Resenha do filme “A Hora do Show” (Bamboozled, 2000, Spike Lee

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Resenha do filme “A Hora do Show” (Bamboozled, 2000, Spike Lee
Resenha do filme “A Hora do Show” (Bamboozled, 2000, Spike Lee)
Aciepe “Direitos Humanos pelo Cinema”
João Carlos Saran - R.A.: 497126
Em setembro deste ano (2012), ganhou alguma notoriedade o julgamento
que o STF realizou para deliberar se a obra “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro
Lobato, poderia ou não - e de que forma - ser distribuída nas escolas públicas. A
obra claramente faz referência aos negros com estereótipos racistas, sobretudo nos
diálogos entre a boneca Emília e Tia Anastácia. Entre grupos que se esguelaram
em defesa da liberdade de expressão e outros que lutaram pela completa
paralisação na distribuição da obra, pairou a sombra pesada do ciclo de fogo de
nossa história: o desejo de apagar a permanência silenciosa do que não se mostra
se debateu contra o medo premente das consequencias de se assumir a verdade
óbvia de que palavras e signos culturais não sao inocentes.
O caso brasileiro guarda analogias (e muitas diferenças também) com o
cenário delineado por Spike Lee em seu filme “A Hora do Show” (Bamboozled,
Spike Lee, 2000), possivelmente o mais polêmico de uma filmografia já conhecida
por acender ânimos.
Não se pode acusar o filme de apontar soluções fáceis. Do contrário, ele
enreda-nos num labirinto que só escancara a persistência do que tentamos negar:
das hierarquias invisíveis que se infiltram nas hierarquias oficiais e que marcam
tensões racistas entre negros e brancos até quando os atores sociais supostamente
ocupam a mesma posição no campo.
Pierre Delacroix, nosso protagonista, não é Pierre Delacroix (Damon
Wayans), e sabemos, de alguma forma, que ele tem ciência disso. Sua meta é
simples: emplacar, como roteirista, seu primeiro grande sucesso na TV. Defende
sua grande idéia como uma sátira. Ele faria uma remontagem escrachada dos
shows “black face” dos séculos XIX e XX, carregados de piadas racistas, como
forma de expor o absurdo através do exagero, da hipérbole: descamar os níveis
invisíveis do preconceito por meio de suas expressões mais gritantes e concretas.
Se Spike Lee nunca poupou ninguém e já foi dito que o filme não oferece
soluções fáceis, é evidente que tudo desanda. O show é um sucesso, vários
conflitos raciais que estavam em banho-maria são escancaradas e, de fato, não
sobra ninguém.
No roteiro, claramente há um pathos central, uma hipótese a ser provada. E,
no desenrolar da trama, as evidências parecem convergir para a tese de forma
desconcertante: trata-se de denunciar a forma como a mídia e a indústria do
entretenimento, criada num país racialmente cindido e operada majoritariamente por
brancos de classe média, transmitiu e perpetuou diversas caricaturas e estereótipos
negativos sobre a população negra. Consciente ou não, esse mecanismo de
dominação atua fortemente , no âmbito da legitimidade simbólica, para garantir a
permanência do racismo e da submissão de um grupo étnico a outro.
O público pode estar rindo e os teóricos da liberdade de expressão podem
até dizer que isso é o maior exemplo de que a chaga foi superada. Spike Lee
mostra que não: riso também pode ser sinônimo de nervosismo, medo, desespero
e, por fim (por que não?), muito ódio.
A forma como todo esse filme de tese é conduzido, contudo, é seu grande
trunfo. Sim, ele parece carregado de uma certa raiva frenética, um certo impulso
demolidor desesperado. Por controverso que o ponto seja, essa estratégia
argumentativa é muito adequada à temática: não se fala de tabus que causam mal estar senão com certa agressividade. Tabus já se insinuam com sutilezas e, por
isso, são tabus. No mais, é dessa forma que o diretor diz muito ao espectador. O
título do filme, no original, é Bamboozled, algo como enganado. Não só estavam
enganados os personagens-centrais que constroem esse conto de fadas às avessas
tão
somente para “manter o público rindo", como também estava enganado o
espectador quando, ao longo do filme, tentou tantas vezes entender e inocentar
aqueles personagens. Afinal, como poderia querer Pierre Delacroix, ele mesmo
negro, propagar o racismo?
A cena final, contudo, desfaz o engano: reunindo imagens documentais de
programas, desenhos e seriados americanos que mostram o retrato estereotipado
dado aos negros, o diretor nos ensina que há algo além da intencionalidade: uma
espécie de caldo cultural no qual já estamos imersos, no qual todos esses
estereótipos já foram gestados pela história que nos precedeu. Não que o diretorroteirista tenha intesse em inocentar. Antes, quer esbofetear a hipocrisia para
lembrar que todos somos culpados.
E se a culpa é coletiva, não se deve permitir a crença em coincidências: tia
Anastácia não foi retratada como cozinheira por acaso. Se assumirmos o acaso e a
omissão nas expressões simbólicas, brincamos com os signos. E é exatamente isso
que não devemos fazer: os signos são perigosos, tão perigosos que podem se
revoltar e liberar todas as camadas ideológicas por trás de sua suposta literarierade
completa. Pacificado em sua superfície e submetido ao teste do tempo, um signo
pode sugerir que já deixou uma ou outra de suas representações para trás. Que tal
sentido não lhe pertence mais. Novamente, podemos estar enganados.
Os brinquedos de teor preconceituoso que se acumulam na sala de Pierre
Delacroix, os quais ele tenta desesperadamente destruir no final, talvez sejam o
melhor exemplo desse dizer que se espalha em silêncio, que não se apaga, que não
se quebra. Posto dessa forma, parece que o diretor não enxerga saída. Novamente,
tal análise é injusta. O filme também é uma denúncia e quem denuncia acredita em
soluções e não desistiu.
Talvez Spike Lee gostasse de saber do julgamento sobre a obra de Monteiro
Lobato que está ocorrendo no STF. Não se trata necessariamente de vedar o
contato com a representação, porque isso seria hipocrisia. Ela já foi gestada e diz
da nossa história. Trata-se de garantir (sobretudo na infância, já que o público-alvo
das obras de Lobato são as crianças) que esse contato seja feito de forma
adequada, lembrando o significado secreto que pode estar incutido num símbolo
aparentemente ingênuo.
É impossível esquecer a lição que a mãe do protagonista lhe diz com a voz
embargada, em conversa pelo telefone, já na segunda metade do filme: “Um
macaquinho será sempre um macaquinho (...) Estou profundamente desapontada
com você”. Em tempos de humor politicamente incorreto, em que rir do diferente
parece expiar nossa culpa, o filme parece incomodamente urgente. Porque nunca
foi tão verdade que uma palavra também pode ser um grilhão.