Tema da monografia 2009:
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Tema da monografia 2009:
Faculdade Integração Zona Oeste – FIZO Alquimy Art Curso de Especialização em Arteterapia Pós-Graduação lato sensu OS NOVE ANOS NA BIOGRAFIA HUMANA CORRELAÇÃO COM A PEDAGOGIA WALDORF E A ARTETERAPIA Alda Luba São Paulo, SP 2010 ALDA LUBA OS NOVE ANOS NA BIOGRAFIA HUMANA CORRELAÇÃO COM A PEDAGOGIA WALDORF E A ARTETERAPIA Monografia apresentada à FIZO - Faculdade Integração Zona Oeste, SP e ao Alquimy Art, SP, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Especialista em Arteterapia. Orientador: Profa. Dra. Cristina Dias Allessandrini São Paulo, SP 2010 LUBA, Alda Os nove anos na biografia humana. Correlação com a Pedagogia Waldorf e a arteterapia / Alda Luba – Osasco: [s.n.], 2010. 64p. Monografia (especialização em Areterapia) – FIZO, Faculdade Integração Zona Oeste. Alquimy Art, SP. 1. Pedagogia Waldorf. 2. Recursos arteterapêuticos 3 Processo de Individuação. Faculdade Integração Zona Oeste – FIZO Alquimy Art OS NOVE ANOS NA BIOGRAFIA HUMANA CORRELAÇÃO COM A PEDAGOGIA WALDORF E A ARTETERAPIA Monografia apresentada pela aluna Alda Luba ao curso de Especialização em Arteterapia em 24 de outubro de 2009 e recebendo a avaliação da Banca Examinadora constituída pelos professores: __________________________________________________________ Profa. Dra. Cristina Dias Allessandrini. Orientadora e Coordenadora da Especialização. __________________________________________________________ Profa. Ms. Deolinda F. Fabietti. Coordenadora Local e Supervisora. À Criança Interior de cada um. AGRADECIMENTOS Aqui reitero meus agradecimentos, ...a Constantino Riemma; ...ao professor e consultor de Pedagogia Waldorf Alfredo Rheingantz; ...à amiga e profissional de desenho gráfico Esperanza Sobral; ...à presidente da Associação Comunitária Micael, Profa. Sra. Bernadete Sulzbach; ...à coordenadora pedagógica da ACOMI, Maria Szucko; ...ao Dr. Derblai Sebben, médico pediatra, pela valiosa contribuição alicerçando o currículo do quarto ano Waldorf; ...à minha arteterapeuta Mônica Guttman; ...ao meu esposo Maciej Luba, pela compreensão e apoio, ...os quais contribuíram para que este trabalho chegasse ao término com substância e proporções adequadas; ...também agradeço minhas colegas de formação, pois juntas alegremente tecemos questionamentos e descobertas; ...à colega Margaret Rose Pela, quando vivenciamos um período do estágio supervisionado; ...aos professores do Centro de Pesquisa Alquimy Art, em especial à Profa. Dra. Cristina Dias Allessandrini e à Profa. Ms. Deolinda Fabietti, a minha gratidão pela formação acadêmica e incentivo integrador. Tudo o que um Indígena faz está num círculo, e isto é porque o Poder do Mundo sempre acontece em círculos e tudo tenta ser redondo. O céu é redondo, e a terra é redonda como uma bola, e assim são as estrelas. O vento, em seu poder máximo, gira. Pássaros fazem seus ninhos em círculos, pois deles é a mesma religião que a nossa. O sol se eleva e se põe em círculo, a lua faz o mesmo, e ambos são redondos. As estações formam um grande círculo em suas mudanças, e sempre voltam outra vez de onde vieram. A vida de um homem é um círculo de infância à infância e assim é em tudo onde se movimenta o poder. (Black Elk em “Black Elk Speaks”) RESUMO O presente trabalho retrata a passagem dos nove anos na biografia humana como um momento crítico para um ser em desenvolvimento, que se depara com uma fase de mudanças significativas, caminhos que se abrem diante da completude de um ciclo de oito anos. Como suporte, a Pedagogia Waldorf contribui com um currículo dirigido as suas necessidades que, uma vez associado aos recursos arteterapêuticos, sustentam o ser humano em sua caminhada rumo ao seu processo de individuação. Os benefícios dos recursos arteterapêuticos foram vivenciados por três crianças, durante o estágio supervisionado em arteterapia realizado pela autora corroborando sua tese. Tal benefício se estende também ao adulto / cuidador que fica liberado de preocupar-se, pois outro olhar o capacita a melhor compreender a criança que atravessa este portal. O efeito estimulante da arte atua sobre os sentimentos não só do adulto / cuidador, como também da criança favorecendo o despertar acolhedor para um viver cada vez mais saudável de autopercepção. Palavras-chave: Recursos arteterapêuticos. Pedagogia Waldorf. Processo de individuação. ABSTRACT The author depicts the nine year old passage in human biography. As a critical moment a developing being faces a significant changes period, new horizons before the landscape of the conclusion of eight year old cycle. To support, Waldorf Education contributes with a curriculum directed to his/her necessities. This curriculum comes associated to art therapeutic resources to hold the human being in his/her way toward his/her individuation process. Validating her thesis, the author could see that the children benefit from art therapy during the internship. Free from worrying, the caregiver also benefits from this approach once s/he can understand better this phase the child is going through. The artistic stimulating effect works on the emotions not only of the caregiver but also of the child bringing a warm and healthy self-awareness in life. Key-words: Art therapeutic resources. Waldorf Education. Individuation process. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………. 10 2 JUSTO, INJUSTO, NOÇÃO DE JUSTIÇA......................................... 15 3 PEDAGOGIA WALDORF........................................................................ 17 3.1 A ARTE COMO UMA PONTE................................................................. 17 3.2 A PASSAGEM DO RUBICÃO................................................................. 20 3.3 PONTO CRUZ.......................................................................................... 22 4 A TOMADA DE CONSCIÊNCIA............................................................ 25 4.1 O SENTIDO DO EU................................................................................. 25 4.2 CARREGO E SUPORTO UM EU............................................................ 27 5 CONTRIBUIÇÕES DA ARTETERAPIA.............................................. 30 5.1 CONSCIÊNCIA, VIVÊNCIA E REALIZAÇÃO DO EU............................. 30 5.2 POSTURA DO ADULTO......................................................................... 31 5.3 RECURSOS ARTETERAPÊUTICOS...................................................... 34 6 ESTUDO DE CASO.................................................................................. 37 6.1 METODOLOGIA...................................................................................... 37 6.2 TRABALHO ARTETERAPÊUTICO DO ESTÁGIO 38 SUPERVISIONADO........................................................................................... 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 43 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................ 47 ANEXO A – JOÃO DE FERRO................................................................. 50 ANEXO B – A MENINA DA LANTERNA............................................... 61 10 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho contém em si a pergunta: “O que acontece na vida do ser humano ao passar pelo período dos oito / nove anos de idade?”. O ser humano em sua constituição biopsico-social, durante este período, passa por mudanças significativas em sua vida, eventos marcantes em seu entorno bem próximo, propiciando uma experiência intima, singular e vívida; vivências advindas de um comportamento que pode ser absurdo ou estúpido, uma visão unilateral, ou uma fraqueza daqueles com quem convive, uma viagem, uma nova moradia, uma nova acomodação do solo familiar, uma morte – com certeza uma perda e um ganho. Este impulso de pesquisa e observação se descortina com a vivência da própria pesquisadora ao se aproximar do ciclo de nove anos em sua vida pessoal. Foi quando aconteceu a festa de encerramento do ano escolar com a presença dos pais. Era um dia de sábado e a criança sai de casa, atravessa ruas e avenidas, dirigindo-se sozinha para a escola para encontrar-se com seus pares e a sua professora de classe. Depois da reunião, há um encontro mais pessoal entre a professora e a criança: - Onde estão seus pais? Não vieram? - Não. Estão trabalhando. Hoje é sábado e eles estão terminando os trabalhos: meu pai é alfaiate e minha mãe, costureira. A criança que durante toda a reunião estava com seus pares ao chegar neste momento sente muito a falta dos pais que não podem acompanhar a sua vida escolar– que para ela é muito importante - e procura um abraço, mas a professora é uma freira religiosa e suas várias saias se aproximam da criança. O tecido é encorpado e macio, de cor clara. A professora é alta, tez clara, jovem e bonita, quando a tomada de consciência acontece. O abraço é acolhedor, mas não há toque de pele com pele. Há um acordar e pela primeira vez, acontece a sensação de estar só - um olhar em volta muito mais consciente, um chegar-se a uma mudança interior, experimentando a si próprio, muito mais presente que antes, e, na seqüência - a 11 conseqüência, olhando o mundo com novos olhos de observação, um sentimento de surpresa, um olhar de espanto, admiração, estima, desejo de saber e os primórdios de uma nova postura. Neste momento, uma criança ficou lá trás, e, agora, outra criança está ali de pé dentro dela mesma. Ao mesmo tempo em que a nova criança olha o contexto daquela situação e se sente sozinha tendo que caminhar com suas próprias pernas, a professora freira, jovem, alta e bonita, estende um presente para a criança, que avidamente o recebe com as duas mãos. É um bercinho confeccionado em tecido cor carmim com uma bonequinha lá dentro! O coração da nova criança se aquieta e guarda este presente com especial carinho: uma força que a sustentará dali para frente. Hoje, diante da perspectiva do tempo, a pesquisadora percebe que a cor que mais aprecia é a cor carmim como a cor daquele bercinho. Seu refúgio? Uma identificação? Um presente simbólico? Uma constatação para a descoberta da sua Missão Pessoal? Mais tarde, pelos caminhos trilhados, a vivência como “mãe waldorf” na educação de um de seus filhos e como “avó waldorf” na convivência com o neto e a filha professora Waldorf, a pesquisadora familiarizou-se com o termo “passagem do rubicão”. Rubicão é esta passagem sem volta do ser humano ao cruzar o limiar dos oito para os nove anos como bem atesta o conto de fadas João de Ferro que segue na íntegra no capítulo dos Anexos com a finalidade de demonstrar o detalhe da idade de oito anos mencionado. Detalhe que na verdade é um dado essencial como Robert Bly comenta em seu livro “Iron John”: “Um dia, o filho do rei com oito anos de idade está no jardim jogando com sua bola dourada que ele ama, e ela rola para dentro da jaula do Homem Selvagem”. “Se o menino quer a bola de volta ele terá que se aproximar do Homem Selvagem e pedi-la”. “Mas isto será um problema” (BLY, 1990, p. 07). Neste ponto tem início a história propriamente dita sendo que uma bela abordagem feita por Robert Bly nos apresenta o caminho de individuação do ser humano sobre o enfoque do universo masculino. Ao decidir por esta monografia, surgiram perguntas outras, mas no decorrer da pesquisa, à medida que se ampliavam, surgiu, também, o estímulo de detê-las para uma composição mais objetiva que demonstrasse o âmago da questão 12 proposta. A pesquisa terá continuidade mesmo tendo que delimitar esta apresentação, ou seja, a proposta deste trabalho é indicar um olhar significativo, mais profundo no sentido de contribuir para uma compreensão maior por esta passagem de idade do ser humano. Eis as perguntas que surgiram: Trata-se de um ciclo de nove anos? A pausa necessária para um novo ciclo ter início? Há uma explicação para este salto quântico majorante de consciência nesta idade? É um processo dolorido? Quais as emoções que acompanham? Se as crianças de nove anos não mais aceitam contos de fadas quais histórias oferecer para ajudá-las a atravessar este umbral? Por que a Pedagogia Waldorf denomina esta fase de a saída do Jardim do Paraíso? Quais são as necessidades desta criança de oito/nove anos? Que vivências, que imagens podem ajudar a criança nesta passagem? Que paralelos tecer diante do currículo da Pedagogia Waldorf que denomina esta fase de rubicão? O que vem a ser o rubicão? É somente um recorte da História da Antiga Roma? Qual seria a razão para o ponto cruz em trabalhos manuais no currículo Waldorf para a criança que está vivendo esta passagem? As fases de um desenvolvimento biopsico-social sadio explicam esta passagem dos oito para os nove anos? Poder-se-ia dizer que as crianças nesta idade “mudam-se para dentro de suas casas” tendo maior posse de “sua casa”? Por esta razão, então, o currículo da Pedagogia Waldorf inclui a construção de uma casa / morada exteriorizando assim o que acontece no interior da criança? Nesse momento, a arte interelaciona as perguntas e a arteterapia integra as respostas restabelecendo o “elo perdido com a sensibilidade”, restaurando a abrangência da captação intuitiva e do novo ao lado de “coordenadores cognitivos” caminhantes – para trilhar o caminho da integração entre as polaridades e as complementaridades, entre “as duas faces de uma única revelação” (LELOUP, 2007). 13 O presente trabalho busca um outro ângulo para compreender a criança nesta passagem e, objetiva demonstrar como os recursos arteterapêuticos dão suporte para que ela possa atravessar este portal quando as características infantis ficam para trás e pela frente surge a polaridade “eu – mundo”. Um embasamento teórico–prático compõe o cerne desta proposta de pesquisa ao buscar respostas às perguntas citadas. Neste trabalho é dada ênfase aos estudiosos de diferentes linhas de pensamento e especializações que caracterizam as várias etapas do desenvolvimento humano. Lembramos do poeta italiano Dante Alighieri quando menino de nove anos de idade se encontrou com uma menina também com nove anos em uma rua em Florença. Ela devia ter crescido na mesma vizinhança e chamava-se Beatrice; seu nome significa “aquela que abençoa”. Este mero encontro assim que um passou pelo outro teve um efeito mais profundo no menino. Como poeta, mais tarde, Dante escreveu sobre esta experiência no seu livro Vita Nuova: Pelo nono tempo desde meu nascimento esta radiante senhora do meu espírito chamada Beatrice apareceu na minha frente, aproximadamente no começo do seu nono ano, e eu estive com ela até o fim do meu nono ano. Nesta ocasião, ouvi uma voz „Fique atento,segure, tome conhecimento, uma divindade, que é mais forte do que eu, se aproxima e, daqui para frente, terá domínio sobre mim‟. (KOEPKE, 1989, p. 45) Embora morassem na mesma vizinhança, somente nove anos mais tarde, Dante e Beatrice se encontraram uma outra vez. Naquela época, Dante estava prometido a Gemma Donati e Beatrice casou-se com o rico Simoni dei Bardi vindo a falecer quatro anos mais tarde. Muito mais do que quando estava viva, Dante sentiu-se inspirado por Beatrice após sua morte. Em seu trabalho A Divina Comédia, é a figura de Beatrice que o conduz ao Paraíso. O que veio a ser o maior evento na vida do poeta começou com uma vivência aos nove anos. Inúmeros outros exemplos de vivências de muitas outras biografias poderiam ser enumerados, mas este já seria um outro escopo de trabalho. As reflexões aqui sugeridas traçam paralelos entre a teoria encontrada na pesquisa bibliográfica, as coincidências encontradas nas buscas e experiências 14 pessoais e profissionais pregressas da autora e, finalmente, com o trabalho arteterapêutico desenvolvido no estágio supervisionado. A organização dos capítulos segue abordagens relacionadas a diversos autores não só da linha da Pedagogia Waldorf como Karl Konig, Joep Eikenboom, Gudrun Burkhard, Hermann Koepke, Liane Collot d‟Herbois, Michaela Glockler, Bernard Lievegoed, como também, Louise Bates Ames, Carol Chase Haber - Gesell Institute of Human Development, Jean Piaget, Robert Bly, Célia Gago e Jung, Milton Alves Ruiz, Newton Kara José, Angeles Arrien, que se detiveram nesta fase do desenvolvimento humano. Acrescenta-se a este trabalho referências de autores estudiosos da arteterapia e suas vivências transformadoras como Cristina Dias Allessandrini, Selma Ciornai, Ângela Philippini, Adriana Medeiros e Sonia Branco, Arthur B. VanGundy e Linda Naiman. Rudolf Treichler, Marie-Louise von Franz e Mônica mencionados pela riqueza de conteúdo sintético e integrador. Guttmann são 15 2 JUSTO, INJUSTO, NOÇÃO DE JUSTIÇA Louise Bates Ames e Carol Chase Haber afirmam que a criança aos nove anos passa por um período de interiorização. As autoras reconhecem esta transição e afirmam que nesta idade “a criança se retira, torna-se independente, nem ouve mais a voz do adulto. Muitas começam a questionar a infalibilidade e onipotência dos pais. Questionam se as regras dos pais estão certas” (1990, p.19). Também se retiram do círculo familiar. A criança de nove anos quer e precisa dessa maturidade, dessa independência e dessa separação. Ela sente a necessidade de estabelecer sua independência. E nisso, a criança precisa ser respeitada. Com os irmãos menores ela pode adotar uma atitude protetora e, ser uma criança orgulhosa de seus irmãos mais velhos. Ela aceita responsabilidades. Crianças de nove anos têm um forte chamado pelo que é justo. Existe um grande interesse em saber “quem começou”. Alguns até assumem e pedem desculpas. Também querem que o outro seja justo. Palavras como verdade e honestidade começam a fazer parte do seu vocabulário. Certamente, no mínimo, os rudimentos de uma tomada de consciência a criança está desenvolvendo (AMES e HABER, 1990, p. 50). Ávida para agradar, ama ser escolhida, busca elogios. Pode acontecer também que algumas crianças nesta idade começam a fazer as coisas com espírito de serviço. Estão bem conscientes de sua aparência e desempenho. A criança de nove anos está se movendo na aceitação do seu eu e dos outros. Gosta de construir e brincar com material para construir e gosta de fazer castelos com areia. Gosta de olhar fixo em alguma coisa e em alguma pessoa, sem na realidade ver o que está olhando, olha para o pai ou a mãe sem, no entanto, ouvir o que estão falando. Papai Noel ficou lá atrás, a criança agora com nove anos assim se expressa sobre o natal: “é um tempo para ser educado e amoroso”, afirmam Ames e Haber (1990, p. 77). Em sua obra, O Juízo Moral na Criança, Piaget através do jogo se propõe a estudar o juízo moral interrogando um grande número de crianças. 16 Trata-se inicialmente, de saber o que vem a ser o respeito à regra do ponto de vista da própria criança - a partir da análise das regras do jogo social, na medida em que são obrigatórias para a consciência do jogador honesto. Da regra do jogo passou-se para as regras especificamente morais, prescritas pelos adultos. Depois, os princípios provenientes das relações das crianças entre si e a idéia de justiça foi o tema especial escolhido. (1994, p. 21) Quanto à gênese da consciência do eu, Piaget afirma que “o eu somente se conhece por referência àquele dos outros” (1994, p. 292). O autor lembra a perspectiva egocêntrica como ilusão que o indivíduo se situa no centro de tudo (1994, p. 292). Para descobrir-se como indivíduo particular, ele afirma, é necessária uma contínua comparação, produto de oposições, discussões e controle mútuo. A criança pode permanecer egocêntrica por muito tempo, (por falta de consciência do eu), embora participando, sob todos os aspectos, da consciência dos outros. A consciência do eu individual é, para Piaget, ao mesmo tempo, um produto e uma condição da cooperação, quando ele afirma “para socializar realmente o espírito, a cooperação é necessária, porque somente ela conseguirá libertar a criança da mística da palavra adulta” (PIAGET, 1994, p. 299). Neste presente trabalho, reflexões de outros autores serão dispostas para apresentar a diferença existente na maneira do ser humano julgar, sentir e atuar por ocasião da passagem da idade de oito para nove anos, e pela relação existente com o currículo da Pedagogia Waldorf, que confere atenção especial a esta passagem. Uma vez conhecida, esta passagem pode ajudar o adulto pai, mãe, cuidador, terapeuta a compreenderem melhor não só a criança com quem convivem, mas também a contribuírem para que esse processo de inserção do eu, reconhecimento das limitações e desenvolvimento da voz interior, seja guiado, pois em sua caminhada, mais um ser humano alcança e encontra a missão própria de sua vida. 17 3 PEDAGOGIA WALDORF 3.1 A ARTE COMO UMA PONTE “A Pedagogia Waldorf nasceu em meio ao caos social e econômico que seguiu a Primeira Guerra Mundial” como uma resposta de um esforço em construir um novo futuro para a Europa de acordo com a Proposta Educacional das Escolas Waldorf no Brasil, elaborada pela Federação das Escolas Waldorf no Brasil (1998, p. 8). A Pedagogia Waldorf visualiza o ser humano como uma unidade harmônica físico-anímico-espiritual e nesse princípio fundamenta toda a prática educativa (1998, p. 13). A arte na Pedagogia Waldorf é compreendida e vivida como uma ponte que harmoniza e equilibra a relação entre o pensar, o sentir e o agir do ser humano. A atividade artística é incorporada nas práticas diárias de uma escola que segue esta abordagem, como um recurso didático fundamental. Algumas das atividades artísticas vivenciadas pelas crianças Waldorf são: modelagem com cera de abelha e argila; desenho com giz de cera, carvão, giz colorido de lousa, desenho de formas, pintura com aquarela, pintura com terra, com giz pastel; escultura em madeira e pedra; execução de instrumentos, orquestra e côro; euritmia (arte do movimento). A Pedagogia Waldorf concebe o ser humano constituído de três veículos de expressão: o corpo físico, as emoções e a mente, correspondendo respectivamente a três funções: o atuar, o sentir e o pensar. Todos os três necessitando ser educados com a mesma atenção, como uma meta ideal em direção à realização do ser humano. Também, explicam-se em setênios as etapas do desenvolvimento humano, conhecidos desde tempos remotos em suas subetapas. No primeiro setênio (de 0 a 7 anos) percebemos nas crianças o predomínio do querer, do agir; elas se movimentam assim expressando alegria e descontentamento. É a maneira como entram em contato com o mundo sem distinguir o que é interno e o que é externo. Ao final deste setênio, dependendo de vários fatores, 18 talvez antes mesmo, acontece a queda dos dentes de leite e o aparecimento dos dentes permanentes. No segundo setênio (de 7 aos 14 anos) acontece o predomínio do sentir. Agora a criança é mais sensível a tudo que a rodeia e, em consequência disso pode ocorrer ao longo do período, algumas crises. No terceiro setênio, (de 14 a 21 anos) se aprimora a capacidade do pensar. A Dra. Gudrun Burkhard, médica escolar, especialista em oncologia, denomina esta crise dos nove anos de “crise biográfica”, aquela que ocorre com todo ser humano (2000). Por crises entendemos um mal estar indefinido; não estamos doentes nem sãos, vamos amadurecendo. Algumas crises são bem individuais, e outras que não são individuais. Ocorrem com todo ser humano. Como estudiosa do assunto há anos, a autora desenvolve todo um sistema de idades e seus espelhamentos em idades mais avançadas. Até os três primeiros anos, a criança supera a gravidade da terra e aprende a andar; através do falar nomeia os seres como Adão os nomeou pela primeira vez, e se torna o ser social que é, comunicando-se e, “através do pensar, com suas primeiras associações de idéias, com o desenvolvimento gradativo da memória, ela conquista o presente, o passado e o futuro, as alturas e as profundezas”. (BURKHARD, 2000, p. 56). Esta é a base de todo desenvolvimento posterior. Somente quando esta tarefa orgânica está parcialmente cumprida, aparece o primeiro momento de consciência em que a criança se percebe como individualidade própria, usando a palavra “eu”. Joãozinho fala de si, não mais “Joãozinho quer”, mas sim “eu quero”. “Eu” e o mundo antes desse acontecimento eram uma coisa só. Agora sou “eu”, e o mundo está fora de mim. Os primeiros anos constituem a base da saúde corporal. Segundo a autora aos sete anos acontece a maturidade escolar: deixar o ambiente familiar e ir para a escola quando o corpo físico está maduro. Três pequenas fases se sucedem: dos 7 aos 9, dos 9 aos 12 e dos 12 aos 14 anos, (2000, p. 57). Dos 7 aos 9, predomina mais a formação da cabeça. Especialmente o rosto vai adquirindo sua expressão mais individual. Dos 9 aos 12, podemos verificar especialmente o crescimento do tórax, bem como o desenvolvimento dos órgãos nele contidos, coração e pulmão. Nessa idade, a relação pulso/respiração atinge o equilíbrio do adulto na proporção de 4:1. (2000, p. 58). 19 Ao atingir os nove anos temos um novo momento de “vivência do eu” quando este se torna mais presente ao nível de sentimento. Nesta época, a criança se sente só, incompreendida, é crítica e necessita de bastante carinho para conseguir relacionar-se socialmente. Geralmente também é a fase do primeiro “amor”, quase sempre platônico, passando despercebido pelo outro. Agora o senso de justiça é bem forte, por situações corriqueiras a criança se sente extremamente injustiçada e prejudicada. O sentimento se torna mais individual. A criança vivencia pela primeira vez, o “estar em casa” dentro de si. (2000, p 58). Na época dos 12 aos 14 anos, a pré-puberdade, dá-se a grande fase do alongamento dos membros, de crescimento longitudinal. Também aqui a imaginação criativa se desenvolve e será a base do entusiasmo e da criatividade no setênio entre 28 e 35 anos por conta do espelhamento. Burkhard durante muitos anos viveu em São Paulo, onde fundou a Clínica Tobias. Atualmente reside em Florianópolis, onde fundou a Clínica Vialis. Desenvolveu um trabalho pioneiro sobre as leis gerais do desenvolvimento humano denominado Biográfico, com vários livros publicados em várias línguas. Seguem abaixo as palavras e vivência de uma professora Waldorf1 do terceiro ano com crianças de oito para nove anos para um melhor entendimento do caminho de evolução da humanidade sob a forma de mitos e linguagem simbólica relacionado com esta passagem da biografia humana: Chegar à Terra. Ser acolhido em seu seio e dar início à vida... Adão e Eva saem do Paraíso e, em estado de sono, colhem do chão e se abrigam com o que se lhes oferece. O mundo é bom! Perder o sustento firme e seguro obriga a andar com os próprios pés. No difícil começo, conquistas e tropeços nos primeiros passos. O corpo do homem... Então vem Noé enfrentar o dilúvio. Construir uma casa, ainda flutuante, na qual deve recolher-se. Ficar consigo mesmo. Naquele espaço interior aguarda a mensagem divina... Enfim o céu se abre e se descortina o mundo novo! Um arco-íris colore o céu, tingindo o sonho, a esperança no que há de vir. O mundo é belo! Noé planta e prova da videira. Comunga com a terra. Estabelece-se outro vínculo. Sentir-se separado do todo, mas pertencente a ele. A alma do homem... 1 VEIGA, Marta A. Agenda do Colégio Waldorf Micael em 2005. 20 Mais tarde, a nova arca, a Arca da Aliança, que porta a tábua de pedra com os dez mandamentos recebidos por Moisés no Monte Sinai formaliza a união. Estabiliza a relação, fincar raízes, buscar seu lugar, chegar à Terra Prometida! O mundo é verdadeiro! Erigir valores, estabelecer regras, formular e compreender leis. Acordar. Pensar! O destino do homem... Nove anos, passagem, rubicão. Atravessar divisores de águas! Selar um primeiro pacto de união entre céus e terra, a partir da casa que se quer erguer nesse mundo. Fincar estacas, sentir-se transformado e transformador. Reconhecer o Paraíso, estabelecendo sua morada, com vontade de ser acolhido e de acolher o que foi criado. Medo, insegurança, solidão, incertezas, sonhos... Semente lançada ao grande desafio que se perpetua no maravilhoso caminho do indivíduo, na senda da humanidade, germe de trabalho, da vivificante possibilidade de, a partir de si, colocar a obra em prol da coletividade. 3.2 A PASSAGEM DO RUBICÃO A passagem dos nove anos também é denominada pela Pedagogia Waldorf de a passagem do Rubicão. Rubicão é o antigo nome latino de um riacho na Itália setentrional. Na época romana, corria para o Mar Adriático. O rio ficou conhecido pelo fato de que o direito romano da época da República proibia qualquer general romano de atravessá-lo com suas tropas. O curso da água marcava então a divisa entre a província da Gália Cisalpina e o território da cidade de Roma (posteriormente, a província da Itália). O General Romano Julio César tomou uma decisão crucial: atravessar o rio Rubicão com seu exército, transgredindo a lei do Senado que determinava o licenciamento das tropas toda vez que o general de Roma entrasse na Itália pelo norte. Este ato foi a declaração de guerra civil contra Pompéia, que detinha o poder sobre Roma. Com as palavras alea jacta est (a sorte está lançada), César resolveu voltar com seu exercito à cidade. Uma vez atravessado o Rubicão e já em terras 21 romanas, ele sabia que não tinha volta. Ou ele e seus soldados tomavam a cidade ou Pompéia os destruiria. 2 Decorre deste fato histórico que atravessar o Rubicão é ultrapassar fronteiras, defrontar-se com um caminho difícil e desconfortável. César, apesar disso, atravessou o Rubicão. A frase “atravessar o Rubicão” passou a ser usada para referir-se a qualquer pessoa que toma uma decisão arriscada, sem volta. Como as crianças vivenciam esta passagem do Rubicão? Koepke responde em seu livro “Encountering the Self” que “há um traço de tristeza em seus olhos, tornam-se mais sensíveis, mais aware do mundo ao redor, se sentem estranhos. Eles estão perplexos diante desta separação entre eles e o mundo”, explica Koepke (1989, p. 78). É nesta solidão que a criança se encontra e se torna aware do seu próprio eu (1989, p.79). Lievegoed também se pronuncia sobre esta fase dizendo “a criança vivencia seu lado escuro” (1994, p. 65). De repente, a criança sente medo no escuro. Receia do que pode estar escondido embaixo da cama. A porta para o corredor precisa ficar aberta. Ela procura livrar-se do medo que o mundo lhe causa, recorrendo a toda espécie de evocações “mágicas”: nada poderá lhe acontecer se ela entrar no quarto tossindo, ou se chegar até a sua cama sem pisar nas linhas do tapete, coisas assim. A criança tornou-se crítica. As pessoas mais veneradas despencam ao mais baixo nível. Sua crítica se dirige ao ambiente imediato. De repente, ela pode olhar longa e seriamente para o adulto e dizer: “acho seu penteado completamente absurdo”, sem saber de onde lhe vem tal ideia. Assim, a crítica vai espreitando por toda parte, manchando a ingenuidade anterior. Agora, a criança passa a ter um agudo senso de observação: desentendimentos entre os pais, mal percebidos antes, passam a ser notados e vivenciados com muita tristeza. É o caso do depoimento de uma mãe e sua filha com oito anos e meio que visita o pai no fim de semana. A mãe agora, em um segundo casamento, recebe a criança que chega triste. No dia seguinte, a mãe observa que a tristeza continua, acompanhada de choro. Conversando com a criança, a mãe ouve o seguinte 2 Depoimento da professora Daiana R. Brigagão em agosto de 2005. 22 comentário: “Meu pai mente”. A criança costumava visitar o pai, mas só agora é que começa a perceber seu comportamento e enxergar o outro lado do adulto. O manto da infância foi rasgado e a polaridade “dentro – fora” se torna realidade. A criança vive, em atitudes de inconstância, um espírito de contrariedade entre bem-estar e mal-estar. Tudo isso, porem, “da boca para fora” mais com o sentimento do que por meio de atos. De um lado ela acha tudo “chato” e “maçante”, e de outro sonha com experiências novas, com andanças “em lugares onde ninguém esteve ainda”, com “brinquedos que ninguém tem”. 3.3 O PONTO CRUZ A Pedagogia Waldorf salienta que aos nove anos de idade, a aprendizagem não ocorre mais tão forte pela imitação, como era antes, nos três primeiros anos da criança – a imitação de gestos, sons, impressões, reações, emoções até, também pensamentos e a grande conquista do ser humano que é o andar ereto, pois em seu entorno as pessoas andam eretas, verticalizando sua coluna vertebral e mantendo sua cabeça equilibrada. Eikenboom nos fala desta estrutura e posição vertical do corpo humano que nos dá como seres humanos a habilidade de orientação espacial e de nos tornarmos conscientes do espaço tridimensional. Nesta posição vertical os olhos humanos focam para combinar informação dos órgãos dos sentidos do lado esquerdo e do lado direito, o que dá ao ser humano a posição única no mundo da criação. Figura 1: Representação das vias ópticas 23 Mamíferos como o cavalo e o cachorro têm seus olhos em cada lado das suas cabeças. Até os gatos e corujas cujos olhos olham para frente, não focam como os seres humanos. “Este foco dos olhos dá ao olhar a perspectiva tridimensional. Com esta perspectiva tridimensional, a consciência do self se desenvolve”. (EIKENBOOM, 2007, p. 06) Vejamos a figura acima do trabalho “O Olho e a Visão” dos professores Milton Ruiz Alves e Newton Kara José quando afirmam “o cérebro é capaz de fundir as duas imagens em uma percepção visual única” (1996, p. 09). Quanto ao ponto cruz no currículo da Pedagogia Waldorf é oportuno lembrar a afirmação de Eikenboom quando se referia ao foco dos olhos que dá ao olhar a perspectiva tridimensional e, com esta perspectiva, uma consciência do self se desenvolve. A esta citação de Eikenboom, adiciona-se o trabalho dos professores Milton Ruiz Alves e Newton Kara José - UNICAMP e FMSP - que afirmam “a acuidade visual vai se aprimorando graças aos estímulos visuais e alcança níveis iguais aos dos adultos ao redor dos 4 anos de idade; no entanto, a visão de cada olho, assim como a visão binocular, não é uma capacidade inata, as funções visuais estão plenamente desenvolvidas somente por volta dos 9 anos de idade”. (1996, p. 13) Alves e Kara José esclarecem que as qualidades ópticas do olho são tais que a imagem de um objeto situado longe do olho forma-se sobre a retina (fig. 1). Graças ao poder convergente da córnea e do cristalino, quando o objeto aproxima-se do olho, a acomodação intervém. A acomodação intervém mais, quanto mais próximo do olho estiver o objeto. A luz ao chegar à retina, estimula a camada de cones e bastonetes, originando ondas elétricas que se transmitem ao nervo óptico. O nervo óptico atravessa a órbita e entra no cérebro, dirigindo-se à região responsável pela visão (córtex occipital) onde se processa o fenômeno de formação das imagens. Os autores explicam a representação das vias ópticas: cada olho recebe e emite uma imagem; no entanto, quando fixamos um objeto nós o vemos como um só olho (1996, p. 09). Ao oferecer, em trabalhos manuais, o ponto cruz, estaria a Pedagogia Waldorf dando à criança uma oportunidade para reforçar o amadurecimento do nervo ótico? Uma vivência em que a criança de nove anos expressa seu momento? A celebração e o coroamento da chegada do eu expresso na imagem binocular cruzada? Possivelmente, as três alternativas. 24 Ao integrar em um trabalho plástico, a linguagem das cores e das formas, como o bordar em ponto cruz, inclusive bordando o seu próprio nome, o arteterapeuta propicia à criança vivenciar sua paisagem interior mesclada de emoções de várias cores como reflexo da complexidade e da simplicidade do ser humano. De caráter pedagógico e terapêutico, a arteterapia disponibiliza diversos recursos e materiais, um ambiente adequado e acolhedor, a contemplação de obras de arte; com esta vivência sensorial ao sujeito é revelado aspectos do seu emocional, antes desconhecidos, ampliando a percepção de Si mesmo. 25 4 A TOMADA DE CONSCIÊNCIA 4.1 O SENTIDO DO EU “Como um dos pontos altos do desenvolvimento humano”, afirma Konig (1985, p. 94), “surge a capacidade da criança para denominar a si mesma com a palavra eu”. À medida que a simpatia se desenvolve, adormecemos para dentro de outra pessoa; enquanto que se a antipatia se desenvolve, nós despertamos. Este processo do despertar só se realiza na época do primeiro período de teimosia: antes do terceiro ano de vida, pela primeira vez, a criança começa a defender-se do mundo circundante, antepondo antipaticamente sua própria vontade a tudo que a rodeia – a criança agora quer fazer tudo sozinha – ela toma consciência de si mesma. A consciência do eu desenvolve-se, opondo-se. Conhecemos muitos exemplos: “eu não quero banho” e depois, “eu não quero sair do banho”. Este processo, porém possibilita que o comportamento da criança, até agora tão “simpático”, passe a ser ambivalente, incluindo traços extremamente “antipáticos” em suas vivências. É nesta continua alternância que pode desenvolver-se o sentido do eu. É uma fase perfeitamente positiva do desenvolvimento que ora tem início. O sentido do eu necessita de um longo período de formação antes de estar plenamente desenvolvido. O tempo de formação do sentido do eu vai até mais ou menos o nono ano. Com o nono ano esta paisagem muda radicalmente. No bebê a cabeça é grande demais em relação ao resto do corpo. Gradualmente esta desproporção se harmoniza. “Das formas pueris, surge uma estrutura corporal harmônica. Esta forma corporal proporcional coincide com o término da formação do sentido do eu.” (KONIG, 1985, p. 100) (grifo nosso). 26 Na sequência, os membros do corpo evolvem para figuras terrenas, como afirma Konig “o ser em crescimento se entrega ao âmbito terreno, torna-se pesado, difícil e preocupado com seu destino” (1985, p. 101). “... através do sentido do eu o ser pode reconhecer o Outro como irmão.” (KONIG, 1985, p. 101). Quando Karl Konig se refere sobre os sentidos do eu, do sentido da linguagem e do sentido do pensamento estamos diante de outra característica da Pedagogia Waldorf conhecida como os doze sentidos. Albert Soesman em seu livro “The Twelve Senses” os esclarece e exemplifica (1975); tão importantes são para o trabalho arteterapêutico: sentido do tato, sentido do equilíbrio, sentido do movimento, (propriocepção), sentido vital (do bem estar), sentido térmico, sentido do olfato, paladar, visão, sentido da audição, sentido da linguagem, sentido do pensamento e sentido do eu e, por conseguinte o sentido do outro. Este tema por si só merece muitas outras páginas que se distancia do foco do presente trabalho. Importante citar como o autor assim termina o seu trabalho sobre os doze sentidos: “A terapia precisa começar com o sentido de gratidão e encantamento para com o alimento e nutrição que são dados pela natureza, através dos doze sentidos, para que possamos acordar para nós mesmos e, para as nossas responsabilidades aqui na terra.” (1975, p. 161) Koepke (1989) conta a história de Pedro nesta passagem de idade quando os pais e a professora de classe se encontram para conversar sobre o novo comportamento da criança. Desta conversa os pais reconhecem que uma falta de equilíbrio na criança pode ser corrigida pela harmonia entre o pai e a mãe. A criança vivencia isto como uma benção e principalmente, mais ainda agora, aos nove anos. A partir deste encontro, a professora sentiu maior proximidade com os pais da criança. Um tempo mais tarde, a professora faz com a classe uma casinha de madeira. Quando estava quase pronta as crianças pedem para a professora fazer também uma porta, pois do contrário não poderiam fechar a porta para ficarem sozinhas lá dentro. Os pais de Pedro depois relatam à professora que a criança estava diferente ou o olhar dos pais estava diferente para com a criança ou, ainda, um pouco dos dois. A construção de uma miniatura de moradia – de uma casa – faz parte do currículo da Pedagogia Waldorf para o terceiro ano. Paredes são levantadas, um 27 teto em cima delas e o lado de fora não tem tanta importância. Nesta atividade as crianças vivenciam fazer o seu próprio espaço interno e esta experiência de espaço é justamente o que as crianças estão procurando. Desta maneira, elas encontram o que precisam: com a perspectiva tridimensional, uma outra consciência do self se desenvolve. 4.2 CARREGO E SUPORTO UM EU Célia Gago em seu relato “A pedra e seu simbolismo na vida e obra de Jung” (2008, p. 24) traz as lembranças de Jung de um período próximo aos dez anos quando se entregava “apaixonadamente a brinquedos de construção. Lembro-me, com clareza, relata Jung, de que edificara casinhas e castelos, com portais e abóbadas, usando garrafas como suporte; um pouco mais tarde, utilizei pedras naturais e terra argilosa como argamassa.” (JUNG apud GAGO, 2008, p. 24) (grifo nosso). Pela primeira vez, a criança vivencia o que é estar em seu mundo – carrego e suporto um eu dentro de mim – este sentimento vem de dentro para fora. Como abrigar esta entidade? Poderíamos afirmar que o eu e o adjacente Eu Superior pede uma morada? Jung lembra que há uma diferença entre perfeição e inteireza: “A aspiração à perfeição não só é legitima, como também e, mais ainda, uma característica inata do ser humano”. (1990, p. 64) Jung apresenta a ideia de que o indivíduo pode empenhar-se na busca da perfeição, mas é obrigado a suportar, por assim dizer, o oposto do que intenciona, em benefício de sua inteireza (1990, p. 65). Jung afirma que “só aquele que é íntegro por experiência sabe o quanto o homem é insuportável para si mesmo” “Árvore nenhuma”, afirma Jung, “cresce em direção ao céu, se suas raízes também não se estenderem até o inferno” (1990, p. 41) “Como o si-mesmo psicológico é um conceito transcendente, pelo fato de exprimir a soma dos conteúdos conscientes e inconscientes, ele só pode ser descrito sob a forma de uma antinomia.” (1990, p. 58) Jung nos lembra que, 28 ... já não se faz mais necessário que se mantenha a separação entre mau, ctônico, material de um lado e bom, espiritual, de outro, pois ambos caracterizam o si-mesmo psicológico como uma totalidade; ele deve incluir os aspectos luminosos e também os obscuros, da mesma forma que o simesmo abrange, sem dúvida, o aspecto masculino e o aspecto feminino. É por este motivo que a individuação é um “mysterium conjunctionis” [mistério de unificação] dado que o si-mesmo é percebido como uma união nupcial de duas metades antagônicas (1990, p. 59). A inteireza implica incluir luz e escuridão, alegrias e medos, vergonha e raiva. “Vergonha e medo são como as fronteiras da consciência”. (KONIG, 2006, p. 73). Para o autor, medo, vergonha e ira são bons amigos. A ira caminha diante de nós, guiando os julgamentos morais. De um lado o medo e, do outro lado, a vergonha. “Eles são os bons servidores do Eu Superior, prestam auxílio na medida em que o eu inferior necessita”, continua Konig (2006, p. 81). Nosso ser inconsciente abriga esses três companheiros. A própria profundeza é preenchida com a força da ansiedade. Agora, podemos imaginar nossa individualidade, nosso eu inferior, “guiado pela ira, sustentado pelo medo e a vergonha e pisando no solo da ansiedade” (KONIG, 2006, p. 81). Essas são as quatro grandes emoções que acompanham cada um de nós ao longo da vida na Terra. Elas se originaram no momento da Queda. Depois que Adão e Eva comeram o fruto da Árvore do Conhecimento, perceberam sua nudez, de acordo com o mito da criação. Konig enfatiza, Corar de vergonha significa ficar face a face com o próprio eu. A súbita percepção que acometeu Adão e Eva está continuamente presente em cada um de nós. Quando Adão e Eva deixaram o Paraíso, foram acompanhados pelo medo e a vergonha e, a ira caminhou diante deles. Os filhos de Adão e Eva aprenderam a entender que o Paraíso será novamente acessível quando suas almas se transformarem. Quando a ira tiver se transformado em amor, a vergonha tiver se tornado esperança e, o medo tiver se metamorfoseado em confiança. As imagens aparecem: a alma começa a falar de si, a nomear-se, a descrever seu ser. A alma venera todo o vir a ser do homem. (2006, p. 82). (grifo nosso) Ao iniciar este trabalho, a pesquisadora tinha como proposta responder algumas perguntas e esta é a resposta a uma delas, pois a Pedagogia Waldorf traça um paralelo entre esta passagem de idade dos nove anos e a saída do Paraíso relatado no mito da criação. 29 Konig (2006) afirma que a súbita percepção que acometeu Adão e Eva na força deste mito está presente em cada um de nós e a Pedagogia Waldorf coloca a presença do mito para explicar esta passagem de idade - o portal dos nove anos. 30 5. CONTRIBUIÇÕES DA ARTETERAPIA 5.1 CONSCIÊNCIA, VIVÊNCIA E REALIZAÇÃO DO EU Como amenizar este período dos nove anos desde seu início? Lievegoed responde que, “antes de desmoronar, o respeito dedicado a uma pessoa pode ser dirigido a algo que transcenda o âmbito pessoal. A criança pode constatar que o próprio adulto venerado reconhece uma autoridade superior que fundamenta sua existência” (1994, p. 67). A criança pode vir a conhecer a autoridade da sua autoridade. A criança durante este tempo difícil pode chegar a uma conexão com seu Eu Superior, uma espécie de conhecimento que permanecerá ao longo do seu processo de tomada de consciência integrada ao se aproximar, por exemplo, de uma outra dimensão nas palavras encontradas no Velho Testamento: “Minha casa é a casa do Senhor e para sempre o há de ser. O Senhor é meu Pastor”. (BÍBLIA SAGRADA, Salmo 23, v. 6). Desde pequena, a criança, entre os três e os seis anos, ao ir adquirindo a consciência do eu vai edificando uma imagem provisória do mundo. Como ativa que é - ela sente o impulso de também exteriorizar essa imagem. É no desenho que a criança pequena projeta para fora sua imagem interna. Ela rabisca garatujas, círculos, na fase seguinte, adiciona os traços retos, e, desta forma, são vivenciados cabeça, tronco e membros. “Desenhar” o ser humano é desenhar ela mesma em seu amadurecimento e movimentos primários: erguendo a cabeça, o tronco e erguendo-se em pé, “sustentando-se com os membros inferiores para liberar as mãos.” (BURKHARD, 2000, p. 56). O começo da vivência do eu coincide com a crise dos nove anos. Mais uma vez, a nascente experiência do eu tenta uma ação contra o mundo ambiente. Desta vez, porém, isso ocorre na área do sentir. Surge do íntimo uma crítica aos colegas, aos adultos, enfim, as pessoas ao redor. 31 A relação com o próximo pode ser sentida como algo dramático. Esse drama marca o conflito entre a relação subjetiva e objetiva do eu com o mundo exterior. Desenhar é para a criança pequena, o mesmo que o diário íntimo o é nesta fase de expressão dos nove anos quando ela aprecia também as artes musical e dramática. É no diário que se revela a evolução da vivência do eu. Mais tarde, surge o expressar-se de forma poética. Lievegoed traça um paralelo entre o terceiro ano de vida (hoje em dia, cada vez mais cedo), o nono e, mais tarde, o décimo oitavo ano de vida. “Depois da tomada de consciência do eu e da vivência do eu, nasce o impulso para se expressar no mundo o que vem a ocorrer anos mais tarde, por meio do que a pessoa produz no mundo, ou seja, sua atividade profissional e orientação da própria biografia.” (1994, p. 95). A realização do eu no início, em torno dos dezoito anos, é sempre acompanhada de um idealismo. Somente bem mais tarde, ele descobre que existe uma maneira mais interiorizada de realizar o eu. A realização do eu começa quando a pessoa dirige a vontade de seu eu para o íntimo, começando a trabalhar sobre si mesmo. Isto ocorre quando a pessoa assume o seu próprio processo de autoeducação e autodesenvolvimento interior. “A realização do eu é a tarefa mais sagrada de uma vida humana.” (LIEVEGOED, 1994, p. 98). A realização do eu dirige-se à vida social. “Depois de desenhar, quando pequena, e expressar-se criativamente de várias maneiras, mais tarde, a pessoa pode tornar-se um criador social ao tecer o tecido social”, conclui Lievegoed (1994, p. 99) (grifo do autor). 5.2 POSTURA DO ADULTO Nem todos os adultos alegram-se com o despertar do eu na criança. Quanto à postura dos pais, cuidadores e adultos uma compreensão do que está acontecendo com a criança muito contribui, pois evita preocupação desnecessária do adulto dando o suporte que a criança necessita. 32 Dependendo do temperamento da criança este acordar para o mundo pode ser como uma surpresa quieta ou uma crítica aguda. Os laços da influência do lar se afrouxam em certa medida e a criança entra num período de insegurança e medo quando surgem perguntas: Quem são meus pais? Quem me assegura que eles o são realmente? Quem são meus mestres? O que lhes dá o direito de serem meus professores? Eles realmente sabem tudo? Essas perguntas apontam para um eu que não sente mais a antiga ingenuidade com relação a si mesmo e com o mundo. A relação com a morte se transforma. A criança pequena às vezes causa espanto pela conformidade com a morte. Quem morreu está morto e “está junto com os anjinhos”. Na presente idade, porém, pela primeira vez, a morte é vivenciada com outra ponderação. É um tempo quando a morte e imortalidade tornam-se íntimos e se aproximam da consciência da criança. Rudolf Treichler em seu trabalho “Biografia e Psique”, afirma que, ...numa visão de conjunto, a vivência do isolamento é característica – uma vivência que costuma associar-se ao luto. Tanto mais importante é então a autoridade amorosa dos educadores, dos pais e cuidadores, dirigida ao coração da criança, quando esta ameaça se afundar nas profundezas de seu organismo. É a partir do coração que a reunião com o mundo é novamente reatada, sendo oferecido um novo apoio ao eu, que no entanto tem que ser assumido a partir do íntimo (1988, p. 30). Uma professora Waldorf3 de uma classe de crianças com esta idade (em 2009) assim relata: “Estou agora, na época e contexto da história dos Dez Mandamentos, que reforçam a imagem de que os homens ainda precisam de um ser maior para conduzi-los no mundo. A imagem dos Dez Mandamentos ajuda a mostrar que elas – as crianças - ainda precisam de algo superior para guiá-las e que podem confiar nisso, sem a necessidade de tantas explicações”. Para dar equilíbrio à criança, pais, cuidadores e profissionais - juntos compreendendo e atendendo as necessidades reais dela, entendem que esta fase passará, pois a criança aos dez anos já é mais harmoniosa e desta forma constitui um bom intervalo entre esta crise dos nove anos e a adolescência. Permitir que a 3 Depoimento da Professora Analia Calmon em agosto de 2009. 33 criança tenha sua vida emocional sem tentar “consertá-la”, respeitando sua necessidade de privacidade, tolerando a distância, o seu ritmo e o seu tempo, diferente daqueles do adulto, as relações vão mudando e se acomodando até se completarem. O importante é reafirmar que a criança ainda é amada. A criança não mais aceita cegamente a autoridade do adulto, mas estabelece uma nova relação de respeito à autoridade de outros adultos em sua vida. Conversar, apoiar e incentivar a atividade artística individual como, por exemplo, escrever poesia, manter um diário, desenhar, pintar, tocar um instrumento, modelagem com cera de abelha, e bordar o ponto cruz. Criar oportunidades para construir coisas, visitar uma fazenda, cultivar plantas, fazer coisas reais e verdadeiras antes de incentivar uma tecnologia de computadores, vídeos games e internet que é mais apropriada à adolescência. Alimentar a criança com histórias que ilustram a interconexão entre seus atos e as consequências inevitáveis. Do Velho Testamento, a história de José com seu manto de muitas cores traz - em seu bojo - este elemento de sonho emoldurando seu destino e a paciência que necessitou para ver o sonho se manifestar. Não só as histórias do Velho Testamento espelham este estado interior da criança de nove anos, mas também os Mitos de Criação, que traçam um paralelo com esta experiência íntima da criança ao sair do paraíso da infância, ao adquirir uma nova consciência de si própria, pois vários mitos, de diferentes culturas, descrevem esta passagem. Em seu trabalho “Mitos de Criação” Franz relata um mito esquimó sobre o ser Tulungersaq, ou Pai Corvo, não como uma ave comum, mas um poder sagrado, criador de vida, e, de todos os outros seres. Essa é uma linda história que mostra que o processo de despertar para uma percepção de realidade é parecido com o estado de ânimo de quem sai de um estado de inconsciência. Pai Corvo se torna lentamente consciente e à luz dessa consciência, a realidade começa, ao mesmo tempo, a existir. (2003, p. 38-39). Franz lembra também, do mito de criação dos Winnebago “cujo primeiro passo é despertar para uma percepção consciente do mundo externo” (2003, p. 40). 34 5.3 RECURSOS ARTETERAPÊUTICOS Como os recursos arteterapêuticos dão suporte para que a criança possa atravessar este portal? Desde os primórdios até os dias atuais, quando entramos em contato com qualquer manifestação artística, estamos diante de manifestações de costumes, cultura, língua, religião, política, enfim, temas ligados à vida do ser humano, da história da humanidade, da qual fazemos parte. Ao caminharmos no tempo, bem lá para trás, as pinturas nas cavernas já delineavam uma ponte expressiva entre o dentro e o fora, entre o espaço protegido e interno para um outro espaço – o espaço do mundo cheio de desafios e adversidades. Desde tempos longínquos, as manifestações artísticas são ao mesmo tempo, expressões do pluralismo e da singularidade do indivíduo. Na Grécia Antiga, a arte já era reconhecida como um recurso terapêutico que revela, transforma e colabora na construção de seres mais criativos e saudáveis. A contribuição da arteterapia, hoje, continua a acontecer na prevenção, promoção e geração de saúde. O arteterapeuta há que trabalhar-se em sua própria terapia, em contínuo processo e persistente empenho de autoconhecimento a fim de poder perceber núcleos saudáveis em seu cliente e poder acolher, alimentar, acreditar na pausa, no silêncio e na transformação. O arteterapeuta cuida para que sejam criadas condições de superação das necessidades do seu cliente para acontecer a passagem, o re-significado e a desejada integração. Como Paes de Almeida afirma em “Corpo Poético”, ...a conjunctio é obra do esforço pessoal e do imponderável. A conjunctio é uma experiência de integração e não de perfeição, experiência esta que não pode ser congelada. Ela deve ser renovada continuamente para se manter viva. Nós não podemos possuir a conjunctio, podemos só facilitar a sua ocorrência. (2009, p. 147). Enquanto processo, a arteterapia facilita o processo de expressão, enquanto expressão plástica é um meio de estabelecer uma comunicação. Para Medeiros e Branco “a arteterapia permite ao arteterapeuta observar o paciente enquanto vive uma experiência nova” (2008, p. 23). 35 Para as autoras, a arteterapia “atua como função poética, como facilitadora de expressão por meio da construção plástica com texturas, formas, cores e símbolos projetados pelo inconsciente infantil” (2008, p. 26). Para Selma Ciornai, arteterapeutas funcionam como guias, facilitadores e companheiros de busca, sugerindo experimentos que possam ajudar e revelar realidades interiores e descobrir novos caminhos e direções, “acreditando que as pessoas podem ser agentes da própria saúde e de seus processos de crescimento” (2004, p. 09). Ao compreender este momento da passagem dos nove anos no desenvolvimento do ser humano, a ação do arteterapeuta contribui para que o indivíduo recupere na sua criança interior o fio dourado emaranhado que ficou lá trás. Philippini nos lembra que “em arteterapia o trajeto é marcado por símbolos particulares que assinalam, informam e definem sobre os estágios da jornada de individuação de cada um” (2008, p. 15). Cabe ao arteterapeuta estar familiarizado com os estágios da jornada de individuação do ser humano. Uma atitude terapêutica prevê a escolha de materiais expressivos, a adequação do ambiente arteterapêutico a um determinado cliente e, no caso de uma criança pela passagem dos oito aos nove anos, dentre as inúmeras possibilidades criativas disponíveis ao arteterapeuta, aqui são oferecidas algumas sugestões que fazem parte da composição desta proposta de pesquisa: - desenhar e pintar; - trabalhar com as mãos; - trabalhar pés e mãos com desenho de formas em uma superfície de areia; - bordar em ponto cruz; - fazer corantes naturais e descobrir a nuance das cores; - fazer nós com fios, barbantes e cordões (quando ocorrem os cruzamentos dos fios); - tecer; - utilizar ferramentas; - conhecer as diversas profissões; - trabalhar a terra, jardinagem; - brincar com jogos de roda e correr (a casa do rato e o gato); - brincar de construir castelos com areia; 36 - brincar com jogos de construção; - conhecer algumas histórias do Velho Testamento; - tomar conhecimento de mitos de criação; - pintar a Gênesis – os sete dias da Criação, as sete manhãs, a paisagem e a geografia de cada dia, os seres criados; - escrever um diário; - colagem (em terceira dimensão) com folhas de revistas, jornal, tecido, papelão, palitos de sorvete; construir e colorir a arca de Noé, uma casa ainda que flutuante, onde se recolher. Também barcos, grutas, cavernas, túmulos, areia, pedras, tocas, berços, mandalas, pirâmides, caixas, abrigos; - trabalhar o tridimensional erguendo paredes com rolinhos e placas de argila e massinha, enfim, construir um modelo de uma morada, quer seja, uma casa na árvore, iglu, oca, yurt (tenda de peles dos mongóis) não importa de qual material, cultura ou povo – importa que seja um abrigo para acolher externamente a nova entidade nascente internamente. 37 6 ESTUDO DE CASO 6.1 METODOLOGIA A condução do trabalho arteterapêutico do estágio supervisionado seguiu as etapas da Oficina Criativa® segundo a metodologia da Dra. Cristina Dias Allessandrini. Para a autora, “a Oficina Criativa é o trabalho de atendimento” cuja composição inclui várias etapas, cada ação vivida em todo seu objetivo, mas encadeadas para que o participante – uma vez aceitando o convite do arteterapeuta - vivencie seu “processo de descoberta, expressão e elaboração de conteúdos pessoais e significativos” (1996, p. 41). O processo tem início com a etapa da Sensibilização em que o participante apóia-se na percepção de seu eu e do seu entorno para estabelecer uma relação de contato consigo mesmo, com seu mundo interior, com seu ser. Para perceber-se, faz-se necessário andar pelos caminhos do sensório, de modo a proporcionar ao participante uma dinâmica interna de integração sensorial, respeitando o indivíduo em seu ritmo e estilo de como apreende o mundo. Na etapa seguinte – Expressão Livre – através de técnicas e materiais artísticos como aquarela, bordado, tecidos, bonecos, parafina, fios, barbantes, massinha, sementes, pedras, argila, areia, papel, construção com jornal, revistas, sucata, o sentimento se adensa e corporifica, potencializando-se para uma nova ação diversificada. Na sequência, a etapa - Elaboração da Expressão – permite ao participante aprimorar, “re-elaborar”, ainda na perspectiva da arte e da representação não-verbal, aqueles conteúdos recolhidos nas etapas anteriores. Para Allessandrini, figuras e formas ganham novos contornos, linhas e cores. Esta etapa é de máximo valor quando o participante manifesta um empenho em ser “único e criativo” para deixar mais claro seu conteúdo. (1996, p. 43) A autora propõe como etapa seguinte a Transposição para a linguagem verbal para, de um outro ângulo, com uma outra linguagem, “re-significar” o 38 processo, sugerindo a criação de mensagens e textos. Desta forma, trabalha-se a estruturação e sistematização do pensamento, trabalha-se o nível trans – uma outra dimensão ampliada da experiência até agora vivida. (1996, p. 43) Na etapa final – Avaliação – acontece a distância reflexiva, quando o participante “re-vê” o que envolve o conjunto de informações permitindo distinguir os processos significativos. “As Oficinas Criativas, as quais propõem um trabalho integrativo entre linguagens não-verbais e verbais, permitem a concretização de uma imagem interna significativa do indivíduo, fazendo com que aflore seu conteúdo simbólico” afirma Allessandrini (1996, p. 56). “A descoberta de um fazer criativo surpreende aquele que faz, pois muitas vezes ele se percebe capaz de realizar o novo, de dar um corpo a sua idéia, de apresentá-la com um colorido próprio, representando simbolicamente o que lhe é tão precioso.” (1996, p. 49) “Enfim, a construção e a elaboração de projetos através da arte se dão da mesma maneira como o indivíduo constrói sua aprendizagem ao longo da vida.” (1996, p. 46) 6.2 TRABALHO ARTETERAPÊUTICO DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO As etapas da Oficina Criativa® (ALLESSANDRINI, 1996) foram essenciais para dar estrutura ao trabalho arteterapêutico realizado no estágio supervisionado. As próprias crianças sentem segurança e menos ansiedade quando sabem da sequência das atividades de cada etapa. A seguir, o relato de um recorte do trabalho arteterapêutico realizado seguindo as etapas do processo de Oficina Criativa®. O objetivo do trabalho arteterapêutico desenvolvido pela pesquisadora neste estágio supervisionado foi proporcionar vivências de arteterapia com a presença significativa do arteterapeuta em quem as crianças pudessem confiar e, promover oportunidades para que expressassem de uma maneira criativa seu momento biográfico, pois atravessar o umbral dos nove anos – constitui um dos momentos iniciais da integração da identidade própria do self. 39 Os encontros aconteceram nas dependências de uma associação comunitária na zona oeste do município de São Paulo, no estado de São Paulo, associação esta que atende uma população de baixa renda onde as crianças são alunos de uma escola pública e apresentam problemas de baixa estima. Durante o período de dois meses, com uma sessão de atendimento por semana, o vínculo com a arteterapeuta foi se fortalecendo com três crianças – meninos de 8 e 9 anos, vínculo este de confiança que se estendeu também à mãe de uma das crianças. No ambiente arteterapêutico – uma sala com mesa e cadeiras e uma janela que permitia a entrada do sol da manhã – a arteterapeuta disponibilizou um cobertor e tecidos macios. Nesta sessão, como nas demais, logo na chegada, as crianças são recebidas com um aperto de mão e um cumprimento caloroso, olho no olho, pois o sentido do tato também coloca limites, diferenciando o que acontece lá fora do que acontece aqui dentro do espaço arteterapêutico, conforme explicado neste trabalho anteriormente quanto aos doze sentidos. Seguindo a primeira etapa das Oficinas Criativas®, denominada sensibilização, por ocasião desta sessão de atendimento, a arteterapeuta faz a “chamada” pressionando leve e firmemente as articulações dos braços, depois dos ombros da criança, ao mesmo tempo em que fala o nome da criança e ela, a criança, responde verbalmente “presente”. Aqui, novamente o sentido do tato é trabalhado colocando limites e diferenciando espaços lá fora e aqui dentro. O trabalho corporal é direcionado a cada criança para que possa ser vivenciado o contato com o próprio corpo e o sentido do Outro. Na segunda etapa - expressão livre – trabalhando livremente a percepção tátil, com o cobertor já estendido no chão as crianças se esparramam e, descalças, sentem a maciez do tecido na planta dos pés. Vários outros tecidos estavam disponíveis com os quais os três participantes se envolviam. Os três meninos saboreavam a maciez dos tecidos na pele vivenciando o sentido do tato procurando e encontrando soluções para um projeto comum, que surgiu a partir deles mesmos, logo a partir da segunda sessão de atendimento, que foi erguer uma cabaninha. 40 Foram oferecidas condições para a criação espontânea pela via não verbal (se bem que foram ouvidas exclamações das crianças como “que da hora”, “que legal”). Em seguida, a arteterapeuta vai relembrando, com as crianças, o momento em que as atividades foram concluídas na sessão anterior. Foi quando as crianças resolveram construir um castelo na areia – que era o cobertor disponibilizado no chão – já que pela janela entrava o sol da manhã e a situação as remeteu à praia. Quem mora no castelo? As crianças vão se lembrando do que aconteceu naquela sessão em que junto com o rei, elas estavam compondo a família do rei: a rainha, a princesa, o príncipe; os ajudantes, cozinheiro, costureiro, sapateiro, os guardas para defendê-lo; e agora, os amigos vão chegando para a festa de aniversário do rei. Com as crianças já situadas no contexto da sessão anterior e para dar continuidade a esta, a arteterapeuta estende uma corda no chão e, juntos, vão se lembrando da festa de aniversário do rei e dos presentes que o rei ganhou. Na sequência, nesta sessão de atendimento, para animar a festa de aniversário do rei, as crianças se apresentam como equilibristas que andam em cima da corda com saquinhos de arroz em cima da cabeça e outros saquinhos nas mãos, estando os braços estendidos. Depois, cada criança cria uma expressão que representa um presente para o rei. A arteterapeuta pergunta se o rei está gostando das apresentações e cada criança, uma de cada vez, é o rei, e, este bate palmas, pois os números apresentados foram de seu agrado. Nesta etapa, foram trabalhados os sentidos: movimento, equilíbrio, tato, propriocepção, audição, visão, sentido da linguagem, sentido térmico, sentido do bem-estar, sentido do pensamento, sentido vital, do eu e sentido do outro. Na elaboração da expressão - as crianças são conduzidas à mesa para desenharem o castelo e a festa de aniversário do rei. Cada criança desenha seu castelo, com sua cor escolhida, com portões, correntes, janela, torres, escada e o entorno com mar e barco, pois o castelo estava em uma ilha. Também, confeccionam presentes para o rei com sucata e papel de seda colorido e barquinhos de papel dobrado. Allessandrini sugere um trabalho desenvolvido ao nível da expressão plástica (1996, p. 119). Na etapa transposição para a linguagem verbal as crianças cantam e apreciam muito o cantar em grupo de mãos dadas. Elas ainda não dominam a 41 escrita, mas o canto em roda circular é muito significativo e acolhedor com um sentimento de pertença ao grupo, pois o círculo é uma mandala que remete a um efeito integrador. Na etapa seguinte – avaliação - as crianças, em roda, fazem a retrospectiva da sessão, falam do que foi vivenciado e do que mais gostaram. Ao trabalhar vários sentidos, a vivência da integração sensorial acontece uma consciência espacial interna tem a oportunidade de ser preenchida e a criança está contente no sentido de estar/ter um conteúdo – ou seja, preenchida. “O objetivo da vivência de Oficina Criativa é oferecer ao sujeito a oportunidade de experienciar o preenchimento de um vazio.” (ALLESSANDRINI, 1999, p. 108). Como bem afirma a autora “crianças com dificuldades devem poder vivenciar situações de preenchimento que propiciem um reequilíbrio interno cognitivo e afetivo a partir do fazer artístico espontâneo” (1996, p. 59). Desta forma, as crianças saem da sessão de arteterapia, bem contentes e com seus pares também; desejando repetir, nas sessões seguintes, o sentido do bem-estar vivenciado consigo mesmo e com o grupo. Dentro deste contexto de trabalho arteterapêutico embasado em um viés da Pedagogia Waldorf - que dá especial atenção a este momento biográfico do ser humano - é importante citar Brooking-Payne4 quando fala: “um início do que será a puberdade lá na frente, quando o adulto-guia pode proporcionar uma nova estrutura emocional e segurança – um novo “teto” onde ela possa confiar e crescer”. Ainda sobre o trabalho do estágio supervisionado, vale citar a escolha pela cor rosa vivo – magenta – pelos meninos, por ocasião da escolha da cor do papel de seda, dentre outras cores disponíveis em cima da mesa. De acordo com Liane Collot d‟Herbois, magenta é a cor que pode ser vista por um curto período de tempo nas nuvens, “bem no início da manhã e no pôr do sol” (2000, p. 72). Collot diz que magenta tem a qualidade de dar suporte à alma – uma das cores que mais curam; além de a cor magenta ser aquela que integra todo o organismo dando equilíbrio e harmonia. Imagens que ficaram deste trabalho arteterapêutico com os três meninos: 4 Disponível em: www.thechildtoday.com. Acesso em 15 ago. 2009. 42 - deitados no cobertor estendido no chão e o sol entrando pela janela: “Parece que estamos na praia”; “Vamos fazer um castelo de areia? Com rei e tudo“! - crianças engajadas na criação dos personagens presentes na festa de aniversário do rei: o malabarista, o equilibrista, outra criança se vira de cabeça para baixo encostando-se na parede, para agradar o rei; - durante a colagem: o convívio saudável dos pares entre si: “olha que lindo, pega esse cachorrinho aí”; - a alegria da criança ao aprender a cantar: “quem me ensinou a nadar”... - a criança se expressando: “vou desenhar a família do peixinho e sua casinha”. Nesse último caso, mais uma vez, a criança expressa seu momento, ou seja, “uma casa para o peixinho”. Durante o período de atendimento, constatou-se o bem-estar que as crianças sentiram, com o recurso encontrado a partir dos tecidos e as cadeiras, ao erguerem a cabaninha – atividade a que se dedicavam espontaneamente em cada uma das sessões de atendimento, logo a partir da segunda. As crianças escolhem fazer a construção de uma miniatura de moradia – elas dispõem os tecidos em cima das cadeiras - um teto em cima delas - nesta atividade as crianças vivenciam o próprio espaço interno: com a perspectiva tridimensional, uma outra consciência do self se desenvolve. O todo deste conjunto de sessões de atendimento contribuiu para que as crianças expressassem o seu momento de uma maneira significativa e prazerosa. Para a pesquisadora foi um rico período para perceber núcleos saudáveis, acolher a infância, alimentar o “espaço transicional” com a arteterapia - uma grande aliada. Uma atitude de gratidão permeia esta oportunidade de trabalhar o olhar arteterapêutico que parece uma boa postura perante a vida: acolher, olhar nos olhos, fazer perguntas, ouvir, criar conexões neuronais, disponibilizar condições e materiais, possibilitar que o outro tome consciência de sua grandeza, acreditar na pausa e no silêncio, na interligação entre soma e psique, incluir o Ser e o Não Ser – tudo junto, aqui e agora - e, conviver tendo consciência da presença significativa de Si mesmo e do Self do Outro para que “entre as duas criaturas” - um milagro pequeño - aconteça (ARRIEN, 1994). 43 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Consta do presente trabalho, histórias que fazem parte do currículo da Pedagogia Waldorf que são aquelas, algumas já mencionadas, do Antigo Testamento que introduzem o ser humano desta idade ao universo das escolhas de suas ações e as conseqüências de suas ações. Além do “João de Ferro”, nos anexos, encontra-se “A menina da Lanterna” que, entre outras muitas histórias, ajudam a criança a transpor este limiar dos nove anos preparando o substrato simbólico, por sua relação com os pólos consciência – inconsciência, e, caminhando para uma atitude integradora, atitude essa que pode capacitar o ser humano a buscar a coragem de ser ele mesmo. Desde os primórdios, a história é um espelho que reflete o contador. Bem afirma Guttmann, “as histórias, como a arte em geral, trazem imagens que se passam dentro de nós, que refletem a alma de nossa realidade humana, com nossos valores, buscas, conflitos e necessidades. Elas atualizam as dimensões pessoais de cada um, possibilitando a consciência e a transformação” (2004, p. 259). Contar histórias é uma atitude saudável. Um profissional da área da saúde - com uma determinada cosmovisão do ser humano - pode receitar não só medicamentos, mas também, um conto de fadas para ser lido todas as noites antes de dormir, por um período de tempo, dada a natureza do conto e o momento que a pessoa está vivenciando. Desta forma, cuidamos das imagens que vão habitar o imaginário de uma pessoa quando ela se recolhe para um sono bom que restaure suas forças físicas, emocionais e espirituais. Uma pessoa pode ser uma criança, um jovem, um adulto ou um idoso, pois contar histórias não se restringe a uma determinada idade. Contar contos de fada para uma criança em crescimento constitui um alimento para sua alma. Ora, seus órgãos estão em formação e as imagens que ela apreende deste mundo permeiam o seu organismo vivo, ou seja, imagens do cotidiano, imagens da televisão, imagens do convívio familiar. Imagens estas que tanto podem ser as 44 alimentadoras como as imagens devastadoras. Tal é o cuidado que devemos ter ao escolher para quem, quais histórias e quais imagens. Contar histórias é uma arte dos dias de ontem para revitalizar os recursos humanos de hoje. Histórias são pontes; hoje, vários profissionais, cada vez mais, trabalham com esta cosmovisão multidisciplinar. Quando focamos alguma coisa com só um olho, nós temos meramente uma visão monocular. Somos incapazes de perceber profundidade. Profundidade "aparece" quando usamos os dois olhos juntos. É a mesma coisa com o conhecimento: é necessária uma justaposição, uma integração e um insight de várias disciplinas. A arte pode ser a segunda lente para se olhar para dentro das coisas. “Uma participação ativa com as artes estimula mentes, emoções e habilidades sociais. Compartilhando formas artísticas somos convidados a re-criar padrões, habilidades, interações”. (VANGUNDY& NAIMAN, 2007, p. 19). Por trás de uma história há uma estrutura e dentro desta estrutura estão os objetos, os animais, as canções, as mais diferentes personagens, as atitudes, a constelação familiar, as paisagens, os ciclos da criação, as estações da natureza, as polaridades, as cores, os números que traduzem a complexidade e ao mesmo tempo, a simplicidade da unidade do ser humano. A história veste uma cosmovisão, uma estrutura orgânica, um todo integrado. Como é importante não retirar detalhes preciosos das histórias: os detalhes contêm ensinamentos milenares – símbolos e metáforas - que pertencem ao acervo cultural da humanidade. Hoje mais do nunca urge cuidar da ecologia da linguagem! A tradição de contar histórias vem de muito longe e é conhecida por muitas culturas como uma experiência vital para a saúde dos indivíduos, da comunidade e do ambiente. As imagens curam tal seu poder transformador. Quanto à reflexão sobre o conto João de Ferro mencionado logo no início do trabalho, acrescenta-se: A bola dourada nos lembra aquela unidade da personalidade que fomos quando criança: uma espécie de brilho, de totalidade, de inteireza, antes de nos repartimos em masculino e feminino, rico e pobre, ruim ou bom, limpo e sujo. Como o sol, a bola dourada esparrama a energia radiante que vem de dentro para fora. (BLY, 1997, p. 07) 45 Assim, Robert Bly nos fala desta criança da história João de Ferro. “Todos nós, meninos ou meninas, perdemos alguma coisa em torno da idade de oito anos. Não importa se homens ou mulheres, pois uma vez perdida a bola dourada, todos vão passar o resto de suas vidas tentando consegui-la de volta” (1997, p. 7). O ser selvagem na história é um personagem, porém, Bly esclarece como sendo aquela energia que está consciente da ferida, da dor: “O Ser Selvagem não é a criança, mas é aquele que vai liderar o caminho de volta à criança. O objetivo não é ser o Ser Selvagem, mas estar em contato com a energia do Ser Selvagem” (BLY, 1990, p. 227). Ao escolher este tema para este trabalho de conclusão de curso, a pesquisadora se propôs a responder as suas perguntas. No decorrer dos trabalhos e agora na finalização, um sentimento de satisfação perpassa todo seu ser, pois a sensação de descoberta e conhecimento evoluiu do individual para se estender às pessoas que contribuíram para este resultado: respostas às minhas perguntas iniciais. Tal conhecimento, como Souzenelle o explicita “implica a evolução daquele que conhece, em seu acesso a níveis de consciência sempre mais elevados”. Ela afirma ainda que a qualidade daquele que conhece, é a do seu ser interior, a do seu ser em marcha rumo ao seu “núcleo” (1984, p. 18). Ao sentido do tato foi dada a preferência para o trabalho arteterapêutico do estágio supervisionado. Por ocasião do tema dos doze sentidos, o sentido do tato não é sem razão que é o primeiro a ser mencionado, porém todos os sentidos estão conectados entre si formando um todo muito bem ordenado. O ser humano que recebe sua primeira massagem ao nascer é um ser muito agraciado, pois ao passar pelo canal da vagina da mulher-mãe ele sente uma composição maravilhosa de sentidos e de sensações. A este todo ordenado dos sentidos e sensações Soesman denominou de „cosmos’. “Seria um acordar? Ou ainda um estar aware dos limites”? (1975, p. 12). Somente pelo tato, o recém-nascido saberá dos limites do berço e de si mesmo; somente pelo tato o ser humano será mais tarde um indivíduo que tem ou não tem tato. Este é um processo de reconhecimento que leva muito tempo até que o indivíduo entre em contato consigo mesmo. É diferente para uma criança ter a possibilidade de entrar em contato com tecidos para sentir a textura e a maciez nas mãos, braços e planta dos pés, e ter a 46 oportunidade de se enrolar em tecidos macios e poder brincar, tocar, abraçar uma boneca de pano; diferente de uma outra criança que tateia brinquedos de material plástico e tecido sintético. Diferentes materiais conferem diferentes vivências. Quando se fala em transformação também é lembrado o trabalho realizado com argila conforme foi mencionado no capítulo quinto quanto aos recursos arteterapêuticos e quando foram elencadas as sugestões, uma delas trabalhar o tridimensional e desta dimensão, o desabrochar do sentido do eu. A argila também é situada como o material mais próximo de um sentido visceral, cuja manipulação provoca diversas reações desde a completa rejeição (aspectos das sujeiras internalizadas) até estados de profundo bem estar (possibilidade de expressar sentimentos), isto é, a vivência de opostos, de se trabalhar o “limpo” e o “sujo”. Assumir de livre e espontânea vontade a inteireza – incluindo o “limpo” e o “sujo” é uma tarefa para a vida toda. Reconhecer o lado escuro da criação – o joio que cresce junto com o trigo – já é um primeiro passo. Entregar-se a esta tarefa rumo à individuação pode ser uma tarefa com muitos ajudantes e companheiros sem, no entanto, negar a presença das forças adversas que fazem parte da comunidade da psique humana. Eis a questão que se coloca ao ser humano cujas fagulhas surgem quando criança nesta passagem dos nove anos. Os conteúdos arquetípicos e o manancial simbólico coexistem no grande oceano do inconsciente, que, aos poucos, com a ajuda de técnicas expressivas da arteterapia são desvelados e revelados para que na pessoa venha a surgir o início do caminho da individuação. 47 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGENDA do Colégio Waldorf Micael, 2005. ALLESSANDRINI, Cristina Dias (org.) Tramas Criadoras. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. _____________. Oficina Criativa e Psicopedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. ALVES, Milton Ruiz; JOSÉ, Newton Kara. O Olho e a Visão. São Paulo: Vozes, 1996. AMES, Louise Bates; HABER, Carol Chase. Your Nine Year Old – thoughtful and mysterious. Gesell Institute of Human Development. New York: Delta book, Dell Publishing, 1990. ARRIEN, Angeles. Gathering Medicine. Boulder, CO. EUA: Sounds True,1994. BÍBLIA SAGRADA. Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, São Paulo, 1991. BLY, Robert. Iron John. Longmead, Dorset – Great Britain: Element Books, 1990. 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São Paulo: Antroposófica, 1984. VANGUNDY, Arthur B.; NAIMAN, Linda. Orquestrating collaboration at work. EUA: Jossey-Bass/Pfeiffer, 2007. 50 ANEXO A JOÃO DE FERRO Era uma vez um rei que tinha uma grande floresta perto de seu castelo, na qual vivia toda sorte de animais silvestres. Um dia, o rei mandou um caçador abater e trazer uma corça, mas o caçador não voltou mais. - “Quem sabe aconteceu-lhe alguma desgraça”, - disse o rei, e no dia seguinte mandou dois outros caçadores à procura do primeiro. Mas estes também não voltaram. Então, no terceiro dia, o rei mandou chamar todos os seus caçadores e disse: - “Vasculhem a floresta toda e não desistam até que encontrem os três desaparecidos!” Mas também de todos esses caçadores não voltou nenhum, e da matilha de cães que eles haviam levado nenhum tornou a ser visto. Desde então ninguém mais quis ousar entrar na floresta, que lá ficou imersa em silêncio profundo e solidão. Só de quando em quando, via-se uma águia ou gavião passar voando por cima dela. Isto durou muitos anos. Aí apareceu um caçador estranho, que se apresentou ao rei, procurando emprego oferecendo-se para entrar naquela floresta perigosa. Mas o rei não quis dar-lhe a permissão, dizendo: - “Não é seguro lá dentro. Receio que aconteça a você o que aconteceu aos outros e que você não volte mais!” O caçador respondeu: 51 - “Meu senhor, eu vou por minha conta e risco; não conheço o medo.” E assim o caçador foi com o seu cão para a floresta. Não demorou muito, e o cão encontrou a pista de uma caça, e quis seguir. Mas, mal ele correu alguns passos, viu-se diante de uma poça profunda, sem poder continuar, foi quando um braço nu surgiu de dentro da água, agarrou-o e arrastou-o para baixo. Vendo isso, o caçador voltou correndo e trouxe três homens com baldes para esvaziarem a poça. Quando eles puderam enxergar o fundo, lá estava deitado um homem selvagem, de corpo cor de ferro enferrujado, e cabelos compridos que lhe cobriam o rosto e caíam até os joelhos. Eles amarraram-no com cordas e levaram-no de volta para o castelo, onde ele causou grande espanto. O rei mandou colocá-lo numa gaiola de ferro no seu pátio e proibiu, sob pena de morte, que alguém abrisse a porta da jaula. A própria rainha ficou encarregada de guardar a chave. Desde então em diante, qualquer pessoa podia entrar na floresta, em segurança. Acontece que o rei tinha um filho de oito anos, que certo dia estava brincando no pátio, quando a sua bola de ouro caiu dentro da jaula. O menino correu até ela e disse: -“Dê-me a bola!”. -“Só depois que você me abrir a porta”, - disse o homem. “Não”, - disse o menino, - “eu não posso fazer isso, o rei o proibiu”. E saiu correndo. Mas voltou no dia seguinte, para exigir a sua bola. O homem selvagem disse: - “Abra-me a porta”. Mas o menino não quis abri-la. No terceiro dia o rei saiu para a caça, e o menino veio de novo e disse: 52 - “Ainda que eu quisesse, não poderia abrir-lhe a porta, porque não tenho a chave”. Então o homem selvagem disse: - “A chave está debaixo do travesseiro da sua mãe, você pode pegá-la ali.” O menino que queria recuperar sua bola jogou a prudência ao vento e trouxe a chave. A porta era pesada, e ao abri-la o menino prendeu um dedo. Uma vez aberta, o homem selvagem saiu, deu a bola de ouro ao menino e foi embora apressadamente. O menino ficou com medo, chamou-o e foi ao seu encalço: - “Ó, homem selvagem, não vá embora, senão eu vou apanhar”. O homem selvagem voltou, pôs o menino nos ombros e foi em rápidas passadas para dentro da floresta. Quando o rei voltou, viu a jaula vazia e perguntou à rainha o que havia acontecido. Ela não sabia, foi procurar a chave, mas esta sumira. Ela chamou pelo menino, mas ninguém respondeu. O rei enviou homens para procurá-lo no campo, mas eles não o encontraram. Então ele pôde adivinhar facilmente o que acontecera, e reinou grande luto e tristeza na corte real. Quando o homem selvagem chegou ao mais denso da floresta, tirou o menino dos ombros, colocou-o no chão e disse: - “Você nunca mais verá seu pai e sua mãe. Mas vou conservá-lo comigo, porque você me libertou e eu tenho dó de você. Se você fizer tudo o que eu mandar, passará bem aqui. Tenho ouro e tesouros à vontade, mais que qualquer um no mundo.” E arrumou para o menino um leito de musgo, no qual ele adormeceu. Na manhã seguinte o homem levou-o a um poço e lhe disse: 53 - “Está vendo, este poço de ouro é límpido e claro como cristal! Você deve ficar sentado aqui e cuidar para que nada caia dentro dele, senão ele fica conspurcado. Eu virei toda a noite para ver se você seguiu a minha ordem.” O menino sentou-se à beira do poço, ficou vendo ora um peixe de ouro, ora uma serpente de ouro, que aparecia à tona, e cuidou para que nada caísse dentro dele. Enquanto estava assim sentado, sentiu de repente uma dor no dedo, tão forte que, sem querer, ele o mergulhou na água do poço. Tirou-o bem depressa, mas viu que o dedo ficara todo dourado. Por mais que ele o esfregasse e se esforçasse por tirar aquele ouro do dedo, não conseguiu, foi tudo em vão. Ao anoitecer o homem selvagem voltou, viu o menino e disse: - “O que aconteceu com o poço?” - “Nada, nada!” – respondeu o menino, escondendo o dedo atrás das costas, para que o homem não o visse. Mas o homem disse: - “Você mergulhou o dedo no poço! Por esta vez passa, mas toma cuidado para que nada mais caia aqui dentro.” De manhã bem cedinho o menino já estava sentado junto ao poço, montando guarda. O dedo doeu-lhe de novo e ele o passou na cabeça. Por azar, um fio de cabelo soltou-se e caiu no poço. Tirou-o bem depressa, mas o cabelo já estava todo dourado. O João de Ferro voltou e já sabia o que acontecera. - “Você deixou cair um fio de cabelo no poço”, - disse ele. – “Vou relevá-lo mais uma vez; mas se acontecer pela terceira vez, então o poço estará conspurcado e você não poderá mais ficar comigo”. No terceiro dia, o menino estava de novo sentado junto ao poço, e não mexia o dedo por mais que doesse. Mas começou a ficar entediado e inclinou-se para ver 54 sua imagem refletida no espelho da água. E quando se debruçou mais, para mirarse bem nos olhos, seus longos cabelos escorregaram-lhe dos ombros e mergulharam na água. Ele aprumou-se bem depressa, mas os cabelos da sua cabeça já estavam dourados e faiscavam como sol. Pode-se imaginar como o pobre menino ficou assustado! Ele pegou o seu lenço e amarrou-o na cabeça para que o homem não percebesse o acontecido. Quando o homem chegou, já estava sabendo de tudo e disse: -“Desamarre este lenço!” Então os cabelos de ouro se soltaram e de nada adiantaram as desculpas do menino. - “Você não aguentou a prova e não pode mais ficar aqui. Saia para o mundo, e ficará conhecendo o sabor da pobreza. Mas como você tem bom coração, e as minhas intenções são boas, vou permitir-lhe uma coisa: quando você se vir em apuros, vá até a floresta e grite: “João de Ferro!” Então eu virei em seu auxílio. Meu poder é maior do que você imagina, e tenho ouro e prata em abundância”, disse ele. Então o príncipe deixou a floresta e saiu andando por estradas e ruas, por campos e bosques, até que acabou por chegar a uma grande cidade. Procurou trabalho, mas não conseguiu encontrá-lo, e também não aprendeu nada com que se sustentar. Os homens da corte não sabiam em que utilizá-lo, mas simpatizaram com ele e, deixaram-no ficar. Por fim, o cozinheiro pegou-o para o seu serviço, dizendo que ele podia carregar e trazer lenha e água e varrer as cinzas. Um dia, quando nenhum outro estava à mão, o cozinheiro mandou-o levar as iguarias para a mesa real. Mas como ele não queria que vissem os seus cabelos de ouro, conservou na cabeça o seu gorrinho. O rei nunca vira uma coisa dessas, e disse: 55 -“Quando você se aproxima da mesa real, tem de tirar o chapéu.” - “Ah, meu senhor”, - respondeu ele, - “não posso, tenho uma feia erupção na cabeça”. Então o rei mandou chamar o cozinheiro, censurou-o e perguntou como é que ele aceitava um rapaz como esse no seu serviço; e que o enxotasse imediatamente. Mas o cozinheiro teve pena dele e trocou-o pelo ajudante do jardineiro. Agora o menino tinha que ficar no jardim, plantar e regar, capinar e cavar, e ficar ao relento na chuva e na ventania. Um dia, no verão, quando estava sozinho trabalhando no jardim, o calor foi tanto que ele tirou o gorrinho para refrescar a cabeça. Quando o sol lhe tocou a cabeça, seu cabelo de ouro brilhou, faiscou e coruscou tanto, que os raios penetraram no quarto da filha do rei, e ela correu para a janela, para ver o que era aquilo. Então viu o menino e gritou para ele: - “Moço! Traga-me um ramo de flores!” Ele colocou depressa o gorro na cabeça, colheu flores do campo e amarrouas num ramalhete. Quando subia a escada com o ramalhete na mão, cruzou com o jardineiro, que lhe disse: -“Como é que você vai levar flores silvestres para a princesa? Rápido, vá buscar outras flores, e escolha as mais belas e as mais raras.” -“Não”, - disse o menino, “as flores silvestres têm o perfume mais forte e vão agradar-lhe mais!” Quando ele entrou no quarto da princesa, esta lhe disse: -“Tire o seu gorrinho! Não fica bem que o conserve na minha presença.” Ele respondeu de novo: -“Não posso, tenho uma terrível erupção na cabeça.” 56 Mas ela agarrou o gorrinho e arrancou-o da sua cabeça. Aí os seus cabelos de ouro rolaram sobre seus ombros e era uma coisa linda de se ver. Ele quis fugir, mas ela segurou-o pelo braço e deu-lhe um punhado de ducados. Ele os levou, porém não ficou com aquele ouro, mas entregou-o ao jardineiro e disse: - “Dou isso de presente aos seus filhos, para eles brincarem.” No dia seguinte, a princesa tornou a chamá-lo para que lhe trouxesse um ramo de flores do campo, e quando ele entrou com elas, agarrou novamente o seu gorrinho e quis arrancá-lo, mas ele o segurou com as duas mãos. A princesa tornou a dar-lhe um punhado de ducados, mas ele não quis guardá-los e deu-os ao jardineiro, como brinquedos para seus filhos. No terceiro dia aconteceu a mesma coisa: a princesa não conseguiu tirar-lhe o gorrinho e ele não quis o seu ouro. Pouco tempo depois, estourou uma guerra no país. O rei reuniu o seu povo, sem saber se poderia resistir ao inimigo, que era muito poderoso e tinha grande exército. Então o ajudante de jardineiro disse: -“Agora eu já estou crescido e quero participar da guerra. Só quero que me dêem um cavalo.” Os outros riram e responderam: - “Quando nós tivermos partido, procure um para você. Nós lhe deixaremos um cavalo na cavalariça.” Quando eles partiram para a batalha, ele foi à cavalariça e tirou o cavalo, que era manco de uma pata e capengava. Mesmo assim, ele o montou e foi cavalgando para a floresta escura. Chegando à beira da mata, gritou três vezes “João de Ferro!” – tão alto que o grito ressoou por entre as árvores. Logo em seguida, apareceu o homem selvagem e disse: - “O que você quer?” 57 - “Quero um corcel vigoroso, pois vou partir para a guerra.” - “Isto você terá, e ainda mais do que pede.” Então o homem selvagem voltou para a floresta, e não demorou muito, quando apareceu um cavalariço que saiu da mata trazendo um corcel que bufava pelas ventas, indócil e difícil de conter. E atrás dele vinha um grande bando de guerreiros, todos cobertos de armaduras de ferro, e suas espadas faiscavam ao sol. O jovem entregou seu cavalo manco ao cavalariço, montou no outro e partiu à frente do bando. Quando ele se aproximou do campo de batalha, uma grande parte dos homens do rei já havia tombado em combate, e faltava pouco para os restantes terem de bater em retirada. Então o jovem chegou galopando, à frente do seu bando, e entrou como vendaval pelas fileiras dos inimigos, derrubando tudo o que se lhe opunha. Eles tentaram fugir, mas o jovem partiu ao seu encalço e não descansou até que não sobrou um só homem. Mas em vez de retornar ao rei, ele conduziu o seu bando por atalhos, de volta à floresta e chamou pelo João de Ferro. - “O que você quer?” – perguntou o homem selvagem. - “Receba de volta o seu corcel e o seu bando guerreiro e devolva-me o meu cavalo manco”. Tudo aconteceu como ele queria, e ele voltou para casa montado no seu cavalo manco. Quando o rei voltou ao seu castelo, a filha correu-lhe ao encontro e felicitou-o pela vitória. - “Não sou eu o autor da vitória”, disse ele, - “mas um cavaleiro desconhecido, que veio em meu auxílio com um bando de guerreiros.” A filha quis saber quem era o cavaleiro estranho. Mas o rei não o sabia, e disse: 58 - “Ele perseguiu os inimigos e eu não o vi mais.” Ela informou-se com o jardineiro sobre o seu ajudante. Mas o jardineiro riu e disse: - “Ele acaba de voltar montado no seu cavalo manco.” E os outros zombaram dele e gritaram: - “Lá vem o nosso Mancapé voltando!” E lhe perguntaram também: - “Atrás de que moita você ficou dormindo nesse meio tempo?” Mas ele disse: - “Eu fiz o melhor que podia e sem mim as coisas teriam ido mal.” Aí ele foi ainda mais escarnecido. O rei falou para a sua filha: - “Eu vou mandar fazer uma grande festa, que deverá durar três dias, e você atirará uma maça de ouro: quem sabe o cavaleiro desconhecido se apresentará.” Quando a festa foi anunciada, o jovem saiu para a floresta e chamou o João de Ferro. - “O que você quer?” – perguntou ele. - “Quero apanhar a maçã de ouro da princesa.” - “Pois é como se você já a tivesse na mão”, disse João de Ferro – “e você terá também uma armadura vermelha, e cavalgará um altivo alazão.” Quando chegou o dia, o jovem veio galopando, misturou-se aos cavaleiros e não foi reconhecido por ninguém. A princesa adiantou-se e atirou uma maçã de ouro aos cavaleiros. Mas ninguém a não ser ele conseguiu pegá-la, e quando a apanhou, partiu a galope. 59 No segundo dia, o João de Ferro armou-o como cavaleiro branco, e deu-lhe um branco corcel. Novamente o moço apanhou a maçã de ouro, mas não se demorou nem um instante e disparou com ela. O rei ficou encolerizado e disse: - “Isto não é permitido, ele deve apresentar-se diante de mim e dizer o seu nome.” E deu ordens de galoparem ao encalço do cavaleiro que pegasse a maçã, caso ele quisesse fugir de novo com ela, e se ele não voltasse por bem, deviam trazê-lo à força. No terceiro dia, o jovem recebeu do João de Ferro uma armadura negra e um corcel murzelo, e novamente apanhou a maçã. Mas quando ele fugia a galope com ela, os homens do rei o perseguiram e um chegou tão perto que lhe feriu a perna com a ponta da espada. Ele, porém, conseguiu escapar, mas o seu cavalo deu um salto tão violento que o elmo lhe caiu da cabeça e os perseguidores puderam ver que o jovem cavaleiro tinha cabelos de ouro. Os cavaleiros voltaram e relataram tudo ao rei. No dia seguinte, a princesa perguntou ao jardineiro pelo seu ajudante: – “Ele está trabalhando no jardim. Aquele esquisitão esteve na festa e só voltou ontem à noite. E mostrou aos meus filhos três maçãs de ouro que tinha ganhado.” O rei mandou buscá-lo, e ele apareceu, com o seu gorrinho de novo na cabeça. Mas a princesa aproximou-se dele e tirou-lhe o gorro. Aí os seus cabelos de ouro caíram-lhe sobre os ombros, e ele era tão belo que todos se espantaram. - “Era você o cavaleiro que veio à festa todos os dias, cada vez numa cor diferente, e apanhou as três maçãs de ouro?” – perguntou o rei. - “Sim”, respondeu ele, - “e aqui estão as maçãs!” 60 E ele tirou-as do bolso e entregou-as ao rei. - “Se quiser ainda outras provas, pode ver o ferimento que os seus homens me causaram quando me perseguiram. E eu sou também o cavaleiro que o ajudou na vitória sobre os inimigos.” - “Se você é capaz de semelhantes feitos, você não é um ajudante de jardineiro. Diga-me, quem é seu pai?” - “Meu pai é um rei poderoso, e eu tenho ouro à vontade.” - “Estou vendo mesmo”, disse o rei, - “eu lhe devo gratidão. Posso fazer alguma coisa que seja do seu agrado?” - “Sim”, respondeu ele, - “pode. Dê-me a sua filha em casamento.” Então a princesa riu e disse: - “Este não faz rodeios! Mas eu já vi pelos seus cabelos de ouro que ele não é nenhum ajudante de jardineiro.” E ela deu-lhe um beijo. O pai e a mãe do jovem vieram para o seu casamento e estavam cheios de alegria, porque já haviam perdido qualquer esperança de rever o filho querido. E quando todos estavam sentados à mesa do banquete nupcial, a música silenciou de repente, as portas se abriram, e um altivo rei entrou com um grande séquito. Ele caminhou para o jovem, abraçou-o e disse: - “Eu sou o João de Ferro, e fui enfeitiçado e transformado num homem selvagem, mas você me libertou. Todos os tesouros que eu possuo, de hoje em diante, passarão a ser sua propriedade.” 61 ANEXO B A MENINA DA LANTERNA Era uma vez, uma menina que carregava alegremente a sua lanterna na mão. De repente, chegou o vento, que com grande ímpeto apagou a lanterna da menina. - “Ah!” – exclamou a menina, “quem poderá reacender a minha lanterna?” Olhou para todos os lados, mas não achou ninguém. Apareceu, então, um animal muito estranho, com espinhos nas costas, de olhos vivos, que corria e se escondia muito ligeiro entre as pedras. Era um ouriço. - “Querido ouriço”! – exclamou a menina. “O vento apagou a minha luz. Será que você sabe quem poderia acender a minha lanterna?” E o ouriço disse a ela que não sabia que perguntasse a outro, pois precisava ir para casa cuidar dos filhos. A menina continuou caminhando e encontrou-se com um urso, que caminhava lentamente. Ele tinha uma cabeça enorme e um corpo pesado de desajeitado, e grunhia e resmungava. - “Querido urso!” - falou a menina. “O vento apagou a minha luz. Será que você sabe quem poderia acender a minha lanterna?” E o urso da floresta disse a ela que não sabia que perguntasse a outro, pois estava com sono e ia dormir. Surgiu, então, uma raposa, que estava caçando na floresta e se esgueirava entre o capim. Espantada, a raposa levantou o focinho e, farejando, descobriu a menina e mandou-a ir para casa porque a menina espantava os ratinhos. 62 Com certeza, a menina percebeu que ninguém queria ajudá-la. Sentou-se sobre uma pedra e chorou. Nesse momento, surgiram estrelas que lhe disseram para ir perguntar ao Sol, pois ele poderia ajudá-la. Depois de ouvir o conselho das estrelas, a menina criou coragem para continuar o seu caminho. Foi andando, chegou a uma casinha, dentro da qual avistou uma mulher muito velha, sentada, fiando em sua roca. As mãos ocupadas com a lã do carneiro, o pé pedalando o pedal que girava a roda com os fios. A menina cumprimentou a velhinha. - “Bom dia, querida vovó”, - disse ela. - “Bom dia”, respondeu a velhinha. A menina perguntou se ela conhecia o caminho até o Sol e se ela queria ir junto, mas a mulher velhinha disse que não podia acompanhá-la, porque ela fiava sem cessar e sua roca não podia parar. E depois de prontos teria que levar os fios para serem tecidos. Mas, pediu à menina que descansasse um pouco, pois o caminho era muito longo para chegar até o sol. A menina sentou-se para descansar. Pouco depois, pegou sua lanterna e continuou sua caminhada. Mais para frente, encontrou outra casinha no seu caminho, era a casa do sapateiro. Ele estava consertando muitos sapatos. A menina cumprimentou-o e perguntou se ele conhecia o caminho do Sol e se queria ir junto com ela procurá-lo. Ele disse que não podia acompanhá-la, pois tinha muitos sapatos para consertar. Deixou que ela descansasse um pouco, pois sabia que o seu caminho era longo. A menina sentou-se para descansar. Depois que descansou, pegou a sua lanterna e continuou a caminhada. 63 Bem longe, avistou uma montanha muito alta. Com certeza, o Sol mora lá em cima – pensou a menina e acelerou o passo. No meio do caminho, encontrou uma criança que brincava com uma bola. Chamou-a para que fosse com ela até o Sol, mas a criança nem respondeu. Preferiu brincar com a sua bola e afastou-se saltitando. Então, a menina da lanterna continuou sozinha o seu caminho. Foi subindo pela encosta da montanha. Quando chegou ao topo, não encontrou o Sol. - “Vou esperar aqui até o Sol chegar”, pensou a menina e sentou-se na terra. Como ela estava muito cansada de sua longa caminhada, seus olhos se fecharam e ela adormeceu. O Sol já tinha avistado a menina há muito tempo. Enquanto a menina dormia, ele desceu e reacendeu a lanterna dela. Depois que o Sol voltou para o céu, a menina acordou. - “Ah! A minha lanterna está acesa!” – exclamou e, com um salto, pôs-se a fazer o caminho de volta alegremente. Na volta, reencontrou a criança da bola, que lhe disse ter perdido a bola, não conseguindo encontrar por causa do escuro. As duas crianças procuraram, então, a bola. Depois que encontraram, a criança agradeceu e afastou-se alegremente. A menina da lanterna continuou o seu caminho até o vale e chegou à casa do sapateiro que estava muito triste, na sua oficina. Quando viu a menina, contou que seu fogo havia apagado e suas mãos estavam frias, não podendo, portanto, trabalhar mais. A menina acendeu a lanterna do sapateiro, que ficou muito agradecido, aqueceu as mãos e pôde martelar e costurar os seus sapatos. A menina continuou lentamente a sua caminhada pela floresta e chegou ao casebre da mulher muito velha. Seu quartinho estava escuro. Sua luz tinha-se 64 consumido e ela não podia mais fiar. A menina acendeu uma nova luz e a mulher muito velha agradeceu e, logo a sua roca girou sem cessar, fiando, fiando, sem cansar. Depois de algum tempo, a menina chegou ao campo e todos os animais acordaram com o brilho de sua lanterna. A raposinha, ofuscada, farejou para descobrir de onde vinha tanta luz. O urso bocejou, grunhiu e tropeçando, desajeitado, foi andando atrás da menina. O ouriço, muito curioso, aproximou-se dela e perguntou de onde vinha aquele vaga-lume gigante. Assim, a menina voltou feliz para sua casa.