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SABERES LETRAS
ISSN: 2176-89271
SABERES
LINGUÍSTICA - LITERATURA - ENSINO
ORGANIZAÇÃO
Micheline Mattedi Tomazi
Aline Moraes Oliveira
LETRAS
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Diretora Geral: Alacir de Araújo Silva
Coordenador do curso de Letras Português/Inglês: Weverson Dadalto
Editor: SABERES Instituto de Ensino Ltda
Organizadoras: Aline Moraes Oliveira
Micheline Mattedi Tomazi
Conselho Editorial - Membros
Alacir de Araújo Silva (SABERES)
Aline Moraes Oliveira (SABERES)
Ana Cristina Carmelino (UFES)
Maria Amélia Dalvi (UFES)
Maria da Penha Pereira Lins (UFES)
Micheline Mattedi Tomazi (UFES)
Vera Márcia Soares de Toledo (SABERES)
Cleonara Maria Schwartz (UFES)
Lúcia Helena Peyroton da Rocha (UFES)
Luis Eustáquio Soares (UFES)
Paulo Roberto Sodré (UFES)
Wilberth Salgueiro (UFES)
Revisão
Arlene Batista da Silva Ferreira
Vera Márcia Soares de Toledo
Weverson Dadalto
Wolmyr Aimberê Alcantara Filho
Editoração: José Carlos Vieira Júnior
Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade Saberes. – v. 8
n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda., 2010
Revista Saberes Letras: Linguística, Literatura, Ensino. Faculdade
Saberes. – v. 8 n.1. – Vitória: Saberes Instituto de Ensino Ltda.,
2010 - Semestral
ISSN: 2176-8927
1. Linguística – Periódico. 2. Literatura. 3. Ensino.
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Sumário
I – Estudos sobre LingUística
1.
2.
A construção da cenografia e a constituição do ethos discursivo
em relatos indígenas da aldeia Pau-Brasil
Adriana Recla
07
Expressão cristalizada ou verbo-suporte seguido de substantivo
com um sentido metafórico
Aucione Smarsaro
20
3.
Fala Vitória! A alternância do imperativo na cidade de Vitória/ES
Elaine Meireles Evangelista
4.
As mulheres da janela: marcas discursivas da alienação e da
passividade nas canções buarqueanas
Janaína de Assis Rufino
5.
Reflexão em torno da proposta da transitividade revisitada
Aline Moraes Oliveira
Carmelina Minélio da Silva Amorim
Lúcia Helena Peyroton da Rocha
6.
Distorção de sonoridade na aquisição do português por
descendentes germânicos
Shirlei Conceição Barth Schaeffer
7.
Humor, discurso e ideologia nas crônicas de César Cardoso
Roberto Sturion Sgarbiero
Ana Cristina Carmelino
33
43
63
80
97
II – Estudos sobre Literatura
8.
Gênero e literatura: cultura matrimonial em Triste fim de
Policarpo Quaresma
Cristina Bongestab
122
9.
A história literário-documental das cartas do bispo Inácio de
Antioquia (século II)
Ludimila Caliman Campos
137
4
10.
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As graças de Pero da Ponte: marinha foça, marinha crespa,
marinha lópez
Paulo Roberto Sodré
151
III – Estudos sobre Ensino
11.
O corpo escrito do mundo: para uma escrita/leitura transalfabética
Luis Eustáquio Soares
Micheline Mattedi Tomazi
12.
Formação continuada de professores alfabetizadores: uma
análise crítica das concepções de leitura e de texto do (PROFA)
Fernanda Zanetti Becalli
Cleonara Maria Schwartz
13.
O ensino do texto no curso de letras: das concepções teóricas
sobre gêneros do discurso às propostas de atividades práticas
Gilton Sampaio de Souza
José Cezinaldo Rocha Bessa
Crígina Cibelle Pereira
Maria Leidiana Alves
14.
A abordagem (inter)cultural no ensino-aprendizagem de
português brasileiro língua estrangeira – análise de uma
unidade didática
Marcos dos Reis Batista
164
177
197
210
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APRESENTAÇÃO
Esta edição da Revista Saberes dá seguimento à sua publicação virtual que começou em 2009. Cientes da necessidade de maior interação com profissionais de
outras instituições de ensino para o desempenho efetivo dos papéis de disseminadores e mediadores do conhecimento e das pesquisas desenvolvidas nas áreas de Linguística, Literatura e Ensino, a intenção de seus editores é que a Revista
Saberes seja reconhecida como espaço profícuo de divulgação de pesquisas e
que tenha um espectro de acessibilidade mais amplo do que pelo meio impresso, uma vez que amplia as fronteiras do conhecimento científico ao propiciar
fonte de pesquisa a um número infinito de estudiosos e pesquisadores.
Neste número, reúne-se uma significativa amostra de resultados de estudos e
pesquisas sobre linguística, literatura e ensino de linguagem, distribuída em
três blocos: Estudos sobre Linguística, Estudos sobre Literatura e Estudos sobre
ensino.
Com essa nova configuração e sua publicação, a Revista Saberes enseja nosso
desejo de semear ideias, provocar reflexões, promover novos caminhos, inquietar a mente dos pesquisadores e estudantes, criar novas perspectivas e, acima
de tudo, promover o “jogo” inquietante e salutar desse saber fascinante da Linguagem. Para nós, a Revista Saberes instala-se na rede virtual como um espaço
propício para o diálogo da língua, do ensino e da literatura.
Em 30 de novembro de 2010
Aline Moraes Oliveira
Micheline Mattedi Tomazi
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Seção I
Estudos sobre Linguística
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A CONSTRUÇÃO DA CENOGRAFIA E A
CONSTITUIÇÃO DO ETHOS DISCURSIVO EM
RELATOS INDÍGENAS DA ALDEIA PAU-BRASIL
Adriana Recla*1
Resumo
Este artigo trata da construção da cenografia e da constituição do ethos21 discursivo no processo de desvelamento da identidade do indígena da aldeia Pau-Brasil, localizada em Aracruz, no Estado do Espírito Santo. Nosso objeto de análise
é o relato Mal (sic) Espírito, publicado na coletânea “Os Tupinikim e Guarani contam...”, produzido por indígenas dessa aldeia, objetivando mostrar, por
meio dos recursos linguísticos e discursivos constitutivos daquele discurso, os
modos como os indígenas se dizem de si e como podemos imaginá-los por meio
dos estereótipos construídos sobre os tupiniquins como grupo social.
Palavras-chave: Relato. Análise do Discurso. Ethos Discursivo. Aldeia PauBrasil
Considerações iniciais
O presente artigo ancora-se nos pressupostos teórico-metodológicos da AD,
uma vez que sua metodologia visa à compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos,
indo além do que fica na superfície das evidências.
Optamos pela AD nas perspectivas propostas por Maingueneau(1993) por entendermos que seus apontamentos trazem uma abordagem atual para os estudos do discurso. Assim sendo, o relato indígena selecionado é tomado por
*1Doutoranda em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) e Professora Adjunta da Faculdade de Aracruz-ES (FAACZ).
1- A palavra ethos será empregada em itálico, de acordo com os trabalhos de Maingueneau.
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nós como discurso, na medida em que constitui um lugar enunciativo, onde se
inscreve o enunciador que se revela por uma voz e por uma corporalidade que
nos permitem depreender a construção de sua imagem da qual inferimos uma
possível relação com o sujeito empírico. Trata-se, desta forma, da noção de ethos
discursivo e da possibilidade de sua verificação no discurso que analisaremos.
Enquanto prática social, o relato possibilita aos indígenas da aldeia Pau-Brasil
instaurar-se na sociedade e exercer seus papéis sociais. Isso revela que as manifestações discursivas da sociedade se concretizam na construção de diferentes
imagens culturais instituídas a partir de um determinado lugar social por meio
da materialização discursiva.
O relato escolhido constitui um espaço disponível para a verificação da imagem
discursiva que o enunciador revela de si por meio da enunciação, isto é, é o
espaço em que ele deixa revelar seu ethos, o qual é depreendido por meio das
marcas linguísticas materializadas no texto, e que pode, por vezes, espelhar o
sujeito indígena “empírico”. Assim, analisaremos o relato como realidade inseparável de seu contexto de produção, visto que o discurso envolve a organização social de comunidades discursivas, e dela é parte integrante.
Os Tupinikins e a aldeia Pau-Brasil
Nossa proposta de identificação da construção da cenografia e da constituição
do ethos discursivo em um relato produzido por indígenas tupiniquins impulsiona-nos a tratar, mais particularmente, desses sujeitos. Em função disso, lançamos um olhar para aspectos da história do indígena da aldeia Pau Brasil.
Os tupiniquins, no Espírito Santo, habitam o município de Aracruz, na região
norte do Estado do Espírito Santo, e estão distribuídos em quatro aldeias: Caeiras Velhas, Pau-Brasil, Irajá e Comboios32, com aproximadamente 2.000 habitantes. Os indígenas dessas aldeias são descendentes do povo tupiniquim, os quais
possivelmente habitavam o litoral brasileiro, quando da chegada dos portugueses ao Brasil. Os anos de contato desse povo com os não índios geraram progressivamente alterações culturais que incidiram na perda da língua materna,
o tupi, e também na de algumas tradições. Devido à assimilação da cultura do
23- Os dados referentes às aldeias tupiniquim foram coletados do Censo Demográfico Indígena realizado pela Funai em 2008.
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branco, o povo tupiniquim fala atualmente apenas o português, mas ocorre a
busca pela recuperação do tupi por meio da inserção de aulas na matriz curricular da escola indígena.
Localizada a 31 km da sede de Aracruz, a aldeia Pau-Brasil possui atualmente
cerca de 400 habitantes, os quais sobrevivem da agricultura, por meio da comercialização de produtos, e do artesanato, que é uma maneira de reafirmação de
sua cultura. A história desse povo é marcada pelo direito à posse de suas terras.
Isso porque no início da década de 60 houve a expulsão de muitos índios da
região e a destruição de antigas aldeias. A coletânea, na qual se encontram os
relatos que selecionamos, é fruto desse quadro histórico.
Cenas de enunciação e a constituição do ethos discursivo
Para fundamentar nossa análise, partimos da proposta de Maingueneau (2005),
quando afirma que todo discurso pressupõe uma cena enunciativa, que é a base
para que o discurso possa ser enunciado. Desse modo, a enunciação cria cenas,
onde as partes interessadas naquilo que veicula o discurso negociam um espaço e um tempo, por meio de construções textuais próprias, com objetivos e
público-alvo também próprios. Essas cenas são: cena englobante, cena genérica
e cenografia. A cena englobante corresponde ao tipo de discurso a que o texto
pertence e é a que nos situa para interpretarmos o discurso do indígena. A cena
genérica está ligada a um gênero, a uma “instituição discursiva”, ao relato. Já
a construção da cenografia não é imposta por um gênero, mas é construída no
texto; trata-se da cena apropriada para um determinado discurso, para validálo, torná-lo pertinente.
A cenografia define as condições de enunciador e co-enunciador, bem como o
espaço (topografia) e o tempo (cronografia), a partir dos quais se desenvolve a
enunciação. Além disso, a caracterização da cenografia ocorre por indícios de
vários tipos, entre eles o próprio texto que a torna possível e as indicações paratextuais (um título, a menção a um gênero, entre outros).
Ainda de acordo com Maingueneau (2005), a cenografia não é simplesmente um
quadro, um cenário, como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior
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de um espaço já construído e independente dele. Ela implica um processo de
enlaçamento paradoxal, na medida em que é, ao mesmo tempo, a fonte do discurso e aquilo que ele engendra.
Além disso, a cenografia pode apoiar-se em cenas de fala já instaladas na memória coletiva, ou seja, no universo do saber e de valores públicos validados.
Ela se caracteriza como um estereótipo autonomizado, disponível para reinvestimentos em outros textos.
Como podemos observar, há uma estreita relação entre cenografia e ethos. Para
Maingueneau (2006a), a enunciação estabelece com o co-enunciador um modo
de comunicação considerado como participando do mundo evocado pelo texto.
Nesta perspectiva, o ethos está ligado a uma cena enunciativa, na qual o coenunciador se inscreve.
Ao integrar a noção de ethos à AD, Maingueneau (2005) passa a concebê-lo como
uma voz e um corpo enunciante, historicamente especificado e inscrito em uma
situação, muito além de um papel ou estatuto. Além disso, propõe o autor que
qualquer discurso possui uma vocalidade específica, a qual o relaciona a uma
origem enunciativa, por intermédio de um tom que abraça tanto a escrita quanto a fala.
Para o teórico, o ethos está diretamente associado a um gênero de discurso. Assim, o pertencimento de um texto a um gênero de discurso permite ao co-enunciador elaborar expectativas em termos de ethos. Daí, afirmar que o ethos está
crucialmente ligado ao ato de enunciação, ou seja, ao próprio dizer do sujeito
que fala e não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador.
O ethos, caracterizador de uma subjetividade da linguagem, é aqui entendido
como construção discursiva. Pensar nesse ethos, portanto, é refletir sobre a manifestação do sujeito no processo discursivo, o qual se materializa na enunciação, deixa marcas no texto, atua no processo de interação e constrói as manifestações discursivas.
Assim, o desvelamento do ethos discursivo do enunciador e sua possível (inter)
relação com o sujeito empírico indígena acontece no jogo interdiscursivo, conforme veremos no relato a ser analisado.
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A construção da cenografia e a constituição do ethos no relato indígena
da aldeia Pau-Brasil
Partimos da hipótese de que o relato selecionado nos fornece uma chave para
a compreensão da realidade da aldeia Pau-Brasil, uma vez que é também por
meio deles que conhecimentos e ideias se tornam realidade para o povo tupiniquim. Os efeitos de sentido se constroem no relato, o qual, por intermédio dos
recursos linguísticos, torna-se produtor de experiências de vida, viabilizando o
acesso a visões do mundo e a histórias de vida do indígena tupiniquim.
Relatos como esse se cristalizam e se repetem toda vez que certas experiências
e saberes são narrados. Pela análise do relato, podemos verificar que esses discursos materializam algo mais do que uma versão de uma história passada ou
uma mera construção subjetiva do povo tupiniquim.
O enunciador, responsável pelo que se diz no discurso, é um sujeito que fala de
um lugar social e relaciona-se, por conseguinte, com os estereótipos do grupo
social que produziu o discurso. O fato de o relato tupiniquim de Pau-Brasil
construir-se pela voz do indígena da aldeia Pau-Brasil faz-nos compreender que
tal discurso implica um ethos de enunciador, apreendido pelos recursos linguísticos, na enunciação, ao mesmo tempo em que nos permite inferir o ethos do
sujeito indígena da coletividade que produziu aquele relato.
A partir da delimitação do objeto de análise, faz-se necessário proceder à observação da maneira pela qual o enunciador se apresenta e organiza o seu discurso.
Recortamos, portanto, como critérios de análise, os mecanismos linguístico-discursivos de que o enunciador lança mão para legitimar o discurso, privilegiando as categorias de pessoas do discurso, cronografia, topografia, a embreagem
enunciativa, o discurso relatado. Essas noções contribuirão para explicar os modos de constituição do ethos discursivo do indígena de Pau-Brasil.
Considerando, assim, os objetivos a que nos propusemos, para que a análise
revele o ethos discursivo do indígena de Pau-Brasil, no gênero relato, apresentamos o relato Mal (sic) Espírito que transcrevemos a seguir:
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A caçada sempre foi muito importante para as famílias Tupinikim, principalmente da aldeia Pau-Brasil.
Às vezes, numa dessas caçadas, acontecem coisas
estranhas que nos deixam assustados. Um fato desse aconteceu comigo e é isso que eu vou contar para
vocês.
Certa noite de lua escura, saímos em três pessoas
para caçar num lugar distante da aldeia. Já passava
da meia noite e os cachorros que nos acompanhavam
não haviam escovado (quando o cachorro toca a caça
para o buraco) nenhuma caça.
De repente, os cachorros começaram a latir no meio
do mato. Nós pensávamos que eles estavam tocando
alguma caça. Passaram-se alguns minutos e os cachorros encovaram algo. Seguimos até o local e com
as lanternas, iluminamos o buraco. Não vimos nada
sair dele, mas os cachorros correram latindo, desesperadamente, como se fossem pegar alguma coisa e logo
encovaram em outro buraco.
Meus companheiros de caçada, que são mais experientes do que eu, logo me disseram que deveríamos
sair daquele lugar. Não hesitei, pois sabia que coisa
boa não era. Então, chamamos os cachorros para sair
dali.
Depois que os cachorros se afastaram do buraco, nós
escutamos um grito fino e forte, dizendo:
- Siiiiit.
Sentimos um calafrio no corpo e, assustados, saímos
daquele lugar com os cachorros.
Antes era só desconfiança, mas depois com o grito,
tínhamos certeza de que quem nos perturbava era o
saci.
Chegamos a esta certeza porque há dezenas de anos,
neste mesmo lugar onde estávamos caçando, morou
um senhor ruim e quando uma pessoa ruim morre
num determinado lugar, o saci aproveita o local para
habitá-lo. Mas a casa do saci é diferente da nossa, ele
geralmente faz sua moradia em um cipoeiro ou sapezal.
Sempre que saímos para caçar e somos os “privilegiados” de encontrar um saci no caminho, voltamos para
casa, porque encontrando com ele, é sinal de azar.
Contada e escrita por Jefferson Francisco Felício
(24 anos) e revisada por Ana Cristina e Jefferson.
(MUGRABI, 2005, p.190-191)
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O relato acima intitulado Mal (sic) Espírito revela, por meio da construção de
sua cenografia, a representação de uma tradição indígena da aldeia Pau-Brasil:
a caçada. À medida que a instância enunciativa constrói a imagem do enunciador com as marcas linguísticas materializadas no relato, há a revelação da
identidade do enunciador com os sujeitos empíricos, o que gera a compreensão
e explicação do contexto indígena.
Vejamos o primeiro recorte: “A caçada sempre foi muito importante para as famílias Tupinikim, principalmente da aldeia Pau-Brasil. Às vezes, numa dessas
caçadas, acontecem coisas estranhas que nos deixam assustados. Um fato desse
aconteceu comigo e é isso que eu vou contar para vocês”. (MUGRABI, 2005,
p.190)
O primeiro excerto desse recorte apresenta as personagens principais e o espaço inicial construído no relato, trazendo o enunciador em primeira pessoa
e apresentando a cronografia, a aldeia Pau-Brasil. Nesse recorte, o enunciador
se marca explicitamente na construção da enunciação por meio da marca de
pessoa eu, o que pode ser corroborado nos indícios linguísticos: “Um fato desse
aconteceu comigo e é isso que eu vou contar para vocês”. Além disso, o enunciador abre um espaço para a aproximação, ao estabelecer uma conversa com o
co-enunciador, e assume seu discurso. O enunciador criado no e pelo discurso
é o indígena caçador.
A cenografia criada no e pelo discurso nesse recorte é a de um caçador que nos
mostra um costume indígena: o ato de caçar em grupo. Isso nos permite afirmar
que ela se apoia em cenas validadas, isto é, instaladas na cultura indígena. A
descrição do indígena caçador ativa no co-enunciador estereótipos sobre o indígena empírico, o que remete ao mundo ético desse grupo.
O enunciador se insere, assim, em uma cenografia comum e também muito praticada pelos indígenas empíricos de Pau-Brasil, a caçada. Notamos que, nesse
recorte, a ocorrência do leit motiv (fio condutor) da história é a caçada.
Nesse sentido, o discurso envereda pelo tom de aventura, que vai paulatinamente dando corpo ao fiador, desvelando a imagem de si e verificando se o
enunciador fala de um lugar legitimado. Associando a caçada a uma atividade
trivial indígena, o ritmo da enunciação incorpora o co-enunciador a um univerSABERES Letras
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so desconhecido e místico.
“Certa noite de lua escura, saímos em três pessoas para caçar num lugar distante da aldeia. Já passava da meia noite e os cachorros que nos acompanhavam
não haviam escovado (quando o cachorro toca a caça para o buraco) nenhuma
caça.” (MUGRABI, 2005, p.190)
Com a marca de tempo “Certa noite de lua escura”, o segundo recorte já traz a
“complicação” do relato e sugere uma nova topografia para a história – “num lugar distante da aldeia”. Com base nesses enunciados, a voz enunciativa anuncia
a cenografia que constrói e que passa a ser desenvolvida em um lugar distante
da aldeia. Temos aqui, quanto à topografia, a oposição entre a aldeia (lugar seguro) e “num lugar distante da aldeia” (lugar desconhecido, diferente). A partir
desse recorte, a marca de pessoa “nós” predomina no relato, como no recorte
“saímos em três”, indicando mais uma vez a voz que desvela a coletividade.
No recorte abaixo, já se entra no plano de desenvolvimento e/ou sequência da
complicação.
“De repente, os cachorros começaram a latir no meio do mato. Nós pensávamos que eles estavam tocando alguma caça. Passaram-se alguns minutos e os
cachorros encovaram algo. Seguimos até o local e com as lanternas, iluminamos
o buraco. Não vimos nada sair dele, mas os cachorros correram latindo, desesperadamente, como se fossem pegar alguma coisa e logo encovaram em outro
buraco.”(MUGRABI, 2005, p.190)
Nos enunciados acima, a cena da caçada remete o co-enunciador a uma cena
validada para o coletivo da aldeia Pau-Brasil, uma vez que se trata de uma
atividade por eles muito praticada. A descrição do enunciador sobre o espaço
e as ações que vão se desenvolvendo são materializadas linguisticamente nos
seguintes enunciados: “De repente, os cachorros começaram a latir no meio do
mato”; “Passaram-se alguns minutos e os cachorros encovaram algo; iluminamos o buraco”; “os cachorros correram latindo”.
Acabamos depreendendo que os mecanismos linguísticos e as marcas utilizadas
para caracterizar a cena revelam e identificam o espaço e consolidam o relato indígena, bem como o caracterizam como um gênero e integram a forma como os
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indígenas de Pau-Brasil dão forma a suas atividades cotidianas. Sob esse prisma, o percurso do enunciador e a construção dos conteúdos representacionais a
partir do contexto não são atividades isoladas, mas integram a cena enunciativa
e aproximam-se dos acontecimentos vivenciados pelos indígenas empíricos.
“Meus companheiros de caçada, que são mais experientes do que eu, logo me
disseram que deveríamos sair daquele lugar. Não hesitei, pois sabia que coisa
boa não era. Então, chamamos os cachorros para sair dali!” (MUGRABI, 2005,
p.190)
Observando os enunciados acima, podemos dizer que eles auxiliam na construção de uma imagem de si positiva do enunciador, por meio de indícios linguísticos (“Meus companheiros”; “mais experientes do que eu”; “Não hesitei”),
o que leva o co-enunciador a recorrer aos estereótipos partilhados na e pela
coletividade indígena, como o respeito ao mais idoso, a fidelidade aos membros
da aldeia, a crença no Saci.
Assim, o enunciador, por meio da voz de um caçador, enuncia discursivamente
com tom de esperteza, levando o co-enunciador a realizar a incorporação de
um ethos de enunciador nobre, altivo, que respeita as regras da comunidade. A
maneira de dizer do enunciador partilha com o co-enunciador o mesmo mundo
ético, ou seja, o dos caçadores indígenas empíricos da aldeia.
O tom no discurso que dá autoridade ao que é dito nesse relato indígena é constituído pelo caráter e pela corporalidade desse enunciador que surge, portanto,
da valorização das representações sociais indígenas, materializadas na fala encenada e apresentadas por intermédio de uma “maneira de dizer” que remete
a uma “maneira de ser” e à participação imaginária em uma experiência vivida pelos indígenas de Pau-Brasil. Desta forma, o co-enunciador incorpora essa
maneira de se inscrever no cotidiano indígena, dando um corpo a esse fiador.
Podemos dizer que o ethos desse enunciador resulta da construção da imagem
discursiva de altivez do indígena de Pau-Brasil, o qual pode ser afiançado pelo
co-enunciador e por seus pares. Assim, a imagem discursiva do indígena de
Pau-Brasil está ancorada em estereótipos culturais que circulam naquela sociedade.
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Vejamos os demais recortes:
Depois que os cachorros se afastaram do buraco, nós
escutamos um grito fino e forte, dizendo:
- Siiiiit.
Sentimos um calafrio no corpo e, assustados, saímos
daquele lugar com os cachorros.
Antes era só desconfiança, mas depois com o grito,
tínhamos certeza de que quem nos perturbava era o
saci.
Chegamos a esta certeza porque há dezenas de anos,
neste mesmo lugar onde estávamos caçando, morou
um senhor ruim e quando uma pessoa ruim morre
num determinado lugar, o saci aproveita o local para
habitá-lo. Mas a casa do saci é diferente da nossa, ele
geralmente faz sua moradia em um cipoeiro ou sapezal.
Sempre que saímos para caçar e somos os “privilegiados” de encontrar um saci no caminho, voltamos
para casa, porque encontrando com ele, é sinal de
azar. (MUGRABI, 2005, p.190-191)
Nesses últimos recortes, o enunciador coloca em cena a presença do saci, marcada pelo indício linguístico “nós escutamos um grito fino e forte, dizendo: Siiiiit.” É interessante perceber a introdução no texto da voz enunciativa do
próprio saci por meio do discurso citado, o que dá credibilidade ao discurso. As
marcas linguísticas “assustados saímos daquele lugar” e “Antes era só desconfiança” trazem nesse recorte a imagem assustada e desconfiada do enunciador
que será depois apresentada como uma imagem de certeza diante do fato ocorrido.
No plano da cronografia, a cenografia constrói-se com o antagonismo entre o
tempo da incerteza (“Antes era só desconfiança”) e o tempo da certeza (“mas
depois com o grito tínhamos certeza de que quem nos perturbava era o saci”,
“Chegamos a esta certeza”), marcados discursivamente no texto. Em relação
ao espaço, os enunciados não deixam marcas explícitas de lugar como aqui ou
ali ou outros marcadores que dão essa idéia de lugar, mas o espaço construído
discursivamente é o espaço de trocas que nesse relato é o da partilha de experiências em relação à atividade de caçar.
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O grito, expresso pela onomatopéia “Siiiiit”, é que praticamente conduz ao clímax e sugere o próximo passo, que é o desfecho, representado por uma “opinião” do enunciador, a de que “Sempre que saímos para caçar e somos os ‘privilegiados’ de encontrar um saci no caminho, voltamos para casa” (enunciado
que evidencia uma decisão), (...) “é sinal de azar” – conclusão da opinião e, ao
mesmo tempo, do relato. Novamente o enunciador utiliza o recurso da modalização autonímica, agora utilizando aspas em “privilegiados”, delegando
ao co-enunciador a tarefa de compreender essa marca linguística em razão do
contexto. Um detalhe interessante apresentado é o de que no “lugar distante da
aldeia” é que se encontra o “mal (sic) espírito”.
Do ponto de vista discursivo, o relato Mal (sic) Espírito apresenta-se com elementos de sua organização interna comuns e reais na vida cotidiana da aldeia
Pau-Brasil, mas que adquirem, em seu funcionamento, um conteúdo com o objetivo de ensinar as tradições e crenças de seu povo. Há simplicidade no relato,
refletindo a tomada de posição diante da vida e da sociedade indígena.
Como o ethos está diretamente ligado à questão da eficácia de um discurso, isto
é, a capacidade de suscitar a crença no co-enunciador, a imagem do enunciador
é construída por meio das características linguísticas e sociais partilhadas por
um mesmo mundo ético, nesse caso, o dos indígenas da aldeia Pau-Brasil.
Assim, o desvelamento do ethos discursivo do enunciador e sua possível (inter)
relação com o sujeito empírico indígena acontece no jogo interdiscursivo, já que
a enunciação se apoia em outros discursos, mesmo que não sejam explicitados
(heterogeneidade constitutiva). Aqui é o caso, por exemplo, do discurso folclórico, do discurso supersticioso, do discurso místico tecido no relato.
Considerações finais
Constatamos, em nossa análise, que a noção de ethos discursivo pode estar relacionada não somente com os mecanismos de interação verbal materializados
nos relatos, mas também com a ativação de estereótipos (natureza social do
ethos), o que funciona como uma estratégia discursiva na abordagem da interrelação de identificação de diferentes sujeitos.
Por meio da análise de aspectos constitutivos do relato como cenografia, ethos,
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interdiscursividade, bem como dos recursos linguísticos representativos desse
gênero, pudemos reconhecer como os discursos materializados nesses textos
constituem o ethos discursivo do enunciador, ou seja, a imagem que revela na
cenografia e sua relação com o sujeito indígena “empírico”.
As características apontadas na análise da cenografia e diante das cenas validadas fazem emergir, na enunciação, um ethos de enunciador destemido e aventureiro. Nessa perspectiva, para chegarmos ao ethos discursivo desse relato fazse necessário encontrar elementos linguísticos que o desvelam no discurso em
relação à imagem do índio de Pau-Brasil. É preciso, portanto, levar em conta a
corporalidade, o caráter e o tom com que a voz enunciativa enuncia, percebendo como o indígena é apresentado.
REFERÊNCIAS
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Paulo: Contexto, 2005a.
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EXPRESSÃO CRISTALIZADA OU VERBOSUPORTE SEGUIDO DE SUBSTANTIVO COM UM
SENTIDO METAFÓRICO?
Aucione Smarsaro1*
RESUMO
Neste trabalho pretendo analisar algumas estruturas lexicais introduzidas com
o verbo dar. Essa análise visa, na medida do possível, distinguir, por meio da
identificação das propriedades sintáticas de cada estrutura, expressões cristalizadas, como dar certo, de estruturas com verbo suporte, especialmente quando
o substantivo predicativo apresenta uma metáfora lexicalizada, como dar um
branco em alguém. As expressões cristalizadas e expressões com verbo suporte
são muito numerosas, porém existe diversidade dentro de cada um dos dois
tipos, por isso o estudo organizado e metódico de qualquer um deles necessita
de um trabalho de classificação. Além disso, em aplicações computacionais, o
tratamento dos dois tipos é diferente, porque as variações formais são diferentes. O método de análise é o do Léxico-Gramática que considera indispensável o
uso de noções sintáticas no estudo da não-composicionalidade e da maioria das
questões semânticas. A aplicabilidade de critérios formais facilita a observação
e aumenta a fiabilidade do julgamento de aceitabilidade e inaceitabilidade das
estruturas por falantes nativos ou linguistas, contribuindo para decidirmos se
se trata de uma expressão fixa ou de verbo-suporte seguido de um substantivo,
mesmo na presença de um sentido metafórico lexicalizado.
PALAVRAS-CHAVE: Sintaxe. Semântica. Expressões cristalizadas. Verbo-suporte. Metáforas.
INTRODUÇÃO
Não é nosso objetivo nesse artigo discutir os diferentes percursos dos estudos
sobre metáfora. Não é nosso interesse delinear uma reflexão em torno de um
*1 - Doutora em Estudos da linguagem PUC/Rio de Janeiro e Professora do DLL/ Universidade Federal do Espírito Santo.
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conceito buscando uma justificativa para afirmar se uma metáfora se trata de um
desvio, um empréstimo ou uma substituição como faz Aristóteles, por exemplo.
Julgamos essa reflexão muito interessante, mas buscamos nos apoiar na noção
de metáfora em que se pode observar a possibilidade, num contexto de uso, de
uma mesma palavra ser usada com sentidos diferentes, levando-se em conta a
natureza dos argumentos que se relacionam com essa palavra.
A metáfora lexicalizada
É importante primeiro observarmos que uma palavra simples como o verbo
comprar e fechar em:
João comprou verduras.
João fechou a porta.
podem se lexicalizar com um sentido metafórico:
João comprou o deputado.
João fechou os detalhes do acordo.
O sentido metafórico lexicalizado de comprou (corrupção) e fechou (finalizar) podem existir também com outros complementos, por exemplo:
João comprou o funcionário.
João fechou o ano com lucros.
Um verbo simples pode ser empregado com sentido metafórico ou não. Se o
contexto tira a ambiguidade, logo, um dos sentidos de comprar e fechar é uma
metáfora lexicalizada, e merece uma entrada lexical separada, mas não deixa
de ser uma palavra simples, que se combina com o sujeito e o complemento de
uma forma composicional.
Já no caso de
João tirou sarro de Maria.
Precisamos das duas partes tirar e sarro para ter o sentido metafórico lexicalizado, por isso a entrada que corresponde à metáfora lexicalizada é não-compoSABERES Letras
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sicional.
O que é a não-composicionalidade?
Essa questão fica mais fácil de compreender e resolver se recorremos às propriedades sintáticas, por exemplo, em:
João e Maria fizeram a volta para casa.
João e Maria fizeram amor.
No primeiro caso, pode-se dizer que:
João e Maria lembram como foi a volta para casa,
mas em relação ao segundo, não podemos fazer a mesma coisa, porque:
(?) João e Maria lembram como foi o amor apresenta um sentido diferente.
Portanto, um sequência não-composicional é aquela em que seu sentido global
não pode ser deduzido do significado de cada elemento constituinte da sequência, como é o caso de tirar sarro.
Uma sequência composicional é aquela em que o seu significado pode ser deduzível, a partir do significado dos elementos constituintes como, por exemplo,
em:
João tirou o dente/ o sapato/ a calça.
ou seja, os exemplos acima apresentam uma variação do complemento do verbo, porém todos denotam um movimento de X extrair algo de Y.
O uso da (?) indica aceitabilidade duvidosa
A questão que se coloca é a seguinte:
Como distinguir se uma combinação de palavras do tipo Dar N1em N2 como, por
exemplo, Dar um branco em alguém se trata de uma estrutura com verbo-suporte
seguido de um substantivo predicativo, com sentido metafórico lexicalizado ou
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de uma expressão cristalizada do tipo Dar N1, por exemplo, Dar certo?
A variação sintática
Isso às vezes não é tão fácil. Vai depender das propriedades sintáticas, mesmo
se é claro que a expressão é metafórica.
A observação das variantes sintáticas é muito importante. Esse é um critério de
distinção, e em numerosos casos esse critério dá um resultado nítido e satisfatório.
VERBO-SUPORTE
A noção de verbo-suporte foi introduzida por Harris (1970), para tratar as relações de nominalização, por exemplo, as frases
João abraçou Ana
= João deu um abraço em Ana
= Ana recebeu um abraço de João.
Observa-se uma relação de equivalência. De acordo com Vale (2001), o verbo
dar na segunda frase funciona como verbo-suporte, é ele que suporta as marcas
de tempo, modo e pessoa do substantivo predicativo abraço. É como se o verbo
dar funcionasse como auxiliar, que tem as marcas características da morfologia
verbal e o substantivo abraço funcionasse como elemento nuclear da frase.
É importante observar também que a transformação conversa com o verbo receber forma outra frase. Baptista (1997) observou que grande parte dos nomes
predicativos que se constroem com o verbo-suporte dar apresenta duas construções sintáticas e semânticas equivalentes: um no sentido ativo e outra no sentido passivo. Acrescenta que à transformação que liga essas frases denomina-se
conversão (GROSS, 1989). Nesse sentido, Baptista (1997) verificou ainda ser possível construir classes em que os nomes aceitam os verbos-suporte dar/levar e
que os que se constroem com dar/receber.
É substantivo abraço, no caso, que impõe as restrições de seleção às posições
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argumentais de sujeito e complemento. Assim, se o substantivo predicativo
abraço, parece não ter muitas restrições de seleção em relação a alguns tipos de
complementos:
João deu um abraço na bicicleta / porta /impressora.
*João deu um abraço no temporal.
Não se pode afirmar o mesmo em relação às restrições quanto ao tipo de sujeito:
*A bicicleta /porta / impressora deu um abraço em João.
*O temporal deu um abraço em João.
O uso do (*) indica inaceitabilidade.
Algumas características do verbo-suporte
•
é praticamente vazio de sentido, ou seja, não exprime um sentido de
transferência) como o verbo pleno, a exemplo João deu o livro à Maria.
•
na medida em que é vazio de sentido, veiculando apenas valores de
natureza gramatical, o Vsup contribui com pouca ou nenhuma informação para a frase, porque pode reduzir-se sem que o conteúdo global
da frase se altere, pois o sentido da informação veiculada se concentra
no nome;
•
tal redução pode assumir diferentes formas, a mais frequente é a formação de um grupo nominal (GN) cuja cabeça é o Npred acompanhado de
todos os seus argumentos.
Como identificar o substantivo predicativo com sentido metafórico em construções com verbo-suporte?
Essa questão contém duas questões independentes:
•
identificar o substantivo predicativo, que é uma questão sintática e semântica, e
•
identificar o sentido metafórico, que é uma questão semântica.
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Alguns nomes substantivos, à semelhança dos verbos e dos adjetivos, têm a
propriedade de exprimir predicados. Reconhecendo-se que certos nomes podem exprimir predicados - os nomes predicativos, algumas questões se colocam:
•
Como é que os nomes predicativos se constroem em estruturas Dar N1
em N2?
•
Qual a natureza das frases com nomes predicativos ?
A operação geralmente é feita por meio da transformação de uma frase simples em uma oração relativa:
João deu calote em Maria = João é caloteiro.
[Rel] = O calote que João deu em Maria prejudicou a loja.
[RedVsup] = O calote de João em Maria prejudicou a loja.
Tal redução, por exemplo, não se aplica a uma frase com verbo pleno:
João deu um livro à Maria
[Rel] = o livro que João deu à Maria.
*o livro do João à Maria.
Uma construção com verbo-suporte sempre pode ser modificada de uma forma
que o verbo-suporte possa ser extraído, sem alteração do sentido do nome.
Em dar calote trata-se de um verbo-suporte, porque se pode obter o sentido de
dar calote sem a presença do verbo dar e no caso calote é um substantivo predicativo, porém não é metafórico.
É o nome predicativo, no caso, calote que impõe restrições de seleção ao preenchimento lexical das posições argumentais, selecionando um sujeito humano
ou animado.
João deu um calote no(a) banco/ loja / faculdade.
O banco deu um calote em João.
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Se o complemento é inanimado, torna-se inaceitável
*João deu um calote na mesa.
*A mesa deu um calote em João.
Já no exemplo,
João deu um sermão em Maria
[Rel] = O sermão que João deu em Maria foi injusto.
[RedVsup] = O sermão de João em Maria foi injusto.
O substantivo sermão é, no caso, verbo-suporte, seguido de um substantivo predicativo. O uso de sermão configura-se como uma metáfora lexicalizada. Para
existir metáfora é preciso que hajam dois sentidos, por exemplo, no caso, isso
ocorre, levando-se em consideração que a primeira acepção de sermão refere-se
a um discurso religioso, geralmente pregado no púlpito de Igreja.
É preciso, portanto, recorrer ao contexto para se observar a relação de equivalência a seguir, em que o sentido de sermão se realiza metaforicamente.
João deu um sermão em Maria na festa de formatura
= Maria recebeu uma advertência /bronca de João na festa de formatura.
Esse substantivo (sermão) apresenta mais restrições de seleção, tanto no que se
refere ao sujeito:
João deu um sermão em Maria.
*A impressora deu um sermão em Maria.
quanto ao complemento:
João deu um sermão na impressora.
O verbo-suporte e o verbo Pleno
As frases com Vsup, às vezes, partilham com os verbos plenos algumas propriedades sintáticas gerais, por exemplo, a transformação em passiva:
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João deu calote em Maria. (verbo-suporte)
[Passiva] = O calote foi dado em Maria por João.
João deu um presente a Maria. (verbo pleno)
[Passiva] = Um presente foi dado à Maria por João.
Entretanto, distinguem-se das frases com verbos plenos na medida em que apresentam propriedades formais que lhes são próprias, como se pode observar
em:
Verbo Pleno - Dar N1 a N2
João deu o livro à Maria.
João deu o meu livro à Maria.
João deu o livro do Paulo à Maria.
Verbo suporte - Dar N1 em N2
João deu calote em Maria.
*João deu meu calote em Maria.
*João deu o calote de Paulo em Maria.
É bom lembrar que em:
João deu calote em Maria = João é caloteiro.
Os substantivos calote e caloteiro são predicativos e existe uma ligação derivacional entre eles, mas um nome pode ser predicativo sem ter nenhuma ligação
derivacional, por exemplo,
João é cara de pau ou João tem cara de pau.
O nome composto cara de pau é predicativo, mas creio que não há ligações derivacionais:
*João foi de uma cara-de-pau-ice total.
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*João cara-de-pauzinho.
Um verbo-suporte seguido de nome predicativo metafórico
Um nome predicativo pode ser metafórico como em:
Deu um branco em João na hora do teste.
[Rel] = O branco que deu em João surpreendeu a todos.
[RedVsup] = O branco de João surpreendeu a todos.
O verbo-suporte pode também apresentar variante:
[Rel] = O branco que João teve surpreendeu a todos.
[RedVsup] = O branco de João surpreendeu a todos.
Dar um branco com o sentido de esquecimento/apagamento de informações
sempre vai exigir um complemento humano.
Em caso de dúvidas, pode-se recorrer a outras transformações sintáticas para se
constatar se é possível (aceitável) ou não o uso de outras frases, sem a presença
do verbo dar e a manutenção do sentido, como em:
Basta um branco e não faço mais a prova.
Depois de um branco João desistiu da prova.
Depois do branco de João ninguém mais falou nada.
Se não fosse aquele branco teria respondido a questão.
Essa sensação de branco não pode voltar a acontecer.
Se uma dessas construções é compatível com o sentido metafórico, trata-se de
uma estrutura com verbo-suporte. Observa-se também que em:
João deu um branco na prova
= João teve um branco na prova.
*A prova recebeu um branco de João
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É comum existir substituições de um verbo-suporte por outro, com variação
semântica ou estilística característica. O mesmo não é possível em:
Deu um branco em João durante a prova.
*teve um branco em João durante a prova.
*a prova teve um branco de João.
A expressão dar um branco evoca a pessoa que procura informações em sua mente e não consegue resgatar nenhuma ideia, nenhuma lembrança do que ela deseja expressar. A cor branca é uma metáfora da ausência. O branco é percebido
como uma ausência de outras cores ou de manchas.
A EXPRESSÃO CRISTALIZADA
Da mesma forma uma expressão cristalizada pode não ser metafórica, como
em Dar certo – Dar Nadj
Deu certo o emprego de Maria = Maria está bem no emprego / Maria conseguiu o emprego.
[Rel] = *O certo que deu em Maria foi o emprego.
[RedVsup] = *O certo de Maria foi o emprego.
Observa-se que não é possível realizar a mesma transformação sintática quando
não se trata de verbo-suporte. As restrições sinalizam para a fixidez da estrutura caracterizando-a como uma expressão cristalizada.
ou pode ser metafórica, como no exemplo:
Deu a louca em Maria, quando viu João = Maria ficou feliz.
[Rel] = *A louca que deu em Maria preocupou a todos.
[RedVsup] = *A louca da Maria preocupou a todos = * Maria é louca.
Dar certo e dar a louca não têm as mesmas possibilidades de variação sintática
de dar calote. É lógico classificar as três expressões em categorias distintas – dar
calote uma expressão com verbo-suporte e dar certo e dar a louca como expressões
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cristalizadas.
Qual é o limite entre construções com verbo-suporte dar e expressões cristalizadas com o verbo dar?
O limite é a aceitabilidade de formas sem o verbo dar como no exemplo:
Depois de um branco não respondi mais nada na prova.
A dificuldade que podemos ter para dissociar o verbo do substantivo deve se
dar pelo fato de que na maioria das frases em que branco quer dizer “emoção
paralisante”, ele está acompanhado do verbo dar.
Em outras palavras, essa expressão funciona quase como expressão cristalizada.
Porém, deve existir um critério para determinar a fronteira entre expressões
cristalizadas e construções com verbo-suporte.
O critério que é usado é o da aceitabilidade, não da frequência da construção
sem o verbo. E isso está bem assim, porque a aceitabilidade é mais fácil de julgar do que a frequência. A frequência varia em função do gênero, do estilo, do
campo semântico, da região, do tempo e do locutor, mais facilmente do que a
aceitabilidade.
Neves (1996) assinala que existe um continuum entre uma construção livre e a
construção com verbo-suporte. A escolha de incluir a noção de continuum na
descrição é uma escolha teórica e metodológica.
Como já dissemos, o limite entre construções com o verbo-suporte e expressões cristalizadas é aceitabilidade de formas sem dar. Tomemos como exemplo
o caso a seguir, que muitos consideram como expressão cristalizada, e por meio
da aplicabilidade de critérios que buscam as tranformações sintáticas, observamos que se trata de um verbo-suporte.
João deu um pulo ao banco.
Se consideramos aceitável a frase:
Depois de um pulo ao banco, voltei para casa.
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Logo, podemos afirmar que em João deu um pulo ao banco temos a realização do
verbo dar como verbo-suporte, porque não se observa nenhum impedimento e
nenhuma dificuldade de aceitabilidade para que um falante nativo possa interpretar adequadamente o resultado da tranformação acima.
Por outro lado, se uma expressão com dar se torna de aceitabilidade duvidosa
cada vez que se tira o verbo dar, aí a expressão está no meio do continuum entre
construções com verbo-suporte e expressões cristalizadas.
O estudo das construções com verbos-suportes e nomes predicativos representa
um fenômeno linguístico de grande importância, considerando que é um fenômeno de alta produtividade, que ainda não tem recebido a importância devida
nos manuais escolares, além de ser também praticamente ausente das gramáticas, mesmo as de nível universitário.
REFERÊNCIAS
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FALA VITÓRIA! A ALTERNÂNCIA DO
IMPERATIVO NA CIDADE DE VITÓRIA/ES
Elaine Meireles Evangelista1*
RESUMO
Este artigo relata os resultados da pesquisa sobre a alternância no uso do imperativo gramatical na cidade de Vitória no que diz respeito às formas contemporaneamente associadas ao modo indicativo fala ou ao modo subjuntivo fale
em enunciados afirmativos e negativos de diálogos da fala e em textos escritos
sem formato de diálogo, no contexto discursivo do pronome você. O corpus do
trabalho se constitui de entrevistas do projeto “Português Falado na Cidade de
Vitória” (PORTVIX), da Universidade Federal do Espírito Santo e de folhetos
de propaganda e títulos de colunas de jornais veiculados nos jornais A Gazeta e
A Tribuna.
Palavras-chave: Imperativo gramatical. Variação. Sociolinguística.
INTRODUÇÃO
Os estudos da variação do imperativo em algumas localidades brasileiras revelam o distanciamento entre a norma gramatical e o uso do imperativo e observam que essa variação aponta para uma mudança linguística, tendo em vista
que, diferentemente do registro da tradição gramatical, formas imperativas associadas ao indicativo (fala/olha/deixa/dá/vem) ocorrem amplamente em contexto
de uso do pronome você. Exemplos da fala capixaba, abaixo, ilustram essa variação:
•
“Oh! tô avisando... depois não... FALE que eu não avisei”
•
“Depois não FALA que eu não avisei.”
1*- Licenciada em Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Espírito Santo.
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•
“OLHE eu vou dizer uma coisa pra você”.
•
“OLHA só hoje em dia tá bem”.
O uso do imperativo não tem se revelado como marca de diferenças sociais,
contudo, o aspecto geográfico tem sido visto como decisivo na alternância das
formas do imperativo, isso porque é possível perceber um recorte geográfico
quanto ao uso do imperativo gramatical associado à forma indicativa e à forma subjuntiva. Esse recorte é um fato atestado por pesquisas já realizadas por
Scherre et al. (1998); Sampaio (2001); Cardoso (2004); Lima (2005); Jesus (2006);
Scherre (2003, 2004). Os resultados dessas pesquisas associam, predominantemente, a forma subjuntiva à região Nordeste e a forma indicativa às regiões
Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Revelam também que há uma grande variação do
imperativo em diálogos falados, enquanto na escrita sem formato de diálogo a
tendência é a predominância do subjuntivo, o que segundo Scherre et al. (1998)
se deve a uma questão sintática, pois essa forma garantiria a interpretação do
imperativo.
O aparato teórico utilizado são os pressupostos da Teoria da Variação Linguística de base laboviana, que surgiu nos Estados Unidos na década de 1960 com
os estudos pioneiros de Weinreich; Labov; e Herzog (1968) e de Willian Labov
(1963). Os estudos de Willian Labov na Ilha de Martha’s Vineyard nos Estados
Unidos, em 1963, contribuíram para evidenciar a importância da influência de
fatores sociais para o entendimento do processo de variação e das mudanças
linguísticas. Os resultados da pesquisa mostraram que tanto traços sociais e
linguísticos condicionavam a variação linguística. A Teoria Variação assume
que a heterogeneidade é uma característica inerente às línguas naturais humanas e considera que para descrever e explicar fenômenos linguísticos variáveis
é preciso considerar tanto fatores linguísticos, quanto extralinguísticos. Para a
Sociolinguística, a variação é um fenômeno estruturado e regular que ocorre na
correlação entre a expressão verbal e o ambiente social, sendo, assim, passível
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de sistematização. (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 200621; LABOV, 2008)32.
Nessa pesquisa, de natureza quantitativa, os dados foram submetidos ao tratamento estatístico dos programas Varbrul, na versão Goldvarb X (PINTZUK,
1988; SANKOFF, 1988; SANKOF, TAGLIAMONTE & SMITH, 2005; MOLLICA
& BRAGA, 2003; TAGLIAMONTE; 2006; GUY & ZILLES, 2007).
Analisamos a alternância no uso do imperativo gramatical em 34 entrevistas de
informantes do projeto PORTVIX, da Universidade Federal do Espírito Santo,
projeto que faz parte do Núcleo de Pesquisa em Linguística do Espírito Santo
(NUPLES). Este projeto, de orientação variacionista, iniciou-se em 2002, com o
objetivo de gravar a fala espontânea de informantes nascidos em Vitória, divididos segundo as variáveis relativas ao sexo do informante, à sua idade e à sua
escolaridade. O registro sistemático da linguagem oral usada em Vitória veio
suprir uma necessidade dos estudos de natureza sociolinguística no Espírito
Santo, uma vez que não havia nenhum registro dessa ordem no Estado. A análise foi feita em relação às formas do imperativo gramatical contemporaneamente
associadas ao modo indicativo (fala/olha/deixa/diz) ou ao modo subjuntivo (fale/
olhe/deixe/diga) em enunciados afirmativos e negativos de diálogos da fala, no
contexto exclusivo do pronome você.
Analisamos também folhetos de propaganda e títulos de colunas de jornais veiculados em dois jornais impressos, o jornal A Gazeta e o jornal A Tribuna, a fim
de observarmos de que forma se dá o uso do imperativo em textos sem formato
de diálogo. Importa dizer que, após a coleta e análise de vários textos escritos
sem formato de diálogo, decidimos apenas mensurar os textos que fossem diferentes da tradição gramatical, isso se deve ao fato de a grande maioria dos textos sem formato de diálogo estar de acordo com a tradição gramatical, ou seja,
o imperativo associado à forma subjuntiva. Sendo assim, decidimos pesquisar
que fator motivaria ou favoreceria o uso do imperativo associado ao indicativo
nesses textos.
21- Versão original: Weinreich, Uriel, LABOV, William; & HERZOG, Marvin I. Empirical
Foundations for a Theory of Language Change. Directions for Historical Linguistics: A
Symposium. Austin: University of Texas Press, 1975, pp.95-199.
32- Versão original: LABOV, W. Sociolinguistics patterns. 3. ed. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1975.
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Nosso principal objetivo com esta pesquisa é contribuir para o mapeamento do
imperativo no Brasil, haja vista a escassez de estudos sociolinguísticos no Estado do Espírito Santo. A expectativa era a de que os dados do projeto em questão
evidenciassem alinhamento da fala de Vitória com a de outras partes da região
Sudeste, que privilegiam a forma contemporaneamente associada ao indicativo
no contexto do pronome você (fala/olha/deixa/diz). Já na escrita sem formato de
diálogo a tendência é a predominância do subjuntivo (fale/olhe/deixe/diga), o que
segundo Scherre et al. (1998) se deve a uma questão sintática, pois esta forma
garantiria uma interpretação adequada do imperativo.
Análise foi feita em função da variável dependente do uso do imperativo associada à forma indicativa e à forma subjuntiva em contexto de pronome você,
numa perspectiva sincrônica da fala e em textos sem formato de diálogo. Nossa
hipótese era a de que na fala dialógica em enunciados afirmativos predominasse o uso da forma associada ao indicativo, o que contraria a tradição gramatical
que não considera o uso do imperativo na forma indicativa em contextos de
pronome você. Em enunciados negativos esperávamos que houvesse um predomínio do uso da forma associada ao subjuntivo, nos termos previstos pela tradição gramatical. Já nos dados de escrita sem formato de diálogo, nossa expectativa era a de que o uso da forma associada ao subjuntivo fosse mais recorrente
preservando a tradição gramatical, isso porque o uso dessa forma garantiria a
interpretação de um ato de fala diretivo, sendo, portanto, uma questão de ordem sintática (SCHERRE et al., 1998).
Os grupos de fatores analisados na fala foram sexo, faixa etária, escolaridade,
discurso direto ou reportado, sujeito expresso ou presença de vocativo; marcador discursivo e polaridade da estrutura.
Nas 34 entrevistas codificamos e analisamos 266 dados, sendo 260 associados à
forma indicativa e somente 06 associados à forma subjuntiva, conforme mostra
a tabela 1.
Tabela 1 - Distribuição dos dados em relação à frequência de uso imperativo
associado à forma indicativa e à forma subjuntiva. (Rodada com todos os dados).
Variável Dependente
Número de Ocorrências/ Total
Porcentagem
Forma associada ao indicativo
260/266
97%
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Forma associada ao subjuntivo
6/266
3%
Total
266/266
100%
O percentual da frequência associada à forma indicativa é muito significativo,
pois mostra a quase invariância do fenômeno analisado na fala de Vitória. Esse
resultado indica que fatores sociais e/ou linguísticos podem condicionar o uso
quase invariável do imperativo gramatical na fala capixaba.
Na análise dos dados, a primeira rodada mostrou que alguns fatores são fatores
de real efeito categórico, ou seja, favorecem somente o uso da forma associada
ao indicativo. Os grupos de fatores de efeito categórico que foram desconsiderados são: presença de vocativo (seja pré ou pós-verbal, ou ambos) e casos dupla negação. Porém outros grupos de fatores de efeito categórico, mas julgados
como passíveis de variação, foram amalgamados para que se produzisse uma
rodada de pesos relativos, que, ao efetuar cruzamentos entre os grupos de fatores, seleciona os que mostram significância. Após as amalgamações, o resultado
geral ficou assim:
Tabela 2 - Distribuição dos dados em relação à frequência de uso do imperativo
associado à forma indicativa e à forma subjuntiva. (Rodada com dados amalgamados em contextos variáveis)
Variável Dependente
Número de Ocorrências/ total
Porcentagem
Forma associada ao indicativo
233/239
97%
Forma associada ao subjuntivo
6/239
3%
Total
239/239
100%
O único grupo que apresentou resultado significativo foi o de polaridade da
estrutura, esse fator releva uma tendência da polaridade negativa em confirmar
a tradição gramatical, que prevê nas estruturas negativas apenas o uso do imperativo associado ao subjuntivo. A frequência de 98% do imperativo na forma
indicativa em construções afirmativas e de 82% do imperativo na forma subjuntiva em construções negativas mostra que essas construções desfavorecem o
uso da forma associada ao indicativo. Esse fato é confirmado no peso relativo de
0.083 atribuído à polaridade negativa que reflete a probabilidade de diminuição
do uso da forma indicativa.
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Tabela 3 - Uso do imperativo na forma associada à forma do indicativo em
função do teste da previsão do registro da tradição gramatical com relação à
polaridade da estrutura – dados da fala de Vitória - ES. (rodada com fatores amalgamados e dados de contexto de efeito categórico eliminados)
Fatores
Frequência da forma
indicativa
Pesos relativos
selecionados
Estruturas afirmativas
224/228 = 98%
0.529
Estruturas negativas pré-verbais
9/11 = 82%
0.083
A diminuição de 15 pontos percentuais da média mostra claramente que na
nossa amostra a estrutura negativa pré-verbal é um fator que favorece fortemente o uso do imperativo gramatical associado à forma subjuntiva.
Retornando ao fator de dupla negação (negação pré e pós-verbal), é importante
lembrar que esse grupo de fator foi retirado dos dados por apresentar 100% de
favorecimento do imperativo na forma indicativa nos dados analisados.
•
“Oh, se vem assaltar, NÃO REAGE NÃO”
Essa ocorrência corrobora com a hipótese levantada por Scherre (2004) de que
as estruturas de negação pós-verbal e de dupla negação tendem a favorecer o
imperativo associado á forma indicativa.
As outras variáveis controladas, embora com resultados não estatisticamente
significativos, não foram retiradas da análise quantitativa para o cálculo dos
pesos relativos, uma vez que podem apresentar indícios das regularidades encontradas em outras pesquisas e serem linguisticamente significativas, podendo até indicar mudanças linguísticas (SCHERRE & NARO, 2003). Apesar dos
resultados indicarem que o fenômeno analisado é praticamente invariável, quase uma “propriedade de input”, nos termos de Guy e Zilles (2007), uma vez que
os resultados revelam que a frequência do uso do imperativo associado à forma
indicativa na fala da cidade de Vitória é de 97%.
Na análise dos dados da escrita sem formato de diálogo foram considerados
apenas os fatores polaridade da estrutura e presença de âncoras discursivas:
vocativos, pontos de exclamação, balões - símbolos que remetessem a diálogos
(SCHERRE, 2007). Escolhemos apenas essas variáveis para fins de comparação
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com o percentual encontrado na fala. O resultado evidencia que a escrita desfavorece a forma indicativa, isso se deve ao fato de que a forma subjuntiva assegura a leitura mais diretiva do imperativo, evitando possíveis ambiguidades.
Os dados que apresentaram o imperativo associado à forma indicativa confirmam pesquisas já realizadas por Scherre (2003; 2004; 2008), nas quais se constatou que o uso do imperativo associado à forma indicativa é constatado predominantemente quando da presença das âncoras discursivas, como mostram
os exemplos abaixo, em que temos a presença de um vocativo e de pontos de
interrogação, respectivamente:
•
“Me LEVA que eu vou, meu amor,nesta noite de magia, cantando com fé,
este samba de paz. Vamos a Penha, agradecer em romaria”. (Samba enredo da
Escola de Samba Unidos de Juqutuquara de 2009)
•
“Se LIGA nessa notícia!” (Coluna do caderno A Gazetinha, suplemento do
jornal A Gazeta direcionado às crianças)
•
“CUTUCA a sorte que o celta vem!” (Propaganda do jornal A Tribuna relacionada ao sorteio de um automóvel)
Um fato relevante é a estrutura pré-negativa, que tanto na fala quanto na escrita
sem formato de diálogo desfavorecem a forma indicativa: na escrita não encontramos nenhuma estrutura negativa com a forma indicativa. Esse fato indica
que a tradição gramatical se aproxima do uso no que diz respeito ao uso imperativo negativo, como no exemplo da escrita abaixo:
“NÃO COMPRE carro sem antes consultar a Vitoriawagem”. (Propaganda da Vitoriawagem veiculada no jornal A Gazeta)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa apresentada neste artigo tinha como objetivo ampliar os estudos
sociolinguísticos sobre a variação do imperativo brasileiro. Os resultados se
aproximam dos resultados encontrados na oralidade nas regiões Centro-Oeste,
Sudeste e Sul, as quais apresentam percentuais acima de 90% de uso do modo
imperativo associado à forma indicativa e se afastam dos resultados da região
Nordeste.
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Tabela 4 - Frequência do uso do modo imperativo associado à forma indicativa
– dados da fala de Vitória/ES, Campo Grande/MS (LIMA, 2005), Brasília/DF
(SCHERRE et alli, 1998), Rio de Janeiro/RJ e Salvador/BA (SAMPAIO, 2001).
Localidade
Porcentagem
Vitória/ES – SUDESTE
97%
Campo Grande/MS – CENTRO-OESTE
94%
Brasília/DF – CENTRO-OESTE
95%
Rio de Janeiro/ES – SUDESTE
94%
Salvador/BA – NORDESTE
28%
Esses dados confirmam os resultados de outras pesquisas sobre a variação do
imperativo brasileiro, de que o aspecto geográfico é decisivo na alternância do
imperativo, não sofrendo influência de marcas sociais como outras alternâncias,
como, por exemplo, concordância nominal ou verbal.
Confirmam ainda que a estrutura pré-negativa é um fator que favorece fortemente o uso do imperativo associado á forma subjuntiva, sobretudo na escrita
sem formato de diálogo, o que em termos de tendência confirma a tradição gramatical. Já os dados da escrita sem formato de diálogo ratificam a pesquisa de
Scherre et. al. (1998) acerca do papel das ancoras discursivas, isto é, o imperativo associado á forma indicativa nesses textos aparece predominantemente na
presença de vocativos, pontos de exclamação ou símbolos que remetem a língua
falada, tais como: balões, telefones, desenhos de bocas etc.
Os dados são quase categóricos, apontando para uma mudança no uso do imperativo gramatical na fala de Vitória, e confirmam que a variação não é aleatória,
que por meio de análises que controlam fatores linguísticos e extralinguísticos é
possível atestar a regularidade da variação do imperativo.
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referÊncias
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linguística: um estudo em tempo real do imperativo gramatical em revistas em
quadrinhos da Turma da Mônica. Finos Leitores. Brasília: Jornal de Letras do UniCEUB. Ano 3, número 1, agosto de 2007. Disponível em <http://www.uniceub.br/periodicos/default.asp > Acesso em: 20 Ago. 2008.
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CARDOSO, D. B. B. Variação no uso do modo imperativo: análise de dados em textos
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apresentação de um clássico de Carlos Alberto Faraco; Posfácio de Maria da
Conceição A. de Paiva e Maria Eugênia Lamoglia Duarte). São Paulo: Parábola,
2006 (Original publicado em 1968).
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AS MULHERES DA JANELA: MARCAS DISCURSIVAS DA ALIENAÇÃO E DA PASSIVIDADE NAS
CANÇÕES BUARQUEANAS
Janaína de Assis Rufino1*
RESUMO
As personagens femininas de Chico Buarque de Hollanda e seus pontos de vista sobre o mundo se constituem a partir do embate entre diferentes vozes no
interior do discurso da canção. Entre tantos pontos de vista sobre o mundo,
para essa discussão, chama-nos a atenção a alienação e passividade que foram
temáticas na obra de Chico principalmente na década de 1960. Nossa proposta, neste artigo, é evidenciar e examinar as marcas discursivas da alienação e
da passividade encontradas nas canções buarqueanas Carolina (1967) e Januária (1967), duas das mulheres da janela. Em nossa análise, utilizamos como
referencial teórico-metodológico o modelo de análise modular do discurso desenvolvido por Roulet e equipe em Genebra. Nosso percurso de análise levará
em conta a dimensão interacional (que se dedica ao estudo das materialidades
da interação), as formas de organização elementar enunciativa (que se dedica
ou estudo e marcação dos discursos produzidos e representados) e a complexa
polifônica (que dedica a refletir sobre a função dos discursos produzidos e representados).
PALAVRAS-CHAVE: Marcas discursivas. Alienação/passividade. Canção.
1* Doutoranda (bolsista/FAPEMIG) e mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui estágio técnico-doutoral na Université
de Genève - Suíça, em Análise do Discurso e Prosódia (financiado pela FAPEMIG). É
pesquisadora do Grupo de Estudos sobre a Articulação do Discurso (UFMG) e do núcleo
de pesquisa Educação: Subjetividade e Sociedade da Universidade do Estado de Minas
Gerais (UEMG). É professora na UEMG - Barbacena nas disciplinas de Metodologia e
Conteúdo da Língua Portuguesa, Leitura e Produção de Textos, Pesquisa e Alfabetização
e Letramento.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As meninas são minhas
Só minhas
As minhas meninas
Do meu coração.
Chico Buarque
Rosas, Ritas, Terezas, Helenas, Joanas, Bárbaras, Annas, Iolandas, Marias...
Meninas, mulheres. As personagens femininas de Chico Buarque de Hollanda
compõem variadas concepções sobre as mulheres presentes em nossa sociedade
em diferentes momentos históricos. Elas podem ser consideradas variações do
feminino, pois o cancioneiro desse compositor sempre sugere a autoridade de
uma identidade para cada de suas mulheres-personagens.
As personagens femininas buarqueanas, assim como as do romance polifônico
de Dostoiévisk, têm sua própria identidade, possuem autonomia e exprimem
sua própria concepção, pouco importando se ela coincide ou não com a ideologia de seu autor. Para a construção da identidade das mulheres buarqueanas,
não importam as características físicas, psicológicas ou posição social. O que é
mais expressivo é o ponto de vista delas sobre a realidade que as cerca. Como
afirma Bakhtin: “sua consciência e autoconsciência [...] são a última palavra da
personagem sobre si mesmo e o mundo” (BAKHTIN, 1981, p. 40).
Dessa forma, a nós, leitores, não cabe propriamente a visão da personagem,
mas sua cosmovisão e suas referências sobre si expressadas na obra de que ela
faz parte. Acreditamos que as mulheres de Chico Buarque são pontos de vista
sobre o mundo, pois são capazes de incorporar o próprio dinamismo humano,
refletindo um determinado gênero discursivo e interagindo com enunciados de
outrem. De acordo com o pensamento bakthiniano,
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em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar, de amigos e conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive, sempre existem
enunciados investidos de autoridade que dão o tom,
como as obras da arte, ciência, jornalismo político, nas
quais as pessoas se baseiam, as quais elas citam, imitam, seguem. [...] Eis porque a experiência discursiva
individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os
enunciados individuais dos outros (BAKHTIN, 2003,
p. 294).
As imagens das personagens femininas buarqueanas se constituem, portanto,
a partir do embate entre diferentes vozes no interior do discurso das canções.
Em outras palavras, se formam a partir do diálogo polêmico entre a sua autoconsciência, a voz do autor e as vozes com as quais as personagens e o autor se
contrapõem.
Entre tantas imagens de mulher marcadas pela sexualidade, santidade, maternidade, prostituição, silêncio, engajamento político, servidão e rebeldia, que se
portam ora como sujeitos, ora como objetos de discursos polifonicamente construídos, estão elas: as “mulheres da janela”.
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Figura 1 - Mulheres na Janela, Di Cavalcanti21 (1971)
Fonte: http://www.dicavalcanti.com.br/obras60_70_2.htm
AS MULHERES DA JANELA
Juca foi autuado em flagrante
como meliante
pois sambava bem diante
da janela de Maria.
Chico Buarque
21- Assim como na obra de Chico Buarque, a temática feminina atravessa toda a obra
de Di Cavalcante. E também como Chico, o pintor dedica parte de sua obra à relação
entre o feminino e a janela. Inclusive a canção buarqueana chamada “Januária” teve
como inspiração de composição uma tela que Di Cavalcanti usou para presentear seu
amigo compositor - ver Homem (2009, p. 58). Neste artigo, vamos sugerir algumas aproximações entre as obras dos dois artistas de forma intuitiva e subjacente ao objetivo que
propomos.
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A temática mulher/janela é inaugurada na obra buarquena com a canção Juca
(1965). A personagem Maria, amada por Juca, não acorda com a serenata dele
e sequer vai à janela para ver a sua prisão. Juca é preso sem nunca ter visto
Maria.
A janela que separava Maria do mundo é retomada em A banda (1966) numa
relação, agora, de contato com a personagem, pois: “a moça feia debruçou na
janela/pensando que a banda tocava pra ela” (CHICO BUARQUE, 1966a).
Ainda em 1966, Chico Buarque compôs “Ela e sua janela”, mais uma vez apresentando uma correspondência entre a imagem feminina e a janela. A canção
se estrutura em três estrofes que apresentam os seguintes versos: “Ela sua janela, espiando/Ela e sua janela, esperando/ Ela e sua janela querendo” (CHICO
BUARQUE, 1966b). Menezes (2001) afirma que essa canção apresenta um movimento feminino, um percurso que prefigura a evolução da mulher na própria
obra de Chico Buarque. Segundo a autora, na canção,
há uma progressiva gradação da atitude feminina,
um desenvolvimento progressivo da mulher, no sentido de dentro para fora. Assim, ao longo da canção
a mulher que está na janela vai para varanda (1ª estrofe), para a rua (2ª estrofe) e para vida (3ª estrofe).
A mulher sai do “interior do lar”, do recesso da casa,
espaço a ela reservado pelos cânones convencionais
de uma certa sociedade, e se projeta no espaço aberto,
sem molduras, da rua – para viver duma vez a vida
(MENEZES, 2001, p. 92)
A personagem feminina que antes dormia e por isso não viu que “A noite virou
dia”, depois de se “debruçar; espia, espera e quer” diante da janela. Na sequência, somos apresentados à Carolina (1967) e Januária (1967) que se configuram
como as personagens que se posicionam diante da janela e, portanto, segundo
Meneses “na posição de quem fica à margem das coisas vendo a vida e a banda
passarem” (MENESES, 2001, p. 89).
Na canção Carolina, a janela materializa-se através de seu próprio significante
nos penúltimos versos de cada estrofe - “o tempo passou na janela” - e nos próprios olhos da personagem - “nos seus olhos fundos” - que podem ser também
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metáforas para janela.
Em Januária, o próprio nome da canção retoma o significado (do latim janus)
e é reforçado pelo verso “Januária na janela” que se repete nas duas estrofes,
salientando a relação de passividade da personagem.
Figura 2 - Mulheres na Janela (1926) - Di Cavalcanti
Fonte: <http://www.dicavalcanti.com.br/obras 60_70_2.htm>
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Figura 3- Moça na Janela (1957) - Di Cavalcanti
Fonte:< http://www.dicavalcanti.com.br/obras 60_70_2.htm>.
Lembramos aqui a canção Essa moça está diferente, composta em 1969, que retoma as personagens antes cantadas por Chico - “Essa é a tal da janela/ que
eu cansei de cantar” (CHICO BUARQUE, 1969). O ponto de vista agora é o de
mostrar que a mulher da janela está decidida a se “supermodernizar”, a quebrar
com os paradigmas e o esteriótipo de mulher passiva e alienada.
Nossa proposta, neste artigo, é especialmente evidenciar e analisar as marcas e
estratégias discursivas das canções buarqueanas Carolina (1967) e Januária (1967)
a fim de evidenciar as vozes que constroem um discurso que denuncia a alienação/passividade, sobretudo política, de parte da sociedade brasileira diante do
regime ditatorial. As duas canções foram produzidas no período da ditadura
militar (1964-1984) e por hipótese, as canções desse momento, entre outras tanSABERES Letras
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tas vozes de outrem, enunciam um discurso de contestação e mobilização social
muito peculiar. Sabemos que durante o período da ditadura militar, a canção
popular brasileira ocupou o espaço da mídia formadora de opinião. Especialmente as canções de Chico Buarque, que durante muito tempo foram consideradas, assim como o próprio compositor, unanimidades no país.
Figura 4 - Mulheres Protestando (1941) - Di Cavalcanti
Fonte: <http://www.dicavalcanti.com.br/obras 60_70_2.htm>.
Referencial Teórico-Metodológico de Análise
Essa moça tá diferente
Já não me conhece mais
Está pra lá de pra frente
Está me passando pra trás.
Chico Buarque
Entendemos que as canções, assim como outras práticas discursivas, trazem em
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si componentes de ordem linguística, textual e situacional. Para analisá-las, buscamos um instrumental teórico que evidencia esses aspectos constitutivos e que
nos possibilita compreender o caráter social e histórico das canções, revelando
por fim a complexidade das relações discursivas.
O quadro de análise do discurso, chamado Modelo de Análise Modular (MAM)
e proposto por um grupo de pesquisadores orientados pelo professor Eddy
Roulet, nasceu da intersecção de diversas pesquisas e trabalhos com o objetivo
de conciliar as três dimensões do discurso (linguística, textual e situacional) em
uma perspectiva sociocognitiva e interacionista. Roulet (2001) e sua equipe
concebem a análise do discurso por módulos, uma vez que o discurso pode ser
decomposto em sistemas de informações que, por sua vez, podem ser descritos
independentemente. Além disso, as informações obtidas de cada módulo devem ser relacionadas.
O MAM, em sua versão atual, apresenta módulos que definem cinco tipos de
informações básicas: os módulos “lexical e sintático”, que contemplam a dimensão linguística; o “hierárquico”, que contempla a dimensão textual e os “referencial” e “internacional”, que contemplam a dimensão situacional. O MAM
define que os módulos são considerados sistemas de informação de base que
têm origem nos três componentes do discurso.
As formas de organização surgem da acoplagem entre informações nascidas
dos módulos e/ou de formas de organização. O MAM distingue dois tipos de
formas de organização: as elementares e as complexas. As formas de organização elementares fono-prosódica, semântica, relacional, informacional, enunciativa, sequencial e operacional necessitam de uma articulação entre os módulos
para serem descritas. Já as formas de organização periódica, tópica, polifônica,
composicional e estratégica são consideradas complexas por seguirem da combinação de informações oriundas dos módulos e das formas de organização
elementares.
Para analisar as canções Carolina (1967) e Januária (1967) focalizaremos os módulos e as formas de organização que possibilitam atender às demandas relacionadas ao objetivo proposto. Dessa forma, examinaremos o módulo interacional, a
organização elementar enunciativa e organização complexa polifônica.
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Carolina e Januária: aspectos interacionais
Lá fora, amor,
uma rosa morreu,
uma festa acabou,
nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela,
o tempo passou na janela e
só Carolina não viu.
Chico Buarque
Toda interação para se realizar necessita estar dentro de limites de ordem material e possuir sujeitos situados no tempo e no espaço, que visam um objetivo
comunicativo. As teorias da enunciação, ao conceituarem a interação, definem
como objetos de análise os componentes: sujeitos, tempo, espaço, canal e as regras consentidas, que estruturam a interação. A organização discursiva é sensivelmente definida pela ancoragem material das interações. A determinação
do aspecto material da interação organiza as situações de forma a definir as
possibilidades de agir e retroagir dos sujeitos na obtenção de seus objetivos
comunicativos.
De acordo com (BURGER, 2001 apud ROULET; FILLIETTAZ; GROBET, 2001, p.
138), os parâmetros da materialidade das interações são: o canal (que se refere
ao suporte físico utilizado pelos interactantes: oral, escrito, visual), o modo (que
se refere à co-presença temporal e espacial dos interactantes) e o laço (que se
refere à retroação, reciprocidade ou não-reciprocidade dos interactantes).
Os parâmetros materiais estão a serviço dos sujeitos motivados por seus objetivos nas situações comunicativas. Segundo a abordagem modular, os sujeitos
são chamados de “interlocutores” e as posições ocupadas por eles no tempo e
no espaço são denominadas “posição de interação”. Para Burger, “uma posição de interação define a identidade de cada interactante em termos de valores
do canal e do laço da interação” (BURGER, 2001 apud ROULET; FILLIETTAZ;
GROBET, 2001, p. 143, tradução nossa)32
32- Une position d’interation definit l’identité de chaque interactant en termes des valeurs prises par les trois paramètres du canal, du mode et du lion d’interaction.
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A interação sempre se efetiva na presença de dois interactantes. Portanto, em
toda interação, temos minimamente duas posições de interação, formando um
nível interacional. As interações face a face normalmente possuem apenas um
nível que se materializa pelo canal, modo ou laço. Convivemos na maioria das
vezes através de jogos interacionais complexos, ou seja, que possuem mais de
duas posições de interação. Para cada par de posições de interação, temos um
nível. Para representar a materialidade do jogo interacional com todos os seus
elementos, a abordagem modular utiliza o enquadre interacional.43
Para as canções Carolina e Januária, propomos o seguinte enquadre geral:
Figura 5 - Enquadre interacional geral das canções analisadas
43- Optamos por traduzir cadre interactionnel, termo originalmente utilizado por Roulet,
por enquadre interacional. A palavra quadro/moldura sugerida pelos dicionários como
tradução para cadre não consegue, em nosso ponto de vista, abarcar o significado processual de interação conceituado pela abordagem modular do discurso.
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No nível mais externo, temos as posições do compositor/intérprete e do leitor/
ouvinte numa relação de não-reciprocidade com distância espaço-temporal e
canal oral e/ou escrito. No segundo nível, as posições são a do compositor e a
do leitor numa relação com distância espaço-temporal, porém com reciprocidade e por um canal escrito.
O que diferencia os dois níveis são posições acionais ou referenciais do leitor/
ouvinte. No primeiro nível, encontramos o público propriamente dito, e no segundo, a censura. O enquadre representa, através de suas linhas mais grossas,
o espaço de transição entre os níveis. Para nós, a passagem do primeiro nível
para o segundo é o espaço em que as estratégias discursivas começam a se materializar.
O nível intermediário, espaço da história que a canção conta, é constituído pela
interação entre o narrador instituído pelo autor e seu narratário, posições comuns a qualquer narrativa. A materialidade desse nível se constrói com um
canal oral/escrito, distância espaço-temporal e com uma relação de não-reciprocidade. Ao instaurar um narrador, ou seja, uma nova posição de interação,
as ações realizadas pelo segundo são diferentes, portanto com próprias materialidades em cada nível. Porém, há uma profunda relação entre essas duas posições. Mais uma vez acreditamos que o espaço da passagem de um nível a outro
é que possibilita a criação das estratégias discursivas.
Ao analisarmos cuidadosamente o enquadre, percebemos que o narrador instaurado na canção Carolina se apresenta em primeira pessoa. Em Januária, o narrador é de terceira pessoa e ambos estão em interação com seus narratários.
Isso acaba por afetar as informações evidenciadas com a posição ocupada pela
personagem “mulher” (nível mais interno do enquadre) nas duas canções. Na
interação conversacional relacionada aos personagens, no nível mais interno,
marcado pela linha pontilhada, temos as posições de interação personagem e
interlocutor, que participam da constituição da história.
A materialidade, normalmente, de acordo com as narrativas tradicionais, é formada por um canal oral/visual. O modo é expresso em proximidade espaçotemporal e o laço é de reciprocidade entre os personagens. Porém, nas canções
analisadas, podemos notar que, Carolina (ela) interage com um narrador-personagem - alguém que tenta mostrar o mundo para ela - através de um canal oral/
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visual. O modo é expresso em proximidade espaço-temporal com um laço de
não-reciprocidade, uma vez que ela não cede aos pedidos do narrador.
Em Januária, temos como personagens em interação a personagem feminina título da canção (ela) em relação com “toda gente”, o “pessoal” (eles), cuja materialidade é exatamente como a da primeira canção. As mulheres da janela
mesmo como personagens e elementos fundamentais para o desenvolvimento
temático das canções são consideradas discursivamente. Em nosso entendimento, consideradas como não-sujeito (tu) em Carolina e como não-pessoa (ela) em
Januária, de acordo com a teoria benvenistiana.54
As mulheres são citadas e incitadas a modificarem seus posicionamentos diante
da janela, elas recusam a relação, não estabelecendo reciprocidade quanto aos
apelos que a elas são dirigidos. Tanto em Carolina como em Januária, as posições
de não-sujeito e de não-pessoa podem ser consideradas como metáfora para a
passividade ou alienação.
É importante considerarmos que em Carolina, a janela se materializa através de
seu próprio significante nos penúltimos versos de cada estrofe (o tempo passou
na janela) e se constitui como a possibilidade de tomada de consciência que se
perde na dor das fundas janelas d`alma (nos seus olhos fundos). Em nosso ponto de vista, a tristeza da personagem é o elemento silenciador e impeditivo de
uma visão do mundo e de uma possibilidade de reciprocidade interativa.
Em Januária, o próprio nome da canção retoma o significado (do latim janus)
e é reforçado no verso “Januária na janela”, que se repete nas duas estrofes e
salienta a relação de passividade da personagem. Enquanto Carolina não pode
ver, Januária finge não ver, não atende quem apela, por malvadeza ou vaidade
(que, malvada, se penteia).
A análise da materialidade interacional das canções veio corroborar com a afirmação de Meneses (2002) que diz que janela significa uma relação de contiguidade, de não inserção.
54- “A partir do eu que representa uma pessoa em posição do sujeito, surge o tu, que é
igualmente pessoa, só que em posição de não-sujeito, e ele, forma pronominal da nãopessoa” (MARI, 2001, p. 234).
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Carolina e Januária: aspectos enunciativospolifônicos
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor.
Chico Buarque
Buscando um aprofundamento na discussão, passamos a refletir sobre como as
informações enunciativo-polifônicas, numa perspectiva modular do discurso,
ajudam a colaborar com a construção das imagens das personagens buarqueanas.
Para a abordagem modular, a forma de organização elementar enunciativa
constitui-se com a acoplagem de informações: (1) advindas da relação dos discursos com os níveis do enquadre interacional - módulo interacional -, (2) da
ordem linguística, quando os discursos representados são marcados - módulo
lexical - e (3) das informações originadas de dimensão situacional, caso os discursos não venham marcados - módulo referencial.
O componente enunciativo diz respeito à inscrição do locutor em seu discurso,
com suas opiniões e atitudes, seu posicionamento em relação a esse discurso.
Diz respeito à subjetividade do locutor. A organização enunciativa define e distingue os segmentos de discursos “produzidos” e “representados” no interior
de um discurso mantido por um autor/compositor em diferentes níveis. Por
discurso “produzido” entende-se “aquilo que o locutor diz” e ocupa o nível
mais externo da interação - informações evidenciadas no enquadre do módulo
interacional. O que o locutor diz está situado na interação entre o compositor e
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o seu leitor/ouvinte.
Já o discurso “representado” 6 será “aquilo que o locutor diz que alguém disse”
e ocupa os níveis mais internos na interação. Os discursos representados podem
apresentar-se sob as seguintes formas: formulado, designado e implicitado.
Formulado - a) sob a forma de uma representação direta, eventualmente introduzida por um verbo de fala, dois pontos, travessão e/ou aspas; b) sob a forma
de representação indireta, caracterizada por uma modificação dos dêiticos e/
ou eventualmente introduzida por um verbo de fala e um complementador; c)
sob a forma de representação indireta livre, em que as fronteiras entre os dois
discursos são diluídas.
Designado - o discurso pode ser designado por um verbo ou por um sintagma
nominal, geralmente uma nominalização: verbo (suplicar, achar, pressupor...);
sintagma nominal (súplica, chamada...) entre outros.
Implicitado - a implicitação, em geral, é marcada por conectores que têm a função de estabelecer um encadeamento implícito com o discurso de um interlocutor. É própria do diálogo e é introduzida por conectivos interativos tais como
“bem” e “mas” no início de réplica.
A acoplagem entre as informações enunciativas e interacionais nos possibilita
distinguir o discurso em diafônico - que representa o discurso do interlocutor;
polifônico - que representa o discurso de terceiros, e autofônico - que representa
o discurso do próprio locutor no passado ou no futuro.
Já a organização complexa polifônica trata do fato de o discurso de um locutor
poder apresentar vozes que correspondem a outros discursos ou outros pontos
de vista diferentes do seu. Essas vozes representam palavras ou pensamentos
do próprio locutor, do destinatário ou de outras pessoas, ou ainda, de pontos de
6- Os discursos representados na abordagem modular têm as seguintes formas de representação: discurso representado formulado – marcado por colchetes preenchidos [...];
discurso representado designado – marcado depois da expressão que o designa por colchetes vazios [ ]; discurso representado implicitado – representado por colchetes vazios
na frente do conector [ ].
Para a descrição enunciativa das canções de nosso corpus, em nossas análises, serão
usadas as seguintes convenções de transcrição: uso de colchetes à direita da ocorrência
da voz (C – Chico Buarque, N – narrador e as iniciais de cada personagem de acordo
com cada canção).
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vista não relacionados a locutores específicos. A polifonia, para o MAM (ROULET; FILLIETTAZ; GROBET, 2001), parte da definição dialógica bakhtiniana
mais ampla e a considera ainda como o resultado da acoplagem de informações
das análises concernentes às formas e às funções dos discursos produzidos e
representados.
Na canção Carolina, podemos perceber que o ponto de vista da alienação e da
passividade pode se manifestar no silenciamento da voz da personagem feminina. Esse fato pode ser evidenciado através da identificação dos discursos
formulados e representados e suas funções. Podemos perceber nos seguintes
trechos:
C[N[Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei H[que não vai dar
Seu pranto não vai mudar]
Eu já convidei H[ ] para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
...
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
Só Carolina não viu...]]
O discurso produzido situado no nível mais externo corresponde “àquilo que
o locutor diz” e está representado a partir da letra C. No segundo nível, onde
temos a relação entre o narrador e seu narratário, há a presença de um discurso
todo formulado indicado pela letra N.
Eu já expliquei H[que não vai dar
Seu pranto não vai nada mudar]
...
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Nesse trecho, vemos a reiteração da voz do homem-personagem - que explica,
convida, mostra sorrindo, avisa e canta. Ela se repete no decorrer da canção,
tentando persuadir a personagem Carolina do seu estado de alienação através
de um discurso formulado autofônico. Esse discurso do narrador acaba por assumir o tom de uma voz mobilizadora e conscientizante que insiste na mudança, recusada pela personagem marcada pelo silenciamento e pela prostação da
mulher diante da janela e da tristeza que a impede de ver além.
Há na canção uma única ocorrência de discurso representado, designado e também autofônico, que introduz mais uma vez a voz do personagem cuja função
é reiterar a mobilização já citada.
Eu já convidei H[ ] para dançar.
Januária, mulher e janela na essência, símbolo da alienação, vaidosa, malvada,
fingida, mas também singela e graciosa com seus predicados parece favorecer o
processo da identificação entre a personagem e o público (posições interacionais
de níveis diferentes). A canção, de acordo com o nível mais externo do enquadre interacional, possui um discurso produzido que se constitui na interação
entre o compositor e seu público. Nela o compositor instaura um narrador em
terceira pessoa para narrar a história de Januária para seu narratário no terceiro
nível interacional. Configura-se então um discurso formulado.
No quarto nível, o mais interno, há a relação interacional estabelecida entre as
personagens. Notamos, na canção, duas personagens que se evidenciam através
do discurso designado polifônico, usado com a finalidade de tentar convencer
Jánuária.
Toda gente homenageia TG [ ]
...
E não escuta quem apela TG [ ]
O discurso designado polifônico, nessa canção, assume a função de reforçar a
voz de uma coletividade. Diferentemente do que vimos com a Carolina, em que
o convite à mudança é feito somente por uma pessoa. Januária finge que não dá
conta dos apelos e por sua decisão continua na janela até que o pessoal desista
e vá pro mar.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As canções do início da carreira de Chico Buarque, como afirma Meneses (2002),
revelam um distanciamento, fruto de uma decepção política. Essas canções possuem um valor nostálgico, certa recusa ao mundo industrializado como em Januária e Carolina. Há uma crítica elaborada com uma tonalidade de saudosismo.
“Não há esperança de futuro” (MENESES, 2002, p. 47).
Pudemos perceber que para adiante do ponto de vista autoral, a passividade
e a alienação são construídas no e pelo discurso através da polemização das
diversas vozes que se contrapõem e que dão corpo a cada uma das mulheres
apresentadas nas duas canções analisadas.
O silenciamento das personagens femininas em detrimento das outras vozes
que se deixam ouvir nas canções e a organização da sua estrutura interacional
são, em nosso ponto de vista, marcas discursivas da alienação e passividade de
Carolina, que perdida, extasiada e arrebatada pela escuridão da tristeza da sua
janela, não pode ver. Contrapondo-se à alienação de Januária que vê, mas “finge
que não vê” os apelos que lhe são feitos, não atendendo quem apela, seja por
malvadeza, vaidade ou pura recusa ao mundo que se apresenta pela janela.
Referências
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BAKTHINE, M. Esthétique de la Création Verbale. Paris: Gallimard, 1979.
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CHICO BUARQUE, H. Juca. São Paulo: Editora Musical Arlequim Ltda, 1965.
Disponível em: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em 04 set. 2009.
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______. A banda. São Paulo: Editora Musical Brasileira Moderna Ltda, 1966a.
Disponível em: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em 04 set. 2009.
______. Ela e sua janela. São Paulo: Editora Musical Arlequim Ltda, 1966b. Disponível em: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em 04 set. 2009.
______. Januária. São Paulo: Editora Musical Arlequim Ltda, 1967a. Disponível
em: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em 04 set. 2009.
______. Carolina. São Paulo: Editora Musical Arlequim Ltda, 1967b. Disponível
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______. Essa moça está diferente. São Paulo: Marola Edições Musicais, 1969.
Disponível em: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em 04 set. 2009.
______. As minhas meninas. São Paulo: Marola Edições Musicais Ltda, 1987.
Disponível em: <www.chicobuarque.com.br>. Acesso em 04 set. 2009.
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RUFINO, J. A.; BRUNETTI, R. V. A organização enunciativa/polifônica em
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Uma História Distraída, de Cida Chaves. In: MELLO, R. Análise do discurso &
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SILVA, F. de B. Chico Buarque – Folha explica. São Paulo: Publifolha, 2004.
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Reflexão em torno da proposta da
transitividade revisitada
Aline Moraes Oliveira1*
Carmelina Minélio da Silva Amorim2**
Lúcia Helena Peyroton da Rocha3***
RESUMO
Este artigo apresenta uma reflexão sobre a transitividade revisitada por Thompson e Hopper (2001), sob a perspectiva funcionalista da língua. A partir das
abordagens consignadas em gramáticas da língua portuguesa, passa-se por noções de estruturas argumentais; em seguida, observa-se os parâmetros de Hopper e Thompson (1980) e Thompson e Hopper (2001), em que a transitividade
é vista no continuum, como um fenômeno escalar e gradiente. A Gramática Normativa, por conceber a língua como um código acabado, por postular regras,
sem explicá-las e apresentar exemplos descontextualizados, por vezes, dificulta
a atuação do professor em sala de aula. Por ser prescritiva por natureza, traz
definições muito restritas sobre os fatos da língua, desconsiderando o discurso
efetivamente produzido pelo falante. A proposta funcionalista concebe a língua como um fenômeno interativo e dinâmico, que se adapta continuamente
às necessidades comunicativas e seu uso se reflete na alteração e/ou fixação de
determinadas estruturas. A gramática se acomoda, reorganizando no sistema
os elementos que se deslocam gradativamente. Levanta-se a questão sobre que
elementos (adjuntos ou complementos) se relacionam com os verbos considerados intransitivos. Espera-se, dessa forma, dar continuidade à discussão que
se tem feito com relação à transitividade, visando auxiliar o professor em sala
de aula.
1* Professora substituta da Universidade Federal do Espírito Santo e professora da Faculdade Saberes.
2** Doutoranda da Universidade Federal Fluminense.
3*** Professora Doutora do Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal
do Espírito Santo.
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PALAVRAS-CHAVE: Transitividade. Conversas espontâneas. Funcionalismo.
Introdução
A transitividade vem sendo discutida por meio de vários vieses e perspectivas
teóricas diversas, porém ainda hoje, ocupa o centro das preocupações daqueles
que refletem sobre fenômenos linguísticos. O objetivo deste artigo é: (i) apresentar os parâmetros de transitividade defendidos por Hopper e Thompson (1980),
aplicados a narrativas; (ii) apresentar a discussão de Thompson e Hopper (2001),
em que os linguistas revisitam os parâmetros aplicando-os a conversa espontânea do inglês americano.
Neste trabalho, entende-se por transitividade o processo que engloba tanto verbos transitivos como intransitivos. Os traços básicos dessa definição apontam
o verbo transitivo como verbo de predicação incompleta, que necessita de um
complemento (objeto) para integralizar seu sentido. Há, ainda, outras definições arroladas: verbo transitivo é aquele que expressa uma ação que passa do
sujeito para o objeto, ou uma ação que se exercita num objeto; ou, também,
aquele verbo cuja forma e sentido podem transitar da voz ativa para a voz passiva. Alguns dos autores que assim conceituam o verbo transitivo são Cegalla
(1989), Cunha e Cintra (1985), Kury (1993), Rocha Lima (1984) e Said Ali (1964)
em gramáticas do português.
A Transitividade em compêndios gramaticais
A transitividade, do Latim transitivus é o que vai além, que se transmite, ou seja,
é considerado transitivo aquele verbo que permite a passagem da voz ativa
para a passiva. Nessa perspectiva, denota a transferência de um agente para um
paciente. Said Ali (1964) considera intransitivos os verbos que não necessitam
de outro termo, como viver, morrer, andar, e bem assim aqueles cujo sentido se
completa com um substantivo regido sempre de preposição. O autor acrescenta
que “se este substantivo tiver a partícula a, usar-se-ão em seu lugar as formas
pronominais lhe, lhes” (SAID ALI, 1964, p. 94). Incluem-se dentro dessa perspectiva, verbos tais como: obedecer, competir (ex.: O ensino compete ao mestre.
Isso lhe compete.). Como se pode observar, Said Ali (1964) acolhe sob o rótulo
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de intransitivo, verbos acolhidos como transitivos indiretos pela Nomenclatura
Gramatical Brasileira (NGB).
Cegalla (1989) elenca como essencialmente intransitivos os verbos sonhar, morrer,
amanhecer, durar, morar, viver, ir, vir, chegar, etc. Nessa abordagem, há pelo menos dois problemas: (i) não é boa técnica gramatical classificar o verbo quanto
à predicação descontextualizado, ou seja, tal classificação só deve ser feita no
contexto frasal; (ii) não é adequado também colocar no mesmo rol verbos de
natureza tão diferente. Cegalla (1989) teria de, no mínimo, apresentar aqueles
verbos pelo menos dentro de frases e agrupá-los por semelhanças, assim: morar,
vir e ir fariam parte do grupo que exige complemento locativo; e, sonhar, amanhecer, etc. fariam parte de um outro grupo.
No modelo clássico, a transitividade é uma propriedade do verbo. A classificação dos verbos quanto à predicação fica circunscrita ao capítulo destinado à
regência verbal. Sendo assim, a classificação se apoia na presença ou ausência
de um sintagma nominal (SN) objeto – critério sintático – exigido pelo sentido do
verbo – critério semântico. A distinção entre transitivo e intransitivo não é rígida,
visto que os verbos transitivos podem ser empregados intransitivamente, em
função do contexto. O verbo comer, por exemplo, pode ser transitivo na frase:
Maria comeu a fruta e intransitivo, na frase, Maria já comeu.
A Transitividade no modelo de Hopper e Thompson
(1980): aplicação dos parâmetros a narrativas
Hopper e Thompson (1980) propuseram que várias línguas do mundo poderiam ser contabilizadas se a transitividade fosse vista em um continuum. Os linguistas forneceram evidências para sustentar a afirmação de que as cláusulas de
transitividade relativamente alta caracterizam figura, não fundo, nas narrativas
analisadas. Ao argumentar que a transitividade é uma questão da cláusula inteira, ao invés de ser apenas a relação entre o verbo e seu objeto, eles introduziram dez parâmetros componentes de transitividade (HOPPER e THOMPSON,
1980, p. 252). Para cada parâmetro de transitividade, uma cláusula poderia ser
marcada com qualquer número de valores escalares. Na Tabela 1 a seguir, estão
os parâmetros defendidos por Hopper e Thompson (1980).
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Tabela 1 – Parâmetros de transitividade
Transitividade alta
Transitividade
baixa
A. PARTICIPANTES
dois ou mais
participantes A e O.
um participante
B. CINESE
ação
não-ação
C. ASPECTO DO VERBO
perfectivo
não-perfectivo
D. PUNCTUALIDADE DO VERBO
punctual
não-punctual
E. INTENCIONALIDADE DO SUJEITO
intencional
não-intencional
F. POLARIDADE DA ORAÇÃO
afirmativa
Negativa
G. MODALIDADE DA ORAÇÃO
modo realis
modo irrealis
H. AGENTIVIDADE DO SUJEITO
agentivo
não-agentivo
I. AFETAMENTO DO OBJETO
afetado
não-afetado
J. INDIVIDUAÇÃO DO OBJETO
individuado
Não-individuado
Fonte: Hopper; Thompson (1980: 252)
Para os autores cada componente da Transitividade envolve uma faceta diferente da efetividade ou intensidade com que a ação é transferida de um participante a outro:
(A) PARTICIPANTES: Só ocorre transferência se pelo menos dois participantes
estiverem envolvidos.
(B) CINESE: Ações podem ser transferidas de um participante para outro; estados não podem. Assim algo acontece a Sally em Eu abracei Sally, mas não em
eu gosto de Sally.
(C) ASPECTO: Uma ação vista em seu término, isto é, uma ação télica, é transferida mais efetivamente a um paciente do que uma que não conta com tal término. Na oração télica Eu comi isto, a atividade é vista como completa, e a transferência é realizada em sua totalidade; mas na atélica Eu estou comendo isto, a
transferência só é realizada parcialmente.
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(D) PUNCTUALIDADE: Ações realizadas sem fase de transitividade óbvia entre começo e fim têm um efeito mais marcado nos seus pacientes do que ações
que são inerentemente contínuas; compare kick/chutar (punctual) com carry/
transportar (não-punctual).
(E) INTENCIONALIDADE: O efeito no paciente é tipicamente mais aparente
quando o agente é apresentado com uma ação proposital; compare: Eu escrevi
seu nome (intencional) com Eu esqueci seu nome (não-intencional).
(F) POLARIDADE: Este é o parâmetro de afirmação/negação.
(G) MODO: Refere-se à distinção entre realis e irealis na codificação de eventos.
Uma ação que não aconteceu, ou que é apresentada como acontecendo num
mundo não-real (contingente), tem uma eficácia menos óbvia do que uma ação
cuja ocorrência corresponda diretamente a um evento real.
(H) AGENTIVIDADE: É óbvio que os participantes com Agentividade alta
podem realizar uma transferência de uma ação de uma forma que o de Agentividade baixa não pode. Assim a interpretação normal de George me assustou é
um evento perceptível com consequências perceptíveis; mas, em A pintura me
assustou, a interpretação poderia depender inteiramente de um estado interno.
Hopper e Thompson (1980) chamam a atenção para os dois componentes que
se referem ao Objeto (O): (I) AFETAÇÃO do O e (J) INDIVIDUAÇÃO do O.
Segundo os autores, o grau em que uma ação é transferida a um paciente é uma
função de como o paciente é completamente AFETADO; isso acontece com mais
eficácia em: I drank up the milk (eu bebi o leite) do que em drank some of the milk (eu
bebi um pouco do leite).
Os referentes dos substantivos que apresentam certas propriedades são mais
altamente individuados do que outros, como evidencia o quadro a seguir:
INDIVIDUADO
próprio
humano, animado
concreto
singular
contável
referencial, definido
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NÃO-INDIVIDUADO
comum
não-animado
abstrato
plural
massivo
não-referencial
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Uma ação pode ser transferida mais efetivamente a um paciente que é individuado do que àquele que não o é; assim, por exemplo, um O definido é frequentemente visto como mais inteiramente afetado do que um indefinido.
O modelo de Thompson e Hopper (2001): a transitividade
em conversas espontâneas
Thompson e Hopper (2001) apresentam dados da conversa espontânea em inglês, a partir dos quais observam que a transitividade é muito baixa. Um outro
aspecto para o qual os linguistas chamam a atenção é que uma análise atenta
dos problemas que surgem na tentativa de quantificar a transitividade das cláusulas no discurso conversacional tem sérias implicações para a compreensão
que eles têm da gramática das cláusulas.
Em sua pesquisa, Thompson e Hopper (2001) estão preocupados com o que
o dado conversacional contribui para a visão de transitividade e estrutura da
cláusula, especialmente o que é conhecido como “estrutura do argumento” – a
gramática do verbo e seus argumentos. Além disso, eles mostram como os resultados obtidos sustentam a afirmação de Hopper (1987) de que “quanto mais
usada uma construção for, mais ela tenderá a se tornar estruturada, no sentido
de alcançar coerência textual, servindo como base para variação e extensão”
(THOMPSON; HOPPER, p. 50).
Aplicação dos parâmetros de Hopper e Thompson (1980) em dados conversacionais do inglês
Thompson e Hopper (2001) recorrem aos parâmetros para argumentar sobre a
transitividade em dados provenientes da conversação em inglês. Para ilustrar,
eles analisam um excerto em que membros da família estão discutindo o tipo
de bolo de aniversário de que Kendra gosta. Como pode ser rapidamente observado, a maioria das cláusulas neste trecho é de baixa transitividade nas formas
descritas em Hopper e Thompson (1980).
KENDRA: É um bolo bonito,
Mas por que vocês meninos sempre me dão bolos gelados.
KEVIN: ... porque [é o único tipo que nós não somos][alérgicos]
MARCI:
[Você não gosta de sorvete]?
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KENDRA:
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[eu não gosto de
sorvet=e].
WENDY: ... Você gosta de .. yogurt congelado?
KENDRA: ... Eu não deveria estourar por causa disso.
WENDY: Você gosta de bolos de yogurt gelado?
.... Você não gosta.
KENDRA: ... [Eu não gosto] _
KEVIN:
[Você gosta de] bolo de camarão?
KEVIN: [Hm].
WENDY: [Você] gosta de bolos de arroz?
MARCI: Eu posso dar a você um bolo de arroz,
com cheddar por cima, ,
Se você quiser,
. . à noite.
KENDRA: Eu não quero magoa=r você=,
Eu quero dizer que eu gosto _
. . [sorvete okay]
WENDY: [Bem]
MARCI: [Eu não] - WENDY: Nós estamos todos [... apenas ]
MARCI: Você [nunca] nos disse do que você gosta e do que você não gosta,
[querida]
KEVIN: [Eu acho que seria=
MARCI: você apenas acabou de sair do seu quart[=o]
KENDRA:
[Eu acho] [que eu ando ao
redor
Todo o tem=po]
KEVIN:
[sua] [culpa
Então].
KENDRA: dizendo,
Eu odeio sorvete.
Eu odeio sorvete.
Ele me faz ficar com muito frio.
KEVIN: Nunca.
KENDRA: pergunta Kelli.
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... Ligue para Kelli agora e pergunte a ela.
Para Thompson e Hopper (2001, p. 30), “o sentido intuitivo de que a linguagem
diária é intransitiva”, como ilustrado pelo trecho, é apoiado em evidência empírica. Eles analisam 446 cláusulas de conversas em inglês americano, que se dão,
em interação face a face entre amigos e membros de famílias. Todos os falantes
são relativamente bem educados e da classe média americana caucasiana. Essas
cláusulas são transcritas e codificadas por um conjunto de fatores de transitividade, como descrito abaixo.
Codificação da cláusula
Thompson e Hopper (2001, p. 30) advogam em favor da baixa transitividade
na conversa diária como atestam os dados da pesquisa. Os autores consideram
como cláusulas os quatro tipos de enunciados que contêm um predicado:
(1) cláusulas simples (ex.: she was there with the baby/ela estava lá com o bebê; you
drove all over Denver/você dirigiu até Denver)
(2) todas as cláusulas tradicionalmente consideradas como subordinadas em
inglês: 2.1 – as complementos – ex.: he intimated that there had been some kind
of a business deal/ele insinuou que tinha havido algum tipo de negócio; she didn’t
know it was from me/ela não sabia que vinha de mim.); 2.2 – as adverbiais (ex.:
because Maureen was visiting/ porque Maureen estava visitando). 2.3 – as relativas (ex.: the coffee house chain that’s going to take over the city/A rede de café que
vai tomar conta da cidade).
(3) Todas as cláusulas elípticas que seguem cláusulas cheias (ex.: 1. I heard Ray
howling the blues/Eu escutei Ray uivando blues. 2. You did?/Você ouviu?).
(4) As cláusulas complementos são consideradas cláusulas, mas não são contadas como participantes das cláusulas da qual fazem parte. (ex.: I was wondering why I hadn’t heard from him/Eu fiquei me perguntando por que eu não tinha
ouvido falar dele). Isso se dá, porque os autores consideram I was wondering uma
expressão que funciona como marcador de epistemicidade e evidencialidade
(THOMPSON; MULAC 1991a, b; apud THOMPSON; HOPPER, 2001, p. 30 e
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31) e não como cláusulas principais com complementos objeto, que corresponderiam às orações subordinadas substantivas objetivas diretas da gramática
tradicional.
Alguns resultados da abordagem de Thompson e
Hopper (2001)
Para mostrar a baixa transitividade das cláusulas do inglês conversacional,
Thompson e Hopper (2001) revisitam sua proposta de parâmetros de Transitividade (1980).
Número de participantes
O primeiro parâmetro de transitividade é o número de participantes, já que ter
dois ou mais participantes é central para a noção tradicional de Transitividade.
Se a maioria das cláusulas em conversação tem sempre dois ou mais participantes, a afirmação de que a conversação é de transitividade baixa estaria seriamente em perigo.
No banco de dados conversacionais de Thompson e Hopper (2001), entretanto,
apresenta apenas 27% (121/446) de cláusulas com dois ou mais participantes,
conforme tabela 2.
Tabela 2 – Frequência nas cláusulas de um e dois participantes
Dois participantes
Um participante
Nº
%
Nº
%
121
27
325
73
Fonte: Thompson; Hopper (2001, p. 32)
Alguns exemplos:
(1) a. I saw her at Scott’s. (Eu a vi no Scott’s.)
b. he told me about her. (Ele me contou sobre ela.)
c. yeah they put their flyer up in phone booths. (Sim eles colocaram o
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avião deles para voar na cabine telefônica.)
O fato de que a maioria das cláusulas na conversação não tenha dois ou mais
participantes fornece suporte inicial para a afirmação de que é de baixa Transitividade na conversação.
Cláusulas com dois participantes
Segundo Thompson e Hopper (2001), mesmo as cláusulas de dois participantes
apresentam Transitividade é baixa. Para apoiar essa observação, os autores consideram vários parâmetros.
Cinese
O segundo parâmetro de Transitividade é a cinese. O número de predicados
que seria discutido para nomear uma ação nos dados conversacionais é notavelmente pequeno. Há 17 predicados, todos dos quais são verbos de dois participantes. Alguns exemplos mais claros:
(1) Just don’t open your mouth/Apenas não abra sua boca
Shut your eyeballs (said in jest (this expression from Walt Kelly’s ‘Pogo’
comics) to someone about to receive a surprise birthday present)/(Feche seus olhos (disse em tom de brincadeira (essa expressão dos quadrinhos de Walt Kelly ‘Pogo’) para alguém prestar atenção para receber
um presente de aniversário surpresa).
Entre as ocorrências menos claras estão os verbos de ação não pontual, como
em (2):
(1) ro)
a. and they sold that (referent is car)/e eles venderam aquele (o referente é carb. and bought two-others (referent is car)/e compraram outros dois (o referente
é carro)
c . K sent you a taped letter?/K enviou a você uma carta gravada
d. I’ll Just take may gifts up to my room, and open ‘em by myself
Eu apenas levarei meus presentes para meu quarto, e eu mesma os abrirei
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Embora incluindo esses casos duvidosos, o número de predicados que poderiam contar como alto em cinese é ainda muito pequeno: 14% das cláusulas de
dois participantes. Interessante é que, entre os 17 predicados de ação, 12 (ou
71%), são o que se poderia chamar de irrealis, isto é, não reportam um evento
que ocorreu no ano passado ou que está ocorrendo. Os exemplos em (1), acima,
ilustram os predicados irrealis, sendo futuro e imperativo, enquanto os de (2)
ilustram o realis.
Sobre cinese, os dados de Thompson e Hopper (2001) evidenciam que
1. Os predicados de ação cinética são raros nos dados;
2. Na conversação, até mesmo os predicados de ação cinética tendem a
ser baixos em Transitividade em outro sentido, ou o Modo (por ser irrealis (Parâmetro de Transitividade G)), ou Punctualidade (por ser nãopunctual (parâmetro D)).
Aspecto
O aspecto é um forte parâmetro de Transitividade das cláusulas. No estudo de
Hopper e Thompson (1980), o aspecto foi mais definido em termos semânticos
do que em termos morfológicos; assim uma cláusula codificada como alta em
aspecto seria uma cláusula télica, uma ação completa com um O que é limitado,
como em:
(1) a. he called me like eleven o’clock in the mornin /Ele me chamou tipo
onze horas da manhã
b . she brought that up/Ela trouxe até
Uma cláusula codificada como baixa para aspecto seria atélica, isto é, não uma
ação completa com O (bounded) limitado, como em:
(2) a . when he needed something/Quando ele precisou de alguma coisa
b. they send in their money/Eles enviam seu dinheiro
Somente 17, ou 14%, das cláusulas de dois participantes são télicas. Assim, a
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maioria das cláusulas de dois participantes (104, ou 86%) são atélicas.
Punctualidade
Um evento punctual, como descrito por Hopper e Thompson (1980), não tem
nenhuma fase de transição entre seu início e a sua conclusão. Exemplos de
cláusulas que expressam eventos punctuais nos dados de Thompson e Hopper
(2001) incluem:
(1) I saw her at Scott’s/Eu a vi no Scott’s
Shut your eyeballs/Feche seus olhos
Just don’t open your mouth/Apenas não abra sua boca
Nos dados de Thompson e Hopper (2001), há apenas três cláusulas que expressam eventos punctuais. Exemplos de eventos de dois participantes não punctuais incluem:
(2) he’s had a couple of engagements/Ele tinha um par de alianças
It sounds like that/Isso soa como que
I’d throw Kendi off the trail (metaphorical)/Eu jogaria Kendi fora do trilho
(metafórico)
Assim apenas 0,6% das cláusulas de dois participantes expressam eventos punctuais; isto é, 99,4% deles expressam eventos não-punctuais.
Afetamento do O
O O, na maioria das cláusulas de dois participantes (101 ou 84%), não é afetado.
Dois exemplos de O altamente afetados:
(1) can you hand me a toothpick?/ Você pode me passar um palito?
Just don’t open your mouth/ apenas não abra sua boca
Thompson e Hopper (2001) arrolam dois exemplos de padrão muito mais frequente, em que o O não é afetado:
(1) I hadn’t even seen her, for a year./Eu não tinha mesmo a visto, por um ano
they’ve known each other for/eles se conhecem por
I may have misheard him/Eu posso não ter escutado ele
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Don’t you remember that?/Você não se lembra disso?
Outros parâmetros de transitividade
Thompson e Hopper (2001) não apresentam os valores para o parâmetro “afirmação”, uma vez que esse parâmetro não se mostrou forte para correlacionar
outras medidas de Transitividade.
Para os três outros parâmetros listados na Tabela 1, as cláusulas nos dados de
Thompson e Hopper (2001) estão divididos igualmente entre ‘alta’ e ‘baixa’
transitividade: intencionalidade , modo e individuação do O.
Em torno da metade das 121 cláusulas de dois participantes apresentam alta
intencionalidade do A. Isso se dá porque as atividades intencionais são quase
a metade das cláusulas de dois participantes. Quase 70% das cláusulas de dois
participantes são alta em modo (isto é, elas são realis. Finalmente, quase metade
delas são alta em individuação do O, porque os Os pronominais, que apresentam alta individuação, são relativamente frequentes, como nos exemplos abaixo:
(1) you can barely see it/você mal consegue ver isso
I still have it in there/eu ainda o tenho lá
Para o parâmetro agentividade, os As nas cláusulas de dois participantes nos dados de Thompson e Hopper (2001) são surpreendentemente humanos (96/99),
ou 97%, dos As expressos. Assim, essas cláusulas são todas altas em ‘agentividade’, como definido em Hopper e Thompson (1980).
Cláusulas com um participante
Thompson e Hopper (2001) observaram que 89% das cláusulas com um participante se dividem em três grandes grupos: o primeiro abarca os predicados verbais
com um participante; o segundo, as cláusulas copulares; e o terceiro, as cláusulas
epistêmicas/evidenciais.
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1º) Predicados verbais com um participante
Aproximadamente um terço (38%) das cláusulas com um participante nos dados são predicados verbais com um participante, como ilustrado pelos predicados em negrito nos exemplos seguintes:
(1) I’ve been sleeping 10 hours/Eu tenho dormido 10 horas
because Maureen was visiting/porque Maureen estava visitando
I forgot/Eu esqueci
The pay in advance/Eles pagaram adiantado
I don’t remember/Eu não me lembro
I was belly-aching/Eu estava com dor na barriga
you guys are supposed to go home now/vocês meninos eu suponho
que vão para casa agora
Vale dizer que muitos desses predicados, tais como visit, forget e remember (visitar, esquecer e lembrar) podem também ocorrer com dois participantes, em
inglês. O surpreendente é que em muitos desses verbos, o uso de um participante é tão frequente quanto o uso de dois participantes. Tais considerações têm
fortes implicações para a noção de estrutura de argumento. Parece-nos que, em
português, esses verbos apresentam comportamento muito semelhante, visto
que são recorrentes orações do tipo: Ana visitou João. Jô esqueceu o livro. O filho
lembra o pai.
2º Cláusulas copulares
Thompson e Hopper (2001) asseguram que, aproximadamente, um terço (37%)
das cláusulas com um participante, nos dados, são cláusulas copulares. Isto é,
elas nunca terão um verbo lexical. Elas são distribuídas em três grupos:
(a) Cláusulas com predicado adjetivo (quase a metade, ou 47%, das cláusulas copulares)
(1) Trish is pregnant again/Trish está grávida de novo.
I’m excited about i/Eu estou empolgada com isso.
It was confidential/Isso foi confidencial
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(b) Cláusulas com predicado nominal (1/3, ou 35%, das cláusulas copulares)
(2) Is that Just carbonated water?/É aquilo apenas água carbonada?
That’s the whole point/ Aquele é o ponto principal
Ray’s his manager/Ray é gerente
(c) Cláusulas de predicado obliquo ((1/5, ou 19%, das cláusulas copulares)
(3) She’s still at home/Ela ainda está em casa
She’s in here sobbin/Ela está aqui soluçando
It was from me/Isso foi de mim
I’d be on pregnancy vitamins/Eu estaria sob vitaminas de gravidez
I think I’m over it faster than I would be/Eu acho que eu supero mais rápido do
que eu superaria
3º Cláusulas epistêmicas/evidenciais
O último maior grupo de cláusulas com um participante, representando 14%,
são o que Thompson e Hopper (2001) chamam de cláusulas epistêmicas/evidenciais, isto é, cláusulas que contêm verbos epistêmicos ou evidenciais. No
sistema de codificação discutido por Thompson e Hopper (2001), foram contabilizados verbos tais como know/saber, think/pensar, see/ver, figure/imaginar/supor,
e remember/lembrar, quando seguido por uma cláusula, como cláusulas com um
participante epistêmico/evidencial em vez de predicados que tomam complementos, como ilustrado a seguir.
(4) I don’t see how French over the phone could be workable/
Eu não vejo como o Francês sobre o telefone poderia ser viável
I dunno IF it’s worked/Não sei se isso já funcionou
I guess we are/Eu acho que estamos
I remember I was talking to him regularly for a time/
Lembro que estava conversando com ele regularmente por um tempo
I don’t think it’s workable/Eu não acho que é viável
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Observações Finais
A transitividade, provavelmente, ainda continuará ocupando o centro da preocupação de muitos estudiosos. Embora venha sendo muito discutido, o fenômeno propicia atenção visto que, dentre outras coisas, configura-se um grande
desafio, sobretudo, em sala de aula. Do ponto de vista da perspectiva tradicional, a transitividade é abarcada, por vezes, de forma caótica, com a mistura de
critérios sintáticos e semânticos, além da tentativa de se analisar os verbos fora
de qualquer contexto.
Transitividade, regência verbal e valência verbal sempre foram tratadas como
sendo sinônimas. Nas gramáticas tradicionais, a transitividade é acolhida na
parte de sintaxe, destinada à regência verbal. Regência verbal é a relação de dependência entre um termo regente (o verbo) e um termo regido (complemento).
A valência verbal tem relação com o número de argumentos que o verbo seleciona (valência quantitativa), suas funções sintáticas (valência sintática) e seus
papéis semânticos (valência semântica).
Diferentemente dessa visão, o modelo teórico norteador deste estudo, concebe a transitividade como uma propriedade que se manifesta ao longo do discurso. Logo, dentro desse pressuposto, cada elemento de uma oração exercerá
um papel importante quanto à significação do todo. Assim, a transitividade é
concebida a partir do complexo de parâmetros. Há muitas evidências de que a
transitividade é uma propriedade global das cláusulas, que ela é um continuum
ao longo do qual vários pontos se agrupam e têm uma forte tendência de coocorrerem, e que a relação transitividade alta/baixa está correlacionada com os
planos discursivos figura e fundo, respectivamente.
Para Hopper e Thompson (1980), a transitividade oracional relaciona-se a uma
função pragmática. O falante/escritor, ao organizar seu texto é guiado por seus
objetivos comunicativos e pela percepção da necessidade de seu interlocutor.
Desse modo, o texto apresenta uma distinção entre o que é central e o que é
periférico.
Os dados levantados por Thompson e Hopper (2001) mostram que as cláusulas
da conversação em inglês apresentam transitividade muito baixa. Essa evidência parece encontrar respaldo na observação dos linguistas de que, em inglês,
as cláusulas oriundas de conversas espontâneas não tenham dois ou mais parSABERES Letras
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ticipantes.
Thompson e Hopper (2001) consideram que a baixa transitividade da maioria
das cláusulas na linguagem conversacional tem muito mais relação com o gênero em questão. Embora os autores não tenham se aprofundado na relação entre
gênero e interação, seguiram a ideia de que o gênero é inerentemente social, e
tem a ver com a língua em uso. O que os falantes sabem sobre as cláusulas de
suas línguas está relacionado aos gêneros que eles utilizam e aos quais estão expostos diariamente. Para muitos falantes do inglês, por exemplo, como atestam
os linguistas, isso inclui uma gama de formas da língua escrita bem como uma
gama de estilos de interação e registros. Isso significa que os falantes têm armazenado e podem recuperar muito mais padrões do que os que estão evidentes
nos dados que Thompson e Hopper (2001) analisaram.
REFERÊNCIAS
CEGALLA, D. P. Novíssima gramática da língua portuguesa. 18. ed. São Paulo: Nacional, 1989.
CUNHA, C. e CINTRA, L. F. L. Nova gramática do português contemporâneo.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
Hopper, P.; Thompson S. A. Transitivity in Grammar and Discourse. Language 56, 1980. p. 251-99.
KURY, Adriano da G. Novas lições de análise sintática. São Paulo: Ática,
1993.
ROCHA LIMA, C.H. da. Gramática normativa da língua portuguesa. 24. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.
SAID ALI, M. Gramática secundária e gramática histórica da língua portuguesa. 3. ed. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1964.
THOMPSON; S. A.; HOPPER, P. J. Transitivity, clause structure, and argument
structure: evidence from conversation. In: BYBEE, J.; HOPPER, P. Frequency
and emergence of linguistic structure. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2001. p. 27-60.
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DISTORÇÃO DE SONORIDADE NA AQUISIÇÃO
DO PORTUGUÊS POR DESCENDENTES
GERMÂNICOS1
Shirlei Conceição Barth Schaeffer2*
RESUMO
O objetivo deste artigo consiste em apresentar algumas dificuldades dos descendentes germânicos que possuem o alemão e/ou o pomerano como língua
materna na aquisição de fonemas da língua portuguesa, a qual é aprendida em
ambiente escolar e, nessa fase, os alunos ainda não a dominam completamente.
Nesse intuito, realizou-se uma pesquisa quantitativa de cunho etnográfico e sociolinguístico relacionada ao projeto Atlas Linguístico do Espírito Santo (ALES).
A pesquisa foi feita com alunos do primeiro ciclo do Ensino Fundamental em
duas escolas públicas municipais através de um questionário fechado com fonemas selecionados em início de palavra e em posição intervocálica. Como resultado, observou-se a ocorrência frequente da distorção de sonoridade entre
eles havendo, portanto, a necessidade em aprimorar as metodologias adotadas
nessas escolas para atender as dificuldades linguísticas desses alunos.
PALAVRAS-CHAVE: Língua materna. Aquisição do português. Distorção de
sonoridade. Fonética.
INTRODUÇÃO
A diversidade social, cultural e étnica é recorrente no Brasil, o que pode ser
explicado, entre outros fatores, pelas correntes imigratórias iniciadas desde o
seu descobrimento. Assim, o modo de falar brasileiro apresenta variações lin1- Este trabalho foi apresentado como comunicação oral no X Congresso Nacional de
Fonética e Fonologia/ IV Congresso Internacional de Fonética e Fonologia, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói/RJ em novembro de 2008.
2*Mestranda pelo Programa de pós-graduação stricto sensu em Estudos Linguísticos,
pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
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guísticas, por isso é possível caracterizar um determinado grupo pela fala usada
cotidianamente. Essa heterogeneidade linguística se deve à mistura de raças
existentes no Brasil desde a sua colonização. Os povos que para cá vieram ainda preservam características de sua cultura e, até mesmo, de sua língua, como
é o caso dos descendentes de alemães que habitam as regiões serranas do Espírito Santo, um exemplo é o município de Santa Leopoldina, local de nossa
investigação. Além dos descendentes de alemães, há também, no município, os
descendentes de pomeranos que possuem traços culturais e linguísticos bem
marcados. Esses dois grupos convivem nessa região e, mesmo estando em contato cada um, preservam os traços que lhes pertencem, uma vez que existem
casamentos em que há descendentes de alemães e pomeranos e os filhos podem
aprender ambas as línguas antes do português. Como há a convivência do pomerano e do alemão em algumas famílias, os resultados dessa pesquisa podem
ser influenciados pelo pomerano, pois muitas crianças utilizam tanto o pomerano quanto o hunsrückisch, dialeto do alemão, na comunicação cotidiana.
Os grupos de descendentes germânicos quando se fixaram em nosso estado,
permaneceram junto a sua comunidade linguística. Com isso, se isolaram de comunidades que falavam a língua portuguesa, o que pode ter facilitado a transmissão da cultura, dos costumes e da língua para as gerações seguintes. Outra
hipótese baseia-se na personalidade forte desse povo, uma vez que se recusavam a falar a língua portuguesa e os contatos com os brasileiros eram feitos por
intérpretes no período imigratório.
Esses descendentes repassam seus valores para os filhos, os quais, geralmente,
aprendem o alemão e/ou pomerano antes do português, o qual é aprendido, de
fato, na escola. A criança, ao chegar à idade escolar depara-se com uma situação
de formalidade ditada pela escola que a pressiona a deixar de falar, nesse ambiente, o alemão para utilizar o português que ainda não está muito bem internalizado por elas. Como consequência disso, os alunos sentem dificuldades em
estruturar algumas frases e pronunciar determinados vocábulos pela influência
exercida da língua materna na L232, o que interfere no ensino/aprendizagem e,
geralmente, resulta em evasão escolar, fato recorrente na região. A maioria das
32- Entende-se por L2 a segunda língua aprendida pelo aluno, nesse caso, a língua
portuguesa.
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crianças estuda até a 4ª série e, no máximo, até a 8ª série devido à exigência feita
pela Igreja Luterana para que a criança possa “confirmar”, ou seja, renovar as
promessas de batismo e receber a eucaristia durante os cultos realizados. Para
isso, a criança deve estar matriculada e frequentar às aulas, caso contrário, será
impedida de participar da “confirmação”. Mesmo assim, logo que o rito citado
acima é realizado, muitos alunos evadem para auxiliar a família no trabalho
rural.
Nesse intuito surge o interesse em analisar as influências do alemão e/ou pomerano na aquisição do português. Para isso, realizou-se uma pesquisa quantitativa de cunho etnográfico e sociolinguístico relacionada ao projeto Atlas Linguístico do Espírito Santo (ALES). Foram entrevistados nove informantes entre sete
e doze anos, os quais cursavam o primeiro ciclo do Ensino Fundamental (1ª a 4ª
séries) em duas escolas públicas municipais, localizadas nas regiões rurais de
Rio das Pedras e Rio das Farinhas, em Santa Leopoldina, Espírito Santo. Essas
crianças falavam o alemão e/ou o pomerano em casa com os pais, na escola no
momento do intervalo com os demais alunos, na igreja e em outras situações cotidianas. Porém, em sala de aula, a língua predominante era o português, sendo
perceptível a dificuldade em dominá-la tanto na oralidade quanto na escrita.
Para a coleta do corpus, foi produzido um questionário fechado com alguns vocábulos, pares opositivos, de fonemas oclusivos (bilabiais, velares e dentais) e
fricativos palato-alveolares em início de palavra e posição intervocálica. Esse
questionário consistia em uma narração a partir dos vocábulos selecionados
no intuito de desinibir as crianças pesquisadas. Assim, o pesquisador narrava
a história produzida e, à medida que esses vocábulos apareciam, ele parava
de contá-la e apresentava figuras correspondentes, no intuito de que os alunos fizessem a correspondência entre signo e significante, o que teve uma boa
aceitação pelos informantes. Os dados foram gravados em fita cassete e transcritos foneticamente pela percepção auditiva do pesquisador. Vale ressaltar que
o presente artigo é um recorte de uma pesquisa mais ampla que se constituiu
em Trabalho de Conclusão de Curso (BARTH, 2007), o qual foi orientado pela
Professora Doutora Catarina Vaz Rodrigues.
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ATLAS LINGUÍSTICO DO ESPÍRITO SANTO: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES
O projeto Atlas Linguístico do Espírito Santo é coordenado pela professora
Doutora Catarina Vaz Rodrigues, financiado pelo CNPQ e desenvolvido na
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) que, segundo Haese (2009, p.
09) visa “descrever as principais variantes linguísticas presentes no português
falado no Espírito Santo” seguindo princípios da dialetologia ou geografia linguística tradicional. Os objetivos do Projeto, segundo o Diretório dos Grupos de
Pesquisa no Brasil, CNPQ (s/d), consistem em
a) apresentar, sob a forma de atlas linguístico, as principais variantes lexicais, fônicas e morfossintáticas do
Espírito Santo; b) disponibilizar dados cartográficos
precisos a lexicógrafos, professores, linguistas, gramáticos e autores de livros didáticos, contribuindo
assim para o processo de ensino-aprendizagem; c)
elaborar um banco de dados disponível a todos aqueles que necessitam informações sobre a língua em uso
no Estado.
O ALES definiu uma rede de pontos baseados nos critérios presentes no ALIB
(Atlas Linguístico do Brasil) e propostos por Antenor Nascentes com células de
5.000 km² em todo o Estado e em cada célula definiu-se um ponto. Além disso,
acrescenta-se aos critérios localidades antigas, representativas histórica e culturalmente; taxa de analfabetismo; municípios com população rural numericamente representativa e densidade demográfica de baixa a média. Sendo assim,
são pontos do ALES: 1. Mucurici, 2. Montanha, 3. Ecoporanga, 4. Pinheiros, 5.
Conceição da Barra, 6. Vila Pavão, 7. Barra de São Francisco, 8. Nova Venécia,
9. São Mateus, 10. Águia Branca, 11. Vila Valério, 12. Pancas, 13. Rio Bananal,
14. Linhares, 15. Colatina, 16. Aracruz, 17. Laranja da Terra, 18. Santa Teresa,
19. Serra, 20. Afonso Cláudio, 21. Domingos Martins, 22. Iuna, 23. Muniz Freire,
24. Ibitirama, 25. Alfredo Chaves, 26. Vargem Alta, 27. Muqui, 28. Itapemirim,
29. São José do Calçado, 30. Mimoso do Sul, 31. Presidente Kennedy, 32. Baixo
Guandu, 33. Santa Maria de Jetibá, 34. Santa Leopoldina e 35. Castelo, segundo
Rodrigues (2009).
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Inicialmente, os dados foram coletados nas zonas rurais através de questionários fechados e discursos semidirigidos. Os questionários aplicados dividiramse em: a) Questionário Fonético Fonológico, composto de 25 questões voltadas
para a realização de fonemas vocálicos e consonantais em ambientes pré-estabelecidos; b) Questionário Lexical que possui 227 questões cujos temas relacionam-se a acidentes geográficos, fenômenos atmosféricos, astros e tempo, flora,
fauna, atividades agropastoris, convívio e comportamento social, ciclos da vida,
corpo humano, religião e crenças, jogos e brincadeiras, habitação, alimentação e
cozinha, vestuário e acessórios; e c) Questionário Morfossintático que investiga
questões relacionadas à utilização de pronomes, gênero, número e grau (RODRIGUES, 2009). Todos os pontos da zona rural foram visitados e as pesquisas
encerradas.
Atualmente, o foco está na zona urbana em que a coleta de dados segue os
critérios do NURC, porém com mudanças de parâmetros para adequar-se aos
municípios do nosso Estado. Os pontos da zona urbana constituem-se por São
Mateus, Linhares, Colatina, Vitória e Cachoeiro de Itapemirim. O ALES está
em fase final restando, ainda, a publicação dos volumes referentes aos dados
coletados e aos questionários acima citados.
OS IMIGRANTES ALEMÃES
Diante da fase da passagem da mão-de-obra escrava para a mão-de-obra livre e
assalariada, o Imperador D. Pedro I solicitou a seu sogro, o Imperador austríaco
Francisco José, o envio de imigrantes para o Brasil. Assim, D. Pedro I enviou
o alemão Schaeffer à Europa, o qual trouxe uma leva de imigrantes, os quais
sonhavam possuir terras próprias e fugir do caos europeu.
Segundo Santos (1992), os imigrantes alemães sofreram muito na viagem da
região de origem até chegar ao Brasil pelas condições precárias do navio em que
se encontravam. Saíram de seu país em 1846 com destino ao Rio de Janeiro e ao
longo do trajeto passaram por Dunquerque, França, onde encontraram dificuldades para embarcar para o Brasil pela falta de navios. Gastaram quase todo o
dinheiro e, na última hora, conseguiram um navio veleiro. No Rio de Janeiro,
ficaram cerca de sessenta dias em um galpão sem condições mínimas de sobrevivência, como a falta de alimentação, por exemplo. Depois disso, orientados
por um alemão já residente no Rio de Janeiro, foram ao Imperador, o qual os
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enviou para Vitória, Espírito Santo, alegando que o clima era semelhante ao sul
do país e que lá, as terras ainda não tinham sido demarcadas. Eles chegaram,
então, a Vitória no dia 12 de dezembro de 1846, onde permaneceram alguns
dias limpando e calçando a praça em frente ao atual palácio Anchieta. Em seguida, foram levados para Viana, uma colônia de açorianos católicos, fundada
em 1812. Lá, os imigrantes ficaram em cabanas construídas previamente para
eles e seguiram, posteriormente, para Cuité.
Os homens foram a pé abrindo picadas através da floresta e as mulheres, de
canoa, pelo rio Jucu. Ao chegarem a Cuité, encontraram um inspetor intérprete
e índios botocudos pouco civilizados que tinham feito um roçado e construído
cabanas, onde os colonos ficariam inicialmente até que se viabilizassem melhores condições.
Em 1847, uma leva de imigrantes instalou-se na Colônia de Santa Isabel, atual
município de Domingos Martins em um total de 163 alemães provenientes do
Hunsrück e do Hesse, região central do Reno. Em 1859 e 1860 chegaram mais
imigrantes alemães a Santa Isabel, sendo a grande maioria da mesma região
daqueles que fundaram a colônia (SCHWARZ, 1992). A partir de 1867, grandes
levas de imigrantes alemães foram trazidos para a colônia de Santa Leopoldina,
fundada em 1857 que de 1235 habitantes elevou-se para cerca de 5000 em 1874
(ROCHA, 2000).
O desejo dos colonos consistia em tomar conta de seus lotes de terra, mas isso
não foi possível, porque só a metade das terras estava demarcada e assim mesmo não havia caminhos para atravessar a mata e chegar aos lotes. Porém, com
muito trabalho, eles conseguiram tornar o local habitável (SANTOS, 1992).
Inicialmente, cada colono recebeu cerca de 50 hectares de terra, o que foi modificado para 25 hectares e teriam que pagar o equivalente a noventa e três mil réis.
No início, cada colono recebia do governo cento e quarenta mil réis mensais, de
acordo com o tamanho da família. Com o passar do tempo, essa quantia passou
para vinte e quatro mil réis ou cinquenta e nove mil réis. Isso dificultou um
pouco mais a vida árdua dos colonos e, consequentemente, a própria imigração.
O alimento que comiam era fraco, escasso e estranho para eles que se baseava
em feijão preto e farinha de mandioca. Além disso, Viana não queria comprar
nem vender nada para esses imigrantes por questões religiosas e raciais. Alguns
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chegaram a apavorar-se, perder o equilíbrio emocional e suicidar-se. Já outros,
adaptaram-se à floresta tirando dela o próprio alimento: palmitos, legumes,
brotos de samambaias e caças.
A vida desses imigrantes foi muito difícil, porém aqueles que resistiram, repassaram muitos valores para as gerações seguintes e, estas, relembram e cultivam
essa herança cultural e linguística deixada por seus ascendentes.
QUANDO NÃO SE FALA COMO OS OUTROS
Ainda hoje, os descendentes germânicos preservam a cultura, a língua e os costumes de seus antepassados. Assim, alguns aprendem o alemão e/ou o pomerano antes do português, o qual costumava ser aprendido somente na escola.
Porém, atualmente, as crianças têm contato com a língua portuguesa antes dessa idade, mas no ambiente familiar e social da região as línguas de imigração
são predominantes.
Ao chegar à escola, as crianças precisam dominar a língua portuguesa, o que
não é fácil visto as influências exercidas pela língua materna, no caso, o alemão
e/ou o pomerano. Essas marcas são conhecidas como sotaques, o que é visto
pela sociedade como erro resultando no preconceito linguístico. Segundo Bagno (2002, p. 70),
A língua é frequentemente usada na prática da discriminação, da exclusão social. O preconceito linguístico
vivo e atuante é uma realidade inegável no Brasil. Explicitar, explicar e combater esse preconceito é uma
das tarefas incontornáveis da educação linguística.
Dessa forma, cabe aos educadores a tentativa de combater esse preconceito,
pois a língua varia e isso ocorre a todo o momento, visto que ela nasce, amadurece, morre e pode renascer. Prova disso são os textos do português arcaico que
são difíceis de compreender, uma vez que as palavras, expressões, estruturas
e o significado diferem do que somos acostumados em utilizar atualmente na
língua que falamos.
A variação linguística já existia no Latim e era vista como erro. Dessa forma, o
Latim Clássico cedeu lugar para o Latim Vulgar que originou a nossa língua.
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Assim, rivus (rio) passou a rius, em que houve a queda da consoante fricativa
labiodental. Os estudiosos da época condenavam essa forma de falar pelo povo,
porém é nítido que não são os gramáticos que mantêm as regras da língua e,
sim, a população que a utiliza diariamente e espalha as formas linguísticas adotadas por eles, uma vez que a língua é viva e se modifica no tempo, no espaço e
no contexto. Bagno (2002, p. 71-72) aponta, ainda, que
[...] do ponto de vista exclusivamente científico, não
existe erro em língua, o que existe é a variação e mudança, e a variação e a mudança não são ‘acidentes de
percurso’: elas são constitutivas da natureza mesma
de todas as línguas humanas vivas. (...) As línguas
simplesmente variam e mudam.
Assim, variações linguísticas, segundo Tarallo (1990, p. 3), são um conjunto de
variantes linguísticas, as quais são “diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade”. Por exemplo, a
marcação de plural é variável, as variantes são as ocorrências dessa marcação:
aS meninaS SÃO bonitaS; aS menina É bonita; aS meninaS SÃO bonita. Ao utilizar
qualquer forma dessas, o interlocutor compreenderá o que o falante quer dizer,
porém será preciso adequar-se ao contexto em que se está inserido ao escolher o
repertório vocabular, caso contrário, o falante pode sofrer o preconceito linguístico pela noção de erros linguísticos. E sobre o erro linguístico:
Do ponto de vista sociológico e antropológico é uma
avaliação estritamente baseada no valor social atribuído ao falante, em seu poder aquisitivo, em seu grau
de escolarização, em sua renda mensal, em sua origem geográfica, nos postos de comando que lhe são
permitidos ou proibidos, na cor de sua pele, em seu
sexo e outros critérios e preconceitos estritamente socioeconômicos e culturais. (BAGNO, 2002, p. 73)
Há, portanto, inúmeros fatores para as ‘avaliações’ e, consequentemente, o preconceito linguístico realiza-se cada vez mais e com maior intensidade. Isso é
um problema sério e crescente sendo maior até que o preconceito racial. As
pessoas que sofrem esse tipo de preconceito sentem-se incapazes, humilhadas e
se fecham cada vez mais com a sensação de que não dominam a própria língua.
Muitas vezes, a própria escola alimenta esse tipo de preconceito ao defender
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que somente a norma culta está correta e quaisquer variações estão erradas,
enquanto o contrário deveria acontecer: a instituição escolar deveria incentivar
e mostrar ao aluno as situações de fala e a questão de adequação linguística
segundo o contexto em que o falante está inserido. Bagno (2002, p. 75) reforça
que
Uma das tarefas do ensino de língua seria, então,
discutir os valores sociais atribuídos a cada variante
linguística, enfatizando a carga de discriminação que
pesa sobre determinados usos da língua, de modo a
conscientizar o aluno de que sua produção linguística, oral ou escrita, estará sempre sujeita a uma avaliação social, positiva ou negativa.
Portanto, a escola deve ser um local em que se ensina e se mostra os usos da
língua, além da noção de adequação ao contexto e não mais um instrumento
de discriminação, ditando apenas o que é certo e errado, em outras palavras,
as variantes cultas/padrão estão corretas e quaisquer outras, erradas. É preciso
que haja reflexão para o combate desse preconceito e que todos tenham, de fato,
direito à educação de qualidade e reflexão sobre a língua utilizada pela população do país.
Muitas variações na fala estão relacionadas ao nível fonético, principalmente
entre os descendentes germânicos que transferem os fonemas da L1 para a L2.
Por isso, faz-se necessário conhecer um pouco mais acerca da fonética e as variações que ocorrem na fala do público em discussão.
FONÉTICA
Segundo Cagliari (2002, p. 17-18), “a principal preocupação da Fonética é a descrição dos fatos físicos que caracterizam linguisticamente os sons da fala”. Além
disso, ela descreve esses sons, citando quais mecanismos e processos de produção da fala estão envolvidos em um determinado segmento da cadeia sonora da
fala. A Fonética não trabalha apenas na constatação física de fatos tirados de dados da cadeia sonora da fala, mas, também, em função do sistema linguístico.
Divisão da Fonética
A Fonética pode ser dividida em três dimensões: articulatória, auditiva e acúsSABERES Letras
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tica. Segundo Santos e Souza (2003), a dimensão articulatória é aquela que leva
em conta o que se passa no aparelho fonador durante a produção de sons sendo
relevante, portanto, a vibração das pregas vocálicas, o esforço físico e o momento dos movimentos articulatórios. A auditiva considera a percepção do ouvinte
sendo fundamentais a altura, a intensidade e a duração dos sons. Já a dimensão acústica centra-se nas propriedades físicas da onda sonora que é produzida
pelo ar ao passar pelo aparelho fonador em que a frequência, a amplitude e o
tempo são necessários. Neste trabalho, a ênfase será dada à dimensão articulatória, uma vez que se observa, para a produção dos sons, o posicionamento dos
vários órgãos constituintes do aparelho fonador.
A) As consoantes do Português
As consoantes do português são, segundo Vandresen (1988): [p], oclusiva bilabial desvozeada; [b], oclusiva bilabial vozeada; [t], oclusiva alveolar desvozeada; [d], oclusiva alveolar vozeada; [k], oclusiva velar desvozeada; [g], oclusiva
velar vozeada; [f], fricativa labiodental desvozeada; [v], fricativa labiodental
vozeada; [s], fricativa alveolar desvozeada; [z], fricativa alveolar vozeada; [ʃ],
fricativa alveopalatal desvozeada; [ʒ], fricativa alveopalatal vozeada; [m], nasal
bilabial; [n], nasal alveolar; [ɲ], nasal palatal; [l], lateral alveolar; [ʎ] lateral palatal; [ɾ], tepe alveolar; [x], fricativa velar desvozeada; [w], semivogal bilabial;
[y], semivogal palatal.
B) Consoantes do Alemão
Segundo Vandresen (1988), as consoantes do alemão são: [p], oclusiva bilabial
desvozeada; [b], oclusiva bilabial vozeada; [t], oclusiva alveolar desvozeada;
[d], oclusiva alveolar vozeada; [k], oclusiva velar desvozeada; [g], oclusiva velar
vozeada; [f], fricativa labiodental desvozeada; [v], fricativa labiodental vozeada;
[s], fricativa alveolar desvozeada; [z], fricativa alveolar vozeada; [ʃ], fricativa
alveopalatal desvozeada; [ʒ], fricativa alveopalatal vozeada; [x], fricativa velar
desvozeada; [ɦ], fricativa glotal vozeada; [m], nasal bilabial; [n], nasal alveolar;
[ŋ] nasal velar; [l], lateral alveolar; [ɾ], tepe alveolar; [w], semivogal labial; e [y],
semivogal palatal.
Constata-se que no português há consoantes inexistentes em alemão, como a
fricativa velar vozeada e desvozeada [ɣ, x], a lateral palatal [ʎ] e a nasal palatal
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[ɲ]. Por outro lado, o mesmo ocorre no alemão: a fricativa velar vozeada [ɣ], a
nasal velar [ŋ] e a fricativa glotal vozeada [ɦ]. Vandresen (1988, p. 89) cita algumas ocorrências de consoantes que não ocorrem no português: lachen /’laxen/
“rir”; acht /axt/ “oito”, ich /ix/ “eu”, haus /haus/ “casa”; haben /’haben/ “ter”;
sinen /zinen/ “cantar”.
C) Vogais do Português
No português, há as seguintes vogais: [a], baixa central; [ɛ], média-baixa anterior não-arredondada; [ɔ], média-baixa posterior arredondada; [e], média-alta
anterior não-arredondada; [o], média-alta posterior arredondada; [i], alta anterior não-arredondada; [u], alta posterior arredondada. E as nasais [ĩ, ẽ, ã, õ, u].
D) Vogais do Alemão
As vogais do alemão, segundo Vandresen (1988), diferem um pouco das do português. São elas: [a], baixa central; [e], média-alta anterior não-arredondada; [ø],
média-alta anterior arredondada; [o], média-alta posterior arredondada; [i], alta
anterior não-arredondada; [y], alta anterior arredondada; e [u], alta posterior
arredondada. Portanto, no alemão não há vogais médias-baixas [ɛ] e [ɔ] como
no português, o qual não possui as anteriores arredondadas [ø] e [y].
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
A aprendizagem de uma língua, segundo Brenner (1986, p.17), “se realiza num
processo cíclico e sistêmico, pela assimilação das estruturas mais simples às
mais complexas”. Sendo assim, é natural que na fase de internalização da gramática da língua ocorra assimilação com a língua materna, troca de fonemas e
outros processos relacionados à estrutura da língua. Muitas vezes, um fonema
diferencia-se apenas por um traço, como o de sonoridade, por exemplo, o que
dificulta a percepção do aprendiz e, então ocorrem as distorções de sonoridade,
ou seja, a troca de um fonema sonoro por surdo como /b/ por /p/.
As crianças pesquisadas falam o alemão desde pequenas e, ainda, algumas, o
pomerano e, após iniciar o período escolar, têm mais necessidade em falar, também, o português. No início é comum ocorrer influências da língua materna
como distorções de sonoridade, o que gera o preconceito linguístico por muitas
pessoas. Brenner (1986, apud Brenner 1983, p.48) diz que “a criança troca foSABERES Letras
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nemas e que a percepção de certos fonemas, como /b/ opondo-se a /p/ exige
maior acuidade auditiva do que /v/ em oposição a /f/”.
Segundo Schifino e Brenner (1981, p. 31), “as distorções ocorrem porque o aluno não distingue o que ouve, portanto, trata-se de um problema de acuidade
auditiva”. Outro fator que contribui para a distorção de um traço tão pouco
perceptível como a sonoridade consiste na utilização por parte do aluno de um
código que não domina.
Na pesquisa de campo realizada, os dados referem-se aos nove informantes que
pronunciaram em voz alta as palavras analisadas uma única vez. Sendo assim,
nas tabelas abaixo, os dados numéricos foram transformados em porcentagens
correspondentes no intuito de facilitar a compreensão do leitor. Observou-se
que a distorção de sonoridade é frequente e intensa. As consoantes oclusivas
bilabiais vozeadas /b/ foram trocadas pelas oclusivas bilabiais desvozeadas
/p/ com maior intensidade em início de palavra diante da vogal alta posterior
arredondada /u/, sílaba tônica de paroxítona, como em bule (100%) e diante da
vogal alta anterior não-arredondada /i/, em sílaba átona de paroxítona, como
em bicicleta. Já nas palavras banho, banana, barco e bola, as distorções ocorreram
com menor intensidade: 38%, 50%, 17% e 44%, respectivamente. A posição intervocálica também favoreceu bastante as distorções, como em abóbora (50%) e
jabuticaba (71% e 75%):
OCLUSIVAS BILABIAIS
Palavra
Ambiente
Uso do [p]
(%)
Uso do [b]
(%)
Banho
Início de palavra diante de [ã]
38
62
Banana
Início de palavra diante de [a]
50
50
Barco
Início de palavra diante de [a]
17
83
Bicicleta
Início de palavra diante de [i]
62
38
Bola
Início de palavra diante de [ɔ]
44
56
Bule
Início de palavra diante de [u]
100
0
Abóbora
Intervocálica, entre [a] e [ɔ] entre [ɔ] e [o]
50
50
Jabuticaba
Posição intervocálica, entre [a] e [u]
71
29
Jabuticaba
Posição intervocálica, entre [a] e [a]
75
25
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Tabela 1: Troca de fones oclusivos bilabiais
Nas oclusivas velares a troca da vozeada /g/ pela desvozeada /k/ ocorreu
em início de palavra diante de /a/. A posição intervocálica pouco favoreceu as
distorções. Porém em jacaré, a oclusiva velar desvozeada /k/ foi trocada pela
vozeada /g/, o que não era esperado, uma vez que a troca de um fonema sonoro por um surdo não é comum.
OCLUSIVAS VELARES
Palavra
Ambiente
Uso do [k]
(%)
Uso do [g]
(%)
Gato
Início de palavra diante de [a]
78
22
Garfo
Início de palavra diante de [a]
60
40
Água
Posição intervocálica, entre [a] e
[wa]
13
87
Linguiça
Posição intervocálica entre /ĩ/ e /
wi/
40
60
Jacaré
Posição intervocálica, entre [a] e [a]
10 [k] ~ [g]
90 [k]
Tabela 2: Troca de fones oclusivos velares
As oclusivas dentais foram pouco distorcidas, exceto em início de palavra diante da vogal média-alta anterior não-arredondada [e], como em dedos, cuja distorção da vozeada [d] pela desvozeada [t] foi em torno de 70% das ocorrências.
OCLUSIVAS DENTAIS
Palavra
Ambiente
Uso do
[t] (%)
Uso do
[d] (%)
Dedos
Início de palavra diante de [e]
70
30
Dedos
Posição intervocálica, entre [e] e [o]
40
60
Geladeira
Posição intervocálica, entre [a] e [ej]
13
87
Quadro
Posição medial, entre [a] e [ɾ]
13
87
Tabela 3: Troca de fones oclusivos dentais
As fricativas alveopalatais foram distorcidas com maior intensidade, principalSABERES Letras
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mente em início de palavra em que a fricativa alveopalatal vozeada [ʒ] foi trocada pela desvozeada [ʃ]. Contudo, nas palavras geladeira e refrigerante encontrouse distorções não previstas. Em geladeira, a fricativa alveopalatal vozeada [ʒ]
foi substituída pela desvozeada [ʃ], 49%, e pela fricativa velar desvozeada [x],
13%. Em refrigerante, o [ʒ] foi substituído por [ʃ], 37%, e pela fricativa alveolar
vozeada [z] em 25% das ocorrências.
FRICATIVAS ALVEOPALATAIS
Uso do [
] (%)
Uso do
[ ] (%)
Palavra
Ambiente
Jacaré
Janela
Jabuticaba
Início de palavra diante de [a]
Início de palavra diante de [a]
Início de palavra diante de [a]
89
56
87
11
44
13
Geladeira
Início de palavra diante de [e]
49 [ʃ] e 13 [X]
38
Laranja
Refrigerante
Frigideira
Queijo
Posição intervocálica, entre [ã] e [a]
Posição intervocálica, entre [i] e [e]
Posição intervocálica, entre [i] e [i]
Posição intervocálica, entre [ej] e [o]
67
33
38
50
87
37 [ʃ] e 25 [z]
50
13
Tabela 4: Troca de fones fricativos alveopalatais
Percebe-se, pelos dados apresentados, as dificuldades de domínio de determinados fones pelos alunos bilíngues. Esse fato só reforça a urgência de uma educação voltada para esse público no intuito de que possam continuar usando a
língua materna e dominar, ainda, a língua portuguesa, necessária para a comunicação com comunidades não alóctones.
CONCLUSÃO
Ao aprender uma segunda língua é comum a influência da primeira, uma vez
que as estruturas desta já estão internalizadas, o que dificulta o aprendizado da
L2, pela assimilação das estruturas assim como os fonemas da L1, o que pode
ser superado com o tempo e com o auxílio do professor, no caso de crianças em
idade escolar.
Os descendentes de alemães pesquisados tinham como L1 o alemão e, alguns,
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o pomerano também. Já o português era aprendido posteriormente ao iniciar
a vida escolar. Isso gerou dificuldades imensas aos alunos, uma vez que precisavam aprender uma outra língua e, simultaneamente, a escrita da mesma que
sequer dominavam oralmente.
Dessa forma, percebe-se a influência da língua materna na oralidade dessas
crianças. Os fonemas do português não foram totalmente assimilados, assim a
distorção de sonoridade, que também há entre monolíngues, fez-se muito presente entre bilíngues que distorceram um fonema sonoro por surdo. Houve um
caso, porém, em que a criança trocou um fonema surdo por sonoro, o que não
é comum.
O maior índice de distorção ocorreu entre as fricativas alveopalatais diante da
vogal [a] em início de palavra, entre as oclusivas bilabiais diante de [u] e [i] e
nas oclusivas velares, a ocorrência foi maior em início de palavra diante de [a],
como em gato, garfo; por outro lado, a distorção entre as oclusivas dentais é menos frequente, exceto em início de palavra como em dedos.
Esses resultados demonstram o quanto é importante um trabalho linguístico
com esses descendentes germânicos, no sentido de mostrar as diferenças e similaridades existentes entre as línguas, o que exige conhecimento de ambas e nem
todos os professores possuem isso. O processo de internalização de uma língua
requer tempo e paciência, o que não é respeitado pela escola, visto a necessidade de os alunos falarem o português e, sem dominá-lo, aprenderem, ainda, a
escrita dessa língua. Dessa forma, os professores precisam respeitar o tempo de
cada aluno e mostrar de forma criativa os fonemas do português para, depois
ensinar a escrita, a qual também pode ser influenciada pela língua materna se
os fonemas da L2 não forem internalizados. Portanto, as crianças devem ser
respeitadas e a escola tem o papel de privilegiar uma educação intercultural e
acabar com o preconceito linguístico, muito disseminado pela sociedade que
discrimina quaisquer variantes não-padrão.
REFERÊNCIAS:
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HUMOR, DISCURSO E IDEOLOGIA NAS
CRÔNICAS DE CÉSAR CARDOSO
Roberto Sturion Sgarbiero (UNIMEP)1*
Ana Cristina Carmelino (UFES)2**
RESUMO
Partindo do pressuposto que o humor tem a importante função de desestruturar a ordem social estabelecida pelas relações de poder, este estudo analisa
crônicas do autor César Cardoso, publicadas pela revista Caros Amigos, com
o objetivo de demonstrar como esse autor se utiliza sutilmente do humor para
denunciar os problemas sociais. Além de considerações sobre o humor, como a
sua forma de manifestação e seus objetivos, o trabalho também se embasa nos
conceitos de formação discursiva e formação ideológica, constantes da análise
do discurso francesa.
Palavras-chave: Humor. Discurso. Ideologia. Crônica. César Cardoso.
INTRODUÇÃO
Este estudo busca analisar as crônicas do autor César Cardoso, publicadas pela
revista Caros Amigos. Nossa análise se fundamenta em pressupostos da Análise do Discurso francesa, mais precisamente, nos conceitos de Formação Discursiva e Formação Ideológica propostos por Foucault (2008), e revisitados por
Fiorin (1997) e Mussalim (2001). Como verificamos a presença do humor em
nosso corpus, tratamos também desse conceito, a partir de Bergson (1987), Propp
(1992) e Travaglia (1990).
1* Graduado em Letras – Licenciatura em Língua Portuguesa pela UNIMEP – Universidade Metodista de Piracicaba.
2** Docente do Departamento de Línguas e Letras da UFES – Universidade Federal do
Espírito Santo.
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César Cardoso é colaborador da revista Caros Amigos, com espaço fixo desde
o ano de 2003. Foi constatado que a referida revista apresenta um posicionamento político e ideológico esquerdista, sendo assim, por meio da análise de
formações discursivas e ideológicas presentes nas crônicas, nossa análise visa
apresentar exemplos de como o humor é usado para criticar o que é socialmente
estabelecido nas relações de poder formadas dentro de uma sociedade, predominantemente, capitalista e regida por políticas direitistas.
Para a realização de um trabalho pautado na Análise do Discurso, além de conceitos teóricos mencionados, consideramos de fundamental importância contextualizar o corpus de análise, por isso fizemos considerações não só sobre o autor César Cardoso, mas também sobre a revista Caros Amigos, suporte em que
nosso corpus foi publicado. Portanto, nosso estudo traz, inicialmente, os pressupostos teóricos nos quais nos baseamos seguido de uma breve contextualização
onde localizamos o objeto de análise num lugar sócio-histórico-ideológico. Na
sequência, apresentamos a análise de alguns exemplos extraídos das crônicas
publicadas pela Caros Amigos em anos distintos, a saber: Uma idéia (fevereiro
de 2005), Deus criou a mídia (outubro de 2007) e Guerra de quadrilhas na Europa
(Janeiro de 2008). Os exemplos destacados figuram os dados mais importantes
de cada crônica para exemplificar a crítica social presente em nosso corpus.
A escolha de crônicas de César Cardoso como objeto de análise deve-se, sobretudo, ao fato de elas apresentarem um humor bastante sutil e irônico; aquele que
não é construído de maneira direta nem por meios esdrúxulos, como acontece
com o uso de palavrões ou da zombaria. Tudo isso faz com que o humor presente nas crônicas não seja de fácil compreensão nem de grande alcance popular. No entanto, esse humor se enquadra no posicionamento ideológico e papel
social assumido pelo suporte, conforme veremos. As crônicas aqui analisadas,
embora abordem temas distintos, apresentam algumas semelhanças entre si:
criticam relações de poder estabelecidas dentro da sociedade.
CONCEITOS-CHAVE
Nosso estudo se baseia em conceitos da Análise do Discurso de linha francesa.
Como é possível notar, essa perspectiva teórica tem o discurso como objeto de
estudo, portanto, inicialmente se faz necessário esclarecer o conceito de discurso aqui adotado. Para isso, pautamo-nos nas considerações de Fernandes (2005,
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p. 21), o qual afirma que:
discurso (...) não é a língua, nem texto, nem a fala, mas
que necessita de elementos linguísticos para ter uma
existência material. Com isso, dizemos que discurso
implica uma exterioridade à língua (...). Referimo-nos
a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são pronunciadas.
A partir do exposto, podemos compreender discurso como “o modo de existência sócio-histórico da linguagem” (CARDOSO, 2003, p. 35); como manifestações
linguísticas vivas – dinâmicas e carregadas de ideologias – presentes num determinado contexto sócio-histórico. Assim, para análise do discurso, é necessário considerar elementos externos à língua. Como nossa análise se baseia nas
formações discursivas e nas formações ideológicas, julgamos importante especificar aqui também o conceito de ideologia: um dos aspectos externos à língua
que orienta a construção do discurso.
Compreendemos ideologia como sendo a visão de mundo de um determinado
grupo social (FIORIN, 1997). Esse conceito nos é importante tendo em vista que
a ideologia é um dos aspectos que determina a constituição do discurso de um
grupo social e pode se revelar através das manifestações linguísticas dos membros desse grupo. Para ilustrar esse conceito, consideramos o seguinte:
Podemos então afirmar que não há um conhecimento
neutro, pois ele sempre expressa o ponto de vista de
uma classe a respeito da realidade. Todo conhecimento está comprometido com os interesses sociais. Esse
fato dá uma dimensão mais ampla ao conceito de ideologia; ela é uma “visão de mundo”, ou seja, o ponto
de vista de uma classe social a respeito da realidade, a
maneira como uma classe ordena justifica e explica a
ordem social. (FIORIN, 1997, p. 29)
Desse modo, além de uma maneira de ver o mundo assumido por um determinado grupo social, a ideologia pode ser tida como orientadora do pensamento
de um grupo. Considerando-se que não há conhecimento dissociado de interesses sociais e que a ideologia justifica certa ordem social, nota-se que um dado
grupo social se organiza em torno de uma ideologia e a propaga em seu procesSABERES Letras
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so de transmissão de conhecimento.
O conceito de Formação Discursiva considera que há processos de controle social que determinam o que é interno e o que é externo a um discurso (MUSSALIM, 2001). Sendo assim, a formação discursiva se constitui em relação à sua exterioridade, levando em conta elementos externos a um dado discurso. Vejamos
o que nos diz Foucault (2008) a respeito desse conceito:
A formação regular do discurso pode integrar, sob
certas condições e até certo ponto, os procedimentos
do controle (...); e, inversamente, as figuras do controle podem tomar corpo no interior de uma formação
discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 66)
Nesse fragmento são citados “procedimentos de controle”. Considera-se, então,
que existe algo que define o discurso de um grupo e o diferencia de outro. Essa
regularidade pode ser revelada a partir da escolha de enunciados ou conceitos utilizados pelo enunciador; o que poderá defini-lo como integrante de um
determinado grupo social, ou orientado por uma determinada ideologia. Os
enunciados que constituem certo discurso são denominados pela Análise do
Discurso de Formação Discursiva (FD). Em suma, podemos entender formação
discursiva como o “lugar onde se articulam discurso e ideologia” (MUSSALIM,
2001, p. 124). Como as Formações Discursivas revelam agrupamentos em torno
de determinadas ideias, pode-se dizer que elas revelam, então, os pensamentos
que as orientam. Esses pensamentos são considerados como um de seus “procedimentos de controle”. Os pensamentos que orientam as formações discursivas
são definidos pela análise do discurso como Formação Ideológica (FI).
As formações discursivas são indissociáveis das formações ideológicas, já que a
primeira revela a segunda e a segunda orienta a primeira. Essa indissociabilidade é defendida por outros autores, dentre os quais destacamos:
Como não existem idéias fora dos quadros da linguagem, (...) essa visão de mundo não existe desvinculada da linguagem. Por isso, a cada formação ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um
conjunto de temas que materializa uma dada visão de
mundo. (FIORIN, 1997 p. 32)
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Esse mesmo autor defende que “essa formação discursiva é ensinada a cada
membro de uma sociedade ao longo do processo de aprendizagem linguística”
(FIORIN, 1997, p. 32). Assim, no processo de transmissão de conhecimentos,
o indivíduo apreende as ideologias que regem os grupos sociais através dos
enunciados que constituem e revelam tais ideologias. Nota-se, então, que Formação Discursiva e Formação Ideológica são indissociáveis; a existência de uma
não é anterior ou mais importante que a da outra.
Como nossa análise parte de um corpus que apresenta o humor como uma de
suas características e, sendo este um dos elementos que conduzem o leitor a
uma visão crítica sobre algumas relações sociais, consideramos que os conceitos
de humor serão aliados na construção do sentido de nossa análise. Sendo assim,
julgamos necessário abordar algumas questões sobre esse fenômeno complexo.
Comecemos estabelecendo a relação entre humor e riso.
Bergson (1987) considera o riso como algo que é do ser humano: “não há comicidade fora do que é propriamente humano” (BERGSON, 1987, p. 12), ou ainda,
“o homem é um animal que ri” (ARISTÓTELES apud BERGSON, 1987, p. 12).
Em Travaglia (1990, p. 66) encontramos o seguinte acerca da relação entre humor e riso: “Para nós o humor está indissoluvelmente ligado ao riso e é apenas
o riso que diferencia o humor de outras formas de análise crítica do homem e da
vida (...)”. Assim, este autor associa a prática humana do humor – que, segundo
ele, é amplamente difundida através dos tempos – com a atividade, igualmente
humana de rir.
Para este estudo, consideramos o humor sob aspectos sociais e não estritamente
linguísticos. Os aspectos sociais são importantes dada a grande difusão do humor através dos tempos em todos os segmentos das sociedades. Nossa análise
incorre no campo dos discursos e ideologias, levando em consideração o contexto social, a importância ideológica dos textos analisados nesse contexto, portanto, faz-se necessário considerar o humor como parte de uma determinada
sociedade. Bergson (1987) defende a idéia de que o riso é sempre o riso de um
grupo. Desse autor, destacamos a seguinte afirmação:
Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu
ambiente natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função
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social. (...) O riso deve corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma significação social. (BERGSON, 1987, p. 14)
Nessas considerações de Bergson (1987), é possível notar o valor dado à significação social do riso. Considera-se a sociedade como o “ambiente natural” do
riso. Assim, o sentido do humor é construído valendo-se da ideologia de seus
“espectadores”, ou ainda, o sentido do humor é construído dentro de um grupo
onde pessoas compartilham de pensamentos parecidos, ao menos a respeito de
um determinado assunto. A partir disso, olhamos para a citada função social do
riso, que é uma exigência apresentada por Bergson (1987) no fragmento acima,
para que haja riso.
Esse autor ainda nos mostra que o riso pode ter uma utilidade dentro de uma
determinada sociedade. Travaglia (1990) ressalta como função social do humor
seu aspecto denunciativo. Para melhor esclarecer esse aspecto, vejamos o que o
autor diz a esse respeito:
Do ponto de vista sociológico, alguns pontos são básicos. Sabe-se que o humor desempenha na sociedade
um papel social e político através de certas funções,
uma das quais é básica: o ataque ao estabelecido, à
censura, ao controle social, fazendo do humor o lugar de escapar à cultura (o que é social mas também
antropológico), de mostrar outros possíveis padrões
escondidos. (TRAVAGLIA, 1990 p. 59)
Travaglia (1990) traz à luz o fato de o humor servir como arma de denúncia,
como forma de promover uma “nova visão de mundo”, pois rompe com acordos sociais e culturais, revelando uma possibilidade diferente de entendimento
dos acordos sociais. Ele assume essa posição, apontando como função social e
política do humor “o ataque ao estabelecido, à censura, ao controle social” (p.
59). Nesse ponto, fica mais clara a idéia de que humor serve a um questionamento ideológico, ou seja, um questionamento das ideologias dominantes, em
determinadas situações.
Propp (1992) também afirma que “O riso é uma arma de destruição: ele destrói
a falsa autoridade e a falsa grandeza daqueles que são submetidos ao escárnio”
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(p. 46). Apesar de tratar do escárnio – referente à zombaria – que não é nosso
objeto de análise, notamos que, em certa medida, o aspecto do humor de denunciar realidades ocultas prevalece em suas várias formas e estilos.
CÉSAR CARDOSO E SUAS CRÔNICAS EM CAROS AMIGOS
Antes de passarmos à análise de crônicas de César Cardoso, faremos algumas
considerações sobre a revista Caros Amigos (suporte em que os textos aqui estudados foram publicados), sobre o próprio César Cardoso e sobre as características gerais de suas crônicas.
A Caros Amigos consiste em uma revista brasileira publicada mensalmente
desde 1997 pela editora Casa Amarela de São Paulo. Constata-se que, nos últimos meses de 2009, ela publicou uma tiragem de 40.000 exemplares com distribuição nacional. O gênero mais comum presente em Caros Amigos é o artigo
de opinião assinado por jornalistas, sociólogos, escritores, artistas plásticos, fotógrafos, entre outros profissionais. No entanto, também encontramos crônicas,
reportagens, charges, histórias em quadrinhos, entrevistas, resenhas de livros
e ensaios fotográficos. A grande maioria dos textos trata de questões políticas,
sejam atuais ou do passado.
Essa publicação assume um posicionamento político claramente “esquerdista”.
Vejamos uma propaganda sobre assinaturas da própria Caros Amigos para entendermos melhor esse posicionamento:
A gente depende de você para continuar esse projeto.
Renove sua assinatura de Caros Amigos.
Em 2008 comemoramos 11 anos de existência. Desde
1997 sustentamos a duras penas a proposta de produzir um jornalismo independente, de alto nível, que
junte no campo democrático de esquerda as mais variadas visões, com o objetivo de se contrapor ao pensamento conservador e hegemônico (em particular na
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mídia grande). Durante todos esses anos, contamos
com a cumplicidade de um grande contingente de
leitores, em particular nossos assinantes. É por tudo
isso, que agradecemos seu apoio e esperamos que
você renove sua assinatura para continuarmos esse
projeto. (Caros Amigos, fev. 2008, p. 16)
Nessa propaganda, notamos declaradamente o ideal esquerdista e de contraposição ao senso comum de Caros Amigos, tendo em vista que a propaganda
solicita ao leitor que colabore (através da renovação de sua assinatura) com a
produção de um jornalismo independente que reúne opiniões “no campo democrático e de esquerda” e que tem o objetivo de se contrapor ao pensamento
da grande mídia. Isso revela um questionamento ao senso comum e à realidade
social vigente. Convém destacar, ainda, que nomes como Eduardo Matarazzo
Suplicy (senador pelo Partido dos Trabalhadores), Fidel Castro Ruiz (ex-presidente cubano) e João Pedro Stédile (um dos principais nomes do movimento
dos trabalhadores rurais sem-terra) tem espaço fixo nessa revista. Esses nomes
são, reconhecidamente, expoentes da esquerda política no Brasil e no mundo.
Tal posição política se manifesta no conteúdo da revista o qual apresenta olhares e discussões sobre fatos políticos e sociais diferentes dos comumente veiculados pela grande mídia. Há exemplos disso na edição de n. 111 (Caros Amigos,
jun. 2006), a qual traz uma entrevista com o jornalista esportivo Juca Kfouri. O
entrevistado defende uma moralização do esporte no Brasil e faz acusações tanto à manipulação de resultados de jogos de futebol, quanto a outros atos escusos envolvendo empresas e políticos31. Tal fato nos leva a observar que a revista
compartilha de uma visão pouco ou nada difundida acerca de algo que parece
unanimidade no Brasil: o futebol. Ainda mais considerando que essa edição
fora publicada em ano e mês de copa do mundo.
Tratemos agora do autor das crônicas aqui estudadas. César Cardoso nasceu
em 1955 e é formado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Escreve para a revista Caros Amigos desde maio de 2003. Seus textos em geral
são curtos e já apareceram nas primeiras e nas últimas páginas da revista, sendo
31- Vejamos uma das considerações de Juca Kfouri: “Mas a Globo escolheu que isso que
estamos discutindo aqui não é assunto, assunto é gol, quem vai ser convocado, quem vai
ser contratado (...). Mas discutir o poder no futebol não, porque ‘nós temos uma relação
com esse poder que precisamos preservar.’ Que é comprar o futebol!” (Caros Amigos,
junho 2006, p. 34).
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que, na edição n. 111 (jun. 2006) sua coluna ganhou destaque na capa da revista.
Esse autor atua também como redator de programas humorísticos da TV Globo.
Já escreveu para os programas TV Pirata, Casseta & Planeta Urgente, Sai de Baixo
e Toma lá, dá cá.
Além de Caros Amigos, César Cardoso tem textos publicados em outros veículos de mídia, como no jornal literário Rascunho (produzido em Curitiba/
PR), na revista Cult (produzida pela editora Bregantini de São Paulo), nos blogs
Cronópios, Prosa Caótica e Leia Brasil. A maioria desses textos consiste em crônicas, apresentando, portanto, uma certa crítica social ou política. O autor ainda
publicou livros de Literatura Infantil, poesia e humor, e atuou como co-roterista
do filme A Taça do Mundo é Nossa, do grupo Casseta & Planeta. Tais trabalhos
revelam uma ampla atividade desse escritor em diversos segmentos da comunicação e da literatura.
As crônicas de César Cardoso publicadas em Caros Amigos não tratam de acontecimentos pontuais, no entanto elas apresentam características recorrentes: criticam a sociedade e o comportamento de classes sociais, demonstrando seus
efeitos para outras classes. Na maioria das crônicas, o tema é retratado de forma
inusitada, o que pode gerar o efeito de humor e conduzir o leitor a uma nova
visão de algum comportamento ou pensamento presente na sociedade. Como
exemplo disso, citemos a crônica intitulada Deus criou a mídia (Caros Amigos,
out. 2007, p. 33)42, na qual o autor se vale da proposição de que Deus tenha criado
a mídia para denunciar a postura de “donos da verdade” assumida por alguns
veículos de mídia.
Passemos agora a entender o humor construído nas crônicas de César Cardoso.
UMA LEITURA DAS CRÔNICAS DE CÉSAR CARDOSO: HUMOR,
FORMAÇÕES DISCURSIVAS E FORMAÇÕES IDEOLÓGICAS
Os textos por nós analisados neste estudo consistem em crônicas. Segundo Rezende e Campos (2005), o cronista é o prosador do cotidiano que tem compromisso com as contradições de seu tempo. Desse modo, podemos entender a
crônica jornalística como uma reflexão sobre algum assunto do cotidiano social,
42- Cf. Anexo II.
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político ou econômico. Essa reflexão pode ser promovida de várias maneiras,
dependo do cronista ou do tema. Tendo em vista o fato de a crônica, enquanto
gênero, ter um compromisso com as contradições do nosso tempo, podemos
considerar a crítica (ao que é social e ideologicamente estabelecido) como uma
característica desse gênero, o qual pode apresentar novas visões, reflexões ou
até mesmo uma visão inusitada a respeito de algum fato ou acordo social estabelecido, já que uma sociedade é constituída por domínios e acordos firmados
pelas relações de poder nela presentes.
Considerando-se o humor como “o ataque ao estabelecido, à censura, ao controle social” (TRAVAGLIA, 1990, p. 59) – ou seja, um lugar que serve à desestruturação dos acordos e relações de poder dentro de uma sociedade – e levando-se
em conta que a ideologia é um dos processos de controle do pensamento e manutenção do poder dentro de uma sociedade, podemos entender que a crônica
consiste em um terreno aberto à utilização do humor para o questionamento
das ideologias que estabelecem relações de poder dentro da sociedade.
Desse modo, procedemos, neste estudo, à análise de Formações Discursivas
e Formações Ideológicas presentes nas crônicas de César Cardoso publicadas
pela revista Caros Amigos no intuito de apresentar exemplos da utilização,
pelo autor e pelo suporte, do humor como forma de criticar as ideologias que
exercem papel dominante em nossa sociedade. Tratamos dos conceitos acima
mencionados em três crônicas do autor que versam sobre temas diferentes, mas
que apresentam como características comuns o humor e a crítica a relações de
poder.
Podemos ver exemplos do humor como crítica social na crônica intitulada Uma
idéia (anexo I). Essa crônica se apresenta como um diálogo em que um dos interlocutores defende a idéia de criar um novo país. À medida que um interlocutor
descreve como seria esse novo país, o outro vai levantando questões às quais
o primeiro responde argumentando em favor da sua idéia até que, ao final, o
segundo interlocutor mostra-se convencido de que a idéia é boa. O texto levanta fatos facilmente reconhecíveis na economia e política de países de terceiro
mundo, como o Brasil. Para ilustrar alguns aspectos de crítica a posturas ideológicas construída por meio do humor destacamos dessa crônica o seguinte
fragmento:
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– Eu tenho uma idéia. Vamos fazer um país, mas um
país novo, partindo do zero. Bota aí uns duzentos milhões de pessoas. – Tá doido, é muita gente! – Mas é
pra ser muita gente mesmo. – Mas é gente demais,
não é não? – Tá bom, cento e oitenta milhões e não
se fala mais nisso. – Sei não. Vem cá, pra começar,
como é que você vai arranjar trabalho pra essa gente
toda? – Não vai ter. – Ué, não? – Não. E é bom que
não tenha. Tendo mais gente que trabalho você paga
pouco a quem trabalha. – Visto por esse ângulo... Mas
eles vão trabalhar em quê? – Nas empresas, é claro. –
Claro? Pra mim ta é escuro. Bota aí metade deles trabalhando, já são 90 milhões. Como que você vai fazer
empresa pra essa gente toda? – Nós não vamos fazer
empresa nenhuma. – Ué, não? – Não. Vamos trazer as
empresas de fora, que já estão prontas. – E a troco de
que elas vão topar vir pra cá? – A troco não, a dinheiro graúdo, o dinheiro que eles vão economizar pagando muito pouquinho aos 90 milhões. – Bom, visto
por esse ângulo... – Além do monte de matéria-prima
novinha em folha que a gente vai dar pra eles. – A
gente vai dar? – Dar é modo de dizer. Mas vai. (Caros
Amigos, fev. 2005, p. 17)
Nesse exemplo, deparamo-nos com uma visão inusitada de como podem ter
sido gerados alguns problemas sociais de países como o Brasil. É o caso do
desemprego, dos baixos salários e da exploração de mão de obra barata por
empresas multinacionais referenciadas no fragmento destacado. Essa visão inusitada se dá por uma ideia aparentemente impossível: a de alguém criar um
país a partir de uma simples conversa. No entanto, apesar de essa ideia parecer
impossível, reconhecem-se nela fatos bastante comuns nos países mais pobres.
Isso pode nos levar a crer que, realmente, alguns países foram se construindo
ao longo da história partindo-se de preceitos parecidos com os levantados na
crônica. A ideia aparentemente nova de se criar um país partindo de preceitos
que, na realidade já regem a política e a economia de alguns países, é reconhecida como a responsável pelo efeito de humor nessa crônica.
O efeito de humor presente no fragmento analisado pode nos levar a reconhecer que a crônica serve para denunciar a postura ideológica das esferas polítiSABERES Letras
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cas dos países de terceiro mundo, mais especificamente, do Brasil. Essa postura
pode ser reconhecida em enunciados que revelam elementos da formação discursiva dos políticos, como é o caso de “(...) Tendo mais gente que trabalho você
paga pouco a quem trabalha”, ou ainda, “Vamos trazer as empresas de fora, que já estão
prontas”. Através da ideia de, propositadamente, não haver empregos para toda
população do país, e este país ter sua mão de obra explorada por empresas multinacionais (e, considerando isso tudo como uma espécie de “bom negócio”), é
possível notar que essas ideias refletem o interesse de uma determinada classe
dentro da sociedade. Essa classe tem seus interesses defendidos por tais atitudes e pode ser reconhecida como sendo a dos políticos, tendo em vista que as
atitudes citadas e defendidas no “diálogo” são atitudes que podem ser tomadas,
sobretudo, por políticos, ou seja, são atitudes de ordem política e econômica,
pois reconhecemos as referências a emprego, desemprego e negociações com
empresas multinacionais como parte da formação discursiva dos políticos.
Mesmo que os políticos não ajam exatamente da forma como está enunciado
na crônica, por tratar do universo de domínio político (economia, sociedade,
educação), demonstrando a problemática como parte da realidade do Brasil,
a crônica nos leva a concluir que, de fato, a formação ideológica de alguns políticos brasileiros (ou de outros países) pode dar-se da forma como exposta na
crônica, ou, pelo menos é esse discurso e essa ideologia que a classe política
tenta ocultar.
Outra instância da sociedade criticada nessa crônica é a mídia, sobretudo a de
grande alcance popular. Para tanto, tomemos o fragmento como análise:
Vem cá, você não acha que os 90 milhões que trabalham e ganham miséria vão acabar chiando? – Acho. –
E fica por isso mesmo? – Claro que não. A gente pega
dois milhões deles e faz eles ficarem milionários, com
um vidão de primeiro mundo nenhum botar defeito.
– Você é doido! Os outros vão morrer de inveja! – Lógico, a idéia é essa. (...) Daí a gente bola uns anúncios
dizendo, melhor, prometendo que esse desejo está ao
alcance de qualquer um. – E eles vão acreditar? – E
quem é que não acredita num anúncio bem feito, com
calda escorrendo e a mulher mais linda dizendo que
você é o tal? Hein? Hein? – Bom, visto por esse ânSABERES Letras
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gulo... Mas e os outros 90 milhões que nem ganhar
pouco ganham? – O que que tem esses 90 milhões?
– Ah, esses não vão acreditar nem em anúncio bem
feito. – Claro que acreditam, esses aí são muito mais
fáceis de enganar. Eles nem foram à escola! – Não? Claro que não. Se não tem emprego pra eles, pra que
que vai ter escola? – Mas é tão bacana ir à escola! – E
você acha bacana ter 90 milhões de pessoas espertas,
esclarecidas e sem nada pra fazer? – É, não é uma boa
idéia não. (Caros Amigos, fev. 2005, p. 17)
O enunciado mencionado trata de anúncios (entendidos como anúncios publicitários) para convencer a população de que qualquer pessoa pode possuir as
mesmas coisas que as pessoas que são milionárias possuem. No exemplo, um
dos interlocutores fala em “calda escorrendo”, ou ainda sobre mulheres bonitas
pronunciando frases de efeito. Tais elementos são facilmente encontrados em
anúncios publicitários e servem como ponto fundamental no processo de convencimento do público-alvo quanto àquilo que o anúncio propaga. Isso mostra que esses elementos fazem parte da formação discursiva da mídia em seus
anúncios publicitários. Tendo em vista que esses anúncios servem para ocultar
realidades inconfessáveis sobre ações e posturas ideológicas da classe política,
a formação ideológica da mídia de grande alcance de massas é aqui criticada ao
revelar que esta ajuda a esconder ou disfarçar o descaso dessas classes perante
os problemas sociais iminentes em países de terceiro mundo como o Brasil.
Agindo da forma sugerida no enunciado, alguns políticos teriam seus interesses satisfeitos, levando-se em conta que metade das pessoas do país trabalha
e outra metade é desempregada – como vemos em “(...) Se tem 90 milhões que
estudam e se matam pra ter um pouquinhozinho de dignidade por que que os outros 90
milhões são desempregados? Porque não querem nada com o batente” (Caros Amigos,
fev. 2005, p. 17). Afirmar que a nação estaria convencida de que metade da população não tem emprego porque não quer – sendo que, na realidade, não há
emprego para todos –, retira dos políticos a responsabilidade e necessidade de
atuação nesses setores. Desse modo, a crônica analisada nos leva a perceber a
banalização de alguns problemas sociais sérios e que são iminentes na realidade do país. Notamos assim a crítica à ideologia autoritária e dominante dentro
de uma sociedade, reconhecendo uma postura de descaso e desvalorização do
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cidadão comum por parte das classes mais abastadas da sociedade.
Na crônica intitulada Deus criou a mídia (anexo II), há uma mistura de formações
discursivas: apresentam-se elementos da formação discursiva religiosa concomitantemente a elementos do discurso dos veículos da mídia de grande alcance
de massas. Essa mistura de formações discursivas reflete a crítica de uma postura autoritária assumida por alguns veículos de comunicação. Como exemplo
disso, vejamos o seguinte enunciado:
E as tevês logo mostraram às gentes desesperadas o
que vestir, o que comer e principalmente o que engolir. E as agências de publicidade logo trouxeram os
novos mandamentos, mas em tábua não, que a tábua
ta fora de moda, é antiecológico. E os novos mandamentos vieram em telas de cristal líquido. E vós podeis votar nos dez melhores, é só entrardes no site
www.mandandobemnomandamento.com.
(Caros
Amigos, out. 2007, p. 33)
Nesse exemplo, notamos a presença da formação discursiva religiosa, que pode
ser vista principalmente nas construções com a segunda pessoa do plural, como
em “E vós podeis votar nos dez melhores. É só entrardes no site (...)”. Enunciados
construídos utilizando-se do pronome vós são comuns na Bíblia sagrada dos
cristãos. Além disso, há a referência aos dez mandamentos, reconhecidos como
elemento representante da fé cristã. Podemos considerar a ideologia religiosa
como sendo autoritária, tendo em vista que as pessoas que seguem uma religião
raramente questionam qualquer parâmetro estabelecido por ela, concebendo
tudo o que é dito como uma verdade inquestionável, sendo essa fidelidade uma
das principais características da fé religiosa. Sendo assim, ao relacionar a formação discursiva religiosa e elementos representativos da mídia como tevês,
jornais, agências de publicidade e site, nota-se que a crônica associa mídia e ideologia religiosa no intuito de revelar uma postura ideológica autoritária assumida
também pelos veículos de mídia, mostrando que a mídia constrói verdades que
não são questionadas, ou seja, os veículos de mídia assumem uma postura de
dominadores do pensamento das pessoas comuns, como é possível observar em
“E as tevês logo mostraram às gentes desesperadas o que vestir, o que comer e principalmente o que engolir”. Este enunciado revela algo muito comum: o fato de os veíSABERES Letras
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culos de comunicação propagarem pensamentos e hábitos que são rapidamente
assumidos pela sociedade sem que haja questionamento ou reflexão.
Ainda a respeito desse enunciado, convém destacar a referência à interatividade (votação pela internet) entre um programa de televisão e seus espectadores
a qual faz parte da formação discursiva dos veículos de mídia da atualidade,
haja vista a presença de muitos programas de televisão que realizam votações
pela internet. O fato de os “novos mandamentos” surgirem na televisão, como
se fossem atração de um programa, mostra-nos que se trata da formação discursiva dos vários veículos de mídia de grande alcance de massas populares.
Podemos observar a presença da formação discursiva da mídia atual associada à formação discursiva religiosa nos seguintes enunciados: “E as agências de
publicidade logo trouxeram o dez mandamentos” ou o destacado anteriormente “E
vós podeis votar nos dez melhores (...)”. Nesse caso, aparecem de forma justaposta
publicidade, interatividade (espectador e televisão) e os mandamentos cristãos.
Nota-se, então, uma tentativa de mostrar que até mesmo o discurso e ideologia
religiosos podem estar submetidos a imposições dos veículos de mídia. Isso fica
claro mais adiante na crônica quando o autor afirma que:
E tirando uma costela do Cid Moreira a mídia criou...
(com pausa dramática) os Especialistas, à imagem e
semelhança de Deus, mas um pouco melhorados que
hoje em dia tem tecnologias que até Deus duvida.
(...) E Eles garantiram que, desse dia de glória em
diante, não haveria mais dúvida sobre a verdade
porque Eles, os Especialistas, diriam a todos o que
é verdade e como deve ser usada. E a humanidade
respirou aliviada (segundo os Especialistas, é claro).
(Caros Amigos, out. 2007, p. 33)
Nesse enunciado pode-se reconhecer a idéia de que a mídia supera Deus, ou
seja, a mídia cria os especialistas (que são melhores do que Deus) e eles vão ditar
o que a humanidade deve pensar. Assim é possível reconhecer que a crônica
também denuncia o fato de a religião, mesmo representando autoridade dentro
da sociedade, também estar subordinada aos interesses da mídia.
Podemos ressaltar que essa associação entre formação discursiva religiosa e
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elementos representativos da mídia é responsável pelo efeito de humor nessa crônica, já que a essa associação revela-se como uma visão surpreendente
e inusitada sobre a postura da mídia dentro da sociedade, o que pode levar o
leitor ao riso. Essa mistura de formações discursivas colabora para revelar uma
ideologia que tenta ser ocultada, mas que se mostra bastante presente no acordo
social vigente. Assim, o efeito de humor, também nessa crônica – construído
através da associação entre mídia e religião – cumpre uma das funções do humor: denunciar questões iminentes à sociedade. Essa mistura de discursos se
faz presente em toda a crônica, o que faz manter o efeito de humor e sua função
em todo o texto.
A terceira crônica em análise, intitulada Guerra de quadrilhas na Europa (anexo
III), assemelha-se a uma reportagem investigativa policial. Nela são abordadas
questões de violência e outras atividades consideradas criminosas realizadas
em favelas, também chamadas de morros. Notamos que, ao invés de tratar da
criminalidade atual, a crônica levanta fatos históricos e atitudes da nobreza europeia de séculos passados, equiparando tais atitudes a ações criminosas atuais.
Para exemplificar, destacamos o seguinte:
As quadrilhas que dominam o complexo da Europa,
também chamado de comunidade econômica européia, organizam bondes até países africanos onde
roubam as famosas especiarias e aprisionam milhões
de negros obrigados a trabalhar de graça até o fim da
vida no Morro do Pau-Brasil. Há suspeitas de que o
crime organizado europeu lava o dinheiro do tráfico
e o ouro contrabandeado do Brasil financiando várias
indústrias, num movimento já conhecido como Revolução Industrial ou Capitalismo. (Caros Amigos, jan.
2008, p.16)
Nesse caso, a formação discursiva jornalística, que revela os fatos como se eles
fizessem parte de uma reportagem policial, pode ser vista a partir do enunciado “Há suspeitas de que o crime organizado europeu lava o dinheiro do tráfico e
o ouro contrabandeado do Brasil (...)”. Levantar suspeitas sobre atos criminosos,
assim como noticiá-los, são atribuições de veículos jornalísticos. Termos como
“crime organizado” ou “quadrilhas” compõem a formação discursiva de tais
veículos de comunicação quando tratam de crimes. Nota-se, no entanto, que
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são feitas referências a fatos históricos obscuros, os quais revelam atos nada
nobres realizados pelas oligarquias europeias em outros momentos da história.
É o que podemos observar em “As quadrilhas que dominam o complexo da Europa,
(...) organizam bondes até países africanos onde roubam as famosas especiarias e aprisionam milhões de negros obrigados a trabalhar de graça até o fim da vida no Morro do
Pau-Brasil”. Além disso, o enunciado faz referências à escravidão e à exploração
de recursos, realizadas pelos europeus em séculos passados. Esses atos são, reconhecidamente, desumanos. A história nos mostra que tais atos colaboraram
para firmar a riqueza de alguns países europeus ou, pelo menos, para ajudar a
manter esses países em boa situação econômica no passado. Nota-se, portanto,
que tais elementos fazem parte da formação discursiva de historiadores que se
orientam ideologicamente pela busca da realidade sobre fatos históricos como
escravidão, guerras e exploração de países pobres, conforme aparece no enunciado mencionado acima. Sendo assim, podemos perceber nessa crônica a intenção de denunciar a ideologia das oligarquias europeias que cometeram tais atos,
equiparados na crônica a atos criminosos. Ao associar os fatos históricos citados
anteriormente a atos considerados criminosos na atualidade, nota-se uma intenção de mostrar que, na verdade, o poder e riqueza dos países europeus foram
construídos através de atos também criminosos.
Convém salientar ainda a associação entre fatos os históricos e a criminalidade
atual, que pode ser vista claramente no trecho que segue:
O chefão do Morro de Paris, Napoleão Maluco, invadiu o Morro do Portuga, pondo em fuga o líder da
quadrilha rival, Dom João Charuto. Dom João e sua
comparsa da máfia de Madri, Carlotinha Joaquina,
fugiram com toda a sua quadrilha para o Morro do
Pau-Brasil (...). (Caros Amigos, jan. 2008, p.16)
Esses enunciados tratam da ocupação de Portugal por Napoleão Bonaparte, no
século XVII, e do tráfico de escravos como se fossem parte de uma guerra entre
quadrilhas atuantes em favelas na atualidade. Assim, promove-se uma denúncia da postura política de países ricos e poderosos, já que alguns deles, para se
firmarem como tal e exercerem seu poder, lançaram mão de atos criminosos e
desumanos ao longo da história. Além disso, a crônica faz entender que a violência dos dias atuais pode ser um fruto dos atos desumanos realizados pelas
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classes poderosas ao longo da história.
Há, nesse exemplo, uma mistura de formações discursivas e ideológicas que
gera uma associação aparentemente absurda e inusitada, levando-se em conta o
lapso de tempo existente entre o período da escravidão no Brasil e os atos realizados pelas quadrilhas que atuam nas grandes cidades atualmente. No entanto,
nota-se que a crônica presta-se à reflexão de que os atos criminosos da atualidade em muito se assemelham a atitudes das castas nobres da sociedade ao longo
da história. Esta associação aparentemente absurda entre fatos históricos e fatos da atualidade é um dos elementos responsáveis pelo efeito de humor nessa
crônica. Além disso, notamos a presença de nomes esdrúxulos como “Dom João
Charuto” e “Napoleão Maluco”, que ridicularizam membros da nobreza europeia
do passado e também colaboram para a construção do humor nessa crônica.
Mais uma vez esse efeito de humor é o que conduz o leitor a uma denúncia da
realidade histórica, um questionamento da postura política e social assumida
por países poderosos, sobretudo na Europa, bem como promove uma reflexão
sobre a formação da violência dos dias atuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Notamos, a partir de nossas análises, que essas crônicas prestam-se à denúncia
dos efeitos de injustiça social e política que podem ser gerados pela postura ideológica das classes dominantes. Observamos que o humor presente nessas crônicas desempenha a função de desestabilizar a ordem social que está firmada
em concordância com a ideologia dos grupos sociais que exercem poder sobre
outros. Tudo isso pode ser visto quando se levam em conta as formações ideológicas que denunciam um efeito de dominação política e social de algumas classes e grupos sociais sobre outros. Desse modo, a importância social do humor é
ressaltada em nossa análise ao considerarmos que é esse humor, na maioria dos
casos, que leva o leitor ao reconhecimento de relações de poder, bem como das
injustiças sociais geradas através de tais relações.
Além disso, convém ressaltar que a postura de ataque a relações de poder estabelecidas, como as que vimos nas crônicas analisadas, revela que os textos de
César Cardoso se associam à postura questionadora do senso comum, postura
esta assumida pela revista Caros Amigos, suporte que se coloca como questionador das relações sociais vigentes, levando-nos a compreender que os autores
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que publicam textos nessa revista também se orientam por esse pensamento.
REFERÊNCIAS
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Guanabara, 1987.
CARDOSO, C. Uma idéia. In: Revista Caros Amigos. São Paulo: Casa Amarela,
ano IX, n. 95, fev. 2005, p.17.
CARDOSO, C. Deus criou a mídia! In: Revista Caros Amigos. São Paulo: Casa
Amarela, ano XI, n. 127, out. 2007, p. 33
CARDOSO, C. Guerra de quadrilhas na Europa, In: Revista Caros Amigos. São
Paulo: Casa Amarela, ano XI, n. 130, jan. 2008, p. 16
CARDOSO, S. H. B. Discurso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
FÁVERO, L. L.; MOLINA, M. A. G. A crônica: uma leitura textual-discursiva.
In: NASCIMENTO, E. M. S; OLIVEIRA, M. R. M; LOUZADA M. S. O. (orgs.)
Processos enunciativos em diferentes linguagens. Franca: Unifran, 2006, p. 7194.
FERNANDES, C. A. Análise do discurso: reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005.
FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1997.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2008.
MUSSALIM, F. Análise do discurso. In: MUSSALIM, F; BENTES, A. C. (orgs.)
Introdução à linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001, p. 101142.
PROPP, V. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
REVISTA CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela, ano X, n. 111, jun. 2006,
p. 30-37
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REVISTA CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela, ano XI, n. 131, fev. 2008,
p. 16.
REZENDE, L. A.; CAMPOS, E. N. Estratégias textuais nas crônicas de Luis Fernando Veríssimo. IN: MELLO, R. Análise do discurso e literatura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005.
TRAVAGLIA, L. C. Uma introdução ao estudo do humor pela linguística. In:
D.E.L.T.A. vol. 6, n. 1, 1990, p. 55-82.
ANEXOS
ANEXO I - UMA IDEIA
– Eu tenho uma idéia. Vamos fazer um país, mas um país novo, partindo do
zero. Bota aí uns duzentos milhões de pessoas. – Tá doido, é muita gente! – Mas
é pra ser muita gente mesmo. – Mas é gente demais, não é não? – Tá bom, cento
e oitenta milhões e não se fala mais nisso. – Sei não. Vem cá, pra começar, como
é que você vai arranjar trabalho pra essa gente toda? – Não vai ter. – Ué, não? –
Não. E é bom que não tenha. Tendo mais gente que trabalho você paga pouco a
quem trabalha. – Visto por esse ângulo... Mas eles vão trabalhar em quê? – Nas
empresas, é claro. – Claro? Pra mim ta é escuro. Bota aí metade deles trabalhando, já são 90 milhões. Como que você vai fazer empresa pra essa gente toda?
– Nós não vamos fazer empresa nenhuma. – Ué, não? – Não. Vamos trazer as
empresas de fora, que já estão prontas. – E a troco de que elas vão topar vir pra
cá? – A troco não, a dinheiro graúdo, o dinheiro que eles vão economizar pagando muito pouquinho aos 90 milhões. – Bom, visto por esse ângulo... – Além
do monte de matéria-prima novinha em folha que a gente vai dar pra eles. – A
gente vai dar? – Dar é modo de dizer. Mas vai. – Vem cá, você não acha que os
90 milhões que trabalham e ganham miséria vão acabar chiando? – Acho. – E
fica por isso mesmo? – Claro que não. A gente pega dois milhões deles e faz eles
ficarem milionários, com um vidão de primeiro mundo nenhum botar defeito. –
Você é doido! Os outros vão morrer de inveja! – Lógico, a idéia é essa. – Ué, não
entendi. – A inveja é a filha mais nova e mais gostosa do desejo. – E daí? – Daí
a gente bola uns anúncios dizendo, melhor, prometendo que esse desejo está
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ao alcance de qualquer um. – E eles vão acreditar? – E quem é que não acredita
num anúncio bem feito, com calda escorrendo e a mulher mais linda dizendo
que você é o tal? Hein? Hein? – Bom, visto por esse ângulo... Mas e os outros 90
milhões que nem ganhar pouco ganham? – O que que tem esses 90 milhões? –
Ah, esses não vão acreditar nem em anúncio bem feito. – Claro que acreditam,
esses aí são muito mais fáceis de enganar. Eles nem foram à escola! – Não? - Claro que não. Se não tem emprego pra eles, pra que que vai ter escola? – Mas é tão
bacana ir à escola! – E você acha bacana ter 90 milhões de pessoas espertas, esclarecidas e sem nada pra fazer? – É, não é uma boa idéia não. Mas eu acho que
mesmo assim eles vão aprontar. – Vão, com certeza vão. Tem gente que vai roubar, tem gente que vai matar. – E aí? – Aí a gente diz que a culpa é deles. Se tem
90 milhões que estudam e se matam pra ter um pouquinhozinho de dignidade
por que que os outros 90 milhões são desempregados? Porque não querem nada
com o batente. – Mas eles não têm emprego nem que queiram. – Mas se você
contar isso pra eles, meu amigo, eu sinto muito mas vou te prender e te chamar
de terrorista. – Aí já sei, mesmo eu sendo teu melhor amigo, você acaba com a
minha raça. – Eu? Não toco em um fio de cabelo seu. Deixo você fugir e anuncio que o terrorista perigoso, uma ameaça às famílias, está solto! – Pô, eles vão
querer me matar! – Mas eu sou teu amigo, eu não deixo eles te matarem. Assim
esse joguinho não termina nunca. – Mas a gente estava falando dos 90 milhões
de desempregados. – Que desempregado! Não vai ter desemprego no nosso
país. – Como não? – Tá na cara, eles só são desempregados porque não querem
trabalhar, o que faz com que eles deixem imediatamente de ser desempregados
e passem a ser vagabundos. E não vão ser todos. – Como é que você sabe que
não vão? – Essa é fácil. Religião. – O que que a religião tem a ver com isso? – É
uma receita. Pegue um desocupado e encha a cabeça dele de religião, cria logo
umas três ou quatro pra eles disputarem qual é a melhor. Além de obedientes,
eles não vão pensar em fazer besteira. – Será que não? – Vai por mim, pra criar
obedientes, a religião é melhor que o quartel. E quem não seguir uma religião
qualquer nem for empregado só pode ser um marginal. E marginal, a ciência já
provou que é um problema de nascença ou de código genético, área do cérebro,
algo assim. – Eu não sabia. Que ciência provou isso? – A que a gente quiser.
Afinal, quem é que vai pagar os cientistas? – Bom, visto por esse ângulo... – E aí,
gostou da minha idéia? – Sei não, você tem sempre umas idéias mirabolantes.
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Acho que esse troço não vai dar certo. Como é o nome dessa idéia? – O nome?
Eu pensei em Brasil. – Brasil? Daonde você tirou isso? – Sei lá. Acho que li em
algum lugar e ficou na minha cabeça. Brasil. – Bra-sil, não sei. Eu prefiro Zimbabwe. É mais sonoro, tem mais ritmo, Zim...bá...bwe! – E por que não Nepal? – Ih,
mas você cismou com esses nomes curtinhos terminados em l...
Cesar Cardoso é escritor.
Revista Caros Amigos, fevereiro/2005, p. 17
ANEXO II - César Cardoso
E eis que um dia, na terra do leite e do mel, os eleitos não eram mai aqueles de
sempre. E todo mundo queria ser o dono da verdade. E a humanidade já não
sabia em quem acreditar. E não adiantava a galera do céu mandar anjos com
espadas de fogo nem dilúvios. E foi então que, em meio ao desespero e a descrença,
DEUS CRIOU A MÍDIA!
E os jornais logo ensinaram ao povo incrédulo o certo e o errado. E as tevês logo
mostraram as gentes desesperadas o que vestir, o que comer e principalmente o
que engolir. E as agências de publicidade logo trouxeram os novos mandamentos, mas em tábua não, que tábua ta fora de moda, é antiecológico. E os novos
mandamentos vieram em tela de cristal líquido. E vós podeis votar nos dez melhores, é só entrardes no site www.mandandobemnomandamento.com.
E tudo deveria ter voltado ao normal, mas vós sabeis que a humanidade não é
fácil, ô gentinha do contra, principalmente as humanidades do terceiro mundo.
E as tevês e os jornais, pacientes como Jó, subiram aos céus, que ficavam um
andar acima de seus escritórios, e pediram a ajuda de Deus. Mas eis que Deus
estava ocupado tentando criar vida em Marte pra ver se dessa vez dava certo.
E então a turma da mídia fez um workshop e alguém falou: vamos copiar aquela
idéia de Deus. E tirando uma costela do Cid Moreira a mídia criou... (com pausa
dramática) os Especialistas, à imagem e semelhança de Deus, mas um pouco
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melhorados que hoje em dia tem tecnologias que até Deus duvida.
E eis que dos céus desceram os Especialistas, montados em laptops de duas cabeças e carregando celulares de fogo. E Eles garantiram que, desse dia de glória
em diante, não haveria mais dúvida sobre a verdade porque Eles, os Especialistas, diriam a todos o que é verdade e como deve ser usada. E a humanidade
respirou aliviada (segundo os Especialistas, é claro).
Cesar Cardoso é escritor, foi criado por Deus, mas passava o fim de semana
com o Diabo.
Revista Caros Amigos, outubro/2007, p.33
ANEXO III - GUERRA DE QUADRILHAS NA EUROPA!
Continua a luta entre as favelas do Complexo da Europa. O chefão do Morro de
Paris, Napoleão Maluco, invadiu o Morro do Portuga, pondo em fuga o líder
da quadrilha rival, Dom João Charuto. Dom João e sua comparsa da máfia de
Madri, Carlotinha Joaquina, fugiram com toda a sua quadrilha para o Morro do
Pau-Brasil, numa megaoperação comandada pelo chefe da milícia de LondonLondon, o ex-PM God Save The Queen.
As quadrilhas que dominam o complexo da Europa, também chamado de Comunidade Econômica Européia, organizam bondes até países africanos onde
roubam as famosas especiarias e aprisionam milhões de negros obrigados a trabalhar de graça até o fim da vida no Morro do Pau-Brasil. Há suspeitas de que
o crime organizado europeu lava o dinheiro do tráfico e o ouro contrabandeado
do Brasil financiando várias indústrias num movimento já conhecido como Revolução Industrial ou Capitalismo. Outras denúncias dizem que a máfia francesa tem um depósito em Paris onde estoca mercadorias roubadas de todo o
planeta, desde a China e o Egito até as Américas. O local é conhecido como
Museu do Louvre.
Dom João Charuto – que tem esse apelido porque estaria sempre fumando um –
é acusado de ser laranja da milícia inglesa. Filho de dona Maria Doidona, Dom
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João – assim como vários traficantes que comandam as nações da Europa – diz
para todo mundo que manda no Morro do Portuga por direito divino e só deve
prestar contas a Deus. Outros Rumores afirmam que seu filho Dom Pedro já
estaria envolvido no tráfico de escravos, mesmo sendo menor de idade.
Segundo as últimas informações, Dom João Charuto instalou seu bunker no
Morro da Quinta, mas já está ameaçado de invasão pelo Bonde do Complexo
do Holandês, liderado por Maurício de Nasal Neto. Onde vai para toda essa
violência?
César Cardoso é escravo da literatura e tem sangue azul, mas está em tratamento.
Revista Caros Amigos, janeiro/2008, p.16
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Seção II
Estudos sobre Literatura
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GÊNERO E LITERATURA: CULTURA
MATRIMONIAL EM TRISTE FIM DE
POLICARPO QUARESMA
Cristina Bongestab*1
RESUMO
Este trabalho visa a mostrar o papel da literatura na representação da política
matrimonialista do fim do século XIX e começo de século XX, no Brasil. Escolhemos analisar a obra Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), porque Lima
Barreto trata da falta da perspectiva da mulher dessa época. Para a análise e
interpretação do romance de Lima Barreto, adotamos uma perspectiva teóricometodológica ampla, recorrendo às contribuições de vários autores ligados à
temática em questão, com destaque aos estudos sobre educação da mulher, gênero, literatura e melancolia. Através de Ismênia, Barreto representa a mulher
da época, que, geralmente, não tinha vontade própria e que encaminhava a
vida no sentido de ter o casamento como realização pessoal. Barreto desnuda
o outro lado da situação, quando os planos não dão certo, quando o papel que
cabia à mulher de ser mãe e esposa não se conclui, mostrando o comportamento
melancólico e a doença que faz Ismênia definhar até a morte, por não sentir-se
capaz de responder às cobranças da família e da sociedade.
Palavras-chave: Gênero. Literatura. Sociedade. Casamento.
Estudos como o de Nader (2001) apontam a identidade das mulheres brasileiras
sendo construída, ao longo do tempo, em torno do casamento, da maternidade
e da vida privado-doméstica. No período compreendido entre o fim do século
XIX e começo do século XX, era reservado, às mulheres, o dever de atender
aos anseios da família e da sociedade em relação ao casamento. É dentro dessa
perspectiva que apresentamos a proposta deste trabalho, que é mostrar como a
1 * Cristina Bongestab é Mestre em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Doutoranda em Letras Neolatinas pela mesma Instituição e Professora de
Língua Espanhola da Universidade Estadual da Paraíba.
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mulher da época tratada, que geralmente não tinha outro objetivo na vida a não
ser casar-se, foi representada literariamente por Lima Barreto em Triste fim de
Policarpo Quaresma (1915), através da personagem Ismênia.
Esta pesquisa trabalha na interface entre literatura, gênero e política matrimonialista, ao mesmo tempo que propõe a melancolia como fator importante na
percepção de impotência diante da opressão sofrida pelas mulheres. Sendo assim, escolhemos analisar a personagem Ismênia, do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, (1915), de Lima Barreto, por ela representar, no romance, a mulher sem perspectiva em relação à vida, vítima da política matrimonialista, que
privava as mulheres de desejar qualquer projeto que estivesse fora dos veios
matrimoniais. A personagem Ismênia demonstra também traços de melancolia
que se intensificam no transcorrer da narrativa, depois que é abandonada pelo
noivo.
Para realizarmos a análise sobre a melancolia de Ismênia, nos basearemos no
artigo de Freud, Luto e Melancolia (1915), e dele destacaremos algumas características que pensamos serem compatíveis com o comportamento da personagem analisada. No entanto, tomaremos o devido cuidado ao tratar desse
tema, porque estamos trabalhando com um texto ficcional (personagens). Não
podemos, nem temos a intenção de tratar a personagem ou falar dela como um
clínico trataria seu paciente, o que seria inadequado nesta análise. Podemos ver
Ismênia como uma personagem que serviu de suporte para a representação da
melancolia feminina, preenchendo, assim, determinada função na narrativa.
O corpus deste trabalho se constituirá de citações de trechos da obra, algumas
vezes longas, mas necessárias para ressaltarmos a questão da interpretação literária sobre gênero e a política matrimonialista no romance estudado. São algumas falas de Ismênia, diálogos entre ela e as irmãs, mãe e vizinhos. Também
destacaremos trechos sobre Ismênia que mostram seu comportamento melancólico e como ele se evidencia no decorrer da narrativa.
A consulta aos estudos anteriormente realizados sobre gêneros indica que, por
tradição histórica, a mulher teve sua vida atrelada à família enquanto os homens sempre tiveram o espaço público como prioridade (NADER, 2001). Segundo Nader (2001), particularmente na cultura brasileira, os papéis sexuais
são prescritos com muita rigidez, pois segundo ela, ser homem e ser mulher
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é fundamentalmente diferente. “[...] da mulher espera-se a sua realização na
esfera privada, enquanto do homem espera-se a sua realização na vida pública, assumindo uma postura corajosa e calculista diante da vida.[...]” (NADER,
2001, p. 106).
Considerando o papel da literatura como disseminadora de comportamentos
da sociedade, e tomando como base a argumentação de Flora Süssekind: “[...]tal
sociedade, tal literatura segundo à qual a literatura seria espelho da sociedade, de
acordo com a lógica da identidade que aí se subtende. [sic]” (SÜSSEKIND apud
BRANDÃO, 2006, p. 148), centramos esta pesquisa ao texto do romance Triste
fim de Policarpo Quaresma (1915). Como antes apontado, esta obra de Lima Barreto retrata a política matrimonialista do final do século XIX e início do século
XX, no Brasil, e mostra a falta de perspectiva das mulheres da época retratada
no romance.
Barreto pertence a um grupo de escritores do Pré-Modernismo. Esse período,
que vai de aproximadamente 1902 a 1922, é considerado eclético, já que nele
convivem várias tendências, e dele participam um grupo de escritores que, embora sem um projeto comum, tentam lançar um olhar crítico ao país.
Enquanto os historiadores oficiais falavam nas lutas patrióticas da consolidação da República, Lima Barreto analisava quem estava do outro lado: o povo,
totalmente inconsciente do que se passava; os barões da agricultura e a burocracia militar ou civil que se digladiavam pelo poder; e, sobretudo, a vida dos
subúrbios, em Triste fim de Policarpo Quaresma (1915).
Através dessa obra, Lima Barreto faz uma crônica autêntica dos subúrbios cariocas e de sua população, retratando de um lado, a população pobre e oprimida desse subúrbio e, de outro, o mundo vazio de uma burguesia medíocre; de
políticos poderosos e incompetentes, e de militares opressores. Ao lançar mão
da sátira, da ironia e do humor, Barreto inova abordando em Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) a forma de governo da época, a organização econômica,
os preconceitos de raça, a burocracia, os tráficos de influência, e os grupinhos.
Barreto ainda mostra a sociedade de forma caricata. A hipocrisia, a ligação do
dinheiro com prestigio social e intelectual, a educação matrimonial dispensada às mulheres, a questão racial, a oposição entre arte popular espontânea e
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o artificialismo da arte parnasiana são questões apontadas por Lima Barreto
em Triste fim de Policarpo Quaresma (1915). Dentro das questões apontadas, nos
aprofundaremos no estudo da educação matrimonial dispensada às mulheres,
que é nosso objeto de estudo nesta pesquisa.
Ismênia é descrita por Barreto como uma moça de natureza muito pobre e desprovida de vontade: “De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir
qualquer cousa profunda e intensamente, sem quantidade emocional para a
paixão ou para qualquer outro afeto, na sua inteligência a idéia de ‘casar-se’
incrustou teimosamente como uma obsessão” (BARRETO, 1999, p. 43).
Se nos apoiarmos na teoria de Freud (1915) sobre melancolia, percebemos que
Barreto (1915) vai retratando uma personagem melancólica, na medida em que
a apresenta com características próprias dessa doença que são desânimo profundo, falta de interesse pelo mundo exterior, baixa auto-estima, entre outras.
Podemos comprovar algumas dessas características através de trechos da narrativa: Neste, Barreto descreve a tristeza e preguiça através dos gestos de Ismênia:
– Então, quando te casas?
Era a pergunta que se lhe fazia sempre. Ela então
curvava do lado direito a triste cabecinha, coroada
com magníficos cabelos castanhos, com tons de ouro
e respondia:
– Não sei... Cavalcanti forma-se no fim do ano e então
marcaremos.
Isto era dito arrastado, com uma preguiça de impressionar (BARRETO, 1999, p. 24, grifo nosso).
Quando, de fato, o pedido de casamento se concretizou, a alegria foi grande
para os pais e para as irmãs dela. Ismênia, no entanto, não conseguia expressar
a alegria esperada pelas outras pessoas:
Noiva havia quase cinco anos, Ismênia já se sentia
meio casada. Esse sentimento junto à sua natureza
pobre fê-la não sentir um pouco mais de alegria. Ficou no mesmo. Casar, para ela, não era negócio de
paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos:
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era uma idéia, uma pura idéia. Aquela sua inteligência rudimentar tinha separado da idéia de casar o
amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual liberdade, a maternidade, até o noivo (BARRETO, 1999, p.
42, grifo nosso).
Enquanto preparavam a festa de noivado, a mãe de Ismênia arrumava a mesa,
nervosa e alegre; e a filha se comportava de maneira fria e indiferente.
– Mas, minha filha, dizia ela, até parece que não é
você quem vai se casar! Que cara! Você parece aí uma
‘mosca-morta’.
– Mamãe, que quer que eu faça?
­– Não é bonito rir-se muito, andar por aí como uma
sirigaita, mas também assim como você está! Eu nunca vi noiva assim.
Durante uma hora, a moça esforçou-se por parecer
alegre, mas logo lhe tornava toda a pobreza de sua
natureza, incapaz de vibração sentimental, e o natural do seu temperamento vencia-a e não tardava em
cair naquela lassidão que lhe era própria (Ibid., p. 45,
grifo nosso)
Esses traços melancólicos se intensificam depois que Ismênia é abandonada pelo
noivo e ela definha até a morte. Vê-se que Barreto construiu uma personagem
melancólica, vítima de um sistema patriarcal que regia a sociedade brasileira e
que considerava a mulher como um ser secundário, fraco e totalmente dependente do homem. A realização feminina centrava-se unicamente no casamento,
que era tido como o objetivo de todas as moças solteiras (BASSANEZI, 1997), e
Barreto assim evidencia essa condição da mulher na personagem Ismênia:
[...] Aproveitando uma pausa, a irmã de Quaresma
pergunta à moça:
– Então quando te casas?
Era a pergunta que se lhe fazia sempre. [...] Ela respondia:
– Não sei... Cavalcanti forma-se no fim do ano e então
marcaremos.[...]
Intimamente ela não se incomodava. Na vida, para
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ela, só havia uma coisa importante: casar-se; mas
pressa não tinha, nada nela a pedia. Já agarrara um
noivo, o resto era questão de tempo (Ibid., p. 26).
Barreto (1915) criou discursos para Dona Maricota, mãe de Ismênia, como forma de reforçar a visão e preocupação das mães das moças da época:
[...] ela não compreendia que uma mulher pudesse
viver sem estar casada. Não eram só os perigos a que
se achava exposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feio
e desonroso para a família. A sua satisfação não vinha do simples fato de descontar uma letra, como ela
dizia. Vinha mais profundamente dos seus sentimentos maternos e da família (Ibid., p. 45).
Devemos ressaltar que ser mãe, esposa e dona-de-casa era considerado o destino natural das mulheres, porque casamento e dedicação ao lar faziam parte da
essência feminina (BASSANEZI, 1997):
De resto, não era só dentro de sua família que ela encontrava aquela preocupação. No colégio, na rua, em
casa das famílias conhecidas, só se falava em casar.
‘Sabe, Dona Maricota, a Lili casou-se, não fez grande negócio, pois parece que o noivo não é lá grande
coisa’; ou então: ‘A Zezé está doida para arranjar casamento, mas é tão feia, meu Deus!...’[...] (BARRETO,
1999, p. 43).
O pai de Ismênia, por outro lado, se preocupava com a obrigação de casar a filha. Numa conversa com um amigo dizia: “ [...] — É um inferno, esta vida! Imagina tu, Castro, que ainda por cima tenho que casar uma filha!. [...]” (Ibid., p.44)
e acrescentava, ao responder a Castro que preparava o casamento de Ismênia:
“[...] tu é que és feliz: só tiveste filhos. — Ah! meu amigo! falava o outro cheio de
malícia, aprendi a receita. Por que não fizeste o mesmo?” (Ibid., p.44).
É interessante mostrarmos o processo de educação das mulheres, partindo-se
do pressuposto que as meninas eram educadas para o casamento desde pequenas. As solteiras não eram bem vistas pelas vizinhas e amigas casadas. Ser e
permanecer solteira parecia algo ilógico, contra a lei natural e social. Barreto
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mostra essa característica nas falas da mãe da personagem Ismênia:
[...] Desde pequena ouvia a mãe dizer: ‘Aprenda a
fazer isso, porque quando você se casar’... ou senão:
‘Você precisa aprender a pregar botões, porque quando você se casar’...
A todo instante e a toda hora, lá vinha aquele — ‘porque, quando você se casar...’ — e a menina foi se convencendo de que toda a existência só tendia para o
casamento. A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa coisa: casar (Ibid., p. 43).
O tempo de duração do namoro era outra questão importante para a época; não
devia durar muito porque se levantavam suspeitas sobre as verdadeiras intenções do rapaz. Além disso, como comenta Bassanezi (1997): “[...] um namoro
ou um noivado muito longo não era favorável à reputação de uma moça que
se tornava alvo de fofocas maldosas” (BASSANEZI, 1997, p. 618). A sociedade
cobrava um namoro que conduzisse ao casamento. Nesse sentido, Barreto também aborda essa questão com bastante precisão:
Aquele seu noivado durava há anos; o noivo, o tal
Cavalcanti, estudava para dentista, um curso de dois
anos, mas que ele arrastava há quatro, e Ismênia tinha
sempre que responder à famosa pergunta: — ‘Então
quando se casa?” — “Não sei... Cavalcanti forma-se
para o ano e...’
[...] Enfim — dizia o pai de Ismênia à esposa, na noite
do pedido, quando já recolhidos — a coisa vai acabar. Felizmente, respondia-lhe Dona Maricota, vamos
descontar esta letra (BARRETO, 1999, p. 44).
Com a trajetória de Ismênia, Barreto retrata o lugar ocupado por mulheres e
homens daquele período, deixando claro que aos homens cabia o sustento da
esposa e dos filhos. Eles eram os doutores, funcionários públicos e intelectuais,
enquanto as mulheres – destituídas de desejos – viviam em função dos projetos
dos homens. Isso fica claro com Ismênia, que teve que esperar a formatura do
noivo para o pedido de casamento:
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— Em março. Cavalcânti já está formado e...
Afinal a filha do general pôde responder com segurança à pergunta que se lhe vinha fazendo há quase
cinco anos. O noivo finalmente encontrara o fim do
curso de dentista e marcara o casamento para daí a
três meses. A alegria foi grande na família; e, como
em tal caso, uma alegria não podia passar sem um
baile, uma festa foi anunciada para o sábado que se
seguia ao pedido da pragmática.
As irmãs da noiva, Quinota, Zizi, Lalá e Vivi, estavam mais contentes que a irmã nubente. Parecia que
ela lhes ia deixar o caminho desembaraçado, e fora
a irmã quem até ali tinha impedido que se casassem
(BARRETO, 1999, p. 42).
Para as mulheres, não se casar significava fracassar socialmente. Quando uma
mulher, a partir de certa idade, se via numa circunstância sem perspectiva de
casamento, ela corria o risco de ser vista como encalhada, candidata a ficar para
titia ou solteirona, o que era fonte de constrangimento. Barreto aborda essa
questão ao incorporar no romance o rompimento do noivado de Ismênia, que,
na verdade, é abandonada pelo noivo:
A Ismênia é que anda triste, desolada — coitadinha!
Cavalcânti, aquele Jacó de cinco anos, embarcara para
o interior, há três ou quatro meses, e não mandara
nem uma carta nem um cartão. A menina tinha aquilo
como um rompimento; [...]
Para Ismênia, era como se todos os rapazes casadoiros tivessem deixado de existir. Arranjar outro era
problema insolúvel, era trabalho acima de suas forças. Coisa difícil! Namorar, escrever cartinhas, fazer
acenos, dançar, ir a passeios — ela não podia mais
com isso. Decididamente, estava condenada a não se
casar, a ser tia, a suportar durante toda a existência
esse estado de solteira que a apavorava [...] (Ibid.,
p.80).
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Preocupada com o compromisso que a sociedade lhe exigia, Ismênia ainda tinha esperanças na hora da entrega das correspondências, mas quando a carta
não chegava, vinha-lhe novamente o desespero e voltava ao seu pensamento:
não casar. A mãe estava cada vez mais preocupada com a filha, porque esta
deixara de falar ou, se falava, dizia meias palavras. “[...] Ninguém entende essa
moça. Fala pouco, se fala diz meias palavras... É mesmo uma natureza que parece que parece sem sangue, sem nervos. Sente-se sua tristeza, mas não fala”
(Ibid., p. 82).
Barreto (1915) mostra a melancolia se manifestando na personagem Ismênia,
de forma mais intensa, à medida que suas irmãs vão se casando, e ela, sem
esperanças de casar-se vai sentindo-se rebaixada: “A Quinota ia casar-se, o Genelício já estava tratando dos papéis; e ela que esperara tanto, e fora a primeira
a noivar-se, ia ficar maldita, rebaixada diante de todas. Parecia até que ambos
estavam contentes com aquela fuga inexplicável de Cavalcanti [...]” (BARRETO,
1999, p. 81).
Segundo Bassanezi (1977), a vocação prioritária para a maternidade e a vida
doméstica seriam marcas da feminilidade, e uma vez que a uma mulher não
seguisse esses caminhos estaria indo contra a natureza, não podendo assim ser
realmente feliz. Tomando essas considerações como base, vemos como Barreto
retrata essa questão quando vai evidenciando na narrativa o estado melancólico
de Ismênia:
Havia uma única mulher na estação, uma moça. Albernaz olhou-a e lembrou-se um instante de sua filha
Ismênia... Coitada!... Ficaria boa?
Aquelas manias? Onde iria parar? Vieram-lhe as lágrimas, mas ele as reteve com força.
Já a levara a uma meia dúzia de médicos e nenhum
fazia parar aquele escapamento do juízo que parecia
fugir aos poucos do cérebro da moça (Ibid., p. 149).
Barreto (1915), ao narrar o abandono de Ismênia e a não concretização do casamento, conforme esperado pela família e pela sociedade, vale-se da doença de
sua personagem como forma de criticar a sociedade matrimonialista da época,
que impunha o casamento às mulheres como a única opção de vida:
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Falava da filha, da Ismênia, que, naqueles últimos meses, piorara sensivelmente, não tanto da sua moléstia
mental, mais da saúde comum, vivendo de cama,
sempre febril, enlanguescendo, definhando, marchando a passos largos para o abraço frio da morte.
Albernaz dizia a verdade; para curá-la tanto de sua
loucura como da atual moléstia intercorrente, lançara mão de todos os recursos, de todos os conselhos
apontados por quem quer que fosse.
Era de fazer refletir ver aquele homem, general, marcado com um curso governamental, procurar médiuns e feiticeiros, para sarar a filha.
Às vezes até levava-os em casa. Os médiuns chegavam perto da moça, davam um estremeção, ficavam
com uns olhos desvairados, fixos, gritavam: “Sai, irmão!” — e sacudiam as mãos, do peito para a moça,
de lá para cá, rapidamente, nervosamente, no intuito
de descarregar sobre ela os fluidos milagrosos.
Os feiticeiros tinham outros passes e as cerimônias
para entrar no conhecimento das forças ocultas que
nos cercam eram demoradas, lentas e acabadas. Em
geral, eram pretos africanos. Chegavam, acendiam
um fogareiro no quarto, tiravam de um cesto um sapo
empalhado ou outra coisa esquisita, batiam com feixes de ervas, ensaiavam passos de dança e pronunciavam palavras ininteligíveis. O ritual era complicado e
tinha a sua demora.
Na saída, a pobre Dona Maricota, um tanto já diminuída da sua atividade e diligência, olhando ternamente
aquele grande rosto negro do mandingueiro, onde a
barba branca punha mais veneração e certa grandeza,
perguntava:
— Então, titio?
O preto considerava um instante, como se estivesse
recebendo as últimas comunicações do que não se vê
nem se percebe, e dizia com a sua majestade de afriSABERES Letras
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cano:
— Vô vê, nhãnhã... Tô crotando mandinga...
Ela e o general tinham assistido a cerimônia e o amor
de pais e também esse fundo de superstição que há
em todos nós, levavam a olhá-la com respeito, quase
com fé.
— Então foi feitiço que fizeram à minha filha? perguntava a senhora.
— Foi, sim, nhãnhã.
— Quem?
— Santo não qué dize ( BARRETO, 1999, p. 195).
Lima Barreto apresentou como padrão, em Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915), mulheres condicionadas a ver o casamento como ideal de vida. Apresentou, também, Olga, uma personagem que, embora não isenta deste ideal,
apresentava um certo desvio dos padrões destinados às mulheres. E é através dela que Barreto faz uma reflexão crítica sobre o estado de Ismênia, que,
sentindo-se incapacitada de cumprir o único papel que a sociedade reservava
às mulheres, o de esposa, adoece porque não podia suportar a vergonha de ficar
solteira (VERANI, 2003). O trecho que segue é uma fala de Olga, ao saber da
situação de Ismênia:
[...] Via bem o que fazia o desespero da moça, mas
via melhor a causa, naquela obrigação que incrustam
no espírito das meninas, que elas se devem casar a
todo o custo, fazendo do casamento o pólo e fim da
vida, a ponto de parecer uma desonra, uma injúria
ficar solteira.
O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é simplesmente casamento, uma
coisa vazia, sem fundamento nem na nossa natureza
nem nas nossas necessidades.
Graças à frouxidão, à pobreza intelectual e fraqueza
de energia vital de Ismênia, aquela fuga do noivo se
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transformou em certeza de não casar mais e tudo nela
se abismou nessa idéia desesperada (Ibid., p. 201).
Através de Ismênia, Barreto representa a mulher da época, que, geralmente, não
tinha vontade própria e que encaminhava a vida no sentido de ter o casamento
como realização pessoal. Barreto desnuda o outro lado da situação, quando os
planos não dão certo, quando o papel que cabia à mulher de ser mãe e esposa
não se conclui, mostrando o comportamento melancólico e a doença que faz
Ismênia definhar até a morte, por não sentir-se capaz de responder às cobranças
da família e da sociedade:
A moça continuou a definhar, e, se a mania parecia
um pouco atenuada, o seu organismo caía. Estava
magra e fraca, a ponto de quase não poder sentar-se
na cama. Era sua mãe quem mais junto a ela vivia; as
irmãs se desinteressavam um pouco, pois as exigências de sua mocidade levavam-nas para outros lados.
[...] Raro era falar muito; e assim foi que, naquele dia,
se espantou muito Dona Maricota com a loquacidade
da filha.
[...] — Mamãe... Eu vou morrer...
— Não diga isso, minha filha, adiantou-se Dona Maricota. Qual morrer! Você vai ficar boa; seu pai vai
levar você para Minas; você engorda, toma forças...
[...] — Qual, mamãe! Eu sei; vou morrer e peço uma
coisa à senhora...
[...] — Eu sei, mamãe.
— Bem. Suponho que é verdade: o que é que você
quer?
— Eu quero, mamãe, ir vestida de noiva.[...]
[...] Ismênia despertou: viu, por entre a porta do guarda-vestidos meio aberto, o seu traje de noiva. Teve
vontade de vê-lo mais de perto. Levantou-se descalça
e estendeu-o na cama para contemplá-lo. Chegou-lhe
o desejo de vesti-lo. Pôs a saia; e, por aí, vieram reSABERES Letras
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cordações do seu casamento falhado [...]
Teve
uma fraqueza, uma coisa, deu um ai e caiu de costas
na cama, com as pernas para fora... Quando a vieram
ver, estava morta (BARRETO 1999, p. 205).
Lima Barreto (1915), através da literatura, traz à tona as contradições da sociedade brasileira do fim do século XIX e início do século XX. Assim, Ismênia, apesar
de não ser a personagem central do romance, tem fundamental importância na
trama de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), ao representar uma sociedade
que preconizava a vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica
como marcas de feminilidade, enquanto a participação no mercado de trabalho
e a força eram definições de masculinidade: “[...] A mulher que não seguisse
seus caminhos estaria indo contra a natureza, não poderia ser realmente feliz ou
fazer com que outras pessoas fossem felizes [...]” (BASSANEZI, 1997, p. 609).
Ismênia sofre e adoece por não conseguir corresponder às expectativas de sua
família e da sociedade. Poderíamos dizer que Ismênia é a representação literária da mulher vista como ser inferior na sociedade brasileira e que tinha o
casamento como imposição naquela sociedade como único projeto de vida. Devemos acrescentar que na época retratada no romance, a educação da mulher
ainda era muito influenciada pela Igreja católica. O acesso da mulher ao sistema educacional buscava fundamentalmente alfabetizá-la e adestrá-la nos afazeres domésticos para o melhor funcionamento do lar e da família. A maioria das
mulheres não trabalhava e sim se casava para cumprir um dever social.
O grande medo das moças era ficar solteira. O problema não era somente a solidão, elas teriam de se preocupar também com o próprio sustento, já que, sem
marido, elas se tornariam um peso para a família e sofreriam o estigma de não
terem cumprido o destino feminino (BASSANEZI, 1997).
Todo o trajeto de Ismênia visou mostrar o lugar da passividade feminina, a submissão ligada à alienação, à educação destinada às mulheres da época. Enfim,
a personagem Ismênia é a representação da mulher que não via sentido na vida
de solteira, e para a qual o casamento era objetivo fundamental. Assim, Barreto
utilizou o conceito de inferioridade feminina como uma crença generalizada,
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apoiada pelos discursos religiosos e científicos acerca da fraqueza e fragilidade
inerentes à natureza feminina, para, a partir dele, fazer uma crítica e um questionamento de como o casamento era imposto às mulheres naquela sociedade
como única possibilidade de vida.
REFERÊNCIAS
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1999.
______. Disponível em: http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/autores/limabarreto/triste_fim/triste_fim_rosto.html. Acesso em: 10 nov. 2006.
BASSANEZI, C. Mulheres dos Anos Dourados. In: DEL PRIORE, Mary. (Org.).
História das mulheres no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1997.
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
BRANDÃO, R. S. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura.
2.ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
FREUD, S. Luto e melancolia (1917[1915], vol.XIV, 275-293.
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A HISTÓRIA LITERÁRIO-DOCUMENTAL DAS
CARTAS DO BISPO INÁCIO DE ANTIOQUIA
(SÉCULO II).
Ludimila Caliman Campos*1
RESUMO
As cartas de Inácio de Antioquia estão ambientadas na primeira metade do século II e são importantes na medida em que possibilitam resgatar o período de
transição entre a era apostólica e a pós-apostólica. O objetivo deste estudo de
caso é entender a história literário-documental dessas fontes cristãs do período
de apogeu do Império Romano, entendendo-as como um aporte na compreensão tanto do discurso empreendido pelas autoridades da ecclesia, no segundo
século, como as relações entre os escritores de epístolas e o público ao qual elas
se destinavam. Tem-se como metodologia a análise historiográfica e documental simples. O resultado da pesquisa está na percepção da fonte como um importante testemunho do século II, na compreensão da ecclesia daquele período e
nas profícuas trocas de correspondência na Antiguidade.
Palavras-chave: Império Romano. História do Cristianismo. História literária. Análise do discurso.
O fazer história é um ofício que, como qualquer outro, depende de materiais específicos para a sua execução. E investigação em história requer, primeiramente, fontes. Estas, compostas por um emaranhado de vestígios, são o único contato que o pesquisador tem com o passado. Advindas da cultura religiosa, mais
especificamente cristã, a documentação analisada neste estudo de caso pode ser
classificada, quanto à sua forma, como um trabalho literário, escrito, como era
comum na época, sobre um pergaminho, mas que, obviamente, tem-se acesso
1* Ludimila Caliman Campos é licenciada em História pela Universidade Federal do
Espírito Santo e mestranda em História Social das Relações Políticas pela mesma instituição.
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somente a transcrições do original ou, em alguns casos, na falta destas, a cópias
dos manuscritos genuínos (ARNS, 2007).
Integrante do heterogêneo grupo denominado Padres Apostólicos, Inácio, bispo
de Antioquia na Síria, escreveu um dos mais intrigantes documentos da história
da Igreja.21 Durante as poucas semanas que esteve rumo ao martírio em Roma,
Inácio confeccionou, aos moldes de um testamento, sete cartas que iriam mudar
a história das ecclesiae de seu tempo e influenciar toda uma reflexão teológica
posterior.
O nome Inácio é uma derivação latina de Ignenatus e significa “homem nascido
do fogo”, apaixonado por Cristo e pela Igreja.32 Eusébio, em sua obra História eclesiástica, afirma que ele foi o segundo bispo de Antioquia; porém, nos finais do
século IV, Jerônimo o descreve como o terceiro, também precedido pelo apóstolo Pedro. A trajetória de vida de Inácio é pouco conhecida. Ainda segundo
Eusébio, Inácio teve contato com os apóstolos, sendo o sucessor de Pedro no
episcopado local (Hist. Ecles. III, 36, 2). Entretanto, o que se pode afirmar com
maior segurança é ele ter sido, por um considerável espaço de tempo, bispo
21- O termo “Padres Apostólicos” parece ter sido usado pela primeira vez pelo patriarca
de Antioquia, o monofisista Severo. Entretanto, o significado moderno data do ano de
1672, quando o pesquisador francês J.B. Cotelier publicou dois volumes intitulados SS.
Patrum qui temporibus apostolicis floruerunt...opera...vera et suppositicia (HOLMES,
1999).
32- Seu cognome era Theoforos, ou seja, “carregador de Deus”, o que remete à lenda que
o apresenta como sendo a criancinha que Jesus carregou no colo em Mc 9:33-37 (FRANGIOTTI, 1995c).
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da comunidade cristã de Antioquia.43 Sabe-se, ainda, que ele foi martirizado em
Roma, por volta do ano 110 d.C., no final do principado de Trajano. Ao ser levado a Roma a fim de ser julgado, provavelmente junto a outros prisioneiros,
Inácio foi enviado sob a custódia de dez guardas (chamados de leopardos em
Rm 5:1). Durante essa viagem, que se estendeu por toda a Ásia Menor, a cada
localidade onde parava, Inácio escrevia cartas exortativas às comunidades circunvizinhas. A sequência das paradas e o envio das cartas de Inácio podem ser
ilustradas da seguinte maneira:
Jornada de Inácio
Antioquia
Cartas
Esmirna
Éfeso
Magnésia
Trales
Roma
Troâde
Filadelfia
Bispo Policarpo
Esmirna
Roma
4- Localizada às margens do rio Orontes, Antioquia foi a capital do Império Selêucida
na Síria por mais de 200 anos e depois tornou-se uma grande metrópole sob o domínio
de Roma. Por volta do ano 300 a.C., Seleuco Nicator escolheu o vale fértil para construir
a sua grande cidade em homenagem a seu pai, Antíoco. Com uma situação geográfica semelhante à de Alexandria, Antioquia tornou-se, por sua posição estratégica, um
poderoso centro comercial e um tentador alvo para Roma (BUNSON, 1994). A cidade
era tipicamente helenística. Adornada com diversas estátuas, Antioquia contava com
diversos edifícios públicos e um templo de Zeus (ZETTERHOLM, 2005). A população de
Antioquia era cosmopolita. A comunidade judaica já existia desde a fundação da cidade, e, aos judeus, foram autorizados privilégios especiais pelos governantes selêucidas.
Mesmo depois do domínio romano, o cosmopolitismo de Antioquia, com caráter semita
e oriental, permaneceu dominante (BARNARD, 1963). Em 64 a.C., Pompeu, o Grande,
tomou a cidade, que já estava debilitada por causa do declínio do Império Selêucida. A
nova província da Síria foi criada, e Antioquia tornou-se sua capital. A partir de então, a
localidade passou, gradativamente, a ser um importante centro estratégico político-econômico de Roma no Oriente. Antioquia era incomparável dentro do Império do Oriente
no que tange à qualidade e à quantidade de escolas, filósofos e escritores. Filosofias diversas prosperaram na cidade, e muitos líderes lá nasceram e se destacaram, incluindo
Ulpiano, Papiniano, Antíoco de Ascalon, Posidonius, João Crisóstomo, Libânio, Pronto Emesa. Religiosamente, Antioquia era, assim como toda a Síria, composta por uma
mistura de credos de antigos caldeus, gregos, romanos e semitas. Mas, em um período
de tempo relativamente curto, o cristianismo exerceu um forte impacto sobre a cidade,
possivelmente motivado pelas missões do apóstolo Paulo. Em 115 d.C, Antioquia foi
praticamente destruída por um dos piores terremotos registrados no mundo antigo. Originalmente, Antioquia foi erguida pelos selêucidas para servir como uma grande cidade,
e, por isso, numerosos templos e palácios foram construídos, mas a maioria deles acabou
sendo suplantada pelos edifícios gregos e pelas estruturas romanas (BUNSON, 1994).
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Assim, Inácio escreveu, enquanto permaneceu em Esmirna, as cartas para as
comunidades de Éfeso, Magnésia, Trales, Roma; e, enquanto, esteve em Troâde,
escreveu cartas aos Filadelfienses e a Policarpo, bispo de Esmirna (LAKE, 1921).
Para fazer todo esse trajeto, os soldados romanos tomaram a rota do norte, sendo provável que, quando esse curso foi escolhido, mensageiros foram enviados
às cidades das comunidades nas quais Inácio iria passar de modo a informar o
itinerário do bispo e despachar delegações para encontrá-lo em Esmirna (HOLMES, 1999). Há uma quase unanimidade entre os pesquisadores de que o martírio de Inácio realmente tenha ocorrido durante o reinado de Trajano (98-177).
Eusébio data o acontecimento entre 107 e 108, todavia alguns pesquisadores
reportam-no à segunda metade do reinado de Trajano, ou seja, entre 110 e 117.
Outros afirmam, numa tese questionável, que o martírio se deu no reinado de
Adriano (117-138). Aqui se aceita, portanto, que o ano de 110 tenha sido a data
da sua morte.
A comunidade de Antioquia, quando Inácio foi preso, ficou sem liderança e
vulnerável. Parece ainda que, por esse motivo, houve grande alarde, tanto que,
quando o bispo chega à Troâde, ele recebe notícias de que a paz na ecclesia de
Antioquia já havia sido restaurada. Em tal sentido, Paul Foster (2006) vai além
ao afirmar que, à luz do próprio contexto eclesial, a comunidade de Antioquia
já estava sofrendo uma agitação considerável antes mesmo da deportação e da
apreensão de Inácio, como atestam três cartas nas quais o bispo escreve sobre
o retorno da paz à comunidade de Antioquia. (Fil. 10:1; Esm. 11:2-3; Pol. 7:1-2;
8:1). É provável que o próprio Inácio tenha sido o principal expoente no tal desacordo que ocorreu na ecclesia. E mais: muitos autores afirmam que a contenda
pode ter sido criada pelo próprio Inácio numa tentativa de incutir um modelo
mais rigidamente hierarquizado de liderança em Antioquia, com o propósito
de estancar o problema das heresias, pois se percebe que seus conselhos, muitas
vezes, são repletos de repetições acerca de uma mesma admoestação, o que dá a
impressão de que, ao menos indiretamente, ele esteja se referindo à sua própria
congregação. É possível que isso tenha criado divisões internas na comunidade, em especial entre os membros defensores da uma estrutura de liderança
carismática mais tradicional. Foster argumenta que a própria prisão de Inácio
poderia ter sido forjada por seus oponentes que não aceitavam sua tentativa de
suprimir as estruturas alternativas de liderança. É interessante ressaltar a exisSABERES Letras
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tência de outra hipótese, defendida por Schoedel (1985), que complementa a de
Foster, afirmando que, pelo fato de a comunidade de Antioquia ter estado perto
de uma divisão, o martírio de Inácio convinha para reafirmar o valor do seu
ministério perante a sua própria ecclesia. Na verdade, isso é realmente provável,
haja vista o argumento de Inácio estar pautado, em grande parte, na defesa da
unidade e da submissão às autoridades.
Como se havia dito, o corpus inaciano é composto por sete epístolas, a saber: as
epístolas aos efésios, aos magnésios, aos tralianos, aos filadelfianos e aos esmirniotas, aos romanos e ao bispo Policarpo. A maioria dos pesquisadores defende
a composição das cartas na datação tradicional proposta por Lightfoot em torno
do ano 110, reconhecendo-se, entretanto, que é possível que a data de sua composição possa ser mais tardia do que se supõe geralmente (FOSTER, 2006).
As cartas de Inácio são encontradas em três formas básicas, ou seja, em três
recensões tradicionais: curta, média e grande. A curta é preservada somente
em siríaco e abrange as seguintes cartas: a Policarpo, aos efésios e aos romanos. A carta de recensão média, também chamada eusebiana, está em grego e
compreende apenas um manuscrito que, por sua vez, é do século VII. As outras
são cópias destas. Várias importantes versões da recensão média foram escritas,
confeccionadas em latim, em siríaco, em armênio, em árabe e em copta. Já as de
recensão longa apresentam várias versões das sete cartas oficiais e, ainda, um
adicional de mais seis epístolas. As cartas de recensão longa foram criadas associadas às epístolas de recensão média escritas em latim, grego e armênio. É quase uma unanimidade acadêmica que as sete cartas de recensão média atribuídas
a Inácio de Antioquia são autênticas. Assim, o documento grego, ora adotado,
foi reconstruído com base nos seguintes materiais textuais:
G
L
P
g
l
S
Sf
A
= codex mediceo-laurentianus de recensão média (séc. XI)
= versão latina da recensão média
= papiro de Berlim – cód.10581 (séc. V; contém Esm. 3:3-12:1)
= manuscritos gregos de recensão longa
= manuscritos latinos de recensão longa
= resumo siríaco de recensão curta
= fragmentos da versão siríaca de recensão média
= versão armênia
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C
Arabic
G
H
K
T
Sm, Am
Inácio.
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= versão copta
= versão árabe
= codex parisiense-colbertinus (séc. XI)
= codex hierosolymitanus S.Sabae (séc. X)
= codex sinaiticus 519 (séc. X)
= codex parisiense-colbertinus (séc. XI)
= versões siríacas e armênias de várias narrativas do martírio de
Em A História eclesiástica, Eusébio de Cesareia apresenta uma ordenação do corpus documental seguindo a ordem das cidades às quais elas foram enviadas.
Assim, adotando a ordem em G, tem-se a seguinte sequência a ser utilizada:
1. Esmirniotas
2. Policarpo
3. Efésios
4. Magnésios
5. Filadelfienses
6. Tralianos
7. Romanos
Durante a Idade Média, pelo menos treze novas cartas escritas em grego foram
imputadas a Inácio e circulavam pelo que hoje é a atual Europa, indicando uma
possível autoria do bispo. Dentre elas, têm-se as seguintes atualmente:
1. Carta ao herói, diácono de Antioquia
2. Carta a Maria de Neápolis
3. 1ª Carta a São João, o apóstolo
4. 2ª Carta a São João, o apóstolo
5. Carta aos Filipenses
6. Carta aos Tarsianos
7. Carta aos Antioquianos
8. Carta à Maria de Cassobelae
9. Carta da Virgem Maria
10. Carta à Virgem Maria
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Não há, entretanto, qualquer evidência grega que comprove a veracidade desses documentos. E se percebe que a história textual deles não pode ser seguida.
Assim, através da crítica externa, os eruditos logo consideraram tais documentos como falsificações grosseiras produzidas seguramente na Idade Média.54
Há várias hipóteses relativas à perpetuação das cartas de Inácio. A mais provável é a de terem sido coletadas primeiramente por Policarpo, bispo de Esmirna,
que emitiu cópias delas à Igreja em Filipos pouco depois de Inácio ter saído da
cidade. Há, também, documentos completos e fragmentos em siríaco, grego,
árabe, copta e armênio.
No que concerne à categorização do escritos, pode-se inseri-los, como o próprio nome sugere, na categoria de epístolas quanto ao gênero. A epístola, em
grego ἐπιστολή, em latim epistula, é um documento escrito e assinado, elaborado sob a forma de carta e classificada, de acordo com Bardin (2006), como
uma comunicação dual escrita. Dependendo das circunstâncias e do assunto,
as cartas seguiam um modelo retórico comum, respeitando regras precisas. Por
esse motivo, grande parte das cartas na Antiguidade seguiu os termos gerais
do modelo clássico romano. No caso das epístolas de Inácio, vê-se que elas são
de caráter impessoal e que acompanham, em linhas gerais, o estilo das cartas
enviadas comumente, apesar de apresentarem uma linguagem lírica muito original (RICHARDSON, 1953). Podem-se distinguir dois tipos básicos de cartas:
as públicas e as privadas. Desde os tempos apostólicos, a literatura cristã utiliza
constantemente cartas públicas, e, com Inácio, não é diferente. No contexto do
mundo grego-romano não era comum a circulação de textos entre indivíduos,
mas, o habitual, era que as trocas de correspondências se fizessem entre instituições, no caso cristão, entre congregações, como se observa em Inácio. A atividade de reprodução e distribuição de textos entre os cristãos do século I e II era
intensa. Em uma carta de Inácio endereçada a Policarpo, isso fica bem claro:
54- As falsificações eram muito comuns no período medieval, sendo que Donatio Constantini e Os cantos sibilinos estão entre as mais célebres. O certo é, segundo Besselaar
(1974), que um detalhe aparentemente insignificante pode conduzir o pesquisador a descobrir anacronismos, contradições com outras fontes da época, uso gramatical e estilístico duvidosos e, até mesmo, o próprio material da fonte pode indicar sua autenticidade.
Enfim, um documento adulterado dificilmente escapa ao crivo dos pesquisadores, e com
as cartas atribuídas a Inácio de Antioquia não foi diferente.
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Convém, Policarpo, convocar uma assembléia agradável a Deus e escolher alguém que vos seja caro e
também ativo, que poderia ser chamado de correio
de Deus. Encarrega-o de ir à Síria, para celebrar vosso infatigável amor, para a glória de Deus. O cristão
não tem poder sobre si mesmo, mas está livre para
servir a Deus. Essa é a obra de Deus e também a vossa, quando tiverdes realizado isso. Na graça, eu creio
que estais prontos para fazer uma boa ação diante
de Deus. Conhecendo vosso infatigável zelo pela
verdade, eu vos exortei com essas poucas palavras.
Não pude escrever a todas as Igrejas, por causa de
minha partida precipitada de Trôade para Neápolis,
conforme a vontade de Deus me ordenou. Tu escreverás a todas as Igrejas do Oriente, pois tens o pensamento de Deus, a fim de que elas façam a mesma
coisa. As que puderem, mandem mensageiros a pé;
as outras mandem cartas por meio daqueles que tiveres enviado. Dessa forma, sereis glorificados por
uma obra eterna, como bem o mereceis (Pol. 7 e 8)
(Grifo nosso).
Além disso, analisando o percurso das cartas de Inácio, percebe-se que a coleção
que foi disseminada para vários grupos de cristãos em um período curto de
tempo, algo semelhante às correspondências de Paulo (GAMBLE, 1995). Essas
correspondências tinham por finalidade manter um contato entre os pastores
e as suas comunidades, ou, mesmo, entre os bispos. As epístolas eram lidas
nas assembleias de modo a servirem, principalmente, de exortação aos fieis.
Quando se analisam os enunciados de agradecimentos, de cumprimentos e de
saudações no começo, no fim e na transição entre um assunto e outro ao longo
das cartas, percebe-se que Inácio utiliza tanto o modelo de comunicação paulina quanto o modelo próprio da cultura greco-romana. Mais do que isso, a
densidade e a matização do documento refletem um estilo popular de retórica
conhecido como “asianismo” (HOLMES, 1999).
No que se refere às cartas propriamente, se, por um lado, Inácio faz pouco uso
do Antigo Testamento, por outro, ele está profundamente influenciado pela antiga tradição cristã. Isso se percebe tanto em seu vocabulário quanto em seu
pensamento. A herança cristã em Inácio tem raízes profundas no pensamento
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de Paulo. Nesse sentido, as fontes apresentam numerosos ecos em documentos
paulinos, tais como: a 1ª carta de Paulo aos Coríntios e a epístola aos Efésios.
Apesar de se concordar que Inácio faz uso frequente da linguagem paulina,
percebe-se seu pouco interesse, aparentemente, nas escrituras judaicas tradicionais. Segundo Matthew W. Mitchell, em um artigo intitulado In the Footsteps
of Paul: Scriptural and Apostolic Authority in Ignatius of Antioch (2006), muitos
estudiosos ignoram as questões relativas aos pontos de contato entre as escrituras judaicas e as correspondências inacianas. Contudo, segundo o autor, a
utilização pouco frequente do Antigo Testamento derivaria de um desejo de
subordiná-lo às outras fontes de autoridade, em especial aos escritos de Paulo.
As cartas de Inácio, portanto, refletiriam que, desde cedo, os escritos de Paulo já
assumiam um caráter de exemplar normativo no seio doutrinário das comunidades. Além das fontes paulinas, é bem provável que o bispo tenha tido contato
com o Evangelho de Mateus, como J. Smit Sibinga deixa claro em seu artigo
Ignatius and Matthew (1966), e, talvez, mas menos provável, com os Evangelhos
de Lucas e de Marcos.
Apesar de Inácio imitar a epistolografia apostólica, pode-se observar que ele
também utiliza modelos helenísticos. Segundo Allen Brent, no artigo intitulado
Ignatius of Antioch and the Imperial Cult (1998), por meio da análise de alguns
conceitos verificados nas correspondências de Inácio, é possível identificar um
forte paralelismo com as religiões de mistério que adentraram o Império Romano.65 É importante destacar que se tem alegado ainda a existência de certas
afinidades entre os escritos de Inácio e as doutrinas gnósticas por conta, principalmente, de terem sido descobertas neles algumas sutis evidências de ele-
65- No tocante a essa questão, um dos pontos que mais intriga os pesquisadores é de que
modo Inácio compreende o ritual eucarístico. Segundo Foster (2006), talvez a maneira
mais apropriada para se discutir sua compreensão nesse assunto seja à luz do lugar de
refeições no ambiente comum das religiões greco-romanas. Enquanto Paulo descreve
que comer carnes oferecidas aos ídolos era um pecado, pois se participava dos cultos aos
ídolos, Inácio vê o consumo dos elementos eucarísticos como um evento participativo,
entendendo que o rito eucarístico era o centro da adoração, o qual sustentava um caráter
puramente mágico, o que o aproximaria das religiões de mistério (SCHOEDEL, 1985).
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mentos mitológicos provenientes do gnosticismo.76 As pesquisas têm apontado
que Inácio estava mais influenciado por uma cultura popular, permeada pelas
tradições religiosas locais, fruto da própria cidade de Antioquia, local de grande efervescência cultural, do que precisamente por um gnosticismo (HOLMES,
1999; SCHOEDEL, 1985).
Dadas as circunstâncias vividas por Inácio durante a confecção das cartas, a
análise dos documentos requer certo cuidado, considerando-se o seu valor peculiar, pois são cartas de um prisioneiro a caminho do martírio — evidentemente abalado — e, por essa razão, elas apresentam um forte apelo emocional. O
estilo das cartas é truculento, refletindo a natureza bruta do autor, típica de um
cativo sujeito a brutalidades (RICHARDSON, 1953). Desse modo, percebe-se
que as cartas de Inácio foram escritas em meio a um extraordinário momento
de estresse e forte emoção. Porém, apesar disso, não se nega que Inácio possuía
um desejo sincero de imitar o sofrimento do seu Senhor e de, assim, tornar-se
um discípulo verdadeiro. Inácio tinha alguns motivos para escrever as cartas.
Segundo Eusébio de Cesareia, em suas próprias palavras, o bispo de Antioquia
“acautelava-as (as comunidades) contra as heresias que começavam a pulular;
incitava-as a conservar firmemente a tradição dos apóstolos que, por segurança,
julgou necessário fixar ainda por escrito” (Hist. Ecles. III, 36, 4). Nesse sentido,
os objetivos de Inácio com suas cartas eram: 1) alertar as comunidades a respeitar as autoridades instituídas, ou seja, os bispos, os presbíteros e os diáconos; 2)
instruir os crentes em relação aos falsos ensinamentos dentro das comunidades;
3) assegurar o futuro de sua própria ecclesia em Antioquia por meio da ajuda das
outras comunidades a ela; 4) pedir para que os cristãos de Roma não interviessem em seu favor no julgamento.
76- Utilizando fontes de Nag Hammadi, Paulsen (1990) acredita que a doutrina de Deus
em Inácio é reflexo de um gnosticismo que acreditava na harmonia espiritual dos poderes numa divindade completa. Essa visão se mostra diferente da doutrina bíblica da
unidade de Deus, o que se revela como uma possibilidade de que o bispo tenha certa familiaridade com a doutrina gnóstica (SCHOEDEL, 1985). Henry Chadwick (1950) acrescenta ainda que as cartas de Inácio são permeadas por um individualismo anti-material,
subscrito pela argumentação do silêncio do Deus, de caráter explicitamente gnóstico. Entretanto, parece mais sóbrio esclarecer que o gnosticismo, que no período de Inácio era
apenas um movimento “semi-místico”, possuía doutrinas significativamente diversas
daquelas encontradas nas cartas do bispo. Além dos diferentes dogmas, os ideais gnósticos afetavam diretamente os interesses religiosos mais concretos de Inácio (SCHOEDEL
1985; PERTENSEN,1990).
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As cartas de Inácio de Antioquia são documentos de impressionante reflexão
histórica pois abordam, sob uma perspectiva inovadora, algumas temáticas atípicas para um documento cristão que data do século II. Muitas foram, e ainda
são, as discussões históricas e teológicas ao seu respeito. Deste modo, o estudo
moderno de Inácio pode ser dividido em três períodos. O primeiro deles foi
dominado por problemas de autenticidade das cartas. Ele foi liderado, principalmente, por teólogos reformadores, de comprovada fineza analítica, que negavam a autenticidade pelo fato de o material ter sido interpolado. Entretanto,
a brilhante descoberta do bispo anglicano James Ussher da existência de uma
antiga forma da carta, a recensão média, permitiu uma maior acuidade dos estudos posteriores, como os de John Pearson e, em seguida, já no século XIX, o
grande trabalho de Theodor Zahn (1838-1833) e John Barber Lightfoot (18251901), representantes das escolas alemã e inglesa, respectivamente. Professor
de Teologia de Cambridge, Lightfoot se dedicou a traduzir as cartas de Inácio
e a fazer breves comentários a respeito delas. Todavia, ele se aplicou, na maior
parte de sua carreira, aos estudos generalistas da Patrística e do Novo Testamento. Lightfoot tem como obra clássica o livro The Apostolic Father (1889). Já
Zahn, também professor de Teologia, mostrou-se mais analítico, propondo uma
investigação mais complexa. Entretanto, mesmo Zahn, em sua obra Ignatius von
Antiochien (1893), não realizou uma pesquisa aprofundada das cartas. Zahn e
Lightfoot acabaram por comprovar, definitivamente, a autenticidade das sete
cartas de Inácio, agora classificadas como recensão média. A partir do trabalho
desses dois grandes pesquisadores, muitos outros surgiram, mas poucos se dedicaram exclusivamente a analisar a formação do poder dos bispos tendo por
base as cartas de Inácio de Antioquia.
O segundo período foi marcado pela exploração das cartas do ponto de vista da
História do Cristianismo em si. Nesse sentido, tem destaque o trabalho do protestante liberal alemão Von der Goltz no livro Ignatius von Antiochien als Christ
und Theolog (1894).
Já o terceiro período, que se inicia a partir do século XX, é dedicado ao entendimento da posição de Inácio de Antioquia na História das Religiões. Um importante trabalho foi o do alemão H. Schlier, Religionsgeschichtliche Untersuchungen
zu den Ignatius-briefen (1929), que descobriu o que ele acreditava ser a dimensão
gnóstica das cartas de Inácio. Além deste, dois pesquisadores americanos se desSABERES Letras
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tacaram no estudo de Inácio de Antioquia, são eles: Robert M. Grant, professor
de Novo Testamento da Universidade de Chicago e Willian R. Schoedel, pesquisador da Universidade de Illinois, ambos de caráter mais generalista, buscando compreender aspectos teológicos nas fontes. Recentemente, os estudos
de Inácio seguem a sua linha de pesquisa pautada nas novas abordagens do
Novo Testamento e da situação histórico-religiosa do cristianismo, sendo essa
análise realizada por meio de instrumentos advindos não somente da história,
mas também da Psicologia, da Linguística, da Antropologia e da Arqueologia.
Há, ainda, alguns outros autores da atualidade dignos de nota, como: Allen
Brent, Harry O. Maier, Alvyn Pettersen, Nicolae Roddy, Dale L. Sullivan, Henning Paulsen e Paul Foster.
Inácio de Antioquia compõe, com toda a certeza, o rol das figuras mais significativas da primeira metade do século II d.C.. Suas cartas permitem compreender
melhor a porção Oriental do Império, em especial no que diz respeito ao desenvolvimento da teologia e da estrutura clerical nascente, ajudando a refletir com
mais propriedade sobre como se deu a transição de comunidades carismáticas
para uma igreja “universal” no início do século II, como instituição de visão
própria, tendo o bispo como representante oficial do próprio Deus.
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AS GRAÇAS DE PERO DA PONTE: MARINHA
FOÇA, MARINHA CRESPA, MARINHA LÓPEZ
Paulo Roberto Sodré1*
para Sueli Gomes da Silva Oliveira
RESUMO
Numa abordagem histórico-cultural, jurídica e crítico-literária, reflete sobre as
cantigas satíricas de Pero da Ponte (trovador do séc. XIII) dedicadas às “soldadeiras” Marinha Foça, Marinha Crespa e Marinha López, lidas pelos pesquisadores como um libelo misógino, antifeminista e, por conseguinte, preconceituoso. Analisa os recursos da linguagem cômica nas cantigas ponteanas e sua
relação com o jugar de palabras, isto é, o jogo de avessos satírico, definido em
Las siete partidas, súmula de textos jurídicos peninsulares de Afonso X. Levanta
aspectos problemáticos na recepção das cantigas nos dias de hoje, a partir de
reflexões de Vladímir Propp, Quentin Skinner e Georges Minois.
Palavras-chave: Sátira galego-portuguesa. Cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas. Pero da Ponte – Cantigas satíricas.
AS CANTIGAS SOBRE SOLDADEIRAS E O JUGAR DE PALABRA21.
Sabe-se que os trovadores, para compor seus tipos nas cantigas de escárnio e
maldizer, se serviram à vontade dos caracteres cômicos consagrados pelos re1* Doutor em Literatura Portuguesa. Universidade Federal do Espírito Santo.
21- Este trabalho foi apresentado no 1º Simpósio Nacional sobre Linguagem Humorística, realizado pelo NETHU – Núcleo de Estudos de Textos de Humor e pelo PPGEL –
Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da Ufes, em março de 2010.
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tóricos, tais como covardes, fanfarrões, bajuladores, espertalhões, pedantes, sovinas, vaidosos, velhos metidos a jovem et al. A esses personagens, de que os
ocidentais tem rido ao longo dos séculos (PROPP, 1992, p. 135), acrescentar-seia a figura da “mulher fogosa”, “voluptuosa”, que, na cultura trovadoresca, terá
como representante a soldadeira, bailarina, cantora e tocadora de instrumentos
que acompanhava os jograis (CORRAL DÍAZ, 1999, p. 278-281). Segundo Graça
Videira Lopes, é um dos alvos freqüentes dos cantares satíricos (1994, p. 213214).
Uma delas, Maria Pérez, a Balteira, além de formosa e conhecida pela corte de
Fernando III e Afonso X, era uma nobre galega32 envolvida em destacados episódios cortesãos, como a cruzada e as relações com heróis mouros. Das cantigas
do ciclo da Balteira (LAPA, 1981, p. 191-194), levantadas por Carolina Michaëlis
nas Glosas marginais (2004), emerge um retrato multifacetado daquela que se
convencionou classificar como soldadeira: jogadora de dados, blasfema, supersticiosa, lasciva, prostituta, cobiçosa etc. (VASCONCELOS, 2004, p. 234 ss.).
Outras dançarinas ganharam a atenção escarninha dos trovadores, tão contundente quanto a dedicada a Maria Pérez. É o caso de três Marinhas, de que tratou Pero da Ponte, cujo temário e coincidências formais poderiam torná-las um
tríptico: Marinha Foça, Marinha Crespa e Marinha López, sobre as quais nada
se sabe ainda. Para além da anáfora dos nomes no incipit das cantigas (diminutivo do nome Maria acompanhado de uma alcunha-sobrenome), as três mulheres são escarnecidas por meio de equívocos e de elementos injuriantes para a
mulher medieval: a beleza, a idade e a moral (MADERO, 1992, p. 62 ss.). Estes
três aspectos são justamente os que compõem um dos refrãos mais famosos da
sátira trovadoresca, “dona fea, velha e sandia!”, de João Garcia de Guilhade.
Como não é propósito deste trabalho analisar pormenorizadamente as cantigas,
mas ensaiar acerca de inquietações que a recepção dessas cantigas provoca hoje,
comentarei brevemente os poemas.
Em “Marinha Foça quis saber” (LAPA, 1995, p. 222), Pero da Ponte cria um
escárnio de amor, isto é, uma paródia de temas da cantiga de amor (VALLÍN,
1997). Neste caso, temos a descriptio puellae posta pelo avesso: em vez de ex32- Cf. a Glosa Marginal VII, “Uma peregrina a Jerusalém e outros cruzados” (VASCONCELOS, 2004, p. 219-273).
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pressões claramente elogiosas como “senhor de bon parecer” ou “ben talhada” (TAVANI, 2002, p. 163-167), o apelido “Foça”, nitidamente comparativo
em relação ao aspecto físico de Marinha, não deixa dúvida sobre o retrato a ser
desenvolvido: uma mulher provavelmente moura (“que viu vós e vossa coor”;
“tan negra”) pergunta ao trovador “como lh’ ia de parecer”, ao que ele responde ambiguamente: “– Senhor, non ouver’ a nacer/ quen vos viu e vos desejou”.
As outras três estrofes desenvolvem o retrato de Marinha, a sem par, na feiúra,
capaz de fazer morrer aquele que a vê, não de amor, como reza o formulário das
cantigas amorosas, mas de susto ou desgosto.
Já em “Marinha Crespa, sabedes filhar” (LAPA, 1995, p. 222), Ponte se serve
não apenas do apelido para encrespar a maledicência, mas de um provérbio
que funciona como refrão: “a boi velho non lhi busques abrigo”. No caso de
Marinha Crespa – cujo apelido significa “rugoso”, “enrugado” (CUNHA, 1994,
p. 227), fazendo provavelmente referência à velhice da soldadeira –, seu elogio
equívoco está no fato de ela saber “filhar/ eno paaço sempr’ um tal logar” na
corte – como uma bela jovem o faria –, o que surpreende o trovador que a percebe velha como um boi, logo, não merecedora do benefício.
Quanto a “Marinha López, oi-mais, a seu grado”, Pero da Ponte nos narra o
propósito da soldadeira que doravante pretende “remiir seu pecado” e ser “bõa
molher”, deixando para trás seus “feitos desaguisados” e “folia” sexuais. O elogio equívoco da decisão de Marinha López recai na escolha do lugar onde ela
pretende se afastar da sensualidade do mundo: a corte de Don Lopo Díaz de
Haro, senhor de Biscaia, onde moram “mil cavaleiros”.
Nas três cantigas, como se percebe, a metáfora zoomórfica atua como elemento
descritivo burlesco das mulheres: “foca”, pela cor negra da moura; “boi velho”,
pela idade avançada da soldadeira, e “lobo”, pela esperteza de Marinha – se
considerarmos que o sobrenome “Lopez” deriva possivelmente do latim lupus/
lobo (GUÉRIOS, 1981, p. 163). A cortesia, portanto, é o elemento posto em chave
de zombaria pelo trovador que reduz as mulheres a comparações com animais
contrários à beleza e à “boa conduta”.
Até pouco tempo, os críticos costumavam ler ainda essas cantigas por meio
de uma abordagem ou linguística ou histórico-social, fazendo prevalecer uma
leitura, de certo modo, literal da sátira galego-portuguesa, como tive oportuSABERES Letras
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nidade de demonstrar no ensaio Non serie juego onde omne non rrye: aspectos da
sátira galego-portuguesa43. Apoiado nas investigações de Ramón Menéndez Pidal
(1991), Jesús Montoya Martínez (1989; 1995) e Marta Madero (1992), sobretudo,
pude verificar que as cantigas de escárnio e maldizer são provavelmente produtos do jugar de palabras ou jogo de avessos (SODRÉ, 2008), regularizado nas leis
peninsulares do século XIII, organizadas por Afonso X em Las siete partidas. Na
Lei XXX do Título IX da “Partida Segunda”, que trata dos modos de convívio na
corte, o rei Sábio prescreve que o jugar de palabra deve ser feito pelo trovador de
maneira que ele nunca ofenda, injurie e entristeça aquele que estiver na corte no
momento de diversão e festa (ALFONSO X, 1991, p. 101-102). Assim, e citando o
exemplo da própria lei, o trovador deveria brincar com o covarde, chamando-o
de corajoso; e com o valente, tomando-o por “covardão”. Tal estratégia discursiva escarninha configuraria o que denomino de jogo de avessos, usado quando
o alvo da sátira ou do jugar de palabra eram amigos do rei. Quanto aos escárnios
dirigidos aos inimigos, a injúria era o objetivo, mesmo que em linguagem de
efeito cômico.
A esse propósito, abro um parêntese: essa distinção do riso para os amigos e
contra os inimigos, deduzida da leitura da lei afonsina, parece se ajustar ao que
mais tarde será considerado o modo dual e/ou rival de se fazer rir: por um lado,
os que pensam que o riso revela desprezo de quem satiriza e de quem ri; por
outro, os que consideram que, além desse tipo, há ainda o riso lúdico provocado
por inversões e deslocamentos de expectativas com o intuito de fazer rir por
“bom humor e benevolência” (SKINNER, 2001, p. 9). A esse aspecto voltaremos
mais adiante.
A respeito das soldadeiras, Denise K. Filios (1998) analisa o retrato dessas mulheres medievais como “insultos rituais”, uma vez que
Não há evidência de que as soldadeiras, a despeito de
seu papel oficial de dançarinas, instrumentistas e cantoras que apresentavam cantigas, participaram como
recitadoras nas cantigas de escárnio e maldizer. Ademais, o tópico mais comum dos poemas sobre soldadeiras é sua sexualidade; seu comportamento sexual e
seus corpos são frequentemente expostos verbalmen43- Trabalho inédito, desenvolvido durante o estágio de pós-doutoramento, em 2007,
realizado na Unicamp, sob a supervisão da Profª. Drª. Yara Frateschi Vieira.
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te, o que muitos críticos consideram essencialmente
humilhante para uma mulher. Contudo, como indiquei acima, aspectos factuais da identidade de uma
pessoa podem se tornar atributos rituais, como descrever uma soldadeira como prostituta pode ser um
jogo com sua identidade ritualizada. O fato de que
soldadeiras nunca são apresentadas como artistas, mas
apenas como lascivas, sugere que isto é o papel convencional para a soldadeira nas cantigas; tal convenção
indica a natureza ritual de tais insultos (FILIOS, 1998,
p. 30-31. Tradução minha).
O que Denise Filios considera “insulto ritual”, Marta Madero o toma por “injúria lúdica”, isto é, um jogo retórico, em outros termos, a recobrir as situações
de ambigüidade e graça. Neste sentido, os trovadores se valiam de circunstâncias reais (o fato de uma mulher ser talvez uma soldadeira) e fictício-injuriantes
(ser ela prostituta ou lasciva, além de negligente com suas obrigações morais
próprias de uma mulher do século XIII), para compor uma cantiga. A combinação desses elementos divertiria não apenas a audiência – constituída por reis,
homens e mulheres nobres, clérigos e jograis, atenta à capacidade de o trovador compor bõas razones, mas a própria soldadeira, provavelmente ela mesma
avaliadora da competência poética do trovador em seu jugar de palabra ou jogo
escarninho.
A expressão “talvez soldadeira”, que usei anteriormente, atesta menos uma polêmica do que uma hesitação: a dúvida em relação ao fato de Foça, Crespa e
López (ou mesmo a Balteira) serem de fato soldadeiras, como questionava também Carolina Michaëlis de Vasconcelos (2004, p. 224). Considerar aquelas quatro mulheres uma soldadeira talvez seja um sinal de que ainda estamos presos
a uma concepção histórico-biografista das cantigas, iniciada pelos filólogos de
fins do século XIX, a mesma a partir da qual se deduziu que Pero da Ponte era
um “ladrão” ou Bernal de Bonaval, um “sodomita”. Se hoje sabemos que Pero
da Ponte não foi um homicida nem latrocida, como brincou Afonso X e como
esclareceu Menéndez Pidal, isso não se deveria ao fato de pensarmos que certos
“crimes” são mais improváveis que outros? É dificilmente admissível pensar
num trovador como assassino ou sodomita; mas serão as mulheres cantadas
pelos trovadores soldadeiras apenas porque numa corte medieval elas cantavam
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e dançavam e, por isso, necessariamente se prostituíam? Não estaremos enganados sobre a Marinha Foça e a Marinha López ou sobre a Maria Balteira ou
ainda sobre a Maria Mijouchi? Não seriam elas condessas ou amas ou donzelas
em jogo de avesso?
O que se interroga não descarta nem subestima, no entanto, as investigações e
opiniões de Martínez Salazar (apud VASCONCELOS, 2004, p. 220 ss.), sobre
a Balteira, e de Menéndez Pidal, sobre as soldadeiras. Como apontaram esses
autores, contempladas nas leis que regem a reunião na corte e detentoras de
bens privilegiados como cavalo (MENÉNDEZ PIDAL, 1991, p. 62 et seq.), as
soldadeiras poderiam provir de classes sociais diferentes, a princípio, bastando
ter habilidades alegres para divertir e entreter a corte. A questão que se coloca, entretanto, é: “soldadeira” não teria o mesmo efeito retórico negativo e
burlesco, de injúria lúdica contra as mulheres, como o “avaro” e o “sodomita”
o eram para os homens freqüentadores da corte? Se a tópica satírica ou se a
estratégia discursiva depreciativa das cantigas galego-portuguesas transforma
um trovador ou jogral em poeta ruim, um cortesão em enamorado por homens
ou um nobre em sovina, as mulheres seriam também transformadas convencionalmente em “putas” ou “feias” e, por extensão, em soldadeiras, de acordo com
os clichês injuriantes escarninhos e lúdicos estudados por Marta Madero (1992,
p. 65 ss.).
Sendo assim, seriam as Marinhas soldadeiras? Sendo soldadeiras, entretanto,
seriam elas feias, idosas e promíscuas ou, postas pelo avesso, eram antes bonitas, jovens e comedidas? A Lei XXX do Título IX da “Partida Segunda” e sua
prescrição sobre o jugar de palabra colocam-nos a dúvida. Desse modo, a perspectiva a partir da qual se interpretam os termos da lei pode determinar muito,
como se pode notar, a recepção que podemos fazer das cantigas satíricas peninsulares.
Seja como for, as cantigas sobre soldadeiras ou outros visados das cortes peninsulares não nos permitem senão conjeturar possibilidades de leituras raramente
definitivas. O jogo do avesso que propõe a Lei XXX certamente esclarece o eixo
da inventio de muitas cantigas satíricas, mas está longe de resolver as alusões e
o alcance desses textos.
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DA RECEPÇÃO DAS CANTIGAS HOJE: O RISO COMO INSULTO.
Outro problema, no entanto, se põe quando estudamos as cantigas satíricas galego-portuguesas, cujos meandros de produção e recepção procurei apresentar
sumariamente: os trovadores e seus receptores corteses riram da negra Marinha
Foça, da velha Marinha Crespa e da fogosa Marinha López, centrados que estavam na nítida diferença entre bem e mal, certo e errado, bom e ruim, ou seja, entre cristão e não cristão, entre o que era de Deus e do Diabo (FRANCO JR., 1992,
p. 81). Como afirma Vladímir Propp, “cada época e cada povo possui seu próprio e específico sentido de humor e de cômico, que às vezes é incompreensível
e inacessível em outras épocas” (1992, p. 32). Contudo, como deveremos receber hoje essas cantigas provenientes de um mundo nitidamente binário e, para
nós, preconceituoso? Que graça poderemos perceber em textos que, mesmo por
meio de insultos rituais e jogos de avesso, descaram a rejeição étnica, etária e
comportamental, que procuramos civilizadamente apagar o mais possível.
Essas interrogações que venho fazendo derivam do contato com uma frase de
Propp que procura contornar o fenômeno do riso: “O riso faz visível a todos um
defeito escondido” (1992, p. 182). Nenhuma surpresa no sentido evidente da
frase, uma vez que, desde os gregos e, sobretudo, dos latinos, a noção de riso,
de cômico, de satírico, está vinculada ao texto crítico – contra alguém com um
defeito que o riso põe em cena – apoiado, de maneira moderada (irônica) ou
imoderada (zombaria), no humor. Rimos, muitas vezes, porque o autor desvela
em personagens os defeitos humanos mesquinhos54, normalmente por meio de
recursos lingüísticos como o trocadilho, o paradoxo, a inversão, a ironia, a descrição caricata, a hipérbole (PROPP, 1992, p. 119-143). Uma outra afirmação de
Propp torna mais agudo o incômodo: “há casos de obras que, apesar de cômicas
pelo estilo e pelo modo como são elaboradas, são trágicas por seu conteúdo”
(p. 18-19). Isso quer significar que o riso pode ser cruel, se nos rimos, em casos
extremos, do embaraço de interioranos, da queda de um idoso ou do gesto,
inúmeras vezes repetido, de alguém com Transtorno Obsessivo Compulsivo ou
TOC; enfim, indivíduos fragilizados por alguma razão social, física ou psíquica,
congênita ou circunstancial.
54- Propp chama a atenção para o fato de que grandes defeitos suscitam, em vez do riso,
repugnância, indignação ou pena (1992, p. 174)
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Quentin Skinner (2002), ao recensear os diversos tratados sobre o riso, sobretudo, desde o século XVI, expõe, aliás, um aspecto que amplia a situação desconfortável que procuro desvelar: rimos quando nos sentimos superiores ao
personagem posto em ridículo. Assim sendo, mesmo quando rimos de figuras
estereotipadas e, portanto, banalizadas pelos clichês cômicos e satíricos, exercitamos, conscientemente ou não, nossa superioridade e desdém. Segundo Skinner, essa famosa relação entre riso e desprezo finca raízes na retórica clássica,
quando se recomenda o uso de tropos zombeteiros para assegurar a vitória do
discurso sobre o do adversário, desestabilizando-o pelo riso (2002, p. 10). Tratase, portanto, de uma “arma discursiva”.
Num simpósio sobre o humor, pareceu-me apropriado colocar na berlinda não
apenas a maneira como os trovadores compuseram suas cantigas sobre as mulheres (e também sobre os mouros e os sodomitas, empecilhos, pensavam eles
então, ao caminhar casto para o plano espiritual dos homens cristãos brancos,
heterossexuais, nobres e viris), mas também chamar a atenção para que tipo de
leitor se revela quando as lemos em 2010.
Um satirista de hoje escreve a princípio sob a pressão do que atualmente já
virou motivo de deboche, o “politicamente correto”. Rir-se de negros engravatados, da nudez pintada de Asurinis, de mulheres louramente ao volante, de
meio-campistas gays ou de avós apaixonados passou a revelar não o presumível “ridículo” dessas personagens, segundo o senso comum, mas da tacanha
visão de mundo de quem delas inadvertidamente se ri.
Se tradicionalmente o riso ocorria a partir da observação de um deslocamento
dos conceitos pré-estabelecidos e fixados culturalmente, hoje, entretanto, todas
as diferenças se tornaram respeitáveis. Como pondera Georges Minois, “o componente agressivo do riso foi eliminado; de repente, o riso, desvitalizado, não
mostra mais os dentes” (2003, p. 627), colocando sob pressão política e ética os
satiristas. E os leitores? O que revelam em suas leituras?
Nesta altura, a frase de Propp pode ser revirada em seu sentido inicial: O riso
faz visível a todos um preconceito escondido no receptor. Estaremos, caro leitor, mon
semblable, atentos a isso?
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O CORPO ESCRITO DO MUNDO: PARA UMA
ESCRITA/LEITURA TRANS-ALFABÉTICA
Luis Eustáquio Soares (UFES)1*
Micheline Mattedi Tomazi (UFES)2**
RESUMO
Considerando que a proposta de Letramento, como forma de aprendizagem/
inserção na cultura letrada, é reacionária, por reificar a escrita alfabética, sem
considerar fatores políticos, culturais e econômicos, este ensaio, com o apoio teórico de Gilles Deleuze & Félix Guattari (1995), Jacques Ranciére (1995) e Maurizzio Gnerre (1991), ainda que como esboço, investe numa perspectiva outra, a
que procura incorporar os pontos de vista do não letrado, do falante de outras
variáveis linguísticas, inscrevendo-os como protagonistas.
PALAVRAS-CHAVE: Letramento. Escrita Alfabética. Cultura letrada.
O CORPO E O MUNDO
Ter um corpo, um fantasma encarnado, uma sobriedade a descer em espaços,
em microespaços, em espaços que se transformam em tempo, indistinguíveis,
tempo e espaço. Uma mônada que produz todas as mônadas, que apresenta o
mundo, o cosmo. Uma mônada é um corpo obscuro, em suas necessidades, em
sua textualidade, em sua carnicidade, em seu passado, em sua alma, subjetivações singulares do corpo, seu outro modo de se encarnar, de se desencarnar,
corpo e alma são um mesmo e um diferente (DELEUZE, 1991).
1* Docente do Departamento de Línguas e Letras da UFES – Universidade Federal do
Espírito Santo.
2* Docente do Departamento de Línguas e Letras da UFES – Universidade Federal do
Espírito Santo.
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Para Deleuze31 uma mônada – um corpo – comporta o infinito de microcosmos,
profusão de diferenças que transformam uma mônada em partes, em excesso
barroco de singularidades. A mônada, macrocosmo, é o corpo em estado de
vida, mas suas subpartes constituintes, infinidades, são vozes de todas as possibilidades, de todo possível, de todos os acasos, de todo o cosmo; são vozes que
se equilibram, engendrando o corpo, no desequilíbrio de suas individuações.
Este, o corpo, faz-se artifício, na medida em que seu estado de identidade demanda a presença/ausência de uma alma que, por ser própria, é imprópria,
quer dizer, é não significado, não transcendência, não natureza, não identidade, não alteridade e, por fim, paradoxalmente, não corpo metafísico, uma vez
que a sua individuação corporal não implica, de modo algum, uma espécie de
propriedade formal – e identitária – de um dentro ou de um fora singularizados. Sua singularidade resulta, instavelmente, de um complexo de combinações
de um interior com um exterior.
Ou melhor, o corpo constitui uma rede de interioridades precárias, mosaico de
exterioridades não menos precárias, de tal modo que se pode dizer que a alma
do corpo (sua esfera subjetiva ou a representação que dele se faz) constitui o
corpo sensível do mundo, uma expressão possível e impossível deste mundo,
que, não sendo natureza, pode se transmudar em outros mundos, assim como
o corpo individuado pode expressar – e expressa – outras individuações, outras
representações, outros sonhos, outros desejos. O corpo se faz presença, quer dizer, torna-se corpo, por meio de sua errância
corporal, por meio de uma reescrita, simultaneamente de si e dos outros corpos.
Tal como o conceito de perlaboração, sob a perspectiva de Lyortard (1989)42, corporizar-se é um trabalho que remete a um antes e a um depois. Remonta, a um
tempo, à cena primária de sua inserção no palco do mundo e à cena secundária
31- Assim diz Deleuze, relativamente à dor – a uma mômada-dor -: “Como uma dor sucederia a um prazer, se mil pequenas odres, ou melhor, semidores que vão reunir-se na
dor consciente, já não estivessem dispersas no prazer”. (DELEUZE, 1991, p.30).
42- Lyotard faz uso do conceito freudiano de posteridade, para, a partir desse conceito,
situar a pós-modernidade como reescrita da modernidade. A posteridade freudiana implica um trabalho mnêmico tal que seu gesto se torne duplo, “em direção ao anterior e
ao posterior”: eis aí o conceito de reescrita, uma terceira possibilidade, um passado presentificado, modificado, reescrito a partir de uma livre associação; versão de versões, na
medida em que nunca se pode precisar o texto original. (Cf. LYOTARD, 1989, p. 38-41).
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de um reescrever sem fim a sua não mais primariedade, uma vez que esta já,
agora e sempre, só é primária como desejo, como perlaboração incessante de suas
significações anteriores. O corpo, portanto, perlabora a si, na medida em que é,
ele mesmo, a perlaboração do mundo econômico, cultural, político, geográfico,
ético, estético. Nesse sentido, torna-se possível ilustrar o óbvio: os corpos deste
mundo são este mundo.
O corpo nunca é uma entidade primária, primitiva, original, mas sempre secundária, um depois; um depois de depois. É uma rede de implicações, a própria
imprópria implicação, uma vez que sua propriedade não se constitui por transcendência originária, não nasce dele mesmo; o corpo não é uma centralidade
metafísica, mas uma “infrafísica”: sempre precário, frágil, mutável, errante.
Para efeito de esclarecimento, o corpo de que falamos pode ser qualquer ente do
mundo natural ou cultural53, bastando que seja tecido e entretecido pelas malhas
da linguagem, quer dizer, que seja escrita, signo intersemiótico.
Assim, ter falado em corpo é o mesmo que nos referirmos às coisas e aos entes
do universo natural (como uma árvore, um lago, um bicho) ou aos seres que
estão no campo da cultura: uma pessoa, um livro, uma ideia; um paradigma,
um artefato tecnológico, uma crença, uma geografia étnica, sexual.
Quaisquer desses “corpos”, nesse sentido, fazem-se no imaginário do presente
e ocupam lugares culturais, os quais definem sua posição no jogo das relações
de poder, metaforizando, assim, por si mesmo, o que Jacques Rancière (1995,
p.7) chama, em Políticas da escrita, de “a partilha do sensível que dá forma à
comunidade.”
A propósito, citamos Rancière:
Pelo termo de constituição estética deve-se entender
aqui a partilha do sensível que dá forma à comunidade. Partilha (do sensível, dos corpos) significa duas
coisas: a participação em um conjunto comum e, in53- Essa dicotomia, natureza versus cultura, deve ser entendida, neste ensaio, como um
recurso didático, uma vez que, para além da estratégia didática, este ensaio considera
que tanto os elementos da natureza quanto os da cultura estão simultaneamente imersos no horizonte histórico-político do imaginário cultural. Nesse sentido, a natureza é,
também, representação cultural.
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versamente, a separação, a distribuição dos quinhões.
Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como
se determina no sensível a relação entre um conjunto
comum partilhado e a divisão de partes exclusivas.
(RANCIÈRE, 1995, p.7).
Seguindo Rancière (op. cit.), o corpo insere-se na ordem estética de uma comunidade, porque representa – no seu limite, no fato de ser um recorte, de ser parte
– a partilha coletiva do sensível. O corpo constitui uma “relação entre o conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas”, donde se deduz que o
corpo delineia e compõe, também, uma ordem política, uma vez que sua existência fractada delimita o horizonte de seu olhar, de seu fazer e de seu dizer.
Assim, numa relação de pertinência, o corpo é parte da ordem política do mundo, sendo mesmo uma expressão sensível – e estética – dessa ordem política. O
corpo, portanto, é uma ordem política; é uma alegoria ideológica da comunidade; um gesto estético no baralho das partilhas econômicas, éticas, políticas,
étnicas. Enfim, é carta do mesmo baralho político-econômico-cultural. O corpo,
nesse sentido, é sempre ele mesmo e outra coisa.
O CORPO MENDIGO: O DESEJO DE OUTRO ESTADO DE
MUNDO
Se considerarmos, por exemplo, o corpo de um mendigo, o próprio mendigo,
devemos considerar que esse corpo é parte do mundo, dizendo muito do mundo, no seu jeito singular de fazer e de ver o mundo. Daí podemos inferir que o
mais mendigo dos seres está em relação implicante com o mais rico dos seres:
ele, o mendigo, constitui a foto em negativo (e vice-versa) desse outro corpo (o
rico), sua outra manifestação estendida e encarnada num outro espaço, num
outro corpo, num outro suporte físico-sensível da partilha simbólica da comunidade humana.
Prosseguindo nesse mesmo raciocínio, um desejo tão vital e palpável como a
fome, implica estar, de algum modo, saciado, porque existe, na fome, uma memória do pleno, do cheio, do fálico. Inversamente, poderia pensar a saciedade
como a fome do mundo, o desejo contido em toda fome, em todo desejo.
O que será, nesse caso, o conciso e o prolixo, a economia e o excesso? DepenSABERES Letras
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dendo da referência, um pode ser o outro, afinal, o excesso economiza algo: a
economia. Esta, por sua vez, excede algo, em seu estado de pouco, de limite; a
economia é um excesso para o muito, um excesso de pouco. Além do mais, ampliando as referências, focalizando-as sob um olhar espácio-temporal estendido
para todos os lados, o que será o muito, o excessivo, o prolixo?
Quando Lyotard (1989, p.12), em O inumano, fala de “uma força inumana de
desregulação”, quer nos dizer que todo corpo, assim instituído, deixa transparecer o infortúnio e a indeterminação, uma vez que todo corpo regulado assombra-se com a desregulação inumana, com o princípio de entropia que põe
em xeque a sua identidade corporal, tornando-o fantasma de outros corpos e
demonstrando que a justificativa de seu ser corporal reside em outros seres interiores e exteriores a ele mesmo, como se seu super-ego estivesse a meio caminho
de um inconsciente individual e de um inconsciente coletivo. A identidade de
um corpo é o inconsciente de outro corpo. O pobre é o inconsciente do rico, e
vice-versa; a fome é o inconsciente da saciedade, e vice-versa; o chamado primeiro mundo é o inconsciente do terceiro, e vice-versa; o local é o inconsciente
do global, e vice-versa.
Enfim, um corpo sempre diz muito de outro corpo, sobretudo se a sua relação
com esse outro corpo for dual, de vez que, assim, na dicotomia dos corpos,
o mal e o bem se interpenetram, constituindo um terceiro corpo: o corpo do
mundo. Enquanto persistir a dicotomização do mundo, a negação dual do outro, a partilha dos corpos será excludente e o peso simbólico-material do poder
prevalecerá, uma vez que a linguagem do corpo do poder é misticamente dual,
assertiva, modulada na primeira pessoa do singular, como se dissesse: eu posso,
você não; eu detenho, você não; eu sei, você não; eu sou, você não.
Na balança da partilha, o corpo que fica com menos, que se inscreve no baixo,
talvez seja o local do começo ou do fim da utopia; sendo, pelo menos, no presente, a matéria-prima do desejo de outro estado de corpo, de outro estado de
partilha, de outro estado de mundo.
O CORPO SEM ÓRGÃO DA ESCRITA TRANS-ALFABÉTICA
Os corpos de escrita constituem não só as diferentes formas de se inscrever no
quadro da convenção alfabética, modelando as formas discursivas da escrita (liSABERES Letras
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terária, filosófica, jurídica, jornalística), mas também a inserção de todo e qualquer corpo, de todo e qualquer referente, na rede sígnica das linguagens.
Nesse sentido, tudo é corpo escrito, tudo é escrita e é leitura, para além e aquém
de qualquer referência ou código, posto que cada ente é já um texto que constrói
seus códigos para ler e escrever a si e o mundo. Portanto, o que aqui é chamado
de corpos de escrita representa uma espécie de visão panteísta da escrita, posto
que, sendo a escrita marca, traço, rabisco, significante, todo corpo é ele mesmo
um rabisco, uma marca, um significante, uma letra errante do mundo, sempre
lendo a si, ao mesmo tempo que se escreve, e também sempre lendo as outras
letras, os outros corpos de escrita, ao mesmo tempo que as escreve, e é lido e
escrito por elas.
Aqui, nesse sentido, corpo escrito é corpo intersemiótico64, capaz de se abrir e de
se fechar a múltiplas possibilidades de leituras, sob uma variedade quase que
indefinida de perspectivas.
No quadro teórico deste ensaio, corpo escrito, portanto, não só diz respeito aos
enunciados da escrita alfabética, mas a todo corpo cuja forma remete à partilha
sócio-política dos corpos, sua relação com outros corpos, sua existência cultural
como mais uma possibilidade de escrever e de ler o mundo.
Reportando-nos ao contexto específico da escrita alfabética, toda e qualquer forma discursiva – todo enunciado – responde a uma demanda social de enunciação estética, política, social e econômica. Dessa forma, enunciado algum (ou o
que chamamos hoje de gêneros escriturais) é ele mesmo um corpo segmentado,
porque constitui, antes de tudo, um modo de estar no mundo, de fazer política,
de praticar economia, de experimentar subjetivações culturais, estéticas e emocionais.
Dessa forma, o enunciado ritualiza segmentalmente a partilha dos bens simbólicos e alegoriza a divisão social das formas discursivas, incorporando, assim,
seu lugar estético nas relações de forças simbólicas75 socialmente instituídas. O cor64- Tomamos de empréstimo, sob essa perspectiva, a noção de corpo de escrita construída por Rancière (1995).
75- Campos de forças simbólicas e peso simbólico são conceitos desenvolvidos por Pierre
Bourdieu, correspondendo ao fato de que as comunidades sociais se organizam, hierar
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po escrito de um enunciado gráfico-alfabético delineia – seja qual for a sua natureza – o horizonte de representação dos grupos sociais alfabetizados, esboçando
o jogo das partilhas estético-políticas desses grupos.
Um enunciado, corpo alfabético, não é apenas uma instância sintática, semântica e morfológica do sistema línguístico; não é um corpo estanque, fechado
em sua rede de significações sintagmáticas, em sua convencionalidade gráfica,
em seu aparente vazio de locutor e de interlocutor, legitimados pela voz e pela
presença contextuais. O enunciado é, antes de tudo, uma enunciação, um modo
de se posicionar, culturalmente, na fala, na escrita, no mundo. Nesse sentido,
a divisão metafísica entre o enunciado e a enunciação, a escrita e a leitura, o
texto no livro e o texto na interação discursiva constituem uma quase que literal armadilha discursiva, porque tem como propósito prender o sujeito na
teia discursiva de enunciados específicos, condenando-o a não interagir na rede
interdiscursiva, no mundo, ou mundos, já que tal sujeito tende a ficar restrito ao
seu próprio mundo.
Por outro lado, quando falamos em corpo alfabético (gêneros textuais, formas
discursivas), pressupomos automaticamente um artífice, um detentor de uma
técnica alfabética: o decantado alfabetizado, paciente e agente de uma tradição
milenar, a qual simplesmente absorve, engole, detém, como se fosse um mar,
um mar de letras, o alfabetizado, fazendo com que ele, mais que ler e escrever,
seja lido e escrito, dotando-o de um inconsciente de classe (Cf. BOURDIER, 1988
p.140), posição político-econômica que um sujeito julga ocupar no quadro das
relações de forças simbólicas de seu tempo e de seu espaço.
E julga porque, antes da ilusão de julgar, o alfabetizado, assim entendido, é
jul-gado, boi na boiada das letras alfabéticas, o que equivale a dizer que o alfabetizado, cumprindo um círculo vicioso, é ele mesmo um outro enunciado, um
defunto, e estará tanto mais morto quanto mais alfabetizado for, quanto mais
for ocupado pela fúria invasora e colonizadora da tradição alfabética, quanto
mais, enfim, deixar falar por ele, o logocentrismo de uma formação educacional
quicamente, segundo campos de forças simbólicas, isto é, segundo o valor mercadológico desse ou daquele grupo. Tal valor é medido pela acumulação de capital econômico,
linguístico, étnico, enfim, pela soma das coordenadas simbólico-econômicas, socialmente valorizadas, que tal ou qual grupo incorpora, no quadro dos campos de forças simbólicas. (Cf. BOURDIEU, 1988, p. 134-151).
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ocidentalizante, para não dizer assassínica, de vez que ocupa e escava o vazio
do outro, fazendo viver o seu próprio cheio, como se fosse o único possível.
Daí porque o alfabetizado, deixando-se ocupar, é um enunciado, uma vez que,
bem entendido, um enunciado é um morto, uma não enunciação, uma não ação
para novos foras, novas escritas, de vez que sua enunciação não é sua, mas de
quem ou daquilo que o faz calar, o faz morrer.
Trata-se assim de um tipo especial de enunciado-enunciação, pois é o tipo de
enunciado cuja enunciação é a sua morte. Todo enunciado, assim, é, ele mesmo,
enunciação, e será tanto mais enunciação expressante quanto mais puder expressar o seu próprio dentro, quanto mais não se deixar calar e também quanto
mais não colaborar para fazer calar outros enunciados-enunciação.
Daí porque é possível dizer que o alfabetizado será tanto mais enunciação quanto mais não for, strictu senso, um alfabetizado, quanto mais, portanto, permitirse falar através do mundo ágrafo. Quanto mais for um analfabeto de pai e mãe,
por mais alfabetizado que venha a ser, ou fazer-se.
Como para tudo pode haver um vice-versa, é perfeitamente possível deduzir
um tipo particular de analfabeto neurótico, porque, embora não saiba nem ler
e nem escrever, seu modo de falar e de atuar no mundo é aquele de relação
conflitante com o universo alfabético, esquecendo ou apagando, assim, a possibilidade de escrever sua própria escrita, mesmo que não alfabética.
Daí porque o par alfabético e analfabético não passa de uma segunda armadilha. Diante dele, do par alfabético-analfabético, qualquer lugar que venhamos a
ocupar, serve igualmente para fazer calar o que há de expressante, de singular
e de inusitado em nós, pois o alfabético, a pretexto de estar tecnicamente habilitado a expressar-se, já tende a não falar a si, mas há um grande Outro, que o
apaga quanto mais for um Outro maiúsculo; e o analfabético, por sua vez, marcado por um não, o do prefixo “ana”, não passa, na perspectiva da mencionada
armadilha, da caricatura do primeiro; ambos analfabéticos, portanto.
Nesse sentido, em ambos os casos, o do alfabetizado e o do analfabetizado, o
mito do escrevente, para o primeiro, e o do falante, para o segundo, é paradoxalmente o mito que os faz calar aquilo que os poderia tornar realmente escreSABERES Letras
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ventes e falantes: a orfandade de ambos e de tudo, porque é a condição de órfão
que nos torna capazes de escrever fora do esquema da épica familiar de um pai,
de uma mãe e de um filho e/ou filha; fora, portanto, de uma genealogia.
Imediatamente, tendo em vista essa condição de orfandade, emerge, para continuar o raciocínio, a figura socrática do Mito de Fedro, através do qual Sócrates
acusa a escrita de ser perigosa, justamente por causa de sua potência órfã, por
causa de sua capacidade de ser usada por qualquer um, fora de toda genealogia
e, portanto, fora do face a face autoral e paternal da ontologia do pai da fala,
através da qual interessa muito mais quem fala do que propriamente o que
falam.
No entanto, o medo socrático apenas muito raramente tem tido razão de ser,
porque, olhando a história da humanidade, a passagem de uma técnica a outra
(como acontece hoje no universo da internet, por exemplo) não significou, proporcionalmente, um avanço da expressão subjetiva de toda a humanidade, por
mais que as técnicas pudessem colaborar com tal expansão expressiva, porque,
desde sempre, tais técnicas foram literalmente colonizadas pela família parental, como se fossem resultado do esforço, de sua herança natural.
E com a escrita não foi diferente, uma vez que o seu processo de padronização
inspirou-se na variável linguística dos grupos de maior poder, na tradição cultural e identitária desses mesmos grupos. Mais do que escrita errante, a escrita
tornou-se um novo corpo mítico-estético do saber dos grupos de poder cultural,
político e econômico.
A propósito, em Linguagem, escrita e poder, de Maurizzio Gnerre, a seguinte
passagem é bastante ilustrativa:
A língua padrão é um sistema comunicativo ao alcance de uma parte reduzida dos Integrantes de uma
comunidade; é um sistema associado a um patrimônio cultural apresentado como “corpus” definido de
valores, fixados na tradição escrita. Uma variedade
linguística “vale” o que “vale” na sociedade os seus
falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais.
(GNERRE, 1991, p.6).
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Sendo, segundo Gnerre, corpus definido de valores, a escrita representa e corporifica, esteticamente, uma tradição cultural que, tautologicamente, transformase em tradição político-cultural escrita. A escrita inscreve sua própria tradição,
tipificando-se como um novo e eficiente modo de a voz do pai fazer-se ouvir, ou
melhor, fazer-se leitura decodificada, num ritmo quase que oracional e beático,
através do qual os novos atores se apresentam investidos de uma aura8 distintiva: ser alfabetizado.
O risco de orfandade da escrita esgarça-se no momento mesmo em que ela – a
escrita – sobrescreve-se à mística de se tornar o palco simbólico de um novo e
velho agente social: o alfabetizado. Este é novo porque projeta o agente sóciocultural de uma nova habilidade técnica, qual seja, a de saber escrever e ler. E,
a um tempo, é velho porque tal agente não constitui uma imprevisivilidade
subjetiva de grupos sociais marginalizados, escravizados, oprimidos, colonizados. É velho porque os agentes de seu saber são ou se fazem (embora de modo
contraditório) atores sociais de uma tradição cultural, política e econômica, a
qual não surgiu do nada, mas, antes, do mesmo anterior conjunto hierárquico
de partilhas simbólico-materiais ontológicas.
O simples fato de a habilidade escrita da língua tornar possível a emergência
de uma espécie social, a que podemos chamar de oprimido alfabetizado, não implica que este possa representar, a priori, perigo para a estrutura hierárquica e
partilhada das relações de poder de uma época qualquer. Mais do que sinal de
perigo, o oprimido alfabetizado se torna signo de uma mística redentora, de um
rito de passagem, cuja lógica Iluminista nos diz, nos tempos atuais, mais ou menos assim: “Para poder se libertar da opressão é preciso inscrever-se no paraíso
redentor da alfabetização; é necessário participar da partilha dos corpos e dos
saberes, transformando-se em alfabetizado, em representante legítimo de uma
tradição que concretiza, graficamente, esteticamente, a circulação de sentido
8- Em “O narrador...”, assim Walter Benjamim define a aura: “Em suma, o que é a aura?
É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única
de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”. (Cf. BENJAMIN, 1984, p.170) Obs.:
Não empregamos a palavra aura exatamente do mesmo modo que foi definida por Benjamin, mas utilizando um raciocínio inverso, a saber, na época da reprodutibilidade, os
referentes do mundo perdem a aura – no sentido de Benjamin - , entretanto, a própria
reprodutibilidade, mais do que incorporar aura, transforma-se, ela mesma, em aura. A
distinção aurática de que falamos, diz respeito à escrita como distinção do mesmo, como
a aura do mesmo.
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dos grupos de poder; é, enfim, fundamental inserir-se na tradição escrita “.
Nesse sentido, antes de ser expressão de uma nova e utópica possibilidade, o
oprimido alfabetizado torna-se um mito que justifica, ideologicamente, a necessidade, a relevância e a deidade ontológica da escrita alfabética, corpo semânticopragmático do saber exclusivamente partilhado.
E, finalmente, retomando o mito de Fedro, a escrita alfabética se torna fetiche
de um outro rito de passagem: da tradição cultural oral para a tradição cultural alfabetizada. Talvez, nas entrelinhas do diálogo que entabula com Fedro
(PLATÃO, 1975) o que mais causasse temor ao filósofo Sócrates não fosse a possível errância da escrita, seu transbordamento e consequente apropriação pelos
grupos sociais oprimidos, mas a transição da tradição oral político-cultural, da
qual ele mesmo, Sócrates, era um dos mais expressivos representantes, para a
subsequente tradição escrita, dentro da qual, ele, Sócrates, talvez não se sentisse
muito à vontade.
Como fetiche, a escrita, variável linguística padrão, transforma-se em suporte
gráfico-alfabético para a expressão do pensamento científico, filosófico, literário,
vale dizer, faz-se, ritualisticamente, o corpo sensível, através do qual as formas
discursivas escritas – a partilha dos corpos da tradição cultural – transfiguramse, miticamente, em presença, em corpo subjetivo e auto-referencializado de
um saber que se apresenta como o saber, como o tempo presente, moderno, da
cognição ontológica do mundo.
Entretanto, como todo corpo situa uma ordem política e se encontra em relação
partilhada com os outros corpos, expressando, monadicamente, a história político-cultural de uma comunidade dada, também o corpo da escrita alfabética não
encarna apenas o capital político-linguístico dos grupos de poder, pois pensar
assim seria reduzi-lo demais, desvalorizando a sua potência de orfandade, que
é uma faculdade expressiva presente em todas as épocas e em todos os lugares,
independente das técnicas vigentes, donde se deduz que o medo socrático, de
algum modo, tinha sua razão de ser, a partir dos fantasmas do não-ser.
Nesse sentido, na relação com as variáveis faladas, o texto escrito padrão situa
bem mais do que o registro político de uma partilha por exclusão. E é exatamente esse “bem mais” que devemos perseguir, porque, mais importante do que a
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exclusão implicante e implicada na variável escrita, é a cena do drama do receio
da inclusão, em todo enunciado escrito, de outras variáveis, de outras lógicas,
de outras partilhas.
O mito de Fedro metaforiza esse receio inclusivo e, assim fazendo, deixa escapar o que tenta esconder: o perigo de uma escrita transbordante, capaz de
expressar contradições, erros, equívocos e, sobretudo, o desejo do diferente, o
desejo e o corpo dos excluídos da partilha. Essa escrita da inclusão, do imprevisto, do outro, é andrajante e, diríamos mesmo, analfabética em seu corpo que não respeita e não reconhece espaços instituídos. E, também, analfabética porque não mais apenas inscrita numa relação
dicotômica, delimitada pelos pares alfabético/analfabético, mas trans-alfabética,
uma vez que, para ela, tudo é escrita, tudo é corpo escrito e, portanto, tudo diz
sobre tudo; que tudo desvela, enfim, a lógica exclusiva também presente na escrita alfabética e, portanto, que a qualquer ser humano é dada a possibilidade,
através de diferentes modos, de se informar e construir conhecimentos sobre si,
sobre o outro, sobre o mundo. Não mais preso à essencialidade ontológica da escrita alfabética, a escrita transalfabética revaloriza a pré-história da humanidade, como se descobrisse o seu
inconsciente cultural, através da ideia de que a construção do conhecimento
pode ser elaborada segundo outros suportes – além do da escrita alfabética.
Não é necessário, através da lógica da escrita inclusiva, ser alfabetizado, para se
fazer “filósofo”, “poeta”, “médico”, “professor”; para construir novas escritas
e novas leituras.
Afinal, quem é capaz de afirmar que na pré-história do Ocidente, na época em
que não havia surgido o código escrito, na época, por excelência, da tradição
oral, não havia, no sentido lato, produção de conhecimento e, portanto, de escrituras cognitivas, afetivas, estéticas? Estamos tão presos à metafísica da escrita
alfabética que mal percebemos as outras escritas pulsando em nós mesmos.
No entanto, não estamos defendendo, ingenuamente, uma espécie de resistência romântica ao processo de alfabetização. Queremos, sim, salientar que investir no corpo da escrita alfabética o peso mítico-simbólico de ser e fazer-se
como a quase que única fronteira possível do lugar do aprender, do saber, do
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conscientizar-se; do fazer-se, enfim, cidadão, sujeito de seus desejos e de suas
ações, na partilha sócio-política dos direitos e dos deveres, constitui, a nosso
ver, o modo mais eficiente de adequar, exclusivamente, o medo socrático de
uma escrita inclusiva.
É no aumento da capacidade de ler, de trans-alfabetizar-se para a percepção de
que, no mundo, tudo – além e aquém da escrita alfabética – constitui, a um
tempo, objeto e sujeito de aprendizagem, que, acreditamos, a escrita alfabética
tornar-se-á incluidoramente capaz de ser usada para trair a voz “legitimada” do
pai de um enunciado que, do lugar morfo-sintático de seu corpo escrito, exclui,
da partilha político-econômica e cultural, a força simbólica - e alfabética - também contida nos outros corpos do/no mundo.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 1998.
DELEUZE, G. A dobra Leibniz e o barroco. Trad. Luis B. Orlandi. São Paulo:
Papirius, 1996.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
GUATTARI, G. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993.
GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
LYOTARD, J-F. O inumano: considerações sobre o tempo. Lisboa: Estampa,
1989.
PLATÃO. Fedro. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, Universidade Federal do
Pará, 1975.
RANCIÉRE, J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
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FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES
ALFABETIZADORES: uma análise crítica
das concepções de leitura e de texto do
Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores (PROFA)
Fernanda Zanetti Becalli1*
Cleonara Maria Schwartz2**
RESUMO
Este artigo apresenta reflexões de um estudo que se prendeu a analisar criticamente os pressupostos teóricos e metodológicos que balizaram o modelo de
ensino da leitura do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores
(PROFA), considerado, pela Secretaria de Educação Fundamental (SEF) do Ministério da Educação (MEC), como adequado para orientar a prática dos professores, no que se refere à organização do trabalho com a leitura nas classes de
alfabetização. Neste estudo, analisamos, especificamente, a concepção de leitura e de texto que baliza o referido programa. Caracteriza-se como uma pesquisa
documental, pautada pela perspectiva dialógica, cuja principal fonte são os documentos escritos que compõem o kit de materiais do PROFA. Sua orientação
teórica concerne a Perspectiva Histórico-Cultural. Os documentos analisados
permitiram observar a necessidade de um redimensionamento das concepções
que sustentam a proposta de trabalho com a leitura do PROFA, tomando o texto
1* Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo, membro integrante e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e
Escrita do Espírito Santo (NEPALES - UFES/CE/PPGE), professora das séries iniciais
do Ensino Fundamental do Sistema Municipal de Ensino de Vitória (ES). <nandazbn@
gmail.com>
2**- Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, professora adjunta do Centro
de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo e vice-coordenadora do Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Alfabetização, Leitura e Escrita do Espírito Santo (NEPALES
- UFES/CE/PPGE). <[email protected]>
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como unidade básica de todo o processo de ensino aprendizagem da leitura na
escola a partir da mediação qualificada do professor alfabetizador e a leitura
como produção de sentidos.
PALAVRAS-CHAVE: Alfabetização. Leitura. Texto.
SOBRE O PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
ALFABETIZADORES (PROFA)
Como apresentamos em trabalho anterior (BECALLI, 2007, 2009), o Programa
de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA) foi criado pelo Governo
Federal, diante dos desafios colocados pelos resultados das avaliações do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), com o objetivo de instrumentalizar os
professores para promover melhorias nas práticas pedagógicas correlacionadas
com o ensino da leitura e escrita e, em parceria com as Secretarias Estaduais e
Municipais de Educação, implementou-o no Distrito Federal e em 21 Estados
brasileiros, no período de 2001 a 2002, abrangendo 89.007 professores alfabetizadores.
Após assinar o Termo de Cooperação Técnica, as instituições parceiras receberam
da SEF/MEC o kit de materiais escritos e videográficos do PROFA composto
por 30 Programas de Vídeo, três Guias do Formador, três Coletâneas de Textos, um
Documento de Apresentação, um Guia de Orientações Metodológicas Gerais, um Catálogo de Resenhas e um Fichário. Para analisar os discursos sobre as concepções
de leitura e de texto concretizadas nos documentos do PROFA, selecionamos,
dentre os materiais escritos do programa, o Documento de Apresentação, o Guia do
Formador (Módulos 1, 2 e 3) e a Coletânea de Textos (Módulos 1, 2 e 3), por encontrarmos, nesses materiais, aspectos que estavam diretamente relacionados com
o objeto de estudo deste trabalho.
SOBRE A ABORDAGEM TEÓRICA
Teoricamente o trabalho se ancora em princípios da Perspectiva Histórico-Cultural. A partir dessa abordagem, consideramos a alfabetização como uma prática sociocultural, que se desenvolve entre em sociedades humanas que fazem uso
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da leitura e da escrita (GONTIJO, 2006). Além disso, é vista como um processo
formativo para-si, pois, dependendo do modo como é efetivada, pode contribuir
para a formação da consciência crítica por meio do trabalho de produção de
textos orais e escritos e de leitura. Partindo dessa visão, Gontijo (2002, p. 2, grifo
da autora) afirma que a alfabetização “[...] realiza um dos círculos essenciais da
formação da individualidade humana. É óbvio que não é o único processo que
possibilita a formação de uma humanidade consciente, mas, sem dúvida, constitui
um dos círculos essenciais da formação da humanidade”.
Nessa perspectiva, a leitura é compreendida como produção de sentidos que
não se encontram estabelecidos a priori no texto, pois se constituem no processo
de interação que se efetiva entre autores, leitores e outros sujeitos que se fazem
presentes nos textos. A partir dos pressupostos de Bakhtin, o texto é entendido
como o próprio lugar da interação entre sujeitos e, por conseguinte, das muitas
vozes que o atravessam com as implicações de cada uma dessas vozes no momento da leitura, discursos esses que podem vir a se completar, a se divergir e/
ou a se entrecruzar no interior desse tecido polifônico.
Nesse processo, é necessário levar em conta que autores e leitores são sujeitos
concretamente determinados por contextos sócio-histórico-ideológicos específicos e que ao dialogarem por meio da produção escrita se constituem como
interlocutores no processo de produção de sentidos. Podemos compreender,
então, que a leitura está vinculada à significação social do processo de formação
dos indivíduos e, desse modo, possibilita a constituição de sujeitos críticos e
participativos, capazes de ampliar e redimensionar a realidade existente. Isso se
explica, conforme Duarte (2004, p. 285), porque essa vertente teórica não tem a
pretensão de fortalecer os interesses das classes dominantes, e sim de tornar os
sujeitos “[...] mais críticos em relação às formas de alienação às quais estamos
submetidos como indivíduos que vivem e trabalham no interior de relações
sociais capitalistas [...]”.
SOBRE A ABORDAGEM METODOLÓGICA
Considerando que a leitura, numa concepção bakhtiniana, é uma atividade dialógica entre autor e leitor, que se desenvolve por meio de textos, numa situação
concreta do discurso em um determinado contexto histórico-cultural, optamos
por uma abordagem metodológica de caráter qualitativo. Partimos do princípio
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de que a abordagem qualitativa, quando utilizada no campo da pesquisa educacional, nos leva a compreender que as ciências humanas, área de estudo na
qual estamos inserida, tem seu ponto de partida no texto. Essa compreensão se
justifica pelo fato de que as ciências humanas
[...] são as ciências do homem em sua especificidade,
e não de uma coisa muda ou um fenômeno natural.
O homem em sua especificidade humana sempre exprime a si mesmo (fala), isto é, cria texto (ainda que
potencial). Onde o homem é estudado fora do texto e
independentemente deste, já não se trata das ciências
humanas [...] (BAKHTIN, 2003, p. 312).
A concepção histórico-cultural e dialética da produção do conhecimento, que
considera o texto como dado primário, só pode ser compreendida no âmago
das relações dialógicas, porque, como aponta Bakhtin (2003, p. 319), por “[...]
toda parte há o texto real ou eventual e a sua compreensão. A investigação se
torna interrogação e resposta, isto é, diálogo”. Partindo desse princípio baktiniano, conduzimos nossa investigação buscando dialogar com o conjunto de
documentos que compuseram o corpus documental da pesquisa, na intenção
de analisar se as concepções de leitura e de texto que fundamentam o PROFA
contribuem para promover práticas de ensino da leitura consideradas pela produção de conhecimento como favorecedoras da formação do leitor crítico.
SOBRE A CONCEPÇÃO DE LEITURA E DE TEXTO DO PROGRAMA
DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES ALFABETIZADORES
(PROFA)
As vozes que sustentam o modelo de ensino da leitura do PROFA estão respaldadas nos pressupostos teóricos do construtivismo e nos pressupostos metodológicos da resolução de situações-problema. Essas abordagens, por sua vez,
expressam uma determinada concepção de leitura e de texto que dão sustentabilidade à sua proposta de trabalho com a leitura nas classes de alfabetização.
Assim, analisaremos a concepção de leitura e de texto legitimada pelo PROFA,
com o objetivo de compreender qual o perfil de leitor que esses princípios contribuem para formar.
Nesse sentido, o texto Idéias, concepções e teorias que sustentam a prática de qualquer proSABERES Letras
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fessor, mesmo quando ele não tem consciência delas (BRASIL/PROFA, M1U2T5, 2001, p.
3) aponta que, numa abordagem construtivista, não subjaz à ideia de que
[...] primeiro os meninos têm de aprender a ler [...]
dentro do sistema alfabético, fazendo uma leitura
mecânica, para depois adquirir uma leitura compreensiva. Ou seja, primeiro eles precisariam aprender a
fazer barulho com a boca diante das letras para depois poder aprender a ler de verdade e a produzir
sentido diante de textos escritos.
Trata-se, portanto, de uma concepção de leitura que se contrapõe àquela defendida pela abordagem associacionista em que ler com significado é relegado “[...]
para um estágio posterior, em que as crianças já tenham aprendido a relação
soletração e som. Dessa maneira, há uma excessiva preocupação com a decodificação mecânica da linguagem escrita, com perda quase total do significado no
processo de aprendizagem” (BRAGGIO, 2005, p. 10).
Ainda que o texto de um dos materiais escritos do PROFA não menospreze
o trabalho de decodificação da leitura, pois ressalta que a “[...] capacidade de
decifrar o escrito é não só condição para a leitura independente como – verdadeiro rito de passagem – um saber de grande valor social” (BRASIL/PROFA,
M1U9T4, 2001, p. 2), a equipe pedagógica do programa deixa claro que se faz
necessário que os professores alfabetizadores reconstruam suas práticas pedagógicas a partir de uma concepção construtivista que concebe o texto como o
“[...] ‘lugar’ de aprender a ler [...]” (BRASIL/PROFA, 2001a, p. 215) e a leitura
como um “[...] processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção
do significado do texto [...]” (BRASIL/PROFA, M2UET2, 2002, p. 5).
Na tentativa de desvencilhar-se da concepção de leitura como mera decodificação da linguagem escrita, o PROFA buscou superar o modelo de textos apregoado pela abordagem associacionista de aprendizagem materializado nas cartilhas como um agregado de frases independentes que não constitui um todo de
sentido e se apóia “[...] na capacidade do sujeito de associar estímulos e respostas, repetir, memorizar e fixar na memória” (BRASIL/PROFA, 2001a, p. 215), tal
como o texto a seguir:
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Figura 1 – Teto “O sapo”
Fonte: BRASIL/PROFA,
M1U2T5, 2001, p. 2.
De acordo com Gontijo (2005), a necessidade de superar práticas de ensino da
leitura sustentadas na memorização e na repetição de palavras não se constitui
num esforço recente, como o PROFA propõe. A autora aponta que, desde o
limiar do século XX, havia uma proposta de trabalho com textos significativos
para a alfabetização de crianças, tal é o caso do “método natural Freinet”, criado
pelo educador francês Celestin Freinet, para alfabetizar a partir do texto. Esse
professor realizava aulas-passeio com as crianças e, de volta à escola, ele escrevia pequenos textos em que registrava o que haviam observado nos passeios
pela aldeia ou pelos campos e as crianças os copiavam, chegando, algumas vezes, a aprendê-los de cor, no intuito de recitá-los. Além disso, “[...] com o auxílio
de uma impressora manual (ou de uma copiadora rudimentar que denominou
linógrafo) Freinet ensinava os alunos a imprimirem seus textos que, reunidos,
formavam o Livro da Vida” (CARVALHO, apud GONTIJO, 2005, p. 43). Outras
duas práticas criadas por esse educador, que tinham como propósito o ensino
da leitura e da escrita em situações funcionais, eram a do jornal escolar e a da
correspondência interescolar.
No Brasil, as tematizações do trabalho com textos começaram a ser disseminadas a partir do início da década de 1980, como aponta Mortatti (2000), pelo professor João Wanderley Geraldi que compreende o trabalho na sala de aula com
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textos como um processo contínuo de produção de sentidos, visto que o texto é
um “[...] lugar de entrada para [...] [o] diálogo com outros textos, que remetem a
textos passados e que farão surgir textos futuros” (GERALDI, 2004, p. 22).
Segundo Geraldi (1997), tomar o texto como ponto de partida e de chegada de
todo o processo de ensino aprendizagem na sala de aula requer o redimensionamento das concepções que subjazem a esse processo. Desse modo, torna-se
necessário entender que
a língua (no sentido sociolingüístico do termo) não
está de antemão pronta, dada como um sistema de
que o sujeito se apropria para usá-la segundo suas
necessidades específicas do momento de interação,
mas que o próprio processo interlocutivo, na atividade de linguagem, a cada vez a (re)constrói;
os sujeitos se constituem como tais à medida que interagem com os outros, sua consciência e seu conhecimento de mundo resultam como ‘produto’ deste
mesmo processo. Neste sentido, o sujeito é social já
que a linguagem não é o trabalho de um artesão, mas
trabalho social e histórico seu e dos outros que ela se
constitui. Também não há um sujeito dado, pronto,
que entra na interação, mas um sujeito se completando e se construindo nas suas falas;
as interações não se dão fora de um contexto social
e histórico mais amplo; na verdade, elas se tornam
possíveis enquanto acontecimentos singulares, no
interior e nos limites de uma determinada formação
social, sofrendo as interferências, os controles e as
seleções impostas por esta. Também não são, em relação a estas condições, inocentes. São produtivas e
históricas e como tais, acontecendo no interior e nos
limites do social, constroem por sua vez limites novos (GERALDI, 1997, p. 6-7, grifo do autor).
Nessa perspectiva, a adoção do texto como unidade de ensino aprendizagem da
leitura nas classes de alfabetização implica o reconhecimento da leitura como
uma prática social em que a criança assume uma ativa posição responsiva diante do texto e, assim, produz sentidos para o que lê, pois consciente “[...] para que
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se lê o que se lê? [...]” (GERALDI, 1997, p. 168), ela vai ao texto com o objetivo
de
[...] retirar dele tudo o que ele possa me fornecer (e
eu, no momento desta leitura, possa detectar). É o
que se pode chamar de leitura-estudo-do-texto. Esforço maior, esta leitura confronta palavras: a do
autor com a do leitor. Como a palavra do autor, sozinha, não produz sentido, minha escuta exige-me
uma atitude produtiva. Que razões podem me levar
a um estudo de um texto? Novamente, aqui, o querer
saber mais é imprescindível: o leitor não disposto ao
confronto, ao risco de constituir-se nas interlocuções
que participa, e este risco aponta para a possibilidade de re-fazermos continuamente nossos sistemas de
referências, de compreensão do mundo [...] (GERALDI, 1997, p. 172).
Como se pode perceber, numa perspectiva dialógica de linguagem, o texto não
é um produto pronto e fechado que carrega um único significado possível definido previamente pelo autor no momento da escritura, uma vez que seus sentidos são produzidos no encontro do autor com o leitor por meio do texto. E as
crianças se constituem como sujeitos do discurso, como salienta Geraldi (1997),
sujeitos de saberes, ideias, culturas, posicionando-se, conforme suas capacidades, no momento da leitura, oferecendo à experiência da leitura suas contrapalavras, visto que
[...] compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada
palavra da enunciação que estamos em processo
de compreender, fazemos corresponder uma série
de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto
mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão [...]. A compreensão
é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação
assim como uma réplica está para a outra no diálogo.
Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra [...] (BAKHTIN, 2004, p. 131-132).
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De diferente modo, a equipe pedagógica do PROFA apresenta aos professores
alfabetizadores uma concepção de leitura apenas como um “[...] processo no
qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto
[...]” (BRASIL/PROFA, M2UET2, 2002, p. 5). Nesse caso, a concepção de leitura
que sustenta o modelo de ensino da leitura do PROFA ancora-se no modelo
psicolinguístico da leitura que, conforme aponta Braggio (2005, p. 3), concebe
a leitura como um processo de busca do significado pelo leitor que se constitui
num “[...] processador ativo do conhecimento, dotado filogeneticamente da capacidade para adquiri-lo”.
De acordo com a referida autora, o principal representante do modelo psicolinguístico da leitura é Avram Noam Chomsky. Esse autor destaca o papel da
“criatividade” como a capacidade de as crianças produzirem e compreenderem
uma multiplicidade de enunciados sem terem tido uma experiência anterior
com eles, pois, nessa perspectiva, acredita-se que todas as crianças nascem com
uma capacidade biologicamente inata para se apropriar da linguagem por meio
de um processo ativo de criação construtiva em que elas
[...] formulam hipóteses sobre as regras governando
a estrutura linguística das sentenças que elas ouvem,
testam novas hipóteses contra novas evidências que
elas adquirem, eliminam aquelas hipóteses que são
contrárias às evidências, e avaliam aquelas que não
são eliminadas, por um princípio de simplicidade
que seleciona as mais simples como as melhores
hipóteses no que diz respeito ao corpus linguístico
(BRAGGIO, 2005, p. 18, grifo da autora).
Nesse modelo, a criança é considerada como um ser ativo, seletivo e criativo,
porque tem a capacidade inata de desenvolver e testar hipóteses sobre as regularidades dos dados linguísticos, quando exposta a eles. Partindo desse princípio, o PROFA postula que as crianças constroem “hipóteses de leitura”, isto
é, “[...] as ideias que as crianças constroem sobre o que está ou não grafado em
um texto escrito, e o que se pode ler ou não nele” (BRASIL/PROFA, M1U6T6,
2001, p. 1).
Na tentativa de ressaltar a importância do trabalho com a leitura a partir de
textos, o PROFA afirma que o processo de compreensão da leitura depende funSABERES Letras
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damentalmente da relação entre os olhos e o cérebro, pois os primeiros captam
de diferentes maneiras a mesma quantidade de letras dependendo da forma
como elas estão apresentadas, ou seja, em um mesmo intervalo de tempo, os
olhos captam “[...] aproximadamente, 5 letras, em uma sequência apresentada
ao acaso; cerca de 10 a 12 letras, em palavras avulsas conhecidas; cerca de 25
letras (mais ou menos cinco palavras), quando se trata de um texto com significado” (BRASIL/PROFA, M1U7T8, 2001, p. 2). Em função disso, entende-se
que, quando a criança lê um texto com significado, o cérebro consegue reter
mais informações do que durante a leitura de palavras e/ou sentenças isoladas
entre si.
Assim, a leitura se configura numa atividade com ênfase nos processos biológicos e cognitivos que vão do passar dos olhos nas letras impressas no texto, até
a construção de hipóteses e de estratégias de leitura – antecipação, inferência,
decodificação e verificação – que são utilizadas pelas crianças “[...] para produzir sentido enquanto lêem um texto” (BRASIL/PROFA, M2U4T11, 2002, p. 2,
grifo nosso). Observa-se, então, que a leitura não se constitui numa atividade de
produção de sentidos para o texto lido, mas de recuperação do significado especificamente proposto pelo autor no momento da escritura, portanto ao leitor
também não cabe uma atitude responsiva diante do texto e sim de recuperação
do sentido por meio das marcas textuais deixadas pelo autor.
Tomando as contribuições de Braggio (2005), é possível depreender que os discursos sobre leitura e texto que fundamentam o modelo de ensino da leitura do
PROFA não se respaldam apenas no modelo psicolinguístico de leitura. A compreensão de que há dois “[...] fatores que determinam a leitura: o texto impresso, que é visto pelos olhos, e aquilo que está ‘por trás’ dos olhos: o conhecimento
prévio do leitor” (BRASIL/PROFA, M1U7T8, 2001, p. 2) se assenta no modelo
interacionista de leitura, visto que tal modelo considera que a construção do
significado depende tanto da interação leitor-texto quanto dos conhecimentos
prévios desse leitor. A referida autora salienta que, nesse modelo,
[...] a construção do significado é concebida como um
produto da interação entre o leitor e o texto. Ao ler,
o indivíduo traz para o ato da leitura seu conhecimento da língua, tomada esta holisticamente, seu conhecimento do mundo, experiências e crenças, além
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das estratégias cognitivas requeridas. Desta forma,
postula-se uma compreensão integrada do texto não
só trazendo o conhecimento anterior para o ato de
ler, mas retirando do texto informações adequadas,
isto é, uma leitura equilibrada do texto (BRAGGIO,
2005, p. 43).
Podemos entender que essa abordagem se prende, então, aos aspectos linguísticos e psicológicos do processo de construção do significado desencadeado no
momento da leitura ou, como salienta Zappone (2001, p. 56, grifo da autora),
nas “[...] ações ou reações psicolinguísticas vivenciadas pelo leitor no momento
da leitura e nos mecanismos linguísticos (fonológicos, sintáticos, semânticos,
pragmáticos) e psicológicos intervenientes no processo”.
Embora seja enfatizado o caráter interacional da leitura, por meio da valorização do papel desempenhado pelo leitor ativo, conforme destaca Zappone
(2001), há uma demasiada ênfase nas marcas textuais deixadas pelo autor, a
fim de que o leitor recupere suas intenções e construa o significado para o texto
lido. Desse modo, “[...] o texto é ainda autoridade, portador de significados por
ele limitados, ou melhor, autorizados; o texto teria, assim, a primazia sobre o
leitor, que precisa, com competência, apreender o(s) sentido(s) nele inscrito(s)”
(CORACINI, apud ZAPPONE, 2001, p. 69).
Segundo Kato (apud ZAPPONE, 2001, p. 59), nesse modelo, a compreensão da
leitura envolve tanto os elementos extralinguísticos (conhecimento prévio, levantamento de hipóteses, deduções e inferências) que o leitor emprega no momento da leitura para recuperar o significado do texto quanto com os elementos
linguísticos do próprio texto, uma vez que, no momento da leitura, ocorre uma
relação de “[...] integração do velho (conhecimento prévio do leitor) com o novo
(informações trazidas pelo texto) [...]”.
Essas proposições evidenciam, portanto, que, apesar de a concepção de leitura
do PROFA estar balizada por diferentes abordagens de ensino da leitura – modelo psicolinguístico e modelo interacionista de leitura –, as interações do leitor
com o texto lido continuam sendo concebidas a partir de uma perspectiva piagetiana em que o sujeito psicologicamente idealizado recupera, por meio das
marcas textuais deixadas pelo autor no momento da escritura, o único sentido
possível circunscrito no próprio texto. Portanto, a base epistemológica piageSABERES Letras
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tiana da interação nos permite compreender que, na atividade de leitura, o significado do texto não é construído nem pelo sujeito nem pelo objeto, mas nas
interações entre sujeito e objeto.
Torna-se necessário pontuar que não compartilhamos dessa abordagem, porque compreendemos a leitura como uma prática social que se constitui numa
atividade de produção de sentidos. Os sentidos são produzidos na interação
autor-texto-leitor. Eles não estão dados a priori no leitor ou no texto, como afirmam Koch e Elias (2006). Dessa maneira, preconizamos a possibilidade de construção de uma pluralidade de leituras e, portanto, de sentidos em relação a um
mesmo texto que
[...] pode ser maior ou menor dependendo do texto,
do modo como foi constituído, do que foi explicitamente revelado e do que foi implicitamente sugerido, por um lado; da ativação, por parte do leitor,
de conhecimentos de natureza diversa, [...] e de sua
atitude cooperativa perante o texto, por outro lado
(KOCH; ELIAS, 2006, p. 21).
Nesse sentido, Macedo (2000, p. 89) nos alerta que, pelo fato de o modelo interacionista de leitura enfatizar a interação entre o leitor e o texto, a questão da compreensão do que foi lido fica relegada a uma “[...] posição de menor importância
em benefício do desenvolvimento de novas estruturas cognitivas que podem
capacitar os alunos a caminhar de tarefas mais simples de leitura para tarefas
altamente complexas”. Em decorrência, podemos inferir que, devido à ênfase à
dimensão psicolinguística, as concepções de texto e de leitura que sustentam o
modelo de ensino da leitura do PROFA se distanciam da significação social da
leitura e, por conseguinte, não contribuem para a formação da consciência crítica das crianças, uma vez que não as incentivam a dialogar com o texto a partir
de suas próprias vivências, opiniões, ideias, saberes, valores. Como nos lembra
o referido autor, dificilmente essas crianças
[...] serão capazes de engajar-se em uma reflexão
crítica completa, com respeito à própria experiência
prática e aos fins que [...] motivam [essas crianças]
para, finalmente, organizarem suas descobertas e,
desse modo, substituírem, a mera opinião a respeito
dos fatos por uma compreensão cada vez mais rigorosa de sua significação (MACEDO, 2000, p. 89).
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Acreditamos, como Macedo (2000), que a concepção de texto e de leitura do
PROFA, assim como os pressupostos teóricos e metodológicos do modelo de
ensino da leitura, estão vinculados aos interesses do universo ideológico neoliberal e pós-moderno que consistem na manutenção da hegemonia burguesa,
pois não reconhecem a criança como sujeito político, histórico e cultural que,
por meio da atividade de leitura, numa relação essencialmente dialógica de produção de sentidos, pode constituir-se como falante responsivo em interação com
o outro.
Com base numa concepção de leitura que se restringe ao ato de recuperar, por
meio das marcas textuais deixadas pelo autor, o significado que está no texto e
numa concepção de texto como um repositório de mensagens e de informações,
o PROFA postula a ideia de que é “[...] interagindo com textos reais, mesmo
que não se saiba ler convencionalmente, que se aprende a ler diferentes tipos de
textos e sua respectiva linguagem” (BRASIL/PROFA, 2001a, p. 216). Ainda que
as crianças não tenham o domínio do caráter alfabético da escrita, a interação
com textos conhecidos assegura a aprendizagem das
[...] relações entre o que se fala e o que se escreve,
que a linguagem que se usa para escrever é diferente
da linguagem falada, que os textos escritos não são
todos iguais. Que textos com diferentes funções têm
características formais e procedimentos de leitura diferentes. Por exemplo, aprenderão que uma receita
não se escreve e nem se lê como uma carta. Assim,
eles constroem gradativamente a ideia de que o escrito diz coisas e que pode ser prazeroso e interessante
conhecê-las, isto é, aprender a ler (BRASIL/PROFA,
M1U7T8, 2001, p. 1).
Desse modo, a equipe pedagógica do programa defende que o trabalho com
a leitura nas classes de alfabetização deve ter, como centro organizador, uma
diversidade de textos. Ao analisarmos os textos que compõem as Coletâneas de
Textos (Módulos 1, 2 e 3) do PROFA, a fim de identificar quais gêneros textuais as crianças, na fase inicial de alfabetização, devem ler, podemos constatar
que tais materiais fazem referência a 25 diferentes gêneros textuais, a saber:
lista, frase de caminhão, música, cantiga de roda, poesia, parlenda, quadrinha,
provérbio, adivinha, piada, trava-língua, conto popular, causo, fábula, conto
maravilhoso, literatura de cordel, história em quadrinhos, notícia, reportagem,
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curiosidade, receita, regras de instrução, regras de jogo, texto expositivo e texto
informativo.
Entretanto é necessário destacar que, nos modelos de atividades de leitura propostos pelo PROFA, houve a predominância por determinados gêneros textuais
em detrimento de outros, conforme mostra a Tabela que se segue:
Tabela 1 – Situações de aprendizagem de leitura SEF/MEC – 2001
Gênero textual
Situação de
aprendizagem
Coletânea de
textos
F
%
Lista
Leitura dirigida
M1U7T3
2
9,1
Parlenda
Leitura dirigida
M1U7T3
3
13,7
Receita
Leitura dirigida
M1U7T3
1
4,5
Música
Leitura dirigida
M1U7T3
1
4,5
Adivinha
Leitura dirigida
M2U5T6
3
13,7
5
23,0
Leitura dirigida
Poema
M1U7T3
M2U2T5
Gravação
M2UET3
Projeto
M3U2T6
Texto expositivo
Projeto
M2UET3
1
4,5
Causos
Projeto
M3U2T6
1
4,5
Autobiografias
Projeto
M3U2T10
1
4,5
Conto maravilhoso
Projeto
M3U2T6
1
4,5
História em quadrinhos
Projeto
M3U2T6
1
4,5
Regras de instrução
Texto informativo
Total
Projeto
Projeto
M3U2T6
M3U2T6
1
1
22
4,5
4,5
100
Fonte: Coletâneas de Textos do PROFA (Módulo 1, 2 e 3)
SEF/MEC - 2001
Os dados observados na Tabela 1 indicam que os gêneros textuais que tiveram
maior repercussão nas propostas de atividades de leitura para as classes de alfabetização foram o poema, representando 23% do total dos gêneros propostos
nas situações de aprendizagem, seguido da parlenda e da adivinha, ambas correspondendo a 13,7% respectivamente. Focalizando nosso olhar na diversidade
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de gêneros textuais que perpassou os discursos materializados nas Coletâneas
de Textos do PROFA, observamos que ocorreu um afunilamento na proposta
de trabalho com a leitura, a partir desses gêneros. Num primeiro momento, a
equipe pedagógica do programa ressaltou a necessidade de o professor alfabetizador desencadear um trabalho com a leitura de 25 diferentes gêneros textuais.
Ao propor os modelos de “boas” situações de aprendizagem da leitura, num
segundo momento, foram referenciados apenas 13 gêneros, isso significa que
48% daqueles propostos, num primeiro momento, não foram abordados. E, ainda, nas referidas situações de aprendizagem, houve uma predileção sobre três
gêneros, isto é, o trabalho com a leitura se restringiu a somente 12% dos que
foram apontados inicialmente.
Assim, o trabalho com a leitura, a partir dos gêneros textuais propostos pelo
PROFA, circunscreve-se prioritariamente naqueles em que as crianças, na maioria das vezes, sabem de cor. Todavia, ao restringir a leitura na sala de aula aos
gêneros textuais que as crianças já conhecem e dos quais gostam, o processo de
ensino aprendizagem, conforme Vigotski (2001) aponta, não proporciona algo
novo, ou seja, no caso do objeto de estudo deste trabalho, o desenvolvimento
de capacidades textuais e discursivas, por meio do aprendizado da leitura e de
práticas de leitura de diferentes gêneros que circulam na sociedade.
Nesse sentido, acreditamos que a adoção do texto, como unidade de ensino
aprendizagem da leitura proposta pelo PROFA, não contribuiu para que se concretizassem mudanças significativas no trabalho com a leitura nas classes de
alfabetização nem para que o ensino da leitura estivesse em concordância com
o significado social da leitura, isto é, como prática social que contribui de modo
importante para a formação da consciência crítica das crianças. Isso porque,
como apontou Geraldi (1997) é preciso um redimensionamento das concepções
de língua, de sujeitos e de interações que subjazem ao processo de ensino aprendizagem da leitura e, também, uma proposta de trabalho com a leitura que seja
pensada de forma intencional, organizada e sistemática a partir da mediação
qualificada do professor alfabetizador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisarmos os materiais escritos e videográficos do PROFA, pudemos compreender que o modelo de ensino da leitura proposto pelo Governo Federal
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como adequado para o trabalho com a leitura nas classes de alfabetização se
assenta no construtivismo interacionista. Essa abordagem enfatiza a dimensão
psicolinguística da aprendizagem da leitura e preconiza que o aluno é um sujeito ativo que aprende a ler a partir da interação com os diferentes materiais
escritos que circulam na sociedade. Assim, o PROFA preconiza a necessidade
de os professores propiciarem às crianças a leitura de diferentes gêneros textuais desde o início do processo de alfabetização, porém secundariza o papel
do professor como mediador do processo de ensino aprendizagem da leitura.
Nesse caso, vale destacar, a partir das reflexões de Geraldi (1997), que não basta
a entrada do texto na sala de aula, também, se faz necessário um redimensionamento da concepção de língua, de sujeito e de interação que estão subjacentes
ao trabalho educativo do professor para que se possam operar mudanças no
ensino da língua materna na escola.
Nesse sentido, acreditamos que para o professor desenvolver um trabalho de
ensino da leitura que promova a formação do leitor crítico, se faz necessário
um trabalho formativo que provoque um redimensionamento da sua prática e
uma reflexão das concepções que a balizam. É preciso provocar um redimensionamento da prática que permita ao professor alfabetizador considerar o aluno
como sujeito inseparável do seu contexto, como um indivíduo que se constitui
nesse contexto, agindo, experimentando mudanças e vivenciando contradições.
Portanto, no que se refere ao ensino da leitura e à formação do leitor na alfabetização, é necessário um redimensionamento da prática de ensino que opere
uma mudança na forma de o professor conceber o aluno. Essa mudança implica
um processo formativo que leve o professor alfabetizador a abandonar a visão
que considera o aluno como apenas um organismo que interage naturalmente
com o meio social e que possibilite que ele passe a concebê-lo como sujeito que
interage com o social dialogicamente, construindo e se constituindo no social.
No entanto, pelo fato de os processos de interação da criança com o objeto estarem balizados no construtivismo que os entende como processos determinados
fundamentalmente pelos fatores orgânicos, cuja natureza é universal e independe do contexto sócio-histórico e cultural em que o sujeito está inserido, o PROFA
postula que o simples contato da criança com a linguagem escrita, numa relação
direta, natural e espontânea, possibilita, por si só, a aprendizagem da leitura.
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Essa perspectiva reconhece a leitura como uma atividade de construção do significado gerado pelo autor, no momento da escritura, cabendo ao leitor apenas recuperar o significado nas marcas textuais que foram deixadas pelo autor.
Logo, o texto é entendido como um repositório de mensagens e de informações.
Sendo assim, o trabalho com a leitura, a partir dos diferentes gêneros textuais
que poderia possibilitar a produção de sentidos, numa atividade interdiscursiva dialógica entre sujeitos, se circunscreve numa atividade de ensino dos aspectos fonéticos e fonológicos da língua ou de recuperação de sentidos produzidos
pelo autor do texto, desmerecendo, assim, sua natureza discursiva.
Desse modo, podemos inferir que a concepção de leitura e de texto que respalda
o PROFA prejudica a formação da consciência crítica das crianças e, em decorrência, não contribui para a formação de leitores que se relacionem criticamente
com a linguagem escrita nas suas diferentes formas de existência na sociedade.
Para tal, acreditamos que o trabalho com a leitura, nas classes de alfabetização,
deve se desenvolver mediante uma organização intencional e sistematizada por
parte do professor, de forma que possibilite aos alunos compreender a leitura
como uma atividade discursiva que se realiza numa relação essencialmente dialógica entre sujeitos por meio do texto e que considere o texto como o lugar da
interação de sujeitos e, portanto, das muitas vozes que atravessam o texto com
as implicações de cada uma dessas vozes no momento da leitura.
Nesse sentido, entendemos que se faz necessário que o ensino da leitura, no
processo de alfabetização, seja efetivado de modo a promover atividades nas
quais as crianças aprendam a construir diálogos com o texto e com as diferentes
vozes que também se presentificam nele. Nessa perspectiva, é preciso que o
ensino da leitura se realize de forma a possibilitar que as crianças aprendam a
construir suas contrapalavras e a produzirem, também, seus próprios discursos
mediante os discursos já construídos historicamente por outros sujeitos que nos
antecederam.
Assim, se pretendemos formar leitores críticos, é fundamental repensar a formação do professor alfabetizador a partir de uma perspectiva dialógica de linguagem que compreenda a leitura como uma prática social que possibilita aos
sujeitos dialogarem com outros sujeitos por meio do texto e produzirem sentidos determinados ideologicamente para o que lêem, assumindo uma posição
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responsiva de oferecimento de contrapalavras diante dos textos. Também se faz
necessária a adoção de uma política pública de alfabetização que invista na valorização do profissional do magistério e numa abordagem de ensino da leitura
que se sustente na concepção de leitura já citada que, por sua vez, considera os
alunos como sujeitos sócio-históricos que, ao dialogarem com os textos, produzem discursos e se constituem como sujeitos de seus próprios discursos.
Para isso, acreditamos ser necessário que um programa de formação de professores alfabetizadores entenda a alfabetização como “[...] uma prática social
em que se desenvolve a formação da consciência crítica, as capacidades de produção de textos orais e escritos, de leitura e de compreensão das relações entre
sons e letras” (GONTIJO, 2006, p. 8), pois, a partir dessa concepção, a alfabetização não é vista dissociada da inserção dos indivíduos em práticas de leitura e de
escrita nas diversas situações em que são utilizadas na sociedade.
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O ENSINO DO TEXTO NO CURSO DE LETRAS:
DAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS SOBRE GÊNEROS
DO DISCURSO ÀS PROPOSTAS DE ATIVIDADES
PRÁTICAS
Gilton Sampaio de Souza1*
José Cezinaldo Rocha Bessa2**
Crígina Cibelle Pereira3***
Maria Leidiana Alves4****
Resumo
Neste artigo investigamos o trabalho realizado com os gêneros discursivos no
ensino de produção de textos em Curso de Letras. Como aporte teórico, temos
os estudos de Bakhtin (1997), Dolz e Schneuwly (2004), Marcuschi (2002, 2008),
entre outros, que estudam a linguagem numa perspectiva sociointeracionista,
com ênfase para os estudos sobre gêneros discursivos. Os resultados apontam
que os gêneros mais trabalhados no ensino do texto em aulas do Curso de Letras são aqueles da esfera acadêmica, que a escrita do aluno atende a finalidades
bem específicas e que, nas respostas da maioria dos professores, há distanciamentos teórico-metodológicos entre a concepção de gêneros e o trabalho com
eles realizado em sala de aula.
Palavras-chave: Ensino. Gêneros discursivos. Produção textual. Curso
de Letras.
1- * Professor Doutor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
2- ** Professor Mestre da UERN.
3- *** Professora Mestre da UERN e Doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
4- **** Graduada e Mestranda pela UERN e bolsista CAPES.
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Considerações iniciais
A preocupação com investigações e discussões sobre os gêneros discursivos e a
sua aplicabilidade ao ensino de línguas em atividades de leitura e produção textual vem sendo foco de interesse de inúmeros pesquisadores situados no campo dos estudos da linguagem (MARCUSCHI, 2002, 2008; LOPES-ROSSI, 2006;
PASQUIER e DOLZ, 1996; BUNZEN, 2006; SOUZA, 2006, 2007, entre outros).
Os estudos realizados por alguns desses pesquisadores sobre o ensino da leitura e da produção de textos nos espaços escolares, da Educação Básica ao Ensino
Superior, assim como os resultados de avaliações e/ou exames de aprendizagem de alunos nessa área, têm revelado distanciamentos entre as discussões
teóricas atuais, as propostas dos documentos oficiais para o ensino de línguas,
tais como os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e os saberes práticos
dos egressos, assim como tem demonstrado fragilidades em nossos sistemas de
ensino, reveladas no baixo nível de leitura e de produção de textos por parte de
alunos e egressos quando da realização de exames nacionais e internacionais,
por exemplo.
Em consonância com esses estudos e com o objetivo de investigar o trabalho
com os gêneros discursivos em sala de aula de língua materna e estrangeira
do Ensino Médio e Superior, desenvolvemos a pesquisa “A função social dos
textos trabalhados no ensino de língua materna e estrangeira: um estudo acerca
dos gêneros discursivos adotados no Ensino Médio e Superior” (SOUZA, 2008),
com apoio do CNPq e da UERN. São, portanto, partes dos resultados dessa
pesquisa que apresentamos nesse artigo, cujo objetivo é investigar o trabalho
realizado com os gêneros em atividades de produção textual em um Curso de
Letras, a fim de conhecer que gêneros são trabalhados em aulas de produção de
textos e a finalidade comunicativa dos textos produzidos pelos alunos; e, ainda,
se há confluência entre a concepção de gêneros apresentada pelos professores e
o trabalho com eles realizado.
Nesta investigação, temos uma pesquisa de caráter descritivo e comparativo,
de natureza qualitativa, para a qual utilizamos técnicas de pesquisa de campo
e documental. Os dados são constituídos por um total de 03 questionários respondidos por professores do 7º período do Curso de Letras, ano letivo de 2008,
da habilitação em Língua Portuguesa. Após a coleta dos dados, realizamos a
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tabulação mediante a elaboração de quadros, gráficos, que foram analisados e
interpretados considerando as orientações teóricas sobre os gêneros e sua aplicabilidade ao ensino de línguas; em especial, à produção textual.
Revisitando a noção de gêneros do discurso
Para compreendermos a noção de gêneros do discurso, partimos da definição
postulada por Bakhtin (1997, p. 279), uma vez que sua teoria fundamenta outros
estudiosos da teoria de gêneros, cujas perspectivas, convergentes ou divergentes, partem sempre de seu conceito base. Para o referido autor, os gêneros são
“tipos relativamente estáveis de enunciados”, elaborados dentro de diferentes
esferas da utilização da língua (esfera política, religiosa, jornalística etc.), refletindo as condições específicas e as finalidades de cada uma delas. Por isso, há
uma infinidade e variedade dos gêneros, pois, também, são variadas e inesgotáveis as atividades humanas. O autor aponta, ainda, para a heterogeneidade
dos gêneros, pois, estando estes situados em uma determinada esfera de comunicação, refletem suas marcas e especificidades, que se diferem e se ampliam à
medida que ocorre o desenvolvimento e a complexidade da própria esfera.
Segundo Bakhtin (1997), a concepção de gênero como um processo de interação social se dá numa relação dialógica. Portanto, para definir uma forma de
discurso como um gênero, é necessário considerar três aspectos fundamentais
constitutivos dos gêneros: estilo verbal (que é a escolha do vocabulário, o uso de
figuras de linguagem, a composição de estruturas frasais e as escolhas linguísticas e discursivas feitas pelo autor), conteúdo temático (o que pode e deve ser
dito num provável enunciado) e estrutura composicional (que é a estrutura formal
propriamente dita).
Na perspectiva delineada por Bakhtin (1997), essas características dos gêneros
variam conforme as esferas de comunicação (jornalística, religiosa, jurídica, política, acadêmica, escolar etc.) nas quais o gênero é materializado. É nesse sentido que Marcuschi (2002) vai dizer que os gêneros se caracterizam e se definem
muito mais por seus aspectos sócio-comunicativos e funcionais que por seus aspectos formais, estruturais e linguísticos. Em termos gerais, os gêneros discursivos, como definidos por Bakhtin (1997), são formas distintas de enunciados
que refletem a variedade da língua e manifestam o estilo próprio do indivíduo,
o qual é visto na multiplicidade de temas propiciados pelas diversas esferas da
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comunicação humana nas quais os gêneros são produzidos. Em termos mais específicos, Marcuschi (2008, p.149) nos diz que “o trato dos gêneros diz respeito
ao trato da língua em seu cotidiano nas mais diversas formas”. Ainda de acordo com Marcuschi (2002), os gêneros são tão variados, “plásticos e maleáveis”,
pois constituem a materialização da língua nas suas mais diversas formas de
realização e, como estão vinculados à sociedade, surgem e evoluem de acordo
com ela, por isso seu estudo é também uma forma de revelar o funcionamento
da sociedade, por meio da análise do funcionamento da linguagem, sendo esta
a concepção que aqui adotamos.
Alguns apontamentos sobre gênero e ensino
O uso de diversos gêneros em sala de aula, sobretudo no ensino de língua materna, é de grande contribuição para o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos, conforme destacam estudiosos como Marcuschi (2002),
Dolz e Schneuwly (2004) e documentos oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), tendo em vista que se passa a direcionar esse ensino
voltado para as práticas discursivas relacionadas aos gêneros com os quais nos
comunicamos, diferentemente de um ensino voltado apenas para o estudo dos
aspectos formais do texto.
Dessa forma, as propostas de ensino de língua materna ancoram-se na ideia de
substituir o ensino baseado na concepção triádica de tipologias: narração, descrição e dissertação, uma vez que essas tipologias não têm a relevância que se
pensava para o ensino, já que consideram somente seus aspectos formais e/ou
estruturais. Como alternativa, os mais diversos estudiosos da linguagem têm
suscitado um ensino de língua materna baseado na noção dos gêneros, uma vez
que os acontecimentos sociais, em seus aspectos interacionais, se dão por meio
do gênero, instrumento do qual a sociedade dispõe para atuar nas diferentes
esferas da atividade humana. Por isso, os gêneros são considerados, hoje, como
objeto de ensino-aprendizagem da língua. No entanto, é consensual, também,
entre os estudiosos da teoria de gêneros, que a simples adoção dos gêneros
como objeto de ensino não resolve nem supera a prática tradicional de ensino
de língua. É preciso saber de que forma se dá o trabalho com os textos propriamente ditos, na prática efetiva da sala de aula, com base na teoria dos gêneros,
como estes são abordados, para não incorrermos no risco de aplicar aos gêneros
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a mesma metodologia aplicada às tipologias textuais. Esse fato implica a necessidade do conhecimento de algumas metodologias de ensino dos gêneros.
Considerando que a escolha do gênero seria o primeiro procedimento metodológico adotado, uma proposta pedagógica visando à produção escrita dos
gêneros selecionados consistiria, de acordo com Lopes-Rossi (2006), nos módulos e sequências didáticas. Essa proposta de ensino dos gêneros é baseada no
modelo de trabalho com sequências didáticas proposto por Dolz, Noverraz e
Schneuwly (2004). Segundo definição desses autores, as sequências didáticas se
apresentam como um conjunto de atividades escolares organizadas de maneira
sistemática sobre um gênero oral ou escrito. Assim, os procedimentos utilizados
para o ensino dos gêneros têm um caráter modular envolvendo tanto a oralidade quanto a escrita. A ideia defendida é a de que se devem criar situações e contextos que permitam reproduzir a situação concreta de produção textual (mais
próximo possível do real) incluindo sua circulação, o que significa atentar para
o processo de relação entre os interlocutores- produtores e receptores.
Apesar de essas metodologias de ensino dos gêneros estarem mais direcionadas
aos níveis Fundamental e Médio, isso não significa que elas não possam ser
aplicadas, também, ao Ensino Superior, uma vez que no contexto acadêmico
o aluno entra em contato com gêneros que não são de seu domínio. Em vista
disso, de acordo com Ramires (2007, p.76), é fundamental o “ensino sistemático
de diferentes gêneros do domínio acadêmico, para que esses alunos possam desenvolver as competências necessárias à apropriação das normas e convenções
de acesso a tais gêneros”. Esse ensino deve levar em conta todos os aspectos
característicos dos gêneros concebidos como formas de agir socialmente e que
por tal razão pressupõe o conhecimento de seu propósito comunicativo e de seu
meio de circulação como determinantes do que pode ou não ser dito e de como
deve ser dito.
Sendo assim, no contexto acadêmico, o aluno precisa ter acesso aos diversos
gêneros e vivenciar as condições de produção e circulação dos mesmos, como
forma de possibilitar a este seu domínio, e, consequentemente, sua produção
não como instrumento avaliativo, mas como forma de agir socialmente, tendo
em vista um propósito comunicativo, um interlocutor e uma contra-palavra,
como, por exemplo, por meio da divulgação e publicação de suas produções
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científicas, que poderiam propiciar uma forma de interlocução, nos moldes propostos por Bakhtin, em que o dizer pressupõe o dizer do outro.
O trabalho com os gêneros discursivos em aulas de
produção textual no curso de letras
No intuito de compreender como é realizado o trabalho com os gêneros em
atividades de produção textual em um Curso de Letras, consideramos os seguintes questionamentos: (i) que gêneros são trabalhados em aulas de produção
de textos do Curso de Letras?; (ii) qual a finalidade comunicativa dos textos
produzidos pelos alunos?; e (iii) há confluência entre a concepção de gêneros
apresentada pelos professores e o trabalho com eles realizado? Nesse sentido,
inicialmente, apresentamos, no gráfico abaixo, os gêneros trabalhados nas aulas
de produção textual da habilitação em Língua Portuguesa, conforme apontado
pelos professores nas respostas dadas ao questionário:
GÊNEROS TRABALHADOS NAS AULAS DE PRODUÇÃO
- LÍNGUA PORTUGUESA
A rtig o s 0 2
R es enha 0 2
R es um o 0 2
8%
8%
8%
8%
F icham ent o 0 1
15%
P r o j. d e m o no g r af ia 0 1
15%
8%
8%
8%
C o nt o s 0 1
15%
P r o p ag and as 0 1
C ar t azes 0 1
P anf let o s 1
S lo g ans 1
Gráfico 1 - Gêneros trabalhados nas aulas de produção textual – Língua Portuguesa.
Fonte: Relatório Final da Pesquisa “A função social dos textos trabalhados no
ensino de língua materna e estrangeira: um estudo acerca dos gêneros adotados
no Ensino Médio e Superior” (SOUZA, 2008)
Como podemos observar, no gráfico acima, temos uma variedade considerável
de gêneros elencados, somando um total de 10 (dez), sendo que os 03 (três)
mais citados são o artigo, a resenha e o resumo, representando 15% cada um
deles do total de gêneros indicados. Esse resultado mostra que esses gêneros
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são mais recorrentes praticamente em todas as disciplinas; o resumo, que pode
ser também uma estratégia de leitura e compreensão, é um dos mais exigidos.
O artigo acadêmico (ensaio/paper) é outro gênero bastante recorrente, já que
praticamente todas as disciplinas solicitam como trabalho final a elaboração de
um artigo, que, geralmente, tem fins avaliativos.
Constatamos que os gêneros citados são de domínios discursivos diversos e
não somente do domínio acadêmico, científico e escolar. Alguns gêneros de outros domínios, como a propaganda, o panfleto, o slogan e o cartaz também são
trabalhados na academia, estes correspondendo a um total de 8% dos citados.
O projeto de monografia, que é solicitado por uma disciplina obrigatória do
Curso, foi citado apenas por 01 (um) professor, correspondendo a um total de
8%. Esses dados revelam, em temos gerais, que o trabalho com a produção de
textos no Curso de Letras leva em conta a variedade de gêneros. Percebemos,
ainda, conforme os gêneros citados por professores, que não se revela confusão
terminológica entre gênero e tipo textual tão recorrente nos discursos de muitos
profissionais do ensino, o que podemos considerar como algo positivo, já que
mostra uma clareza da noção de gênero por parte dos professores pesquisados,
o que pode ser observado nas respostas dadas aos questionários, que analisamos a partir desse momento.
Os alunos escrevem para a/ visando a produção cientifica e para cumprir exigências
de avaliação da disciplina e, também, aquelas de cunho institucional. (PNS1)1
Isso também depende muito. Na disciplina Seminário de Monografia I, a produção
escrita tem como finalidade a elaboração do projeto de pesquisa, um gênero acadêmico,
que implica ao aluno o domínio de habilidades de escrita científica cujo destinatário é
o professor da disciplina e o possível orientador desse aluno. Já em Produção textual, a
produção textual dos alunos normalmente destina-se ao professor e aos colegas e visa
desenvolver as habilidades necessária a uma escrita de qualidade. (PNS2)
As atividades escritas são realizadas nas residências do aluno, corrigidas e depois
discutidas em sala de aula com o aluno. Quem sempre o aluno precisa refazer alguma
parte do trabalho que ficou obscura. Ele escreve para produzir conhecimentos, ou
seja, análises e escritas sobre as obras que outros acadêmicos ou estudantes escolares
possam ler. (PNS3)
Fonte: Relatório Final da Pesquisa “A função social dos textos trabalhados no
ensino de língua materna e estrangeira: um estudo acerca dos gêneros adotados no Ensino Médio e Superior” (SOUZA, 2008)
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Observemos que, segundo esses professores, o trabalho de produção textual
apresenta objetivos definidos, sendo que ao aluno é solicitado escrever para
“para desenvolver as habilidades necessárias a uma escrita de qualidade”
(PNS2), “para produzir conhecimento” (PNS1) ou, mais especificamente, visando “a elaboração do projeto de pesquisa, um gênero acadêmico, que implica ao aluno o domínio de habilidades de escrita científica cujo destinatário é
o professor da disciplina e o possível orientador desse aluno” (PNS2). Nestes
termos, o aluno escreve para atender às necessidades sócio-comunicativas dos
indivíduos com base em um trabalho que considera não só os aspectos estruturais e temáticos do gênero, mas também seu aspecto funcional, à medida que
considera uma finalidade definida, ainda que seja bem específica, como no caso
da elaboração do projeto de pesquisa, o que mostra que a produção textual desses gêneros é apresentada pelos professores tendo em vista a particularidade de
cada disciplina.
Percebemos que a escrita do aluno tem ainda como finalidade básica “cumprir
exigências de avaliação da disciplina” (PNS1); o texto solicitado/trabalhado,
nesse caso, funciona como um pretexto para o ensino de teorias e, nesse contexto de ensino, a produção escrita do aluno funcionará basicamente como requisito avaliativo, com o intuito de medir até que ponto ele assimilou o conteúdo
repassado.
Com isso, podemos assegurar que o trabalho com os gêneros na produção de
textos no contexto acadêmico atende a finalidades específicas, constituindo em
geral situações estritamente didáticas de uso da língua, já que a escrita do aluno
está voltada para a assimilação do conteúdo, para o atendimento às especificidades das disciplinas e para fins de avaliação.
Ainda de acordo com os dados da pesquisa, veremos a articulação entre teoria
e prática no ensino do texto no Curso de Letras, considerando a confluência
entre a concepção de gêneros apresentada pelos professores e a prática que os
mesmos afirmam assumir em suas aulas. Para tanto, mostramos, no quadro a
seguir, a concepção assumida por esses professores em suas práticas em sala de
aula, e, em seguida, fazemos alguns apontamentos sobre esse aspecto, considerando as observações feitas por meio de notas de campo, que elaboramos por
ocasião da realização da pesquisa:
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A concepção discursiva que o gênero é o instrumento pelo qual nós organizamos
nossos enunciados. São “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin)
(PNS1)
Acredito assumir uma concepção de gêneros em consonância com os pressupostos
sócio-interacionistas, considerando que não consigo vislumbrar o trabalho com os
gêneros sem considerar a compreensão sobre as condições sócio-históricas em que eles
são produzidos (PNS2)
Não tenho acompanhado as discussões mais recentes sobre gêneros textuais.
Compreendo “gêneros textuais/discursivos” como formas específicas de texto
que apresentam características – próprias na sua organização estrutural. Tais
características – perceptíveis na linguagem de um modo geral – estariam vinculadas
(condicionadas) à funcionalidade dos textos. (PNS3)
Fonte: Relatório Final da Pesquisa “A função social dos textos trabalhados no
ensino de língua materna e estrangeira: um estudo acerca dos gêneros adotados
no Ensino Médio e Superior” (SOUZA, 2008)
A concepção de gêneros discursivos adotada pelo professor PNS1 está de acordo com a definição proposta para os gêneros por Bakhtin, sendo essa uma das
definições mais difundidas nos estudos dos gêneros por vários estudiosos da
linguagem. Porém, a sua resposta em relação à prática, talvez em função das especificidades das disciplinas por ele ministradas, reduz o interlocutor do texto
produzido pelo aluno, já que, segundo os procedimentos metodológicos que o
professor diz realizar, o gênero funciona apenas como instrumento, suporte de
repasse teórico, e sua produção destina-se a um único interlocutor, ele, o professor, que provavelmente acaba nem sendo, pois seu olhar será de avaliador.
Esse tipo de atividade se distancia da noção de gênero/texto defendida por
Bakhtin e por outros autores citados. Nessa abordagem, a noção bakhtiniana
fica mais restrita ao plano teórico, pois, nesse tipo de prática pedagógica, o caráter dialógico (o/s outro/s do discurso) da linguagem é reduzido a um único
interlocutor.
Já a concepção assumida pelo professor PNS2, embora mais implicitamente,
também compartilha da noção bakhtiniana e de seus pressupostos sócio-interaSABERES Letras
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cionistas, de forma que concebe os gêneros como fortemente vinculados à sociedade e, consequentemente, às condições sócio-históricas nas quais os textos são
produzidos. Assim, a noção de gênero apresentada por esse professor considera
seu aspecto social e, uma vez considerado esse aspecto, sua concepção de gênero se inscreve na perspectiva bakhtiniana, que estuda os gêneros na ótica da
interação, considerando os gêneros como produtos de situações reais de uso,
pois se manifestam em função das necessidades comunicativas humanas.
Em sua prática, o professor consegue, conforme metodologia por ele apresentada, ser condizente com a noção teórica que se diz assumir em sala de aula. O
professor concebe o texto numa perspectiva interacional, uma vez que pressupõe o outro na produção dos seus alunos e, inclusive, proporciona momentos
de interação ao solicitar produções coletivas. A noção de escrita como atividade
processual, realizada por etapas, também faz parte dos procedimentos metodológicos realizados pelo professor e estão embasados na sua concepção teórica
acerca dos gêneros. Em razão disso, podemos afirmar que existe confluência
entre a concepção por ele assumida e sua prática em sala de aula.
Apesar de se dizer fora das discussões mais recentes em torno do assunto, o
professor PNS3 termina nos apresentando um conceito de gênero nos moldes
defendidos e apresentados aqui por vários autores: a noção de gênero como
uma forma de manifestação linguística materializada nos textos caracterizados
por estruturas organizacionais condicionadas pela funcionalidade dos textos.
Aqui, mais uma vez, os gêneros são concebidos em seus aspectos característicos, segundo Bakhtin, como o estrutural e o funcional.
Na prática, de acordo com suas respostas sobre a metodologia empregada para
o ensino de produção dos gêneros, essa noção parece não funcionar, pois o professor afirma não ter aulas específicas de produção (leitura/escrita). Resguardadas as ressalvas de suas disciplinas, ambas de Literatura, nem sempre focalizarem a produção de um gênero, é possível, inclusive necessária, a produção
de outros gêneros como o resumo, o fichamento e o seminário, tão presentes em
todas as disciplinas, inclusive de Literatura.
Considerações finais
Os resultados ora apresentados apontam que: (i) os gêneros discursivos mais
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trabalhados nas aulas de produção textual no Curso de Letras são aqueles da
esfera acadêmica, como o artigo, a resenha e o resumo; (ii) revelam que a finalidade da escrita do aluno se volta para a assimilação do conteúdo, para o atendimento às especificidades das disciplinas e para fins de avaliação, de modo a
atender, portanto, a finalidades bem específicas, constituindo em geral situações artificiais e didatizantes de uso da língua; e (iii) apontam que, nas respostas
da maioria dos professores, não há confluência entre a concepção de gêneros e
o trabalho com eles realizado.
De um modo geral, esses resultados indicam pouca clareza na noção dos gêneros e das metodologias de ensino dos mesmos, por parte dos professores, o que
pode estar associado à falta de uma formação continuada ou também a limitações da própria matriz curricular do curso, uma vez que as metodologias utilizadas, segundo respostas de alguns dos professores investigados, obedecem às
especificidades de cada disciplina. Esse fato indica, pois, a necessidade de maiores discussões sobre essa temática e de investimento em política de capacitação
do corpo docente, bem como aponta para a necessidade de redimensionamento
do projeto pedagógico do curso, numa perspectiva de possibilitar uma maior
articulação entre teoria e prática no trabalho com a produção de textos em sala
de aula do Curso de Letras.
Referências
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DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita –
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LOPES-ROSSI, M. A. G. Gêneros discursivos no ensino de leitura e produção de
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SOUZA, Gilton Sampaio de. (Coord.). Relatório técnico final de atividades: Pesquisa “A função social dos textos trabalhados no ensino de língua materna e
estrangeira: um estudo acerca dos gêneros adotados no Ensino Médio e Superior”. Departamento de Letras do Campus Avançado “Profª. Mª Elisa de Albuquerque Maia”, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Pau
dos Ferros: UERN, 2008. (Apoio: CNPq/UERN).
_____ (Coord.). Relatório técnico parcial de atividades: Pesquisa “O perfil dos
egressos do Curso de Letras do CAMEAM/UERN”. Departamento de Letras
do Campus Avançado “Profª Mª Elisa de Albuquerque Maia”, Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Pau dos Ferros: UERN, 2007.
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______(Coord.). Relatório técnico final de atividades: Pesquisa “Os Gêneros
do discurso nas aulas de língua materna do Ensino fundamental e Médio: um
estudo sobre o ensino da leitura e produção de textos”. 37 p. Departamento de
Letras do Campus Avançado “Profª. Mª Elisa de Albuquerque Maia”, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/UERN. Pau dos Ferros: UERN, 2006.
(Apoio: CNPq/FAPERN).
(Footnotes)
1- O Código PNS1 designa o seguinte: P = professor; NS = Nível Superior; e o
numeral corresponde à identificação dos sujeitos da pesquisa.
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A ABORDAGEM (INTER)CULTURAL NO ENSINOAPRENDIZAGEM DE PORTUGUÊS BRASILEIRO
LÍNGUA ESTRANGEIRA – ANÁLISE DE UMA
UNIDADE DIDÁTICA1
Marcos dos Reis Batista2*
RESUMO
Neste trabalho analisam-se aspectos culturais e interculturais de uma unidade
didática de um manual de ensino de português brasileiro língua estrangeira
(PBLE). Para isso, parte-se da hipótese que todo manual de língua estrangeira
apresenta aspectos culturais do(s) povo(s) que a falam. A escolha pelo tema
da abordagem (inter)cultural se justifica pela carência de estudos no campo do
ensino-aprendizagem de PBLE na região norte do país. Trata-se de uma pesquisa bibliográfico-documental, cuja metodologia empregada é de base qualitativa.
Por meio da análise da UD, conclui-se que o fator cultural ainda está recheado
de estereótipos e de simulacros diante do que vem a ser a língua-cultura brasileira. Esta compreensão se deu com base nas atividades e características da UD
analisada com o intuito de perceber o status quo de um material que é utilizado
em sala de aula de PBLE. Afirma-se que é necessário desenvolver uma visão
mais crítica diante do cultural no âmbito do ensino de uma língua-cultura, levando em consideração que o material tem lacunas e que estas precisam ser
sanadas de modo consistente.
Palavras-chave: Cultura. Interculturalidade. Ensino-aprendizagem de
línguas. Português.
1- Este trabalho faz parte da pesquisa de dissertação de mestrado “A abordagem (inter)
cultural em manuais para o ensino do português língua estrangeira” do Curso de Mestrado em Letras (área de Linguística, linha de pesquisa Ensino-aprendizagem de Línguas) e é apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado do Pará (FAPESPA).
2-* Especialista em Ensino-aprendizagem de português língua estrangeira/língua segunda pela Universidade Federal do Pará. É atualmente aluno do Curso de Mestrado
em Letras (Linguística – Ensino-aprendizagem de línguas) pela Universidade Federal
do Pará.
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INTRODUÇÃO
Ensinar e estudar uma língua não são tarefas fáceis, é necessário em ambos os
processos planejamento, estratégias e motivação, dentre outras tantas atitudes
que colaboram com esse empreendimento. O ensino formal, aquele da escola
pública, da universidade ou do instituto de idiomas é abordado de diversas maneiras. Assim, podemos abordar o ensino-aprendizagem de línguas (doravante
EAL) em uma perspectiva sociológica, cultural, entre outras.
No ensino-aprendizagem de línguas (doravante EAL), muitos trabalhos são categóricos ao tratar da relação língua-cultura. Assim, a cultura é indissociável da
língua, tanto no processo de aprendizagem, quanto na convivência do estrangeiro com a nova língua, ou seja, “Sempre que você ensina uma língua, você
também ensina um sistema cultural complexo de costumes, valores, e maneiras
de pensar, sentir e agir” (BROWN, 2001, p. 64). Com isso, parte-se da hipótese
de que o manual de línguas (doravante ML) possui potencial32 para a difusão do
idioma de modo a conscientizar os aprendentes culturalmente e interculturalmente. Essa potência ajuda a construção de conexões educativas e processos de
aprendizagem mútua entre os grupos culturalmente diferentes (FLEURI, 2003,
p. 10).
O interesse por uma pesquisa deste gênero partiu da convivência com o material didático (doravante MD) utilizado tanto nas aulas de português brasileiro
no âmbito do Projeto Português Língua Estrangeira (PPLE) da Universidade
Federal do Pará (UFPA), quanto das necessidades observadas no uso destes
materiais. Nesse âmbito, o elemento cultural faz parte intrinsecamente das atividades para o ensino de uma língua. Quando falamos de ensino de línguas,
não faz sentido falarmos de uma coisa abstrata. Não significa aprender somente regras e único e exclusivamente aspectos estruturais da língua (BALBONI,
1999). Pode-se dizer também que não existe ou não se fala de cultura sem se
considerar o instrumento linguístico. Uma cultura vem a ser descrita através
desse. Com base em Serragiotto (2007), podemos afirmar que existe um binômio
32- Entende-se aqui Potencial como motivação para a aprendizagem de um novo idioma.
Nesse âmbito a motivação deve ser levada em conta na aprendizagem de uma língua
com vista à aproximação do aluno com uma nova cultura. Por meio de uma reflexão
diante dessas atividades, pode-se começar a pensar acerca de como desenvolver a consciência cultural e intercultural do aprendente e, também, do docente utilizando os materiais didáticos de PBLE.
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língua-cultura, segundo o qual existem fortes relações que regulam esses dois
elementos que se influenciam mutuamente, ligados de modo considerável pela
natureza da relação deles.
O LD é um recurso muito utilizado em um ensino de línguas formal. Mas, não
tem todos os atributos e mecanismos para oferecer aos aprendentes todos os aspectos de uma nova língua e, consequentemente, de uma nova cultura. Segundo Cortazzi e Jin (1999, p. 199 apud MOURA, 2005) “apesar de alguns professores e alunos esperarem que o LD dê conta de todos os aspectos no processo de
ensino-aprendizagem, muitos já enfatizam que seu papel é de ser um recurso,
de onde grande parte pode ser aproveitada”. É justamente nesta “grande parte”
onde se encontra a nossa preocupação. Ele não tem condições de apresentar
de modo formativo, informativo e exaustivo a cultura dos povos que falam a
língua que está sendo aprendida; porém, existe uma tentativa dos elaboradores
em mostrar esta cultura. Assim, nosso trabalho será a análise sobre a abordagem dos aspectos culturais presentes em uma unidade didática (doravante UD)
para o ensino – e também a difusão – do PBLE.
O objetivo geral é apresentar uma análise sobre a abordagem da cultura (culturas) em uma UD de um livro para o ensino do português brasileiro para estrangeiros. Os objetivos específicos deste são: verificar a abordagem da cultura
em LD de PBLE; observar e analisar as atividades presentes no MD; identificar
os aspectos da cultura brasileira que são tratados em livros didáticos de PBLE
publicados no Brasil; e identificar de que forma os aspectos da cultura brasileira
porventura não abordados ou distorcidos nos livros didáticos de PBLE poderiam ser reformulados ou revistos.
Ao se conviver e trabalhar com manuais de PBLE que são publicados no Brasil,
seja nos curso de português para estrangeiros na UFPA e com alunos particulares, percebe-se que pouca ênfase é dada aos aspectos culturais do Brasil que
estão intrinsecamente ligados ao idioma e à forma – às vezes estereotipada – do
povo brasileiro. O LD para o ensino de uma língua tem potencial para aproximar
ou desmotivar o aprendente. Um ensino estereotipado ou rico de preconceitos
pode dificultar o relacionamento do aluno com a nova língua-cultura. Assim,
nos deparamos com as seguintes perguntas de pesquisa: 1 - Qual(is) cultura(s)
está(estão) presente(s) na UD do livro-texto de PBLE? 2 - De que forma os aspecSABERES Letras
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tos culturais porventura não abordados ou distorcidos na UD do livro de PBLE
poderiam ser reformulados ou revistos? 3 - A UD analisada explora a cultura
por meio de estereótipos?
Escolhemos o livro do aluno, uma vez que é nele que se encontra grande parte
das atividades que focalizam a cultura, seja de modo formativo ou informativo.
O elemento de análise desta pesquisa é a unidade nove do livro-texto do aluno
de um manual para o ensino de português como língua estrangeira. Escolhemos
esse manual por ele ser utilizado em alguns cursos de português do Brasil para
estrangeiros e a unidade nove por ter como título “O país e o idioma”.
O trabalho está dividido do seguinte modo: em primeiro lugar, trataremos o
que vem a ser abordagem; logo depois cultura e intercultura, língua-cultura e
cultura no ensino linguístico; o cultural e o intercultural no ensino do português
brasileiro para falantes de outras línguas: por que e para quê a descrição do ML
e a unidade didática intitulada “o país e o idioma” e nas considerações finais
do presente artigo procuramos responder às três questões-problemas de nosso
trabalho. Ou seja, três nós fazem parte da motivação que nos leva a abordar este
tema. Eis as questões:
1.
Qual(is) cultura(s) está(estão) presente(s) na UD do livro-texto
de PBLE em foco?
2.
De que forma os aspectos culturais porventura não abordados
ou distorcidos na UD do livro de PBLE poderiam ser reformulados ou
revistos?
3.
A UD analisada explora a cultura por meio de estereótipos?
ABORDAGEM
Começamos nosso trabalho definindo o termo abordagem como a filosofia basilar de uma prática didática. A abordagem seleciona dados e emprega fundamentos epistemológicos de várias teorias e de diferentes ciências de referência
para o ensino-aprendizagem de uma língua (materna ou estrangeira) e organiza
esses elementos segundo parâmetros dos estudos da didática das línguas, levando em conta as metas e as características do grupo que estuda determinada
língua. Uma abordagem gera diferentes métodos que são percebidos tanto na
sala de aula quanto em materiais didáticos para o ensino de línguas estrangeiras
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(BALBONI, 1999). Com isso, uma abordagem intercultural pode ser tida como
a filosofia basilar de uma prática didática que preza não apenas pelas informações culturais, pelas relações entre-culturas, mas sim, pelo diálogo, pela facilitação e reflexão do aprendente diante da nova língua-cultura-meta.
CULTURA E INTERCULTURA
Apresentamos nossas considerações iniciais acerca do que vem a ser cultura e
intercultura em nosso trabalho, para que melhor seja entendida a análise desses
elementos no âmbito do ensino de PBLE.
Ao longo de nossos estudos sobre o ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras (doravante EAL), tem sido comum ouvirmos, em discussões e leituras, a
seguinte frase: é impossível ensinar uma língua estrangeira sem levar em consideração a cultura dos seus falantes nativos. Segundo Balboni (1999, p. 25),
cultura é a soma de alguns modelos culturais praticados por um povo para
responder às necessidades naturais como nutrir, viver em grupo, se proteger de
eventuais fenômenos da natureza, etc. Para Vinozzi (2006, p. 10), existem dois
conceitos sobre cultura em que são notadas duas acepções:
a) Uma clássica, que leva em consideração o conceito de cultura animi:
Conjunto dos conhecimentos adquiridos; a instrução,
o saber: uma sólida cultura. / Sociologia Conjunto das
estruturas sociais, religiosas etc., das manifestações
intelectuais, artísticas etc., que caracteriza uma sociedade: a cultura inca; a cultura helenística. / Aplicação
do espírito a uma coisa: a cultura das ciências. / Desenvolvimento das faculdades naturais: a cultura do
espírito. / Apuro, elegância: a cultura do estilo.
b) Outra antropológica, na qual a cultura é vista como o modo de vida, os usos e
os costumes, as crenças, os conhecimentos, a moral, os hábitos e as capacidades
que o indivíduo e a comunidade desenvolveram.
Em algumas sociedades, faz-se distinção entre cultura e civilização. Conforme
Vinozzi (2006, p. 10), a civilização é “a avaliação histórica e positiva de que um
determinado povo produziu e a cultura pode ser entendida como os aspectos
característicos de um determinado grupo étnico”. Cuche (2002) em sua obra “A
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noção de cultura nas ciências sociais” apresenta uma ampla discussão acerca
dos termos cultura e civilização, em que mostra a cultura – classificada em alta
e baixa – e a civilização também como toda uma construção de uma sociedade
ao decorrer dos tempos. Assim, outros autores apresentam diversos conceitos
sobre cultura.
Passamos, então, a tratar da intercultura. Desmeserets (apud FURTADO, 2001,
p. 34) diz que “intercultura é a presença e a inter-relação em um mesmo tempo
e em um mesmo espaço, de pessoas de diversas culturas que coexistem”. Para
Alsina (1999, p. 74), a interculturalidade é como “as relações que se dão entre as
diversas culturas em um mesmo espaço real, midiático ou virtual, que também
teriam referência à dinâmica que se dá entre (...) as comunidades culturais”.
LÍNGUA-CULTURA E CULTURA NO ENSINO LINGUÍSTICO
Ao longo de nossos estudos sobre o ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras (doravante EALE), tem sido comum nos depararmos, em discussões e
leituras, com a seguinte frase: é impossível ensinar uma língua estrangeira sem
levar em consideração a cultura dos seus falantes nativos.
Na Antropologia, Laraia nos anos 1990 lança a obra “Cultura: um conceito antropológico”, onde mostra de modo sucinto e didático as diversas discussões
acerca do que se entende por cultura. Mas esse termo está longe de ser conceituado de maneira satisfatória. Existem muitos focos para se chegar ao que é cultura. Com base nos estudos de Serragiotto (2007), quando se fala de ensino de
línguas, não faz sentido falar de algo abstrato. Não significa aprender somente
regras e construções e, então, não é só o instrumento linguístico que pode interessar àqueles que estudam.
Um cidadão que possui um instrumento linguístico pode também contextualizá-lo e então considerar a cultura onde tal instrumento é usado. Isso porque
língua e cultura estão sempre se influenciando. Quando se pensa numa língua,
pensa-se em um instrumento usado por um povo - ou por povos - para representar a si mesmo, então, por trás existe uma cultura – ou culturas - que suporta
tal instrumento.
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Formar e informar os aprendentes da necessidade de desenvolvimento das habilidades culturais é importante. Pois, como já foi expresso anteriormente, uma
língua não se caracteriza única e exclusivamente de estruturas morfossintáticas.
Quanto mais se conhece da língua-cultura, mais se aprende em tal processo.
Nesse processo de aquisição de um novo idioma, a progressividade do conhecimento do mundo da comunidade linguística ajuda na interação de modo produtivo, evitando situações de engano e embaraçosas. Byram e Fleming (2001, p.
20) são categóricos ao afirmar que
um conhecimento progressivo das pessoas que falam
o idioma estudado é intrínseco na aprendizagem desse (...), sem a dimensão cultural, uma comunicação
eficaz se vê dificultada. Pelo menos a compreensão,
inclusive de palavras e expressões básicas pode ser
parcial ou aproximada, e os falantes e ouvintes podem não conseguir se expressar adequadamente ou
ofender seu interlocutor43.
Nessa perspectiva, a dimensão cultural é entendida como a ambientalização
do aprendente no processo de ensino-aprendizagem de uma nova língua. Ou
seja, sem essa [ambientalização], o aluno poderá correr o risco de usar de modo
inadequado um discurso que não faz parte de uma dada situação, tendo como
produto disso os choques culturais ou os confrontos desnecessários que podem
alimentar ainda a estereotipização do estrangeiro no país onde esse se encontra.
Assim, não se fala de cultura sem considerar o instrumento linguístico. Uma
cultura vem a ser descrita através dessa. Afirma-se então que existe um binômio
língua-cultura, segundo o qual existem algumas fortes relações que regulam
esses dois elementos que se influenciam mutuamente, ligados de modo considerável pela natureza da relação deles.
43- Texto original: “Un conocimiento progresivo de las personas que hablan el idioma
estudiado es intrínseco al aprendizaje de dicho idioma (…) Sin la dimensión cultural,
una comunicación eficaz a menudo se ve dificultada: la comprensión, incluso de palabras y expresiones básicas puede ser parcial o aproximada, y puede que los hablantes y
correspondientes no consigan expresarse adecuadamente, o incluso ofender a su interlocutor” (BYRAM e FLEMING, 2001, p. 20)
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A cultura no ensino linguístico, com base nos pressupostos da interculturalidade e nos textos de Serragiotto (2007), leva em conta que as duas culturas (a do
falante nativo e a do estudante) podem estar próximas e ao mesmo tempo podem estar extremamente distantes. Uma simples análise abre as possibilidades
para o professor na abordagem do ensino de uma segunda língua mostra que o
terreno para um diálogo e a construção de novas ideias sobre outros povos darão ao ensino um dinamismo considerável. É necessário estar atento e não cair
no excesso de estereótipos, mas uma informação geral pode ser muito útil para
a abordagem, no EALE e vem em contato com fatores culturais. Nesse modo a
experiência de ensinar e o ensino tornam-se mais prazerosos e eficazes.
É necessário que exista uma clara informação sobre os costumes e sobre os usos
de um povo, analisando tais fenômenos, procurando não criar estereótipos que
poderiam falsificar a interpretação, mas fornecendo mais sociótipos, segundo a
definição de Balboni (1999), isto é, algumas caracterizações que derivam de uma
generalização racional de estereótipos empiricamente verificáveis.
Nesse panorama, Miquel (1997) nos alerta para a necessidade de uma prática
de sala de aula que ajude o aluno a ter noções sobre o binômio língua-cultura.
A autora destaca que
como professores de língua, não podemos nos conformar com que nossos estudantes se encontrem com
problemas quando estão no país da língua-meta. Por
isso, é conveniente que além de realizar em classe
numerosos trabalhos interculturais que ajudem os
estudantes a se orientarem na nova cultura sem julgamento, realizemos boas descrições do que os romanos fazem (do ditado “in Rome, do what romans do”
ou “aonde vais, faças o que vier”), para que realmente
seja possível que o processo de ensino-aprendizagem
permita ao estudante o conhecimento necessário para
poder atuar de modo socio-culturalmente adequado
na língua-meta e, também, como objeto secundário,
porém, menos, lutar contra o etnocentrismo, contra
os pré-juízos das diferentes culturas e fazer assim um
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meio viável para a comunicação entre os povos (tradução nossa)54.
Para fazer isso, pode-se levar em conta também os aspectos não-verbais de uma
língua, porque esses também fazem parte da cultura e podem ser diferentes
segundo algumas populações: a linguagem do corpo, a língua-objeto, a línguaambiente (Balboni, 1999).
Algumas considerações com base em Serragiotto (2007) e Balboni (1999) sobre a
língua e a cultura no ensino são necessárias em nossa exposição. Por linguagem
do corpo entende-se o movimento, a postura, a gestualidade, a expressão facial,
o olhar, o tocar e a distância. Por linguagem-objeto entendem-se os sinais, os desenhos, os artefatos, o vestuário e o adornamento pessoal. Linguagem-ambiente
é feita de cores, luzes, arquitetura, espaço, direções e elementos culturais que
falam ao homem da sua natureza.
Cada falante nativo assimila algumas experiências sociais individuais características da própria cultura. Cada sociedade acumula algumas regras segundo as
quais algumas considerações concretas são interpretadas abstratamente e são
válidas entre os que se comunicam através do uso comum da mesma língua.
Em um discurso comum entre culturas, um estereótipo significa aplicar às próprias dimensões culturais (comportamento, valores, convicções, etc.) a outra
cultura, fazer ressaltar as diferenças sem levar em conta algumas motivações e
o background cultural que as criou. Assim, o estereótipo se mostra ainda como a
cristalização de hábitos de um determinado povo.
5-4-Texto original: “Como profesores de lengua, no podemos conformarnos con que
nuestros estudiantes se encuentren con los problemas cuando se desplacen al país de la
lengua-meta. Por esa razón, es conveniente que, además de realizar en clase numerosos
trabajos interculturales que ayuden a los estudiantes a orientarse en la nueva cultura sin
juzgarla, realicemos buenas descripciones gramaticales que den buena cuenta de lo que
“los romanos” hacen [del dicho “in Rome, do what romans do” o “donde fueras, haz lo
que vieras”], para que, realmente, sea posible que el proceso de enseñanza/aprendizaje
permita al estudiante el conocimiento de todo lo necesario para poder actuar de modo
socio-culturalmente adecuado en la lengua meta y, también, como objetivo secundario,
pero no menor, luchar contra el etnocentrismo, contra los juicios hacia las culturas distintas y hacer, así, más viable la comunicación entre los pueblos” (Miquel, 1997, p. 48).
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O CULTURAL E O INTERCULTURAL NO ENSINO DO PORTUGUÊS
BRASILEIRO PARA FALANTES DE OUTRAS LÍNGUAS: POR QUE
E PARA QUÊ?
Com as diversas discussões e estudos acerca do ser humano, da sociedade,
campos como a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia aprofundaram suas
pesquisas sobre o homem como ser social, psíquico e comportamental. A didática das línguas – utilizamos neste trabalho o termo EAL – não ficou aquém
dessas discussões e, em conjunto com várias outras reflexões diante da prática
docente em sala de aula de línguas criou um diálogo com as ciências sociais/
humanas. Uma das provas desse intercâmbio está nos trabalhos que resultaram
no conceito de competência comunicativa. Dell Hymes (1995), um etnógrafo
norte-americano, considera que a competência comunicativa relaciona-se com
saber “quando falar, quando não falar e de que forma falar”, quer dizer, se trata
da capacidade de formar enunciados que não somente estejam gramaticalmente
corretos, como também socialmente apropriados. Afinal de contas, fala-se língua em sociedade.
Nos anos 1980, Canale descreve a competência comunicativa como o conjunto
de outras quatro competências relacionadas: linguística, sociolinguística, discursiva e estratégica. A essas competências, Van Ek (1986) soma a competência
sociocultural (que vem a ser a capacidade que uma pessoa tem de utilizar uma
determinada língua), relacionando a atividade linguística comunicativa com alguns determinados caracteres de conhecimento próprios de uma comunidade
de fala. Esses caracteres podem se parcialmente diferentes dos de outras comunidades e abarcam três grandes campos: as referências culturais de diferente
ordem; as rotinas e os usos convencionais da língua; e das convenções sociais e
dos comportamentos ritualizados não-verbais.
Não se ensina somente línguas, se ensina também cultura. É quase um dogma,
mas novos estudos mostram que não se trata de dogma, esse aspecto aos poucos
está sendo tratado cientificamente. Retomando o que Dell Hymes (1995) esclarece ao conceituar competência comunicativa, não se fala qualquer coisa onde e
quando se quer. Existem maneiras de se expressar.
Ao ensinar língua-cultura, tem-se a necessidade de desenvolvermos por meio
da interação entre pessoas de diferentes culturas uma relação baseada no resSABERES Letras
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peito às diferenças, desenvolver ou despertar a consciência de que o outro não
é melhor ou pior, apenas diferente. Não se trata do aprendente abandonar a sua
cultura para absorver a outra, mas de criar uma ponte de reflexão e aprendizagem da cultura estrangeira, respeitando a sua própria cultura também. Esse
processo de interação faz parte do processo chamado interculturalidade.
Nesse panorama, os estudos interculturais no EAL hoje são tratados de modo
veemente. As informações chegam aos lares com considerável rapidez, influenciando de modo rápido as diversas culturas, fazendo com que cada vez mais
o hibridismo cultural65 seja uma realidade do mundo moderno. Aspectos que
tratam do inter e cultura rapidamente são difundidos e, muitas vezes, o ML
não acompanha certas mudanças que ocorrem na sociedade da língua-culturaestrangeira. É importante destacar que os materiais didáticos (doravante MD)
não apresentam os mais diversos componentes culturais, visto que este é uma
representação estereotipada daquela língua-cultura. Assim, o componente cultural medeia as interações, lançando a ideia de que os conhecimentos culturais
partilhados pelos interlocutores são indispensáveis para o desenvolvimento do
processo interacional, por meio da intercompreensão (FURTADO, 2005, p. 53).
A intercultura é um processo que colabora na relação do aprendente com a nova
língua. Com isso, o intercultural soma-se à interação quando tratamos de EAL e
podemos ampliar nossos horizontes enquanto pessoas e profissionais. Notamos
também que muito temos a discutir, não apenas o conceito em si de interculturalidade, mas em como fazer uso da interculturalidade no EAL.
Por fim, podemos considerar que a falta de reflexão acerca do intercultural pode
atrapalhar o trabalho em sala de aula. Um professor que não está sensível ao
respeito entre as culturas, que pensa em ensinar apenas o linguístico e que não
desperta para a interação entre indivíduos de diferentes mundos compromete a
formação de novos falantes e, evidentemente, de cidadãos do mundo.
MANUAL PARA O ENSINO DE LÍNGUAS
Depois de se ter apresentado algumas considerações acerca do que vem a ser o
cultural e o intercultural no EAL, passaremos a tratar de materiais didáticos e,
6-5- Para maiores detalhes ver Culturas híbridas (CANCLINI, 2006) e Culturas da
Ibero-américa (CANCLINI, 2003)
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logo depois, da análise propriamente dita da UD.
Quando tratamos da educação, seja essa linguística, matemática, física, etc. utilizamos muitos instrumentos para tal tarefa. Com isso, fazemos uso de materiais didáticos. Mas, o que vem a ser materiais didáticos? O MD é um produto
(livro, caderno de exercícios, jogos didáticos, jornal, CD-áudio, CD-ROM, entre
outros) que tem como objetivo servir de suporte para aprendizagem e para o
ensino de uma disciplina.
É importante destacar o adjetivo ‘didático’ que acompanha o termo material.
Esse adjetivo é derivado da palavra Didática que deriva da antiga expressão
grega Τεχνή διδακτική (techné didaktiké), que pode ser traduzida para o português como arte ou modo de ensinar. Enquanto adjetivo derivado de um verbo,
tal palavra tem origem no termo διδάςκω (didásko) cuja construção linguística
é indicada pela característica de realização lenta por meio de um longo período
ou por um processo de instrução.
O MD é muito mais que um produto que as indústrias procuram aperfeiçoar
com matérias-prima cada vez mais sofisticadas, ele tem uma importância inegável quando tratamos do ensino de línguas, pois, é por meio dele que conseguimos ter em mãos um percurso didático pensado para um determinado público.
Quando elaborado de modo consistente para um determinado grupo que venha
a sanar grande parte dos seus anseios, esse colaborará consideravelmente com a
formação daqueles futuros falantes.
Hoje, no mundo da internet, dos blogs e de tantas outras ferramentas tecnológicas a nossa disposição, o EAL não ficou aquém destas novidades da tecnologia. Cada vez mais são populares os cursos online, os dicionários virtuais, entre
outras ferramentas. Nesse panorama entendemos como material didático para
o ensino linguístico todo suporte virtual ou material para a facilitação na aquisição e na aprendizagem de uma língua. Assim, podemos listar como MDs, além
do conhecido livro (Texto, de exercícios, do professor, glossários), os dicionários, os livros de habilidades orais, escuta, leitura e escrita, entre outros.
No campo do EAL, o ML é um dos principais autores no que tange à aquisição
de uma nova língua através de um ensino formal. Entretanto, o quem vem a ser
um ML? Quais as suas características? O termo manual é conceituado segundo
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o professor francês Alain Jambain (2007) como “exemplar pedagógico destinado ao Professor e ao Estudante para atender aos objetivos fixados pelas instituições ministeriais”. Outros autores consideram o ML o LD propriamente dito. Já
para Mezzadri (2007), o manual não consiste apenas no LD impresso, mas nos
materiais que o compõem. Hoje o material utilizado nas aulas de línguas estrangeiras vai além do simples livro impresso. O ML não é somente o LD, mas é o
conjunto de materiais para o ensino de um determinado idioma, publicado por
uma editora em que existe uma determinada ligação entre estes. Esta ligação
se dá pela composição de muitos produtos dos quais podemos citar: CD-ROM,
livro do estudante, livro de exercícios, livro do professor, CD-áudio, exercícios
on-line, páginas da internet, entre outros.
LIVRO-TEXTO E ANÁLISE DA UD
O elemento de análise desta pesquisa é a unidade nove do livro-texto de um
manual de Português brasileiro como língua estrangeira. Escolhemos esse manual por ele ser muito utilizado em escolas de idiomas e a unidade nove por ter
como título “O país e o idioma” que por si já apresenta o aspecto cultural que
desejamos analisar.
O manual é publicado por uma editora de São Paulo. Sua primeira edição data
de 2002 e é usado em diversos cursos de PLE pelo Brasil e em outros países
dos quais se têm notícias. O manual é composto de livro do aluno, cadernos de
exercícios (para os públicos de origem asiática, anglo-saxônica e latina), livro
do professor, caderno de respostas aos exercícios e de transcrição dos textos em
áudio e 4 CDs.
A unidade escolhida no manual foi a oitava. Ela tem como título “O país e o
idioma”. Tem como enfoques gramaticais verbos regulares e alguns irregulares
da voz passiva e o particípio passado. Quanto ao enfoque nocional-funcional,
a UD trata de aspectos relacionados aos símbolos nacionais (Bandeira Brasileira, Hino Nacional, etc.), as diferenças entre o português falado no Brasil e em
Portugal e no campo comunicativo é abordada a ida ao restaurante. Além de
apresentar um país por meio de estereótipos.
Na análise da referida UD assume-se o papel de professor crítico e verificamse alguns posicionamentos dos produtores do livro como carregados de mitos,
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ideologias e pré-conceitos. Por isso, julgamos de antemão que o docente diante
de todo e qualquer material deva fazer uso da criticidade que venha ao encontro dos objetivos do ensino, o porquê e o para quê ensinar aspectos linguageiros/culturais.
Nesse âmbito, apresentamos a seguir a lista de características culturais avaliadas na UD76:
CATEGORIAS
ANÁLISE
Cultura como riqueza
acadêmica versus cultura
popular.
Não ocorre destaque para esta abordagem
dicotômica.
Cultura como um sistema
de símbolos.
Na UD temos como símbolo da cultura
brasileira a Bandeira nacional e o Hino
nacional interpretado pela cantora paraense
Fafá de Belém. É feita alusão à escolha das
cores utilizadas na bandeira nacional e alguns
comentários acerca dos significados de algumas
palavras contidas no hino.
A língua é um símbolo de libertação no Timor
Leste. Nesta UD é apresentado um trabalho de
alunos da Universidade De são Paulo (USP) na
difusão do português no pequeno país asiático
(p. 77)
A cachaça também é outro símbolo da cultura
brasileira, com direito a certificação (p. 74 e 79)
Cultura como processo
social.
O trabalho dos alunos da Universidade de
São Paulo em difundir o português em Timor
Leste pode ser entendido como a cultura como
processo social. Pois, aí temos um projeto
que poderá proporcionar mudanças quanto a
expressividade de um povo com a ampliação
do conhecimento da sua língua.
7-6- Devido às normas editoriais, não poderemos apresentar partes da UD analisada por
meio de escaneamento.
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Cultura como motivação e
elemento emotivo.
O texto “o país e o idioma” traz algumas
considerações sobre como é a alegre a cultura
brasileira, como os brasileiros são felizes,
mesmo não tendo muitos recursos para um
bom padrão de vida.
Cultura está intimamente
ligada à formação de um
povo, sua constituição
quanto nação.
Não foi verificado na UD
A cultura é aprendida.
A UD trata da formação da Comunidade dos
países de língua portuguesa (CPLP). Apresenta
a formação do grupo e seus objetivos para
a difusão e preservação das língua-culturas
lusófonas.
Algumas regras de como se comportar em um
restaurante são apresentadas na UD.
Fatos históricos que mudam a conjuntura de
uma nação são tratados no exercício 1 ( p. 73).
A cultura é baseada em
símbolos.
É comum nesta UD encontrarmos símbolos do
Brasil. A Bandeira brasileira, o Hino nacional.
A cultura é dinâmica.
Não foi verificado na UD
A cultura é integrada.
Não foi verificado na UD
A cultura é etnocêntrica.
Não foi verificado na UD
A cultura é adaptável.
Técnica italiana para combater pássaros, essa
técnica acreditamos que ela deve ter sido
adaptada às características dos agricultores do
Rio Grande do Sul (RS). Aqui temos a cultura
adaptável, mas uma cultura mais específica à
agricultura (p. 79).
Mitos – quanto aos mitos, o texto apresenta os índios como os únicos habitantes
da região norte; O Maranhão como o único estado em que se fala o português
‘mais correto’ do Brasil; Outro mito apresentado é considerar que os imigrantes
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italianos, japoneses e alemães optaram por habitar a região sul em virtude de o
clima ser considerado semelhante aos seus países de origem. Os fatos históricos,
entretanto, mostram que a colonização se deu primeiro nesta região e no sudeste em virtude das lavouras cafeeiras e da grande oferta de trabalho, além de
questões políticas. Posteriormente a essa época, outras regiões do Brasil receberam uma considerável gama de pessoas de outras nações. Quanto às ideologias,
os autores mostram neste texto que o brasileiro está satisfeito com a sua difícil
situação financeira, pois a enfrenta com otimismo e alegria, ou seja, vende-se a
ideia de uma nação feliz, mesmo com problemas sociais e econômicos;
No trecho “Região sudeste está uma das cidades mais conhecidas do mundo, verdadeiro
cartão-postal do Brasil: o Rio de Janeiro com sua belíssima vista, a estátua do Cristo
Redentor e... suas mulheres bonitas.” Expõe a ideia de um comércio sexual; pois, a
cidade do Rio de Janeiro está entre as capitais brasileiras onde há um considerável número de prostitutas segundo as autoridades brasileiras, e isso vem sendo
noticiado cada vez com mais ênfase no cenário nacional, ofuscando outros aspectos relevantes da riqueza cultural carioca.
Quando tratamos de pré-conceitos, acreditar que o Brasil é um país bom, em
virtude de não ter guerras ou a ausência de grandes catástrofes naturais, é se
mostrar reducionista diante dos vários aspectos que envolvem o que vem a “ser
um país bom”.
Outras informações a considerar: O tratamento que o texto dá à região centrooeste, a resume única e exclusivamente à capital federal – Brasília – e esquece-se
de cenários importantes daquela região como o Pantanal Mato-Grossense (estados de Mato Grosso e de Mato Groso do Sul), Caldas Novas (estado de Goiás) e
a Chapada Diamantina (Mato Grosso), entre outras riquezas locais.
“Um grande elo de união do nosso povo é que em todas as regiões do Brasil fala-se português!”. Os autores ignoraram a existência em território brasileiro composto por
outros povos que usam outros idiomas, como os indígenas presentes em muitos
estados da federação, além das populações que adotam o português brasileiro
como segunda língua87.
8-7-Como os japoneses nas cidades de Tomé-Açu e Santa Izabel, ambas as cidades no
Pará. Bem como a cidade de Ivoti no estado do Rio Grande do Sul onde se fala alemão
como primeira língua, além dos surdos.
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Nesta parte da unidade, a tentativa dos autores em apresentar o Brasil de modo
sintético acaba se mostrando reducionista ao extremo. Outros estados importantes do país são ignorados, como o renomado desenvolvimento do estado de
São Paulo; a primeira capital brasileira, que foi Salvador; as riquezas de Ouro
Preto e Mariana no estado de Minas Gerais, a maior metrópole da Amazônia
que é Belém do Pará, etc.
As demais partes da UD abordam a cultura como fatores linguístico e econômico. Linguístico ao tratar do Timor Leste, considerada a nação mais jovem a adotar o português como língua oficial e, econômica ao tratar do Mercado Comum
do Cone Sul – o MERCOSUL. Uma pesquisa acerca de informações (moeda,
comida, população, etc.) sobre outras nações (Angola, Argentina, etc.) na página 79, além de um texto que exalta o sucesso da cachaça no exterior também
são apresentados na unidade. Tais aspectos são contraditórios com a proposta
da UD que é apresentar o país, ou seja, o Brasil e o idioma, ou seja, a língua
portuguesa. Porém, expõe aspectos econômicos e países onde o português não
é língua oficial, muito menos segunda língua.
A UD, em uma perspectiva organizativa quanto a material didático, apresenta
considerável gama de atividades com muitos temas: Formação do Brasil, Timor
Leste, MERCOSUL, entre outros. Consideramos que, para um passo didático,
os autores procuraram fornecer muitos aspectos gramaticais e nocional-funcionais.
A UD, resumidamente, aborda a cultura através de representações culturais,
apresentando símbolos, ideias, mitos e pré-conceitos no que tange a língua e
culturas brasileiras. Estas características vão ao encontro do trabalho de Kuper
(1999, p. 291) que trata dos aspectos culturais como maniqueísta, ou seja, aspectos da cultura brasileira – ou brasileiras – que tratam de características consideradas representativas do Brasil. O autor também destaca a discussão entre os
antropólogos sobre as possíveis culturas, tanto a chamada “alta cultura” como
a “cultura popular”, esta última tratada com simpatia por muito pesquisadores
da área. Mas, como já expomos anteriormente, é necessário repensar o uso do
material, pois ele apresenta uma proposta que não é respeitada. As atividades
fogem em alguns momentos do tema, tratando de característica da econômica e
de países que não são lusófonos.
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QUESTÕES-PROBLEMA
Apresentamos nesta parte nossas considerações acerca das questões-problemas
que nortearam nosso trabalho.
1 - Qual(is) cultura(s) está(estão) presente(s) na UD do livro-texto de PBLE?
Com base na análise exposta, a cultura em sua múltipla face (CUCHE, 2002;
BALBONI, 1999; SERRAGIOTTO, 2008) presente na UD pode ser entendida
como um sistema de símbolos, como processo social, como motivação e elemento emotivo, é aprendida, é baseada em símbolos e é adaptável. Com isso,
conclui-se que essa unidade apresenta características referentes às representações culturais como mítica – O Maranhão como o lugar em que é falado o português
mais correto do Brasil – e ideológica – o povo brasileiro é um povo feliz, mesmo sem dinheiro – pré-conceituosa –acreditar que o Brasil é um país bom pelo simples fato de não
ter guerras e grandes catástrofes naturais. O aspecto cultural é ainda tratado como
uma simbologia que se mostra estática, livre de novas ideias e da dinamicidade
existente no ser humano, como algo considerado acabado e que é de difícil mudança. Alguns estudos - tanto na Antropologia, na Educação e na Didática das
Línguas – mostram que é impossível considerar a cultura de um povo somente
pelos modelos que a mídia ou o próprio LD mostram. Os povos que falam a língua que está sendo estudada são compostos por centenas de milhares – ou até
milhões – de personalidades. Acreditar que toda pessoa se comporta como um
manual produzido nos anos 1950 é esquecer a dinâmica humana, as gerações
mudam e com elas o comportamento, as regras sociais e tantos outros aspectos
concernentes ao cultural.
2 - De que forma os aspectos culturais porventura não abordados ou distorcidos
na UD do livro de PBLE poderiam ser incluídos?
Essa questão é consideravelmente ampla, pois, trata-se de um tema que cada
professor pode entender com base em sua experiência. Com base nos trabalhos
de Balboni (1999) e de Serragiotto (2008), os aspectos culturais devem ser levados em consideração não apenas a partir do ML e, sim, o professor deve ser um
facilitador para a aproximação e aquisição de uma nova língua-cultura. O manual de português brasileiro para estrangeiros deve ser tratado com criticidade
e, mais ainda: o professor de línguas – seja qual for o idioma – deve possuir na
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sua formação a noção acerca dos estudos culturais, do que vem a ser cultura e
qual a sua relação com a língua. Com isso, teremos um ensino de línguas mais
livre de estereótipos, preconceitos, mitos e muros que atrapalham o envolvimento do aluno com uma nova cultura.
3 - A UD analisada explora a cultura por meio de estereótipos?
O ML, como já exposto acima, possui considerável papel no ensino-aprendizagem de uma língua, seja materna, segunda ou estrangeira. Porém, a experiência
mostra que muitas vezes em sala de aula o professor não se dá conta da potencialidade deste material didático. O manual é um espaço em que estão presentes
diversas atividades que podem colaborar com a relação aluno-professor-língua.
A cultura de uma língua está presente neste material e o docente deve ter ciência do seu papel quanto colaborador entre essa cultura e o ensino da língua.
Nesse âmbito, consideramos que a UD explora a cultura por meio de estereótipos, pois a aborda por meio de representações como símbolos, ideias, mitos e
pré-conceitos no que tange a língua e a cultura brasileira.
A cultura como um sistema de símbolos pode ser entendida como um conjunto
de estruturas conceptuais. Estes símbolos podem ser percebidos como a bandeira brasileira, o significado que ela tem ao representar o Brasil e a sua funcionalidade em eventos cívicos.
CONSIDERAÇÕES PRÁTICAS PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM
Para um trabalho dinâmico na aprendizagem da língua, o professor pode criar
um percurso didático com o manual utilizando outros materiais para complementação. Para isso, Miquel (1999) nos mostra um percurso para o desenvolvimento do conhecimento cultural com a finalidade de dar consistência e de
contextualização no âmbito do ensino de línguas. Contextualizar de um ponto
de vista cultural significa atualizar toda uma série da qual quaisquer nativos
dispõem para abordar determinada situação. Para esse desenvolvimento do
trabalho cultural, Miquel (1997, 1999) nos apresenta três pontos importantes:
a informação, a exploração dos símbolos culturais e o trabalho cultural com os
atos de fala.
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Ao longo do processo de EAL é evidente que o professor reconheça os diferentes materiais que transmitem informações culturais da língua-alvo. O problema
reside no fato que muitos desses [materiais] não estão atualizados ou usam excessivamente os estereótipos no percurso didático.
Existe uma série de acontecimentos culturais que se repetem em algumas sociedades, como por exemplo, as festa de natal e ano novo. Miquel (1999) propõe
elaborar uma lista de aspectos que serviria de um guia para obter outras informações de nativos. A lista pode ser descrita conforme a apresentada pela autora: Dias marcados; Nome dos dias; Que se faz nesses dias e onde; Pessoas que
participam desses eventos e o que nunca se faria nessas ocasiões. Com essa lista
o professor poderia acrescentar ao trabalho com o manual diferentes aspectos
da cultura da língua-alvo. Uma vez obtidas as respostas de diferentes nativos,
buscaríamos os elementos comuns e as diferenças de nossas visões e de nossos
materiais. Com isso, desenvolveríamos um trabalho informativo e comparativo;
porém, de real transmissão de informação e formação.
Para explorar o sistema dos símbolos culturais precisamos entender que o signo cultural tem uma função que lhe é própria e que vive em oposição a outros signos. Quando se deseja explorar um campo, tratamos logo de identificar
quais os elementos que o compõe e se esses estão isolados ou fazem parte de
um conjunto. Podemos fazer uso mais uma vez da lista de elementos para traçarmos um trabalho em conjunto com o ML. O exemplo que utilizamos aqui
é do restaurante. Podemos estudar, conforme Miquel (1999), culturalmente o
restaurante elaborando uma lista de comida brasileira e outra do país de origem
do aluno. Analisando cada elemento (por exemplo, horários, organização dos
pratos, etc.), depois poderemos obter uma gama de informações, de aspectos
referentes à cultura-alvo.
Na sala de aula poderemos favorecer este tipo de trabalhar usando materiais
que ajudem a ir além das palavras. Para isso, é importante a avaliação do manual para verificarmos suas lacunas e propor atividades que colaborem com a
formação do novo falante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho apresentamos a análise de uma UD em uma abordagem (inSABERES Letras
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ter)cultural no ensino-aprendizagem de português brasileiro língua estrangeira (PBLE). Partiu-se da hipótese que o manual de línguas possui potencial
para a difusão do idioma de modo a conscientizar os aprendentes inter e
culturalmente.
Por meio da análise da UD apresentamos nossas considerações acerca do cultural – e do intercultural – no ensino-aprendizagem de português brasileiro como
língua estrangeira. Nessa análise, tivemos como base os trabalhos de Balboni
(1999), Serragiotto (2008), Lafuente (2005) Berwig (2004), Brown (1994), Byram e
Fleming (2001), Cuche (2002) e de Oliveira Santos (2004).
Por meio da análise da UD, podemos considerar que o fator cultural ainda está
recheado de estereótipos e de simulacros diante do que vem a ser a língua-cultura brasileira. Esta compreensão se deu com base nas atividades e características
da UD analisada com o intuito de percebemos o status quo de um material que é
utilizado em sala de aula de PBLE. Dessa forma, também podemos afirmar que
o professor de PBLE precisa - em sua formação e/ou na sua prática em sala de
aula - desenvolver em uma perspectiva diante do que é cultural no âmbito do
ensino de uma língua-cultura de maneira mais crítica.
Ressaltamos que uma reflexão diante do elemento cultural e o planejamento de
atividades culturais, e também interculturais, ajudarão docentes e discentes em
uma aprendizagem mais dinâmica e produtiva. É importante, também, que os
docentes encorajem a participação ativa dos alunos nesse processo por meio da
troca da interação entre as diferentes culturas, ou seja, entre a cultura brasileira
(ou culturas brasileiras) e a do aprendente de PBLE. Isso terá como consequência atitudes e etapas produtivas ao se encontrar com o outro e entender que o
mundo é feito da diversidade, deixando de lado o relativismo cultural.
Com uma formação e/ou reflexão sensivelmente (inter)cultural, recomendamos aos professores a levarem para sala de aula materiais autênticos, pois estes
contribuem consideravelmente para a elaboração de um modelo didático mais
próximo do falante, da sociedade brasileira que utiliza a língua-cultura para
expressar seu mundo e da sua forma de pensar.
Com essas sugestões esperamos ter contribuindo para a viabilização de ações
docentes que possam refletir e agir diante dos elementos que colaboram com o
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ensino de PBLE e com a reflexão acerca do cultural no uso de materiais didáticos para a difusão do português do Brasil para estrangeiros.
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