um resto.
Se supusermos as queixas do analisando têm origem apenas no trabalho
equivocado do analista, a interpretação demais diria respeito ao que Lacan
chama, em “A Terceira”2, de alimentar o sintoma com sentido: quanto mais
sentido, mais sintoma. Poderíamos falar de um gozo da compreensão, que
aplacaria o mal-estar da livre associação, por exemplo. Já em 1914, Freud
anunciava em “Recordar, repetir e elaborar” a sua dificuldade de promover o
levantamento do recalque via suas comunicações, ou seja, suas dificuldades
com a repetição. Quanto à interpretação de menos, poderia ser um equívoco –
analista mudo não é necessariamente analista semblante de causa de desejo.
Esses dois extremos, o demais e o de menos, revelam uma dificuldade que vai
levar Lacan a ser bem claro em seus exemplos de interpretação. A
interpretação deve ser um meio-dizer, situar-se entre o enigma e a citação,
equívoco e alusão. A interpretação deve dividir. Ela deve despertar o “o que
queres de mim?”, incidindo sobre o desejo. Não gostaria de me alongar nesse
tema bastante abordado, mas já podemos perceber que, para o sujeito da
nova queixa, esses exemplos são o que ele chama de interpretação difícil, que
o faz recuar.
Então, que interpretação para este sujeito? Em primeiro lugar, quem é esse
que se coloca como estando abaixo do que o Outro supostamente quereria? Ou
cujo Que vuoi é quase inaudível?
Seria esta quase idiotização, esta dificuldade de por o inconsciente em marcha,
uma inibição? Aparentemente estamos nos defrontando com sujeitos inibidos,
com precário acesso à simbolização, sujeitos que habitam o subsolo do grafo
2
LACAN, J. “La Tercera”. Em: Intervenciones y Textos 2. Buenos Aires: Ediciones Manantial,
1988.
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do desejo, no curto-circuito imaginário. Ora, a inibição é uma resposta à
angústia que pode, como Freud assinala em “Inibição, sintoma e angústia”,
chegar à depressão. Uma defesa que pode levar o Eu a se esconder no porão.
Em seu seminário “Três respostas do sujeito ante a angústia: inibição,
passagem ao ato e acting-out”, proferido em Miami, Guy Trobas relaciona o
declínio da função paterna à angústia3. O sujeito da modernidade está
abandonado pelo agente da castração, o pai real que irá concretizar a função
simbólica. O enfraquecimento desta função modifica toda a dinâmica de
constituição do saber e de perda de gozo, ficando o sujeito preso à confusão
imaginária do ser e do falo, havendo uma predominância de um gozo fora da
elaboração simbólica que incide sobre o corpo. No entanto, esse sujeito não é
um psicótico; pôde construir seu fantasma e sua história edípica, embora
possamos dizer que a sua tela fantasmática é mais tênue, estando mais sujeito
a uma travessia selvagem que pode levá-lo à angústia. Guy Trobas nos lembra
que a “inibição testemunha certo fracasso do tratamento simbólico do gozo”.
Vai responder a esse perigo com estas defesas: a inibição e a passagem ao
ato. Guy Trobas vai usar uma expressão muito interessante para falar desta
inibição: anorexia epistêmica. Tal como ocorre com o anoréxico, este estado
não apresenta um enigma para o sujeito, que pouco quer saber da falta,
chegando ao analista na maioria das vezes por insistência de um familiar ou do
médico, no caso do deprimido.
Este também é o campo das atuações, em que o sujeito se identifica ao objeto
fantasmático numa travessia selvagem de seu fantasma. Está pronto para
servir de objeto da pesquisa farmacêutica ou objeto consumidor de drogas,
não se apresentando como sujeito no tratamento. É como objeto que se
apresenta ao psicanalista. Mas como um objeto de difícil tratamento pelo
simbólico.
3
TROBAS, G. “Tres respostas del sujeto ante la angustia: inhibición, pasaje al acto y acting-out”
(2002). Em: Logos 1. Buenos Aires: Grama ediciones, 2003.
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Ora, estes indivíduos nos chegam no momento em que, em contato com o
último ensino de Lacan, toda uma questão com relação ao sentido, não só em
sua vertente imaginária, mas também simbólica, se apresenta.
O último ensino de Lacan, tal como Miller o apresenta de seu seminário “O
lugar e o laço”4, propõe outro conceito de inconsciente e outra maneira de
capturar o inconsciente. O desejo se coloca sempre em relação ao Outro,
enquanto o gozo vai se basear no Um. O desejo é universal e o gozo é
particular, é aquilo que não se compartilha. O gozo é opaco, vazio de sentido.
No entanto, Lacan nos apresenta a homofonia jouis-sens. Como tocá-lo e
modificá-lo? Para Miller, a operação da psicanálise consistiria num forçamento
que conduza o gozo ao sentido, para tratá-lo. O que seria esse forçamento? –
forçage. Essa palavra aparece, no Robert, como “cultura de plantas antes da
estação”. Nossa questão hoje é como fazê-lo com a palavra, já que o mesmo
Lacan nos aponta o perigo de alimentar o sintoma com o sentido. O gozo seria
da ordem do Real e o pensamento, ali onde não sou, um Imaginário sobre o
Simbólico Para Miller, o trabalho com os nós, quase que receitado por Lacan,
promoveria um rebaixamento do pensamento. O pensamento pode ser visto
como uma elucubração, palavra que tem em francês una conotação de saber
pouco sério, pouco realista. Afinal, quase que o autor de “desenha aí, ô” teria
razão. O mental é débil, pois a mente não consegue colocar o ser em relação
com o Real, que é fora do sentido. É por aí que se pode entender a afirmação
de Lacan de que Freud transformou a debilidade no inconsciente.
Com esse panorama que vem sendo aos poucos mostrado, como que se
levantando uma cortina, um desafio vem se esboçando: que trabalho para o
analista de hoje? Nossa clínica é cada vez mais a do ato, do qual só podemos
dar conta a posteriori. Mas, e a outra vertente de nosso trabalho, a
interpretação? O que acontece com a interpretação? Creio que vale lançar na
mesa o esforço que estamos fazendo: de um lado, a anorexia epistêmica que
nada quer com a interpretação; de outro, um esforço de poesia, título do
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MILLER, J.-A. “O lugar e o laço”. Em: Lo real y el sentido. Buenos Aires:Edigraf S.A, 2003.
Aulas de 06 e 13 de junho de 2001.
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seminário de Miller do ano passado Para este, o último ensino de Lacan
relativiza a lógica para dar lugar à poesia – “um jogo sobre o sentido sempre
duplo do significante”. Mas para os que sofrem de anorexia epistêmica, há todo
um trabalho para fazer surgir uma “prosa” para depois fazermos poesia. Será a
poesia demais, de menos ou difícil para o sujeito contemporâneo, aí incluídos
os psicanalistas?
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