Fulgurações da memória cultural e da história alemã em Passaporte

Transcrição

Fulgurações da memória cultural e da história alemã em Passaporte
Fulgurações da memória cultural e da história alemã
em Passaporte, de Fernando Bonassi
Pollyanna N. Ramalho Magalhães
UFMG, Graduação, bolsista Fapemig
RESUMO: O escritor brasileiro Fernando Bonassi foi premiado com
a bolsa do Künstlerprogramm do DAAD e com este auxílio escreveu a
maior parte dos 137 minicontos de Passaporte (Cosac & Naify 2001),
dos quais 46 apresentam a Alemanha como cenário principal. O objetivo
deste ensaio é analisar como nesses relatos emergem as temáticas da
memória e da história de uma nação, que se exibe em sobreposições de
paisagens urbanas contemporâneas e resquícios do período da Segunda
Guerra Mundial. Temas como a violência, a pobreza, a imigração e
o sexo são abordados com insistência nas micronarrativas, em que o
esfacelamento dos espaços e dos sujeitos é a tônica. Além disso, serão
discutidos alguns dos aspectos discursivos e gráficos que auxiliam na
compreensão da obra.
Palavras-chave: Passaporte; Fernando Bonassi; história; memória;
contemporaneidade.
ABSTRACT: The brazilian writer Fernando Bonassi was awarded with
a scholarship of DAAD Künstlerprogramm and with this aid he wrote
most of the 137 Passaport’s short-short stories (Cosac & Naify, 2001)
of which 46 have Germany as main scenary. This paper aims to analyse
how emerges the issues of memory and history from travel stories of a
nation, that presentes itself through the overlaps of contemporary urban
landscapes and remains of the Second World War age. Issues such as
violence, poverty, emigration and the sex are dealt with insistence in the
short-short stories, in which the shattering of spaces and subjects is the
keynote. Besides, some of speech and graphic aspects will be debated,
aiding the understanding of the work.
Keywords: Passaporte; Fernando Bonassi; history; memory;
contemporary.
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Este ensaio se detém na identificação dos minicontos do livro
Passaporte, de Fernando Bonassi, que revelam, por meio dos “espaços
de lembrança”, um passado incoerente e destruidor. Tão importante é
observar como os temas da memória e da história são hoje revisitados
com grande insistência no campo literário e nas ciências humanas, o
que demonstra a importância de ambos na reflexão sobre problemáticas
atuais. Para uma compreensão global da obra, pretende-se situar o autor
dentro de uma das vertentes da Literatura Brasileira produzida após os
anos 90, para então compreender como os minirrelatos se relacionam
com os temas da memória e da história.
Fernando Bonassi, conhecido por obras como Tá Louco, Subúrbio,
100 histórias colhidas na rua, 100 coisas, São Paulo/Brasil, também
apresenta em sua formação um forte vínculo com o cinema, a televisão
e o teatro. Em seus minicontos de teor visceral, o autor se volta para o
“lado B” das sociedades contemporâneas. Seus personagens: imigrantes,
prostitutas, índios, traficantes, adúlteros. Nesse sentido, a escolha de
Passaporte como nome para o livro não foi fortuita: trata-se de relatos
que, voltados para a realidade crua das grandes cidades, são o passaporte
para os subsolos, para os grandes problemas que são empurrados como
lixo, em espaços que ficam totalmente à margem nas grandes cidades.
O livro tem o formato de um passaporte, com as mesmas cores
e textura do documento. Uma das diferenças é uma lâmina de barbear
exibida bem no meio da capa. Os minirrelatos que o compõe se referem
aos espaços urbanos e suburbanos do Brasil, mas, sobretudo do exterior:
da Alemanha, da Inglaterra, de Portugal, da República Tcheca, do
México, da França, da Polônia, da Holanda e dos EUA. Tais espaços
dão organicidade à obra e a ela conferem um caráter cosmopolita. É
importante mencionar que nessas narrativas, que apresentam, muitas
vezes, títulos irônicos, o autor deixa bem marcados os espaços/cenários
de cada relato, juntamente com as datas.
Fernando Bonassi se situa cronologicamente em uma geração de
escritores que não apresenta engajamento a um projeto literário utópico
e sim um sincretismo estético, ideológico e cultural. Nessa direção, o
crítico literário Flávio Carneiro observa o descentramento estilístico
que caracteriza a literatura a partir dos anos 90 e demarca uma de suas
distinções:
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O traço marcante da prosa brasileira deste início de milênio,
num processo deflagrado, como vimos, nos anos 80 e
intensificado nos 90, é o da convivência pacífica dos mais
diversos estilos. É certo que não se pode pensar em nenhum
período literário em termos de homogeneidade absoluta –
sabemos que não há, por exemplo, apenas um mas vários
modernismos –, porém o que se vê hoje, ao contrário de
períodos históricos anteriores, é a ausência do embate entre
forças conflitantes. (CARNEIRO, 2008, p. 33)
Essa ausência de embate tratada por Carneiro se relaciona
à convivência das rupturas no plano político e estético como, por
exemplo, nos anos 70 e 80, durante o regime militar, em que os autores
apresentavam posições ideológicas mais centralizadas.
Sobre as publicações realizadas após o ano 2000, Cury (2007,
p. 9) observa como as produções em prosa não apresentam “uma única
vertente fundadora” e sublinha uma de suas características:
A ficção brasileira contemporânea tem suas raízes
no solo urbano, no contexto atual do país cuja feição
predominantemente rural foi substituída pela vida agitada
e violenta que caracteriza suas grandes metrópoles. As
produções culturais contemporâneas insistem, pois, na
encenação do espaço urbano: uma cidade muitas vezes
desgastada, cujo tecido social encontra-se rompido,
metáfora da impossibilidade de reconstituição identitária
positiva do país.
Recuperando as observações de Giorgio Agamben sobre o
contemporâneo e partindo de Roland Barthes e das “Considerações
intempestivas”, de Niezsche, Karl Erik Schøllhammer, em Ficção
Brasileira Contemporânea, trata da urgência e das dificuldades do
escritor contemporâneo em se relacionar com a sua realidade histórica,
e acrescenta:
Assim, a literatura contemporânea não será
necessariamente aquela que representa a atualidade,
a não ser por uma inadequação, uma estranheza
histórica que a faz perceber as zonas marginais e
obscuras do presente, que se afastam de sua lógica.
Ser contemporâneo, segundo esse raciocínio, é ser
capaz de se orientar no escuro e, a partir daí, ter
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coragem de reconhecer e de se comprometer com
um presente com o qual não é possível coincidir.
(SCHØLLHAMMER, 2008, p. 10)
Na mesma obra, Schøllhammer elabora um pequeno mapeamento
das gerações subsequentes ao fim dos anos 60 e define características
semelhantes e rupturas engendradas por autores a partir dos anos 90.
Também é importante mencionar a participação de Fernando Bonassi
com as “15 cenas de descobrimento de Brasis”, encerrando a antologia Os
cem melhores contos brasileiros do século, onde Italo Moriconi seleciona
importantes autores para o gênero dentro da Literatura Brasileira. A partir
daí, tem-se o surgimento de outras antologias, como a de Marcelino
Freire, Os cem menores contos brasileiros do século, em que Fernando
Bonassi também tem participação.
Quanto à dimensão discursiva de Passaporte, não é possível
observar a utilização de apenas um gênero textual. Na obra, o próprio
autor denomina os textos de relatos de viagem, no entanto, alguns
foram escritos, anteriormente à organização do livro, como crônicas
de jornal na coluna “Da rua” (na Folha de S. Paulo) e outros possuem
características próprias do conto. Assim como Bonassi, muitos autores
vêm experimentando novos gêneros como o miniconto e o microconto,
gêneros que ganharam destaque, talvez, pelo reflexo do relativismo de
valores de nossas sociedades e dos diferentes meios de comunicação que
atingem globalmente espaços variados.
Em, por exemplo, “045 não funciona mesmo”, não há uma
narrativa convencional, tipo textual tão presente no gênero conto, como
também não se tem o jornal como suporte, algo característico de uma
crônica. O que se tem são frases paratáticas que nos fazem imaginar
uma cena. “Tapetes de náilon derrubando hóspedes, sachês de privada
vazios, sabonetes peludos no lavatório, chuveiro gotejante (...)”. Desde
esse ponto de vista formal, também não se vê a figura de um narrador
convencional e sim, como conceitua Cruz (2009, p.78), a presença de
um narrador Polaroid, que percorre os lugares como uma câmera, e o
produto final são imagens, flashes de curta-metragem. No entanto, a partir
da metade do minirrelato, há como recurso um retorno à narratividade,
onde se encontram uma personagem e a voz de um narrador crítico.
A respeito das temáticas que atravessam os minirrelatos das
cidades alemãs, o autor tece, através de diversos espaços e referências
temporais, fortes críticas a essa sociedade problemática e aos erros do
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passado tão vivos no presente. No intenso século XX, atravessado por
importantes acontecimentos que deixaram cicatrizes irreversíveis, a
Alemanha, no âmbito global, representa uma das protagonistas e uma das
vítimas dos massacres vividos, principalmente, nas duas grandes guerras.
No final da Segunda Guerra Mundial, o que se vê nas cidades
alemãs e nos países invadidos durante os conflitos é apenas um cenário
assombroso de dissolução da sanidade humana. A população alemã pós45 se encontrava em estado de choque: subnutrição, traumas de guerra,
cidades arrasadas e milhares de mortos.
Adiante o país europeu passa a ser reconstruído e, uma década
e meia após o fim da Segunda Guerra, em 1961, é construído pelos
soviéticos o Muro de Berlim, a materialização da Cortina de Ferro,
estando do lado ocidental a República Federal da Alemanha e, do
lado oriental, República Democrática Alemã, refletindo-se no país as
divisões entre as ideologias capitalista e comunista. No fim dos anos 80,
vem abaixo o Muro de Berlim e junto dele representações simbólicas
ideológicas, que já não podem incorporar os ideais e comportamentos
das sociedades contemporâneas.
No minirrelato “073 história da fotografia alemã”, por exemplo,
há uma menção a Hans Conrad Schumann, soldado da Alemanha Oriental,
figura real que ficou conhecida por uma fotografia tirada exatamente no
momento que pula a cerca de arame farpado, atravessando a divisão da
Alemanha “comunista” para a capitalista. Bonassi, a partir da fotografia,
desenha a deserção de Hans:
073 história da fotografia alemã
No dia quinze de agosto de mil novecentos e sessenta
em um, o soldado da então República Democrática da
Alemanha, Hans Conrad
Schumann, nascido na Segunda Guerra Mundial, sai
correndo de Berlim Oriental, cruza a chamada “terra de
ninguém”, solta o fuzil, põe o pé direito na cerca de arame
farpado que logo virará muro, é fotografado pra História,
pisa com o pé esquerdo em Berlim Ocidental, à época
Alemanha Federal, sorri, é abraçado e continua correndo
até o dia vinte de junho de mil novecentos e noventa e oito,
quando se enforca no jardim de casa, em Kipenberg, já
Alemanha Reunificada.
(Berlim Ocidental / Berlim Oriental – Alemanha –
1998)
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E, como a fotografia de um filme, o escritor ficcionaliza e ao
mesmo tempo trata do real. Hans Conrad que realmente se enforcou
na Baviera, em 1998, alguns anos após a queda do muro. Se a fuga de
Schumann até a sua morte se integrava à memória social da Alemanha
dividida, hoje esse ato, e as suas encenações como a fotografia, enquanto
bem e memória cultural, se consolida dentro do âmbito da história.
No ensaio Memory, Individual and Collective, Aleida Assmann
ressalta o destaque que a temática de memória vem conquistando dentro
dos estudos culturais nas últimas décadas. Para a autora, essa orientação
diante do passado, como fenômeno recente, é amplamente discutida,
reformulada e possui um caráter interdisciplinar.
A respeito da memória social, a autora tem como referencial
Maurice Halbwachs, que enfatiza o desenvolvimento da memória no
âmbito do coletivo, do grupo. Para o sociólogo, os conceitos de memória
e história não podem ser confundidos. Nessa perspectiva, a memória
coletiva “tem por suporte um grupo limitado no espaço e no tempo”
(HALBWACHS,1990, p.86). Essa memória apenas compartilha do
passado o que determinado grupo testemunhou:
A memória coletiva se distingue da história pelo menos sob
dois aspectos. É uma corrente de pensamento contínuo, de
uma continuidade que nada tem de artificial, já que retém
do passado somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de
viver na consciência do grupo que a mantém. Por definição,
ela não ultrapassa os limites deste grupo. (HALBWACHS,
1990, p.81-82)
Para Asmann, o que diferencia as formas de memórias individuais
e sociais das memórias políticas e culturais é que as duas primeiras são
incorporadas (elas se fundam na experiência), enquanto as memórias
políticas e culturais são mediadas, não só dependem de mídias, mas
também de outras formas de repetição, como ocasiões de manifestação
coletiva. Assim, se a memória social é uma forma de memória entre
gerações, as formas de memória política e cultural atravessam suas
próprias gerações.
A partir das discussões trazidas por Halbwachs sobre a memória
coletiva, Assmann observa que as vitórias de uma nação hegemônica são
mais fáceis de serem lembradas, ao passo que, nas nações minoritárias,
sobrevivem as memórias de derrota, criadas pelas perdas devastadoras. É
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nesse sentido que ela ressalta a mediação na memória coletiva nacional,
que apenas integra em sua semântica os discursos de narrativas heróicas
e de martírio, não absorvendo as narrativas de desonra e de culpa, uma
vez que estas ameaçam a autoimagem da nação.
Assmann destaca a situação pós-traumática ligada ao Holocausto
e as duas guerras mundiais, a culpa criada por um momento de paralisia
psicológica, a perda de uma geração de testemunhas e a nova revolução
digital como possíveis motivadores de interesse na memória e no passado.
Além disso, ela deixa claro em Espaços da Recordação, diferente de
Halbwachs, seu ponto de vista acerca das relações entre memória e história:
A polarização brusca de história e memória parece-me
tão insatisfatória quanto a equiparação plena de ambas.
Por isso é que gostaria de sugerir, a seguir, a fixação de
história e memória como dois modos da recordação, que
não precisam excluir-se nem recalcar-se mutuamente.
(ASSMANN, 2011, p. 147)
Assim, o nexo entre os conceitos de memória funcional e memória
cumulativa empregados por Aleida Assman se coloca no mesmo plano,
onde as relações entre a memória social e a abordagem historiográfica
se inter-relacionam. Sobre a significação de memória funcional e
cumulativa, acrescenta:
(...) Denominaremos a memória habitada memória
funcional. Suas características mais marcantes são
referência ao grupo, à seletividade, à vinculação a valores
e à orientação ao futuro. As ciências históricas, por sua vez,
são uma memória de segunda ordem, uma memória das
memórias, que acolhe em si aquilo que perdeu a relação
vital com o presente. (ASSMANN, 2011, p. 147)
Segundo essa perspectiva, a memória cumulativa ou inabitada,
tal como a história, “é a ‘massa amorfa’, aquele pátio de lembranças
inutilizadas, não amalgamadas, que circunda a memória funcional”
(ASSMANN, 2011, p. 148). Portanto, a partir desse raciocínio, a história,
a grande memória acumulada, “o saber objetivo neutro” serve à memória
funcional enquanto depósito de provisões.
Nos relatos de Passaporte, a história torna-se alimento das
representações do presente. A memória cumulativa fulgura no plano
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funcional, viabilizando o olhar crítico sobre o agora. A duas guerras
mundiais com seus eventos traumáticos, os processos de construção do
Muro de Berlim – da queda até à reunificação (Wiedervereinigung) – são
as sombras lançadas no presente por Bonassi.
Em “014 são petersburgo 1998”, no próprio título e no
desenvolvimento narrativo, há alguns elementos de referencial histórico.
O narrador trata do personagem Yuri em dois planos: no passado e no
presente. O passado refere-se ao cerco de Leningrado, em que a cidade
de São Petersburgo estava sitiada pelas forças armadas de Hitler. O
narrador ressalta que “Yuri gostava do inverno por três razões: parava
os alemães, alguma coisa chegava pela trilha do Ladoga congelado e os
cadáveres deixavam de feder”. E acrescenta: “Enquanto esperavam por
isso, a mãe de Yuri lhe dava um cinto pra chupar”. O passado também
se impõe como aterrador quando se infere um possível canibalismo:
Yuri e sua mãe também comeram outras coisas que não
eram exatamente de comer... mas ele não quer falar sobre
seu pai. O que importa é que pelo menos os dois sobraram
e hoje Yuri nem liga que suas calças fiquem caindo.
O fim do miniconto deixa implícitas duas possíveis leituras:
a primeira que ele não tem mais cinto, por isso suas calças no tempo
presente caem, ou a segunda que há uma subnutrição do personagem –
como consequência do passado de guerra – e por isso suas calças caem.
Portanto, nas duas leituras, o passado se impõe no presente de forma
traumática.
Sobre a acepção da memória instituída ou materializada e
pensando na linguagem não apenas enquanto uma domesticação do
passado, Estevão Martins comenta:
Percebe-se dessa forma que rememorar pode
significar também resgatar do esquecimento eventos
marcantes, cuja importância se considera fundamental
para a subsistência tanto do grupo quanto de sua ética.
(MARTINS, 2007, p. 39)
Nesse ponto de vista, entende-se a importância da memória
cultural que, como Aleida Assman ressalta, não está baseada apenas na
bipolaridade de lembrar e esquecer, mas também nas relações triádicas,
em que se tem uma nova categoria, ou seja, o armazenamento de
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informações, fundamentais para a continuação de grupos específicos, na
formação de identidades e na reflexão crítica do presente sobre o passado.
O sociólogo e historiador Michael Pollak (1989, p. 9), sem realizar
uma distinção nítida entre memória e história, suplementa as análises de
Halbwachs com as percepções do caráter político da memória enquanto
modos de dominação. O autor chama a atenção para a necessidade de
se privilegiarem os excluídos e os marginalizados, considerando assim
o estudo das “memórias subterrâneas”, de onde emerge a dimensão
destruidora e opressiva da memória coletiva nacional. Pollak reforça a
dificuldade de tais “memórias inaudíveis” ou “clandestinas” alcançarem,
em algum momento, o espaço público.
Os espaços em Passaporte servem como representação do
presente, onde o passado relampeja em seu aspecto mais comprometedor.
A sua recuperação traumática subverte e coloca à vista o presente
ainda tão contraditório. No miniconto “052 neuengamme”, Bonassi
traz a imagem de um antigo campo de concentração que, além de
monumentalizado, foi transformado em reformatório. Nele, o autor
ironicamente sobrepõe as imagens do passado com as imagens do
presente, demonstrando a permanência de um espaço de exclusão, de
isolamento de jovens infratores: “Afinal, garotos e garotas não conseguem
passar por esse lado, que agora lhes daria liberdade”. O lugar que antes
era de cerceamento mantém-se como espaço de restrição, de Unfreiheit
(não-liberdade). A reflexão desse narrador é despertada através desse
Gedenkstätte (monumento), como os vagões, hoje conservados, em que
eram transportadas as vítimas dos campos de concentração.
Para Pierre Nora (1981), a modernidade representou o fim da
memória coletiva e a aceleração da história. Percebe-se a partir daí a
psicologização do ato de lembrar, que passa do geral para o privado,
embora o autor demonstre como a perda de uma unidade explicativa da
origem desses sujeitos acarretou na necessidade de criação de “lugares
de memória”. Segundo seu ponto de vista, “o sentimento de que não há
memória espontânea” gera a necessidade de legitimação do passado.
Os “lugares de memória” de Nora podem ser considerados como
também “espaços de lembrança” enfatizados por Aleida Assmann,
pois para ele, esses lugares são museus, cemitérios, dicionários, datas,
coleções, “ [...] São os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações
passageiras numa sociedade que dessacraliza” (NORA, 1981, p.13),
vestígios do que não mais existe.
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Para A. Assmann (2011. p. 19) hoje, “O evento do Holocausto não
ficou pálido e descolorido com o passar dos anos, mas, paradoxalmente,
está mais próximo e vivo do que se imaginaria.”. Sobre a intensificação
da problemática da memória, acrescenta:
Isso se deve ao fato de que a memória experiencial
das testemunhas da época, caso não se deva perder no
futuro, deve traduzir-se em uma memória cultural da
posterioridade. Dessa forma, a memória viva implica
uma memória suportada em mídias que é protegida por
portadores materiais como monumentos, memoriais,
museus e arquivos.
Portanto, mesmo com a perda da memória coletiva, com a
extinção da geração de sobreviventes, hoje, tem-se um grande arsenal
de bens culturais (monumentos, museus, livros) que servem à memória
cultural. Porém seria um equívoco acreditar que estes seriam os únicos
meios de suportar todas as formas de recordação, principalmente porque
há outros meios de se estabelecer conexões com o passado, como, por
exemplo, as novas tecnologias. Mas o que se pretende deixar claro é
o fato de que todos esses “espaços de recordação”, criados a partir da
necessidade do não esquecimento da violência, marcam o incômodo de
nosso tempo diante do que também se repete e pode vir a ser.
A mídia literária, os recursos intertextuais e a forma jornalística
são recursos muito utilizados pelo autor. Em “086 crônica do dia
17/08/98”, Bonassi recupera o poema “Todesfuge/Fuga da Morte”, de
Paul Celan, para tratar da abertura de um jardim de infância. Mas a frase
“Estrangeiros Criminosos, Fora!”, escrita no cartaz de teor xenófobo,
desperta no escritor viajante pensamentos que não poderiam ser evitados:
“Mais uma vez não pude evitar os maus pensamentos dessa Alemanha
que ainda chora leites derramados.” E o olhar sobre um país diferente
se engendra quando o cronista ressalva: “Há muitos sinais de que nada
será como antes. Bombas explodem em toda parte, menos aqui”. O
fim do relato suscita, através de uma frase parafraseada do poema de
Celan, o olhar cético do autor e, mais do que isso, o texto demonstra o
estarrecimento diante de uma sociedade reprodutora da violência.
No minirrelato “069 natureza-morta com solitária de aushwitz
(sic)”, há a recuperação das figuras dos poetas Dante Alighieri e de Edgar
Allan Poe para a descrição de um lugar de barbárie, mais dantesco que o
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próprio inferno de Dante, tão tétrico quanto os corvos de Poe. Auschwitz
se emoldura como um quadro da morte, onde se têm crivadas em suas
paredes as marcas dos que ali estiveram.
“069 natureza-morta com solitária de aushwitz1”
Onde cartas não chegaram, onde bolos não chegaram, onde
prepúcios não chegaram e só pro fim se partiu. Escuro como
infinito, mas não passa de um por um de chão medido. Os
pés, a cama calejada do corpo aliviado. Não mais. Seis
paredes sempre, onde cotovelos sem sombra debateramse farpando lascas de ossos, onde gargantas desbocadas
secaram dos seus gritos até miarem como um Poe sádico.
Tantos corvos, tantos cornos que Dante dá piada. Relevos
figurativos cavucados à unha, marcas de dizer claramente
que também ali andaram. Por incrível que pareça.
(Oswiecim – Polônia – 1998)
A partir do famoso romance Berlin Alexanderplatz (1929), de
Alfred Döblin, no minirrelato “025 berlim alexanderplatz”, Bonassi
recupera o personagem Franz Biberkopf e algumas de suas características
para tratar da violência que ciclicamente se perpetua na história. No
romance de Döblin, há toda a inflexão de Biberkopf para o crime. Os
índices alarmantes de desemprego e a vida berlinense empurram o expresidiário (que espancou até a morte sua namorada) novamente para
os pequenos crimes da metrópole. Em Passaporte, tal como Biberkopf,
os sujeitos são os mesmos, “como sinagogas recuperadas”, repetindo os
mesmos erros e “pedindo desculpas”. Essa memória literária se traduz
no relato por meio da aproximação entre o sujeito do passado com os
indivíduos de nosso tempo.
Fernando Bonassi, enquanto escritor viajante e observador,
através dos bens culturais desta Alemanha, como a imagem dos antigos
campos de concentração, hoje, monumentalizados, assim como os
textos de Paul Celan e Alfred Döblin, causa um impacto constrangedor
e simultaneamente reflexivo em seus leitores acerca do presente. Aqui
pode-se também equiparar este olhar, sobre os bens culturais enquanto
A inclusão deste texto aos 46 minirrelatos, que tratam da Alemanha, se justifica
pelo fato de Auschwitz está situado na atual Polônia, país que fora invadido e
governado pela Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial.
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despojos, com a perspectiva do materialista histórico ensejado pelo
filósofo alemão Walter Benjamin:
O materialista histórico os observa com distanciamento.
Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem
sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua
existência não somente ao esforço dos grandes gênios
que os criaram, mas também à servidão anônima dos seus
contemporâneos. Nunca houve um documento da cultura
que não fosse simultaneamente um documento da barbárie,
(...) (BENJAMIN, 1985, p.67)
No entanto, de forma diversa desse materialista histórico, que
desvia seu olhar dos bens culturais dos vencedores, produzidos pela
força e pela morte dos anônimos, aqui nos relatos de Passaporte, o
viajante concentra seu olhar sobre as obras criadas pela derrota. Essa
visão trágica também se evidencia em Benjamin na imagem do Anjo
da História que vislumbra o passado, como um acúmulo de ruínas, sem
perspectiva de progresso. Em Passaporte o incomodo é semelhante e
não é apenas dirigido ao passado, mas também ao presente, pois este
detém os vestígios daquele e tem consciência de que se tornará ruína.
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