Tema da monografia 2009:

Transcrição

Tema da monografia 2009:
Faculdade Integração Zona Oeste – FIZO
Alquimy Art
Curso de Especialização em Arteterapia
Pós-Graduação lato sensu
OS NOVE ANOS NA BIOGRAFIA HUMANA
CORRELAÇÃO COM A PEDAGOGIA WALDORF E A ARTETERAPIA
Alda Luba
São Paulo, SP
2010
ALDA LUBA
OS NOVE ANOS NA BIOGRAFIA HUMANA
CORRELAÇÃO COM A PEDAGOGIA WALDORF E A ARTETERAPIA
Monografia apresentada à FIZO - Faculdade
Integração Zona Oeste, SP e ao Alquimy Art, SP,
como parte dos requisitos para a obtenção do título
de Especialista em Arteterapia.
Orientador: Profa. Dra. Cristina Dias Allessandrini
São Paulo, SP
2010
LUBA, Alda
Os nove anos na biografia humana. Correlação com a
Pedagogia Waldorf e a arteterapia / Alda Luba – Osasco:
[s.n.], 2010.
64p.
Monografia (especialização em Areterapia) – FIZO,
Faculdade Integração Zona Oeste. Alquimy Art, SP.
1. Pedagogia Waldorf. 2. Recursos arteterapêuticos
3 Processo de Individuação.
Faculdade Integração Zona Oeste – FIZO
Alquimy Art
OS NOVE ANOS NA BIOGRAFIA HUMANA
CORRELAÇÃO COM A PEDAGOGIA WALDORF E A ARTETERAPIA
Monografia apresentada pela aluna Alda Luba ao curso de Especialização em
Arteterapia em 24 de outubro de 2009 e recebendo a avaliação da Banca
Examinadora constituída pelos professores:
__________________________________________________________
Profa. Dra. Cristina Dias Allessandrini. Orientadora e Coordenadora da Especialização.
__________________________________________________________
Profa. Ms. Deolinda F. Fabietti. Coordenadora Local e Supervisora.
À Criança Interior de cada um.
AGRADECIMENTOS
Aqui reitero meus agradecimentos,
...a Constantino Riemma;
...ao professor e consultor de Pedagogia Waldorf Alfredo Rheingantz;
...à amiga e profissional de desenho gráfico Esperanza Sobral;
...à presidente da Associação Comunitária Micael, Profa. Sra. Bernadete Sulzbach;
...à coordenadora pedagógica da ACOMI, Maria Szucko;
...ao Dr. Derblai Sebben, médico pediatra, pela valiosa contribuição alicerçando o
currículo do quarto ano Waldorf;
...à minha arteterapeuta Mônica Guttman;
...ao meu esposo Maciej Luba, pela compreensão e apoio,
...os quais contribuíram para que este trabalho chegasse ao término com substância
e proporções adequadas;
...também agradeço minhas colegas de formação, pois juntas alegremente tecemos
questionamentos e descobertas;
...à colega Margaret Rose Pela, quando vivenciamos um período do estágio
supervisionado;
...aos professores do Centro de Pesquisa Alquimy Art, em especial à Profa. Dra.
Cristina Dias Allessandrini e à Profa. Ms. Deolinda Fabietti, a minha gratidão pela
formação acadêmica e incentivo integrador.
Tudo o que um Indígena faz está num círculo,
e isto é porque o Poder do Mundo sempre
acontece em círculos
e tudo tenta ser redondo.
O céu é redondo,
e a terra é redonda como uma bola,
e assim são as estrelas.
O vento, em seu poder máximo, gira.
Pássaros fazem seus ninhos em círculos,
pois deles é a mesma religião que a nossa.
O sol se eleva e se põe em círculo,
a lua faz o mesmo, e ambos são redondos.
As estações formam um grande círculo
em suas mudanças,
e sempre voltam outra vez de onde vieram.
A vida de um homem é um círculo
de infância à infância e assim é em tudo
onde se movimenta o poder.
(Black Elk em “Black Elk Speaks”)
RESUMO
O presente trabalho retrata a passagem dos nove anos na biografia humana como
um momento crítico para um ser em desenvolvimento, que se depara com uma fase
de mudanças significativas, caminhos que se abrem diante da completude de um
ciclo de oito anos. Como suporte, a Pedagogia Waldorf contribui com um currículo
dirigido as suas necessidades que, uma vez associado aos recursos
arteterapêuticos, sustentam o ser humano em sua caminhada rumo ao seu processo
de individuação. Os benefícios dos recursos arteterapêuticos foram vivenciados por
três crianças, durante o estágio supervisionado em arteterapia realizado pela autora
corroborando sua tese. Tal benefício se estende também ao adulto / cuidador que
fica liberado de preocupar-se, pois outro olhar o capacita a melhor compreender a
criança que atravessa este portal. O efeito estimulante da arte atua sobre os
sentimentos não só do adulto / cuidador, como também da criança favorecendo o
despertar acolhedor para um viver cada vez mais saudável de autopercepção.
Palavras-chave: Recursos arteterapêuticos. Pedagogia Waldorf. Processo de
individuação.
ABSTRACT
The author depicts the nine year old passage in human biography. As a critical
moment a developing being faces a significant changes period, new horizons before
the landscape of the conclusion of eight year old cycle. To support, Waldorf
Education contributes with a curriculum directed to his/her necessities. This
curriculum comes associated to art therapeutic resources to hold the human being in
his/her way toward his/her individuation process. Validating her thesis, the author
could see that the children benefit from art therapy during the internship. Free from
worrying, the caregiver also benefits from this approach once s/he can understand
better this phase the child is going through. The artistic stimulating effect works on
the emotions not only of the caregiver but also of the child bringing a warm and
healthy self-awareness in life.
Key-words: Art therapeutic resources. Waldorf Education. Individuation process.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………. 10
2 JUSTO, INJUSTO, NOÇÃO DE JUSTIÇA......................................... 15
3 PEDAGOGIA WALDORF........................................................................ 17
3.1 A ARTE COMO UMA PONTE.................................................................
17
3.2 A PASSAGEM DO RUBICÃO.................................................................
20
3.3 PONTO CRUZ.......................................................................................... 22
4 A TOMADA DE CONSCIÊNCIA............................................................ 25
4.1 O SENTIDO DO EU.................................................................................
25
4.2 CARREGO E SUPORTO UM EU............................................................
27
5 CONTRIBUIÇÕES DA ARTETERAPIA.............................................. 30
5.1 CONSCIÊNCIA, VIVÊNCIA E REALIZAÇÃO DO EU............................. 30
5.2 POSTURA DO ADULTO.........................................................................
31
5.3 RECURSOS ARTETERAPÊUTICOS......................................................
34
6 ESTUDO DE CASO.................................................................................. 37
6.1 METODOLOGIA......................................................................................
37
6.2 TRABALHO ARTETERAPÊUTICO DO ESTÁGIO
38
SUPERVISIONADO...........................................................................................
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 43
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................ 47
ANEXO A – JOÃO DE FERRO................................................................. 50
ANEXO B – A MENINA DA LANTERNA............................................... 61
10
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho contém em si a pergunta: “O que acontece na vida do ser
humano ao passar pelo período dos oito / nove anos de idade?”.
O ser humano em sua constituição biopsico-social, durante este período,
passa por mudanças significativas em sua vida, eventos marcantes em seu entorno
bem próximo, propiciando uma experiência intima, singular e vívida; vivências
advindas de um comportamento que pode ser absurdo ou estúpido, uma visão
unilateral, ou uma fraqueza daqueles com quem convive, uma viagem, uma nova
moradia, uma nova acomodação do solo familiar, uma morte – com certeza uma
perda e um ganho.
Este impulso de pesquisa e observação se descortina com a vivência da
própria pesquisadora ao se aproximar do ciclo de nove anos em sua vida pessoal.
Foi quando aconteceu a festa de encerramento do ano escolar com a
presença dos pais.
Era um dia de sábado e a criança sai de casa, atravessa ruas e avenidas,
dirigindo-se sozinha para a escola para encontrar-se com seus pares e a sua
professora de classe. Depois da reunião, há um encontro mais pessoal entre a
professora e a criança:
- Onde estão seus pais? Não vieram?
- Não. Estão trabalhando. Hoje é sábado e eles estão terminando os
trabalhos: meu pai é alfaiate e minha mãe, costureira.
A criança que durante toda a reunião estava com seus pares ao chegar neste
momento sente muito a falta dos pais que não podem acompanhar a sua vida
escolar– que para ela é muito importante - e procura um abraço, mas a professora é
uma freira religiosa e suas várias saias se aproximam da criança. O tecido é
encorpado e macio, de cor clara. A professora é alta, tez clara, jovem e bonita,
quando a tomada de consciência acontece. O abraço é acolhedor, mas não há toque
de pele com pele. Há um acordar e pela primeira vez, acontece a sensação de estar
só - um olhar em volta muito mais consciente, um chegar-se a uma mudança interior,
experimentando a si próprio, muito mais presente que antes, e, na seqüência - a
11
conseqüência, olhando o mundo com novos olhos de observação, um sentimento de
surpresa, um olhar de espanto, admiração, estima, desejo de saber e os primórdios
de uma nova postura.
Neste momento, uma criança ficou lá trás, e, agora, outra criança está ali de
pé dentro dela mesma.
Ao mesmo tempo em que a nova criança olha o contexto daquela situação e
se sente sozinha tendo que caminhar com suas próprias pernas, a professora freira,
jovem, alta e bonita, estende um presente para a criança, que avidamente o recebe
com as duas mãos.
É um bercinho confeccionado em tecido cor carmim com uma bonequinha lá
dentro!
O coração da nova criança se aquieta e guarda este presente com especial
carinho: uma força que a sustentará dali para frente.
Hoje, diante da perspectiva do tempo, a pesquisadora percebe que a cor que
mais aprecia é a cor carmim como a cor daquele bercinho. Seu refúgio? Uma
identificação? Um presente simbólico? Uma constatação para a descoberta da sua
Missão Pessoal?
Mais tarde, pelos caminhos trilhados, a vivência como “mãe waldorf” na
educação de um de seus filhos e como “avó waldorf” na convivência com o neto e a
filha professora Waldorf, a pesquisadora familiarizou-se com o termo “passagem do
rubicão”. Rubicão é esta passagem sem volta do ser humano ao cruzar o limiar dos
oito para os nove anos como bem atesta o conto de fadas João de Ferro que segue
na íntegra no capítulo dos Anexos com a finalidade de demonstrar o detalhe da
idade de oito anos mencionado. Detalhe que na verdade é um dado essencial como
Robert Bly comenta em seu livro “Iron John”: “Um dia, o filho do rei com oito anos de
idade está no jardim jogando com sua bola dourada que ele ama, e ela rola para
dentro da jaula do Homem Selvagem”. “Se o menino quer a bola de volta ele terá
que se aproximar do Homem Selvagem e pedi-la”. “Mas isto será um problema”
(BLY, 1990, p. 07). Neste ponto tem início a história propriamente dita sendo que
uma bela abordagem feita por Robert Bly nos apresenta o caminho de individuação
do ser humano sobre o enfoque do universo masculino.
Ao decidir por esta monografia, surgiram perguntas outras, mas no decorrer
da pesquisa, à medida que se ampliavam, surgiu, também, o estímulo de detê-las
para uma composição mais objetiva que demonstrasse o âmago da questão
12
proposta. A pesquisa terá continuidade mesmo tendo que delimitar esta
apresentação, ou seja, a proposta deste trabalho é indicar um olhar significativo,
mais profundo no sentido de contribuir para uma compreensão maior por esta
passagem de idade do ser humano. Eis as perguntas que surgiram:
Trata-se de um ciclo de nove anos?
A pausa necessária para um novo ciclo ter início?
Há uma explicação para este salto quântico majorante de consciência nesta
idade?
É um processo dolorido? Quais as emoções que acompanham?
Se as crianças de nove anos não mais aceitam contos de fadas quais
histórias oferecer para ajudá-las a atravessar este umbral?
Por que a Pedagogia Waldorf denomina esta fase de a saída do Jardim do
Paraíso?
Quais são as necessidades desta criança de oito/nove anos?
Que vivências, que imagens podem ajudar a criança nesta passagem?
Que paralelos tecer diante do currículo da Pedagogia Waldorf que denomina
esta fase de rubicão?
O que vem a ser o rubicão? É somente um recorte da História da Antiga
Roma?
Qual seria a razão para o ponto cruz em trabalhos manuais no currículo
Waldorf para a criança que está vivendo esta passagem?
As fases de um desenvolvimento biopsico-social sadio explicam esta
passagem dos oito para os nove anos?
Poder-se-ia dizer que as crianças nesta idade “mudam-se para dentro de
suas casas” tendo maior posse de “sua casa”?
Por esta razão, então, o currículo da Pedagogia Waldorf inclui a construção
de uma casa / morada exteriorizando assim o que acontece no interior da criança?
Nesse momento, a arte interelaciona as perguntas e a arteterapia integra as
respostas restabelecendo o “elo perdido com a sensibilidade”, restaurando a
abrangência da captação intuitiva e do novo ao lado de “coordenadores cognitivos” caminhantes – para trilhar o caminho da integração entre as polaridades e as
complementaridades, entre “as duas faces de uma única revelação” (LELOUP,
2007).
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O presente trabalho busca um outro ângulo para compreender a criança nesta
passagem e, objetiva demonstrar como os recursos arteterapêuticos dão suporte
para que ela possa atravessar este portal quando as características infantis ficam
para trás e pela frente surge a polaridade “eu – mundo”.
Um embasamento teórico–prático compõe o cerne desta proposta de
pesquisa ao buscar respostas às perguntas citadas.
Neste trabalho é dada ênfase aos estudiosos de diferentes linhas de
pensamento
e
especializações
que
caracterizam
as
várias
etapas
do
desenvolvimento humano.
Lembramos do poeta italiano Dante Alighieri quando menino de nove anos de
idade se encontrou com uma menina também com nove anos em uma rua em
Florença. Ela devia ter crescido na mesma vizinhança e chamava-se Beatrice; seu
nome significa “aquela que abençoa”. Este mero encontro assim que um passou
pelo outro teve um efeito mais profundo no menino. Como poeta, mais tarde, Dante
escreveu sobre esta experiência no seu livro Vita Nuova:
Pelo nono tempo desde meu nascimento esta radiante senhora do meu
espírito chamada Beatrice apareceu na minha frente, aproximadamente no
começo do seu nono ano, e eu estive com ela até o fim do meu nono ano.
Nesta ocasião, ouvi uma voz „Fique atento,segure, tome conhecimento, uma
divindade, que é mais forte do que eu, se aproxima e, daqui para frente, terá
domínio sobre mim‟. (KOEPKE, 1989, p. 45)
Embora morassem na mesma vizinhança, somente nove anos mais tarde,
Dante e Beatrice se encontraram uma outra vez. Naquela época, Dante estava
prometido a Gemma Donati e Beatrice casou-se com o rico Simoni dei Bardi vindo a
falecer quatro anos mais tarde.
Muito mais do que quando estava viva, Dante sentiu-se inspirado por Beatrice
após sua morte. Em seu trabalho A Divina Comédia, é a figura de Beatrice que o
conduz ao Paraíso. O que veio a ser o maior evento na vida do poeta começou com
uma vivência aos nove anos.
Inúmeros outros exemplos de vivências de muitas outras biografias poderiam
ser enumerados, mas este já seria um outro escopo de trabalho.
As reflexões aqui sugeridas traçam paralelos entre a teoria encontrada na
pesquisa bibliográfica, as coincidências encontradas nas buscas e experiências
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pessoais e profissionais pregressas da autora e, finalmente, com o trabalho
arteterapêutico desenvolvido no estágio supervisionado.
A organização dos capítulos segue abordagens relacionadas a diversos
autores não só da linha da Pedagogia Waldorf como Karl Konig, Joep Eikenboom,
Gudrun Burkhard, Hermann Koepke, Liane Collot d‟Herbois, Michaela Glockler,
Bernard Lievegoed, como também, Louise Bates Ames, Carol Chase Haber - Gesell
Institute of Human Development, Jean Piaget, Robert Bly, Célia Gago e Jung, Milton
Alves Ruiz, Newton Kara José, Angeles Arrien, que se detiveram nesta fase do
desenvolvimento humano.
Acrescenta-se a este trabalho referências de autores estudiosos da
arteterapia e suas vivências transformadoras como Cristina Dias Allessandrini,
Selma Ciornai, Ângela Philippini, Adriana Medeiros e Sonia Branco, Arthur B.
VanGundy e Linda Naiman.
Rudolf
Treichler,
Marie-Louise
von
Franz
e
Mônica
mencionados pela riqueza de conteúdo sintético e integrador.
Guttmann
são
15
2 JUSTO, INJUSTO, NOÇÃO DE JUSTIÇA
Louise Bates Ames e Carol Chase Haber afirmam que a criança aos nove
anos passa por um período de interiorização. As autoras reconhecem esta transição
e afirmam que nesta idade “a criança se retira, torna-se independente, nem ouve
mais a voz do adulto. Muitas começam a questionar a infalibilidade e onipotência
dos pais. Questionam se as regras dos pais estão certas” (1990, p.19). Também se
retiram do círculo familiar. A criança de nove anos quer e precisa dessa maturidade,
dessa independência e dessa separação. Ela sente a necessidade de estabelecer
sua independência. E nisso, a criança precisa ser respeitada. Com os irmãos
menores ela pode adotar uma atitude protetora e, ser uma criança orgulhosa de
seus irmãos mais velhos. Ela aceita responsabilidades.
Crianças de nove anos têm um forte chamado pelo que é justo. Existe um
grande interesse em saber “quem começou”. Alguns até assumem e pedem
desculpas. Também querem que o outro seja justo. Palavras como verdade e
honestidade começam a fazer parte do seu vocabulário.
Certamente, no mínimo, os rudimentos de uma tomada de consciência a
criança está desenvolvendo (AMES e HABER, 1990, p. 50).
Ávida para agradar, ama ser escolhida, busca elogios.
Pode acontecer também que algumas crianças nesta idade começam a fazer
as coisas com espírito de serviço. Estão bem conscientes de sua aparência e
desempenho.
A criança de nove anos está se movendo na aceitação do seu eu e dos
outros. Gosta de construir e brincar com material para construir e gosta de fazer
castelos com areia. Gosta de olhar fixo em alguma coisa e em alguma pessoa, sem
na realidade ver o que está olhando, olha para o pai ou a mãe sem, no entanto, ouvir
o que estão falando. Papai Noel ficou lá atrás, a criança agora com nove anos assim
se expressa sobre o natal: “é um tempo para ser educado e amoroso”, afirmam
Ames e Haber (1990, p. 77).
Em sua obra, O Juízo Moral na Criança, Piaget através do jogo se propõe a
estudar o juízo moral interrogando um grande número de crianças.
16
Trata-se inicialmente, de saber o que vem a ser o respeito à regra do ponto
de vista da própria criança - a partir da análise das regras do jogo social, na
medida em que são obrigatórias para a consciência do jogador honesto. Da
regra do jogo passou-se para as regras especificamente morais, prescritas
pelos adultos. Depois, os princípios provenientes das relações das crianças
entre si e a idéia de justiça foi o tema especial escolhido. (1994, p. 21)
Quanto à gênese da consciência do eu, Piaget afirma que “o eu somente se
conhece por referência àquele dos outros” (1994, p. 292). O autor lembra a
perspectiva egocêntrica como ilusão que o indivíduo se situa no centro de tudo
(1994, p. 292). Para descobrir-se como indivíduo particular, ele afirma, é necessária
uma contínua comparação, produto de oposições, discussões e controle mútuo. A
criança pode permanecer egocêntrica por muito tempo, (por falta de consciência do
eu), embora participando, sob todos os aspectos, da consciência dos outros. A
consciência do eu individual é, para Piaget, ao mesmo tempo, um produto e uma
condição da cooperação, quando ele afirma “para socializar realmente o espírito, a
cooperação é necessária, porque somente ela conseguirá libertar a criança da
mística da palavra adulta” (PIAGET, 1994, p. 299).
Neste presente trabalho, reflexões de outros autores serão dispostas para
apresentar a diferença existente na maneira do ser humano julgar, sentir e atuar por
ocasião da passagem da idade de oito para nove anos, e pela relação existente com
o currículo da Pedagogia Waldorf, que confere atenção especial a esta passagem.
Uma vez conhecida, esta passagem pode ajudar o adulto pai, mãe, cuidador,
terapeuta a compreenderem melhor não só a criança com quem convivem, mas
também a contribuírem para que esse processo de inserção do eu, reconhecimento
das limitações e desenvolvimento da voz interior, seja guiado, pois em sua
caminhada, mais um ser humano alcança e encontra a missão própria de sua vida.
17
3 PEDAGOGIA WALDORF
3.1 A ARTE COMO UMA PONTE
“A Pedagogia Waldorf nasceu em meio ao caos social e econômico que
seguiu a Primeira Guerra Mundial” como uma resposta de um esforço em construir
um novo futuro para a Europa de acordo com a Proposta Educacional das Escolas
Waldorf no Brasil, elaborada pela Federação das Escolas Waldorf no Brasil (1998, p.
8).
A Pedagogia Waldorf visualiza o ser humano como uma unidade harmônica
físico-anímico-espiritual e nesse princípio fundamenta toda a prática educativa
(1998, p. 13).
A arte na Pedagogia Waldorf é compreendida e vivida como uma ponte que
harmoniza e equilibra a relação entre o pensar, o sentir e o agir do ser humano. A
atividade artística é incorporada nas práticas diárias de uma escola que segue esta
abordagem, como um recurso didático fundamental. Algumas das atividades
artísticas vivenciadas pelas crianças Waldorf são: modelagem com cera de abelha e
argila; desenho com giz de cera, carvão, giz colorido de lousa, desenho de formas,
pintura com aquarela, pintura com terra, com giz pastel; escultura em madeira e
pedra; execução de instrumentos, orquestra e côro; euritmia (arte do movimento).
A Pedagogia Waldorf concebe o ser humano constituído de três veículos de
expressão: o corpo físico, as emoções e a mente, correspondendo respectivamente
a três funções: o atuar, o sentir e o pensar. Todos os três necessitando ser
educados com a mesma atenção, como uma meta ideal em direção à realização do
ser humano. Também, explicam-se em setênios as etapas do desenvolvimento humano, conhecidos desde tempos remotos em suas subetapas.
No primeiro setênio (de 0 a 7 anos) percebemos nas crianças o predomínio
do querer, do agir; elas se movimentam assim expressando alegria e descontentamento. É a maneira como entram em contato com o mundo sem distinguir o que é
interno e o que é externo. Ao final deste setênio, dependendo de vários fatores,
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talvez antes mesmo, acontece a queda dos dentes de leite e o aparecimento dos
dentes permanentes.
No segundo setênio (de 7 aos 14 anos) acontece o predomínio do sentir.
Agora a criança é mais sensível a tudo que a rodeia e, em consequência disso pode
ocorrer ao longo do período, algumas crises.
No terceiro setênio, (de 14 a 21 anos) se aprimora a capacidade do pensar.
A Dra. Gudrun Burkhard, médica escolar, especialista em oncologia,
denomina esta crise dos nove anos de “crise biográfica”, aquela que ocorre com
todo ser humano (2000). Por crises entendemos um mal estar indefinido; não
estamos doentes nem sãos, vamos amadurecendo. Algumas crises são bem
individuais, e outras que não são individuais. Ocorrem com todo ser humano.
Como estudiosa do assunto há anos, a autora desenvolve todo um sistema de
idades e seus espelhamentos em idades mais avançadas. Até os três primeiros
anos, a criança supera a gravidade da terra e aprende a andar; através do falar
nomeia os seres como Adão os nomeou pela primeira vez, e se torna o ser social
que é, comunicando-se e, “através do pensar, com suas primeiras associações de
idéias, com o desenvolvimento gradativo da memória, ela conquista o presente, o
passado e o futuro, as alturas e as profundezas”. (BURKHARD, 2000, p. 56).
Esta é a base de todo desenvolvimento posterior. Somente quando esta
tarefa orgânica está parcialmente cumprida, aparece o primeiro momento de
consciência em que a criança se percebe como individualidade própria, usando a
palavra “eu”. Joãozinho fala de si, não mais “Joãozinho quer”, mas sim “eu quero”.
“Eu” e o mundo antes desse acontecimento eram uma coisa só. Agora sou “eu”, e o
mundo está fora de mim. Os primeiros anos constituem a base da saúde corporal.
Segundo a autora aos sete anos acontece a maturidade escolar: deixar o
ambiente familiar e ir para a escola quando o corpo físico está maduro. Três
pequenas fases se sucedem: dos 7 aos 9, dos 9 aos 12 e dos 12 aos 14 anos,
(2000, p. 57).
Dos 7 aos 9, predomina mais a formação da cabeça. Especialmente o rosto
vai adquirindo sua expressão mais individual. Dos 9 aos 12, podemos verificar
especialmente o crescimento do tórax, bem como o desenvolvimento dos órgãos
nele contidos, coração e pulmão. Nessa idade, a relação pulso/respiração atinge o
equilíbrio do adulto na proporção de 4:1. (2000, p. 58).
19
Ao atingir os nove anos temos um novo momento de “vivência do eu” quando
este se torna mais presente ao nível de sentimento. Nesta época, a criança se sente
só, incompreendida, é crítica e necessita de bastante carinho para conseguir
relacionar-se socialmente. Geralmente também é a fase do primeiro “amor”, quase
sempre platônico, passando despercebido pelo outro. Agora o senso de justiça é
bem forte, por situações corriqueiras a criança se sente extremamente injustiçada e
prejudicada. O sentimento se torna mais individual. A criança vivencia pela primeira
vez, o “estar em casa” dentro de si. (2000, p 58).
Na época dos 12 aos 14 anos, a pré-puberdade, dá-se a grande fase do
alongamento dos membros, de crescimento longitudinal. Também aqui a imaginação
criativa se desenvolve e será a base do entusiasmo e da criatividade no setênio
entre 28 e 35 anos por conta do espelhamento.
Burkhard durante muitos anos viveu em São Paulo, onde fundou a Clínica
Tobias. Atualmente reside em Florianópolis, onde fundou a Clínica Vialis.
Desenvolveu um trabalho pioneiro sobre as leis gerais do desenvolvimento humano
denominado Biográfico, com vários livros publicados em várias línguas.
Seguem abaixo as palavras e vivência de uma professora Waldorf1 do terceiro
ano com crianças de oito para nove anos para um melhor entendimento do caminho
de evolução da humanidade sob a forma de mitos e linguagem simbólica
relacionado com esta passagem da biografia humana:
Chegar à Terra. Ser acolhido em seu seio e dar início à vida...
Adão e Eva saem do Paraíso e, em estado de sono, colhem do chão e se
abrigam com o que se lhes oferece. O mundo é bom!
Perder o sustento firme e seguro obriga a andar com os próprios pés. No
difícil começo, conquistas e tropeços nos primeiros passos. O corpo do homem...
Então vem Noé enfrentar o dilúvio. Construir uma casa, ainda flutuante, na
qual deve recolher-se. Ficar consigo mesmo. Naquele espaço interior aguarda a
mensagem divina... Enfim o céu se abre e se descortina o mundo novo! Um arco-íris
colore o céu, tingindo o sonho, a esperança no que há de vir. O mundo é belo!
Noé planta e prova da videira. Comunga com a terra. Estabelece-se outro
vínculo. Sentir-se separado do todo, mas pertencente a ele. A alma do homem...
1
VEIGA, Marta A. Agenda do Colégio Waldorf Micael em 2005.
20
Mais tarde, a nova arca, a Arca da Aliança, que porta a tábua de pedra com
os dez mandamentos recebidos por Moisés no Monte Sinai formaliza a união.
Estabiliza a relação, fincar raízes, buscar seu lugar, chegar à Terra Prometida! O
mundo é verdadeiro!
Erigir valores, estabelecer regras, formular e compreender leis. Acordar.
Pensar! O destino do homem...
Nove anos, passagem, rubicão. Atravessar divisores de águas!
Selar um primeiro pacto de união entre céus e terra, a partir da casa que se
quer erguer nesse mundo. Fincar estacas, sentir-se transformado e transformador.
Reconhecer o Paraíso, estabelecendo sua morada, com vontade de ser acolhido e
de acolher o que foi criado. Medo, insegurança, solidão, incertezas, sonhos...
Semente lançada ao grande desafio que se perpetua no maravilhoso caminho do
indivíduo, na senda da humanidade, germe de trabalho, da vivificante possibilidade
de, a partir de si, colocar a obra em prol da coletividade.
3.2 A PASSAGEM DO RUBICÃO
A passagem dos nove anos também é denominada pela Pedagogia Waldorf
de a passagem do Rubicão.
Rubicão é o antigo nome latino de um riacho na Itália setentrional. Na época
romana, corria para o Mar Adriático.
O rio ficou conhecido pelo fato de que o direito romano da época da
República proibia qualquer general romano de atravessá-lo com suas tropas. O
curso da água marcava então a divisa entre a província da Gália Cisalpina e o
território da cidade de Roma (posteriormente, a província da Itália).
O General Romano Julio César tomou uma decisão crucial: atravessar o rio
Rubicão com seu exército, transgredindo a lei do Senado que determinava o
licenciamento das tropas toda vez que o general de Roma entrasse na Itália pelo
norte. Este ato foi a declaração de guerra civil contra Pompéia, que detinha o poder
sobre Roma. Com as palavras alea jacta est (a sorte está lançada), César resolveu
voltar com seu exercito à cidade. Uma vez atravessado o Rubicão e já em terras
21
romanas, ele sabia que não tinha volta. Ou ele e seus soldados tomavam a cidade
ou Pompéia os destruiria. 2
Decorre deste fato histórico que atravessar o Rubicão é ultrapassar fronteiras,
defrontar-se com um caminho difícil e desconfortável. César, apesar disso,
atravessou o Rubicão. A frase “atravessar o Rubicão” passou a ser usada para
referir-se a qualquer pessoa que toma uma decisão arriscada, sem volta.
Como as crianças vivenciam esta passagem do Rubicão?
Koepke responde em seu livro “Encountering the Self” que “há um traço de
tristeza em seus olhos, tornam-se mais sensíveis, mais aware do mundo ao redor,
se sentem estranhos. Eles estão perplexos diante desta separação entre eles e o
mundo”, explica Koepke (1989, p. 78).
É nesta solidão que a criança se encontra e se torna aware do seu próprio eu
(1989, p.79).
Lievegoed também se pronuncia sobre esta fase dizendo “a criança vivencia
seu lado escuro” (1994, p. 65).
De repente, a criança sente medo no escuro. Receia do que pode estar
escondido embaixo da cama. A porta para o corredor precisa ficar aberta. Ela
procura livrar-se do medo que o mundo lhe causa, recorrendo a toda espécie de
evocações “mágicas”: nada poderá lhe acontecer se ela entrar no quarto tossindo,
ou se chegar até a sua cama sem pisar nas linhas do tapete, coisas assim.
A criança tornou-se crítica. As pessoas mais veneradas despencam ao mais
baixo nível. Sua crítica se dirige ao ambiente imediato. De repente, ela pode olhar
longa e seriamente para o adulto e dizer: “acho seu penteado completamente
absurdo”, sem saber de onde lhe vem tal ideia. Assim, a crítica vai espreitando por
toda parte, manchando a ingenuidade anterior.
Agora, a criança passa a ter um agudo senso de observação: desentendimentos entre os pais, mal percebidos antes, passam a ser notados e vivenciados
com muita tristeza.
É o caso do depoimento de uma mãe e sua filha com oito anos e meio que
visita o pai no fim de semana. A mãe agora, em um segundo casamento, recebe a
criança que chega triste. No dia seguinte, a mãe observa que a tristeza continua,
acompanhada de choro. Conversando com a criança, a mãe ouve o seguinte
2
Depoimento da professora Daiana R. Brigagão em agosto de 2005.
22
comentário: “Meu pai mente”. A criança costumava visitar o pai, mas só agora é que
começa a perceber seu comportamento e enxergar o outro lado do adulto.
O manto da infância foi rasgado e a polaridade “dentro – fora” se torna
realidade.
A criança vive, em atitudes de inconstância, um espírito de contrariedade
entre bem-estar e mal-estar. Tudo isso, porem, “da boca para fora” mais com o
sentimento do que por meio de atos. De um lado ela acha tudo “chato” e “maçante”,
e de outro sonha com experiências novas, com andanças “em lugares onde ninguém
esteve ainda”, com “brinquedos que ninguém tem”.
3.3 O PONTO CRUZ
A Pedagogia Waldorf salienta que aos nove anos de idade, a aprendizagem
não ocorre mais tão forte pela imitação, como era antes, nos três primeiros anos da
criança – a imitação de gestos, sons, impressões, reações, emoções até, também
pensamentos e a grande conquista do ser humano que é o andar ereto, pois em seu
entorno as pessoas andam eretas, verticalizando sua coluna vertebral e mantendo
sua cabeça equilibrada.
Eikenboom nos fala desta
estrutura e posição vertical do
corpo humano que nos dá como
seres humanos a habilidade de
orientação espacial e de nos
tornarmos conscientes do espaço
tridimensional.
Nesta
posição
vertical os olhos humanos focam
para combinar informação dos
órgãos
dos
sentidos
do
lado
esquerdo e do lado direito, o que
dá ao ser humano a posição única
no mundo da criação.
Figura 1: Representação das vias ópticas
23
Mamíferos como o cavalo e o cachorro têm seus olhos em cada lado das
suas cabeças. Até os gatos e corujas cujos olhos olham para frente, não focam
como os seres humanos. “Este foco dos olhos dá ao olhar a perspectiva
tridimensional. Com esta perspectiva tridimensional, a consciência do self se
desenvolve”. (EIKENBOOM, 2007, p. 06)
Vejamos a figura acima do trabalho “O Olho e a Visão” dos professores Milton
Ruiz Alves e Newton Kara José quando afirmam “o cérebro é capaz de fundir as
duas imagens em uma percepção visual única” (1996, p. 09).
Quanto ao ponto cruz no currículo da Pedagogia Waldorf é oportuno lembrar
a afirmação de Eikenboom quando se referia ao foco dos olhos que dá ao olhar a
perspectiva tridimensional e, com esta perspectiva, uma consciência do self se
desenvolve. A esta citação de Eikenboom, adiciona-se o trabalho dos professores
Milton Ruiz Alves e Newton Kara José - UNICAMP e FMSP - que afirmam “a
acuidade visual vai se aprimorando graças aos estímulos visuais e alcança níveis
iguais aos dos adultos ao redor dos 4 anos de idade; no entanto, a visão de cada
olho, assim como a visão binocular, não é uma capacidade inata, as funções visuais
estão plenamente desenvolvidas somente por volta dos 9 anos de idade”. (1996, p.
13)
Alves e Kara José esclarecem que as qualidades ópticas do olho são tais que
a imagem de um objeto situado longe do olho forma-se sobre a retina (fig. 1). Graças
ao poder convergente da córnea e do cristalino, quando o objeto aproxima-se do
olho, a acomodação intervém. A acomodação intervém mais, quanto mais próximo
do olho estiver o objeto. A luz ao chegar à retina, estimula a camada de cones e
bastonetes, originando ondas elétricas que se transmitem ao nervo óptico. O nervo
óptico atravessa a órbita e entra no cérebro, dirigindo-se à região responsável pela
visão (córtex occipital) onde se processa o fenômeno de formação das imagens. Os
autores explicam a representação das vias ópticas: cada olho recebe e emite uma
imagem; no entanto, quando fixamos um objeto nós o vemos como um só olho
(1996, p. 09).
Ao oferecer, em trabalhos manuais, o ponto cruz, estaria a Pedagogia Waldorf
dando à criança uma oportunidade para reforçar o amadurecimento do nervo ótico?
Uma vivência em que a criança de nove anos expressa seu momento? A celebração
e o coroamento da chegada do eu expresso na imagem binocular cruzada?
Possivelmente, as três alternativas.
24
Ao integrar em um trabalho plástico, a linguagem das cores e das formas,
como o bordar em ponto cruz, inclusive bordando o seu próprio nome, o
arteterapeuta propicia à criança vivenciar sua paisagem interior mesclada de
emoções de várias cores como reflexo da complexidade e da simplicidade do ser
humano.
De caráter pedagógico e terapêutico, a arteterapia disponibiliza diversos
recursos e materiais, um ambiente adequado e acolhedor, a contemplação de obras
de arte; com esta vivência sensorial ao sujeito é revelado aspectos do seu
emocional, antes desconhecidos, ampliando a percepção de Si mesmo.
25
4 A TOMADA DE CONSCIÊNCIA
4.1 O SENTIDO DO EU
“Como um dos pontos altos do desenvolvimento humano”, afirma Konig
(1985, p. 94), “surge a capacidade da criança para denominar a si mesma com a
palavra eu”.
À medida que a simpatia se desenvolve, adormecemos para dentro de outra
pessoa; enquanto que se a antipatia se desenvolve, nós despertamos.
Este processo do despertar só se realiza na época do primeiro período de
teimosia: antes do terceiro ano de vida, pela primeira vez, a criança começa a
defender-se do mundo circundante, antepondo antipaticamente sua própria vontade
a tudo que a rodeia – a criança agora quer fazer tudo sozinha – ela toma
consciência de si mesma.
A consciência do eu desenvolve-se, opondo-se. Conhecemos muitos
exemplos: “eu não quero banho” e depois, “eu não quero sair do banho”.
Este processo, porém possibilita que o comportamento da criança, até agora
tão “simpático”, passe a ser ambivalente, incluindo traços extremamente
“antipáticos” em suas vivências.
É nesta continua alternância que pode desenvolver-se o sentido do eu.
É uma fase perfeitamente positiva do desenvolvimento que ora tem início.
O sentido do eu necessita de um longo período de formação antes de estar
plenamente desenvolvido.
O tempo de formação do sentido do eu vai até mais ou menos o nono ano.
Com o nono ano esta paisagem muda radicalmente.
No bebê a cabeça é grande demais em relação ao resto do corpo.
Gradualmente esta desproporção se harmoniza. “Das formas pueris, surge uma
estrutura corporal harmônica. Esta forma corporal proporcional coincide com o
término da formação do sentido do eu.” (KONIG, 1985, p. 100) (grifo nosso).
26
Na sequência, os membros do corpo evolvem para figuras terrenas, como
afirma Konig “o ser em crescimento se entrega ao âmbito terreno, torna-se pesado,
difícil e preocupado com seu destino” (1985, p. 101).
“... através do sentido do eu o ser pode reconhecer o Outro como irmão.”
(KONIG, 1985, p. 101).
Quando Karl Konig se refere sobre os sentidos do eu, do sentido da
linguagem e do sentido do pensamento estamos diante de outra característica da
Pedagogia Waldorf conhecida como os doze sentidos. Albert Soesman em seu livro
“The Twelve Senses” os esclarece e exemplifica (1975); tão importantes são para o
trabalho arteterapêutico: sentido do tato, sentido do equilíbrio, sentido do
movimento, (propriocepção), sentido vital (do bem estar), sentido térmico, sentido do
olfato, paladar, visão, sentido da audição, sentido da linguagem, sentido do
pensamento e sentido do eu e, por conseguinte o sentido do outro. Este tema por si
só merece muitas outras páginas que se distancia do foco do presente trabalho.
Importante citar como o autor assim termina o seu trabalho sobre os doze
sentidos: “A terapia precisa começar com o sentido de gratidão e encantamento para
com o alimento e nutrição que são dados pela natureza, através dos doze sentidos,
para que possamos acordar para nós mesmos e, para as nossas responsabilidades
aqui na terra.” (1975, p. 161)
Koepke (1989) conta a história de Pedro nesta passagem de idade quando os
pais e a professora de classe se encontram para conversar sobre o novo
comportamento da criança. Desta conversa os pais reconhecem que uma falta de
equilíbrio na criança pode ser corrigida pela harmonia entre o pai e a mãe. A criança
vivencia isto como uma benção e principalmente, mais ainda agora, aos nove anos.
A partir deste encontro, a professora sentiu maior proximidade com os pais da
criança. Um tempo mais tarde, a professora faz com a classe uma casinha de
madeira. Quando estava quase pronta as crianças pedem para a professora fazer
também uma porta, pois do contrário não poderiam fechar a porta para ficarem
sozinhas lá dentro.
Os pais de Pedro depois relatam à professora que a criança estava diferente
ou o olhar dos pais estava diferente para com a criança ou, ainda, um pouco dos
dois.
A construção de uma miniatura de moradia – de uma casa – faz parte do
currículo da Pedagogia Waldorf para o terceiro ano. Paredes são levantadas, um
27
teto em cima delas e o lado de fora não tem tanta importância. Nesta atividade as
crianças vivenciam fazer o seu próprio espaço interno e esta experiência de espaço
é justamente o que as crianças estão procurando. Desta maneira, elas encontram o
que precisam: com a perspectiva tridimensional, uma outra consciência do self se
desenvolve.
4.2 CARREGO E SUPORTO UM EU
Célia Gago em seu relato “A pedra e seu simbolismo na vida e obra de Jung”
(2008, p. 24) traz as lembranças de Jung de um período próximo aos dez anos
quando se entregava “apaixonadamente a brinquedos de construção. Lembro-me,
com clareza, relata Jung, de que edificara casinhas e castelos, com portais e
abóbadas, usando garrafas como suporte; um pouco mais tarde, utilizei pedras
naturais e terra argilosa como argamassa.” (JUNG apud GAGO, 2008, p. 24) (grifo
nosso).
Pela primeira vez, a criança vivencia o que é estar em seu mundo – carrego
e suporto um eu dentro de mim – este sentimento vem de dentro para fora. Como
abrigar esta entidade?
Poderíamos afirmar que o eu e o adjacente Eu Superior pede uma morada?
Jung lembra que há uma diferença entre perfeição e inteireza: “A aspiração à
perfeição não só é legitima, como também e, mais ainda, uma característica inata do
ser humano”. (1990, p. 64)
Jung apresenta a ideia de que o indivíduo pode empenhar-se na busca da
perfeição, mas é obrigado a suportar, por assim dizer, o oposto do que intenciona,
em benefício de sua inteireza (1990, p. 65). Jung afirma que “só aquele que é
íntegro por experiência sabe o quanto o homem é insuportável para si mesmo”
“Árvore nenhuma”, afirma Jung, “cresce em direção ao céu, se suas raízes
também não se estenderem até o inferno” (1990, p. 41)
“Como o si-mesmo psicológico é um conceito transcendente, pelo fato de
exprimir a soma dos conteúdos conscientes e inconscientes, ele só pode ser
descrito sob a forma de uma antinomia.” (1990, p. 58)
Jung nos lembra que,
28
... já não se faz mais necessário que se mantenha a separação entre mau,
ctônico, material de um lado e bom, espiritual, de outro, pois ambos
caracterizam o si-mesmo psicológico como uma totalidade; ele deve incluir
os aspectos luminosos e também os obscuros, da mesma forma que o simesmo abrange, sem dúvida, o aspecto masculino e o aspecto feminino. É
por este motivo que a individuação é um “mysterium conjunctionis” [mistério
de unificação] dado que o si-mesmo é percebido como uma união nupcial
de duas metades antagônicas (1990, p. 59).
A inteireza implica incluir luz e escuridão, alegrias e medos, vergonha e raiva.
“Vergonha e medo são como as fronteiras da consciência”. (KONIG, 2006, p.
73). Para o autor, medo, vergonha e ira são bons amigos. A ira caminha diante de
nós, guiando os julgamentos morais. De um lado o medo e, do outro lado, a
vergonha. “Eles são os bons servidores do Eu Superior, prestam auxílio na medida
em que o eu inferior necessita”, continua Konig (2006, p. 81).
Nosso ser inconsciente abriga esses três companheiros. A própria profundeza
é preenchida com a força da ansiedade. Agora, podemos imaginar nossa
individualidade, nosso eu inferior, “guiado pela ira, sustentado pelo medo e a
vergonha e pisando no solo da ansiedade” (KONIG, 2006, p. 81). Essas são as
quatro grandes emoções que acompanham cada um de nós ao longo da vida na
Terra. Elas se originaram no momento da Queda.
Depois que Adão e Eva comeram o fruto da Árvore do Conhecimento,
perceberam sua nudez, de acordo com o mito da criação.
Konig enfatiza,
Corar de vergonha significa ficar face a face com o próprio eu. A súbita
percepção que acometeu Adão e Eva está continuamente presente em
cada um de nós. Quando Adão e Eva deixaram o Paraíso, foram
acompanhados pelo medo e a vergonha e, a ira caminhou diante deles. Os
filhos de Adão e Eva aprenderam a entender que o Paraíso será novamente
acessível quando suas almas se transformarem. Quando a ira tiver se
transformado em amor, a vergonha tiver se tornado esperança e, o medo
tiver se metamorfoseado em confiança. As imagens aparecem: a alma
começa a falar de si, a nomear-se, a descrever seu ser. A alma venera todo
o vir a ser do homem. (2006, p. 82). (grifo nosso)
Ao iniciar este trabalho, a pesquisadora tinha como proposta responder
algumas perguntas e esta é a resposta a uma delas, pois a Pedagogia Waldorf traça
um paralelo entre esta passagem de idade dos nove anos e a saída do Paraíso
relatado no mito da criação.
29
Konig (2006) afirma que a súbita percepção que acometeu Adão e Eva na
força deste mito está presente em cada um de nós e a Pedagogia Waldorf coloca a
presença do mito para explicar esta passagem de idade - o portal dos nove anos.
30
5. CONTRIBUIÇÕES DA ARTETERAPIA
5.1 CONSCIÊNCIA, VIVÊNCIA E REALIZAÇÃO DO EU
Como amenizar este período dos nove anos desde seu início?
Lievegoed responde que, “antes de desmoronar, o respeito dedicado a uma
pessoa pode ser dirigido a algo que transcenda o âmbito pessoal. A criança pode
constatar que o próprio adulto venerado reconhece uma autoridade superior que
fundamenta sua existência” (1994, p. 67).
A criança pode vir a conhecer a autoridade da sua autoridade.
A criança durante este tempo difícil pode chegar a uma conexão com seu Eu
Superior, uma espécie de conhecimento que permanecerá ao longo do seu processo
de tomada de consciência integrada ao se aproximar, por exemplo, de uma outra
dimensão nas palavras encontradas no Velho Testamento: “Minha casa é a casa do
Senhor e para sempre o há de ser. O Senhor é meu Pastor”. (BÍBLIA SAGRADA,
Salmo 23, v. 6).
Desde pequena, a criança, entre os três e os seis anos, ao ir adquirindo a
consciência do eu vai edificando uma imagem provisória do mundo.
Como ativa que é - ela sente o impulso de também exteriorizar essa imagem.
É no desenho que a criança pequena projeta para fora sua imagem interna.
Ela rabisca garatujas, círculos, na fase seguinte, adiciona os traços retos, e, desta
forma, são vivenciados cabeça, tronco e membros.
“Desenhar” o ser humano é desenhar ela mesma em seu amadurecimento e
movimentos primários: erguendo a cabeça, o tronco e erguendo-se em pé,
“sustentando-se com os membros inferiores para liberar as mãos.” (BURKHARD,
2000, p. 56).
O começo da vivência do eu coincide com a crise dos nove anos. Mais uma
vez, a nascente experiência do eu tenta uma ação contra o mundo ambiente. Desta
vez, porém, isso ocorre na área do sentir. Surge do íntimo uma crítica aos colegas,
aos adultos, enfim, as pessoas ao redor.
31
A relação com o próximo pode ser sentida como algo dramático. Esse drama
marca o conflito entre a relação subjetiva e objetiva do eu com o mundo exterior.
Desenhar é para a criança pequena, o mesmo que o diário íntimo o é nesta fase de
expressão dos nove anos quando ela aprecia também as artes musical e dramática.
É no diário que se revela a evolução da vivência do eu.
Mais tarde, surge o expressar-se de forma poética.
Lievegoed traça um paralelo entre o terceiro ano de vida (hoje em dia, cada
vez mais cedo), o nono e, mais tarde, o décimo oitavo ano de vida.
“Depois da tomada de consciência do eu e da vivência do eu, nasce o
impulso para se expressar no mundo o que vem a ocorrer anos mais tarde, por meio
do que a pessoa produz no mundo, ou seja, sua atividade profissional e orientação
da própria biografia.” (1994, p. 95).
A realização do eu no início, em torno dos dezoito anos, é sempre
acompanhada de um idealismo. Somente bem mais tarde, ele descobre que existe
uma maneira mais interiorizada de realizar o eu.
A realização do eu começa quando a pessoa dirige a vontade de seu eu
para o íntimo, começando a trabalhar sobre si mesmo.
Isto ocorre quando a pessoa assume o seu próprio processo de
autoeducação e autodesenvolvimento interior.
“A realização do eu é a tarefa mais sagrada de uma vida humana.”
(LIEVEGOED, 1994, p. 98).
A realização do eu dirige-se à vida social.
“Depois de desenhar, quando pequena, e expressar-se criativamente de
várias maneiras, mais tarde, a pessoa pode tornar-se um criador social ao tecer o
tecido social”, conclui Lievegoed (1994, p. 99) (grifo do autor).
5.2 POSTURA DO ADULTO
Nem todos os adultos alegram-se com o despertar do eu na criança.
Quanto à postura dos pais, cuidadores e adultos uma compreensão do que
está acontecendo com a criança muito contribui, pois evita preocupação
desnecessária do adulto dando o suporte que a criança necessita.
32
Dependendo do temperamento da criança este acordar para o mundo pode
ser como uma surpresa quieta ou uma crítica aguda.
Os laços da influência do lar se afrouxam em certa medida e a criança entra
num período de insegurança e medo quando surgem perguntas:
Quem são meus pais? Quem me assegura que eles o são realmente? Quem
são meus mestres? O que lhes dá o direito de serem meus professores? Eles
realmente sabem tudo?
Essas perguntas apontam para um eu que não sente mais a antiga
ingenuidade com relação a si mesmo e com o mundo.
A relação com a morte se transforma. A criança pequena às vezes causa
espanto pela conformidade com a morte. Quem morreu está morto e “está junto com
os anjinhos”.
Na presente idade, porém, pela primeira vez, a morte é vivenciada com outra
ponderação.
É um tempo quando a morte e imortalidade tornam-se íntimos e se
aproximam da consciência da criança.
Rudolf Treichler em seu trabalho “Biografia e Psique”, afirma que,
...numa visão de conjunto, a vivência do isolamento é característica – uma
vivência que costuma associar-se ao luto. Tanto mais importante é então a
autoridade amorosa dos educadores, dos pais e cuidadores, dirigida ao
coração da criança, quando esta ameaça se afundar nas profundezas de
seu organismo. É a partir do coração que a reunião com o mundo é
novamente reatada, sendo oferecido um novo apoio ao eu, que no entanto
tem que ser assumido a partir do íntimo (1988, p. 30).
Uma professora Waldorf3 de uma classe de crianças com esta idade (em
2009) assim relata: “Estou agora, na época e contexto da história dos Dez
Mandamentos, que reforçam a imagem de que os homens ainda precisam de um ser
maior para conduzi-los no mundo. A imagem dos Dez Mandamentos ajuda a mostrar
que elas – as crianças - ainda precisam de algo superior para guiá-las e que podem
confiar nisso, sem a necessidade de tantas explicações”.
Para dar equilíbrio à criança, pais, cuidadores e profissionais - juntos compreendendo e atendendo as necessidades reais dela, entendem que esta fase
passará, pois a criança aos dez anos já é mais harmoniosa e desta forma constitui
um bom intervalo entre esta crise dos nove anos e a adolescência. Permitir que a
3
Depoimento da Professora Analia Calmon em agosto de 2009.
33
criança tenha sua vida emocional sem tentar “consertá-la”, respeitando sua
necessidade de privacidade, tolerando a distância, o seu ritmo e o seu tempo,
diferente daqueles do adulto, as relações vão mudando e se acomodando até se
completarem. O importante é reafirmar que a criança ainda é amada.
A criança não mais aceita cegamente a autoridade do adulto, mas estabelece
uma nova relação de respeito à autoridade de outros adultos em sua vida.
Conversar, apoiar e incentivar a atividade artística individual como, por
exemplo, escrever poesia, manter um diário, desenhar, pintar, tocar um instrumento,
modelagem com cera de abelha, e bordar o ponto cruz.
Criar oportunidades para construir coisas, visitar uma fazenda, cultivar
plantas, fazer coisas reais e verdadeiras antes de incentivar uma tecnologia de
computadores, vídeos games e internet que é mais apropriada à adolescência.
Alimentar a criança com histórias que ilustram a interconexão entre seus atos e as
consequências inevitáveis. Do Velho Testamento, a história de José com seu manto
de muitas cores traz - em seu bojo - este elemento de sonho emoldurando seu
destino e a paciência que necessitou para ver o sonho se manifestar. Não só as
histórias do Velho Testamento espelham este estado interior da criança de nove
anos, mas também os Mitos de Criação, que traçam um paralelo com esta
experiência íntima da criança ao sair do paraíso da infância, ao adquirir uma nova
consciência de si própria, pois vários mitos, de diferentes culturas, descrevem esta
passagem.
Em seu trabalho “Mitos de Criação” Franz relata um mito esquimó sobre o ser
Tulungersaq, ou Pai Corvo, não como uma ave comum, mas um poder sagrado,
criador de vida, e, de todos os outros seres.
Essa é uma linda história que mostra que o processo de despertar para uma
percepção de realidade é parecido com o estado de ânimo de quem sai de
um estado de inconsciência. Pai Corvo se torna lentamente consciente e à
luz dessa consciência, a realidade começa, ao mesmo tempo, a existir.
(2003, p. 38-39).
Franz lembra também, do mito de criação dos Winnebago “cujo primeiro
passo é despertar para uma percepção consciente do mundo externo” (2003, p. 40).
34
5.3 RECURSOS ARTETERAPÊUTICOS
Como os recursos arteterapêuticos dão suporte para que a criança possa
atravessar este portal?
Desde os primórdios até os dias atuais, quando entramos em contato com
qualquer manifestação artística, estamos diante de manifestações de costumes,
cultura, língua, religião, política, enfim, temas ligados à vida do ser humano, da
história da humanidade, da qual fazemos parte. Ao caminharmos no tempo, bem lá
para trás, as pinturas nas cavernas já delineavam uma ponte expressiva entre o
dentro e o fora, entre o espaço protegido e interno para um outro espaço – o espaço
do mundo cheio de desafios e adversidades.
Desde tempos longínquos, as manifestações artísticas são ao mesmo tempo,
expressões do pluralismo e da singularidade do indivíduo. Na Grécia Antiga, a arte
já era reconhecida como um recurso terapêutico que revela, transforma e colabora
na construção de seres mais criativos e saudáveis.
A contribuição da arteterapia, hoje, continua a acontecer na prevenção,
promoção e geração de saúde.
O arteterapeuta há que trabalhar-se em sua própria terapia, em contínuo
processo e persistente empenho de autoconhecimento a fim de poder perceber
núcleos saudáveis em seu cliente e poder acolher, alimentar, acreditar na pausa, no
silêncio e na transformação.
O arteterapeuta cuida para que sejam criadas condições de superação das
necessidades do seu cliente para acontecer a passagem, o re-significado e a
desejada integração.
Como Paes de Almeida afirma em “Corpo Poético”,
...a conjunctio é obra do esforço pessoal e do imponderável. A conjunctio é
uma experiência de integração e não de perfeição, experiência esta que não
pode ser congelada. Ela deve ser renovada continuamente para se manter
viva. Nós não podemos possuir a conjunctio, podemos só facilitar a sua
ocorrência. (2009, p. 147).
Enquanto processo, a arteterapia facilita o processo de expressão, enquanto
expressão plástica é um meio de estabelecer uma comunicação. Para Medeiros e
Branco “a arteterapia permite ao arteterapeuta observar o paciente enquanto vive
uma experiência nova” (2008, p. 23).
35
Para as autoras, a arteterapia “atua como função poética, como facilitadora de
expressão por meio da construção plástica com texturas, formas, cores e símbolos
projetados pelo inconsciente infantil” (2008, p. 26).
Para Selma Ciornai, arteterapeutas funcionam como guias, facilitadores e
companheiros de busca, sugerindo experimentos que possam ajudar e revelar
realidades interiores e descobrir novos caminhos e direções, “acreditando que as
pessoas podem ser agentes da própria saúde e de seus processos de crescimento”
(2004, p. 09).
Ao compreender este momento da passagem dos nove anos no desenvolvimento do ser humano, a ação do arteterapeuta contribui para que o indivíduo
recupere na sua criança interior o fio dourado emaranhado que ficou lá trás.
Philippini nos lembra que “em arteterapia o trajeto é marcado por símbolos
particulares que assinalam, informam e definem sobre os estágios da jornada de
individuação de cada um” (2008, p. 15).
Cabe ao arteterapeuta estar familiarizado com os estágios da jornada de
individuação do ser humano.
Uma atitude terapêutica prevê a escolha de materiais expressivos, a
adequação do ambiente arteterapêutico a um determinado cliente e, no caso de uma
criança pela passagem dos oito aos nove anos, dentre as inúmeras possibilidades
criativas disponíveis ao arteterapeuta, aqui são oferecidas algumas sugestões que
fazem parte da composição desta proposta de pesquisa:
- desenhar e pintar;
- trabalhar com as mãos;
- trabalhar pés e mãos com desenho de formas em uma superfície de areia;
- bordar em ponto cruz;
- fazer corantes naturais e descobrir a nuance das cores;
- fazer nós com fios, barbantes e cordões (quando ocorrem os cruzamentos
dos fios);
- tecer;
- utilizar ferramentas;
- conhecer as diversas profissões;
- trabalhar a terra, jardinagem;
- brincar com jogos de roda e correr (a casa do rato e o gato);
- brincar de construir castelos com areia;
36
- brincar com jogos de construção;
- conhecer algumas histórias do Velho Testamento;
- tomar conhecimento de mitos de criação;
- pintar a Gênesis – os sete dias da Criação, as sete manhãs, a paisagem e a
geografia de cada dia, os seres criados;
- escrever um diário;
- colagem (em terceira dimensão) com folhas de revistas, jornal, tecido,
papelão, palitos de sorvete; construir e colorir a arca de Noé, uma casa ainda que
flutuante, onde se recolher. Também barcos, grutas, cavernas, túmulos, areia,
pedras, tocas, berços, mandalas, pirâmides, caixas, abrigos;
- trabalhar o tridimensional erguendo paredes com rolinhos e placas de argila
e massinha, enfim, construir um modelo de uma morada, quer seja, uma casa na
árvore, iglu, oca, yurt (tenda de peles dos mongóis) não importa de qual material,
cultura ou povo – importa que seja um abrigo para acolher externamente a nova
entidade nascente internamente.
37
6 ESTUDO DE CASO
6.1 METODOLOGIA
A condução do trabalho arteterapêutico do estágio supervisionado seguiu as
etapas da Oficina Criativa® segundo a metodologia da Dra. Cristina Dias
Allessandrini.
Para a autora, “a Oficina Criativa é o trabalho de atendimento” cuja composição inclui várias etapas, cada ação vivida em todo seu objetivo, mas
encadeadas para que o participante – uma vez aceitando o convite do arteterapeuta
- vivencie seu “processo de descoberta, expressão e elaboração de conteúdos
pessoais e significativos” (1996, p. 41).
O processo tem início com a etapa da Sensibilização em que o participante
apóia-se na percepção de seu eu e do seu entorno para estabelecer uma relação de
contato consigo mesmo, com seu mundo interior, com seu ser. Para perceber-se,
faz-se necessário andar pelos caminhos do sensório, de modo a proporcionar ao
participante uma dinâmica interna de integração sensorial, respeitando o indivíduo
em seu ritmo e estilo de como apreende o mundo.
Na etapa seguinte – Expressão Livre – através de técnicas e materiais
artísticos como aquarela, bordado, tecidos, bonecos, parafina, fios, barbantes,
massinha, sementes, pedras, argila, areia, papel, construção com jornal, revistas,
sucata, o sentimento se adensa e corporifica, potencializando-se para uma nova
ação diversificada.
Na sequência, a etapa - Elaboração da Expressão – permite ao participante
aprimorar, “re-elaborar”, ainda na perspectiva da arte e da representação não-verbal,
aqueles conteúdos recolhidos nas etapas anteriores. Para Allessandrini, figuras e
formas ganham novos contornos, linhas e cores. Esta etapa é de máximo valor
quando o participante manifesta um empenho em ser “único e criativo” para deixar
mais claro seu conteúdo. (1996, p. 43)
A autora propõe como etapa seguinte a Transposição para a linguagem
verbal para, de um outro ângulo, com uma outra linguagem, “re-significar” o
38
processo, sugerindo a criação de mensagens e textos. Desta forma, trabalha-se a
estruturação e sistematização do pensamento, trabalha-se o nível trans – uma outra
dimensão ampliada da experiência até agora vivida. (1996, p. 43)
Na etapa final – Avaliação – acontece a distância reflexiva, quando o
participante “re-vê” o que envolve o conjunto de informações permitindo distinguir os
processos significativos.
“As Oficinas Criativas, as quais propõem um trabalho integrativo entre
linguagens não-verbais e verbais, permitem a concretização de uma imagem interna
significativa do indivíduo, fazendo com que aflore seu conteúdo simbólico” afirma
Allessandrini (1996, p. 56).
“A descoberta de um fazer criativo surpreende aquele que faz, pois muitas
vezes ele se percebe capaz de realizar o novo, de dar um corpo a sua idéia, de
apresentá-la com um colorido próprio, representando simbolicamente o que lhe é tão
precioso.” (1996, p. 49)
“Enfim, a construção e a elaboração de projetos através da arte se dão da
mesma maneira como o indivíduo constrói sua aprendizagem ao longo da vida.”
(1996, p. 46)
6.2 TRABALHO ARTETERAPÊUTICO DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO
As etapas da Oficina Criativa® (ALLESSANDRINI, 1996) foram essenciais
para dar estrutura ao trabalho arteterapêutico realizado no estágio supervisionado.
As próprias crianças sentem segurança e menos ansiedade quando sabem da
sequência das atividades de cada etapa.
A seguir, o relato de um recorte do trabalho arteterapêutico realizado
seguindo as etapas do processo de Oficina Criativa®.
O objetivo do trabalho arteterapêutico desenvolvido pela pesquisadora neste
estágio supervisionado foi proporcionar vivências de arteterapia com a presença
significativa do arteterapeuta em quem as crianças pudessem confiar e, promover
oportunidades para que expressassem de uma maneira criativa seu momento
biográfico, pois atravessar o umbral dos nove anos – constitui um dos momentos
iniciais da integração da identidade própria do self.
39
Os encontros aconteceram nas dependências de uma associação comunitária
na zona oeste do município de São Paulo, no estado de São Paulo, associação esta
que atende uma população de baixa renda onde as crianças são alunos de uma
escola pública e apresentam problemas de baixa estima.
Durante o período de dois meses, com uma sessão de atendimento por
semana, o vínculo com a arteterapeuta foi se fortalecendo com três crianças –
meninos de 8 e 9 anos, vínculo este de confiança que se estendeu também à mãe
de uma das crianças.
No ambiente arteterapêutico – uma sala com mesa e cadeiras e uma janela
que permitia a entrada do sol da manhã – a arteterapeuta disponibilizou um cobertor
e tecidos macios.
Nesta sessão, como nas demais, logo na chegada, as crianças são recebidas
com um aperto de mão e um cumprimento caloroso, olho no olho, pois o sentido do
tato também coloca limites, diferenciando o que acontece lá fora do que acontece
aqui dentro do espaço arteterapêutico, conforme explicado neste trabalho
anteriormente quanto aos doze sentidos.
Seguindo
a
primeira
etapa
das
Oficinas
Criativas®,
denominada
sensibilização, por ocasião desta sessão de atendimento, a arteterapeuta faz a
“chamada” pressionando leve e firmemente as articulações dos braços, depois dos
ombros da criança, ao mesmo tempo em que fala o nome da criança e ela, a
criança, responde verbalmente “presente”.
Aqui, novamente o sentido do tato é trabalhado colocando limites e
diferenciando espaços lá fora e aqui dentro. O trabalho corporal é direcionado a
cada criança para que possa ser vivenciado o contato com o próprio corpo e o
sentido do Outro.
Na segunda etapa - expressão livre – trabalhando livremente a percepção
tátil, com o cobertor já estendido no chão as crianças se esparramam e, descalças,
sentem a maciez do tecido na planta dos pés. Vários outros tecidos estavam
disponíveis com os quais os três participantes se envolviam. Os três meninos
saboreavam a maciez dos tecidos na pele vivenciando o sentido do tato procurando
e encontrando soluções para um projeto comum, que surgiu a partir deles mesmos,
logo a partir da segunda sessão de atendimento, que foi erguer uma cabaninha.
40
Foram oferecidas condições para a criação espontânea pela via não verbal
(se bem que foram ouvidas exclamações das crianças como “que da hora”, “que
legal”).
Em seguida, a arteterapeuta vai relembrando, com as crianças, o momento
em que as atividades foram concluídas na sessão anterior. Foi quando as crianças
resolveram construir um castelo na areia – que era o cobertor disponibilizado no
chão – já que pela janela entrava o sol da manhã e a situação as remeteu à praia.
Quem mora no castelo? As crianças vão se lembrando do que aconteceu naquela
sessão em que junto com o rei, elas estavam compondo a família do rei: a rainha, a
princesa, o príncipe; os ajudantes, cozinheiro, costureiro, sapateiro, os guardas para
defendê-lo; e agora, os amigos vão chegando para a festa de aniversário do rei.
Com as crianças já situadas no contexto da sessão anterior e para dar
continuidade a esta, a arteterapeuta estende uma corda no chão e, juntos, vão se
lembrando da festa de aniversário do rei e dos presentes que o rei ganhou. Na
sequência, nesta sessão de atendimento, para animar a festa de aniversário do rei,
as crianças se apresentam como equilibristas que andam em cima da corda com
saquinhos de arroz em cima da cabeça e outros saquinhos nas mãos, estando os
braços estendidos. Depois, cada criança cria uma expressão que representa um
presente para o rei. A arteterapeuta pergunta se o rei está gostando das
apresentações e cada criança, uma de cada vez, é o rei, e, este bate palmas, pois
os números apresentados foram de seu agrado.
Nesta etapa, foram trabalhados os sentidos: movimento, equilíbrio, tato,
propriocepção, audição, visão, sentido da linguagem, sentido térmico, sentido do
bem-estar, sentido do pensamento, sentido vital, do eu e sentido do outro.
Na elaboração da expressão - as crianças são conduzidas à mesa para
desenharem o castelo e a festa de aniversário do rei.
Cada criança desenha seu castelo, com sua cor escolhida, com portões,
correntes, janela, torres, escada e o entorno com mar e barco, pois o castelo estava
em uma ilha.
Também, confeccionam presentes para o rei com sucata e papel de seda
colorido e barquinhos de papel dobrado. Allessandrini sugere um trabalho
desenvolvido ao nível da expressão plástica (1996, p. 119).
Na etapa transposição para a linguagem verbal as crianças cantam e
apreciam muito o cantar em grupo de mãos dadas. Elas ainda não dominam a
41
escrita, mas o canto em roda circular é muito significativo e acolhedor com um
sentimento de pertença ao grupo, pois o círculo é uma mandala que remete a um
efeito integrador.
Na etapa seguinte – avaliação - as crianças, em roda, fazem a retrospectiva
da sessão, falam do que foi vivenciado e do que mais gostaram.
Ao trabalhar vários sentidos, a vivência da integração sensorial acontece uma consciência espacial interna tem a oportunidade de ser preenchida e a criança
está contente no sentido de estar/ter um conteúdo – ou seja, preenchida.
“O objetivo da vivência de Oficina Criativa é oferecer ao sujeito a
oportunidade de experienciar o preenchimento de um vazio.” (ALLESSANDRINI,
1999, p. 108).
Como bem afirma a autora “crianças com dificuldades devem poder vivenciar
situações de preenchimento que propiciem um reequilíbrio interno cognitivo e afetivo
a partir do fazer artístico espontâneo” (1996, p. 59).
Desta forma, as crianças saem da sessão de arteterapia, bem contentes e
com seus pares também; desejando repetir, nas sessões seguintes, o sentido do
bem-estar vivenciado consigo mesmo e com o grupo.
Dentro deste contexto de trabalho arteterapêutico embasado em um viés da
Pedagogia Waldorf - que dá especial atenção a este momento biográfico do ser
humano - é importante citar Brooking-Payne4 quando fala: “um início do que será a
puberdade lá na frente, quando o adulto-guia pode proporcionar uma nova estrutura
emocional e segurança – um novo “teto” onde ela possa confiar e crescer”.
Ainda sobre o trabalho do estágio supervisionado, vale citar a escolha pela
cor rosa vivo – magenta – pelos meninos, por ocasião da escolha da cor do papel de
seda, dentre outras cores disponíveis em cima da mesa.
De acordo com Liane Collot d‟Herbois, magenta é a cor que pode ser vista por
um curto período de tempo nas nuvens, “bem no início da manhã e no pôr do sol”
(2000, p. 72). Collot diz que magenta tem a qualidade de dar suporte à alma – uma
das cores que mais curam; além de a cor magenta ser aquela que integra todo o
organismo dando equilíbrio e harmonia.
Imagens que ficaram deste trabalho arteterapêutico com os três meninos:
4
Disponível em: www.thechildtoday.com. Acesso em 15 ago. 2009.
42
- deitados no cobertor estendido no chão e o sol entrando pela janela: “Parece
que estamos na praia”; “Vamos fazer um castelo de areia? Com rei e tudo“!
- crianças engajadas na criação dos personagens presentes na festa de
aniversário do rei: o malabarista, o equilibrista, outra criança se vira de cabeça para
baixo encostando-se na parede, para agradar o rei;
- durante a colagem: o convívio saudável dos pares entre si: “olha que lindo,
pega esse cachorrinho aí”;
- a alegria da criança ao aprender a cantar: “quem me ensinou a nadar”...
- a criança se expressando: “vou desenhar a família do peixinho e sua
casinha”.
Nesse último caso, mais uma vez, a criança expressa seu momento, ou seja,
“uma casa para o peixinho”.
Durante o período de atendimento, constatou-se o bem-estar que as crianças
sentiram, com o recurso encontrado a partir dos tecidos e as cadeiras, ao erguerem
a cabaninha – atividade a que se dedicavam espontaneamente em cada uma das
sessões de atendimento, logo a partir da segunda.
As crianças escolhem fazer a construção de uma miniatura de moradia –
elas dispõem os tecidos em cima das cadeiras - um teto em cima delas - nesta
atividade as crianças vivenciam o próprio espaço interno: com a perspectiva
tridimensional, uma outra consciência do self se desenvolve.
O todo deste conjunto de sessões de atendimento contribuiu para que as
crianças expressassem o seu momento de uma maneira significativa e prazerosa.
Para a pesquisadora foi um rico período para perceber núcleos saudáveis,
acolher a infância, alimentar o “espaço transicional” com a arteterapia - uma grande
aliada.
Uma atitude de gratidão permeia esta oportunidade de trabalhar o olhar
arteterapêutico que parece uma boa postura perante a vida: acolher, olhar nos
olhos, fazer perguntas, ouvir, criar conexões neuronais, disponibilizar condições e
materiais, possibilitar que o outro tome consciência de sua grandeza, acreditar na
pausa e no silêncio, na interligação entre soma e psique, incluir o Ser e o Não Ser –
tudo junto, aqui e agora - e, conviver tendo consciência da presença significativa de
Si mesmo e do Self do Outro para que “entre as duas criaturas” - um milagro
pequeño - aconteça (ARRIEN, 1994).
43
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consta do presente trabalho, histórias que fazem parte do currículo da
Pedagogia Waldorf que são aquelas, algumas já mencionadas, do Antigo
Testamento que introduzem o ser humano desta idade ao universo das escolhas de
suas ações e as conseqüências de suas ações. Além do “João de Ferro”, nos
anexos, encontra-se “A menina da Lanterna” que, entre outras muitas histórias,
ajudam a criança a transpor este limiar dos nove anos preparando o substrato
simbólico, por sua relação com os pólos consciência – inconsciência, e, caminhando
para uma atitude integradora, atitude essa que pode capacitar o ser humano a
buscar a coragem de ser ele mesmo.
Desde os primórdios, a história é um espelho que reflete o contador.
Bem afirma Guttmann, “as histórias, como a arte em geral, trazem imagens
que se passam dentro de nós, que refletem a alma de nossa realidade humana, com
nossos valores, buscas, conflitos e necessidades. Elas atualizam as dimensões
pessoais de cada um, possibilitando a consciência e a transformação” (2004, p.
259).
Contar histórias é uma atitude saudável.
Um profissional da área da saúde - com uma determinada cosmovisão do ser
humano - pode receitar não só medicamentos, mas também, um conto de fadas
para ser lido todas as noites antes de dormir, por um período de tempo, dada a
natureza do conto e o momento que a pessoa está vivenciando. Desta forma,
cuidamos das imagens que vão habitar o imaginário de uma pessoa quando ela se
recolhe para um sono bom que restaure suas forças físicas, emocionais e
espirituais. Uma pessoa pode ser uma criança, um jovem, um adulto ou um idoso,
pois contar histórias não se restringe a uma determinada idade. Contar contos de
fada para uma criança em crescimento constitui um alimento para sua alma. Ora,
seus órgãos estão em formação e as imagens que ela apreende deste mundo
permeiam o seu organismo vivo, ou seja, imagens do cotidiano, imagens da
televisão, imagens do convívio familiar. Imagens estas que tanto podem ser as
44
alimentadoras como as imagens devastadoras. Tal é o cuidado que devemos ter ao
escolher para quem, quais histórias e quais imagens.
Contar histórias é uma arte dos dias de ontem para revitalizar os recursos
humanos de hoje.
Histórias são pontes; hoje, vários profissionais, cada vez mais, trabalham com
esta cosmovisão multidisciplinar.
Quando focamos alguma coisa com só um olho, nós temos meramente uma
visão monocular. Somos incapazes de perceber profundidade.
Profundidade "aparece" quando usamos os dois olhos juntos. É a mesma
coisa com o conhecimento: é necessária uma justaposição, uma integração e um
insight de várias disciplinas.
A arte pode ser a segunda lente para se olhar para dentro das coisas.
“Uma participação ativa com as artes estimula mentes, emoções e
habilidades sociais. Compartilhando formas artísticas somos convidados a re-criar
padrões, habilidades, interações”. (VANGUNDY& NAIMAN, 2007, p. 19).
Por trás de uma história há uma estrutura e dentro desta estrutura estão os
objetos, os animais, as canções, as mais diferentes personagens, as atitudes, a
constelação familiar, as paisagens, os ciclos da criação, as estações da natureza, as
polaridades, as cores, os números que traduzem a complexidade e ao mesmo
tempo, a simplicidade da unidade do ser humano.
A história veste uma cosmovisão, uma estrutura orgânica, um todo integrado.
Como é importante não retirar detalhes preciosos das histórias: os detalhes
contêm ensinamentos milenares – símbolos e metáforas - que pertencem ao acervo
cultural da humanidade.
Hoje mais do nunca urge cuidar da ecologia da linguagem!
A tradição de contar histórias vem de muito longe e é conhecida por muitas
culturas como uma experiência vital para a saúde dos indivíduos, da comunidade e
do ambiente. As imagens curam tal seu poder transformador.
Quanto à reflexão sobre o conto João de Ferro mencionado logo no início do
trabalho, acrescenta-se:
A bola dourada nos lembra aquela unidade da personalidade que fomos
quando criança: uma espécie de brilho, de totalidade, de inteireza, antes de
nos repartimos em masculino e feminino, rico e pobre, ruim ou bom, limpo e
sujo. Como o sol, a bola dourada esparrama a energia radiante que vem de
dentro para fora. (BLY, 1997, p. 07)
45
Assim, Robert Bly nos fala desta criança da história João de Ferro. “Todos
nós, meninos ou meninas, perdemos alguma coisa em torno da idade de oito anos.
Não importa se homens ou mulheres, pois uma vez perdida a bola dourada, todos
vão passar o resto de suas vidas tentando consegui-la de volta” (1997, p. 7). O ser
selvagem na história é um personagem, porém, Bly esclarece como sendo aquela
energia que está consciente da ferida, da dor: “O Ser Selvagem não é a criança,
mas é aquele que vai liderar o caminho de volta à criança. O objetivo não é ser o Ser
Selvagem, mas estar em contato com a energia do Ser Selvagem” (BLY, 1990, p.
227).
Ao escolher este tema para este trabalho de conclusão de curso, a
pesquisadora se propôs a responder as suas perguntas.
No decorrer dos trabalhos e agora na finalização, um sentimento de
satisfação perpassa todo seu ser, pois a sensação de descoberta e conhecimento
evoluiu do individual para se estender às pessoas que contribuíram para este
resultado: respostas às minhas perguntas iniciais. Tal conhecimento, como
Souzenelle o explicita “implica a evolução daquele que conhece, em seu acesso a
níveis de consciência sempre mais elevados”. Ela afirma ainda que a qualidade
daquele que conhece, é a do seu ser interior, a do seu ser em marcha rumo ao seu
“núcleo” (1984, p. 18).
Ao sentido do tato foi dada a preferência para o trabalho arteterapêutico do
estágio supervisionado. Por ocasião do tema dos doze sentidos, o sentido do tato
não é sem razão que é o primeiro a ser mencionado, porém todos os sentidos estão
conectados entre si formando um todo muito bem ordenado.
O ser humano que recebe sua primeira massagem ao nascer é um ser muito
agraciado, pois ao passar pelo canal da vagina da mulher-mãe ele sente uma
composição maravilhosa de sentidos e de sensações. A este todo ordenado dos
sentidos e sensações Soesman denominou de „cosmos’.
“Seria um acordar? Ou ainda um estar aware dos limites”? (1975, p. 12).
Somente pelo tato, o recém-nascido saberá dos limites do berço e de si
mesmo; somente pelo tato o ser humano será mais tarde um indivíduo que tem ou
não tem tato. Este é um processo de reconhecimento que leva muito tempo até que
o indivíduo entre em contato consigo mesmo.
É diferente para uma criança ter a possibilidade de entrar em contato com
tecidos para sentir a textura e a maciez nas mãos, braços e planta dos pés, e ter a
46
oportunidade de se enrolar em tecidos macios e poder brincar, tocar, abraçar uma
boneca de pano; diferente de uma outra criança que tateia brinquedos de material
plástico e tecido sintético.
Diferentes materiais conferem diferentes vivências.
Quando se fala em transformação também é lembrado o trabalho realizado
com argila conforme foi mencionado no capítulo quinto quanto aos recursos
arteterapêuticos e quando foram elencadas as sugestões, uma delas trabalhar o
tridimensional e desta dimensão, o desabrochar do sentido do eu.
A argila também é situada como o material mais próximo de um sentido
visceral, cuja manipulação provoca diversas reações desde a completa rejeição
(aspectos das sujeiras internalizadas) até estados de profundo bem estar (possibilidade de expressar sentimentos), isto é, a vivência de opostos, de se trabalhar o
“limpo” e o “sujo”.
Assumir de livre e espontânea vontade a inteireza – incluindo o “limpo” e o
“sujo” é uma tarefa para a vida toda.
Reconhecer o lado escuro da criação – o joio que cresce junto com o trigo – já
é um primeiro passo.
Entregar-se a esta tarefa rumo à individuação pode ser uma tarefa com
muitos ajudantes e companheiros sem, no entanto, negar a presença das forças
adversas que fazem parte da comunidade da psique humana.
Eis a questão que se coloca ao ser humano cujas fagulhas surgem quando
criança nesta passagem dos nove anos.
Os conteúdos arquetípicos e o manancial simbólico coexistem no grande
oceano do inconsciente, que, aos poucos, com a ajuda de técnicas expressivas da
arteterapia são desvelados e revelados para que na pessoa venha a surgir o início
do caminho da individuação.
47
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50
ANEXO A
JOÃO DE FERRO
Era uma vez um rei que tinha uma grande floresta perto de seu castelo, na
qual vivia toda sorte de animais silvestres. Um dia, o rei mandou um caçador abater
e trazer uma corça, mas o caçador não voltou mais.
- “Quem sabe aconteceu-lhe alguma desgraça”, - disse o rei, e no dia seguinte
mandou dois outros caçadores à procura do primeiro.
Mas estes também não voltaram. Então, no terceiro dia, o rei mandou chamar
todos os seus caçadores e disse:
- “Vasculhem a floresta toda e não desistam até que encontrem os três
desaparecidos!”
Mas também de todos esses caçadores não voltou nenhum, e da matilha de
cães que eles haviam levado nenhum tornou a ser visto.
Desde então ninguém mais quis ousar entrar na floresta, que lá ficou imersa
em silêncio profundo e solidão. Só de quando em quando, via-se uma águia ou
gavião passar voando por cima dela. Isto durou muitos anos.
Aí apareceu um caçador estranho, que se apresentou ao rei, procurando
emprego oferecendo-se para entrar naquela floresta perigosa. Mas o rei não quis
dar-lhe a permissão, dizendo:
- “Não é seguro lá dentro. Receio que aconteça a você o que aconteceu aos
outros e que você não volte mais!”
O caçador respondeu:
51
- “Meu senhor, eu vou por minha conta e risco; não conheço o medo.”
E assim o caçador foi com o seu cão para a floresta. Não demorou muito, e o
cão encontrou a pista de uma caça, e quis seguir. Mas, mal ele correu alguns
passos, viu-se diante de uma poça profunda, sem poder continuar, foi quando um
braço nu surgiu de dentro da água, agarrou-o e arrastou-o para baixo. Vendo isso, o
caçador voltou correndo e trouxe três homens com baldes para esvaziarem a poça.
Quando eles puderam enxergar o fundo, lá estava deitado um homem
selvagem, de corpo cor de ferro enferrujado, e cabelos compridos que lhe cobriam o
rosto e caíam até os joelhos. Eles amarraram-no com cordas e levaram-no de volta
para o castelo, onde ele causou grande espanto. O rei mandou colocá-lo numa
gaiola de ferro no seu pátio e proibiu, sob pena de morte, que alguém abrisse a
porta da jaula. A própria rainha ficou encarregada de guardar a chave.
Desde então em diante, qualquer pessoa podia entrar na floresta, em
segurança.
Acontece que o rei tinha um filho de oito anos, que certo dia estava brincando
no pátio, quando a sua bola de ouro caiu dentro da jaula. O menino correu até ela e
disse:
-“Dê-me a bola!”.
-“Só depois que você me abrir a porta”, - disse o homem.
“Não”, - disse o menino, - “eu não posso fazer isso, o rei o proibiu”.
E saiu correndo. Mas voltou no dia seguinte, para exigir a sua bola. O homem
selvagem disse:
- “Abra-me a porta”. Mas o menino não quis abri-la.
No terceiro dia o rei saiu para a caça, e o menino veio de novo e disse:
52
- “Ainda que eu quisesse, não poderia abrir-lhe a porta, porque não tenho a
chave”.
Então o homem selvagem disse:
- “A chave está debaixo do travesseiro da sua mãe, você pode pegá-la ali.”
O menino que queria recuperar sua bola jogou a prudência ao vento e trouxe
a chave. A porta era pesada, e ao abri-la o menino prendeu um dedo. Uma vez
aberta, o homem selvagem saiu, deu a bola de ouro ao menino e foi embora
apressadamente. O menino ficou com medo, chamou-o e foi ao seu encalço:
- “Ó, homem selvagem, não vá embora, senão eu vou apanhar”.
O homem selvagem voltou, pôs o menino nos ombros e foi em rápidas
passadas para dentro da floresta.
Quando o rei voltou, viu a jaula vazia e perguntou à rainha o que havia
acontecido. Ela não sabia, foi procurar a chave, mas esta sumira. Ela chamou pelo
menino, mas ninguém respondeu. O rei enviou homens para procurá-lo no campo,
mas eles não o encontraram. Então ele pôde adivinhar facilmente o que acontecera,
e reinou grande luto e tristeza na corte real.
Quando o homem selvagem chegou ao mais denso da floresta, tirou o menino
dos ombros, colocou-o no chão e disse:
- “Você nunca mais verá seu pai e sua mãe. Mas vou conservá-lo comigo,
porque você me libertou e eu tenho dó de você. Se você fizer tudo o que eu mandar,
passará bem aqui. Tenho ouro e tesouros à vontade, mais que qualquer um no
mundo.”
E arrumou para o menino um leito de musgo, no qual ele adormeceu. Na
manhã seguinte o homem levou-o a um poço e lhe disse:
53
- “Está vendo, este poço de ouro é límpido e claro como cristal! Você deve
ficar sentado aqui e cuidar para que nada caia dentro dele, senão ele fica
conspurcado. Eu virei toda a noite para ver se você seguiu a minha ordem.”
O menino sentou-se à beira do poço, ficou vendo ora um peixe de ouro, ora
uma serpente de ouro, que aparecia à tona, e cuidou para que nada caísse dentro
dele. Enquanto estava assim sentado, sentiu de repente uma dor no dedo, tão forte
que, sem querer, ele o mergulhou na água do poço. Tirou-o bem depressa, mas viu
que o dedo ficara todo dourado. Por mais que ele o esfregasse e se esforçasse por
tirar aquele ouro do dedo, não conseguiu, foi tudo em vão.
Ao anoitecer o homem selvagem voltou, viu o menino e disse:
- “O que aconteceu com o poço?”
- “Nada, nada!” – respondeu o menino, escondendo o dedo atrás das costas,
para que o homem não o visse.
Mas o homem disse:
- “Você mergulhou o dedo no poço! Por esta vez passa, mas toma cuidado
para que nada mais caia aqui dentro.”
De manhã bem cedinho o menino já estava sentado junto ao poço, montando
guarda. O dedo doeu-lhe de novo e ele o passou na cabeça. Por azar, um fio de
cabelo soltou-se e caiu no poço. Tirou-o bem depressa, mas o cabelo já estava todo
dourado. O João de Ferro voltou e já sabia o que acontecera.
- “Você deixou cair um fio de cabelo no poço”, - disse ele. – “Vou relevá-lo
mais uma vez; mas se acontecer pela terceira vez, então o poço estará conspurcado
e você não poderá mais ficar comigo”.
No terceiro dia, o menino estava de novo sentado junto ao poço, e não mexia
o dedo por mais que doesse. Mas começou a ficar entediado e inclinou-se para ver
54
sua imagem refletida no espelho da água. E quando se debruçou mais, para mirarse bem nos olhos, seus longos cabelos escorregaram-lhe dos ombros e
mergulharam na água. Ele aprumou-se bem depressa, mas os cabelos da sua
cabeça já estavam dourados e faiscavam como sol. Pode-se imaginar como o pobre
menino ficou assustado! Ele pegou o seu lenço e amarrou-o na cabeça para que o
homem não percebesse o acontecido.
Quando o homem chegou, já estava sabendo de tudo e disse:
-“Desamarre este lenço!”
Então os cabelos de ouro se soltaram e de nada adiantaram as desculpas do
menino.
- “Você não aguentou a prova e não pode mais ficar aqui. Saia para o mundo,
e ficará conhecendo o sabor da pobreza. Mas como você tem bom coração, e as
minhas intenções são boas, vou permitir-lhe uma coisa: quando você se vir em
apuros, vá até a floresta e grite: “João de Ferro!” Então eu virei em seu auxílio. Meu
poder é maior do que você imagina, e tenho ouro e prata em abundância”, disse ele.
Então o príncipe deixou a floresta e saiu andando por estradas e ruas, por
campos e bosques, até que acabou por chegar a uma grande cidade. Procurou
trabalho, mas não conseguiu encontrá-lo, e também não aprendeu nada com que se
sustentar. Os homens da corte não sabiam em que utilizá-lo, mas simpatizaram com
ele e, deixaram-no ficar. Por fim, o cozinheiro pegou-o para o seu serviço, dizendo
que ele podia carregar e trazer lenha e água e varrer as cinzas.
Um dia, quando nenhum outro estava à mão, o cozinheiro mandou-o levar as
iguarias para a mesa real. Mas como ele não queria que vissem os seus cabelos de
ouro, conservou na cabeça o seu gorrinho. O rei nunca vira uma coisa dessas, e
disse:
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-“Quando você se aproxima da mesa real, tem de tirar o chapéu.”
- “Ah, meu senhor”, - respondeu ele, - “não posso, tenho uma feia erupção na
cabeça”.
Então o rei mandou chamar o cozinheiro, censurou-o e perguntou como é que
ele aceitava um rapaz como esse no seu serviço; e que o enxotasse imediatamente.
Mas o cozinheiro teve pena dele e trocou-o pelo ajudante do jardineiro.
Agora o menino tinha que ficar no jardim, plantar e regar, capinar e cavar, e
ficar ao relento na chuva e na ventania. Um dia, no verão, quando estava sozinho
trabalhando no jardim, o calor foi tanto que ele tirou o gorrinho para refrescar a
cabeça. Quando o sol lhe tocou a cabeça, seu cabelo de ouro brilhou, faiscou e
coruscou tanto, que os raios penetraram no quarto da filha do rei, e ela correu para a
janela, para ver o que era aquilo. Então viu o menino e gritou para ele:
- “Moço! Traga-me um ramo de flores!”
Ele colocou depressa o gorro na cabeça, colheu flores do campo e amarrouas num ramalhete. Quando subia a escada com o ramalhete na mão, cruzou com o
jardineiro, que lhe disse:
-“Como é que você vai levar flores silvestres para a princesa? Rápido, vá
buscar outras flores, e escolha as mais belas e as mais raras.”
-“Não”, - disse o menino, “as flores silvestres têm o perfume mais forte e vão
agradar-lhe mais!”
Quando ele entrou no quarto da princesa, esta lhe disse:
-“Tire o seu gorrinho! Não fica bem que o conserve na minha presença.”
Ele respondeu de novo:
-“Não posso, tenho uma terrível erupção na cabeça.”
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Mas ela agarrou o gorrinho e arrancou-o da sua cabeça. Aí os seus cabelos
de ouro rolaram sobre seus ombros e era uma coisa linda de se ver. Ele quis fugir,
mas ela segurou-o pelo braço e deu-lhe um punhado de ducados. Ele os levou,
porém não ficou com aquele ouro, mas entregou-o ao jardineiro e disse:
- “Dou isso de presente aos seus filhos, para eles brincarem.”
No dia seguinte, a princesa tornou a chamá-lo para que lhe trouxesse um
ramo de flores do campo, e quando ele entrou com elas, agarrou novamente o seu
gorrinho e quis arrancá-lo, mas ele o segurou com as duas mãos. A princesa tornou
a dar-lhe um punhado de ducados, mas ele não quis guardá-los e deu-os ao
jardineiro, como brinquedos para seus filhos. No terceiro dia aconteceu a mesma
coisa: a princesa não conseguiu tirar-lhe o gorrinho e ele não quis o seu ouro.
Pouco tempo depois, estourou uma guerra no país. O rei reuniu o seu povo,
sem saber se poderia resistir ao inimigo, que era muito poderoso e tinha grande
exército. Então o ajudante de jardineiro disse:
-“Agora eu já estou crescido e quero participar da guerra. Só quero que me
dêem um cavalo.”
Os outros riram e responderam:
- “Quando nós tivermos partido, procure um para você. Nós lhe deixaremos
um cavalo na cavalariça.”
Quando eles partiram para a batalha, ele foi à cavalariça e tirou o cavalo, que
era manco de uma pata e capengava. Mesmo assim, ele o montou e foi cavalgando
para a floresta escura. Chegando à beira da mata, gritou três vezes “João de Ferro!”
– tão alto que o grito ressoou por entre as árvores.
Logo em seguida, apareceu o homem selvagem e disse:
- “O que você quer?”
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- “Quero um corcel vigoroso, pois vou partir para a guerra.”
- “Isto você terá, e ainda mais do que pede.”
Então o homem selvagem voltou para a floresta, e não demorou muito,
quando apareceu um cavalariço que saiu da mata trazendo um corcel que bufava
pelas ventas, indócil e difícil de conter. E atrás dele vinha um grande bando de
guerreiros, todos cobertos de armaduras de ferro, e suas espadas faiscavam ao sol.
O jovem entregou seu cavalo manco ao cavalariço, montou no outro e partiu à frente
do bando.
Quando ele se aproximou do campo de batalha, uma grande parte dos
homens do rei já havia tombado em combate, e faltava pouco para os restantes
terem de bater em retirada. Então o jovem chegou galopando, à frente do seu
bando, e entrou como vendaval pelas fileiras dos inimigos, derrubando tudo o que se
lhe opunha. Eles tentaram fugir, mas o jovem partiu ao seu encalço e não
descansou até que não sobrou um só homem. Mas em vez de retornar ao rei, ele
conduziu o seu bando por atalhos, de volta à floresta e chamou pelo João de Ferro.
- “O que você quer?” – perguntou o homem selvagem.
- “Receba de volta o seu corcel e o seu bando guerreiro e devolva-me o meu
cavalo manco”.
Tudo aconteceu como ele queria, e ele voltou para casa montado no seu
cavalo manco. Quando o rei voltou ao seu castelo, a filha correu-lhe ao encontro e
felicitou-o pela vitória.
- “Não sou eu o autor da vitória”, disse ele, - “mas um cavaleiro desconhecido,
que veio em meu auxílio com um bando de guerreiros.”
A filha quis saber quem era o cavaleiro estranho. Mas o rei não o sabia, e
disse:
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- “Ele perseguiu os inimigos e eu não o vi mais.”
Ela informou-se com o jardineiro sobre o seu ajudante. Mas o jardineiro riu e
disse:
- “Ele acaba de voltar montado no seu cavalo manco.”
E os outros zombaram dele e gritaram:
- “Lá vem o nosso Mancapé voltando!”
E lhe perguntaram também:
- “Atrás de que moita você ficou dormindo nesse meio tempo?”
Mas ele disse:
- “Eu fiz o melhor que podia e sem mim as coisas teriam ido mal.”
Aí ele foi ainda mais escarnecido. O rei falou para a sua filha:
- “Eu vou mandar fazer uma grande festa, que deverá durar três dias, e você
atirará uma maça de ouro: quem sabe o cavaleiro desconhecido se apresentará.”
Quando a festa foi anunciada, o jovem saiu para a floresta e chamou o João
de Ferro.
- “O que você quer?” – perguntou ele.
- “Quero apanhar a maçã de ouro da princesa.”
- “Pois é como se você já a tivesse na mão”, disse João de Ferro – “e você
terá também uma armadura vermelha, e cavalgará um altivo alazão.”
Quando chegou o dia, o jovem veio galopando, misturou-se aos cavaleiros e
não foi reconhecido por ninguém. A princesa adiantou-se e atirou uma maçã de ouro
aos cavaleiros. Mas ninguém a não ser ele conseguiu pegá-la, e quando a apanhou,
partiu a galope.
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No segundo dia, o João de Ferro armou-o como cavaleiro branco, e deu-lhe
um branco corcel. Novamente o moço apanhou a maçã de ouro, mas não se
demorou nem um instante e disparou com ela.
O rei ficou encolerizado e disse:
- “Isto não é permitido, ele deve apresentar-se diante de mim e dizer o seu
nome.”
E deu ordens de galoparem ao encalço do cavaleiro que pegasse a maçã,
caso ele quisesse fugir de novo com ela, e se ele não voltasse por bem, deviam
trazê-lo à força.
No terceiro dia, o jovem recebeu do João de Ferro uma armadura negra e um
corcel murzelo, e novamente apanhou a maçã. Mas quando ele fugia a galope com
ela, os homens do rei o perseguiram e um chegou tão perto que lhe feriu a perna
com a ponta da espada. Ele, porém, conseguiu escapar, mas o seu cavalo deu um
salto tão violento que o elmo lhe caiu da cabeça e os perseguidores puderam ver
que o jovem cavaleiro tinha cabelos de ouro. Os cavaleiros voltaram e relataram
tudo ao rei. No dia seguinte, a princesa perguntou ao jardineiro pelo seu ajudante:
– “Ele está trabalhando no jardim. Aquele esquisitão esteve na festa e só
voltou ontem à noite. E mostrou aos meus filhos três maçãs de ouro que tinha
ganhado.”
O rei mandou buscá-lo, e ele apareceu, com o seu gorrinho de novo na
cabeça. Mas a princesa aproximou-se dele e tirou-lhe o gorro. Aí os seus cabelos de
ouro caíram-lhe sobre os ombros, e ele era tão belo que todos se espantaram.
- “Era você o cavaleiro que veio à festa todos os dias, cada vez numa cor
diferente, e apanhou as três maçãs de ouro?” – perguntou o rei.
- “Sim”, respondeu ele, - “e aqui estão as maçãs!”
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E ele tirou-as do bolso e entregou-as ao rei.
- “Se quiser ainda outras provas, pode ver o ferimento que os seus homens
me causaram quando me perseguiram. E eu sou também o cavaleiro que o ajudou
na vitória sobre os inimigos.”
- “Se você é capaz de semelhantes feitos, você não é um ajudante de
jardineiro. Diga-me, quem é seu pai?”
- “Meu pai é um rei poderoso, e eu tenho ouro à vontade.”
- “Estou vendo mesmo”, disse o rei, - “eu lhe devo gratidão. Posso fazer
alguma coisa que seja do seu agrado?”
- “Sim”, respondeu ele, - “pode. Dê-me a sua filha em casamento.”
Então a princesa riu e disse:
- “Este não faz rodeios! Mas eu já vi pelos seus cabelos de ouro que ele não é
nenhum ajudante de jardineiro.”
E ela deu-lhe um beijo. O pai e a mãe do jovem vieram para o seu casamento
e estavam cheios de alegria, porque já haviam perdido qualquer esperança de rever
o filho querido.
E quando todos estavam sentados à mesa do banquete nupcial, a música
silenciou de repente, as portas se abriram, e um altivo rei entrou com um grande
séquito. Ele caminhou para o jovem, abraçou-o e disse:
- “Eu sou o João de Ferro, e fui enfeitiçado e transformado num homem
selvagem, mas você me libertou. Todos os tesouros que eu possuo, de hoje em
diante, passarão a ser sua propriedade.”
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ANEXO B
A MENINA DA LANTERNA
Era uma vez, uma menina que carregava alegremente a sua lanterna na mão.
De repente, chegou o vento, que com grande ímpeto apagou a lanterna da menina.
- “Ah!” – exclamou a menina, “quem poderá reacender a minha lanterna?”
Olhou para todos os lados, mas não achou ninguém.
Apareceu, então, um animal muito estranho, com espinhos nas costas, de
olhos vivos, que corria e se escondia muito ligeiro entre as pedras. Era um ouriço.
- “Querido ouriço”! – exclamou a menina. “O vento apagou a minha luz. Será
que você sabe quem poderia acender a minha lanterna?”
E o ouriço disse a ela que não sabia que perguntasse a outro, pois precisava
ir para casa cuidar dos filhos.
A menina continuou caminhando e encontrou-se com um urso, que caminhava
lentamente. Ele tinha uma cabeça enorme e um corpo pesado de desajeitado, e
grunhia e resmungava.
- “Querido urso!” - falou a menina. “O vento apagou a minha luz. Será que
você sabe quem poderia acender a minha lanterna?”
E o urso da floresta disse a ela que não sabia que perguntasse a outro, pois
estava com sono e ia dormir.
Surgiu, então, uma raposa, que estava caçando na floresta e se esgueirava
entre o capim. Espantada, a raposa levantou o focinho e, farejando, descobriu a
menina e mandou-a ir para casa porque a menina espantava os ratinhos.
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Com certeza, a menina percebeu que ninguém queria ajudá-la. Sentou-se
sobre uma pedra e chorou.
Nesse momento, surgiram estrelas que lhe disseram para ir perguntar ao Sol,
pois ele poderia ajudá-la.
Depois de ouvir o conselho das estrelas, a menina criou coragem para
continuar o seu caminho.
Foi andando, chegou a uma casinha, dentro da qual avistou uma mulher muito
velha, sentada, fiando em sua roca. As mãos ocupadas com a lã do carneiro, o pé
pedalando o pedal que girava a roda com os fios. A menina cumprimentou a
velhinha.
- “Bom dia, querida vovó”, - disse ela.
- “Bom dia”, respondeu a velhinha.
A menina perguntou se ela conhecia o caminho até o Sol e se ela queria ir
junto, mas a mulher velhinha disse que não podia acompanhá-la, porque ela fiava
sem cessar e sua roca não podia parar. E depois de prontos teria que levar os fios
para serem tecidos. Mas, pediu à menina que descansasse um pouco, pois o
caminho era muito longo para chegar até o sol. A menina sentou-se para descansar.
Pouco depois, pegou sua lanterna e continuou sua caminhada.
Mais para frente, encontrou outra casinha no seu caminho, era a casa do
sapateiro. Ele estava consertando muitos sapatos. A menina cumprimentou-o e
perguntou se ele conhecia o caminho do Sol e se queria ir junto com ela procurá-lo.
Ele disse que não podia acompanhá-la, pois tinha muitos sapatos para consertar.
Deixou que ela descansasse um pouco, pois sabia que o seu caminho era longo. A
menina sentou-se para descansar. Depois que descansou, pegou a sua lanterna e
continuou a caminhada.
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Bem longe, avistou uma montanha muito alta.
Com certeza, o Sol mora lá em cima – pensou a menina e acelerou o passo.
No meio do caminho, encontrou uma criança que brincava com uma bola. Chamou-a
para que fosse com ela até o Sol, mas a criança nem respondeu. Preferiu brincar
com a sua bola e afastou-se saltitando. Então, a menina da lanterna continuou
sozinha o seu caminho. Foi subindo pela encosta da montanha. Quando chegou ao
topo, não encontrou o Sol.
- “Vou esperar aqui até o Sol chegar”, pensou a menina e sentou-se na terra.
Como ela estava muito cansada de sua longa caminhada, seus olhos se
fecharam e ela adormeceu.
O Sol já tinha avistado a menina há muito tempo. Enquanto a menina dormia,
ele desceu e reacendeu a lanterna dela.
Depois que o Sol voltou para o céu, a menina acordou.
- “Ah! A minha lanterna está acesa!” – exclamou e, com um salto, pôs-se a
fazer o caminho de volta alegremente.
Na volta, reencontrou a criança da bola, que lhe disse ter perdido a bola, não
conseguindo encontrar por causa do escuro. As duas crianças procuraram, então, a
bola. Depois que encontraram, a criança agradeceu e afastou-se alegremente.
A menina da lanterna continuou o seu caminho até o vale e chegou à casa do
sapateiro que estava muito triste, na sua oficina. Quando viu a menina, contou que
seu fogo havia apagado e suas mãos estavam frias, não podendo, portanto,
trabalhar mais. A menina acendeu a lanterna do sapateiro, que ficou muito
agradecido, aqueceu as mãos e pôde martelar e costurar os seus sapatos.
A menina continuou lentamente a sua caminhada pela floresta e chegou ao
casebre da mulher muito velha. Seu quartinho estava escuro. Sua luz tinha-se
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consumido e ela não podia mais fiar. A menina acendeu uma nova luz e a mulher
muito velha agradeceu e, logo a sua roca girou sem cessar, fiando, fiando, sem
cansar.
Depois de algum tempo, a menina chegou ao campo e todos os animais
acordaram com o brilho de sua lanterna.
A raposinha, ofuscada, farejou para descobrir de onde vinha tanta luz. O urso
bocejou, grunhiu e tropeçando, desajeitado, foi andando atrás da menina. O ouriço,
muito curioso, aproximou-se dela e perguntou de onde vinha aquele vaga-lume
gigante.
Assim, a menina voltou feliz para sua casa.

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