baixos - Avatares Antenados

Transcrição

baixos - Avatares Antenados
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
VERDADE E MEMÓRIA: ESTRATÉGIAS E SIGNIFICADOS
DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS, DE EDUARDO SACHERI
por
ELEN FERNANDES DOS SANTOS
Curso de Mestrado em Letras Neolatinas
(Estudos Literários: Literaturas Hispânicas)
RIO DE JANEIRO
2014
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
VERDADE E MEMÓRIA: ESTRATÉGIAS E SIGNIFICADOS
DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS, DE EDUARDO SACHERI
ELEN FERNANDES DOS SANTOS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como requisito à obtenção do título de
Mestre em Letras Neolatinas (Estudos
Literários: Literaturas Hispânicas).
Orientador: Profº. Doutor Miguel Ángel
Zamorano Heras.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Agosto de 2014
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
Verdade e memória: estratégias e significados de La pregunta de sus ojos,
de Eduardo Sacheri
Elen Fernandes dos Santos
Orientador: Professor Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras.
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Literários: Literaturas Hispânicas).
Aprovada em: __/__/___
___________________________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Miguel Ángel Zamorano Heras
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – UFRJ
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Ary Pimentel
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – UFRJ
___________________________________________________________________
Profª. Drª. Martha Alkimin de Araújo Vieira
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura – UFRJ
___________________________________________________________________
Profª. Dr. Victor Manuel Ramos Lemus
Membro suplente – Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – UFRJ
___________________________________________________________________
Profª. Drª. Ana Cristina dos Santos
Membro suplente – Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – UERJ
4
S237
Santos, Elen Fernandes dos
Verdade e memória: estratégias e significados de La pregunta de sus
ojos, de Eduardo Sacheri / Elen Fernandes dos Santos. – Rio de
Janeiro, 2014.
146 f. Il. Col.
Orientador: Prof. Dr. Miguel Ángel Zamorano Heras
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Literatura
Hispânica , Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro / Rio de Janeiro, 2014.
1. Sacheri, Eduardo – La pregunta de sus ojos – História e Crítica
2. Estratégias narrativas I. Título. II. Zamorano Heras, Miguel Ángel.
CDD A863.6
5
Dedico este estudo a Elizeu, Elizete e Diogo.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, Quem me inspira e acalma, mesmo quando as palavras fogem ou a
ansiedade cerca. Glorifico o Seu Nome também aqui, porque sei que Sua luz foi a
responsável pela coragem de seguir em frente.
A Diogo Gonzaga, meu conselheiro e abrigo, pelo otimismo depositado neste
estudo; agradeço todas as palavras, sempre tão certeiras, de incentivo; por ter se
doado inteiramente a nós por todos estes anos. Para sempre o meu sim.
A meus pais, Elizeu e Elizete, por serem alicerce da minha vida, vozes que
aconselham, mãos que afagam, colos que confortam.
À minha mãe Elizete Fernandes, em especial, agradeço imensamente a dádiva de
ser chamada, até hoje, de sua “flor”; por ter ofertado sua juventude à nossa criação;
por ter insistido em minha formação de todas as formas que estavam a seu alcance,
desde quando ainda me levava, com sete ou dezessete, na garupa da bicicleta à
escola. Sou mais eu porque sou você!
A meu pai Elizeu Queiroz, quem traz em si cada membro da família “sentado no
coração”, por todas as recomendações e demonstrações de afeto que são únicas;
por sentir falta de sua Elita como se a semana tivesse passado como um mês.
Agradeço a doação plena de vida, cada beijo afável e os passeios na “corcunda do
pai”. Já te disse hoje?
À minha irmã Evelin Fernandes, minha companheira pelas veredas da vida, a nossa
“mana” e mamãe do nosso Gui, por ter estado ao meu lado desde sempre, igual a
“papel e bala”. Agradeço a torcida por minha felicidade e as palavras que,
encorajando ou demonstrando saudade, me tiram sempre um sorriso.
Ao professor Doutor Miguel Ángel Zamorano, tão importante e querido para mim, por
ter aceitado orientar-me e por fazê-lo com total disponibilidade e primor; por todos os
encontros sempre muito enriquecedores e fundamentais para que este estudo tenha
sido realizado; por ter me guiado pelo mundo estimulante e turbulento da pesquisa,
ampliando meus horizontes.
7
Diante de todo o crescimento que esta parceria me proporcionou, sou grata por ter
aguçado e estimulado em mim uma sensibilidade que eu não sabia existir. Agradeço
por nunca ter se contentado com a primeira proposta, com o primeiro sumário ou
com a primeira escritura; por ter exigido sempre um algo a mais e por acreditar que o
melhor ainda estava por vir.
Ao professor Doutor Ary Pimentel, pelas aulas maravilhosas que me fizeram
escolher o caminho da Literatura; por toda a indicação bibliográfica; pela leitura
atenciosa de partes deste texto; por doar-se tão plenamente à tarefa docente e por
acreditar sempre no potencial de seus alunos.
À professora Doutora Silvia Cárcamo, por ter me sugestionado no recorte de leitura
realizado neste estudo; por ter lido um dos capítulos e ter me incentivado com
comentários valiosos. Agradeço por ter me introduzido, durante a graduação, no
universo acadêmico da pesquisa e, com sua sabedoria infinita e extrema doçura,
inspirar-me como ideal de docente.
Ao professor Doutor Víctor Lemus, por todo o conhecimento doado pelos muitos
períodos em que fui sua aluna; por sua paixão pela Literatura que nos contagia.
À professora Doutora Martha Alkimin, por brindar-me, com brilhantismo e leveza, um
primeiro contato com o universo da teoria literária ainda na graduação.
À professora Doutora Sonia Reis, pelos muitos esclarecimentos nos e-mails trocados
durante o mestrado e por ter se mostrado tão atenciosa na solução de minhas
dúvidas.
Aos professores que integram à banca, por aceitarem tão gentilmente ler e discutir
este estudo e por me possibilitarem a oportunidade de crescimento.
Aos representantes da editora Alfaguara (Buenos Aires), por conferirem o contato
com o escritor.
Ao autor de La pregunta de sus ojos, Eduardo Sacheri, por toda a disponibilidade e
atenção doadas a mim nos contatos via e-mail ou telefone, e por ter se mostrado
extremamente generoso ao ceder uma entrevista para esta pesquisa.
8
Aos meus alunos – os que já passaram e os que ainda integrarão minha história, por
me permitirem uma aprendizagem que é constante.
A todos os colegas de caminhada da Faculdade de Letras da UFRJ, por terem feito
parte de minha vida acadêmica e por ainda fazerem, cada qual a sua forma, parte de
mim. Em especial à Gisele Reinaldo, amiga e conselheira, por me lembrar
continuamente que já tenho o que realmente é importante e por mostrar-se sempre
tão disponível, para a dissertação e para a vida.
A Carolina, José Carlos, Felipe, Gláucia, Flávio, Cristiano, Bruno, Thiago e Débora,
bem como àqueles que completam o nosso “grupo dos Amigos”, por, nestes mais de
dez anos de convivência, constituírem para mim o que de melhor a palavra Amizade
pode significar.
9
SINOPSE
Análise das estratégias narrativas empregadas pelo escritor
argentino Eduardo Sacheri no romance La pregunta de sus
ojos, como caminho de compreensão dos significados históricoculturais que ecoam na obra. Reflexão sobre a importância da
focalização como estratégia narrativa e sobre os personagens
em sua caracterização e em sua dimensão oculta. Leitura da
trama de busca como desencadeadora das ações no romance
de Sacheri. Análise dos espaços representados e seus
significados para a reflexão da violência e da violação da lei
como motivos centrais no romance. O tratamento da memória
por Eduardo Sacheri.
10
RESUMO
SANTOS, Elen Fernandes dos. Verdade e memória: estratégias e significados de La
pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação de
Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Esta dissertação analisa as estratégias narrativas constituintes do romance La
pregunta de sus ojos (2005), do escritor argentino Eduardo Sacheri, com o objetivo
de refletir os significados histórico-culturais a partir da apreciação dos elementos
estético-formais que integram o romance. Procuramos discutir, neste estudo,
questões relacionadas à polifonia enunciativa; ao tipo de trama, denominado de
busca; à caracterização das personagens e à importância simbólica dos espaços,
como caminho que nos permita estabelecer um diálogo com a realidade sociocultural
argentina que ecoa a todo instante no romance de Sacheri. As estratégias que o
autor lança mão em seu processo de criação literária são, neste estudo, foco de
nosso interesse, no intuito de que estes elementos compositivos do romance nos
conduzam a uma apreciação dos significados latentes na obra – a violência e a
violação da lei como uma constante em diferentes esferas sociais e a busca pela
verdade enquanto valor fundamental para o próprio personagem e, em âmbito mais
amplo, para toda a sociedade. Nesta medida, visamos refletir a busca do
protagonista como forma de desvelamento da verdade de um crime que está para
além da violação da vida de uma jovem. Entendemos que a trama de busca está a
serviço da restauração de um valor básico para a vida social, mas que, por contrário,
não está realizado na sociedade representada pela ficção. É o trabalho de
organização da memória via escritura, realizado por um personagem, que atua como
porta de acesso do leitor a uma Argentina de distintas temporalidades, trazida à luz
pelas mãos do escritor.
Palavras-chave: Eduardo Sacheri, Estratégias narrativas, Significados do romance,
Focalização, Personagens, Trama de busca, Espaços, Violência, Violação da lei,
Memória.
11
ABSTRACT
SANTOS, Elen Fernandes dos. Verdade e memória: estratégias e significados de La
pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação de
Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
This paper analyzes the narrative strategies which occur in the novel La
pregunta de sus ojos (2005), of the Argentinian writer Eduardo Sacheri, aiming to
reflect upon the historic and cultural meanings based on the appreciation of the
aesthetic and formal elements that constitutes the novel. We tend to discuss here
issues related to the enunciative polyphony, the kind of plot called pursuit, the
characters description, and the symbolic relevance of the spaces, as a way that
allows us establishing a dialog with the Argentinian sociocultural reality that echoes
continuously in Sacheri’s novel. In this study, the focus of our interests is on the
strategies that the author employs in his literary creation process, wishing that these
compositional elements of the novel can guide us through an appreciation of the
latent meanings in the writing – the violence and the violation of the law as a regular
fact in different social levels and the pursuit of the truth as an elementary value both
to the character himself and to the whole society, in a wider scope. Doing so, our
purpose is to reflect upon the pursuit of the protagonist as a way to reveal the truth of
a crime that goes beyond the violation of the life of a young woman. We assume that
the plot of searching is used for a restoration of a basic value for social life, which, on
the other hand, is not taking place in the community represented in the fiction. It is
the task of memory organization through writing (made by a character) that allows the
reader to reach an Argentina of many temporalities, what comes up by the hands of
the writer.
Keywords: Eduardo Sacheri, Narrative strategies, Meanings of the novel, Focusing
mechanism, Characters, Pursuit plot, Spaces, Violence, Violation of law, Memory.
12
RESUMEN
SANTOS, Elen Fernandes dos. Verdade e memória: estratégias e significados de La
pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação de
Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) –
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Esta disertación analiza las estrategias narrativas que constituyen a la novela
La pregunta de sus ojos (2005), del escritor argentino Eduardo Sacheri, con el
objetivo de reflexionar los significados histórico-culturales a partir de la apreciación
de los elementos estético-formales que integran la novela. Buscamos discutir, en
este estudio, temas relacionados a la polifonía enunciativa; al tipo de trama,
denominado de búsqueda; a la caracterización de los personajes y a la importancia
simbólica de los espacios, como camino que nos permita establecer un diálogo con
la realidad sociocultural argentina que resuena a todo instante en la novela de
Sacheri. Las estrategias que el autor trae a luz en su proceso de creación literaria
son, en este estudio, foco de nuestro interés, con tal de que estos elementos
compositivos de la novela nos conduzcan a una apreciación de los significados
latentes en la obra – la violencia y la violación de la ley como una constante en
diferentes esferas sociales y la búsqueda por la verdad en cuanto valor fundamental
para el propio personaje e, en ámbito más amplio, para toda la sociedad. De este
modo, nos proponemos reflexionar la búsqueda del protagonista como forma de
descubrimiento de la verdad de un crimen que está para más allá de la violación de
la vida de una joven. Entendemos que la trama de búsqueda pone en servicio la
restauración de un valor básico para la vida social, pero que, por contrario, no se
realiza en la sociedad que se representa en la ficción. Es el trabajo de organización
de la memoria vía escritura, realizado por un personaje, que actúa como puerta de
acceso del lector a una Argentina de distintas temporalidades, que se trae a la luz
por las manos del escritor.
Palabras-clave: Eduardo Sacheri, Estrategias narrativas, Significados de la novela,
Focalización, Personajes, Trama de búsqueda, Espacios, Violencia, Violación de la
ley, Memoria.
13
Siempre fuiste mi espejo, quiero decir que para verme tenía que mirarte.
Julio Cortázar
La literatura no es más que un sueño dirigido.
Jorge Luis Borges (1989)
En cuanto a la sangrienta Argentina de los años setenta, que de tanto en
tanto se asoma como telón de fondo de estas páginas, ojalá fuese igual de
ficticia, igual de inexistente.
Eduardo Sacheri (2010)
14
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15
I VOZES E ENTORNOS DE EDUARDO SACHERI ................................................. 21
1.1 A arte de contar: mediação crítica sobre o autor ................................................. 21
1.2 Aspectos iniciais de La pregunta de sus ojos: argumento, estrutura formal e
divisões ..................................................................................................................... 28
II
ESTRATÉGIAS
NARRATIVAS:
UMA
LEITURA
DOS
ELEMENTOS
CONSTITUINTES DO ROMANCE LA PREGUNTA DE SUS OJOS........................ 30
2.1 A importância da focalização como estratégia narrativa: a polifonia enunciativa ... 30
2.1.1 Características do FP (focalizador-personagem) ............................................ 31
2.1.2 Características do FE (focalizador externo) ..................................................... 36
2.2 Os personagens de La pregunta de sus ojos ...................................................... 46
2.2.1 Os personagens e sua caracterização ............................................................. 48
2.2.2 Os personagens e sua dimensão oculta .......................................................... 52
2.3 Forma e sentido da trama: a busca da verdade como motivo central das ações ... 60
2.3.1 A trama de busca e os conflitos individuais ...................................................... 63
2.3.2 A trama de busca e os conflitos sociais............................................................ 68
III DAS ESTRATÉGIAS AOS SIGNIFICADOS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS ... 75
3.1 A violência e a violação da lei em La pregunta de sus ojos ................................ 75
3.2 Os espaços representados e seus significados no romance: espaços do crime e
espaços da justiça ..................................................................................................... 85
3.3 O tratamento da memória pela narrativa de Eduardo Sacheri ..........................101
CONCLUSÃO .........................................................................................................112
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................119
APÊNDICES ...........................................................................................................123
15
INTRODUÇÃO
La pregunta de sus ojos (2005)1 figura como um dos romances do escritor
argentino Eduardo Sacheri (Buenos Aires, 1967). A escolha desta obra como objeto
de estudo parte de um interesse mais amplo, enquanto professora, pesquisadora e
leitora, pelo romance hispano-americano em suas muitas facetas estilísticas e
contextuais. Na infinidade de possibilidades de pesquisas que este interesse abre a
um futuro pesquisador, minha aproximação a Sacheri se deu pela leitura inicial e
despretensiosa de seus contos, nas preciosas aulas de literatura ministradas por um
professor querido na universidade.
Do contato com a contística do autor, La pregunta de sus ojos me foi
apresentada como a primeira empreitada de Sacheri como romancista. Também
aqui muitas possibilidades de reflexão da obra se ergueram, em compasso com as
discussões que realizávamos no meio acadêmico, as quais integraram um período
intenso de autoconhecimento e de descoberta própria do desejo de ir ao encontro do
universo da pesquisa em literatura. Foram estes diálogos vespertinos sobre literatura
hispano-americana os causadores de meu interesse por investigar, aprofundando no
estudo de um romance, a obra de Sacheri no mestrado, aspiração essa, como antes
dito, nascida da troca de olhares e perspectivas que lançávamos sobre o texto do
escritor.
Estas distintas miradas que a obra admite que lhe sejam direcionadas me
possibilitaram o exercício laborioso de aprender a delimitar o que poderia ou não
configurar-se como um tema de pesquisa. Em verdade, as muitas e também
necessárias tentativas de focar e objetivar o olhar conformaram um período difícil
mas crucial para que chegássemos ao tema deste estudo. Decidir por pesquisar um
romance contemporâneo argentino como consequência de um encantamento mais
amplo pela literatura hispânica era só o início de todo um processo de aprendizagem
como pesquisadora que se iniciava com a entrada para o mestrado. E, seguramente,
a primeira destas aquisições – a bem dizer, uma aprendizagem metodológica – foi
certificar-me de que o texto literário não é o fim, mas antes o início e a fonte de todas
1
SACHERI, Eduardo. La pregunta de sus ojos. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2010.
16
as nossas conjecturas, razão pela qual toda análise deve atentar-se primeiro àquilo
que a obra literária tem a oferecer.
Nesta medida, o tema deste estudo – a análise das estratégias narrativas
empregadas por Eduardo Sacheri como caminho de leitura dos significados latentes
em La pregunta de sus ojos – proporcionou-me o que considero o maior
aprendizado nestes anos dedicados à análise e compreensão deste romance:
associar à dimensão estética e artística, que é sempre única em cada obra, uma
dimensão sociocultural de leitura, a qual se alcança tão somente concebendo-se a
obra como fonte primeira de conhecimento e acesso a um mundo construído
artisticamente pelo escritor. Não é aqui nosso intuito refletir estes aspectos artísticos
do romance como uma espécie de verificação puramente formal e retórica que se
encerra em si mesma, o que, a nosso ver, se afastaria do nobre propósito de buscar
compreender e dialogar, ao final de tudo, com os significados inerentes à realidade
histórico-social referida a todo instante em La pregunta de sus ojos.
Considerar de forma mais detida cada estratégia narrativa possibilitou-nos por
em prática os distintos modos como podemos discorrer sobre uma obra, comentar
suas diversas partes e depreender sentidos a partir de como essas partes se
relacionam. Entendemos que uma possível orientação de leitura de uma obra
literária é pensar na análise da forma do texto literário tão somente a serviço de um
tema2, o qual delimitamos após um processo contínuo de leitura e releitura da obra
de Eduardo Sacheri. E é justamente este o caminho que tecemos neste estudo:
partimos das estratégias narrativas empregadas pelo autor – selecionadas de forma
que pudéssemos contemplar ao máximo a organização da obra literária como um
todo artístico – e justificamos a escolha de cada uma destas estratégias a favor dos
temas que intuímos conformar a obra, e que aqui chamamos de significados do
romance. Assim, metodologicamente partimos de duas dimensões de análise – uma
que se quer mais formalista-esteticista, voltada para os mecanismos internos de
composição da narrativa; e outra que tomamos como uma dimensão mais
sociológica-cultural de leitura, alcançada a partir do diálogo que a obra estabelece
com a realidade sócio-histórica argentina.
LÁZARO CARRETER, Fernando; CORREA CALDERÓN, Evaristo. Cómo se comenta un texto
literario. 33ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 1998.
2
17
Em uma pequena reflexão sobre a consciência do trabalho de pesquisa que
aqui se realiza, permito-me dizer que o exercício de análise aprofundado da obra de
Sacheri a partir destas duas vertentes metodológicas, conectadas e vinculadas entre
si, atuou no incremento de minhas habilidades críticas, que, mesmo longe de
estarem concluídas, devem muito a este estudo e a toda a aprendizagem
possibilitada por esta incursão literária. O desenvolvimento de minhas competências
enquanto leitora e pesquisadora e, mais que isso, a ampliação de minha
sensibilidade pela oportunidade do contato mais denso com o literário representam
um ganho imensurável que devo a esta nossa busca contínua por conectar, ao longo
de todo o processo de análise e apreciação da obra, estas duas dimensões de
leitura.
Tendo realizado estes esclarecimentos metodológicos, fundamentais para a
concepção deste estudo e, em um pincelar introspectivo, ter apresentado a nosso
leitor os sendeiros que nos conduziram a pesquisar a obra de Sacheri, ressalvamos
aqui que este estudo visa atuar como caminho de iluminação de um segmento
literário que também merece destaque dentro da obra do autor, haja vista o relevo
dado a seus contos dentro de sua produção literária. Deste modo, pesquisar o
primeiro romance de Sacheri, como aqui já sinalizamos, mostra-se uma tarefa
desafiadora, em função da proposta mesma de buscar entrever a seleção e uso de
recursos empregados pelo autor com o objetivo de indagar sobre a relação entre o
uso destas estratégias e os significados político-sociais que ecoam na obra do
escritor.
Partindo
à
apresentação
da
estrutura
organizacional
deste
estudo,
reservamos ao capítulo inicial “Vozes e entornos de Eduardo Sacheri” a
apresentação de um pequeno panorama da vida e da obra do escritor argentino. Em
“A arte de contar: mediação crítica sobre o autor”, ofereceremos uma pequena
mediação crítica construída a partir da junção de todo o material que encontramos
sobre o escritor em meios eletrônicos, principalmente a partir de entrevistas –
transcritas ou em vídeos, conferidas por Sacheri e disponibilizadas em sites
específicos. No mais, também exploraremos neste capítulo a entrevista realizada
com o autor em Buenos Aires e que nos foi cedida tão gentilmente para este estudo.
Por sua vez, o subcapítulo de nome “Aspectos iniciais de La pregunta de sus
ojos: argumento, estrutura formal e divisões” tem a função de contribuir para o
18
caminho que será trilhado nos capítulos que se seguem, a partir de uma concisa
exposição da trama, da estrutura formal do romance e de suas divisões internas.
Julgamos pertinente este aporte inicial em nossa pesquisa, tendo em vista que
desde o princípio mesmo deste estudo nos lançamos à análise de estratégias
artísticas que acionarão a todo instante a trama da obra.
Após esta introdutória contextualização biográfica e literária, seguimos
caminho
para
o
segundo
capítulo
deste
estudo,
no
qual
lançamo-nos
especificamente à leitura dos elementos constituintes de La pregunta de sus ojos.
Sinalizamos aqui que nossa escritura buscou estruturar-se a partir de uma análise
gradativa das estratégias literárias que Sacheri lança mão na conformação de seu
romance. Nesta medida, nossa intenção foi a de traçar um fio condutor único neste
segundo capítulo, de uma leitura sequencial dos elementos constituintes de La
pregunta de sus ojos que aqui são explorados. Desta concepção de unidade resulta
nosso sumário composto de tópicos sequenciais destas estratégias, reservadas
umas das outros, ao passo que imbricadas e interdependentes. Acreditamos que
estes elementos conformadores do romance, ainda que necessitem de capítulos
específicos para uma análise mais detida e pormenorizada de cada um deles, atuam
como peças que se atrelam e se inserem em um todo coeso e uno. É a
convergência destas múltiplas partes que nos permitirão desaguar no que
chamaremos aqui de significados do romance, os quais, a bem dizer, encerram em
si tudo o que depreendemos do texto literário enquanto fonte única de nossas
constatações e apreciações estéticas.
O primeiro subcapítulo desta segunda parte, chamado “A importância da
focalização como estratégia narrativa: a polifonia enunciativa”, tem por objetivo
apresentar a arte de narrar como uma técnica artística fundamental para que se
conforme um interessante jogo temporal entre passado e presente na obra. Dividido
em duas seções, este capítulo visa analisar as instâncias narrativas de La pregunta
de sus ojos em suas peculiaridades estilísticas, nas variações destas vozes que
narram e em sua importância para esta dinâmica organizacional da obra a partir de
duas temporalidades distintas. Para tanto, nos valeremos dos estudos narratológicos
desenvolvidos por Mieke Bal (1995) e Dorrit Cohn (2001) e das reflexões sobre o
fenômeno da polifonia realizadas por Oswald Ducrot (1987). Cada enunciador
desempenha uma função narrativa que lhe é própria dentro do romance, primordial
19
para o efeito de edificação de duas obras que parecem ser escritas em compasso
uma com a outra, mas a partir de sujeitos focalizadores e objetos de focalização
distintos.
Primeiramente, na seção intitulada “Características do FP (focalizadorpersonagem)”, nos deteremos em um destes sujeitos da focalização presentes no
romance, que aqui chamaremos de focalizador interno ou focalizador-personagem
(FP), representado na figura de Benjamín Miguel Chaparro, personagem-autor que
se investe do papel de escritor e assume também ele a função de focalizador
quando se propõe a narrar a história do viúvo Ricardo Morales. Na sequência, na
segunda parte deste capítulo sobre a focalização como estratégia literária, nos
fixamos na instância narrativa que não atua no romance enquanto um personagem,
assim como Benjamín Chaparro, mas acompanha o mesmo em seu momento
presente e em seu ofício de escritor. Em última instância, entendemos que a análise
inicial desta polifonia enunciativa que norteia toda a construção do romance será de
extrema importância para que se compreenda o tratamento da memória pela
narrativa de Sacheri, valor semântico que buscaremos atribuir a este jogo narrativo
dentro da obra.
O segundo subcapítulo integrante desta segunda etapa está reservado à
análise contrastante de personagens que despontam como peças chave em nosso
estudo, a saber, o protagonista-escritor Benjamín Chaparro e o viúvo Ricardo
Morales, que tem sua história contada pelo primeiro. De início nos deteremos em
rastrear tudo o que conforma a imagem destes personagens e dizem respeito às
caracterizações feitas por Sacheri. Logo, a luz de Robert McKee (2004) e de suas
reflexões sobre a escritura criativa, nos lançaremos a aquilo que está por detrás das
caracterizações feitas e que chamaremos aqui de dimensão oculta destes
personagens, observável quando da aparição de situações de pressão que forçam
os personagens a se posicionarem dentro do desenrolar da trama, ao mesmo tempo
em que se desnudam através de suas ações. É por via da análise contrastiva de
ambas as personagens que nos lançaremos à subsequente leitura das diferentes
posturas tomadas por elas diante da memória do crime.
Em seguida, no terceiro subcapítulo desta parte voltada à análise das
estratégias narrativas, estendemos nossa reflexão para a trama de busca que
alicerça o romance e que está, a nosso ver, a serviço da restauração da verdade
20
enquanto valor deteriorado na sociedade que se alça na narrativa de Sacheri. Neste
apartado, então, procuraremos refletir as características específicas deste tipo de
trama, amparados pelas reflexões teóricas de Ronald B. Tobias (1999). Entendemos
que é a trama de busca a responsável por apresentar os conflitos – individuais e
sociais, que impulsionam os personagens a abandonar a sua condição estática de
modo a equilibrar suas necessidades éticas e emocionais. É a movimentação destes
personagens na trama de Sacheri o que possibilita que o leitor se acerque a uma
dimensão da própria qualidade humana destes personagens, os quais, enquanto
seres ficcionais, se desvelam a partir das decisões que tomam no desenrolar da
trama. E é também, neste sentido, que a busca pela verdade empreendida no
romance traz a luz os temas da violência e da violação da lei como motivos
substanciais na obra de Eduardo Sacheri.
O caminho traçado até aqui conduziu-nos a esta terceira parte da pesquisa, a
qual titulamos “Das estratégias aos significados de La pregunta de sus ojos”, ponto
de afluência de toda a análise realizada até então. Dividida nos subcapítulos “A
violência e a violação da lei em La pregunta de sus ojos”, “Os espaços
representados e seus significados no romance: espaços do crime e espaços da
justiça” e “O tratamento da memória pela narrativa de Eduardo Sacheri”, esta etapa
tem a importância de atar os elementos analisados durante este estudo no intuito de
conferir-lhes uma significação que dialogue com a esfera sócio-histórica manejada
na obra. Como ressalvamos ao início, toda a compreensão a que chegamos neste
estudo se dá por intermédio da obra de Sacheri enquanto criação artística que
mantém um intercâmbio contínuo com elementos muito específicos do cenário social
e histórico da Argentina. Assim, corroboramos mais uma vez que a análise da obra
em toda sua conformação interna é, de fato, o caminho que trilhamos para chegar a
este diálogo entre universos ficcional e extra-ficcional.
O final de nosso estudo se encarregará de fazer um retrospecto analítico das
instâncias compositivas do romance, as quais se constituíram como cerne das
apreciações críticas levantadas nesta pesquisa. Todo o detalhamento das
estratégias que entrevemos realizar neste estudo objetivará convergir na apreciação
destes significados, a partir de um entrelaçamento último que conforma a obra em
um todo artístico, fonte de deleite literário e oportunidade de lapidação do olhar de
um crítico-leitor.
21
I
VOZES E ENTORNOS DE EDUARDO SACHERI
1.1
A ARTE DE CONTAR: MEDIAÇÃO CRÍTICA SOBRE O AUTOR
La pregunta de sus ojos (2005) configura-se como o primeiro romance do
escritor argentino Eduardo Sacheri. Nascido em Buenos Aires, em 1967, Sacheri
começou sua caminhada literária como contista em meados da década de 90 e seu
reconhecimento inicial se deve a seus contos de futebol, difundidos na Argentina a
partir de sua leitura em rádios esportivas3. As entrevistas feitas a Sacheri denotam o
destaque dado a estes relatos futebolísticos4 em sua obra, quando questões como
as paixões humanas, a relação desejo-fracasso inerente às decisões tomadas e a
lealdade aos vínculos de amizade, são refletidas através das tramas engendradas
pelo escritor. É o próprio autor quem afirma5 que o reconhecimento proporcionado
por seus livros de contos lhe impulsionou a enveredar-se pelos caminhos da
escritura de romances, gênero que, se comparado aos contos, ainda é pouco
refletido dentro de sua obra e, por isso, apresenta pouca fortuna crítica
desenvolvida.
Seu segundo romance – Aráoz y la verdad (2008), adaptado ao teatro6, dá
continuidade a temas já apresentados por Sacheri em La pregunta de sus ojos. Na
esteira de sua criação literária, a obra Papeles en el viento (2011) figura como
terceiro romance do autor. Na sequência destes três romances e de seus muitos
livros de contos, seu mais recente romance – Ser feliz era esto (2014) – encerra este
panorama das obras do escritor argentino.
Como antes dito, os olhares lançados sobre a obra de Eduardo Sacheri
evidenciam seus contos, quase sempre inseridos dentro da temática mais ampla
“Contos de futebol”, quando o nome de Sacheri aparece ao lado de outros escritores
Os primeiros contos de Sacheri foram lidos no programa “Todo por afecto”, na Radio Continental,
pelo jornalista argentino conhecido como Alejandro Apo. Muitas destas leituras, que contribuíram para
a difusão e o bom recebimento de sua obra pelo público, encontram-se em vídeos disponibilizados no
youtube e em inúmeros blogs na Internet.
4 A obra contística de Sacheri é conformada, cronologicamente, pelos seguintes livros: Esperándolo a
Tito y otros cuentos de fútbol (2000) / Te conozco Mendizábal y otros cuentos (2001) / Lo raro
empezó después: cuentos de fútbol y otros relatos (2004) / Un viejo que se pone de pie y otros
cuentos (2007) / Los dueños del mundo (2012) e La vida que pensamos (2013).
5 Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal LA NACIÓN, em 08/09/2009. Acesso em 10/03/2014 às
13:30h. In: <http://www.lanacion.com.ar/1171919-sacheri-el-autor-detras-del-exito-de-campanella>.
6 Aráoz y la verdad (2010). Adaptação ao teatro sob a direção de Gabriela Izcovich. Elenco: Diego
Peretti, Luis Brandoni e David Di Nápoli. Cf. <http://www.mundoteatral.com/content/ar%C3%A1oz-yla-verdad-la-llave-de-un-secreto>.
3
22
argentinos que também cultivaram o gênero, tais como Roberto Fontanarrosa
(1944), Osvaldo Soriano (1943) e José Pablo Feinmann (1943). Nesta medida, este
trabalho de pesquisa busca adentrar em uma seara pouco iluminada da criação
artística do escritor – o romance, uma possibilidade mais de conhecimento estilístico
e temático de sua obra. Muitas questões tratadas em seus contos são desenvolvidas
em seus romances, entre as quais se destacam a busca incessante por algo que
seja primordial para um personagem e a reconstrução dos caminhos da memória,
temas que também se integram a discussão de La pregunta de sus ojos que aqui se
realiza.
Em entrevista que recém realizamos com Eduardo Sacheri em Buenos Aires7,
o escritor, quando perguntado sobre sua produção contística explica os motivos que
o levaram a priorizar, ao longo de sua formação como escritor, os contos em
comparação aos romances. Sacheri atribui esta prioridade às fronteiras mais
balizadas do conto, as quais lhe permitem dar conta de encerrar um projeto de
criação em um lapso temporal mais limitado que o necessário para a escritura de um
romance.8 Para suprir aquilo que chama de espasmo de necessidade de iniciar e
finalizar um processo de criação artística, o conto, em sua possibilidade de
conformação a partir de dimensões mais cerceadas, mostrou-se como caminho para
um contato inaugural de Sacheri com o universo de produção literária.
[…] en una novela vos estás obligado a la insatisfacción de no terminar, de
avanzar y seguir avanzando, y seguir internándote en algo a ciegas, sin
punto de referencia, porque las dimensiones son mucho mayores. Yo, por
eso, después de tres libros de cuentos, recién me sentí mínimamente
habilitado para intentar una novela. Y, sin embargo, fijate como a mi
protagonista lo puse a escribir una novela, como un modo de exorcizar mis
propios temores y de poner sobre sus espaldas dudas que eran mías. Aun
después de tres libros.9 (Ver apêndice B, pergunta 3)
Eduardo Sacheri, muito gentilmente, nos cedeu uma entrevista para esta dissertação, a qual se
realizou no dia 16 de junho de 2014, na cidade de Buenos Aires. Optamos por mantê-la na íntegra
(em espanhol e em tradução nossa ao português) ao final deste estudo e nos reportaremos, sempre
que julgarmos necessário, às informações concedidas pelo autor ao longo de nosso texto. Para tanto,
numeramos as perguntas e nos referiremos a elas de acordo com sua ordenação, de forma a facilitar
a localização das mesmas por nosso leitor. Esclarecemos que a entrevista (apêndices B e C)
encontra-se na sequência de um suplemento (apêndice A) que consta da linha do tempo com os
episódios históricos referidos no romance.
8 Parece-nos interessante aportar o dado de que La pregunta de sus ojos foi precedido pela escritura
de um conto (El Hombre) composto de elementos que posteriormente foram expandidos no romance.
Em linhas gerais, dito conto busca retratar um dia na vida de Ricardo Morales, a partir de sua rotina
de convivência com o passado pelo aprisionamento do assassino de sua mulher. Ver: SACHERI,
Eduardo. Te conozco Mendizábal y otros cuentos. Buenos Aires: Galerna, 2001. p.37-48.
9 Em português: “[...] em um romance você está obrigado à insatisfação de não terminar, de avançar
e seguir avançando, e seguir adentrando em algo às cegas, sem ponto de referência, porque as
7
23
Como antes dito, La pregunta de sus ojos, foco de nossa análise, integra o
conjunto artístico de Eduardo Sacheri como primeiro romance do escritor. O autor
revelou, ainda, que, se não se aventurou de início a percorrer os caminhos de
escritura de um romance, o deve a certo incômodo antigo, a um receio de quem
confessa não sentir-se habilitado por não possuir uma formação acadêmica
específica na área de Literatura. Sacheri explica que custou muito alcançar um
estágio de aceitação própria como escritor, independente da necessidade de títulos
que o habilitem a sê-lo (ver apêndice B, pergunta 11). É interessante observar que
suas dúvidas e receios enquanto escritor são trasladados a seu protagonista, como
buscaremos aprofundar mais adiante neste estudo.
Dando sequência a este pequeno panorama biográfico, destacamos que,
além de escritor, Sacheri é licenciado em História10 e atuou como professor de
escolas para jovens e como docente universitário11 em Buenos Aires. Na entrevista
dimensões são muito maiores. Eu, por isso, depois de três livros de contos, recém me senti
minimamente habilitado em tentar um romance. E, no entanto, repare como coloquei o meu
protagonista para escrever um romance, como um modo de exorcizar meus próprios temores e de
colocar sobre suas costas dúvidas que eram minhas. Inclusive depois de três livros.” (N. do T.)
10 Em entrevista ao jornal argentino Página 12, o autor explica os caminhos que o levaram a buscar a
carreira de História: “–Cuando salí del secundario, como muchos pibes no sabía qué hacer. Seguí
como carrera la única materia que me había gustado. Por el camino tuve otros trabajos. Uno de ellos
en un juzgado. […] Terminé Historia y no me entusiasmaba para nada dar clase en el secundario
(recordaba la bola que yo les había dado a mis profesores y pensaba: ¡Ir a predicar en el desierto!). Al
final de la época de Menem el tema trabajo se había puesto muy difícil para un montón de gente,
incluyéndome. Estaba trabajando en un supermercadito, en un barrio complicado, con niveles de
violencia y de delincuencia. Y ahí te decís: “¿Cómo llegué hasta acá? ¿Qué decisiones me han traído
hasta esta Pascua?”.
Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal argentino PÁGINA 12, em data indisponível. Acesso em
10/03/2013 às 12:05h. In: <http://www.pagina12.com.ar/diario/dialogos/21-140771-2010-02-22.html>
Em português: “–Quando saí da escola secundária, como muitos meninos, não sabia o que fazer.
Segui como carreira a única matéria que eu tinha gostado. No meio do caminho tive outros trabalhos.
Um deles em um juizado. [...] Terminei História e não me animei muito em dar aula em escolas (me
lembrava do trabalho que eu tinha dado a meus professores e pensava: vou pregar no deserto!). No
final da época de Menem a questão do trabalho tinha se tornado muito difícil para muita gente,
inclusive para mim. Estava trabalhando em um mercadinho, em um bairro complicado, com altos
níveis de violência e delinquência. Foi quando eu me disse: ‘Como eu cheguei até aqui? Que
decisões minhas me conduziram a essa situação?’” (N. do T.)
11 Ainda em entrevista ao jornal argentino Página 12, o autor explica sobre a relação de sua prática
docente com sua tarefa de escritor: “–Las dos prácticas son bien complementarias. La del escritor y la
del docente. Escribir es un ejercicio muy cerrado, muy vuelto hacia adentro. La docencia es todo lo
contrario. Me permite equilibrar esa cosa de caverna introspectiva a la cual me conduce no sólo mi
profesión de escritor sino mi propia idiosincrasia. La docencia además me afirmó algo que creo
importantísimo: estoy convencido de que la mirada que se echa sobre nosotros también nos
construye: es clave cómo mirás a cada alumno, es absolutamente central. Una mirada adusta, rígida,
solemne, exigente, condiciona en un sinnúmero de sentidos. A la inversa, una mirada benevolente,
pródiga, optimista te impulsa y te abre camino.”
Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal argentino PÁGINA 12, em data indisponível. Acesso em
10/03/2013 às 12:05h. In: <http://www.pagina12.com.ar/diario/dialogos/21-140771-2010-02-22.html>
24
que realizamos com o escritor, Sacheri traz a luz os proveitos possibilitados por esta
formação acadêmica em sua produção artística. No que diz respeito especificamente
à La pregunta de sus ojos, por exemplo, os conhecimentos acadêmicos mostram-se
fundamentais para a exploração de aspectos históricos nacionais que conformam o
romance, situado na Argentina dos anos sessenta e setenta. As nuances próprias de
cada época são alvo da mirada detalhista de quem trafega por um território já
familiar, ou seja, de quem já se interessava pelo passado antes mesmo de propor-se
a dialogar com este passado através da ficção.
O autor destaca que as relações sociais de um momento histórico específico
lhe servem de base para a construção de seus personagens. Como sinalizado em
nossa entrevista e como veremos ao longo deste estudo, os conhecimentos sobre
História permitiram a Sacheri, a título de exemplo, posicionar o amor de seu
personagem Benjamín Chaparro em um determinado momento histórico que justifica
a existência deste tipo de amor. Para o autor, a omissão de sentimentos por tantos
anos não se explica no momento presente, mas se enquadra na alçada temporal do
romance (ver apêndice B, pergunta 2). Nesta medida, como colocado pelo próprio
Sacheri, o conhecimento que provém de sua formação como licenciado em
História12 lhe possibilita explorar estas modulações sociais na conformação interna
de seu romance.
Na esteira deste esclarecimento biográfico, importa mencionar que Eduardo
Sacheri trabalhou durante cinco anos (1987-1991) no Juizado Criminal de Buenos
Aires, quando ainda não vislumbrava seguir pelo caminho da escritura literária, mas
antes atuar como professor universitário ou ainda obter um emprego na área
Em português: “–As duas práticas são bem complementárias. A de escritor e a de docente. Escrever
é um exercício muito fechado, muito voltado para dentro. Ao contrário da docência. Permite-me
equilibrar isso de caverna introspectiva a qual sou conduzido não só por minha profissão de escritor
mas por minha própria personalidade. A docência, além disso, afirmou em mim algo que acredito ser
importantíssimo: estou convencido de que o olhar lançado sobre nós também nos constrói. É chave
quando você olha a cada aluno, é absolutamente central. Um olhar severo, rígido, solene, exigente,
condiciona uma infinidade de sentidos. Por outro lado, um olhar benevolente, pródigo, otimista te
impulsiona e te abre caminho.” (N. do T.)
12 Ainda sobre esta relação entre seu ofício de professor e o de escritor, afirma o escritor o seguinte:
“En el caso mío, que soy profe de historia, hay un relato, una narración, un argumento en lo que vas
explicando. Hay una construcción narrativa en enseñar y en escribir naturalmente que también la hay,
así que es un parentesco más que profundo”.
Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal venezuelano PANORAMA.COM.VE, em 30/10/2012.
Acesso em 10/03/2013 às 18h. In: <http://www.panorama.com.ve/portal/app/push/noticia40718.php>
Em português: “No meu caso, que sou professor de história, há um relato, uma narração, um
argumento naquilo que você vai explicando. Há uma construção narrativa ao ensinar e naturalmente
também há esta construção na escritura. Nesta medida há um parentesco mais que profundo.” (N. do
T.)
25
judiciária. Eduardo Sacheri explica a importância que têm para ele estes anos em
que exerceu uma função no Juizado, cujo trabalho lhe parecia prático e estimulante.
Não seguiu a carreira judicial pois no momento de escolha sobre os caminhos
acadêmicos que tomaria, pesaram-lhe mais a dinamicidade e criticidade próprias da
área da História, em oposição a um aspecto mais memorístico e reiterativo
característico dos estudos de Direito (ver apêndice B, pergunta 4). Além disso,
entendemos que este período no Juizado possui total relação com o processo de
escritura de La pregunta de sus ojos, principalmente no que diz respeito à criação de
uma atmosfera muito particular presente no romance, à conformação de tipos
humanos que transitam por este espaço e à representação de rituais específicos da
rotina judicial.
O próprio escritor explica, em uma nota que encerra o romance, que sua fase
de atuação no Juizado teve influência direta em seu desejo de escrever La pregunta
de sus ojos, pois a trama lhe surgiu por ocasião de um fato contado por
companheiros de trabalho. Tal relato lhe interpelava há alguns anos, até o instante
em que Sacheri, depois de três livros de contos, sente a necessidade de finalmente
organizar esta história que há muito tempo ecoava de seu passado. Escrever o
romance foi, para o escritor, uma forma de render homenagens a antigos
companheiros e a este período que marcou de alguma forma sua história de vida.
Sobre este último aspecto motivador para a escritura do romance, na
entrevista que nos foi concedida, Sacheri explica que escrever a obra foi uma forma
de retornar a este mundo para despedir-se bem dele. Se não voltou a escrever sobre
este universo, é justamente porque este acerto de contas com esta parte de sua
história teve lugar único em La pregunta de sus ojos. Para o autor, “escribir es un
modo de dialogar con tu propia vida y a veces saldar ciertas deudas.”13 (ver
apêndice B, pergunta 4). Retomaremos esta “Nota del autor” ao final deste estudo,
no capítulo referente ao tratamento da memória pela narrativa de Eduardo Sacheri.
Para encerrar a apresentação destes aspectos biográficos do escritor,
Eduardo Sacheri viveu sua primeira experiência com o cinema quando participou da
escritura do roteiro14 de El secreto de sus ojos (2009), filme dirigido por Juan José
Em português: “escrever é um modo de dialogar com a sua própria vida e às vezes saldar certas
dívidas.” (N. do T.)
14 Eduardo Sacheri explica, em diferentes entrevistas, que o trabalho de construção do roteiro levou
mais de um ano entre escrituras e reescrituras. O resultado final rendeu a El secreto de sus ojos o
Prêmio Goya e o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010.
13
26
Campanella (Buenos Aires, 1959), cuja parceria proporcionou ao escritor uma
difusão incontestável de sua obra. Vale observar que seu contato com o universo
audiovisual, no entanto, foi anterior à escritura do roteiro, quando, como antes dito,
seus contos eram lidos em rádios esportivas e o contato com seus leitores era ainda
enquanto ouvintes. O penúltimo romance de Sacheri – Papeles en el viento, também
conta com a previsão de ter uma versão cinematográfica a partir de uma parceria
com o diretor argentino Juan Taratuto (Buenos Aires, 1971).
As obras de Eduardo Sacheri também foram indicadas em Planos Nacionais
que visavam o estímulo à leitura de crianças e jovens. O escritor também participou
de projetos do Ministério de Educação quando seus contos de futebol eram
distribuídos em estádios e em escolas nas periferias.
De modo a encerrar esta mediação crítica sobre Eduardo Sacheri, importa
sinalizar que o autor, em nossa entrevista, interpreta o seu papel de escritor como
uma extensão de seu papel de leitor (ver apêndice B, pergunta 8). Ainda que
abrangente e instigante em sua essência, a tarefa de um leitor estará, para Sacheri,
sempre vedada às limitações impostas pelo autor. É da necessidade de expandir as
fronteiras de seu contato com o literário que nasce seu afã por criar universos já
buscados por ele enquanto um aficionado e antigo leitor de literatura.
Há temas que se mostram recorrentes na obra contística e nos romances de
Sacheri, com destaque dado pelo próprio autor ao tema da redenção. Quando fala
de seu segundo romance15, Aráoz y la verdad (2008), Sacheri explica que a
redenção de um tempo outro, que pesa e sufoca, mostra-se como um de seus
tópicos de maior interesse. Saldar contas com o passado para que o futuro de fato
se concretize é, para o escritor, um tema chave. Não no sentido de estagnar-se à
memória de modo a paralisar-se diante de fatos passados, mas indagar e
reinterpretar esta mesma memória para que se alcance um futuro redimido de
dúvidas, medos, receios. E, de fato, entendemos que são justamente estas duas
posturas diante do passado que encontraremos em La pregunta de sus ojos: a
estagnação diante de um fato traumático e a reinterpretação deste mesmo fato via
escritura.
A cotidianidade também se revela como uma constante na obra do escritor
argentino, que afirma interessar-se por seres ordinários que podem atravessar
Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal argentino PÁGINA 12, em data indisponível. Acesso em
10/03/2013 às 12:05h. In: <http://www.pagina12.com.ar/diario/dialogos/21-140771-2010-02-22.html>
15
27
situações extraordinárias16. Assim, compreendemos que o leitor de Sacheri é aquele
que constrói sentidos a partir de suas próprias experiências e se deleita com esta
excentricidade e profundidade veladas no corriqueiro. É da cotidianidade que o autor
extrai sua matéria-prima de criação artística. Em nossa entrevista, Sacheri chama a
atenção para o objetivo último de seu fazer artístico – a compreensão da realidade
na qual se insere (ver apêndice B, pergunta 1). Nesta medida, a cotidianidade, em
toda sua constância e previsibilidade, também se vê irrompida por momentos
dotados de beleza e complexidade, os quais merecem ser iluminados e capturados
pela mirada artística. De fato, neste estudo entendemos que esta complexidade
encontrada no rotineiro também é trazida à tona pelo escritor no romance foco de
nossa leitura, construído com base em personagens que têm suas histórias
marcadas por uma morte, que desestabiliza o que antes parecia seguro, ordinário,
comum.
Em entrevista o autor afirma: “Todos mis libros reflejan de un modo u otro el mundo en el que yo
vivo: Castelar, Ituzaingó, las cosas que pasan en la provincia de Buenos Aires, de donde soy. Las
que escribo son historias de gente común y corriente a la que, de vez en cuando, le toca enfrentar
situaciones extraordinarias. Diría que me interesan las historias extraordinarias de personas
ordinarias, las aventuras de la gente común. Entiendo que la vida de cualquiera de nosotros, bien
mirada o mirada con atención, está plagada de situaciones asombrosas, emotivas, dolorosas, que
merecen ser contadas y en las que muchos otros pueden reconocerse.”
Cf. entrevista de Eduardo Sacheri à Revista Digital Cabal, em data indisponível. Acesso em:
15/02/2013. In: <http://www.revistacabal.coop/entrevista-eduardo-sacheri>.
Em português: “Todos os meus livros refletem de um modo ou de outro o mundo em que vivo:
Castelar, Ituzaingó, as coisas que acontecem na província de Buenos Aires, de onde sou. As histórias
que escrevo são de gente comum e corrente que, de vez em quando, deve enfrentar situações
extraordinárias. Eu diria que me interessam as histórias extraordinárias de pessoas ordinárias, as
aventuras das pessoas comuns. Entendo que vida de qualquer um de nós, bem vista ou vista com
atenção, está coberta de situações assombrosas, emotivas, dolorosas, que merecem ser contadas e
nas quais muitos outros podem se reconhecer.” (N. do T.)
16
28
1.2
ASPECTOS INICIAIS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS: ARGUMENTO,
ESTRUTURA FORMAL E DIVISÕES
Tal como apontamos na introdução deste estudo e com vistas a facilitar a
compreensão da análise que aqui se realizará das estratégias narrativas
empregadas por Sacheri na conformação de seu romance, julgamos pertinente
trazermos uma concisa exposição da trama de La pregunta de sus ojos17. Como
explicamos ao início, esta apresentação preliminar se justifica pelo tema mesmo
proposto neste estudo. De fato, entendemos que a leitura dos significados do
romance a partir da reflexão de estratégias internas, realizada desde o princípio
mesmo desta dissertação, se valerá de um contínuo diálogo com a trama do
romance, a qual oferecemos a nosso leitor.
Benjamín Miguel Chaparro trabalhava como vice-secretário de um Juizado de
Instrução de Buenos Aires no início dos anos 70, quando lhe coube averiguar a
notificação do homicídio brutal de Liliana Emma Colotto de Morales, uma jovem
professora primária recém-casada que vivia há pouco mais de um ano na capital.
Quando se vê implicado na investigação do caso, Chaparro conhece o viúvo da
jovem, Ricardo Agustín Morales, e se envolve pouco a pouco com a história que há
por detrás do crime. Junto a Chaparro, o leitor também tem acesso aos pormenores
de investigação de busca pelo suspeito – Isidoro Gómez, o que engloba as relações
conflituosas que mantém com os membros de sua Secretaria.
Passados trinta anos do caso, Benjamín Chaparro, já aposentado, decide
escrever um romance sobre a história do viúvo Ricardo Morales e da investigação
inconclusa do assassinato de sua jovem esposa no ano de 1968. Para tanto,
Chaparro volta à Secretaria onde trabalhou durante toda sua vida e recupera sua
antiga máquina de escrever, instrumento que lhe possibilita resgatar através da
escritura momentos importantes de seu passado, tais como o impacto pela morte da
jovem e os desdobramentos do caso que influenciaram diretamente em sua vida. A
Todas as referências a La pregunta de sus ojos feitas nesta dissertação se acompanharão de uma
notação entre parênteses com o número da página onde se encontra o trecho em sua edição
argentina ou brasileira. As referências em espanhol dizem respeito à edição argentina: SACHERI,
Eduardo. La pregunta de sus ojos. 1ª ed. 6ª reimp. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara,
2010. As traduções ao português que acompanham os trechos em espanhol estão em notas de pé de
página e são de autoria de Joana Angélica d’Avila Melo como partes conformadoras da seguinte
edição brasileira: SACHERI, Eduardo. O segredo dos seus olhos; tradução de Joana Angélica d’Avila
Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
17
29
empreitada de Chaparro como romancista é acompanhada de perto por um narrador
outro, que apresenta o personagem em seu momento presente, enquanto escritor
que ainda cultua, depois de três décadas, um persistente e secreto amor pela juíza
Irene Menéndez Hastings, com quem sempre trabalhou.
Desta forma, o leitor de Sacheri é exposto a uma trama maior que se
subdivide em suas subtramas, construídas a partir de vozes pertencentes a dois
narradores distintos. La pregunta de sus ojos se estrutura com base em capítulos
numerados e capítulos que possuem um título, em um total de quarenta e cinco
capítulos numerados e catorze capítulos intitulados. Após o último capítulo, há uma
nota do autor, de extrema importância para este estudo, pois dialoga em grande
medida com o que aqui buscaremos interpretar como os significados do romance.
Vale dizer que a ordenação de ditos capítulos, intercalados ao longo do romance de
forma aparentemente não sistemática aos olhos do leitor, tem relação direta com os
sujeitos enunciadores, vozes estas que nos conduzem a uma intricada rede de
focalizações e significados que muito nos revelam sobre o jogo temporal entre
passado e presente conformador de La pregunta de sus ojos.
30
II
ESTRATÉGIAS
NARRATIVAS:
UMA
LEITURA
DOS
ELEMENTOS
CONSTITUINTES DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS.
2.1
A IMPORTÂNCIA DA FOCALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NARRATIVA:
A POLIFONIA ENUNCIATIVA
Como antes dito, os capítulos de La pregunta de sus ojos se distribuem com
base em duas espécies de ordenações: uma que parte de uma sequência numérica
e que se apresenta por uma voz que narra em primeira pessoa, e outra que contém
títulos dados pelo sujeito que narra em terceira pessoa. Para uma melhor
compreensão do jogo temporal entre passado e presente que estrutura o romance
de Sacheri, faz-se necessária a reflexão mais detida destas duas instâncias
narrativas que compõem La pregunta de sus ojos.
De início, aclaramos que o conceito de “focalización” utilizado pela teórica
neerlandesa da literatura Mieke Bal (1995)18 será neste estudo de grande
importância na valoração destes distintos estratos do texto narrativo, haja vista que o
termo se refere ao ponto de vista escolhido, à maneira específica de representar em
uma narrativa. Segundo a autora, a focalização alude “a las relaciones entre los
elementos presentados y la concepción a través de la cual se presentan. La
focalización será, por lo tanto, la relación entre la visión y lo que se ‘ve’, lo que se
percibe.”19 (BAL, 1995, p.108). Com base na definição proposta por Bal, entendemos
que La pregunta de sus ojos apresenta mais de um foco de visão, ou seja, mais de
um focalizador, ao mesmo tempo em que “lo que se ‘ve’”, ou seja, o objeto narrado,
também varia de acordo com o focalizador que se tem em mente. De forma mais
detida, inicia-se de antemão esta reflexão a partir da distinção entre as instâncias
focalizadoras proposta por Mieke Bal, quando a autora explica que:
Cuando la focalización corresponde a un personaje que participa en la
fábula como actor, nos podremos referir a una focalización interna.
Podremos indicar, entonces, por medio del término focalización externa que
un agente anónimo, situado fuera de la fábula, opera como focalizador. Un
BAL, Mieke. Teoría de la narrativa (una introducción a la narratología). Trad. de Javier Franco.
Madrid: Ediciones Cátedra, 1995.
19 Em português: “às relações entre os elementos apresentados e a concepção através da qual se
apresentam. A focalização será, desta forma, a relação entre a visão e o que se vê, o que se
percebe.” (BAL, 1995, p.108). (N. do T.)
18
31
focalizador externo no ligado a un personaje se abriría como FE.20 (BAL,
1995, p.111)
A partir da distinção acima feita por Bal e dando início à análise da
focalização no romance, entendida esta como a relação do agente que vê com
aquilo que se vê, pode-se afirmar que La pregunta de sus ojos possui dois grandes
sujeitos da focalização, ou seja, dois focalizadores que organizam seu discurso de
acordo com o objeto que se propõem a focalizar: um focalizador interno ou
focalizador-personagem (FP) e um focalizador externo (FE). O primeiro está
representado na figura de Benjamín Miguel Chaparro, personagem protagonista de
La pregunta de sus ojos que assume a função de focalizador quando se propõe a
narrar a história do assassinato da jovem Liliana e todos os pormenores
relacionados ao fato. O segundo, por sua vez, diz respeito a uma instância narrativa
que não participa do romance enquanto personagem, tal como Benjamín Chaparro,
mas que focaliza o mesmo em seu momento presente, enquanto escritor e
focalizador de seu passado. Analisaremos a seguir estas duas vozes narrativas de
forma a compreender sua importância para a composição estrutural do romance e
para uma reflexão mais aprofundada do diálogo edificado entre passado e presente
na narrativa de Eduardo Sacheri.
2.1.1 Características do FP (focalizador-personagem):
Antes de iniciarmos uma leitura mais detida do focalizador-personagem ou
focalizador interno, doravante FP ou FI, de La pregunta de sus ojos, cabe refletirmos
sobre o próprio conceito de focalização interna, sugerido por Mieke Bal. A presença
de um focalizador personagem no romance é claramente situada na primeira pessoa
do singular (Yo) presente nos capítulos cuja organização se dá via classificação
numérica. Tendo em vista a presença deste Yo que narra e insere sua perspectiva,
seu ponto de vista na narrativa, importa refletirmos sobre algumas questões
referentes à caracterização deste focalizador que integra o romance: já que a
escritura é o instrumento que o converte em focalizador, o que motiva o personagem
Em português: “Quando a focalização corresponde a um personagem que participa na fábula como
ator, podemos nos referir a uma focalização interna. Podemos indicar, então, por meio do termo
focalização externa quando um agente anônimo, situado fora da fábula, opera como focalizador. Um
focalizador externo não ligado a um personagem se abriria como FE”. (BAL, 1995, p.111) (N. do T.)
20
32
a escrever? Que dimensão afetiva esta voz introduz no romance? Quais são as
nuances dessa voz que narra e ao mesmo tempo participa da história narrada?
O capítulo “1”, o segundo a aparecer na obra de Eduardo Sacheri, já nos
coloca de início diante de um personagem que escreve uma história sem maiores
certezas das razões que o levam a fazê-lo: “No estoy demasiado seguro de los
motivos que me llevan a escribir la historia de Ricardo Morales después de tantos
años.”21 (SACHERI, 2010, p.17). De fato, esta incerteza do personagem quanto a
suas próprias motivações perpassa grande parte de La pregunta de sus ojos. Há
uma clara necessidade do focalizador interno de justificar, perante a um hipotético
leitor, o porquê de sua escritura. Leia-se incerto leitor, pois o personagem Chaparro,
na incerteza que o define enquanto ser ficcional, não está seguro de que alguém
algum dia leia o que ele mesmo escreve. Ao tentar encontrar uma resposta, uma
função para sua empreitada como escritor, Chaparro apresenta ao leitor razões
múltiplas e distintas para lançar-se ao ato de escrever. A primeira delas, por certo,
se relaciona à atração mesma que o caso de Morales exerce sobre o personagem.
Chaparro confessa não ter coragem de encarar suas próprias fraquezas e afirma
encontrar na vida do outro um caminho mais cômodo de reflexão de seus próprios
medos:
Podría decir que lo que le pasó a ese hombre siempre ejerció en mí una
oscura fascinación, como si me diera la oportunidad de ver reflejados, en
esa vida destrozada por el dolor y la tragedia, los fantasmas de mis propios
miedos.22 (SACHERI, 2010, p. 17)
Na medida em que suas justificativas ganham corpo sólido em seu texto, o
leitor de Chaparro se dá conta de que o assombro diante dos rumos tomados pelo
caso de Liliana não figura como razão única para a escritura do personagem sujeito
da focalização interna. No transcorrer de suas divagações literárias, Chaparro acaba
por confessar que, se decide escrever a história de Morales, o faz para ocupar um
vazio deixado pela saída da Secretaria de Instrução onde trabalhou durante toda sua
Em português: “não tenho muito claros os motivos que me levam a escrever a história de Ricardo
Morales depois de tantos anos.” (SACHERI, 2011, p.12).
22 Em português: “Eu poderia dizer que o que aconteceu a esse homem sempre exerceu sobre mim
uma obscura fascinação, como se me desse a oportunidade de ver refletidos, naquela vida
destroçada pela dor e pela tragédia, os fantasmas dos meus próprios medos.” (SACHERI, 2011,
p.12).
21
33
vida: “Supongo que la cuento porque tengo tiempo. Mucho, demasiado tiempo”
23.
(2010, p.18). No mais, se o personagem decide por fim que a trama de sua obra
consistirá na história de Ricardo Morales e do crime de Liliana, também o faz, entre
outras razões, em função de uma comodidade assumida por ele mesmo:
Lo primero que pensé es que no tengo la imaginación suficiente como para
escribir una novela. La solución que encontré fue escribir sin inventar nada,
es decir, narrar una historia verdadera, algo de lo que yo hubiese sido,
aunque indirectamente, testigo. Por eso decidí escribir la historia de Ricardo
Morales. Por lo que dije al principio y porque es una historia que no necesita
que yo le agregue nada, y porque sabiéndola cierta tal vez me atreva a
contarla hasta el final, sin amedrentarme con la vergüenza de empezar a
mentir para llenar baches, alargar la trama o convencer a quien la lea de
que no la tire al cuerno apenas transcurridas quince páginas.24 (SACHERI,
2010, p. 21)
No que tange ao fragmento acima citado, depreendemos que o focalizador
personagem chama a atenção para o estatuto de verdade do objeto foco de sua
mirada. Mieke Bal (1995) também menciona esta pretensão de objetividade por
parte de um personagem que se propõe a focalizar, narrar algo. De acordo com a
autora, a tentativa de apresentar só o que se vê (ou, no caso de La pregunta de sus
ojos, o que se viu) é acompanhada de um desejo por eliminar qualquer comentário
ou interpretação que fuja à objetividade. No entanto, como coloca a autora, a
percepção se apresenta como um processo psicológico inerente ao focalizador,
razão que leva Bal a afirmar que o esforço por ser objetivo no ato de narrar carece
em grande medida de sentido. De fato, embora Benjamín Chaparro, no fragmento
anteriormente citado, demonstre buscar contar a história de Morales com total
fidelidade aos fatos e “sin inventar nada”, não consegue fazê-lo no decorrer de sua
narrativa. As dúvidas do narrador se apresentam como problemas ficcionais que dão
espaço a sugestivas reflexões narratológicas que apontam desde a ficcionalidade do
narrado até as possibilidades, procedimentos e limites do ato de narrar, o que
comprovamos na seguinte passagem de marcado caráter metanarrativo:
Em português: “Acho que as escrevo porque tenho tempo. Muito, demasiado tempo.” (SACHERI,
2011, p.12).
24 Em português: “A primeira coisa que eu pensei foi que não tenho imaginação suficiente para
escrever um romance. A solução que encontrei foi escrever sem inventar nada, isto é, narrar uma
história verdadeira, algo de que eu tivesse sido testemunha, mesmo indiretamente. Por isso decidi
escrever a história de Ricardo Morales. Pelo que afirmei no princípio e por ser uma história à qual não
preciso acrescentar nada, e porque, sabendo-a por inteiro, talvez eu me atreva a contá-la até o final,
sem amedrontar com a vergonha de começar a mentir para tapar buracos, alongar a trama ou
convencer quem a ler a não jogá-la no lixo depois de dez páginas.” (SACHERI, 2011, p.14).
23
34
¿Y qué hago con las partes de la historia que no he sido directamente
testigo, esas partes que intuyo pero no conozco a ciencia cierta? ¿Las
cuento igual? ¿Las invento de pe a pa? ¿Las ignoro? 25 (SACHERI, 2010, p.
22)
Os problemas ficcionais antes citados têm relação direta com os capítulos em
que Benjamín Chaparro abandona sua perspectiva de focalizador personagem e
passa, também ele, à perspectiva de Narrador Externo aos fatos. Isso ocorre quando
Chaparro decide por criar capítulos a partir de fatos que intui terem acontecido no
transcorrer da investigação da morte de Liliana. E como ter a certeza de que os
capítulos em questão não são estruturados pelo próprio focalizador externo de La
pregunta de sus ojos? O leitor sabe que a voz que narra pertence a Chaparro
porque já compactua da estrutura organizacional dos capítulos proposta pelo
romance. Dito de outro modo, a partir do pacto de leitura que o leitor firma com a
narrativa, sabemos que o capítulo 13, a título de exemplo, é construído por Chaparro
por tratar-se de um capítulo numerado. Narrado em terceira pessoa, este capítulo
nos descreve o momento em que o pai de Liliana Colotto, a jovem assassinada em
1968, vai até a casa da mãe de Isidoro Gómez, ainda suspeito da morte da jovem,
para tentar conseguir informações sobre o paradeiro do possível assassino.
Chaparro e o viúvo Morales confabulam juntos esta empreitada em busca de
informações realizada pelo sogro de Morales, mas Chaparro não estava presente
nesta expedição e o pai de Liliana a realiza sozinho.
Como Chaparro tem acesso às informações pormenorizadas que narra ao
leitor se não estava lá no momento em que sucede a ação? Como apontado aqui
anteriormente, o próprio personagem nos avisa, de antemão, que irá “mentir” em
alguns momentos “para llenar baches” em sua narrativa. Se o faz, assume que é tão
só por uma questão de organização dos fatos para o leitor, já que o que lhe importa
é contar o que viveu:
[...] será mejor contar lo que sé y también lo que supongo, porque de lo
contrario nadie va a entender un carajo. Ni yo mismo. Y otra cosa
complicada, el léxico: en el renglón anterior resalta la palabra “carajo” como
un cartel de neón en medio de las tinieblas. ¿Uso esas palabras burdas y
soeces, o las elimino de mi lenguaje escrito? Cuántas dudas, carajo. Ahí
25 Em português: “E o que faço com as partes da história das quais não fui testemunha direta,
aquelas partes que intuo mas não conheço em detalhes? Conto-as do mesmo jeito? Invento-as de
cabo a rabo? Ignoro-as?” (SACHERI, 2011, p.15).
35
está, de nuevo, el improperio. Al final tendré que concluir que soy un
malhablado.26 (SACHERI, 2010, p.22)
A preocupação com a pessoa gramatical se faz acompanhar de dúvidas
quanto ao léxico, ilustradas no fragmento anterior e que ratificam esta estrutura de
metaficção observável em La pregunta de sus ojos. São muitos os momentos em
que Chaparro tece comentários sobre seu próprio ato de narrar, dando-nos a
impressão de que constrói seu romance em consonância com o ato de leitura
realizado por seu leitor.
En realidad y muy en el fondo, sospecho que esta página que porfío en
llenar de palabras va a terminar también, como las diecinueve que la
precedieron, echa un bollo en el rincón opuesto de la pieza.27 (SACHERI,
2010, p.20)28
O personagem que se propõe a ser também autor divaga quanto ao método
de escritura que utilizará, bem como com relação ao que será ou não objeto ou foco
de sua leitura do passado:
La primera dificultad concreta, una vez decidido el tema: ¿En qué persona
gramatical voy a redactar esta cosa? Cuando hable de mí mismo, ¿diré “yo”
o diré “Chaparro”? Es tétrico que este escollo baste para detener todo mi
brío literario. Tal vez sea mejor, para no verme tentado a volcar impresiones
y vivencias demasiado personales. Eso lo tengo claro. No pretendo hacer
catarsis con este libro, o con este embrión de libro, hablando más
exactamente. Pero la primera persona me queda más cómoda. Por
inexperiencia, supongo, pero me queda más cómoda.29 (SACHERI, 2010, p.
22)
Em português: “[...] será melhor contar o que sei e também o que suponho, porque do contrário
ninguém vai entender um caralho. Nem eu mesmo. E outra coisa complicada, o vocabulário: na linha
anterior, destaca-se a palavra “caralho” como uma placa de neon em meio às trevas. Uso esses
termos chulos e vulgares, ou elimino-os de minha linguagem escrita? Quantas dúvidas, caralho. Aí
está, de novo, o palavrão. No final, terei de concluir que sou uma língua-suja.” (SACHERI, 2011, p.15)
27 Em português: “Na realidade, e muito no fundo, desconfio de que página que teimo em encher de
palavras vai terminar também, como as 13 que a precederam, embolada no canto oposto do
aposento.” (SACHERI, 2011, p.14)
28 Este fragmento ilustra um interessante efeito de ilusão de que a obra escrita por Chaparro é
construída em compasso com a leitura realizada pelo leitor. Dito de outro modo, entendemos que este
efeito é alcançado pela própria estrutura física da obra. No fragmento, retirado da página 20 de La
pregunta de sus ojos, Chaparro faz referência às dezenove páginas anteriores que já foram escritas
por ele. Refletindo este encaixe de obras dentro de uma única obra, como em uma espécie de
boneca russa, são detalhes estilísticos como estes que nos levam inclusive a supor se não seria a
própria La pregunta de sus ojos a obra escrita por Benjamín Chaparro.
29 Em português: “Decidido o tema, a primeira dificuldade concreta: em que pessoa gramatical vou
redigir este troço? Quando falar de mim mesmo, direi ‘eu’ ou direi ‘Chaparro’? É tétrico que esse
obstáculo seja suficiente para deter toda a minha energia literária. Suponhamos que eu escolha a
terceira pessoa para a narrativa. Talvez seja melhor, para não me ver tentado a despejar impressões
e vivências excessivamente pessoais. Isso está claro. Não pretendo me purificar como este livro, ou,
26
36
No transcorrer de sua escritura e em conformidade com a evolução de sua
consciência de escritor, Benjamín Chaparro torna-se mais seguro de seus propósitos
artísticos e abandona paulatinamente seus devaneios estilísticos e suas dúvidas
quanto ao ato de narrar. A história de Morales, como nomeada pelo próprio
personagem-autor, passa a ganhar forma e faz com que Chaparro comece a
preocupar-se com o que seja ou não importante para o entendimento da história por
parte do leitor. Benjamín Chaparro sabe que só teremos conhecimento dos fatos
narrados por ele e, enquanto modalizador da recepção leitora, toma decisões que
interferem no acesso que o leitor tem aos fatos. Como antes dito, se decide criar a
partir do que imagina ter acontecido, o faz pois assume sua posição de autor diante
do que narra e de responsável pela melhor transmissão possível de um passado que
ainda lhe parece próximo e que faz nascer no personagem o desejo de sua
organização e transmissão via escritura. No mais, esta análise de Chaparro na
qualidade de autor, focalizador de uma história já vivida, se complementará com a
análise que se fará de Chaparro enquanto personagem, em um capítulo específico
que será reservado à leitura desta categoria narrativa no romance.
2.1.2 Características do FE (focalizador externo):
No que diz respeito ao focalizador externo, como vimos, Mieke Bal o define
como aquele que está situado fora da fábula. Segundo a autora,
Cuando en un texto el narrador nunca se refiere explícitamente a sí mismo
como personaje, podremos, de nuevo, hablar de narrador externo (NE). Ya
que no figura en la fábula que él mismo narra, hablaremos de un narrador
vinculado a un personaje, un (NP).30 (BAL, 1995, p.128)
Além da oposição aqui já apontada por Bal entre as vozes interna e externa
de um romance, os modos de apresentação da consciência são também estudados
pela austríaca Dorrit Cohn31, teórica que centrou seu trabalho na análise da estrutura
falando mais exatamente, como este embrião de livro. Mas a primeira pessoa me é mais cômoda. Por
inexperiência, imagino, mas me é mais cômoda.” (SACHERI, 2011, p.14).
30 Em português: “Quando em um texto o narrador nunca se refere explicitamente a si mesmo como
personagem, poderemos, de novo, falar de narrador externo (NE). Já que não figura na fábula que
ele mesmo narra, falaremos de um narrador vinculado a um personagem, um (NP).” (BAL, 1995,
p.128).
31 COHN, Dorrit. “Técnicas de presentación de la consciencia”. En SULLÀ, Enric, ed. Teoría de la
novela: antología de textos del siglo XX. Barcelona: Crítica, 2001. p.205-213.
37
formal da ficção narrativa. Pensando nos discursos em terceira pessoa, a autora
chama de “psiconarração” a técnica narrativa que se efetiva quando um narrador
(em terceira pessoa) expõe com sua própria voz emoções, pensamentos e desejos
de um ou mais personagens, tecendo ou não comentários sobre os mesmos. De
acordo com a autora, a psiconarração trata-se do “discurso del narrador sobre la
conciencia de un personaje”32 (2001, p.209). Nesta medida, se no discurso em
primeira pessoa verifica-se “la retrospección dentro de una conciencia”, na
psiconarração o que se constata é “la inspección de una conciencia”.33 (COHN,
2001, p.209).
O narrador externo de La pregunta de sus ojos acompanha as ações
realizadas por Chaparro desde o primeiro capítulo do romance, a partir do dia em
que lhe organizam uma festa de despedida por sua aposentadoria, da qual o
personagem prefere não participar. Antes mesmo da apresentação da voz de
Chaparro como narrador, é este narrador externo e onisciente quem abre a narrativa
de La pregunta de sus ojos no primeiro capítulo, quando somos informados por uma
voz outra que não a de Chaparro, sobre a decisão do personagem de escrever um
romance:
Le dice que, aunque no tiene ni idea de qué va a hacer de ahora en
adelante, anda con ganas de probar el viejo proyecto de escribir un libro. En
cuanto lo dice, se siente un imbécil. Viejo, dos veces divorciado, jubilado,
con veleidades de escritor. El Hemingway de la tercera edad. El García
Márquez del oeste del conurbano.34 (SACHERI, 2010, p.14 – Capítulo
“Despedida”)
Ao descrever as emoções e sensações de Benjamín Chaparro, dentro do que
a autora Dorrit Cohn chama de “psiconarração”, o narrador externo abre espaço para
a caracterização de Chaparro a partir de uma perspectiva diferente. Como também
assinala Mieke Bal, o NE difere de um narrador personagem porque nunca se refere
a si mesmo como um personagem35. A principal função do NE em La pregunta de
Em português: “discurso do narrador sobre a consciência de um personagem.” (COHN, 2001,
p.209). (N. do T.)
33 Em português: “a retrospecção dentro de uma consciência” e “a inspeção de uma consciência”.
(COHN, 2001, p.209). (N. do T.)
34 Em português: “Diz que, embora não tenha a menor ideia do que vai fazer de agora em diante,
anda com vontade de tentar o antigo projeto de escrever um livro. Enquanto diz, sente-se um imbecil.
Velho, duas vezes divorciado, aposentado, com veleidades de escritor. O Hemingway da terceira
idade. O García Márquez do oeste da Grande Buenos Aires.” (SACHERI, 2011, p.10).
35 Gérard Genette (1972), usando outra terminologia, chamará narrador homodiegético ao que
participa dos fatos que narra e narrador heterodiegético, o que não o faz e narra a partir de uma
32
38
sus ojos é narrar a vida presente de Chaparro, seu projeto de escritura e os
obstáculos que o personagem precisa superar para concretizá-lo. Chaparro, por sua
vez, é autor do romance (focalizador interno) e também personagem objeto da
focalização do narrador externo. Ocupa um lugar destacado nas duas instâncias
narrativas. Joga com seus personagens, mas também atua como parte de um jogo
mais amplo, que engloba a ele mesmo e a todo seu projeto narrativo:
[Benjamín Chaparro] Se incorpora, satisfecho. Dos días atrás estaba
desesperado por la certeza de que jamás podría escribir su libro, ahogado
en la nebulosa del principio. Ahora ese principio está escrito. Bien o mal,
pero escrito. Eso lo pone contento, aunque también siga ansioso. Pero
ansioso por seguir, por contar lo ocurrido con esas personas. Se pregunta si
esta será la sensación que tienen los escritores cuando narran. Esa módica
omnipotencia de jugar con las vidas de sus personajes. No está seguro,
pero, si es así, la sensación le agrada.36 (SACHERI, 2010, p.28 – Capítulo
“Cine”)
Neste fragmento percebe-se que as divagações de Chaparro quanto a seu
processo de escritura, expostas no subcapítulo anterior através da focalização do
próprio personagem, também são colocadas ao leitor a partir da perspectiva deste
narrador externo. No fragmento, a adjetivação empregada pela voz do NE confirma o
que nos coloca Dorrit Cohn (2001), quando a autora defende que o narrador em
terceira pessoa realiza uma “inspección” da consciência do personagem foco de sua
narração. É o narrador externo de La pregunta de sus ojos quem nos apresenta um
Chaparro “satisfecho”, “desesperado”, “contento”, “ansioso”, sentindo uma “módica
omnipotencia” por jogar com a vida de seus personagens.
Vale chamar a atenção uma vez mais para este seguimento contínuo a
Chaparro, quando todo o processo de escritura do protagonista é acompanhado de
perto por este NE. Observa-se que este acompanhamento ininterrupto do narrador
externo sobre o personagem ganha um ar de veracidade a partir de interessantes
procedimentos narrativos realizados por Eduardo Sacheri em La pregunta de sus
ojos:
maior distância dos fatos narrados, geralmente em terceira pessoa. Não utilizaremos esta
terminologia do autor, mas damos conta de sua existência. Ver: GENETTE, Gèrard. Figuras III.
Editorial Lumen, 1989.
36 Em português: “Levanta-se, satisfeito. Dois dias atrás, afogado na névoa do início, estava
desesperado pela certeza de que jamais poderia escrever seu livro. Agora, esse início está escrito.
Bem ou mal, mas escrito. Isso o deixa contente, embora ele continue ansioso. Mas ansioso por
continuar, por contar o acontecido com essas pessoas. Pergunta-se se será essa a sensação que os
escritores têm quando narram. Essa moderada onipotência de jogar com a vida de seus
personagens. Não tem certeza, mas, se assim for, a sensação o agrada.” (SACHERI, 2011, p.19).
39
Chaparro tira de la hoja que acaba de terminar con la suficiente energía
como para liberarla del rodillo sin romperla y la relee. Las últimas palabras lo
hacen sonreír. Le resulta grato el ejercicio de la memoria: esa frase con la
que ha cerrado el capítulo, la de “el día en que los boludos hagan una
fiesta”, la había creído absolutamente olvidada. Pero ahora ha salido a flote
junto con otro montón de recuerdos de su pasado y de la gente con la que
ha vivido ese pasado.37 (SACHERI, 2010, p.137 – Capítulo “Nombre y
apellido”)
Parece-nos oportuno observar que o capítulo de La pregunta de sus ojos que
antecede ao acima citado, cuja escritura é feita por Benjamín Chaparro, termina
justamente com estas palavras que “lo hacen sonreír”, como apontado pelo narrador
externo no fragmento acima. A frase filosófica de seu amigo Sandoval, utilizada
somente em momentos especiais, lhe salta à memória e suas reações durante o ato
de escritura são acompanhadas de perto (e também expostas) por este narrador
externo. Ora, como neste estudo já foi explicitado, tais passagens de caráter
metanarrativo dão ao leitor a sensação de que lê dois romances que são concebidos
simultaneamente. O narrador externo narra concomitantemente à escritura de
Chaparro, enquanto esta se desenvolve em sincronia com a narrativa realizada pelo
NE. Este jogo narrativo também perpassa a própria conformação da obra, como já
sinalizado, a partir da ordenação do romance em capítulos numerados (referentes a
Chaparro) e capítulos intitulados (referentes ao NE):
Acomoda sobre el resto de la pila la última hoja mecanografiada, y
aprecia el espesor. No es poco, para ese primer mes de trabajo. ¿O ya es
un mes y medio? Puede ser. El tiempo pasa rápido gracias a este asunto.
Lo asalta una duda recurrente: ¿qué título le pondrá a su novela? No sabe.
No tiene la menor idea.
Chaparro siente que no es bueno para los títulos. En un primer
momento pensó en ponerle un título a cada capítulo, pero ahora ha
renunciado a semejante pretensión. Si no se le ocurre un nombre para el
conjunto, mucho menos se le ocurrirá para cada apartado. Y ya lleva
escritos dieciséis y le faltan mucho más.38 (SACHERI, 2010, p.138 –
Capítulo “Nombre y apellido”)
Em português: “Chaparro puxa a página que acaba de redigir com energia suficiente para liberá-la
do cilindro sem rasgá-la e a relê. As últimas palavras o fazem sorrir. O exercício da memória o
agrada: essa frase com que encerrou o capítulo, aquela de ‘no dia em que os babacas fizeram uma
festa’, ele a acreditara completamente esquecida. Mas agora veio à tona, junto com outro monte de
lembranças de seu passado e das pessoas com quem ele conviveu no passado.” (SACHERI, 2011,
p.90).
38 Em português: “Acomoda sobre o resto da pilha a última folha datilografada e aprecia a espessura.
Não é pouco, para o primeiro mês de trabalho. Ou já é um mês e meio? Pode ser. O tempo passa
depressa, graças a esse assunto. Uma dúvida recorrente o assalta: que título dará ao seu romance?
Não sabe. Não tem a mínima ideia.
Chaparro sente que não é bom de títulos. Num primeiro momento pensou em dar um a cada
capítulo, mas agora renunciou a semelhante pretensão. Se não lhe ocorre um nome para o conjunto,
37
40
É curioso pensar que os capítulos escritos por Chaparro sejam numerados
porque, ainda que tivesse a pretensão inicial de tecer entradas para cada um deles,
o personagem não se sente “bueno para los títulos”. Em contrapartida, os capítulos
escritos pelo narrador externo contêm cada um deles um título diferente, conectados
literariamente ao assunto tratado. É como se, em alguma medida, a inexperiência
declarada sem qualquer reserva por Chaparro não fosse uma das caraterísticas do
outro narrador, capaz de engendrar seus próprios títulos.
Partindo à análise de outro procedimento narrativo relacionado à focalização
externa presente em La pregunta de sus ojos, pode-se constatar que os dilemas de
Chaparro chegam até o leitor por meio de perguntas feitas por este narrador em
terceira pessoa, o que evidencia que este NE, através de tais questionamentos, de
perguntas que aparecem interpoladas em sua narração, segue o fluxo de
pensamento de Chaparro, trazendo à tona momentos de autocrítica, enquanto o
toma como objeto de sua focalização:
“Imaginate, Irene, no me voy a poner a mis años a aprender computación,
sabés. Y esa Remington la tengo incorporada en la punta de los dedos
como si fueran una cuarta falange” (¿cuarta falange?, ¿pero de dónde ha
sacado semejante imbecilidad?).39 (SACHERI, 2010, p.14 – Capítulo
“Despedida”)
Em seus estudos sobre o caráter polifônico da enunciação, o linguista francês
Oswald Ducrot (1987)40 busca ilustrar “como o enunciado assinala, em sua
enunciação, a superposição de diversas vozes.” (DUCROT, 1987, p.172). A certeza
teórica de que há uma unicidade intrínseca ao sujeito da enunciação (quando se
afirma “o sujeito”) é questionada por Ducrot, que defende que nem sempre o autor
de um enunciado é o responsável por aquilo que de fato se diz no enunciado. Dito
de outro modo, o sujeito falante ou locutor (em nosso caso a voz do NE) nem
sempre tem a responsabilidade pelo enunciado produzido. Ducrot cita o caso das
retomadas, quando o que se recupera não é de responsabilidade do falante
muito menos lhe ocorrerá para cada segmento. E já escreveu dezesseis, e faltam muito mais.”
(SACHERI, 2011, p.91).
39 Em português: “‘Imagine, Irene, na minha idade não vou me meter a aprender computação. E essa
Remington se incorporou à ponta dos meus dedos como uma quarta falange’ (quarta falange? Mas
de onde tirou semelhante besteira?)” (SACHERI, 2011, p.10).
40 DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução: Eduardo Guimarães. Campinas,
SP: Pontes, 1987.
41
enquanto ser único, mas de um enunciador outro, que tem seu enunciado assimilado
pela voz que fala, tal como notamos no fragmento acima citado.
O ato de pergunta realizado pelo NE de La pregunta de sus ojos em “(¿cuarta
falange?, ¿pero de dónde ha sacado semejante imbecilidad?).”, de fato, trata-se de
uma retomada que revela a polifonia presente na voz deste narrador, que traz os
questionamentos que pertencem ao objeto de sua focalização. No fragmento, podese ler este questionamento que parte da voz do NE como um momento de
autocrítica que Chaparro levanta sobre si mesmo, sobre o que acaba de dizer a
Irene. Há uma fusão de vozes quando o pensamento de outro enunciador – no caso,
o de Chaparro – é assimilado pela voz em 3ª pessoa que narra em La pregunta de
sus ojos e que acompanha as ações de Chaparro em seu momento presente.
É bastante considerável a quantidade de questionamentos que aparecem
como indício da polifonia presente na voz do narrador externo do romance. Em
suma, tais questionamentos denotam a fusão de vozes antes citada, como
momentos de autocrítica ou de dúvidas que correspondem a Chaparro, mas que
este narrador traz interpolados em seu discurso.
Chaparro, mientras prepara el mate, se encuentra sumergido, de
repente, en el mismo deseo culpable de tantas otras veces, aunque de
inmediato se llame a sosiego. Una Irene repentinamente viuda… ¿no podría
enamorarse de él? Nada le asegura semejante cosa. Así que mejor dejar en
paz al pobre ingeniero, que siga disfrutando de su vida y de su mujer, mal
rayo lo parta.
Acomoda sobre el resto de la pila la última hoja mecanografiada, y
aprecia el espesor. [...]41 (SACHERI, 2010, p.138 – Capítulo “Nombre y
apellido”)
O fragmento antes citado também figura como amostra de uma estratégia
narrativa recorrente em La pregunta de sus ojos, também concernente à análise da
instância narrativa aqui tida como externa: quando o narrador, em 3ª pessoa
gramatical, distanciado e anônimo, introduz no meio de seu relato uma expressão
que não se pode atribuir a ele enquanto narrador. Tal procedimento – que aqui será
Em português: “Chaparro, enquanto prepara o mate, se vê submergido, de repente, no mesmo
desejo culpado de tantas outras vezes, embora se censure de imediato. Uma Irene repentinamente
viúva... não poderia se apaixonar por ele? Nada lhe assegura semelhante coisa. Portanto, melhor
deixar em paz o pobre engenheiro, que continue desfrutando de sua vida e de sua mulher, raios o
partam.
Acomoda sobre o resto da pilha a última folha datilografada e aprecia a espessura. [...]”.
(SACHERI, 2011, p.91).
41
42
chamado de Procedimento da Voz Indexada42 – diz respeito à presença da voz de
outro, inserida na voz do narrador externo. Esta voz indexada, encoberta, não está
identificada por aspas ou por qualquer outro recurso gráfico, mas é percebida pelo
leitor como pertencente a outro enunciador, diferente daquele que fala. De posse do
trecho acima, observa-se que “mal rayo lo parta” diz respeito a um enunciado que
não é de responsabilidade do sujeito falante, mas de outro enunciador.
Tal procedimento torna possível que, através da ficção, o narrador externo
esteja conectado, de alguma forma, à consciência do personagem objeto de sua
descrição, o que, como vimos, Oswald Ducrot (1987) aponta como um dos
movimentos da polifonia, quando a voz de um único locutor traz em si indícios de
mais de um enunciador. Ducrot estabelece uma metáfora teatral e compara o locutor
a um ator, na medida em que ambos se assumem como porta-vozes de diferentes
personagens, que no caso da polifonia textual referem-se aos diferentes
enunciadores que se fazem “falar” pela voz do narrador externo. Assim, segundo o
teórico, “dizendo que o locutor faz de sua enunciação uma espécie de
representação, em que a fala é dada a diferentes personagens, os enunciadores,
alarga-se a noção de ato de linguagem.” (DUCROT, 1987, p.217). De acordo com
Ducrot, existe a possibilidade discursiva de que o pensamento que se comunica não
seja pertencente àquele que fala. Vale dizer que não se trata aqui do relato de um
discurso no discurso de outro (em estilo direto ou indireto), mas da presença de
várias vozes em uma única consciência.
Os pensamentos de Ducrot servem de amparo nesta pesquisa pois tal
procedimento contribui para que se revise o conceito e a função clássica do narrador
em 3ª pessoa de La pregunta de sus ojos, como aquele que age de forma anônima,
onisciente e distanciada. De fato, tal distanciamento é colocado em xeque quando a
linearidade do discurso do narrador externo é rompida por estas indexações
abruptas, portadoras de uma voz que não lhe pertence.
Para esta pesquisa, julgamos necessária a criação de um conceito que pudesse dar conta deste
procedimento narrativo tão recorrente em La pregunta de sus ojos. Desta forma, chamamos aqui de
Procedimento da Voz Indexada, termo sugerido por meu orientador Miguel Ángel Zamorano em um
de nossos encontros, ao fenômeno de aparição de um enunciado interpolado na voz do narrador
externo, mas que não pertence a este. O leitor identifica o enunciado como estranho à voz que narra,
como se a voz do narrador se fundisse com a voz de outro enunciador, em uma espécie de mescla de
consciências em uma única voz.
42
43
Benjamín Miguel Chaparro se detiene en seco y decide que no va. No
va y punto. Al cuerno con todos. Aunque haya prometido lo contrario y
aunque vengan preparando la despedida desde hace tres semanas y
aunque hayan reservado la mesa para veintidós personas en El Candil y
aunque Benítez y Machado hayan confirmado que se vienen desde el fin del
mundo para celebrar la jubilación del dinosauro.
Su gesto es tan abrupto que el hombre que viene caminando detrás
de él, por Talcahuano y hacia el lado de Corrientes, casi se lo lleva por
delante y a duras penas logra esquivarlo bajando un pie de la vereda al
pavimento para seguir andando.43 (SACHERI, 2010, p.9 – Capítulo
“Despedida”)
No fragmento acima selecionado, “Al cuerno con todos” não é um discurso
pertencente ao sujeito detentor do enunciado, mas a Chaparro, cuja voz é justaposta
no meio dos fatos narrados pelo NE. Confirma-se assim o postulado por Ducrot,
quando o teórico defende que nem sempre o locutor (o responsável pelo enunciado)
é o mesmo que o enunciador (aquele que se expressa através da enunciação).
Ainda com base no fragmento antes destacado, percebe-se que o primeiro
parágrafo se distingue amplamente do segundo pois em um primeiro momento
promove uma sensação de que não corresponde à narração dos fatos feita pelo NE.
É como se de alguma forma o narrador, no primeiro parágrafo do fragmento, se
fundisse com o personagem Benjamín Chaparro a partir de uma imersão em sua
consciência, criando um efeito de abolição do distanciamento clássico e esperado de
um narrador externo. O segundo parágrafo, por sua vez, retoma este tempo
cronológico e linear, como se o narrador abandonasse suas digressões e retornasse
à progressão externa dos fatos que conta.
Sob tal ótica, entende-se mais uma vez que a concepção teórica de um
narrador externo distanciado é questionada quando se pensa no NE de La pregunta
de sus ojos. São muitos os momentos em que o narrador externo se introduz na
consciência do personagem e, ao compartilhar de seus desejos, sonhos e angústias,
elimina a distância prototípica do ato de narrar. Quando opta por não expor ações,
mas antes traduz a consciência do personagem objeto de sua focalização, narrador
e personagem parecem fundir-se em uma só identidade. As consciências não se
Em português: “Benjamín Miguel Chaparro se detém de repente e decide que não vai. Não vai e
pronto. Que se danem todos. Embora tenha prometido o contrário, embora eles venham preparando
a despedida há três semanas e tenham reservado mesa para 22 pessoas em El Candil, e embora
Benítez e Machado tenham confirmado que vêm lá do fim do mundo para comemorar a
aposentadoria do dinossauro.
Seu gesto é tão repentino que o homem que vem caminhando atrás dele pela Talcahuano, na
direção de Corrientes, quase o derruba e a duras penas consegue se esquivar, descendo um pé da
calçada para o asfalto a fim de continuar andando.” (SACHERI, 2011, p.7).
43
44
distanciam, mas se mesclam em um só relato. Conclui-se que, muitas das vezes,
concepções simplificadoras não fazem jus ao conceito de narrador externo, posto
que a voz em 3ª pessoa também permite uma série de modulações, graduadas pelo
interesse do enunciador em manter ou não maior distância dos fatos narrados.
Ainda a partir do fragmento acima citado, nota-se que o que chamamos aqui
de Procedimento da Voz Indexada dá lugar à conexão entre dois tempos e dois
espaços distintos: os que pertencem ao narrador externo e os que competem à voz
indexada. O fluxo temporal do narrado pelo NE é interrompido pelo tempo da
consciência, diferente da temporalidade da trama, do tempo cronológico. Quando o
narrador se funde com o “eu” do personagem, há uma alternância de duas
perspectivas distintas dentro de uma só voz: as ações vistas como exterioridade (e
que seguem o fluxo temporal cronológico) e aquilo que integra a consciência do
personagem (um não tempo ou um tempo suspenso).
[…] Todavía no han cerrado la puerta principal. Se trepa al primer ascensor
que tiene a tiro. No necesita aclararle al ascensorista que va al quinto piso,
porque en el Palacio lo conocen hasta las piedras.
Avanza, a paso firme, haciendo ruido con los mocasines de suela
sobre las baldosas blancas y negras del pasillo que corre paralelo a la calle
Tucumán hasta encararse con la alta y angosta puerta de su Secretaría. Se
detiene mentalmente en el posesivo “su”. Sí, qué tanto. Es suya, y mucho
más suya que del secretario García, o que de cualquiera de los otros
secretarios que han precedido a García, o que de cualquiera de los que
habrán de sucederlo.
Mientras abre la puerta el enorme manojo de llaves tintinea en el
silencio del pasillo vacío. Cierra con cierta fuerza, para que la jueza se
percate de que alguien ha entrado en la oficina. Momento: ¿por qué eso de
“la jueza”? Porque lo es, claro, pero ¿por qué no Irene? Porque no,
justamente por eso. Ya bastante tiene con ir a pedir lo que está por pedir,
como para sumarle el descalabro de saber que se lo tiene que pedir a Irene
y no simplemente a la doctora Hornos.44 (SACHERI, 2010, p.11-12 –
Capítulo “Despedida”).
Em português: “[...] Ainda não fecharam a porta principal. Entra no primeiro elevador que chega.
Não precisa esclarecer ao ascensorista que vai para o quinto andar, porque no Palácio até as pedras
o conhecem.
Avança, em passo firme, fazendo ruído com os mocassins sobre os ladrilhos brancos e pretos
do corredor que segue paralelo à rua Tucumán, até topar com a porta estreita e alta de sua
Secretaria. Detém-se mentalmente no possessivo ‘minha’. Sim, e como. É dele, e muito mais dele
que do secretário García, ou de qualquer dos outros secretários que precederam García, ou de
qualquer dos que o sucederão.
Enquanto abre a porta, ouve a enorme penca de chaves tilintar no silêncio do corredor vazio.
Fecha com certa força, para a juíza perceber que alguém entrou no gabinete. Um momento: por que
isso de ‘juíza’? Porque ela o é, claro, mas por que não Irene? Porque não, justamente por isso. Já
basta ir pedir o que está prestes a pedir, para ainda acrescentar a isso a desgraça de saber que deve
pedir a Irene, e não simplesmente à doutora Hornos.” (SACHERI, 2011, p.8-9)
44
45
O fragmento acima se encarrega de ilustrar as colocações feitas até agora
sobre a interessante polifonia presente no narrado pelo NE de La pregunta de sus
ojos, índice da complexidade de uma das vozes focalizadoras do romance. O tempo
cronológico, o da narração dos fatos, é interrompido por divagações subjetivas que
se inserem na voz que detém a narração. O segundo parágrafo do fragmento acima
revela esta combinação de vozes. Pensar no possessivo “su”, afirmar que a
Secretaria “es suya” ou ainda questionar-se quanto ao vocativo “la jueza” figuram
como ações que competem a Chaparro, mas narradas pelo narrador externo. Logo,
mais que apresentar ao leitor a vida presente do personagem Benjamín Chaparro
por via de um distanciamento, o NE em questão se mescla e se confunde com o
objeto de sua mirada. Em última instância, não se trata aqui de um mero caráter
onisciente inerente a este narrador, mas da fusão de identidades e de vozes, que já
no primeiro capítulo do romance revela o tom dado à obra pelo escritor.
46
2.2
OS PERSONAGENS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS
El diseño de los personajes comienza con la organización de sus dos
aspectos principales: la “caracterización” y la “verdadera personalidad”.
Robert McKee (2004, p.446) 45
É a partir desta dupla análise proposta pelo teórico norte-americano Robert
McKee (2004), estudioso da escrita criativa, que buscaremos aqui lançar um olhar
sobre os personagens de La pregunta de sus ojos: tanto no que diz respeito à
caracterização feita por Eduardo Sacheri na obra, quanto no que tange àquilo que
Robert McKee concebe como verdadeira personalidade, a qual optamos por chamar
de dimensão oculta destes personagens, como aquela que, de acordo com McKee,
encontra-se sempre camuflada por detrás de aspectos mais superficiais, ou seja, de
caraterizações explícitas dadas tanto pelo narrador quanto por outros personagens.
Neste capítulo buscaremos pensar os personagens de La pregunta de sus
ojos a partir desta concepção de dimensão oculta, a qual transcende a ideia
preconcebida de que o conhecimento de um personagem se dá unicamente via
descrições externas. A dimensão oculta, de fato, surge do contraste entre o sentido
construído pelas palavras (proferidas pelo próprio personagem foco da análise, pelo
narrador ou por outro personagem) e o sentido depreendido de suas ações. É o
saldo resultante do contraste entre ações, fundamentais nesta lógica de
entendimento de um personagem, e palavras o que nos permite o acesso a aquilo
que Robert McKee chama de “verdadeira personalidade” de um personagem.
Segundo o teórico, a caracterização corresponderia à soma dos traços que
são observáveis em um determinado personagem, ou seja, a tudo aquilo que serve
para distingui-lo como ser único em comparação com os demais. Nesta medida,
seus traços físicos, a gestualidade, sua personalidade, sua idade, o lugar onde vive
ou com quem vive são alguns dos aspectos que cita o autor como caracterizadores
do personagem foco de nossa leitura (MCKEE, 2004, p.446). No entanto, McKee
afirma que estes mesmos aspectos devem ser lidos como uma espécie de véu ou
disfarce que oculta a essência do personagem. Nas palavras do autor, tais aspectos
Em português: “O desenho dos personagens começa com a organização de seus dois aspectos
principais: a ‘caracterização’ e a ‘verdadeira personalidade’”. (MCKEE, 2004, p.446) (N. do T.)
In: MCKEE, Robert. El guión: sustancia, estructura, estilo y principios de la escritura de guiones.
Barcelona: Alba Editorial, 2004.
45
47
atuam como uma “máscara” que nossa análise deve ser capaz de pouco a pouco
tirar para que a dimensão oculta, antes encoberta e velada, possa revelar-se diante
de um olhar mais crítico e atento.
Quando nos propomos a refletir sobre esta dimensão oculta de um
personagem, também importa pensar o defendido pelo crítico chileno Juan
Villegas46, quando coloca que um personagem é sempre portador de um conteúdo
ideológico, ou seja, possui uma funcionalidade que é sempre única na obra.
Segundo Villegas, “el personaje – protagonista, héroe, antagonista o secundarios –
generalmente es el producto de una concepción del mundo y del hombre.”47
(VILLEGAS, 1991, p.93). Diante disto, quando buscamos pensar nos personagens
para além de sua superficial caracterização, como nos propõe Robert McKee,
também consideramos esta funcionalidade inerente a cada um deles, como nos
atenta Villegas, ou seja, consideramos os personagens como legítimos portadores
de mundo dentro do conjunto da obra.
Desta forma, partindo do defendido por Robert McKee e das reflexões
levantadas por Juan Villegas, nos propomos a fazer uma leitura da função
desempenhada pelos personagens portadores de mundo em La pregunta de sus
ojos. Com vistas a um recorte mais preciso da análise que aqui se fará, sinalizamos
de antemão que para este capítulo nos deteremos mais especificamente na leitura
de dois personagens do romance – Benjamín Miguel Chaparro e Ricardo Agustín
Morales – no intuito de refletir esta dimensão oculta da qual nos fala Robert McKee e
por crermos que ambas as personagens trazem em si condutas muito distintas
diante do fato do crime da jovem. Assim, a análise contrastante de ambas as
personagens nos auxiliará na posterior reflexão sobre os significados por detrás de
suas caracterizações, ou seja, nos conduzirá à leitura sobre as diferentes posturas
tomadas diante da morte da jovem e da recuperação de sua memória, máxima
contínua ao longo de todo o romance de Sacheri.
VILLEGAS, Juan. Nueva Interpretación y Análisis del Texto Dramático. Canadá: Girol Books, 1991.
Em português: “o personagem – protagonista, herói, antagonista ou secundários – geralmente é o
produto de uma concepção de mundo e do homem.” (VILLEGAS, 1991, p. 93). (N. do T.)
46
47
48
2.2.1 Os personagens e sua caracterização:
Pensar na caracterização como “la suma de todas las cualidades
observables”48 (MCKEE, 2004, p.446) nos abre a possibilidade de que analisemos
aspectos variados e quase infindáveis sobre um personagem. Como vimos na
apresentação das características do focalizador interno, no capítulo anterior, o
protagonista Benjamín Chaparro pode ser caracterizado como um homem de 60
anos que, ao final de sua carreira como pró-secretário de uma Secretaria de
Instrução de Buenos Aires, sente-se velho, sem rumo e sem saber em que
exatamente se converteu com o passar dos anos.
A insegurança que caracteriza Chaparro já é apresentada ao leitor no início
da narrativa pela voz do narrador externo. Chaparro é aquele que está “seguro de
muy pocas cosas” e que tem “escasas certezas” (SACHERI, 2010, p.9). As
hesitações que acompanham o personagem compõem sua caracterização e perfilam
uma figura que a primeira vista mostra-se insegura e cheia de incertezas, mas que,
como se verá, se desvela através de suas ações no transcorrer da narrativa. É
também este narrador externo quem, ao início da obra, nos apresenta um Chaparro
já amadurecido pelo tempo corrido, mas que ainda traz impasses antigos, de toda
uma vida:
Una novia que tuvo de joven solía burlarse de su manía de mirarse en las
vidrieras. Ni a ella, ni a ninguna de las otras mujeres que han pasado por su
vida, Chaparro ha llegado a confesarle la verdad: su hábito de mirarse en
los espejos no tiene nada que ver ni con quererse ni con gustarse. Siempre
ha sido ni más ni menos que otro intento de aprender a saber quién carajos
es él mismo.49 (SACHERI, 2010, p.10 – Capítulo “Despedida”)
São muitos os sentimentos de Chaparro que são observáveis ao longo do
romance: a dor por ver-se obrigado a anunciar a morte de Liliana Colotto a seu
marido: “[…] me ponía en el lugar de ese hombre mutilado que se había quedado sin
vida y me horrorizaba por eso.”50 (2010, p.48); a nostalgia indesejável do passado
Em português: “a soma de todas as qualidades observáveis” (MCKEE, 2004, p.446) (N. do T.)
Em português: “Uma namorada dos tempos da juventude costumada zombar de sua mania de se
olhar nas vitrines. Nem a ela, nem a nenhuma das outras mulheres que passaram por sua vida,
Chaparro chegou a confessar a verdade: seu hábito de se fitar nos espelhos não tem nada a ver com
se amar nem com gostar de si. Sempre foi nada mais nada menos que outra tentativa de descobrir
quem, caralho, é ele mesmo.” (SACHERI, 2011, p.7)
50 Em português: “[...] me colocava no lugar daquele homem mutilado que havia ficado sem vida e me
horrorizava com isso.” (SACHERI, 2011, p.33).
48
49
49
quando vê as fotografias que o marido de Liliana insiste em mostrar-lhe: “…una
sensación de pérdida, de nostalgia incurable, de paraíso perdido detrás de cada uno
de esos instantes minúsculos llegados desde el pasado como polizones cándidos.”51
(2010, p.101); a inveja do amor que Morales e Liliana sentiam um pelo outro:
“Aunque no del todo, había logrado ponerle un nombre a lo que había sentido
mientras lo escuchaba hablar a Morales. Era envidia. El amor que había vivido ese
hombre me despertaba una enorme envidia, más allá de la piedad […]”52 (2010,
p.150); ou ainda a tristeza diante do fim cruel dado a este amor: “Creo que por
primera vez pensé en ellos dos vivos, tomando el café en la cocina de su casa,
charlando y sonriéndose; y la vida me pareció insoportablemente cruel y
pendenciera.”53 (2010, p. 307).
O processo de conhecimento do personagem pelo leitor ocorre muito de
acordo com os desdobramentos do caso que este mesmo personagem se propõe a
contar. Mesmo os sentimentos não tão nobres e não tão comumente associados a
um herói não são omitidos. Pelo contrário, como quando o personagem assume
sentir uma alegria culpada diante das tragédias alheias, como se as chances de que
lhe passe o mesmo diminuíssem pelo simples fato de que tenham acontecido com
pessoas próximas (SACHERI, 2010, p.17). Ou ainda quando se dá conta de que,
junto a seu companheiro de escritório, encara a morte de forma insensível em um
jogo de sorte que decide quem assume o homicídio da vez (SACHERI, 2010, p.31).
Chaparro também assume a dúvida se seu pudor diante das fotos da autopsia de
Liliana tem a ver com alguma espécie de desejo por contemplar o corpo da jovem
que acabara de morrer, tal como faziam os policiais na cena do crime (Capítulo
“Fojas”). O personagem também confessa sua atitude mesquinha quando se dá
conta de que suas ações impulsivas podem ter prejudicado o desenvolvimento do
caso: “Aunque fuese ruin, estaba más preocupado en ese momento por no quedar
Em português: “...uma sensação de perda, de nostalgia incurável, de paraíso perdido por trás de
cada um daqueles instantes minúsculos vindos do passado como cândidos passageiros
clandestinos.” (SACHERI, 2011, p.67).
52 Em português: “Embora não totalmente, eu tinha conseguido dar um nome àquilo que havia sentido
enquanto escutava Morales falar. Era inveja. O amor que aquele homem tinha vivido me despertava
uma enorme inveja, acima da piedade […]” (SACHERI, 2011, p.99).
53 Em português: “Acho que pela primeira vez pensei neles dois vivos, tomando café na cozinha de
sua casa, conversando e sorrindo um para o outro; e a vida me pareceu insuportavelmente cruel e
belicosa.” (SACHERI, 2011, p.204).
51
50
como un chambón que por agarrar al hijo de puta que había hecho aquello, fuese
Gómez o cualquier otro forajido.”54 (SACHERI, 2010, p.123)
Nesta medida, seja pela voz do narrador externo, seja por suas próprias
colocações no livro que escreve, Chaparro nos é apresentado em seus atributos
mais nobres e em seus sentimentos mais baixos. Contraditório em sua essência, sua
caracterização concorre para que o leitor construa a imagem de um homem comum,
com conflitos existenciais e dilemas que sempre o acompanharam. Como
protagonista de La pregunta de sus ojos, Chaparro é caracterizado em sua
complexa e profunda cotidianidade, que o torna tão trivial e ao mesmo tempo tão
indispensável quanto qualquer outro que se insere no universo criado pela ficção de
Sacheri. Seu protagonismo se revela no instante em que se envolve com o caso da
morte de Liliana Colotto, pois é o crime da jovem o “incidente incitador” (MCKEE,
2004, p.446) responsável por levar-nos a refletir toda sua potencialidade e tudo
aquilo que é único em sua natureza ficcional.
Por sua vez, Ricardo Agustín Morales, o marido da jovem assassinada em
1968, tem sua caracterização construída muito pelas impressões que Benjamín
Chaparro tece sobre ele em seu romance, fruto de todos os anos que mantiveram
contato por conta dos desdobramentos do caso do crime da jovem:
Jamás se había destacado en nada. Ni en la escuela, ni en los deportes, ni
siquiera en la familia había merecido más que algún ocasional elogio por
cualidades en el fondo intrascendentes. Pero el 16 de noviembre de 1966
había conocido a Liliana, y con eso había bastado para cambiarle la vida.
Con ella, por ella, gracias a ella, él había sido distinto.55 (SACHERI, 2010, p.
25)
Quanto a este último aspecto sobre as caracterizações dos personagens, o
teórico espanhol Antonio Garrido Dominguéz56 (2007) explica que as fontes de
informação sobre um ser ficcional são muito variadas e vão desde a auto
apresentação feita pelo próprio personagem até a apresentação que parte de um
narrador não implicado na história. Além destas duas fontes de informações sobre
Em português: “Embora fosse um sentimento mesquinho, naquele momento eu estava mais
preocupado com não ficar parecendo um inútil do que com agarrar o filho da puta que havia feito
aquilo, fosse Gómez ou qualquer outro foragido.” (SACHERI, 2011, p.81).
55 Em português: “Jamais se destacara em nada. Nem na escola, nem nos esportes, nem sequer na
família havia merecido mais que algum elogio ocasional por qualidades, no fundo, triviais. Mas em 16
de novembro de 1966 tinha conhecido Liliana, e isso bastara para mudar sua vida. Com ela, por ela,
graças a ela, havia sido diferente.” (SACHERI, 2011, p.17)
56 GARRIDO DOMINGUÉZ, Antonio. El Texto Narrativo. Teoría de la Literatura y Literatura
Comparada. España: Editorial Síntesis, 2007.
54
51
um personagem, em nossa análise de La pregunta de sus ojos tem importância o
que Garrido Dominguéz elucida sobre a apresentação realizada por um outro
personagem da narrativa:
Diferente es la presentación de un personaje puesta en boca de otro
personaje. En este caso la información se ve condicionada por el “campo
visual” del personaje-narrador, el cual ha de limitarse a reflejar básicamente
el comportamiento y palabras del personaje descrito (aunque también
pueda acudir a otras fuentes como testimonios de terceros, documentos o
escritos encontrados, etc.). La imagen final del personaje depende en este
caso no tanto de la disponibilidad de información sino, en especial, de la
“actitud” del narrador hacia él.57 (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.77)
As colocações de Garrido Dominguéz aplicam-se em nosso estudo quando
temos em mente que conhecemos Morales através da mirada de Benjamín
Chaparro. A caracterização do viúvo que chega ao leitor tem por base todas as
colocações feitas pelo personagem-autor desde o instante mesmo em que este se
propõe a “escribir la historia de Ricardo Morales.” (SACHERI, 2010, p.17). O
narrador externo de La pregunta de sus ojos não apresenta o caso da morte de
Liliana, como já apontamos no capítulo anterior, e, por isso, em sua narração
tampouco surgem os personagens nele envolvidos. Deste modo, certificamos o fato
de que não temos acesso ao viúvo Morales senão pelas apreciações que Chaparro
constrói sobre a vida do personagem no romance que busca escrever.
No
que
diz
respeito
a
estas
caracterizações
mais
informativas
e
esclarecedoras sobre o perfil de Morales, construídas a partir da escritura de
Chaparro, sabemos que o viúvo é um homem loiro e alto, que trabalha como caixa
em um banco de Buenos Aires. Conheceu Liliana em uma eventual visita da jovem
ao banco, quando, recém-graduada, acabara de chegar à capital para viver com
umas tias. Pela descrição feita por Chaparro, o leitor se dá conta de que a vida de
Morales se resume a uma rotina constante, a qual o personagem se adapta de forma
pacífica, como se lhe coubesse viver como vive por forças do acaso. Através da
escrita de Chaparro, nos inteiramos de que Morales acredita não ser digno de
Em português: “Diferente é a apresentação de um personagem posta na boca de outro
personagem. Neste caso a informação se vê condicionada pelo ‘campo visual’ do personagemnarrador, o qual deverá limitar-se a expor basicamente o comportamento e palavras do personagem
descrito (ainda que também possa acudir a outras fontes como testemunhos de terceiros,
documentos ou escritos encontrados, etc.). A imagem final do personagem depende neste caso não
tanto da disponibilidade de informação senão, em especial, da ‘atitude’ do narrador para com ele.”
(GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.77) (N. do T.)
57
52
maiores ganhos e de que se diz satisfeito com a vida sossegada e sem grandes
ganhos que leva. Sua maior realização de vida foi ter conhecido Liliana, ainda que
sua visão pessimista sempre lhe tenha deixado sob alerta de que, cedo ou tarde, o
destino lhe cobraria tamanha felicidade:
– ¿Y por qué se le ocurrió que Gómez podía estar en esta lista?
Ahora fue Morales quien se tomó un instante para responder, como si
la pregunta lo hubiese sorprendido. Por fin habló, con una mueca irónica.
– ¿Quiere que le diga la verdad? Por simple aplicación del principio
existencial que gobierna mi vida.
–…
– Todo lo que pueda salir mal va a salir mal. Y su corolario. Todo lo
que parezca marcharse bien, tarde o temprano se irá al carajo.58 (SACHERI,
2010, p. 217)
2.2.2 Os personagens e sua dimensão oculta:
Partindo ao que Robert McKee (2004) chama de análise da verdadeira
personalidade – e que aqui optamos por chamar de dimensão oculta dos
personagens, nossa leitura segue baseando-se no que afirma o autor:
El verdadero carácter se desvela a través de las opciones que elige cada
ser humano bajo presión: cuanto mayor sea la presión, más profunda será
la revelación y más adecuada resultará la elección que hagamos de la
naturaleza esencial del personaje.59 (MCKEE, 2004, p.132)
O autor explica que sob a superficial caracterização de um personagem se
encontra uma dimensão que só conseguimos alcançar a partir das decisões que o
personagem toma quando se encontra em uma situação de pressão. Na busca por
satisfazer os desejos que o movem, um personagem sempre decide por
determinados caminhos e atua de acordo com seus princípios, mas é, segundo
McKee, tão só em uma situação de crise, de pressão intensa que este personagem
Em português:
“– E por que lhe ocorreu que Gómez podia estar nessa lista?
Dessa vez foi Morales quem demorou um instante para responder, como se a pergunta o
pegasse de surpresa. Finalmente falou, com uma careta irônica.
– Quer que eu lhe diga a verdade? Pela simples aplicação do princípio existencial que
governa minha vida.
–...
– Tudo o que puder dar errado vai dar errado. E sua consequência natural. Tudo o que
parece correr bem vai para o caralho mais cedo ou mais tarde.” (SACHERI, 2011, p.143).
59 Em português: “O verdadeiro caráter se desvela através das opções que elege cada ser humano
sob pressão: quanto maior seja a pressão, mais profunda será a revelação e mais adequada resultará
a escolha que façamos da natureza essencial do personagem” (MCKEE, 2004, p.132) (N. do T.)
58
53
revela-se a si mesmo em toda sua profundidade e essência. Como aqui já
sinalizamos, é o sentido depreendido das ações de um personagem, em contraste
com aquilo que é dito, por ele mesmo ou por outros personagens, o que nos fornece
a chave de acesso a um determinado ser ficcional em toda sua complexidade. E é a
partir do colocado por McKee que partiremos à nossa leitura do que vislumbramos
como a dimensão oculta do protagonista de La pregunta de sus ojos.
Vimos que, em sua caracterização, Benjamín Chaparro se descreve, por
ocasião da escritura de seu próprio romance, como um homem previsível,
introspectivo e cheio de receios. Considerando este objetivo nosso de refletir a
dimensão oculta de um personagem e pensando em categorias mais estanques de
classificação, algumas questões vêm à tona com respeito ao objeto foco de nossa
leitura: poderíamos definir Benjamín Chaparro como um personagem forte e com
coragem ou, antes, como um personagem fraco e temeroso? Como herói da
narrativa, é realmente um ser de esperados sentimentos nobres?
Para além dos momentos em que se acovarda diante dos rumos da
investigação e de quando pensa em desistir porque duvida sobre a relevância em
ajudar ou não ao viúvo Ricardo Morales, Chaparro passa por situações que servem
de amparo à leitura aqui realizada. Assim, com vistas a analisar esta dimensão
oculta de que nos fala Robert McKee, para este capítulo selecionamos um episódio
da obra que consideramos como uma situação de grande pressão a Chaparro e que,
por isso, julgamos como uma importante ocasião de tensão para que o personagem
se desvele através de suas próprias decisões:
– ¿Pero no hay otra salida que rajar como un prófugo? –no me
resignaba a quedarme sin vida de un día para otro.
Báez me miró un rato, tal vez esperando que me diera cuenta solo.
No fue el caso, de manera que terminó explicándomelo.
– ¿Sabe qué pasa, Benjamín? La única manera de asegurarse de
que Romano se deje de joderlo es enterarlo de la verdad. Yo puedo pactar
un encuentro, si usted quiere. Pero para eso tengo que decirle a Romano
que el que le amasijó a su amiguito no fue usted sino Ricardo Morales. –
Hizo una pausa, antes de concluir la idea–. Si usted quiere, lo hacemos.
“Mierda”, pensé. No podía hacer eso, la puta madre. No podía.
– Tiene razón –acepté–. Dejemos las cosas como están.60
(SACHERI, 2010, p.265)
Em português:
“– Mas eu não tenho outra saída a não ser sair correndo como um fugitivo? – Não me
resignava a ficar sem vida de um dia para outro.
Báez me encarou um tempinho, talvez esperando que eu compreendesse sozinho. Não foi o
caso, de modo que ele acabou me explicando.
60
54
Em uma pequena recuperação da trama da obra a nosso leitor, importa
sinalizar que depois de conseguir sua liberdade graças a um jogo de vingança
contra Chaparro, Isidoro Gómez, o assassino confesso de Liliana, desaparece sem
deixar sinais de seu paradeiro. Pedro Romano, o responsável pela libertação do
assassino, acredita que seu protegido tenha sido morto pelo próprio Chaparro como
uma espécie de resposta ou contra-ataque pela libertação de Isidoro da prisão.
Como consequência desta suposta revanche, Chaparro tem seu apartamento
destruído, com a ameaça de que retornariam para que esta dívida de morte fosse
paga. Diante disto, a Benjamín Chaparro lhe cabe escolher entre entregar o viúvo
Ricardo Morales como suposto assassino de Isidoro Gómez ou seguir sendo
acusado de matar Isidoro e, por conseguinte, continuar como foragido de um crime
que não cometeu.
Diante de uma situação de intensa pressão, como nos coloca Robert McKee
(2004), o personagem, ainda que temeroso e titubeante ao longo da narrativa no que
se refere a seguir ou não o caminho em busca do criminoso, decide por fim manterse ao lado do viúvo Morales e assume os riscos de pagar por um crime que não é
seu. Desta forma, através destas situações de pressão, entendemos neste estudo
que, ao revelar-se a si mesmo em sua dimensão oculta, o personagem manifesta
toda a sua potencialidade moral. No mais, compreendemos que este processo de
desvelamento de uma dimensão oculta do personagem é verificável tanto pelo leitor
quanto pelo próprio personagem, que passa a perceber-se a si mesmo a partir de
um processo de autoconhecimento, de leitura própria de seu caráter. Nesta medida,
o episódio antes analisado nos permite por em prática a concepção sobre o
personagem de Robert McKee e comprovar que, de fato, em um personagem
sempre “hay una naturaleza oculta que espera escondida detrás de una fachada de
rasgos.”61 (MCKEE, 2004, p.134).
O episódio antes descrito em que Chaparro revela, de acordo com nossa
leitura, o que seria sua dimensão oculta tem relação uma vez mais com as reflexões
– Sabe o que acontece, Benjamín? A única maneira de garantir que Romano pare de
persegui-lo é contar a ele a verdade. Posso marcar um encontro, se o senhor quiser. Mas, para tanto,
tenho que dizer a Romano que quem detonou o amiguinho dele não foi o senhor, mas Ricardo
Morales. – Fez uma pausa, antes de concluir a ideia. – Se quiser, faremos isso.
– ‘Merda’, pensei. Eu não podia fazer aquilo, caralho. Não podia.
– Tem razão – concordei. –Vamos deixar as coisas como estão.” (SACHERI, 2011, p.175176)
61 Em português: “há uma natureza oculta que espera escondida atrás de uma fachada de traços.”
(MCKEE, 2004, p.134). (N. do T.)
55
levantadas pelo crítico literário espanhol Garrido Dominguéz (2007) sobre a
construção
de
um
personagem.
O
autor
amplia
o
próprio
conceito
de
“caracterização”, ao afirmar que
La tarea de dotar al personaje de identidad se realiza de forma gradual y, de
hecho, no se consuma hasta que el escritor pone el punto final. Esta
afirmación puede resultar exagerada si el término caracterización se
interpreta en un sentido restrictivo –esto es, como simple presentación del
personaje, generalmente, en los comienzos del relato–, pero en modo
alguno lo es si se tiene en cuenta que no son sólo las cualidades o atributos
lo que define a un agente, sino también su conducta.62 (GARRIDO
DOMINGUÉZ, 2007, p.77)
Diante do que postula Garrido Dominguéz com relação à importância da
conduta, podemos afirmar que também em La pregunta de sus ojos a identidade de
um personagem está para além de suas “cualidades o atributos” e engloba as
decisões que este personagem toma em situações de tensão ao longo da trama,
como aqui já foi apontado através de Robert McKee.
Dita análise a partir da conduta de um personagem, clamada por Garrido
Dominguéz, também nos permite trazer a luz uma reflexão sobre a imagem
construída por Chaparro sobre o viúvo da vítima. Como vimos em sua
caracterização, Ricardo Agustín Morales surge na narrativa como um homem
pacífico e até conformado com seu papel coadjuvante na vida. Sempre viveu sem
sentir-se digno de grandes conquistas e não lhe parecia que o mundo pudesse ser
distinto, razão pela qual lhe cabia unicamente resignar-se e condicionar-se ao lugar
que lhe foi determinado:
Más adelante, cuando Morales se permitiera hablarme de sí mismo, me
tocaría escucharlo describirse como un tipo anodino, grisáceo, con un
destino propio de esa chatura. Morales se catalogaba sin compasión como
ese hombre que transita la familia, las escuelas y los empleos sin dejar
huella alguna en los otros. Nunca había tenido nada bueno, ni nada
especial, y siempre le había parecido justo. Así hasta Liliana. Porque ella
había sido las dos cosas. Enormemente, lo había sido.63 (SACHERI, 2010,
p.24)
Em português: “A tarefa de dotar o personagem de identidade se realiza de forma gradual e, de
fato, não está consumada até que o escritor coloque o ponto final. Esta afirmação pode parecer
exagerada se o termo caracterização é interpretado em um sentido restritivo –isto é, como simples
apresentação do personagem, geralmente, a início do relato–, mas de modo algum assim será se se
tem em conta que não são só as qualidades ou atributos que definem a um agente, mas também a
sua conduta”. (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.77) (N. do T.)
63 Em português: “Mais adiante, quando Morales viesse a se permitir me falar de si mesmo, me
caberia ouvi-lo se descrever como um tipo insignificante, apagado, com um destino próprio dessa
platitude. Ele se catalogava sem compaixão como aquele homem que transita pela família, pelas
62
56
Caracterizado na obra como homem pacato e retraído, Morales parece
reprimir uma dor que o consome desde o dia em que lhe foi anunciado o crime de
Liliana:
A medida que transcurrían los minutos, y el interrogatorio de Báez se
internaba en detalles que a Morales y a mí nos tenían sin cuidado, vi cómo
la expresión del chico se iba vaciando, los rasgos se les distendían
paulatinamente en una expresión neutra, y las lágrimas y el sudor que en un
primer momento habían asomado a su piel se secaban definitivamente.
Como si una vez frío, una vez vacante de emociones y sentimientos, una
vez sentada la humareda del polvo de su vida hecha ruinas, Morales
pudiera avizorar, más allá, en qué consistiría su futuro, y comprobara sin
lugar para el equívoco que sí, que no había duda alguna, que su futuro era
nada.64 (SACHERI, 2010, p.49)
Ao longo da narrativa, sentimos que Morales sofre gradualmente pelos muitos
obstáculos com os quais se depara o caso da morte de sua mulher: a falta de pistas
sobre o assassino; sua inesperada captura e sua posterior liberação da prisão de
Devoto; a suposta e consequente desistência por encontrá-lo. A falta de perspectiva
do personagem por encontrar justiça ao caso chega a tal ponto que, em conversa
com Chaparro sobre a morte como caminho único de vingança, Morales afirma
– Y eso de matarlo... ¿qué quiere que le diga? Parece demasiado fácil,
¿no? Mire que tuve tiempo de pensarlo en esos años en los que buscaba en
las terminales ferroviarias. ¿Y si lo encontraba entonces? ¿Qué hacer?
¿Cagarlo a tiros? Demasiado fácil. Demasiado rápido. ¿Cuánto dolor puede
sentir un tipo al que acaban de vaciarle un cargador en el pecho? Sospecho
que no mucho.65 (SACHERI, 2010, p.222)
Pelo modo como se posiciona Ricardo Morales sobre a morte como caminho
de vingança, o leitor crê que o personagem seja incapaz de cometer algum crime e
escolas e pelos empregos sem deixar nenhuma marca nos outros. Nunca tivera nada de bom, nem
nada de especial, e isso sempre lhe parecera justo. Foi assim até Liliana aparecer. Porque ela havia
sido as duas coisas. Enormemente.” (SACHERI, 2011, p.16)
64 Em português: “À medida que os minutos transcorriam, e que o interrogatório de Báez enveredava
por detalhes aos quais nem Morales nem eu dávamos importância, vi a expressão do viúvo se
esvaziar aos poucos, seus traços se distenderem paulatinamente em uma expressão neutra, e as
lágrimas e o suor que num primeiro momento haviam assomado à sua pele secarem definitivamente.
Como se, uma vez frio, uma vez esvaziado de emoções e sentimentos, uma vez assentada a nuvem
de poeira de sua vida feita ruínas, Morales pudesse vislumbrar, mais além, em que consistiria seu
futuro e comprovasse sem equívocos que sim, que não havia dúvida alguma, que seu futuro era
nada.” (SACHERI, 2011, p.34)
65 Em português: “– Quanto a matá-lo… o que posso dizer? Parece muito fácil, não? Veja que eu tive
tempo de pensar nisso durante os anos em que o procurava nos terminais ferroviários. E se o
encontrasse então? O que fazer? Abatê-lo a tiros? Fácil demais. Rápido demais. Quanta dor pode
sentir um indivíduo em cujo peito acabam de esvaziar um carregador? Desconfio de que não muita.”
(SACHERI, 2011, p.146)
57
que lhe resta unicamente sofrer em silêncio pela morte de sua esposa, haja vista
que nada mais pode ser feito diante dos rumos tomados pelo caso da jovem na
trama de Sacheri. Contudo, se pensamos em sua dimensão oculta, o que causa
estranhamento em Chaparro (e, por extensão, também no leitor) é que Morales, em
última instância, não é um resignado e conformado com os caminhos que o destino
lhe reservou, tal como a imagem do personagem vinha sendo construída ao longo
da narrativa de Chaparro. A resolução do caso de Liliana pelas próprias mãos de
Morales nos desvela um homem convencido a arriscar tudo (inclusive a sua própria
vida) por aquilo que realmente acredita. Se a prisão perpétua é, em tese, o destino
dado pela lei a um homicida confesso, a justiça feita pelas próprias mãos de Morales
leva até os últimos limites o que a lei prega em teoria:
En realidad, todo eso lo vi después, desde el piso de cemento sobre
el que me derrumbé jadeante. Porque durante varios minutos no pude sacar
los ojos de la celda, la celda construida en el centro del recinto, la celda
cuadrada de barrotes gruesos desde el piso hasta el techo, con una puerta
de dos cerraduras sin picaportes y una portezuela pequeña en un rincón, de
esas que se usan para meter y sacar cosas en un calabozo, la celda con un
lavatorio y un inodoro en una esquina y una mesa y una silla en otra, con un
camastro sobre la reja del fondo, la celda con un cuerpo acostado y vuelto
de espaldas sobre ese camastro.
Supongo que en ese momento sentí horror, incredulidad, aprensión,
pasmo. Pero, por sobre todas las cosas, sentí una descomunal sorpresa
que me golpeó con la ferocidad de unas mandíbulas hambrientas, y que
poco a poco me obligó a convertir en polvo todo lo que yo había pensado de
Morales y su historia en los últimos veinte años.66 (SACHERI, 2010, p.301302)
Após a leitura deste fragmento que retrata o instante em que Chaparro
descobre o destino de Isidoro Gómez, assassino da jovem, cabe aqui chamarmos
atenção ao que nos coloca Robert McKee com relação às transformações pelas
quais passa um personagem ao longo da trama. Segundo o autor, “una buena
escritura no sólo revela la verdadera personalidad, sino que gira o altera esa misma
Em português:
“Na realidade, tudo isso eu só vi depois, do piso de cimento sobre o qual me joguei, ofegante.
Porque durante vários minutos não consegui tirar os olhos da cela, a cela construída no centro do
recinto, a cela quadrada de barras grossas, do piso até o teto, com uma porta de duas fechaduras
sem maçanetas e uma portinhola num canto, daquelas que se usam em jaulas para meter e tirar
coisas, a cela com uma pia e um vaso sanitário num ângulo e uma mesa com cadeira em outro, com
um catre encostado à grade do fundo, a cela com um corpo deitado e virado de costas sobre esse
catre.
Penso que nesse momento senti horror, incredulidade, apreensão, desfalecimento. Mas, por
sobre todas as coisas, senti uma surpresa descomunal que me golpeou com a ferocidade de
mandíbulas famintas, e que pouco a pouco me obrigou a transformar em pó tudo o que eu havia
pensado de Morales e sua história nos últimos vinte anos.” (SACHERI, 2011, p.200).
66
58
naturaleza interna, para bien o para mal, a lo largo de la narración.”67 (MCKEE,
2004, p.135). Ricardo Morales, de fato, também tem sua dimensão oculta revelada
quando uma situação de pressão se impõe ao personagem. O consequente
estranhamento do leitor e dos demais personagens vem à tona precisamente
quando esta dimensão oculta de Morales entra enormemente em choque com o que
até então havia sido apresentado como sua caracterização.
Como nos explica Robert McKee, é justamente esta incompatibilidade entre
caracterização e dimensão oculta de um personagem o que faz de uma escritura
mais atrativa, envolvente e instigante. A revelação da prisão perpétua do assassino
pelo próprio viúvo da vítima vai de encontro à imagem construída de Morales por
Chaparro e, por conseguinte, pelo próprio leitor. Trazendo à luz uma vez mais a
entrevista com Eduardo Sacheri, sinalizamos a intenção do escritor de que o
encontro da verdade por Chaparro surpreendesse tanto o leitor quanto o próprio
narrador (ver apêndice B – pergunta 10). É tão só ao final da narrativa que temos
acesso ao que seria a dimensão oculta de Morales, obtida a partir da fusão dos
traços que o caracterizam, das decisões que toma em situações de pressão e de
sua relação com os demais personagens da narrativa, tal como mais uma vez
aponta Antonio Garrido Dominguéz (2007), quando afirma que
La construcción del personaje se presenta, pues, como resultado de la
interacción entre los signos que integran la identidad del personaje, los que
reflejan su conducta y, finalmente los que expresan sus vínculos con los
demás personajes. Exceptuando quizá el primer tipo de rasgos (y, desde
luego, no en todos los casos), los demás se van definiendo –y, con mucha
frecuencia, modificando– al compás del desarrollo de la acción. De ahí que
pueda afirmarse con toda justicia que el diseño del personaje no se culmina
hasta que finaliza el proceso textual.68 (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007,
p.88)
Para retomarmos a Robert McKee (2004), entendemos, neste estudo, que a
verdadeira personalidade de um personagem dá espaço a muitas dimensões que
Em português: “uma boa escritura não só revela a verdadeira personalidade, mas também gira ou
altera essa mesma natureza interna, para bem ou para mal, ao longo da narração.” (MCKEE, 2004,
p.135) (N. do T.)
68 Em português: “A construção do personagem se apresenta, pois, como resultado da interação entre
os signos que integram a identidade do personagem, os que refletem sua conduta e, finalmente os
que expressam seus vínculos com os demais personagens. Excetuando-se talvez o primeiro tipo de
características (e, claro, não em todos os casos), os demais vão definindo-se –e, com muita
frequência, modificando-se– de acordo com o desenvolvimento da ação. Daí que se possa afirmar
com total razão que o desenho do personagem não se culmina até que finaliza o processo textual.”
(GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.88) (N. do T.)
67
59
nos permitem vê-lo através de diferentes prismas. Sentimentos nobres e baixos
convivem em um único ser, conformando uma personalidade que revela-se
multifacetada e mutável no desenrolar da trama. Como vimos na análise dos dois
personagens de La pregunta de sus ojos e à luz das reflexões teóricas aqui feitas,
os dilemas que um personagem vê-se obrigado a enfrentar no transcurso da trama
de Sacheri são os responsáveis por revelar-nos a verdadeira natureza destes
mesmos personagens.
Ler um personagem é ler suas transformações. De débil a forte. De titubeante
a convicto de seus atos. De conformado a determinado a modificar sua situação.
Através das pressões exercidas pela estrutura narrativa sobre as vidas de Benjamín
Chaparro e Ricardo Morales, o leitor é exposto a toda uma trajetória de existência e
de desenvolvimento pessoal. A funcionalidade de cada um deles, como nos sinaliza
Juan Villegas (1991), nos revela que, de fato, o personagem é portador de mundo e
experimenta mudanças ao longo de toda a ação. São os personagens os que nos
enredam em seus dramas, nos seduzem com seus argumentos, nos convencem de
suas motivações. São estes mesmos personagens os que nos surpreendem, os que
rompem com nossas expectativas, os que nos fazem testemunhas de seus conflitos
e cúmplices das decisões que tomam. Lê-los profundamente em sua humanidade é
uma tentativa de compreendê-los para além da superficialidade de caracterizações,
de forma a alcançar tudo aquilo que é único em cada um deles.
60
2.3
FORMA E SENTIDO DA TRAMA: A BUSCA DA VERDADE COMO MOTIVO
CENTRAL DAS AÇÕES.
O teórico norte-americano Ronald B. Tobias69 (1999) afirma que o escritor é
sempre um explorador (TOBIAS, 1999, p.11). Tobias chega a este convencimento
pautando-se nos caminhos que um escritor deve percorrer até conseguir que suas
histórias cheguem ao leitor. Explora lugares longínquos e lugares muito próximos.
Explora épocas distantes e acontecimentos que se deram há pouco. Explora os
anseios alheios e sentimentos mais íntimos. Em suma, “un explorador de la
condición y naturaleza humana.”70 (TOBIAS, 1999, p.11).
Antes de lançar-se à aventura problemática de classificar os tipos de trama
que considera, o autor define o próprio conceito de “trama” como a lógica interna de
uma história. A trama, nesta medida, figura como uma estrutura narrativa, um
caminho de escritura que é geralmente familiar ao escritor (TOBIAS, 1999, p.12).
Cada tipo específico possui uma estrutura peculiar que a caracteriza e a diferencia
entre as outras possibilidades de trama. Sob tal ótica e partindo do pressuposto de
que todas as categorias de trama permitem que se alce uma mirada crítica sobre
suas partes estruturantes, este estudo se centrará nos elementos constituintes de La
pregunta de sus ojos para afirmar que a obra apresenta uma “trama de busca”, por
ser este o motivo central que define a ação básica à qual se ligam os personagens
principais.
Na definição dada por Ronald B. Tobias, a trama de busca trata-se da
búsqueda que efectúa el protagonista de una persona, un lugar o una cosa,
sea tangible o intangible. [...] El personaje principal busca específicamente
(y no casualmente) algo que espera o desea cambiará su vida de una
manera significativa.71 (TOBIAS, 1999, p. 81).
Com base nesta definição e voltando-nos a obra corpus desta pesquisa, nos
surgem os primeiros questionamentos quanto à trama de La pregunta: o que procura
o protagonista do romance? O que espera conseguir caso alcance o objeto de sua
TOBIAS, Ronald. B. El guión y la trama: fundamentos de la escritura dramática audiovisual. Madrid:
Ediciones Internacionales Universitárias, 1999.
70 Em português: “um explorador da condição e natureza humana”. (TOBIAS, 1999, p.11). (N. do T.)
71 Em português: “busca que efetua o protagonista por uma pessoa, um lugar ou uma coisa, seja
palpável ou intocável. [...] O personagem principal busca especificamente (e não casualmente) algo
que espera ou deseja que modifique sua vida de uma maneira significativa.” (TOBIAS, 1999, p. 81).
(N. do T.)
69
61
procura? Benjamín Chaparro busca, antes de tudo, a verdade de um crime. Desde o
instante em que se vê obrigado a encarar o corpo de Liliana Colotto, o personagem
é impelido a encontrar respostas a dúvidas que o interpelam durante anos de sua
vida: quem é o verdadeiro assassino de Liliana? Que destino foi dado ao assassino?
Qual a verdade por detrás do crime da jovem?
Antes de entrarmos na trama de busca própria de La pregunta de sus ojos,
vale observar que o mito da busca é uma constante na literatura universal e
perpassa a tradição literária das mais diferentes sociedades e épocas. Já na
tragédia de Sófocles, a trama surge quando Édipo72 (427a.C.) se sente impelido a
buscar a verdade por detrás da morte de Laio. Michel Foucault73 (2002) afirma que a
tragédia de Édipo é “a história de uma pesquisa da verdade” (FOUCAULT, 2002,
p.31). De acordo com o autor, Édipo é aquele que não se satisfaz com verdades
obscurecidas que lhe chegam através de predições ou profecias, mas que busca
ordenar os fatos por detrás da revelação até que uma verdade realmente justificada
venha à tona, ou seja, é aquele que sai em busca de confirmações concretas que
comprovem, de fato, se é ele ou não o assassino de seu próprio pai.
Ainda a título de exemplo dentro da literatura clássica, a Ilíada74 também se
alicerça em uma trama de busca, quando o povo grego antigo empreende uma
expedição por vingança após a fuga de Helena de Esparta com Páris, príncipe de
Tróia. Além do resgate que desemboca na própria guerra, uma busca outra está
latente nos versos do poema de Homero – aquela por valores morais, como a glória
e o reconhecimento após a morte, representada no afã de guerreiros que, como
Aquiles, anseiam ser eternizados.
E também não é a busca o que impulsiona, em El Quijote (1605)75, o
personagem a deixar suas terras e sair ao encontro de aventuras? A mesma iniciase no instante em que decide
hacerse caballero andante y irse por todo el mundo con sus armas y caballo
a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo aquello que él había leído que
caballeros andantes se ejercitaban, deshaciendo todo género de agravio y
SÓFOCLES. Édipo Rei. Disponível em: <http://www.uesb.br/evidencias/2014/01/fase-2teatro/texto03.pdf>. Acesso em 18 ago. 2013.
73 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
74 HOMERO. Ilíada. Trad. de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Abril, 2009. Disponível em:
<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/iliadap.pdf>. Acesso em 18 ago.2013.
75 CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Edição comemorativa do quarto centenário
patrocinada pelas academias espanholas. São Paulo: Alfaguara, 2004.
72
62
poniéndose en ocasiones y peligros donde, acabándolos, cobrase eterno
nombre y fama.76 (CERVANTES, 2004, p.31)
É a trama de busca o que alicerça al Quijote e que se mostra a responsável
por dotar a obra de um caráter de série aberta, como se os episódios interpolados na
narrativa pudessem seguir ad infinitum, a partir de uma busca que avança de forma
incessante.
No que tange à literatura de língua inglesa, também em Hamlet77 (1599),
consagrada tragédia shakespeariana, a trama de busca aparece quando o Príncipe
procura vingar a morte de seu pai. Em Moby Dick78 (1851), do escritor
estadunidense Herman Melville, o capitão Ahab busca encontrar a baleia cachalote
que lhe arrancou uma perna. Como último exemplo, encontramos na literatura
policial a trama de busca de forma explicitada, enquanto essência do próprio gênero
que se desenvolve a partir do rastreio de um crime. Nesta medida, mostram-se
infindáveis os exemplos que conformam a trama de busca como uma estrutura
universal, como uma constante em obras artísticas de um modo geral.
Nossa pesquisa entende que a trama maior de busca de La pregunta de sus
ojos constitui-se de duas sub-tramas que se alicerçam a partir de dois enigmas e de
dois sujeitos narradores. O primeiro enigma relaciona-se com a impossibilidade do
personagem de amar e é a responsável por trazer as tensões individuais de um
homem – Benjamín Chaparro, o qual, como aqui vimos, na primeira trama é
narrador, mas que na voz de um narrador outro, externo, surge como objeto narrado.
O segundo enigma, por sua vez, tem relação direta com o crime da jovem Liliana,
grande motivador de uma série de ações que conformam toda a tensão social
presente no romance de Eduardo Sacheri. Sob tal ótica, buscaremos aqui refletir
sobre estas duas grandes tramas que transcorrem de forma paralela em La pregunta
de sus ojos. Intimamente relacionadas, trazem cada uma delas as tensões
individuais e sociais constituintes da figura multifacetada de Benjamín Chaparro.
Em português: “tornar-se cavaleiro andante e ir por todo o mundo com suas armas e cavalo para
buscar aventuras e por em prática tudo aquilo que ele havia lido que cavaleiros andantes realizam,
desfazendo toda sorte de ofensa e colocando-se em ocasiões e perigos, os quais, terminados,
rendam-lhe eterno nome e fama.” (CERVANTES, 2004, p.31) (N. do T.)
77 SHAKESPEARE, William. A trágica história de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Fonte Digital, 2000.
Disponível em: < http://biblioteca-online.net/ebooks/Shakespeare-Hamlet.pdf>. Acesso em 18 ago.
2013.
78 MELVILLE, Herman. Moby Dick. Disponível em:
76
<http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/M/Melville,%20Herman%20-%20Moby%20Dick.pdf>. Acesso
em 30 out. 2013.
63
2.3.1 A trama de busca e os conflitos individuais:
Como vimos no capítulo dedicado à polifonia enunciativa que constitui La
pregunta de sus ojos, a voz do narrador externo é a responsável por apresentar ao
leitor os conflitos internos do personagem Benjamín Chaparro. Discutiu-se aqui
sobre sua importância enquanto voz que insere outro ponto de vista no romance e
permite que o leitor tenha acesso à história de La pregunta de sus ojos a partir de
mais de uma perspectiva, mais de um campo de visão.
Esta primeira trama do romance de Sacheri traz em si as tensões pessoais de
um indivíduo dotado de muitos questionamentos, mas que não quer que seus
desejos, inseguranças e medos sejam a tônica do livro que busca escrever. Estes
conflitos individuais chegam a nós, leitores, através desta voz onisciente que, em
uma trama paralela a de Chaparro, apresenta o personagem em seu momento
presente, enquanto um solitário pro secretário de instrução já aposentado, de
sessenta anos de idade, cheio de anseios, dúvidas e receios.
A primeira tensão individual a que temos acesso é aquela que apresenta o
antigo e secreto amor do personagem por Irene. Tendo em vista que Chaparro opta
por não falar de si próprio no livro que se propõe a escrever, não temos, como
leitores de Chaparro, informações sobre esta parte de sua vida. Dito de outro modo,
se tivesse acesso unicamente ao texto de Chaparro, o leitor, de fato, não se
inteiraria do amor que o personagem sente pela juíza. Seu nervosismo e titubeio
diante de Irene, o medo de confessar seu amor e não ser correspondido ou o temor
de expor seus desejos e ser mal interpretado são sentimentos que chegam até o
leitor através da focalização do narrador externo, como antes dito, embora este amor
seja insinuado em muitos momentos na narrativa de Benjamín. Quanto a estas
tensões individuais, observa-se que a trama de envolvimento com Irene começa a
ser construída já no primeiro capítulo de La pregunta de sus ojos:
Da dos golpecitos suaves y escucha decir “adelante”. Cuando traspone la
puerta, ella se sorprende y le pregunta qué está haciendo todavía por ahí,
que cómo no está ya en el restaurante. En realidad, le pregunta “¿qué estás
haciendo por acá?” y “¿cómo no estás ya en el restaurante?”, que no es lo
mismo. Pero Chaparro quiere evitar enmarañarse en la cuestión del tuteo o,
más correctamente hablando, del voseo, porque esa también puede ser una
fuente de turbación que hunda en el fracaso su propósito manifiesto de
64
requerirle lo que sobre la calle Talcahuano casi Corrientes ha decidido ir a
solicitar.79 (SACHERI, 2010, p.12 – Capítulo “Despedida”).
De posse das duas escrituras – a de Chaparro e a do narrador externo, o
leitor se dá conta de que o primeiro não cita (diretamente) seu amor por Irene. A
história de amor (ou de dúvidas quanto a este amor) só aparece na história
intercalada com a de Chaparro, ou seja, naquela que nos apresenta sua vida de
escritor. No entanto, vale dizer que por mais que o queira, Chaparro não se exime
totalmente de fazer comentários sobre seus sentimentos, que aparecem sempre nas
entrelinhas daquilo que escreve:
¿Qué haría yo en sus zapatos? Sinceramente no lo sabía. Pero no lo sabía,
fundamentalmente, porque por ninguna mujer yo había sentido lo que sentía
Ricardo Morales por su difunta esposa. ¿O sí lo sentía, por una mujer
acerca de la cual me he propuesto no decir una palabra en estas páginas?
Tal vez pensando en ella, en esta otra, a la que guardo como mi único
secreto digno de tal nombre, yo sí habría podido interpretar el amor de
Morales por su mujer. Creo que por ella habría sido capaz de todo.
Igualmente ella nunca me había pertenecido, como sí se habían
correspondido Morales y su esposa. De modo que no era equiparable a la
historia de Morales.80 (SACHERI, 2010, p.221)
Chaparro parece oscilar sempre entre a certeza e a dúvida por revelar este
amor que carrega consigo por mais de três décadas81. Sua busca pela verdade,
máxima na obra de Sacheri, também implica o anseio de Chaparro por saber o que
realmente sente Irene. Eis um dos enigmas de La pregunta de sus ojos:
Em português: “Dá duas batidinhas suaves e a escuta dizer ‘entre’. Quando transpõe a porta, ela
se surpreende e pergunta o que ele ainda está fazendo ali, por que já não está no restaurante. Na
realidade, pergunta ‘o que você está fazendo por aqui?’ e ‘por que você já não está no restaurante?’,
o que não é a mesma coisa. Mas Chaparro quer evitar se emaranhar na questão do tratamento por
você ou por senhor, porque essa também pode ser uma fonte de perturbação que mergulha no
fracasso seu propósito manifesto de requerer aquilo que, na rua Talcahuano quase já lá na
Corrientes, decidiu solicitar.” (SACHERI, 2011, p.9).
80 Em português: “O que eu faria, na pele dele? Sinceramente, não sabia. Mas não sabia,
fundamentalmente, porque nunca havia sentido por nenhuma mulher o que Ricardo Morales sentia
por sua falecida esposa. Ou eu sentia, sim, por uma mulher sobre a qual me propus não dizer uma só
palavra nestas páginas? Pensando nela, nessa outra, que guardo como meu único segredo digno
desse nome, talvez eu pudesse, sim, interpretar o amor de Morales por sua esposa. Acredito que por
ela eu seria capaz de tudo. Só que ela nunca me pertencera, ao passo que Morales e sua esposa
tinham convivido. De modo que minha história não era equiparável à de Morales.” (SACHERI, 2011,
p.146).
81 Considerando-se o fato de que Chaparro sempre entrega alguns capítulos de seu livro para que
Irene os leia (o que sempre se configura na narrativa como um pretexto mais para vê-la), são
comentários como os que constam no fragmento acima que levam o leitor a imaginar a possível
reação da Juíza quando de sua leitura da obra de Benjamín. Se reconheceria Irene nas entrelinhas
deste amor omitido por Chaparro em seu romance?
79
65
corresponderia a Juíza aos sentimentos de Chaparro e estaria também ela
esperando que esta verdade venha à tona?
Busca la billetera sobre un estante, revisa que tenga algún dinero y se va al
cine. Lo que más disfruta del programa no es tanto ver tal o cual película,
sino saber que después va a contárselo a Irene, cuando la vea. Se lo
comentará de refilón, como de costado, como quien no quiere la cosa. Y ella
le preguntará por la película. Les gusta hablar de cine. Tienen gustos
parecidos. Y algo le dice a Chaparro que a Irene le agradaría que pudiesen
ir juntos. No pueden, claro. No corresponde. Y tal vez sea idea de él, a fin
de cuentas. ¿De dónde saca eso de que a ella le gustaría acompañarlo? De
su propio deseo de que a ella le guste. ¿Tiene acaso alguna certeza?
Ninguna. Nunca. Jamás.82 (SACHERI, 2010, p.29 – Capítulo “Cine”)
Tal como ilustrado no fragmento acima, o leitor tem a sensação de que todas
as decisões tomadas por Chaparro têm relação com seu amor por Irene: ir ao
cinema para que depois conversem sobre o filme; revisar o processo e encontrar um
dado confuso para checar as informações com Irene; ignorar a ideia momentânea de
assinar sua obra com um pseudônimo e passar a fazer questão de seu nome na
capa do livro, unicamente para que Irene o veja. Como aqui já apontamos, o
personagem
encontra
diferentes
razões
para
escrever
um
romance
e
constantemente tenta justificar sua decisão ao leitor, mas uma (senão a maior)
destas razões parece estar conectada também a esta tensão individual que é
constituinte de La pregunta de sus ojos: “[...] Y Chaparro sospecha que es para eso
que lo escribe. Para dárselo a ella, para que ella sepa algo de él, tenga algo de él,
piense en él, aunque sea mientras lee.”83 (SACHERI, 2010, p. 280).
E por que não confessar este amor e assumir as consequências desta
revelação, ao invés de viver com a aflição da dúvida? O medo da recusa mostra-se
tão intenso que qualquer aspiração mínima de assumir seus próprios sentimentos é
logo abandonada pelo personagem.
Em português: “Procura a carteira sobre uma prateleira, confere se tem algum dinheiro e vai ao
cinema. O que ele mais curte no programa não é tanto ver este ou aquele filme, mas saber que
depois vai contá-lo a Irene, quando a encontrar. Fará um comentário de passagem, de relance, como
quem não quer nada. E ela lhe perguntará pelo filme. Ambos apreciam falar de cinema. Têm gostos
parecidos. E algo diz a Chaparro que para Irene seria agradável se pudessem ir juntos. Não podem,
claro. Não seria cabível. E talvez isso seja ideia dele, afinal. De onde tirou isso de que ela gostaria de
acompanhá-lo? De seu próprio desejo de que assim fosse. Por acaso tem alguma certeza?
Nenhuma. Nunca. Jamais.” (SACHERI, 2011, p.19).
83 Em português: “E Chaparro desconfia de que é para isso que escreve. Para dá-lo a ela, para que
ela saiba algo sobre ele, tenha algo dele, pense nele, embora seja apenas enquanto lê.” (SACHERI,
2011, p.186).
82
66
¿Qué mejor atajo para facilitarle a Chaparro el acceso al viejo expediente
que un llamado informal de la jueza de instrucción del Juzgado en el que se
ha tramitado esa vieja causa? Redondo. Tendrá la oportunidad de tomar un
café con Irene y de darse aires de escritor en acción. A ella le gusta ese
proyecto en el que lo ve embarcado. E Irene se pone más hermosa todavía
cuando habla de algo que la entusiasma. Por lo tanto, excusa perfecta. ¿Por
qué, entonces, se pone tan nervioso, y retrocede justo antes de decidirse a
llamarla? Precisamente porque todo es un pretexto. En el fondo es así de
simple. Todo es, al cabo, una coartada para estar cerca de ella. Y chaparro
se siente morir ante la mínima posibilidad de quedar expuesto delante de la
mujer a la que ama.84 (SACHERI, 2010, p.74 – Capítulo “Teléfono”)
Por mais que tente encontrar justificativas que convençam a si próprio sobre
sua escolha por manter suas emoções encobertas, buscando motivos constantes
que o façam seguir em silêncio, Chaparro nunca se contenta com a decisão tomada
e não consegue viver sem remoer este amor, que o corrói e aprisiona. O peso dos
anos passados parece abafar ainda mais um amor que sempre esteve calado e que
agora, no transcorrer de tanto tempo, não ousa mais falar:
De todos modos, Chaparro cortó esas elucubraciones desde la raíz. Se
preguntó –no pudo evitarlo– si valía la pena confesarle la verdad a esa
mujer a la que amaba y se respondió que no, que de ningún modo.
Declararle su amor a esa mujer, ¿no era reconocer que la había amado
durante casi treinta años? ¿No era confesar que se había pasado la vida
queriéndola en la lejanía?85 (SACHERI, 2010, p. 83 – Capítulo “Coartadas y
partidas”)
“La pregunta que le formula con la mirada” (2010, p. 226) é a mesma que
Chaparro não consegue responder em função de uma crise constante sobre este
amor, que hora parece estar adormecido e conformado, hora lhe consome com
questionamentos inquietantes. O término da escritura de seu romance trouxe em si
uma catártica coragem de encontrar o que há de concreto em sua relação com
Irene.
Em português: “Qual o melhor atalho para lhe facilitar o acesso à velha pasta, senão um
telefonema informal da titular do Juizado de Instrução no qual aquele velho processo tramitou?
Perfeito. Ele terá a oportunidade de tomar um café com Irene e de bancar o escritor em ação. Ela
gosta desse projeto no qual o vê embarcado. E fica ainda mais bonita quando fala de algo que a
entusiasma. Portanto, desculpa perfeita. Por que então, ele fica tão nervoso e recua bem na hora de
decidir ligar? Precisamente porque tudo é um pretexto. No fundo, é simples assim. Afinal, é tudo um
álibi para esta perto de Irene. E Chaparro se sente morrer ante a mínima possibilidade de ficar
exposto diante da mulher a quem ama.” (SACHERI, 2011, p.50).
85 Em português: “Fosse como fosse, Chaparro cortou esses devaneios pela raiz. Perguntou-se – não
pode evitar – se valia a pena confessar a verdade àquela mulher a quem amava e respondeu a si
mesmo que não, que de modo algum. Declarar seu amor àquela mulher não era reconhecer que a
tinha amado durante quase trinta anos? Não era confessar que havia passado a vida querendo-a de
longe?” (SACHERI, 2011, p.56).
84
67
Trazendo à luz mais uma vez as discussões de Ronald B. Tobias (1999) vale
observar que o teórico chama a atenção para o aspecto primordial do objeto de
busca na concepção do sujeito que o procura. Não se trata de uma mera desculpa
para a ação, mas de um elemento de forte atuação no protagonista da obra. Nesta
medida, o objeto maior de busca no romance de Sacheri – a solução do enigma por
detrás do crime ou, mais bem, a organização do passado em um romance – atua na
transformação do personagem protagonista. Segundo Tobias, é graças ao objeto de
busca que o protagonista revela-se como ser muito diferente ao final da história de
como se apresentou ao início. Em La pregunta de sus ojos, é a busca efetuada pelo
protagonista a responsável pela evolução de sua consciência e pela sua
autolibertação.
Desta forma, voltando-nos aos conflitos individuais de Chaparro, neste estudo
entendemos que a capacidade de amar do personagem mantém uma relação direta
com sua empreitada como escritor, de modo que o personagem só consegue
realizar-se sentimentalmente, só é capaz de libertar-se de seus receios, medos e
aflições quando termina de escrever o seu romance, quando resolve as tensões
sociais, as quais abordaremos no subcapítulo que se segue e que, como veremos,
têm relação direta com sua capacidade de amar.
[...] (Irene) le está preguntando ni más ni menos qué le pasa, qué le pasa a
él, a él con ella, a él con ellos dos; y la respuesta parece interesarle, parece
ansiosa por saber, tal vez angustiada y probablemente indecisa sobre si lo
que le pasa es lo que ella supone que le pasa. Ahora bien –barrunta
Chaparro–, el asunto es si lo supone, lo teme o lo desea, porque esa es la
cuestión, la gran cuestión de la pregunta que le formula con la mirada, y
Chaparro de pronto entra en pánico, se pone de pie como un maníaco y le
dice que tiene que irse, que se le hizo tardísimo; ella se levanta sorprendida
–pero el asunto es si sorprendida y punto o sorprendida y aliviada, o
sorprendida y desencantada–, y Chaparro poco menos que huye por el
pasillo al que dan las altas puertas de madera de los despachos, huye sobre
el damero de baldosas negras y blancas dispuestas como rombos, y recién
retoma el aliento cuando se trepa a un 115 milagrosamente vacío a esa
hora pico del atardecer; se vuelve a su casa de Castelar, donde esperan ser
escritos los últimos capítulos de su historia, sí o sí, porque ya no tolera más
esta situación, no la de Ricardo Morales e Isidoro Gómez, sino la propia, la
que lo une hasta destrozarlo con esa mujer del cielo o del infierno, esa
mujer enterrada hasta el fondo de su corazón y su cabeza, esa mujer que a
la distancia le sigue preguntando qué le pasa, con los ojos más hermosos
del mundo.86 (SACHERI, 2010, p. 226-227 – Capítulo “Más café”).
Em português: “[...] (Irene) pergunta nem mais nem menos o que está lhe acontecendo, o que está
acontecendo a ele, a ele com ela, a ele com eles dois; e a resposta parece interessá-la, ela parece
ansiosa por saber, talvez angustiada e provavelmente sem compreender se o que está acontecendo
a ele é o que ela supõe estar acontecendo a ele. Pois bem – reflete Chaparro –, o problema é se ela
o supõe, teme ou deseja, porque essa é a questão, a grande questão da pergunta que lhe formula
86
68
2.3.2 A trama de busca e os conflitos sociais:
Este bloqueio que caracteriza Benjamín Chaparro e que confere sua
incapacidade de amar é, como antes dito, o responsável pela conformação do
primeiro enigma de La pregunta de sus ojos: saber se este amor intenso e antigo de
Chaparro por Irene de fato se concretizará. Ao lado da trama de amor, aquela que
chega ao leitor através da voz do narrador externo, transcorre a história que
Chaparro decide arquitetar, aquela que apresenta o crime de Liliana Colotto e todas
as implicações que a morte da jovem traz ao universo da trama e aos personagens
que nele habitam.
Os conflitos sociais encontram espaço no romance de Eduardo Sacheri a
partir desta segunda trama, que sai de uma mirada interna e mais subjetiva lançada
sobre o personagem Benjamín Chaparro e traz à tona as relações que o indivíduo
estabelece no campo social. São as tensões sociais, nesta medida, as que têm início
no instante em que a notificação da morte da jovem chega aos funcionários da
Secretaria. Em nosso estudo acreditamos que é a partir deste anúncio do crime que
o romance de Sacheri ganha uma forma inspirada em grande medida nos romances
de cunho policial. Ainda que a narrativa contenha elementos do gênero, o autor, em
entrevista87, afirma que a obra não se adequa a todas as exigências e transcende a
estrutura do policial clássico. Tampouco é aqui intenção nossa catalogar a obra de
Sacheri em algum lugar estanque. Atestamos que o romance dialoga com o gênero
negro quando apresenta o enigma de um crime como grande motivador para o
desenvolvimento de uma sequência de ações que ocorrem na esfera social e é este
aqui nosso foco de interesse.
com o olhar, e Chaparro de repente entra em pânico, levanta-se como um doido e diz que precisa ir,
que ficou tardíssimo; ela se levanta, surpreendida – mas o problema é se surpreendida e ponto, ou
surpreendida e aliviada, ou surpreendida e desencantada –, e Chaparro praticamente foge pelo
corredor para o qual dão as altas portas de madeira dos escritórios, foge sobre o tabuleiro de ladrilhos
pretos e brancos dispostos como losangos, e só recupera o fôlego quando entra num 115
miraculosamente vazio no horário de pico do entardecer; volta à sua casa de Castelar, onde os
últimos capítulos de sua história esperam ser escritos, haja o que houver, porque ele já não tolera a
situação, não a de Ricardo Morales e Isidoro Gómez, mas a própria, a que o une até destroçá-lo com
essa mulher do céu ou do inferno, a mulher enterrada até o fundo de seu coração e de sua cabeça, a
mulher que a distância continua perguntando o que está acontecendo a ele, com os olhos mais
bonitos do mundo.” (SACHERI, 2011, p.149).
87 Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal argentino LOS ANDES, publicada em 08/11/2009.
Acesso em 15/01/2014 às 11h. In: <http://www.losandes.com.ar/notas/2009/11/8/estilo-455769.asp>.
69
Em nossa entrevista, Sacheri chama a atenção para o elemento de acaso
presente em La pregunta de sus ojos, como grande fator que afasta o romance das
obras de cunho policial (ver apêndice B – pergunta 9). De fato, o enigma relacionado
à morte de Liliana não se sustenta no romance com base na descoberta única de
quem é assassino, enigma muito peculiar em narrativas do gênero. Em La pregunta
de sus ojos, o leitor é informado do assassinato de início, a partir de um personagem
– Benjamín Chaparro – que quer narrar uma história sobre a qual já conhece o
desfecho. Além disso, é o próprio assassino da vítima quem confessa seus atos,
após ter sido capturado (também por casualidade) quando se envolvia em uma briga
em um trem.
Tal elemento de casualidade apontado pelo escritor perpassa grande parte da
narrativa, como quando a própria verdade sobre o paradeiro do assassino chega a
Benjamín Chaparro através de uma carta enviada por Ricardo Morales, na qual o
viúvo pede a Chaparro que o ajude com “cierto asunto inconcluso” (2010, p.297).
Chaparro não procurava informações sobre Morales e Gómez, quando a carta com a
verdade sobre estes personagens lhe chega em sua Secretaria. A casualidade que
caracteriza a descoberta sobre o fim dado ao assassino em La pregunta de sus ojos
foge, em grande medida, às exigências ortodoxas do gênero policial, que pregam a
investigação como caminho para a solução de um mistério.
No entanto, nesta pesquisa entendemos que a trama de La pregunta dialoga
com elementos do gênero pelo tom mesmo de sigilo que envolve toda a narrativa;
pela presença de um detetive de importante papel na trama; pela tensão criada, em
grande parte do romance, pela busca de um assassino; e por, mais que tudo, trazer
a tona um amplo leque de conflitos sociais a partir da apresentação de um crime.
Cabe destacar que a busca por um assassino, própria da estrutura de um policial
clássico, cede espaço no romance de Sacheri a uma reflexão sobre as
consequências desse mesmo crime na vida dos personagens envolvidos com o fato
da morte. Se considerarmos as exigências do policial clássico, insistimos, La
pregunta de sus ojos de fato não cumpre com todas as suas premissas, mas
entendemos que esse dado também não nega o fato de que o romance dialoga em
inúmeros aspectos com elementos próprios do gênero.
70
Para dar conta deste diálogo, neste estudo consideraremos o conceito erigido
pelo teórico argentino Mempo Giardinelli88 (2012), quando o autor busca refletir as
transformações sofridas pelo gênero desde sua gênese, em um momento em que as
preocupações dos escritores ainda pareciam restringir-se a arquitetar armadilhas
que pudessem entreter e, ao mesmo tempo, enganar o leitor. Giardinelli reflete
acerca de uma nova vertente do policial que sai dos emaranhados de pistas a serem
desvendadas à custa de noites de sono do leitor, para centrar-se na cotidianidade
das cidades, em personagens mais palpáveis, com problemas sociais que ecoem na
cotidianidade do leitor.
O autor traça um panorama do gênero desde suas origens norte-americanas
com a chamada Literatura de Far West ou Novela de vaqueros até chegar ao que
concebe como “novela negra”, definida como aquela que
incorpora elementos de la vida real: la lucha por el poder político y/o
económico por parte de sujetos sobrados de ambición, sexismo, violencia e
individualismo, productos todos de una sociedad... vista por casi todos los
autores como corrompida y en descomposición.89 (GIARDINELLI, 2012,
p.19)
Giordianelli explica que a “novela enigma, novela-problema o de cuarto
cerrado” refere-se a textos clássicos que tinham o propósito exclusivo de
desenvolver tramas em que quase sempre aquele que mata desaparece sem deixar
sombra de pistas. O único mistério está na morte inexplicável e é tarefa do leitor
tentar descobrir o assassino. Por sua vez, a versão mais moderna do gênero, de
envergadura crítica e sociológica, traz a luz uma nova vertente do policial, repleta de
“inacabables posibilidades al ocuparse de la vida real y ser reflejo de ella y no de un
pequeño universo hermético y mental.”90 (GIARDINELLI, 2012, p.19).
Sobre este “ocuparse de la vida real” de que nos fala Giardinelli, a escritora e
crítica literária norte-americana P.D. James91 (2012) afirma que
88 GIARDINELLI, Mempo. El género negro: orígenes y evolución de la literatura policial y su influencia
en Latinoamérica. 1ª ed., Buenos Aires, Capital Intelectual, 2013.
89 Em português: “incorpora elementos da vida real: a luta pelo poder político e/ou econômico por
parte de sujeitos repletos de ambição, sexismo, violência e individualismo, produtos todos de uma
sociedade... vista por quase todos os autores como corrompida e em decomposição.” (GIARDINELLI,
2012, p.19) (N. do T.)
90 Em português: “inacabáveis possibilidades ao ocupar-se da vida real e ser reflexo dela e não de um
pequeno universo hermético e mental.” (GIARDINELLI, 2012, p. 19). (N. do T.)
91 JAMES, P.D. Segredos do romance policial. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Três
Estrelas, 2012.
71
Cada vez mais os autores de romances de crime e de histórias de detetive
refletirão esse mundo tumultuado em suas obras e lidarão com ele com
realismo sempre maior do que era possível na Era Dourada. A solução do
mistério ainda se encontra como centro da história de detetive, mas hoje ela
não é mais isolada da sociedade contemporânea. Sabemos que os policiais
não são invariavelmente mais virtuosos e honestos do que a sociedade
onde são recrutados, e que a corrupção pode rondar os corredores do
poder e esconder-se no próprio coração do governo e do sistema de justiça
criminal. (JAMES, 2012, p.169)
Assim como P.D. James, Mempo Giardinelli também chama a atenção para
as mudanças estruturais sofridas pelo gênero desde sua formação. Em suas muitas
versões, exigências ortodoxas cedem lugar a variações dentro do cânone. Como nos
coloca Giardinelli,
[…] Lo solamente policiaco ha caducado como posibilidad fundamental de
definición. El género, modernamente, supera con holgura tal perspectiva.
[…] Es evidente que el género se alejó de la presencia del policía
institucional o privado: en muchos casos, éste quedó en segundo plano o
simplemente desapareció. Hoy en este género no es indispensable que
exista el policía. Más allá de la opinión que se tenga acerca de los
“guardianes del orden” – seres repudiados en muchas sociedades – lo que
subsiste en esta literatura es el hecho delictivo, sin el cual no hay posibilidad
de género. Subsisten la transgresión, el apropiamiento indebido, la
violación de la ley, la supresión de la vida ajena, etcétera, y existen
encarnados en personajes cada vez más exóticos, impuros, maniqueos, es
decir, hijos de la realidad social en que se desenvuelven.92
(GIARDINELLI, 2012, p. 49 – grifo nosso)
A bem dizer, em La pregunta de sus ojos, o personagem Benjamín Chaparro,
quando de seu envolvimento com o caso da morte da jovem, surge também ele
como uma espécie de detetive, ainda que saiba que as decisões que toma são por
vezes frustradas e prejudiciais à captura do assassino. Chaparro é ajudado pelo
inspetor Báez, um investigador aos moldes tradicionais, que tangencia e auxilia o
protagonista em sua expedição, cedendo-lhe informações mais burocráticas e
formais sobre o caso da jovem. Como coloca Giardinelli no fragmento supracitado,
se a figura do policial dentro do gênero em suas versões clássicas encontra hoje
Em português: “[…] O policial puro caducou como possibilidade fundamental de definição. O
gênero, modernamente, supera com facilidade tal perspectiva. […] É evidente que o gênero se
afastou da presença do policial institucional ou privado: em muitos casos, este ficou em segundo
plano ou simplesmente desapareceu. Hoje neste gênero não é indispensável que exista o policial.
Para além da opinião que se tenha sobre os ‘guardiões da ordem’ – seres repudiados em muitas
sociedades – o que subsiste nesta literatura é o fato delitivo, sem o qual não há possibilidade de
gênero. Subsistem a transgressão, a apropriação indevida, a violação da lei, a supressão da vida
alheia, etecetera, e existem encarnados em personagens cada vez mais exóticos, impuros,
maniqueístas, ou seja, filhos da realidade social em que se desenvolvem.” (GIARDINELLI, 2012, p.
49) (N. do T.)
92
72
possibilidades de variação, o que persiste em narrativas do gênero, ou, em nosso
caso, em narrativas que dialoguem com o gênero, é o fato delitivo, à violação da lei,
inclusive, do direito à vida, estopim que movimenta a trama de La pregunta de sus
ojos.
Parece importante recorrermos uma vez mais ao teórico Ronald B. Tobias
(1999) quando o autor fala de um incidente motivador como aquele que retira o
personagem de sua inércia e o leva a atuar. Este incidente motivador pode ser
definido, e aqui justamente parece ser o caso, como o acontecimento que
desencadeia a ação. Nesta medida, traz em si um forte poder causal, pois, como
fato desencadeador de ações, muda a ordem dos acontecimentos e obriga o
personagem a atuar. Sob tal ótica, pode-se afirmar que, em La pregunta de sus ojos,
a origem das ações se concentra neste fato delitivo do qual nos fala Giardinelli, ou
seja, na morte de Liliana Colotto como acontecimento que suscita uma série de
outras ações que se desenrolam no transcorrer da trama.
Tobias também explica que antes de sair rumo ao objeto de sua busca, “el
héroe se halla en el punto de partida, por lo habitual en su hogar. Una fuerza le
impele a actuar, bien por necesidad bien por deseo.”93 (TOBIAS, 1999, p.83). Em
verdade, encontramos este “hogar” de Chaparro em seu lugar de trabalho – uma das
Secretarias do Juizado de Instrução de Buenos Aires. Ligado ao incidente motivador
da morte, outras ações são desencadeadas de forma a impulsionar a atuação do
protagonista do romance: o telefone que toca em uma hora de número par, que
deveria ser atendida por Chaparro, e não de número ímpar, que corresponderia a
Romano, funcionário da Secretaria ao lado. Em um jogo de acaso, como já visto,
“casi como si tratara de um desafio desportivo” (SACHERI, 2010, p.31), a morte da
jovem, “fuerza al héroe a abandonar su hogar. No es suficiente que desee
marcharse; algo debe alentarle. Puede que tenga dudas sobre partir o no […], pero
el incidente inclina la balanza.”94 (TOBIAS, 1999, p.85).
Em última instância, entendemos neste estudo que é o crime da jovem o
grande incidente motivador para que as ações se desenvolvam na obra. Vale
Em português: “o herói se encontra em um ponto de partida, no geral em sua casa. Uma força lhe
motiva a atuar, seja por necessidade, seja por desejo.” (TOBIAS, 1999, p.83) (N. do T.)
94 Em português: “força o herói a abandonar seu lar. Não é suficiente que deseje partir; algo deve
estimulá-lo. Talvez tenha dúvida sobre partir ou não […], mas o incidente inclina a balança.” (TOBIAS,
1999, p.85). (N. do T.)
93
73
observar que Chaparro não tem ambição de desvendar o caso de Liliana já de início.
Pelo contrário, após cumprir a ordem de examinar o local do assassinato, o
personagem não exterioriza nenhum impulso por encontrar a verdade do crime. Seu
envolvimento com a história de Liliana se deu como parte de um interesse maior
pela vida de Ricardo Morales, história que busca narrar no livro que escreve.
Chaparro é envolvido pouco a pouco no caso de Liliana a partir do encontro que tem
com Ricardo Morales logo após a morte de sua mulher, juntamente com o oficial
inspetor Báez, personagem que atua, como antes dito, como uma espécie de
detetive na narrativa e que contribui em grande medida para este certo tom policial
do romance de Sacheri.
A busca pela verdade por detrás do crime – aquela que acontece no nível
ficcional – é responsável por nosso envolvimento imediato com a trama da narrativa,
quando, junto a Chaparro, o leitor é tomado pela ansiedade e aflição por encontrar
uma solução para o caso da morte da jovem. Vale sublinhar mais uma vez aqui que
esta verdade vem em uma dimensão outra que não a da revelação sobre quem é o
assassino. A busca pela verdade sobre a qual nos referimos neste estudo implica
fazer justiça pela morte da jovem e envolve questões bem mais amplas que a
descoberta do criminoso.
Como afirma Tobias, todos os acontecimentos da trama devem corroborar
para que se concretize o objetivo último da busca do personagem, que, de fato,
entendemos nesta pesquisa que, mais que na solução do crime, implica na
restauração da verdade enquanto valor fundamental para o próprio personagem e,
em âmbito mais amplo, para toda a sociedade. A trama de busca, desta forma, está
a serviço da restauração de um valor básico para a vida social, mas que, por
contrário, não está realizado e implementado na sociedade representada pela ficção,
e este fato, por si próprio, causa um desequilíbrio estrutural que atinge a
personagens que, como Chaparro, lutam para que a justiça seja feita.
Em última instância, entendemos que o diálogo da obra com o gênero negro
reside justamente nesse compromisso que La pregunta de sus ojos estabelece com
os conflitos sociais inerentes à realidade argentina e que são trazidos à tona por
Sacheri. O crime da jovem, como já dito, configura-se como detonador que nos
conduzirá a uma reflexão mais profunda sobre toda uma rede de corrupção judicial
que age de modo desfavorável à realização desta verdade na narrativa. A análise
74
que se segue sobre os significados do romance nos ajudará a ponderar estas
questões que se mostram como desdobramentos do enigma da morte e figuram
como indícios dos muitos conflitos sociais que a obra de Sacheri permite que sejam
refletidos.
75
III
DAS ESTRATÉGIAS AOS SIGNIFICADOS DE LA PREGUNTA DE SUS
OJOS
3.1
A VIOLÊNCIA E A VIOLAÇÃO DA LEI COMO MOTIVOS DE LA
PREGUNTA DE SUS OJOS
O tema da violência e da violação da lei surge no cenário literário argentino
desde o século XIX, quando já então as marcas da violência política faziam-se notar,
marcas que seguem presentes até hoje em uma ampla gama de textos que figuram
como índice do forte vínculo que sempre existiu entre política e literatura nacional.
A título de exemplo deste vínculo, a própria formação do Estado a partir da lei
assentada na violência prévia tem sua representação no gaucho Martín Fierro
(1872)95, personagem deslocado em um projeto de desenvolvimento do país e que
não se encaixa em um ideal de modernização argentina. Excedente num cenário de
progresso que se visa consolidar naquele momento, o gaucho é trazido à tona pela
literatura enquanto símbolo de uma identidade cultural do país. Na primeira obra
aparece recrutado forçadamente a lutar nas fronteiras e sofre as consequências
sociais que esta imposição impõe a sua história de vida e que o conduzem, ao final,
a isolar-se em meio aos indígenas. Por ocasião de sua volta, escrita em 1879, as
injustiças sociais sofridas pelo gaucho seguem retratadas. O ser valente, autônomo
e livre, que vive solitário nos pampas, se transforma ao compasso das atrocidades
sociais impostas por sua vida marginalizada de gaucho.
Jorge Luis Borges dialoga com o Martín Fierro (1953)96 e questiona a
legitimidade do gaucho enquanto símbolo de retidão. O personagem paradigmático
passa a réu de um julgamento moral sobre suas decisões ao longo do poema de
José Hernández e é colocado em xeque por Borges: é Martín Fierro um herói, um
arquétipo nacional a ser seguido? São muitas as análises que apontam a violência
em Martín Fierro como reflexo de um processo de marginalização mais amplo ao
que submetem o gaucho. Sofre com as truculências daqueles que detêm o poder e é
relegado a uma vida de pobreza e criminalidade. No entanto, Borges sinaliza que a
valentia diante dos percalços que encontra em seu caminho não deve omitir o peso
HERNÁNDEZ,
José.
El
gaucho
Martín
Fierro.
Disponível
em:
<http://biblio3.url.edu.gt/Libros/gua_mf.pdf>. Acesso em: 15 set. 2013.
96 BORGES, Jorge Luis. El fin. En Artificios, Alianza Editorial, S.A., Madrid, 1993, pág. 68. Disponível
em: <http://www.literatura.us/borges/elfin.html>. Acesso em: 15 set. 2013.
95
76
de determinadas atitudes tomadas, como quando duela e assassina ao Negro,
episódios trazidos à luz décadas depois por um Borges questionador.
Nesta medida, este retrospecto literário leva-nos a afirmar que, tendo como
marco inicial o próprio Martín Fierro, observa-se que a literatura argentina vem
assumindo e debatendo o tema da violência e da lei desde a formação do Estado
Nacional. A incompreensão do outro e a negação da diferença vêm sendo
abordadas em distintas obras a partir de perspectivas múltiplas e de uma pluralidade
de vozes. E é nesta tradição argentina que La pregunta de sus ojos se situa, quando
traz como pano de fundo a ferocidade de um passado argentino que ainda se
mantém como preocupação de escritores e críticos e que se desborda no hoje a
partir da apresentação da violência por vieses distintos.
Como vimos no capítulo antecedente, denominado “Forma e sentido da
trama”, a busca do personagem por uma verdade por detrás da morte de Liliana é a
responsável por movimentar grande parte da trama de Sacheri. O envolvimento de
Benjamín Chaparro com o caso da jovem se dá em compasso com o surgimento de
fatos que compõem o que o personagem chamará, em seu posterior romance de “a
história de Ricardo Morales”, a qual se inicia para Chaparro no instante em que a
notícia da morte da jovem lhe chega por telefone e finaliza-se com sua ida à casa do
viúvo para cumprir um pedido feito por uma carta de Morales. Entre estes dois
marcos, a trama se desenvolve e cresce a cada capítulo, sempre permeada de
conflitos entre personagens que de alguma forma se inserem nesta órbita de ações
que tem como centro a morte de Liliana Colotto.
Durante todos os anos em que se viu implicado no caso da jovem, Chaparro
viveu um constante enfrentamento com aqueles que são avessos ao esclarecimento
justo e lícito dos fatos. E é por meio deste embate contínuo que a violência ganha
espaço na obra de Sacheri. A ânsia do personagem por fazer justiça e todo o seu
esforço por encontrar a verdade por detrás do crime, por tentar minimizar o
sofrimento do viúvo, vão de encontro a interesses superiores contrários ao
cumprimento da justiça no caso da jovem. Como aqui vem sendo exposto, este dado
constitui-se em um ponto chave em nossa leitura, tendo em vista que na busca por
solucionar o caso da morte da jovem, Chaparro traz a luz toda uma rede de
corrupção, baseada na violência e na violação à lei, e que se deixa entrever no diaa-dia de personagens que conformam a malha judicial da narrativa.
77
É por via das peripécias com as quais se envolve Chaparro que o leitor tem
acesso a personagens integrantes da Justiça na trama, os quais denotam a falência
de uma Instituição que é apresentada ao leitor de forma deteriorada e corrupta. O
episódio que se segue é bastante representativo destas questões levantadas em
nosso estudo sobre a malha judicial representada na narrativa:
Es cierto que a los pocos meses me rozó un coletazo desagradable
del asunto. Tuve que declarar en la investigación contra Romano y el policía
Sicora, por los apremios ilegales a los albañiles. La declaración en sí fue un
trámite: apenas ratificar mi denuncia inicial y aclarar un par de detalles. Me
extrañó (me disgustó) que pusieran a un pinche a llevar ese sumario: una
mala señal, como si en ese Juzgado dieran por sentado que la causa iba a
una vía muerta y estuvieran limitándose a guardar las formas. ¿Qué
necesitaban para procesar a esos dos atorrantes? Tenían mi declaración,
las de un par de policías de la seccional y la pericia médica sobre las
lesiones de los dos pobres tipos. Pese a la desconfianza que me produjo,
decidí esperar. El juez era Batista, un tipo al que consideraba honesto, y a
quien conocía un poco por haber trabajado con él en alguna feria de enero.
Además, como ya dije, el envión de compromiso virulento con todo el
proceso se me había pasado.
Tiempo después el propio Batista me citó a su despacho. Me recibió
sonriendo, me estrechó calurosamente la mano y, cuando nos sentamos,
me dijo que lo que iba a decirme era absolutamente confidencial, y que por
favor no lo divulgara porque los dos nos jugábamos el puesto. “La pucha”,
pensé. ¿Qué podía ser tan serio? Supongo que el juez estaba incómodo,
porque después de dudar un momento me vomitó todo el asunto en el
menor tiempo posible, como si quisiera desembarazarse rápido de algo
molesto y sucio. Así que me informó sin atenuantes que le había llegado la
orden “de arriba” (y completó la imagen señalando con el dedo índice el
techo de su despacho, pero queriendo significar… ¿qué?, ¿la Cámara?, ¿la
Corte?, ¿el gobierno?), para frenar todo el asunto y sobreseer sin
procesados. Agregó que no podía ser mucho más explícito, pero que al
parecer ese muchacho… Romano, el compañero mío, tenía una banca
grande, bien arriba. Al decir lo de la “banca grande” Batista se había tocado
el hombro izquierdo con dos dedos de la mano derecha.97 (SACHERI, 2010,
p. 140-141)
Em português:
“É verdade que, dali a poucos meses, me atingiu um vestígio desagradável do assunto. Tive
que depor a investigação contra Romano e o policial Sicora, pela coação ilegal contra os pedreiros. O
depoimento em si foi rápido: somente ratificar minha denúncia inicial e esclarecer uns detalhes.
Estranhei (não gostei) que colocassem um auxiliar para tocar esse inquérito: mau sinal, como se
naquele Juizado dessem por estabelecido que a causa não iria adiante e estivessem se limitando a
manter as aparências. De que precisavam para processar aqueles dois vagabundos? Tinham meu
depoimento, os de uns policiais da seção e a perícia médica sobre as lesões dos dois pedreiros.
Apesar da desconfiança que isso produziu em mim, resolvi esperar. O juiz era Batista, um homem
que eu considerada honesto e a quem conhecia um pouco por ter trabalhado com ele em algum
plantão de janeiro, durante o recesso judicial. Além disso, como já afirmei, meu impulso de
compromisso virulento com todo o processo já passara.
Algum tempo depois, o próprio Batista me convocou ao seu gabinete. Me recebeu sorrindo,
apertou calorosamente minha mão e, quando nos sentamos, observou que o que iria me dizer era
absolutamente confidencial, e que por favor eu não divulgasse nada, porque nesse caso nós dois
estaríamos pondo em risco nossos cargos. ‘Puta merda’, pensei. O que podia ser tão sério? Imagino
que o juiz estava agoniado, porque, depois de hesitar um momento, me vomitou a coisa toda no
menor tempo possível, como se quisesse se livrar rapidamente de algo incômodo e sujo. De modo
97
78
Como se observa no fragmento supracitado, a impunidade aparece como
marca de uma teia judicial que assegura a liberdade daqueles que cometem crimes,
mas que se mantêm incólumes graças à degeneração da instituição representada na
trama de Sacheri. Uma ordem que, no diálogo entre os personagens, se mostra
abstrata, tão simplesmente “de arriba”, já justifica que se abandone o caso, como se
o prosseguimento da investigação estivesse fadado ao esquecimento, impedido por
forças maiores e inquestionáveis, contra o risco de revanches de alto custo àqueles
que ousem objetar-se. A violência de um silêncio imposto.
Chaparro sofre ao longo da narrativa as muitas retaliações consequentes de
sua oposição a funcionários implicados com a corrupção do governo, com destaque
a maior delas e que aqui trazemos à análise:
La puerta de mi departamento estaba abierta, y desde adentro se
proyectaba un haz de luz hacia el pasillo en penumbra. ¿Me habían
robado? Caminé hasta el umbral y lo atravesé sin reparar en la posibilidad
de que el intruso todavía estuviese dentro. De hecho no había nadie. Pero
eso lo pensé después, porque el departamento estaba en un desorden
absoluto. Los sillones y las sillas volcados, la biblioteca tirada, los libros
despanzurrados y esparcidos por el piso. En el dormitorio, el colchón estaba
destrozado y había espuma de goma por toda la pieza. La cocina era otro
desbarajuste. Estaba tan aturdido que tardé en advertir que el televisor y el
combinado de música no estaban, ni en su sitio ni en ningún otro. ¿Eran
ladrones, entonces? No se entendía, en ese caso, el ensañamiento con el
que habían actuado. Al final entré al baño, sabiendo que iba a encontrar el
mismo caos. Pero había algo más, aparte de la cortina de baño en hilachas,
el contenido del botiquín regado por el piso y los grifos del bidé abiertos al
máximo para inundar todo el sitio. En el espejo había un mensaje escrito
con jabón: “Esta vez te salvaste, Chaparro hijo de puta. La próxima sos
boleta”.98 (SACHERI, 2010, p.241-242).
que me informou sem atenuantes que havia recebido ordens ‘de cima’ (e completou a imagem
apontando com o indicador o teto de seu gabinete, mas querendo significar... o quê? a Câmara? a
Corte? o governo?) para frear todo o assunto e suspender sem processados. Acrescentou que não
podia ser muito mais explícito, porque aparentemente aquele rapaz... Romano, o meu colega, tinha
um ‘pistolão’, bem no alto. Ao falar ‘pistolão’, Batista havia tocado o ombro esquerdo com dois dedos
da mão direita.” (SACHERI, 2011, p. 93-94).
98 Em português: “A porta do meu apartamento estava aberta, e do interior uma luz se projetava no
corredor em penumbra. Tinham me roubado? Caminhei até a entrada e a transpus sem pensar na
possibilidade de que o intruso ainda estivesse lá dentro. De fato não havia ninguém. Mas isso eu
pensei depois, porque, mal entrei, percebi apavorado que o apartamento estava numa desordem
absoluta. Poltronas e cadeiras viradas, a estante arrastada, os livros arrebentados e espalhados pelo
piso. No quarto, o colchão estava despedaçado e havia flocos de borracha por todo o aposento. A
cozinha era outra bagunça. Fiquei tão aturdido que demorei a notar que a televisão e a vitrola não
estavam nem nos seus lugares nem em nenhum outro. Tinham sido ladrões, então? Nesse caso, não
se explicava a fúria com que haviam agido. Por fim entrei no banheiro, sabendo que ia encontrar o
mesmo caos. Mas havia algo mais, afora a cortina de plástico rasgada a tiras, o conteúdo do armário
de remédios esparramado pelo piso e as torneiras do bidê abertas ao máximo para inundar o local.
No espelho havia uma mensagem escrita com sabonete: ‘desta vez você se salvou, Chaparro filho da
puta. Na próxima, está liquidado.’” (SACHERI, 2011, p.159).
79
Tal como mencionamos no tópico referente à dimensão oculta dos
personagens, por ocasião da crença de que Isidoro Gómez, o assassino de Liliana,
tivesse sido morto pelo próprio Chaparro, o personagem tem seu apartamento
destruído por Pedro Romano e seus aliados. Na sequência de violência como
represália ao personagem, Chaparro se vê obrigado a fugir de Buenos Aires e
refugiar-se em San Salvador de Jujuy, capital da província de Jujuy, a noroeste da
Argentina, naquele “frío invierno de 1976” (2010, p.81) (ver apêndice A). Vale
observar que este intervalo de tempo em que Chaparro passa foragido em um lugar
ao qual não se sente pertencente atua na narrativa como um momento de grande
aflição interna do personagem. Ainda que assumisse a culpa por um crime que não
cometeu e tivesse, de alguma forma, consciência de sua nobreza, Chaparro se
sente um covarde e um fraco por não ter enfrentado seus algozes e não ter
permanecido em sua casa, seu escritório, seu bairro, sua vida.
“Maravilloso”, pensé. Iba a vivir en el confín de la patria y a trabajar con un
señor feudal, más o menos. Pero en ese momento se me cruzó la imagen
de mi departamento hecho polvo y automáticamente se me aquietaron las
ínfulas. Si con el tipo iba a estar a salvo, mejor sería meterme la pedantería
en el último rincón y darle para adelante. Recordé la vergüenza ajena que
me había dado, años atrás, ver al juez Batista recular cuando no se animó a
bajarle la caña a Romano, en la causa de apremios. Yo también era un
cobarde. Yo también había encontrado mi límite.99 (SACHERI, 2010, p.268)
Aparte da violência sofrida por Chaparro, que narra todas as consequências
que o envolvimento no caso da jovem gerou em sua vida, a obra também dá espaço
a uma violência mais ampla, implicada ao contexto histórico que serve de pano de
fundo à narrativa de Sacheri (ver apêndice A). Na esteira desta segunda violência
que permeia toda a obra do escritor, merece destaque significativo a análise de um
importante episódio que agora terá nosso foco neste estudo: o desaparecimento do
primo de Pablo Sandoval, grande amigo de Chaparro e companheiro de trabalho no
Juizado.
– Hoy me llamó mi tía Encarnación, la hermana de mi vieja –hizo una
pausa; le tembló la voz–. Me dijo que ayer se lo llevaron a mi primo Nacho.
Em português: “‘Maravilhoso’, pensei. Eu ia viver nos cafundós da pátria e trabalhar com um senhor
feudal, mais ou menos. Mas nesse momento me passou pela cabeça a imagem do meu apartamento
destruído, e automaticamente minhas pretensões de acalmaram. Se com aquele sujeito eu estaria a
salvo, melhor seria deixar para lá o pedantismo e seguir em frente. Recordei a vergonha por tabela
que havia sentido, anos antes, ao ver o juiz Batista recuar quando não se animou a enquadrar
Romano no processo por coação ilegal. Eu também era um covarde. Eu também havia encontrado
meu limite.” (SACHERI, 2011, p.178).
99
80
Cree que eran milicos. Pero no está segura. Entraron rompiendo todo, en
plena noche. Iban vestidos de civil.
De nuevo hizo silencio. No lo interrumpí. Sabía que no había
terminado.
– La pobre vieja preguntó qué podía hacerse. Le dije que se viniera
para casa. La acompañé a hacer la denuncia –encendió un cigarrillo antes
de terminar–: ¿Qué iba a decirle?
– Hiciste bien, Pablo –me atreví.
– No sé –dudó, antes de continuar–. Sentí como si la estuviese
engañando. Tal vez debería haberle dicho la verdad.
– Hiciste bien, Pablo –repetí–. Si le decís la verdad, la matás.
La verdad. Qué cosa jodida que es a veces la verdad. [...]100
(SACHERI, 2010, p.230-231)
Parece interessante interromper o fragmento antes citado para chamar a
atenção ao fato de que a certeza desta verdade sobre o ocorrido com Nacho, primo
de Sandoval, não é referida em forma de palavras no diálogo entre os personagens.
Chegamos a esta verdade através da demonstração da tristeza de Sandoval, pelas
reservas de Chaparro ao tocar no tema com seu amigo, na preocupação de
Sandoval por contar ou não algo que seria tão devastador a uma mãe que já sofre
pela ausência de um filho. É nas entrelinhas do diálogo entre os amigos que
entendemos que no desaparecimento irremediável do jovem está implícita a sua
morte, o fato trágico que foi ocultado como forma de poupar a tia, esta “verdad”,
cruel e implacável, que não se quer ou não se consegue exteriorizar.
A presença do elemento histórico na obra, que até então se fazia notar pelo
clima de tensão da Argentina naquelas décadas ou pela referência a uma Buenos
Aires cinzenta, agora aparece no episódio da morte de Nacho de forma mais
explicitada, patente. Vale enfatizar que a morte do jovem não é mencionada no
texto, como antes colocamos, mas o contexto situado na voz de Chaparro, que
aparece na sequência do diálogo mantido com Sandoval e que abaixo citamos, se
responsabiliza por deixar manifesto o destino do jovem:
Em português:
“– Hoje me ligou minha tia Encarnación, a irmã da minha mãe – começou, e fez uma pausa.
Sua voz tremeu. – Disse que ontem levaram meu primo Nacho. Ela acha que eram milicos. Mas não
tem certeza. Entraram quebrando tudo, em plena noite. Estavam em trajes civis.
De novo, fez silêncio. Não o interrompi. Eu sabia que ele não tinha terminado.
– A pobre velha me perguntou o que se podia fazer. Pedi que ela viesse para minha casa e a
acompanhei para fazer a denúncia. – Acendeu um cigarro antes de terminar: – O que eu ia dizer?
– Fez bem, Pablo – me atrevi.
– Não sei – hesitou ele, antes de continuar. – Senti como se a estivesse enganado. Talvez
devesse ter dito a verdade.
– Fez bem, Pablo – repeti. – Se disser a verdade a ela, você a mata.
A verdade. Que coisa fodida é a verdade, às vezes. [...]” (SACHERI, 2011, p.152).
100
81
[…] Con Sandoval hablábamos mucho de todo el asunto de la violencia
política y de la represión. Sobre todo desde la muerte de Perón101 en
adelante. Ahora aparecían menos cadáveres en los descampados.
Evidentemente los asesinos habían perfeccionado su estilo. Trabajando en
la Justicia Criminal estábamos demasiado lejos de los hechos como para
saberlos al dedillo, pero lo suficientemente cerca como para intuirlos. No
hacía falta ser adivinos, tampoco. Todos los días veíamos detener gente,
por ahí. O nos llegaba el dato. Sin embargo esos detenidos jamás llegaban
a la alcaidía, jamás subían a declarar a los juzgados, jamás eran
trasladados después a Devoto o a Caseros.
–No sé. Alguna vez tendrá que enterarse.102 (SACHERI, 2010, p.231)
O diálogo que o personagem estabelece com seu amigo é interrompido para
uma pequena explanação de Chaparro sobre o modo como as informações com
respeito aos desaparecidos e mortos chegam a sua Secretaria. Uma vez mais ganha
destaque na narrativa de Sacheri a impunidade como marca de um lugar que recebe
detidos tão só por cumprir formalidades, sem declarações e registros, sem
encaminhamento algum ao cárcere.
No final da sequência, se retoma, nas palavras de Sandoval, a dúvida sobre
fazer chegar ou não à tia a violência desta verdade, que lhe pesa, sufoca e lhe tira
do trajeto que Chaparro toma como seguro a seu amigo, o de cruzar a rua Tucumán
até o lado de Córdoba, em direção a sua casa. A dor da perda, a certeza da
impunidade e a tormenta da dúvida sobre dar ou não esperanças a uma mãe que
perde seu filho conduzem Sandoval aos bares de sempre, de Paseo Colón ou da
Rua Venezuela, espécie de refúgio onde cabe a Chaparro ir buscar e trazer nos
braços de volta à realidade (a esta “verdad” que se quer esquecer) o seu melhor
funcionário e amigo.
Juan Domingo Perón (1895-1974), militar e político, exerceu a presidência argentina em três
períodos: de 1946 a 1952; de 1952 a 1955, interrompido pelo golpe militar deste ano; e, após dezoito
anos no exílio em Madrid, exerceu-a de 1973 até sua morte em 1974. Perón foi substituído por Isabel
Perón na presidência de 1974 a 1976. Neste último ano, Isabel Perón foi deposta pela Junta Militar
encarregada do chamado “Processo de Reorganização Nacional”, autodesignação dada à ditadura
militar argentina ocorrida entre 1976 e 1983.
(Ver AQUINO, Rubim Santos Leão de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme
Pahl Campos. História das sociedades americanas. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.)
102 Em português:
“[...] Sandoval e eu falávamos muito da questão toda da violência política e da repressão.
Sobretudo, da morte de Perón em diante. Agora apareciam menos cadáveres nos descampados.
Evidentemente os assassinos haviam aperfeiçoado seu estilo. Trabalhando na Justiça Criminal,
estávamos muito distantes dos fatos para sabê-los na ponta da língua, mas suficientemente próximos
para intuí-los. Também não precisávamos ser adivinhos. Todos os dias víamos deterem gente, aqui e
ali. Ou recebíamos a informação. No entanto esses detidos jamais chegavam à sala de custódia,
jamais subiam para depor nos juizados, jamais eram trasladados depois para Devoto ou para
Caseros.
– Não sei. Em algum momento ela terá que saber.” (SACHERI, 2011, pp. 152-153).
101
82
A professora e pesquisadora argentina Leonor Arfuch103 confirma a
recorrência do tema da violência política nas narrativas argentinas contemporâneas,
quando explica que
En los últimos años, y quizá confirmando que hay, en toda elaboración
colectiva de un pasado traumático, temporalidades de la memoria, fueron
apareciendo en la Argentina diversas narrativas en torno de la violencia
política de los años ’70, que no sólo abordaban la terrible experiencia de la
represión desatada por la última dictadura militar (1976-1983) sino que
también traían al debate, la rememoración o la ficción, la experiencia
guerrillera, tanto en sus primeras fases de campaña al norte del país, ya en
los tempranos años ’60, como en su radicalización urbana, antes y después
del pasaje a la clandestinidad de las agrupaciones armadas que se
consolidan en la década posterior.104 (ARFUCH, 2012, p.13).
O desaparecimento de Nacho, primo de Sandoval, atua na narrativa como um
importante momento que ilustra este diálogo entre o ficcional e o extra-ficcional no
romance de Sacheri. Como explicita Arfuch, a ficção também assume para si o tema
da violência política argentina, compondo também ela esse conjunto de narrativas
que tratam da repressão sob diferentes ângulos. Ainda sobre uma literatura
argentina que traz em si as marcas de um passado de repressão, a pesquisadora e
professora Ana Cecília Olmos105 sinaliza que
Sem poder se furtar a essa experiência histórica, a literatura colocou em
circulação uma diversidade de estratégias narrativas que trazem a um
primeiro plano a inevitabilidade dos vínculos que, em situações de exceção
social, se estabelecem entre o estético, o político e o ético. Trata-se de
vínculos irredutíveis seja porque a literatura se opõe à univocidade de um
poder hegemônico e se propõe como uma voz outra em substituição de um
campo político anulado; seja porque questiona as relações do estético com
o político que se sustentam numa lógica de expressão; seja porque convoca
a dimensão ética ao trazer à tona a relação nunca resolvida da violência e
ARFUCH, Leonor. Violencia política, autobiografía y testimonio. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio.
GINZBURG, Jaime. FOOT HARDMAN, Francisco. (Org.). Escritas da violência, vol.2: representações
da violência na história e na cultura contemporâneas da América Latina. Rio de Janeiro: 7Letras,
2012. p.13-23.
104 Em português: “Nos últimos anos, e talvez confirmando que há, em toda elaboração coletiva de
um passado traumático, temporalidades da memória, foram aparecendo na Argentina diversas
narrativas em torno da violência política dos anos ’70, que não só abordavam a terrível experiência da
repressão desatada pela última ditadura militar (1976-1983) mas que também traziam ao debate, à
rememoração ou à ficção, a experiência guerrilheira, tanto em suas primeiras fases de campanha ao
norte do país, já nos iniciados anos ’60, como em sua radicalização urbana, antes e depois da
passagem à clandestinidade das agrupações armadas que se consolidam na década posterior.”
(ARFUTH, 2012, p.13). (N. do T.)
105 OLMOS, Ana Cecília. Narrar na pós-ditadura (ou no potencial crítico das formas estéticas). In:
SELIGMANN-SILVA, Márcio. GINZBURG, Jaime. FOOT HARDMAN, Francisco (Org.). Escritas da
violência, vol.2: representações da violência na história e na cultura contemporâneas da América
Latina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p.133-142.
103
83
sua representação. Noutras palavras, uma leitura crítica dessa literatura
deve levar em conta que suas estratégias narrativas, para além das
particularidades estéticas de cada caso, concentram um potencial crítico
que, nos anos de terror, visou desestabilizar o silêncio imposto pelo
monopólio da voz do Estado e, nos anos posteriores, objetivou trabalhar
pela construção de uma memória crítica do passado imediato. (OLMOS,
Ana Cecília. 2012, p.133 – grifo nosso)
A autora fala de diferentes estratégias narrativas de amplo potencial crítico,
utilizadas por uma literatura que mantém vínculos indissolúveis com esferas
histórico-sociais. Em nossa leitura de La pregunta de sus ojos, entendemos que a
crítica sobre a violência de uma experiência histórica baseada no autoritarismo de
Estado se ergue a partir de episódios que se entremeiam no romance. Não formam
parte da narrativa enquanto cerne fundamental para o desenvolvimento da trama de
busca, mas surgem interpolados na trama maior. O diálogo entre os personagens
sobre o desaparecimento de Nacho não traz uma referência explícita à morte como
consequência do Terrorismo de Estado, mas, como antes dito, a dor de Sandoval,
compartilhada por Chaparro, se encarrega desta construção de uma memória crítica
por vias literárias.
Trazendo à luz uma vez mais a entrevista realizada com o escritor, Sacheri
chama a atenção para a necessidade de que este passado recente argentino seja
revisado por olhares que o problematizem. O escritor questiona os olhares simplistas
sobre um passado que não deve resumir-se a antagonismos limitadores e
facilitadores (ver apêndice B – pergunta 17) de uma Argentina que já se mostrava
violenta e corrupta antes mesmo do início da ditadura de 1976.
Walter Benjamin (1921)106 defende a importância de uma reflexão sobre o
tema da violência para que se construa um futuro social aceitável. Como coloca o
autor, correntes filosóficas já postulavam a utilização pela sociedade de meios
legitimados de violência para que se alcancem fins considerados justos pelo Poder.
Benjamin questiona esta legitimação de certos meios que se constituem de
violência, mas que são aceitos por se tratarem de meios para fins jurídicos, ou seja,
meios de violência utilizados para conservar os direitos instituídos pelo Poder
(BENJAMIN, 1995, p.18). Em contrapartida a esta agressão institucionalizada, o
autor defende a liberdade criativa como único caminho de superação desta violência
In: BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violencia. Trad. de Héctor A. Murena. Buenos Aires:
Editorial Leviatán, 1995.
106
84
sancionada como poder. Contra o rompimento da lei ou a violência criadora de
direitos de interesse do Poder, a liberdade criativa é aquela que cria estratégias
outras de negociação de conflitos humanos.
Neste estudo acreditamos que se pode identificar a trama de busca e de
memória como importantes estratégias criadoras em Eduardo Sacheri como meio de
reflexão do tema da violência, como clamado por Benjamin. A busca revela-se como
caminho para restaurar uma verdade ocultada e a memória aparece na obra como
eixo estruturante das ações dos personagens, que estão presos a seu passado e
têm o impulso de buscar sempre a algo. Entendemos que na obra de Sacheri o
mundo é representado como um lugar descomposto e desestruturado, com destaque
à Justiça, representada como uma instância falida que longe de atuar de acordo com
valores éticos em prol dos desfavorecidos, se apresenta ao leitor enquanto
instituição deteriorada que oculta a verdade.
Tal como colocado por Benjamin quando fala de uma liberdade criadora, em
Sacheri a obra literária responde esteticamente a agressão de uma sociedade de
história desordenada, que necessita encontrar sua verdade e ter sua memória
organizada para seguir em frente. Ou seja, neste estudo entendemos que o motivo
agressor107 presente na obra do escritor – a violação da lei – encontra uma resposta
em Sacheri na trama de busca enquanto estratégia discursiva e estética. A trama de
busca e o tratamento da memória, desta forma, surgem como reação criativa a este
entorno de recordações distorcidas, que merecem ser refletidas, tal como o faz
Benjamín Chaparro, por meio da escritura.
Explicamos que a noção de reação estética às agressões do entorno conforma a Teoria de
Motivos e Estratégias, de Ángel Berenguer.
107
85
3.2
OS
ESPAÇOS
REPRESENTADOS
E
SEUS
SIGNIFICADOS
NO
ROMANCE: ESPAÇOS DO CRIME E ESPAÇOS DA JUSTIÇA
A leitura do tema da violação da lei em La pregunta de sus ojos pode ser
viabilizada se também consideramos os significados que os espaços possuem na
obra de Eduardo Sacheri. Antes de refletirmos a significação destes espaços na
narrativa, como vimos, este trabalho parte da aceitação de que o romance
apresenta, quanto à sua forma, uma trama de busca.
Resgatando mais uma vez os aspectos da trama elencados por Ronald B.
Tobias (1999), vale observar que uma das características da trama de busca é que
“la acción es muy abundante; los protagonistas están siempre en movimiento,
explorando, buscando.”108 (TOBIAS, 1999, p.82). Se Chaparro é impulsionado a
fazer justiça ao caso de Liliana Colotto, sua atuação ao longo da obra, como aqui já
apontamos, é a responsável por permitir que conflitos inerentes à sociedade
argentina sejam colocados em xeque na narrativa. Sob tal ótica, a ação está em
constante movimento em função dos distintos cenários pelos quais transita o
personagem. Em sua busca pela verdade, Chaparro percorre os rincões de uma
Buenos Aires de encontros marcados e colisões inesperadas, de ruas rotineiras e de
vielas desconhecidas, das paredes da Secretaria de toda uma vida e dos recônditos
e ignorados arquivos nacionais.
Para uma melhor reflexão do tema da violação da lei a partir de uma leitura
dos espaços que compõem o romance, este estudo parte do conceito de cronotopo
erigido pelo pesquisador russo Mikhail Bakhtin (1989). De acordo com Bakhtin, o
conceito trata-se de uma metáfora que faz referência à conexão essencial existente
entre tempo e espaço, vinculação esta assimilada artisticamente pela literatura.
Segundo o teórico, ambos (tempo e espaço) têm seu aspecto indissolúvel
representado no conceito cronotopo, elemento figurativo de um “todo inteligible y
concreto”109 (1996, p.63). Para o autor,
El tiempo se condensa aquí, se comprime, se convierte en visible desde el
punto de vista artístico; y el espacio, a su vez, se intensifica, penetra en
el movimiento del tiempo, del argumento, de la historia. Los elementos
de tiempo se revelan en el espacio, y el espacio es entendido y medido a
108 Em português: “a ação é muito abundante; os protagonistas estão sempre em movimento,
explorando, buscando.” (TOBIAS, 1999, p.82). (N. do T.)
109 Em português: “todo inteligível e concreto” (BAKHTIN, 1996, p.63). (N. do T.)
86
través del tiempo. La intersección de las series y uniones de esos elementos
constituye la característica del cronotopo artístico.110 (BAKHTIN, 1996, p.63,
grifo nosso)
No que tange à análise dos espaços de La pregunta de sus ojos, confirma-se
o colocado por Bakhtin quando o autor afirma que o espaço se intensifica no
movimento do tempo. O tempo da ação no romance de Sacheri abarca um espaço
temporal de quase três décadas, se tomamos por ponto de partida o assassinato da
jovem Liliana Colotto e por término temporal a revelação dada pela carta do viúvo
Ricardo Morales a Benjamín Chaparro. Em consonância com o transcorrer dos anos,
o protagonista circula por distintos espaços e perfaz um caminho de idas e vindas
por uma Argentina de distintas temporalidades.
É sabido que um personagem atua sempre em um determinado lugar e em
um tempo específico, cronotopo espaço-temporal que chega ao leitor definido pela
voz que narra. Como vimos no capítulo sobre as vozes do romance, La pregunta de
sus ojos conta com a presença de dois focalizadores distintos: um focalizador interno
(o próprio personagem Benjamín Chaparro, que se dispõe a narrar a história de
Morales) e um FE – focalizador externo (a voz onisciente, que em 3ª pessoa narra
as ações de um Chaparro amadurecido com o passar dos anos). Em um olhar
comparativo, vale observar que, ainda que a partir de pontos de vista distintos, as
descrições espaciais feitas pelo FE não destoam daquelas feitas pelo personagemnarrador, posto que as descrições realizadas pelo narrador externo se efetivam
muito em função das recordações do próprio Chaparro, percepções íntimas, mas
que chegam a nós graças ao caráter onisciente da voz deste narrador externo.
No que diz respeito a nossa metodologia de leitura e com o objetivo de
analisar de maneira mais sistemática e proveitosa os muitos espaços que compõem
a narrativa, nosso estudo privilegiou uma divisão destes espaços por grupos
semânticos. Espaços múltiplos e significativos, que partem do âmbito do privado e
mais restrito (a casa de Chaparro; a Secretaria de Instrução; a pensão onde
Chaparro se refugia quando é perseguido; a sala da Juíza Irene; a prisão de Villa
Devoto; o living da casa onde o personagem escreve) a espaços corriqueiros e
Em português: “O tempo se condensa aqui, se comprime, se converte em visível desde o ponto de
vista artístico; e o espaço, por sua vez, se intensifica, penetra no movimento do tempo, do argumento,
da história. Os elementos de tempo se revelam no espaço, e o espaço é entendido e medido através
do tempo. A interseção das séries e uniões desses elementos constitui a característica do cronotopo
artístico.” (BAKHTIN, 1996, p.63, grifo nosso) (N. do T.)
110
87
abertos ao público (o bar onde Chaparro e Morales se encontram; a cafeteria de
encontro com o oficial inspetor Báez; os bares da Estação de Once; as ruas de
Buenos Aires). Nesta medida, para uma melhor reflexão sobre como os espaços são
significativos para a leitura de temas como a violação da lei e a violência no romance
de Sacheri, partiremos de uma classificação semântica dos mesmos com base numa
divisão entre “espaços do crime” versus “espaços de justiça”.
De antemão, explicamos que, em nossa leitura, os “espaços do crime” são
aqueles que, ao longo da trama, aparecem como cenário de atuação de
personagens conectados à violação da lei ou que agem de forma desfavorável à
solução do crime da morte de Liliana. Por sua vez, “espaços de justiça” são os
espaços que atuam, cada qual a seu modo, contra esta violação e contribuem para a
busca pela verdade empreendida na narrativa. Este estudo também levanta a
possibilidade de nomear “espaços híbridos”, haja vista o duplo caminho de leitura
como lugares de crime e de justiça, de acordo com as características do espaço que
se ressaltam. Ressalvas feitas, a seleção realizada por este estudo prioriza a análise
de três espaços que se mostram fundamentais em nossa leitura do tema da violação
da lei e da violência na narrativa: a prisão de Devoto, a Secretaria de Instrução e o
Arquivo Central de Buenos Aires.
A leitura aqui realizada inicia-se pela apresentação, no romance, da
Carcelaria de Villa Devoto. Após confissão na Secretaria de Instrução feita ao
próprio Chaparro e a seu amigo Sandoval, o suspeito pela morte de Liliana – Isidoro
Antonio Gómez – é detido na prisão de Devoto, onde é quase morto por outros
presos. Ainda debilitado, o personagem é então chamado dentro da prisão por
Peralta (personagem que posteriormente o leitor descobre tratar-se de Pedro
Romano, inimigo de Chaparro) para prestar-lhe um serviço. O cenário de encontro –
uma sala escura de uma ala restrita aos presos – apela para um clima de sigilo e
ilegalidade. Em conversa com o Inspetor Báez, personagem que, como vimos,
exerce o papel de investigador na trama policial de La pregunta, Chaparro descobre
que Isidoro consegue ser libertado da prisão para atuar como instrumento de
vingança de Pedro Romano contra ele.
Gómez se ha salvado. Pero aquí tenemos la primera curiosidad, porque...
¿sabe dónde consta todo este incidente de la riña, los heridos y la mar en
coche? En ningún lado. A ninguno de los dos heridos lo remiten al hospital.
Los atienden ahí nomás, en la enfermería del Penal. No hay una sola
88
actuación administrativa, ni la declaración de un solo guardia, ni de un solo
preso. Lo que hay, lo único que hay en el legajo de Gómez, es una orden de
traslado a otro pabellón, dos semanas más tarde, cuando al tipo le dan alta.
[…] Lo que termina pasando es que lo envían al pabellón de delitos
políticos. Acá le confieso que me desorienté feo: ¿qué podía tener que ver
Gómez y su asesinato pasional con todos esos tipos de las FAR, el ERP, los
Montoneros? Y encima esos presos estaban a disposición del fuero
especial, y no del fuero penal común de los otros, ¿me sigue? Gómez no
tiene nada que ver con eso, me dije.111 (SACHERI, 2010, p.208).
A saída de Gómez da prisão de Devoto é um dos casos que mais ilustram o
tratamento da violação da lei pela narrativa. Primeiramente no que diz respeito ao
incidente de briga dentro da prisão, já que não há qualquer espécie de registro
policial ou em hospitais do caso. Logo, Gómez é recrutado como informante pelo
centro de inteligência criado para delatar, dentro do pavilhão de presos políticos, os
envolvidos com as guerrilhas contra o governo. Em seguida, o assassino confesso e
preso por homicídio consegue deixar a prisão em uma Anistia dada a estes presos
políticos:
[…] Pero si llegó vivo hasta mayo en ese pabellón tan mal no lo habrá
hecho. ¿Por qué no seguir usándolo afuera? Así que el procedimiento para
sacarlo es sencillísimo. En realidad, no hay tal procedimiento. Se hace solo.
Cuando los detenidos que saben que van a salir con la amnistía armen las
listas, van a incluirlo también a Gómez con todo gusto y con todos los
honores. Y, si no, igual no hay problema. Lo agrega al pie la gente de
Peralta, y listo.112 (SACHERI, 2010, p. 210).
Ainda que permita uma leitura como espaço de realização de justiça, tendo
em vista que atua, em sua definição, como lugar de detenção dos que cometeram
Em português: “Gómez se salvou. Mas aqui temos a primeira curiosidade, porque... sabe onde
consta esse incidente da briga, dos feriados e tudo o mais? Em lugar nenhum. Nenhum dos feridos é
mandado para o hospital. São atendidos ali mesmo, na enfermaria do presídio. Não há um só registro
administrativo, nem o depoimento de um só guarda, nem de um só preso. O que há, a única coisa
que há na papelada de Gómez, é uma ordem de transferência para outro pavilhão, duas semanas
depois, quando ele recebe alta. [...] O que acaba acontecendo é que o enviam ao pavilhão de presos
políticos. A essa altura, confesso que me desorientei pacas: o que Gómez e seu assassinato
passional podiam ter a ver com todos aqueles caras das FAR, do ERP*, dos Montoneros? E ainda por
cima esses presos estavam à disposição do foro especial, e não do foro penal comum dos outros,
está me acompanhando? Gómez não tinha nada a ver com isso, pensei.” (SACHERI, 2011, p.136137)
* Siglas de Fuerzas Armadas Revolucionarias e Ejército Revolucionario del Pueblo. (Nota da edição
de 2011).
112 Em português: “[...] mas, se chegou vivo até maio naquele pavilhão, não deve ter trabalhado muito
mal. Então, por que não continuar a usá-lo lá fora? O procedimento para soltá-lo é muito simples. Na
verdade, não existe esse procedimento. A coisa anda sozinha. Quando os detidos que sabem que
vão sair com a anistia fizerem as listas, vão incluir Gómez com todo o gosto e com todas as honras.
E, se não incluírem, também não há problema. O pessoal de Peralta acrescenta o nome dele no pé
da página, e pronto.” (SACHERI, 2011, p.138).
111
89
infrações contra a sociedade, a Prisão de Devoto, em La pregunta de sus ojos, é
descrita como um “espaço do crime”, quando se considera a violação da lei no que
tange à corrupção do sistema judiciário verificada nas negociações feitas dentro do
cárcere e no que diz respeito à própria liberdade de Isidoro, um retrocesso na
investigação e na solução do caso da morte de Liliana Colotto.
A reflexão aqui feita dos espaços representados em La pregunta de sus ojos
parte agora à análise da descrição da Secretaria de Instrução em que Chaparro
trabalha. Grande parte da narrativa transcorre neste espaço. É este o lugar em que o
personagem vê Irene por primeira vez e que passa anos tentando encontrá-la e
esquecê-la. É o lugar em que Chaparro vê sua vida transformada quando, às oito e
cinco da manhã do dia 30 de maio de 1968, lhe chega a notificação policial do
homicídio de uma jovem, a qual é obrigado a averiguar.
Sube las escalinatas de Talcahuano. Todavía no han cerrado la puerta
principal. Se trepa al primer ascensor que tiene a tiro. No necesita aclararle
al ascensorista que va al quinto piso, porque en el Palacio lo conocen hasta
las piedras.
Avanza a paso firme, haciendo ruido con los mocasines de suela
sobre las baldosas blancas y negras del pasillo que corre paralelo a la calle
Tucumán hasta encararse con la alta y angosta puerta de su Secretaría.113
(SACHERI, 2010, p.11 – Capítulo “Despedida”)
As descrições feitas na narrativa deixam bem marcado o longo tempo de vida
que Chaparro passa em sua Secretaria. A adjetivação enfatiza a magnitude
espacial, com destaque dado à escadaria do Palácio da Justiça situado na rua
Talcahuano. Lugar de manifestações públicas, a escadaria da Suprema Corte
representada na narrativa de Sacheri também surge como palco de acontecimentos
históricos, como exemplo das inúmeras greves contra as políticas aplicadas pelo
governo de Carlos Menem114 na década de 90 no país:
Em português: “Sobe a escadaria que dá para a Talcahuano. Ainda não fecharam a porta
principal. Entra no primeiro elevador que chega. Não precisa esclarecer ao ascensorista que vai para
o quinto andar, porque no palácio até as pedras o conhecem.
Avança, em passo firme, fazendo ruído com os mocassins sobre os ladrilhos brancos e pretos
do corredor que segue paralelo à rua Tucumán, até topar com a porta estreita e alta de sua
Secretaria.” (SACHERI, 2011, p.8)
114 Carlos Menem (1930) exerceu seu mandato de 1989 a 1995 e, após sua reeleição neste ano,
seguiu na presidência até 1999. Sua política presidencial foi marcada pelo intenso aumento do
desemprego, gerador de inúmeras greves e protestos sindicalistas. (Ver AQUINO, Rubim Santos
Leão de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das
sociedades americanas. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007).
113
90
El 26 de septiembre de 1996 era un jueves como cualquier otro, excepto tal
vez por el batifondo que venía de la calle. Desde las doce comenzaba la
primera huelga general contra el gobierno de Carlos Menem, y una columna
del sindicato de judiciales metía bochinche con algún que otro petardo,
mientras se concentraba en las escalinatas de la calle Talcahuano.115
(SACHERI, 2010, p.283).
Vale observar que, seja como trajeto que conduz o personagem a seu lugar
de trabalho ou como caminho de acesso ao mundo de fora da Secretaria, as
escadarias do Palácio aparecem em diferentes instantes da narrativa, incluindo o
momento de desfecho em que Chaparro se recobre de coragem para finalmente
confessar o seu amor à juíza:
Por eso se pone finalmente en movimiento y sube saltando de dos en dos
los escalones de la entrada de Lavalle. Toma el ascensor hasta en quinto
piso. Camina a grandes trancos por el pasillo de baldosas blancas y negras
dispuestas en rombo.116 (SACHERI, 2010, p.315 – Capítulo “Devolución”).
É também na janela de sua Secretaria de Instrução que Chaparro se debruça
todas as vezes que seu companheiro e funcionário Pablo Sandoval sai do escritório,
para atestar se seu amigo cruza a rua Tucumán em direção a sua casa em Viamonte
ou se segue em direção a um dos muitos bares da rua Venezuela:
– Me voy – Sandoval se puso de pie de repente, se colocó el saco y caminó
hacia la puerta–. Nos vemos.
“La puta madre”, pensé. Otra vez. Abrí la ventana y esperé. Pasaron
varios minutos, pero Sandoval no cruzó Tucumán hacia Viamonte. Me sentí
un poco culpable: “una inundación en la India deja cuarenta mil muertos,
pero, como no los conozco, me angustia más la salud de mi tío que tuvo un
infarto”. En algún regimiento, en alguna comisaría, a Nacho lo estaban
reventando a golpes de puño y de picana. Pero yo no me angustiaba tanto
por él como por su primo Pablo, que era mi amigo y pretendía
emborracharse hasta quedar en coma.
¿Yo era el egoísta o todos lo éramos? Me consolé pensando que por
Sandoval podía hacer algo, y por su primo Nacho, no. ¿Era así? Decidí
darle la ventaja habitual: tres horas antes de salir a buscarlo. Me senté a
corregir una prisión preventiva. Decidí que fueran dos horas. Tres tal vez
fuesen demasiadas.117 (SACHERI, 2010, p.231-232).
Em português: “O dia 26 de setembro de 1996 era uma quinta-feira como qualquer outra, exceto
talvez pela algazarra que vinha da rua. A partir das doze começava a primeira greve geral contra o
governo de Carlos Menem, e uma facção do sindicato dos judiciários provocava tumulto com uma ou
outra bomba, enquanto se concentrava na escadaria da calle Talcahuano.” (SACHERI, 2011, p.187).
116 Em português: “Por isso, finalmente se põe em movimento e sobe pulando de dois em dois os
degraus da entrada da Lavalle. Toma o elevador até o quinto andar. Caminha em grandes passadas
pelo corredor de ladrilhos brancos e pretos dispostos em losango.” (SACHERI, 2011, p.209).
117 Em português: “– Estou indo. – Sandoval se levantou de repente, vestiu o paletó e caminhou em
direção à porta. – A gente se vê.
115
91
É interessante notar que, ainda que Benjamín Chaparro saiba o quanto
aquele ambiente é recorrente em sua biografia e integra sua própria história de vida,
o personagem sente alguma espécie de incômodo quando pensa que sua imagem
pode estar vinculada de forma previsível àquele espaço:
Antes de abrir el sobre, volví a mirar el destinatario. Era yo, sin duda.
“Benjamín Miguel Chaparro. Juzgado Nacional de Primera Instancia en lo
Criminal de Instrucción nº 41, Secretaria nº 19”. ¿Cómo sabía Morales que
iba a encontrarme allí? Me disgustó un poco ese envío intempestivo,
aunque… ¿qué era exactamente lo que me molestaba? De hecho no lo
hacía responsable por mi huida desesperada de 1976. Al respeto siempre
tuve claro que eso se lo debía al malparido de Romano. ¿Me perturbaba
que me escribiese tantos años después? Tampoco. Guardaba de él un
recuerdo afable, casi cariñoso. ¿Qué era entonces? Demoré un rato en caer
en la cuenta de que lo que verdaderamente me ofuscaba era ser tan
previsible, tan monótono, tan igual a mí mismo, como para que alguien
pudiera ubicarme en el mismo Juzgado, la misma Secretaría, el mismo
cargo y el mismo escritorio dos décadas después de nuestro último
contacto.118 (SACHERI, 2010, p. 283-284).
A partir da reflexão feita nesta pesquisa sobre a representatividade dos
espaços dentro da narrativa e sua vinculação com o tema da violação da lei, a
Secretaria de Instrução pode ser lida enquanto “espaço de Justiça”, se a
entendemos como lugar de investigação e busca por solução de fatos encarados
como delito. O objetivo de uma Secretaria de Instrução, em tese, é o de garantir o
direito de defesa aos que são alvo de processos de investigação e o direito de
proteção às vítimas envolvidas nos delitos em questão. No entanto, em La pregunta
‘Puta merda’, pensei. Outra vez. Abri a janela e esperei. Passaram-se vários minutos, mas
Sandoval não atravessou a Tucumán em direção à Viamonte. Me senti meio culpado: ‘Uma
inundação na Índia deixa quarenta mil mortos, mas, como não os conheço, me angustia mais a saúde
do meu tio que teve um infarto.’ Em algum regimento, em alguma delegacia, estavam arrebentando
Nacho a socos e choques elétricos. Mas eu não me angustiava tanto por ele quanto por seu primo
Pablo, que era meu amigo e pretendia se embebedar até entrar em coma.
Eu era egoísta, ou todos éramos? Me consolei pensando que por Sandoval podia fazer algo,
mas por seu primo Nacho, não. Era assim? Decidi dar a ele a vantagem habitual: três horas antes de
sair à sua procura. Me sentei para corrigir uma prisão preventiva. Resolvi que seriam duas horas.
Três talvez fossem demais.” (SACHERI, 2011, p.153).
118 Em português: “Antes de abrir o envelope, voltei a olhar o destinatário. Era eu, sem dúvida.
‘Benjamín Miguel Chaparro. Juizado Nacional de Primeira Instância no Criminal de Instrução nº41,
Secretaria nº19’. Como Morales sabia que ia me encontrar ali? O envio imprevisto me chateou um
pouco, embora... o que me incomodava, exatamente? Na verdade, eu não o responsabilizava pela
minha fuga desesperada em 1976. Sempre tivera muito claro que isso se devia ao escroto do
Romano. O fato de ele me escrever tantos anos depois me perturbava? Também não. Minha
lembrança de Morales era afável, quase carinhosa. O que era, então? Demorei um pouco a me dar
conta de que verdadeiramente o que me aborrecia era o fato de eu ser tão previsível, tão monótono,
tão igual a mim mesmo, a ponto de alguém poder me localizar no mesmo Juizado, na mesma
Secretaria, no mesmo cargo e na mesma escrivaninha, duas décadas depois de nosso último
contato.” (SACHERI, 2011, p.187).
92
de sus ojos, a Secretaria também pode ser refletida como um dos “espaços do
crime”, se se considera a crítica feita no romance de seus escalões internos e a
violação da lei por parte dos funcionários integrantes das Secretarias Judiciais.
Um episódio muito representativo no romance diz respeito à falsa solução ao
crime a partir da culpabilização de inocentes. A violação dos direitos a partir da
violência física e moral aos pedreiros que trabalhavam no apartamento adjacente ao
da jovem se apresenta na obra enquanto ato corriqueiro naquele espaço onde a lei e
os direitos humanos deveriam ser preservados. Personagens que deveriam
salvaguardar a lei aproveitam-se de suas posições para interferir a seu bel prazer
nos rumos da investigação do crime de Liliana.
– Los tengo listos para declarar – [Sicora] blandió dos carpetas de cartulina
de las que asomaban unas cuantas actuaciones –. Sebastián Zamora.
Paraguayo, 38 años. Albañil. Vive en los Polvorines. El otro es José Carlos
Almandós, 26 años. También albañil. Este por lo menos es argentino, pero
vive en Ciudad Oculta.119 (SACHERI, 2010, p.55).
Se Chaparro manipula seus superiores e, de maneira engenhosa, consegue
assinaturas de forma a postergar o arquivamento do caso, o faz como modo de
sanar um mal feito por membros da Justiça contra inocentes. De fato, a vinculação
de Chaparro no caso da jovem se concretizou a partir deste episódio de violência
contra os pedreiros. Em última instância, se o personagem antes havia se
compadecido do viúvo, a violência cometida serve de estopim para que Chaparro
decida agir mais intensamente em prol da solução do crime.
É esta falsa solução dada à morte da jovem Liliana Colotto pelos personagens
Sicora e Pedro Romano, investigador oficial e um dos secretários de Instrução da
Secretaria adjacente a de Chaparro, que nos aponta a corrupção destes
personagens representantes da Justiça na narrativa. Tal como o Juiz Fortuna
Lacalle, Pedro Romano é descrito pelo próprio Chaparro como um homem inferior
intelectualmente e de sentimentos baixos e mesquinhos:
[Pedro Romano] Acababa de colgar el teléfono. Lo había visto alternando
unas cuantas exclamaciones vociferadas (para que a nadie le quedasen
dudas de que se traía entre manos algo muy importante) con largas
119 Em português: “– Estão prontos para depor – disse ele, erguendo duas pastas de cartolina das
quais surgiam alguns autos. – Sebastián Zamora. Paraguaio, 38 anos. Pedreiro. Mora em Los
Polvorines. O outro é José Carlos Almandós, 26 anos. Também pedreiro. Este pelo menos é
argentino, mas mora em Ciudad Oculta.” (SACHERI, 2011, p.38).
93
parrafadas en un susurro conspirativo. En mi distracción inicial me había
preguntado para qué cuernos venía a hablar por teléfono a mi Secretaría en
lugar de quedarse en la suya. Cuando vi que el juez Fortuna estaba en el
despacho del secretario Pérez, entendí que Romano pretendía lucirse. […]
Me causaba más gracia que fastidio que Romano pugnara por deslumbrar a
nuestros superiores. No tanto por el intento de lucimiento ante el cual
Romano pretendía destacarse. Hacerse el empleado modelo delante de un
juez podía resultarme ligeramente patético, pero hacerlo sin advertir que el
juez en cuestión era un idiota de marca mayor que no iba a notar ese
lucimiento me dejaba sin palabras. Más allá de eso, que una vez terminada
su conversación telefónica Pedro Romano me dijese que el caso estaba
resuelto, alargándome un papel con dos nombres escritos y mirándome con
cara de “acá te hice el favor aunque no me corresponde porque la causa es
de tu Secretaría”, me sorprendió profundamente.
– Albañiles. Están trabajando en el departamento tres. Cambiando los
pisos.
Al parecer Romano consideraba que el estilo telegráfico, salpicado de
silencios teatrales, aumentaba el dramatismo de su primicia. Me pregunté
cómo un tipo tan limitado había llegado a ser prosecretario. Me respondí
que un buen casamiento obra milagros. Su mujer no era particularmente
linda, ni particularmente simpática, ni particularmente inteligente. Pero era
particularmente hija de un coronel de infantería, y eso en la Argentina de
Onganía era un mérito sobresaliente. Evoqué la ceremonia del casamiento,
plagada de gorras verdes, y creció mi fastidio.120 (SACHERI, 2010, p. 51).
O fragmento acima se revela como um dos instantes na narrativa de
referência clara ao período histórico denominado “Revolución Argentina” (19661973)121. O governo de Juan Carlos Onganía (1966-1970) surge no romance como
Em português: “[Pedro Romano] Acabava de desligar o telefone. Eu o vira mantendo uma
demorada conversana qual havia alternado algumas exclamações berradas (para que ninguém
duvidasse de que ele tinha nas mãos algo muito importante) com longas frases pronunciadas num
sussurro conspiratório. Em minha distração inicial, eu tinha me perguntado por que diabos ele vinha
falar ao telefone na minha Secretaria, em vez de permanecer na sua. Quando vi que o juiz Fortuna
estava no gabinete do secretário Pérez, entendo que Romano pretendia se exibir. […] achava mais
engraçado do que irritante o empenho de Romano em deslumbrar nossos superiores. Não tanto pela
tentativa de exibição quanto pela qualidade moral e intelectual do superior ante o qual Romano
pretendia se destacar. Bancar o funcionário-modelo diante de um juiz podia me parecer ligeiramente
patético, mas fazer isso sem perceber que o juiz em questão era um idiota de marca maior, que não
ia notar esse brilho, me deixava sem palavras. Afora isso, o fato de, terminada sua conversa
telefônica, Pedro Romano me dizer que o caso estava resolvido, estendendo-me um papel com dois
nomes escritos e me olhando com cara de ‘fiz um favor a você, embora não me caiba, porque o
inquérito é de sua Secretaria’, me surpreendeu profundamente.
– Pedreiros. Estão trabalhando no apartamento três. Trocando o piso.
Aparentemente, Romano considerava que o estilo telegráfico, salpicado de silêncios teatrais,
aumentava a dramaticidade da notícia. Me perguntei como um indivíduo tão limitado havia chegado a
ser vice-secretário. E me respondi que um bom casamento faz milagres. Sua mulher não era
particularmente bonita, nem particularmente simpática, nem particularmente inteligente. Mas era
particularmente filha de um coronel de infantaria, e isso, na Argentina de Onganía, era um mérito
destacável. Evoquei a cerimônia do casamento, lotada de quepes verdes, e minha irritação cresceu.”
(SACHERI, 2011, p.35-36).
121 A ditadura militar argentina, deflagrada pelo golpe militar no ano de 1966 e com término em 1973,
foi denominada pelos próprios militares como “Revolução Argentina”. Constituiu-se dos governos de
três militares, a saber, Juan Carlos Onganía (de 1966 a 1970), período referido em La pregunta de
sus ojos; Roberto Marcelo Levingston (de 1970 a 1971) e Alejandro Agustín Lanusse (de 1971 a
120
94
época de explícito nepotismo militar, representado em La pregunta de sus ojos
através da posição ascendida por Pedro Romano no escalão judiciário, alcançada
após ter se casado com a filha de um coronel de infantaria. Desta forma, esta falsa
solução dada prontamente ao caso por Pedro Romano, quando a culpa da morte é
lançada, com provas falsas, sobre dois pedreiros que trabalhavam em um
apartamento contíguo ao que vivia o casal, ilustra de forma clara o tratamento da
violação da lei pela narrativa de Sacheri.
De acordo uma vez mais com o teórico Ronald B. Tobias,
El protagonista […] irá de un sitio a otro en pos del objeto de su deseo,
atravesando una serie de acontecimientos a lo largo del camino. Estos
acontecimientos deben relacionarse de algún modo con la consecución del
objetivo final. El protagonista debe inquirir por los caminos, hallar y descubrir
pistas y pagar una entrada por el precio de admisión.122 (TOBIAS, 1999,
p.83)
Como se viu com o episódio de libertação de Isidoro Gómez da prisão, o
protagonista de La pregunta de sus ojos, ao envolver-se com a investigação do caso
de Liliana Colotto, sofre com os efeitos de suas decisões. Por opor-se a um
funcionário de relações que lhe parecem duvidosas (um funcionário casado com a
filha de um coronel de Infantaria, ou seja, um possível envolvido com os militares),
Chaparro é exposto a complicações que surgem ao longo do romance como
consequência de seus atos. Denuncia a funcionários superiores por abuso de poder
e precisa fugir de Buenos Aires por isso, ou seja, no caminho de sua busca pela
verdade, paga um preço por suas decisões, como nos coloca Ronald B. Tobias.
No mais, tal como ocorre na caracterização de Romano, a adjetivação
utilizada na descrição dos funcionários da Secretaria salienta a falta de qualidades
intelectuais e morais destes servidores. Decisões que deveriam ser tomadas com
total responsabilidade e após intensa apuração de fatos são antes um indício da
arbitrariedade das ações destes personagens representantes da Justiça na
narrativa:
1973). (Ver AQUINO, Rubim Santos Leão de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar
Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007).
122 Em português: “O protagonista […] irá de um lugar a outro detrás do objeto de seu desejo,
atravessando uma série de acontecimentos ao longo do caminho. Estes acontecimentos devem estar
relacionados de algum modo com a obtenção do objetivo final. O protagonista deve inquirir pelos
caminhos, encontrar e descobrir pistas e pagar uma entrada pelo preço de admissão.” (TOBIAS,
1999, p.83) (N. do T.)
95
El oficial ayudante Sicora, de Homicidios, era un especialista en escabullirse
el bulto al trabajo. Odiaba contactar gente, aborrecía caminar la calle,
detestaba el laburo propio de un investigador. O sea, su único parecido con
Báez estaba, creo, en el blanco del ojo. Sicora armaba sus hipótesis desde
el living de su casa, encajándole el sambenito de homicida al primer perejil
que se ponía a tiro.123 (SACHERI, 2010, p. 52)
Como antes dito, se o papel de uma Secretaria é o de garantir o direito de
defesa dos investigados, no romance o que se percebe é a representação de um
espaço outro. A lei é violada quando os possíveis culpados são alvo de violência
moral, enquanto vítimas de um forte discurso preconceituoso e de violência física,
quando são espancados para que declarações convenientes aos funcionários da
Secretaria sejam dadas:
Caminé por un pasillo hacia el que daban las rejas de cuatro pares de
celdas. Nos detuvimos frente a la última de la izquierda. No había olor a
comida. El agente maniobró con la puerta, que se abrió con un chirrido. La
luz estaba encendida. Dos hombres yacían acostados en los camastros que
ocupaban las paredes laterales. Uno dormía y ni se movía cuando
entramos. El otro, que permanecía acostado boca arriba y que se tapaba la
cara con los brazos recogidos, giró el cuerpo para vernos. Saludé y el otro
farfulló una respuesta. Nos miramos un instante.
– Llame a Sicora –ordené al agente que me acompañaba. Dudó.
– No puedo dejarlo solo en la celda.
Me tenían harto. Alcé la voz cuando insistí.
– Llámelo o usted también se va a comer un sumario.
El policía salió. Decidí tratar de que la rabia y el espanto no se me
colaran en la voz:
– ¿Cómo se siente?
El otro pareció sonreír, por debajo de la costra de sangre seca que le
cubría el rostro bajo la nariz. Le faltaban dos dientes delanteros, y estuve
seguro de que la pérdida era reciente. Como pudo, el hombre se las
compuso para decirme que ahora le dolía un poco menos, pero que a su
compadre le habían pegado muchas patadas en las costillas, y que había
estado llorando hasta conseguir dormirse, rato atrás.124 (SACHERI, 2010,
p.58).
Em português: “O oficial auxiliar Sicora, da Homicídios, era um especialista em tirar o cu da reta.
Odiava entrar em contato com as pessoas, abominava caminhar pela rua, detestava o trabalho
próprio de um investigador. Ou seja, sua única semelhança com Báez estava, creio, no branco do
olho. Sicora armava suas hipóteses plantado na sala de sua casa, tachando de homicida o primeiro
coitado ao seu alcance.” (SACHERI, 2011, p.36).
124 Em português: “Caminhei por um corredor para o qual davam as grades de quatro pares de celas.
Paramos em frente à última da esquerda. Não havia cheiro de comida. O agente manobrou com a
porta, que se abriu com um rangido. A luz estava acesa. Dois homens jaziam nos catres encostados
às paredes laterais. Um dormia e nem se mexeu quando entramos. O outro, que permanecia deitado
de costas e cobria o rosto com os braços dobrados, girou o corpo para nos ver. Cumprimentei, e ele
gaguejou uma resposta. Nos fitamos por um instante.
– Vá chamar Sicora – ordenei ao agente que me acompanhava. Ele hesitou.
– Não posso deixar o senhor sozinho na cela.
Eu já estava de saco cheio. Insisti, levantando a voz:
– Chame, ou também vai encarar um processo
O policial sair. Decidi tentar que a raiva e o horror não impregnassem minha voz:
123
96
Em última instância, percebe-se que o episódio de acusação contra os
pedreiros pela morte de Liliana Colotto tem papel fundamental dentro da narrativa,
posto que atua como um dos elementos de motivação que levam o personagem
Benjamín Chaparro a atuar. Como nos coloca Ronald B. Tobias, na trama de busca,
“[...] hay que dotar a los personajes de un fuerte deseo de ir hacia algún lugar, de
hacer algo.”125 (TOBIAS, 1999, p.86). É este desejo do personagem de encontrar o
que procura que o faz deixar sua inércia e seguir ao encontro do objeto de sua
busca. Se Chaparro se via pouco a pouco envolvido com o sofrimento de Morales, a
acusação falsa aos pedreiros integra a obra enquanto outro incidente motivador
relacionado à morte da jovem Liliana, ou seja, como fato que impulsiona Chaparro a
buscar justiça ao caso como forma de minimizar a injustiça cometida por outro
funcionário judicial.
Trazendo à luz uma vez mais a máxima backtiniana de que o espaço se
intensifica no movimento do tempo, a rigor, é neste transcorrer temporal e na
exploração de novos espaços pela narrativa que os funcionários da Secretaria vão
revelando-se a partir de seus próprios atos. Com as decisões e caminhos elegidos
por estes personagens, os espaços que estes ocupam enchem-se de significação e
intensidade dentro do romance, como exemplo da própria Secretaria de Instrução
aqui analisada, que de início mostra-se como local de trabalho corriqueiro, mas que
logo se revela como lugar para o desenvolvimento da trama, haja vista que decisões
são tomadas naquele espaço, que ações desenvolvidas em toda trama têm seu
início na Secretaria e que ali personagens desvelam-se a partir de seus próprios
atos e das decisões que tomam diante do fato maior do crime da jovem.
O terceiro espaço analisado em sua relação com o tema da violação da lei no
romance é o Archivo General da cidade de Buenos Aires. De início, a descrição do
lugar demarca uma oposição entre espaço interno e externo na narrativa:
Entrar en el Archivo General le ocasiona siempre la misma sensación. Al
principio un efecto opresivo, como si estuviese ingresando en un sepulcro.
– Como se sente?
O outro pareceu sorrir, por baixo da crosta de sangue seco que lhe cobria o rosto abaixo do
naiz. Faltavam-lhe dois dentes dianteiros, e tive certeza de que a perda era recente. O homem se
virou como pôde para me diszer que agora doía um pouco menos, mas que seu companheiro tinha
levado muitos chutes nas costelas e estivera chorando até conseguir adormecer, pouco antes.”
(SACHERI, 2011, p.40).
125 Em português: “[...] deve-se dotar os personagens de um forte desejo de ir até algum lugar, de
fazer algo.” (TOBIAS, 1999, p.86)
97
Pero después, una vez dentro de esa especie de mazmorra muda y oscura,
caminar por esos pasillos estrechos y flanqueados por estanterías
gigantescas y abarrotadas de legajos le genera un infrecuente sentimiento
de seguridad, de cobijo.126 (SACHERI, 2010, p.86 – Capítulo “Archivo”)
Em contraste com o mundo exterior, um Arquivo completo de documentos e
papéis pode parecer sufocador e claustrofóbico. No entanto, se em um primeiro
momento Chaparro se incomoda e compara o Arquivo a um sepulcro, logo o
ambiente deixa de lhe parecer hostil e atua como uma espécie de abrigo contra a
agitação e o burburinho do lado de fora.
Capa da edição do romance publicada por Alfaguara, em 2010.
Em português: “Entrar no Arquivo Geral sempre lhe causa a mesma sensação. No princípio, um
efeito opressivo, como se ele estivesse penetrando num sepulcro. Mas depois, uma vez dentro dessa
espécie de masmorra muda e escura, caminhar pelos corredores estreitos, ladeados por estantes
gigantescas e abarrotadas de maços de papel, gera nele uma sensação incomum de segurança, de
abrigo.” (SACHERI, 2011, p.58).
126
98
Já dentro do Arquivo e tomado pelo silêncio rotineiro daquela “silenciosa
catacumba”, Chaparro supõe que o funcionário que ali trabalha, seu conhecido de
várias décadas, também se sente protegido contra uma cidade ofuscante e
estrondosa. Nesta medida, “pensar que ese hombre no está tal vez en una cárcel,
sino en un refugio, lo tranquiliza.”127 (2010, p.86). O funcionário é descrito com certo
tom fantasmagórico, como um ser mítico conhecedor dos labirínticos e sombrios
corredores que percorre com a “circunspecta determinación de un ratón
acostumbrado a las tinieblas.”128 (2010, p.87). Quanto à apresentação do espaço,
sua descrição apela fortemente para metáforas que acionam no leitor a imagem de
escuridão, penumbra:
[...] Chaparro lo sigue hasta el final de ese pasillo y gira tras él hacia la
derecha. Si todos los corredores están escasamente iluminados, este se
encuentra casi a oscuras. Tanto que Chaparro se detiene en un intento de
que sus ojos se habitúen a la oscuridad, porque teme llevarse por delante
las estanterías, perdido en el pozo de límites negros. Los pasos del
archivero siguen alejándose hasta que dejan de oírse, como si acabara de
internarse en un mar de niebla. Después de unos segundos en los que a
Chaparro está a punto de atraparlo la angustia súbita de la soledad, siente
un chasquido lejano: el viejo acaba de encender un velador que se apoya
sobre una mesa desnuda. Una silla destartalada completa el mobiliario del
“rincón de lectura” que el otro parece estar acondicionándole. Camina hacia
allí contento de escapar del agujero insondable del corredor.129 (SACHERI,
2010, p.87 – Capítulo “Archivo”)
Além do contraste com as ruas da cidade no que diz respeito aos pares
opositivos luz versus escuridão, ruído versus silêncio ou agitação versus imobilidade,
a apresentação do Arquivo Geral também chama a atenção pelo viés de abandono
que traz a sua descrição. Ainda que alvo de muitos projetos de revitalização e de
translado a espaços outros, dotados de melhor infraestrutura e investimento em
engenharia e tecnologia, o Arquivo Nacional representado em La pregunta de sus
Em português: “Tranquiliza-o pensar que o homem talvez não esteja num cárcere, mas num
refúgio.” (SACHERI, 2011, p.58).
128 Em português: “[...] séria determinação de um rato acostumado às trevas.” (SACHERI, 2011, p.58).
129 Em português: “Chaparro o segue até o final do corredor e dobra à direita atrás dele. Se todos os
corredores estão escassamente iluminados, este se encontra quase às escuras. Tanto que Chaparro
se detém numa tentativa de que seus olhos se habituem à escuridão, porque teme tropeçar nas
estantes, perdido neste poço de limites negros. Os passos do arquivista continuam se afastando até
que param de se fazer ouvir, como se ele acabasse de penetrar num mar de névoa. Depois de alguns
segundos em que está prestes a ser tomado pela angústia súbita da solidão, Chaparro ouve um
estalido distante: o velho acaba de acender um abajur pousado sobre uma mesa nua. Uma cadeira
escangalhada completa o mobiliário do ‘cantinho de leitura’ que o outro parece estar ajeitando para
ele. Caminha até ali quase contente por escapar do buraco insondável do corredor.” (SACHERI,
2011, p. 58-59).
127
99
ojos é descrito então como uma espécie de “cementerio de papeles”130. A escrita de
Sacheri traz em si a representação de um espaço deteriorado e sem qualquer
preocupação com a manutenção e zelo com a memória histórica que comporta.
Se em sua acepção, o Arquivo Nacional tem por finalidade acolher
inumeráveis documentos em forma escrita, sonora ou visual que atuem como
testemunho de acontecimentos de importância nacional desde a época colonial, em
La pregunta de sus ojos o edifício que conserva a memória da Nação é o mesmo
lugar de abandono e de propagação de pragas:
[…] Para salir tiene que avanzar en diagonal. En cada encrucijada doble
una vez a la izquierda, una a la derecha, y así – acompaña sus palabras
con un gesto vago del brazo –. Si escucha ruidos, no se preocupe: son
estas ratas de mierda que andan por todos lados. Ya no sabemos qué
ponerles: veneno, trampas… probamos de todo. Todos los días saco un
montón de ratas muertas. Pero cada día son más, no menos. Igual no van a
molestarlo. No les gusta la luz.
–Gracias – responde Chaparro, pero el viejo ya le ha dado la espalda
y se pierde al girar al fondo del corredor.131 (SACHERI, 2010, p.88 –
Capítulo “Archivo”)
Se voltarmos à subdivisão inicial proposta neste estudo, poderíamos
examinar o Arquivo como um lugar de Justiça, posto que sua proposta é a de
conservação da memória de fatos de interesse nacional. Em contrapartida, se este
espaço é apresentado como degradado e em ruínas, o Arquivo é também um
espaço do crime, pois atua como repositório de informações a serem esquecidas. É
significativo, no romance, que estejam depositados neste “espaço híbrido” de
esquecimento e abandono, os papéis com as informações sobre o caso da morte de
Liliana.
[Chaparro] Abre el expediente y, aunque no repara en ello, se topa con las
mismas actuaciones policiales, las mismas declaraciones testimoniales, la
misma pericia forense que revisó en agosto de 1968, cuando le ordenaron
sobreseer sin procesados y él decidió hacerse olímpicamente el otario.
Cf. expressão utilizada na edição do jornal Clarín Digital em 31/01/1997. Acesso em 13/02/2013.
Disponível em: <http://edant.clarin.com/diario/1997/01/31/faiv-01.htm>.
131 Em português: “[...] Para sair, o senhor tem que avançar na diagonal. Em cada encruzilhada, dobre
uma vez à esquerda e uma à direita, e assim por diante – explica, acompanhando suas palavras com
um gesto vago dos braços. – Se ouvir ruídos, não se preocupe: são esses ratos de merda, que
andam por todo canto. Já não sabemos o que usar: veneno, armadilhas.... experimentamos tudo.
Todo dia, eu tiro um monte de ratos mortos. Mas a cada dia eles aumentam, não diminuem. De
qualquer modo, não vão incomodá-lo. Não gostam de luz.
– Obrigado – responde Chaparro. Mas o velho já lhe deu as costas e desaparece ao dobrar
no fundo do corredor.” (SACHERI, 2011, p.59).
130
100
Avanza algunas páginas. Aunque se arrepiente casi de inmediato, no
puede sustraerse al impulso de volver a mirar las fotografías de la escena
del crimen. Treinta años después, Liliana Emma Colotto de Morales sigue
tendida sobre el parqué del dormitorio, abandonada y desvalida, los ojos
fijos y muertos muy abiertos, la piel cárdena en el cuello.132 (SACHERI,
2010, p. 92 – Capítulo “Fojas”)
A violação da lei se dá também neste ato de descaso com a morte da jovem,
quando a memória do crime e toda a informação necessária ao entendimento dos
rumos tomados pelas investigações encontram-se em total abandono, no vazio
obscurecido que tem por consequência última o esquecimento. À memória lhe sobra
ficar estancada nas fotografias de Liliana feitas para o processo.
Como se verá no próximo e último tópico que conforma este estudo, a
escritura de Chaparro tem o papel de arrematar os fatos e unir, em um só lugar,
vítimas e criminosos, aquilo que se presenciou enquanto narrador e o que se crê ter
acontecido, a história trágica do casal Morales e a história trágica dos próprios
argentinos. É, de fato, a obra que escreve Chaparro a responsável por não deixar
que a morte da jovem, enquanto fato passado, se esvaia e desapareça no
transcorrer de um tempo presente, incessante e contínuo.
Em português: “[Chaparro] Abre a pasta e, embora não repare nisso, topa com os mesmos autos
policiais, as mesmas declarações testemunhais, a mesma perícia forense que ele havia revisado em
agosto de 1968, quando lhe ordenaram arquivar sem processados e ele decidiu olimpicamente se
fazer de bobo.
Avança algumas páginas. Embora se arrependa quase de imediato, não consegue se furtar
ao impulso de olhar de novo as fotografias da cena do crime. Trinta anos depois, Liliana Emma
Colotto de Morales continua caída no chão do quarto, abandonada e desvalida, os olhos fixos e
mortos muito abertos, a pele arroxeada no pescoço.” (SACHERI, 2011, p.62).
132
101
3.3
O TRATAMENTO DA MEMÓRIA PELA NARRATIVA DE EDUARDO
SACHERI
Detalhes de uma sala de trabalho ou dos corredores de um arquivo. Nomes
de ruas cruzadas durante uma vida. Horários precisos de entrada de um inquérito. A
memória de um anúncio de morte. A memória de um amor entre desconhecidos que
ecoa em um já conhecido amor. Pretextos que amparam um desejo antigo. Imagens,
lugares, datas certeiras ou estimadas, frases ditas por um amigo. A captura e a
soltura de um culpado. A penalidade por mãos inimagináveis. Uma punição
perpétua. Uma autopunição perpétua.
Beatriz Sarlo (2005) reflete sobre uma característica inerente e incontrolável
do passado: ainda que se queira reprimi-lo ou deixá-lo restrito ao espaço do ontem,
o mesmo “sigue allí, lejano y próximo, acechando el presente como el recuerdo que
irrumpe en el momento menos pensado, o como la nube insidiosa que rodea el
hecho que no se quiere o no se puede recordar.”133 (SARLO, 2005, p.9). A autora o
compara a um aroma que chega sem que se queira ou espere, daí que optar por
não recordar é o mesmo que “proponerse no percibir un olor, porque el recuerdo,
como el olor, asalta, incluso cuando no es convocado.”134 (SARLO, 2005, p.9). Nesta
medida, em La pregunta de sus ojos, o passado surge como este “olor que asalta” e
que impulsiona o personagem narrador Benjamín Miguel Chaparro a querer capturálo através da arte e organizá-lo em forma de palavras.
De acordo com Sarlo, recordar e entender são ações que caminham juntas.
Se entender se apresenta como mais importante que recordar, o ato de recordar se
mostra imprescindível para que se chegue a algum tipo de entendimento. Recordar,
nesta medida, surge como caminho de organização e entendimento de um passado
“soberano e incontrolable” que sempre “se hace presente”135. (SARLO, 2005, p.10).
E é justamente a partir do tempo presente que este passado é recordado e, assim,
entendido. Em La pregunta de sus ojos, entender os caminhos que conduziram um
homem a fazer justiças com suas próprias mãos requer recordar a história de vida
Em português: “segue ali, distante e próximo, espreitando o presente como a lembrança que
irrompe no momento menos pensado, ou como a nuvem insidiosa que rodea o fato que não se quer
ou não se pode recordar.” (SARLO, 2005, p.9). (N. do T.)
134 Em português: “propor-se a não perceber um cheiro, porque a recordação, como o aroma,
acomete inclusive quando não é convocada.” (SARLO, 2005, p.9). (N. do T.)
135 Em português: “se faz presente” (SARLO, 2005, p.10) (N. do T.)
133
102
deste mesmo homem. É a partir do ato de memória de um personagem que o leitor
tem acesso a histórias de vida que se imbricam ao redor de uma morte. E é também
na rememoração destes momentos de vida que somos levados a refletir temas como
o tratamento da memória pela literatura.
No que concerne ao diálogo entre literatura e este passado que “se hace
presente” do qual nos fala Sarlo, Márcio Seligmann-Silva136 (2012) afirma que
a relação do passado com o presente e a necessidade de refletirmos
criticamente sobre as experiências e vivências individuais e coletivas, a
partir das quais se constroem os relatos sobre o passado, são
preocupações que não se limitam ao âmbito profissional de historiadores,
mas que estão presentes nos estudos literários, artísticos e culturais,
perpassando linguagens e mídias diversas. (SELIGMANN-SILVA et al.,
2012, p.9)
Com base nas palavras de Seligmann-Silva, confirmamos que o passado
também pode ser recordado (e entendido) pelo discurso artístico. Como explica o
autor, a abordagem do passado não se restringe ao campo da disciplina História,
mas encontra possibilidades de realização a partir de diálogos interdisciplinares com
os Estudos Literários, Filosóficos, Culturais, em Artes Plásticas, Visuais e InterSemióticos (2012, p.9). O tratamento da memória pela Literatura, nesta medida, se
justifica quando refletimos o discurso literário enquanto instrumento que também é
capaz de dialogar com o passado a partir do viés ficcional.
Em La pregunta de sus ojos, o passado “se hace presente” a partir de
personagens que se encontram enredados a fatos que os impedem de seguirem
com suas vidas sem que este passado constantemente ressurja e os interpele.
Nesta medida, vemos que este passado se faz presente a partir do impacto pela
morte da jovem, que atua de modo distinto em Benjamín Chaparro e no viúvo
Morales, aqui já analisados no capítulo referente aos personagens. Chaparro sofre
com o bloqueio amoroso que lhe submete a décadas de silêncio, de idas e vindas de
um amor que o sufoca e o faz sofrer calado. A vida de Morales, por sua vez,
mantém-se estagnada, posto que o personagem tem sua morte simbólica
consolidada com a morte de sua esposa Liliana.
Agora bem, Morales sofre pela perda de sua mulher e Benjamín porque
nunca teve aquela a quem ama. Dois homens que tentam seguir com suas vidas
136
In: SELIGMANN-SILVA, Márcio, org. Imagem e Memória. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2012.
103
marcadas pela dor da perda: do que tiveram ou do que desejaram ter. E, diante
desta dor, os personagens posicionam-se de modo diverso: o convívio perpétuo com
um passado que não pode ser esquecido e a organização deste passado através da
escritura. Se Morales demonstra por vezes ter recalcado a sua dor, suas ações
revelam um homem obcecado por encontrar ao culpado pela morte de sua mulher.
Ao final descobrimos que, de fato, sua vida não avançou. Pelo contrário, desde as
buscas incansáveis nos terminais de trens até a prisão do assassino por conta
própria, entendemos que, com a morte de Liliana, Morales também encontra a sua
própria morte:
– Disculpe, don – me acerqué sonriendo. Siempre me produce una
cierta turbación entrar a un negocio en el que no tengo intenciones de
comprar nada–. Ando buscando a un muchacho que suele parar acá,
alguna que otra tardecita. Es medio rubión. Bastante pálido. Un tipo alto,
flaco. Usa un bigotito recto.
El gordo me miró. Supongo que para regentear un bar en el Once una
de las competencias necesarias es distinguir rápidamente a los locos y a los
estafadores. Pareció descartar en silencio que yo estuviese incluido en
alguna de las dos categorías. Asintió levemente y miró el mostrador, como
iniciando una búsqueda en la memoria.
– Ah – dijo de repente. – Ya sé. Usted lo busca al Muerto.
No me sorprendió que caracterizara a Morales de ese modo. No
había ni asomo de burla en su voz. Era sencillamente una caracterización
objetiva construida a partir de ciertos signos evidentes. Un cliente que viene
todas las semanas, pide lo mismo, paga con cambio y se pasa dos horas en
silencio, inmóvil, mirando hacia fuera, puede resultar bastante parecido a un
cadáver o a un fantasma. Por eso no sentí que hubiera de mi parte una
traición, o un sarcasmo, o una exageración cuando le contesté que sí.137
(SACHERI, 2010, pp.181-182)
Não só Isidoro tem sua vida encarcerada até seus últimos momentos de vida.
Com a prisão do assassino de sua mulher, Morales também se apresenta ao leitor
Em português:
“– Desculpe, moço – disse eu e me aproximei sorrindo. Sempre me produz certa perturbação
isso de entrar numa loja na qual não tenho intenção de comprar nada. – Estou procurando um rapaz
que costuma parar aqui, um ou outro final de tarde. É meio louro. Bastante pálido. Um tipo alto,
magro. Usa um bigodinho reto.
O gordo me encarou. Imagino que, para gerenciar um bar no Once, uma das habilidades
necessárias seja distinguir rapidamente os malucos e os caloteiros. Ele pareceu descartar, em
silêncio, que eu me incluísse em alguma das duas categorias. Fez que sim levemente o olhou para o
balcão, como se iniciasse uma busca na memória.
– Ah – disse de repente. – Já sei. O senhor está procurando o Morto.
Não me surpreendeu que ele caracterizasse Morales desse modo. Não havia nenhum indício
de gozação em sua voz. Era simplesmente uma caracterização objetiva, construída com base em
certos sinais evidentes. Um cliente que vem todas as semanas, pede a mesma coisa, paga com
dinheiro trocado e passa duas horas em silêncio, imóvel, olhando para fora, por ficar bastante
parecido com um cadáver ou um fantasma. Por isso, não senti que houvesse de minha parte uma
traição, ou um sarcasmo, ou um exagero, quando respondi que sim.” (SACHERI, 2011, p.119).
137
104
como uma vítima perpétua das decisões que toma, quando decide transportar seu
passado de dor para dentro de sua própria casa, para seu presente, para o resto de
seus dias: “¿No pasaba el tiempo, para este hombre? ¿Todo era un eterno presente
que se sumaba a los anteriores?”138 (SACHERI, 2010, p.288).
– Pobre tipo.
Las dos palabras que pronunció Báez flotaron un segundo sobre la
mesa hasta que se evaporaron y volvió el silencio. No contesté, pero
entendía sin lugar para el equívoco de quién estaba hablando el policía. No
hablaba de Romano, ni de Gómez, ni de él, ni de mí. Hablaba de Ricardo
Morales, que de lleno o de rebote, de primera o de segunda, por h o por b,
girara como girase la perinola, terminaba siempre inmolado como una
víctima perpetua.139 (SACHERI, 2010, p.214)
Por sua vez, Chaparro se utiliza do literário como mecanismo de ordenamento
de fatos que já integram a sua própria história. Como já dito, em La pregunta de sus
ojos, o ato de recordar se efetiva a partir da escritura deste personagem, quem, após
aposentar-se como pró-secretário de uma Secretaria de Instrução de Buenos Aires,
decide contar a história de vidas que se cruzam em um romance. É também Beatriz
Sarlo quem afirma que
el tiempo pasado es ineliminable, un perseguidor que esclaviza o libera, su
irrupción en el presente es comprensible en la medida en que se lo organice
mediante los procedimientos de narración y, por ellos, de una ideología que
ponga de manifiesto un continuum significativo e interpretable de tiempo.140
(SARLO, 2005, p.13).
O caminho encontrado por Chaparro para organizar este tempo passado que
não pode ser eliminado também se baseia em procedimentos de narração, tal como
coloca Sarlo no fragmento citado. Como constantemente afirmamos neste estudo,
Em português: “O tempo não passava para aquele homem? Tudo era um eterno presente que se
somava aos anteriores?” (SACHERI, 2011, p.190).
139 Em português:
“– Pobre homem.
As duas palavras que Báez pronunciou flutuaram um segundo sobre a mesa até se
evaporarem, e o silêncio voltou. Não respondi, mas sem sombra de dúvida, entendi de quem o policial
estava falando. Não era de Romano, nem de Gómez, nem dele mesmo, nem de mim. Ele falava de
Ricardo Morales, o qual, em cheio ou por ricochete, de primeira ou de segunda, por isto ou por aquilo,
girasse como girasse a carrapeta, sempre acabava imolado como uma vítima perpétua.” (SACHERI,
2011, pp. 140-141)
140 Em português: “O tempo passado é ineliminável, um perseguidor que escraviza ou libera, sua
irrupção no presente é compreensível na medida em que seja organizado mediante procedimentos de
narração e, por eles, de uma ideologia que coloque em xeque um continuum significativo e
interpretável de tempo.” (SARLO, 2005, p.13) (N. do T.)
138
105
Chaparro almeja escrever um romance e é este o instrumento que utiliza para
recordar e entender o seu passado e o das vidas que o rodeiam.
Sarlo fala de modalidades não acadêmicas na escritura da história, baseadas
não em regras do método da disciplina histórica (SARLO, 2005, p.14), mas nos
sentidos comuns do presente, como aquela modalidade que “atiende las creencias
de su público y se orienta en función de ellas.”141 (SARLO, 2005, p.15). Benjamín
Chaparro é símbolo dessa voz do homem comum que se alça e estrutura um relato
histórico a partir de seu próprio ponto de vista, daquilo que vivenciou ou que
presenciou na vida de pessoas próximas. Homens comuns que “no sólo seguían
itinerarios sociales trazados sino que protagonizaban negociaciones, transgresiones
y variantes.”142 (SARLO, 2005, p.18).
É a partir deste destaque dado a “la rememoración de la experiencia”
(SARLO, 2005, p.21) que ganham espaço os discursos em primeira pessoa como
forma privilegiada para a apresentação de pontos de vista, caminho que revigora o
viés subjetivo dos discursos sobre o passado. Como aponta a autora, “[...] la historia
oral y el testimonio han devuelto la confianza a esa primera persona que narra su
vida (privada, pública, afectiva, política), para conservar el recuerdo o para reparar
una identidad lastimada.”143 (SARLO, 2005, p.22).
Quanto aos testemunhos e à valorização dos discursos em primeira pessoa,
Beatriz Sarlo também afirma que
la memoria ha sido el deber de la Argentina posterior a la dictadura militar y
lo es en la mayoría de los países de América Latina. El testimonio hizo
posible la condena del terrorismo de estado; la idea del “nunca más” se
sostiene en que sabemos a qué nos referimos cuando deseamos que eso
no se repita. Como instrumento jurídico y como modo de reconstrucción del
pasado, allí donde otras fuentes fueron destruidas por los responsables, los
actos de memoria fueron una pieza central de la transición democrática
[…].144 (SARLO, 2005. p.24).
Em português: “atende as crenças de seu público e se orienta em função delas.” (SARLO, 2005,
p.15). (N. do T.)
142 Em português: “não só seguiam itinerários sociais traçados mas que protagonizavam negociações,
transgressões e variantes.” (SARLO, 2005, p.18). (N. do T.)
143 Em português: “[...] a história oral e o testemunho devolveram a confiança a essa primeira pessoa
que narra sua vida (privada, pública, afetiva, política), para conservar a memória ou para reparar uma
identidade lastimada.” (SARLO, 2005, p.22). (N. do T.)
144 Em português: “a memória foi o dever de uma Argentina posterior à ditadura militar e é na maioria
dos países da América Latina. O testemunho tornou possível a condenação do terrorismo de estado;
a ideia do “nunca mais” se sustenta no fato de que sabemos a que nos referimos quando desejamos
que isso não se repita. Como instrumento jurídico e como modo de reconstrução do passado, ali onde
outras fontes foram destruídas pelos responsáveis, os atos de memória foram uma peça central da
transição democrática […].” (SARLO, 2005. p.24). (N. do T.)
141
106
Quando da leitura de sua dimensão oculta no capítulo referente aos
personagens, vimos que Chaparro não consegue esquecer-se dos fatos que o
marcaram de forma a seguir com sua vida com algum padrão de normalidade, ainda
que o tente e que os demais recriminem sua postura. Reagir a este passado através
do recalque e do esquecimento já não é mais possível e, por isso, o caminho que
encontra é o processamento simbólico de seu passado através de uma antiga
máquina de escrever. Sua necessidade de voltar-se para o ontem a fim de
reconstruir os caminhos da memória demonstra que seu passado só pode ser
compreendido quando verbalizado, razão pela qual a literatura surge como
instrumento que lhe permite ao indivíduo avançar e retomar sua vida depois de um
acerto de contas com sua própria história.
De repente [Benjamín Chaparro] se sobresalta. El tren avanza, ruidoso,
entre los paredones lúgubres que se levantan a los costados de las vías
entre Caballito y Once. ¿En qué ha estado pensando la última media hora?
No puede recordarlo. ¿En Morales? ¿En Gómez? No. Ellos ya descansan.
Llamativamente, desde que ha contado todo, ya no lo asaltan, no lo
perturban, no lo increpan a cada rato.145 (SACHERI, 2010, p. 313 – Capítulo
“Devolución”).
O fragmento mostra-se fundamental para a leitura dos significados do
romance que aqui nos propomos realizar. Chaparro utiliza o literário como
ferramenta de entendimento e organização de seu passado e dos fatos que de
alguma forma afetaram sua própria história de vida. O passado, enquanto
emaranhado de momentos e recordações mescladas e confusas, ganha linearidade,
sequenciamento, lógica interna, a partir do ato de escritura. É tão só através desta
segurança organizacional conferida pela escritura de algo que lhe parecia
perturbador, assim como observamos no fragmento supracitado, que Chaparro se
sente livre, desprendido, numa soltura que lhe chegou “desde que ha contado todo”.
Nesta medida, a máquina de escrever que Chaparro utiliza para contar a
história de Morales é simbólica em La pregunta de sus ojos, pois permite que um
pro-secretário aposentado se invista de seu papel de escritor e, assim, assuma a
responsabilidade de organização da memória de vidas outras que se cruzaram com
Em português: “De repente [Benjamín Chaparro] se sobressalta. O trem avança, ruidoso, entre os
paredões lúgubres que se erguem nas laterais da via férrea entre Caballito e Once. Em que esteve
pensando na última meia hora? Não consegue se lembrar. Em Morales? Em Gómez? Não. Eles já
estão descansando. Curiosamente, desde que contou tudo, já não o assaltam, não o perturbam, não
o censuram a cada momento.” (SACHERI, 2011, p. 208).
145
107
a sua. O projeto antigo de escrever um livro ganha concretude quando o
personagem finalmente compreende que é tão só pelo caminho da escritura que o
desalinhado, desconexo, ganha uma dimensão compositiva mais coerente e, por
isso, mais clara e compreensível para quem carregava por tanto tempo o peso de
um passado que lhe parecia tão nebuloso e sufocante.
Nesta linha de leitura, a busca pela verdade que ancora a narrativa e sobre a
qual constantemente nos referimos neste estudo tem relação direta com a auto
investidura de Chaparro como escritor. A verdade não implica somente saber o que
de fato ocorreu ao assassino da jovem, uma vez que a carta de Morales se
encarrega de esclarecer estas pendências da história a Chaparro, mas, antes,
envolve também a preocupação constante de trazer a verdade impressa naquilo que
se diz sobre este passado.
Deja los elementos del mate sobre el escritorio y se encamina hasta
el aparador de la sala. Sabe que las cartas están en el segundo cajón, cada
una en su sobre. No están amarillentas porque no son tan antiguas. Y
aunque no ha vuelto a leerlas, cree recordarlas con exactitud, casi hasta sus
textuales palabras. Pero no quiere falsear la verdad que tienen en las
manos. Por eso las sacará de allí para llevárselas al escritorio. Para citarlas
todas las veces que lo considere necesario.
“¿Por qué semejante prurito de exactitud?”, se pregunta. Porque sí,
es su primera respuesta. Porque en ellas se esconde la verdad, o la propia
palabra de Ricardo Morales que en este caso es la última verdad, se
contesta luego. Porque así, con las pruebas documentales en la mano,
citando lo que haya que citar, es como ha trabajado cuarenta años en
Tribunales, agrega. Y esa otra respuesta también es verdadera.146
(SACHERI, 2010, p.281-282 – Capítulo “Más dudas”).
A despeito de contar uma história partindo da aceitação de sua imprecisão
intrínseca, Chaparro não se contenta em trazer a seu leitor uma versão própria dos
fatos. Ainda que tenha consciência da subjetividade que atravessa sua narração, o
personagem-autor continuamente assume sua inquietude por encontrar a verdade e
ser fiel a ela em seu processo de escritura.
Em português: “Deixa os utensílios do mate sobre a escrivaninha e se dirige até o aparador da
sala. Sabe que as cartas estão na segunda gaveta, cada uma em seu envelope. Não estão muito
amareladas porque não são assim tão antigas. E, embora não as tenha relido, ele acredita recordálas com exatidão, quase nas palavras textuais. Mas não quer falsear a verdade que tem nas mãos.
Por isso irá tirá-las dali e leva-las para a escrivaninha. Para citá-las sempre que considerar
necessário.
‘Por que semelhante escrúpulo de exatidão?’, se pergunta. Porque sim, é sai primeira
resposta. Porque nelas se esconde a verdade, ou a própria palavra de Ricardo Morales, que neste
caso é a última verdade, responde-se em seguida. Porque assim, com as provas documentais na
mão, citando o que for preciso citar, é como ele trabalhou por quarenta anos em Tribunales,
acrescenta. E essa outra resposta também é verdadeira.” (SACHERI, 2011, p.186).
146
108
La mitad de Chaparro que odia la incertidumbre, y que anhela hasta la
desesperación concluir con eso, opina que es perfecto llegar hasta aquí:
mal que mal ha conseguido contar lo que se había propuesto, y el tono que
encontró para hacerlo le da la impresión de ser el adecuado. Los personajes
que ha creado se parecen insólitamente a los seres de carne y hueso que él
conoció, y esos personajes han dicho y hecho, mal que mal, las cosas que
esos seres reales hicieron y dijeron. Esa mitad cautelosa de Chaparro
sospecha que, si se extiende más, todo se irá al diablo, y la historia se
saldrá de cauce, y los personajes terminarán moviéndose a su antojo sin
atenerse a los hechos, o a su memoria de los hechos, que para el caso es lo
mismo, y todo habrá sido al divino botón.147 (SACHERI, 2010, p.187 –
Capítulo “Abstinencia”)
Esta preocupação por trazer a seu leitor a história de Morales com o máximo
de exatidão possível implica o manejo com o contexto espaço-temporal de
desenvolvimento destes fatos passados. Vimos que a estratégia utilizada por
Benjamín Chaparro como forma de lidar com os fatos que marcaram sua história é a
de organizar o passado via escritura, mecanismo que lhe viabiliza entender os
caminhos que o conduziram ao lugar onde está: sua força e sua covardia; seus
desejos e suas inumeráveis dúvidas; sua nobreza e sua mesquinhez; a história de
Morales e a sua; a história do Juizado Criminal de Instrução nº 41 e a história da
própria Argentina. Ainda que seu objetivo seja o de oferecer-nos tão só um relato
sobre o que aconteceu a Ricardo Morales, Chaparro nos oferece sua própria vida, a
das pessoas que o cercam, a de sua Nação.
Chaparro tira de la hoja que acaba de terminar con la suficiente
energía como para liberarla del rodillo sin romperla y la relee. Las últimas
palabras lo hacen sonreír. Le resulta grato el ejercicio de la memoria: esa
frase con la que ha cerrado el capítulo, la de “el día en que los boludos
hagan una fiesta”, la había creído absolutamente olvidada. Pero ahora ha
salido a flote junto con otro montón de recuerdos de su pasado y la gente
con la que ha vivido ese pasado.148 (SACHERI, 2010, p.136 – Capítulo
“Nombre y apellido”)
Em português: “A metade de Chaparro que odeia a incerteza, e que anseia até o desespero por
acabar com isto, opina que é perfeito chegar até aqui: mal ou bem, ele conseguiu contar aquilo a que
se propusera, e o tom que encontrou para fazê-lo lhe parece adequado. Os personagens que criou se
parecem insolitamente com os seres de carne e osso que conheceu, e esses personagens disseram
e fizeram, de um modo ou de outro, as coisas que os seres reais fizeram e disseram. Essa metade
cautelosa de Chaparro suspeita de que, se ele se estender mais, tudo será posto a perder, e a
história sairá dos eixos, e os personagens acabarão se movendo segundo os próprios caprichos, sem
se aterem aos fatos, ou à sua memória dos fatos, que no caso dá no mesmo, e tudo terá sido inútil”.
(SACHERI, 2011, p.123).
147
Em português: “Chaparro puxa a página que acaba de redigir com energia suficiente para liberá-la
do cilindro sem rasgá-la e a relê. As últimas palavras o fazem sorrir. O exercício da memória o
agrada: essa frase com que encerrou o capítulo, aquela de ‘no dia em que os babacas fizerem uma
festa’, ele a acreditara completamente esquecida. Mas agora veio à tona, junto com outro monte de
lembranças de seu passado e das pessoas com quem ele conviveu no passado.” (SACHERI, 2011,
p.90).
148
109
É esta memória própria e alheia na qual o personagem está submerso que
serve de instrumento de autoconhecimento a Chaparro e que traz à luz a memória
coletiva de seu próprio país. Bem mais que o resgate da história de um crime de
uma jovem, a escritura do personagem dá espaço ao passado de uma Nação
quando momentos históricos surgem como pano de fundo da narrativa. Nesta
medida, o desejo contínuo do personagem por trazer a verdade em sua narração do
passado o leva a explorar também o contexto histórico de acontecimento destes
fatos.
É neste detalhamento da escritura, tão valorizado por Benjamín Chaparro,
que a obra de Eduardo Sacheri abre espaço para que elementos históricos ecoem
em La pregunta de sus ojos, tal como vimos no transcurso deste estudo. A trama de
busca em Sacheri, ambientada em uma Argentina dos anos sessenta e setenta, atua
como veículo que permite a apreciação de conflitos políticos e sociais próprios do
país, a partir de uma evolução temporal que contempla diferentes episódios de
importância nacional. A obra dialoga com a memória argentina quando traz, na voz
do personagem Chaparro, a violação da lei aqui já discutida, referente em grande
medida ao período de repressão ditatorial do país. Contudo, importa chamar mais
uma vez a atenção para o trato sutil na apresentação dessas referências históricas
por Sacheri, as quais se mesclam com o literário num intrigante jogo narrativo entre
a memória da Argentina e a memória de um personagem.
Com vistas a elucidar este jogo narrativo, La pregunta de sus ojos se encerra
com uma nota do próprio autor, aqui já referida e que agora trazemos à discussão de
forma mais aprofundada, tendo em vista sua enorme importância à leitura que aqui
se realiza:
En febrero de 1987 ingresé a trabajar como empleado en el Juzgado
Nacional de Primera Instancia en lo Criminal de Sentencia “Q”, de la Capital
Federal. Una mañana cualquiera mis compañeros más experimentados me
contaron una vieja anécdota: a raíz de la amnistía para presos políticos que
el gobierno de Cámpora dictó en 1973, y en circunstancias que siempre
quedaron en la más completa oscuridad, salió en libertad un preso común
que estaba detenido en la cárcel de Devoto a la orden del Juzgado. Se lo
acusaba de delitos muy graves, y lo aguardaba una larguísima condena. Sin
embargo, y sin que nadie supiera nunca el motivo, salió en libertad aquella
jornada.
Tiempo después recordé esa historia, y en mi imaginación se le
sumaron innumerables hechos y situaciones que, aunque inventados,
110
podían encajar como posibles antecedentes y consecuencias de la
liberación injusta de un homicida convicto. [...]149 (SACHERI, 2010, p.316)
A nota do autor configura-se a partir de episódios de intenso carácter
autobiográfico. Como vimos ao início deste estudo no capítulo dedicado à mediação
crítica do autor, Eduardo Sacheri já trabalhou em um Juizado Criminal e é da
experiência pessoal e de um episódio contado por companheiros mais experientes –
a liberação de um assassino confesso por ocasião de uma anistia para presos
políticos em 1973, que nasce La pregunta de sus ojos. A recordação de uma história
verídica, mas que ocorreu em circunstâncias nebulosas e vagas, configura-se como
material de criação artística porquanto uma infinidade de possibilidades que se
relacionam ao fato ocorrido surge na mente ingeniosa do escritor.
[...]
Por lo demás, la historia que se narra en estas páginas es enteramente
ficticia, como lo son todos sus personajes. De hecho, a fines de la década
de los sesenta las secretarías nº18 y nº19 pertenecían a un Juzgado de
Sentencia, y no a uno de Instrucción. Además, no existía ningún Juzgado en
lo Criminal de Instrucción, en la Capital Federal, que llevase el nº 41. En
cuanto a la sangrienta Argentina de los años setenta, que de tanto en tanto
se asoma como telón de fondo de estas páginas, ojalá fuese igual de
ficticia, igual de inexistente.150 (SACHERI, 2010, p.316-317)
A necessidade de que ao leitor lhe seja esclarecido, ao final, o caráter fictício
do romance denuncia o intenso tratamento de fatos da memória nacional por
Eduardo Sacheri. Entendemos que a apresentação desta nota pelo autor se justifica
pelo fato de o romance dialogar amplamente com fatos históricos da Argentina. O
jogo narrativo se conforma a partir da memória do próprio escritor, que recupera um
fato passado e o atualiza pelo viés ficcional. Sob tal ótica, a memória do escritor dá
Em português: “Em fevereiro de 1987, entrei para trabalhar como funcionário no Juizado Nacional
de Primeira Instância no Criminal de Sentença ‘Q’, da capital federal. Numa manhã qualquer, meus
colegas mais experientes me contaram um velho episódio: em razão da anistia para presos políticos
que o governo de Cámpora decretou em 1973, e em circunstâncias que sempre permaneceram na
mais completa obscuridade, foi libertado um preso comum que estava detido no cárcere de Devoto
por ordem do Juizado. Era acusado de delitos muito graves, e aguardava-o uma longa pena. No
entanto, e sem que ninguém jamais soubesse o motivo, ele foi solto naquela ocasião.
Tempos depois, recordei essa história, e em minha imaginação a ela se somaram incontáveis
fatos e situações que, embora inventados, podiam se encaixar como possíveis antecedentes e
consequências da libertação injusta de um homicida convicto. [...]” (SACHERI, 2011, p.210).
150 Em português: “De resto, a história narrada nestas páginas é inteiramente fictícia, como o sõ todos
os seus personagens. Na verdade, no final da década de 1960 as secretarias nº18 e nº19 pertenciam
a um Juizado de Sentença, e não a um de Instrução. Além disso, não existia nenhum Juizado no
Criminal de Instrução, na capital federal, que tivesse o nº41. Quanto à sangrenta Argentina dos anos
1970, que de vez em quando surge como pano de fundo destas páginas, quem dera fosse igualmente
fictícia, igualmente inexistente.” (SACHERI, 2011, p.210).
149
111
lugar a memória de um personagem que vivencia este fato e, por sua vez, também
decide recuperá-lo por meio da escritura de um romance. Ambas as obras – a de
Chaparro e, de forma extensiva, a de Eduardo Sacheri, dialogam amplamente com a
memória da Argentina, arcabouço sócio-histórico que edifica La pregunta de sus
ojos.
112
CONCLUSÃO
Chaparro se pregunta si la vida de los seres humanos, una vez extinguidas,
no se prolongan en la vida de los otros, los que aún viven y los recuerdan.151
Eduardo Sacheri, 2010, p. 311 – La pregunta de sus ojos
Este estudo iniciou-se com a apresentação de uma mediação crítica sobre
Eduardo Sacheri (1967), a fim de contextualizar o autor no marco literário
contemporâneo argentino. Nesta exposição inicial, visamos apresentar ao leitor um
Sacheri professor, roteirista, contista e romancista, a partir de informações que
denotassem as multifaces que se complementam e totalizam a figura plural do
escritor. Pudemos entrever que La pregunta de sus ojos nasce de um desejo antigo
por experimentar a vivência da escritura de um romance, anseio concretizado logo
de uma intensa incursão pelo universo dos contos pelo autor.
Considerando-se que esta dissertação tratou da análise das estratégias
narrativas empregadas por Sacheri, como caminho de reflexão dos significados
histórico-sociais latentes no romance, optou-se por, em um capítulo inicial, na
sequência desta mediação crítica antes dita, trazer a luz informações estruturais
mais gerais sobre o romance foco deste estudo, tendo em vista os muitos momentos
em que se mostrou necessário acionar a trama da obra para fins de reflexão nesta
dissertação.
A partir de nosso objetivo norteador, a segunda parte foi dedicada à leitura
propriamente dita das estratégias narrativas utilizadas por Sacheri na conformação
do romance. Procuramos expor que os elementos constituintes foram selecionados
de maneira que pudéssemos contemplar a obra como um todo composto a partir de
esferas compositivas narratológicas diversas. Assim, priorizou-se, nesta pesquisa, a
leitura de aspectos relacionados às vozes que narram no romance, à caracterização
de personagens e ao contorno da trama concebida por Eduardo Sacheri.
Nesta medida, fixamos nosso estudo, em um primeiro momento, na análise
da focalização narrativa, por julgarmos ser ela a responsável por edificar o
interessante jogo temporal entre passado e presente conformador do romance de
Sacheri. Pudemos constatar que o entrelaçamento de acontecimentos que se deram
Em português: “Chaparro se pergunta se as vidas dos seres humanos, uma vez extinguidas, não
se prolongam na vida dos outros, aqueles que ainda existem e os recordam.” (SACHERI, 2011,
p.207).
151
113
em épocas distintas ocorre graças à junção de vozes que têm espaço intercalado na
obra. Ainda que separadas no que se refere à organização estrutural, ambas as
focalizações, nascidas de uma concepção da obra como um todo coeso e unificado,
constituem-se como vozes interdependentes, as quais despontam de narradores
que se complementam na conformação de La pregunta de sus ojos pelo escritor.
Iniciamos a análise da focalização a partir da exploração de conceitos alçados
por Mieke Bal (1995), quem nos serviu de base para a distinção entre as noções de
focalização interna e externa à fábula, ambas com lugar de realização no romance
de Sacheri. A partir destas peculiaridades de cada voz, detivemo-nos nos dois
focalizadores de La pregunta de sus ojos, de modo a dar conta das nuances
próprias de cada um deles. Verificou-se que o personagem e narrador interno
Chaparro dedica-se a contar a história de Ricardo Morales, homem que tem sua vida
marcada pelo assassinato de sua esposa em 1968. Buscamos dar conta dos
motivos que levam o personagem a narrar a história de um crime décadas depois de
seu acontecimento e pudemos entrever que a história de sofrimento de Morales é
um reflexo das tensões individuais vivenciadas pelo próprio narrador interno.
Benjamín Chaparro, investido de seu papel de focalizador-personagem, é
aquele que busca a objetividade máxima naquilo que é narrado, ainda que não
consiga eximir-se totalmente de mostrar-se a si mesmo em seu processo de
escritura. Reflexivo em sua essência, Chaparro também é aquele que, na qualidade
de escritor da história de Morales, deixa explícitas todas as dúvidas e titubeios
surgidos durante o seu projeto de escritura. Assim, constatou-se que as muitas e
variadas reflexões narratológicas do personagem ao longo de seu romance trazem
expressas todas as possiblidades que se abrem a quem se autoimpõe a tarefa de
narrar, bem como as limitações provenientes deste antigo projeto de converter-se,
ainda que hesitante sobre seus reais motivos, em autor de um romance.
Na sequência de nossa análise sobre a focalização como estratégia,
procuramos expor que o narrador externo surge como aquele que acompanha o
personagem-narrador em seu afã como escritor. Para refletir esta instância narrativa,
além dos estudos de Mieke Bal (1995), nos fizemos valer dos conceitos alçados por
Dorrit Cohn (2001), no que respeita a “psiconarração” realizada por um narrador que
discursa sobre a consciência de um personagem ou, nas palavras próprias de Cohn,
inspeciona esta mesma consciência. Nesta linha de leitura, pudemos observar que o
114
narrador externo de La pregunta de sus ojos revela-se como veículo de apreciação
de Chaparro a partir de uma dimensão outra que não aquela vinda do próprio
personagem, mas de uma voz externa à trama de Sacheri. Vale
dizer
que
este
caráter de exterioridade aos fatos deste narrador não implica um distanciamento
comumente associado a esta instância narrativa, como se sua função fosse
unicamente apresentar o momento presente de Chaparro de modo onisciente,
neutro, apartado. Pelo contrário, este narrador externo também autoriza uma série
de modulações que desfazem a concepção deste afastamento como alternativa
única de configuração desta voz no romance. À luz das reflexões teóricas de Oswald
Ducrot (1987), pudemos abordar neste estudo a possibilidade de superposição de
vozes em uma única voz, fenômeno discursivo que se faz presente na voz deste
narrador externo que se alça na narrativa de Eduardo Sacheri.
A partir do que foi concebido nesta dissertação como Procedimento da Voz
Indexada, pudemos vislumbrar a presença de um narrador externo que não se
restringe a apresentar o objeto de sua focalização de modo distanciado, como antes
dito, mas que o faz a partir de uma mescla de consciências que se efetiva em uma
única voz. O acompanhamento ininterrupto junto a Chaparro realizado por este
narrador nos conduz à apreciação deste fenômeno de aparição de um enunciado
interpolado na voz do narrador externo, mas reconhecível como estranho a sua voz.
Tal fenômeno, tão recorrente na obra, rompe com a linearidade do discurso deste
NE e, na fusão de vozes que apresenta, configura-se como revelador das
possibilidades múltiplas de articulação destas instâncias focalizadoras no romance.
Concluímos que, de forma intercalada na narrativa de Sacheri, ambas as
vozes investem-se de funções próprias e, juntas, tratam de abarcar a Argentina de
agora, de um Chaparro já aposentado e amadurecido, e uma Argentina de outrora,
de trinta anos antes. É esta última a que se configura como cenário de ocorrência do
crime da jovem, decorrente da violência e da violação da lei cometidas por um
homem. Por extensão, é também este o lugar de tantos crimes outros, referidos na
trama de Sacheri, como consequência da violência e da violação da lei cometidas
por aqueles que deveriam atuar em prol da justiça e não contra ela.
Nesta medida, compreendemos neste estudo que a estruturação da obra a
partir de duas vozes, diferenciadas quanto a suas funções próprias, mas imbricadas
na conformação de La pregunta de sus ojos como um todo unificado, atua em prol
115
do tratamento da memória na narrativa, tendo em vista que as duas vozes dedicamse a esferas temporais distintas – o presente e o passado argentinos, que se
imbricam e arquitetam o romance com base em duas temporalidades.
Após a análise destes primeiros aspectos voltados à polifonia enunciativa,
procuramos tecer uma leitura de dois personagens que assumem o papel de
protagonistas nas duas narrativas – Chaparro, protagonista da obra do narrador
externo; e o viúvo Morales, protagonista do romance que Chaparro decide escrever.
Visamos trazer à reflexão a caracterização realizada por Sacheri de ambos os
personagens, para mostrar, em seguida, como muitas vezes estas caracterizações
vão de encontro ao que conceituamos, a partir das concepções teóricas levantadas
por Robert McKee (2004), como a dimensão oculta destes personagens, alcançável
quando nos propomos a lê-los para além de superficiais caracterizações e nos
atentamos às decisões que estes personagens tomam em situações de pressão.
A leitura comparativa de ambas as personagens foi fundamental para que
chegássemos ao entendimento de que diferentes posturas tomadas diante da
memória da morte trazem em si consequências diversas para os personagens. Se o
viúvo Morales decide fazer justiça com as próprias mãos e encarcera ele mesmo o
assassino de sua esposa, converte-se também ele em uma vítima perpétua de suas
decisões. Chaparro, por sua vez, decide lidar com o passado que o marcou através
da escritura. O personagem só consegue seguir com sua vida – só concretiza um
amor antigo, quando, após descobrir o destino dado às vidas que marcaram sua
história, retoma os caminhos tortuosos do caso da jovem através de um romance.
Dando sequência à análise das estratégias narrativas empregadas por
Sacheri, dedicamo-nos à leitura da trama de busca que conforma La pregunta de
sus ojos. Com base nas reflexões levantadas por Ronald B. Tobias (1999) com
respeito aos aspectos próprios da trama, pudemos entrever que o mito da busca é
uma constante na literatura universal e atua como alicerce estrutural em obras com
diferentes linhas argumentativas e em diferentes épocas. Culminamos em La
pregunta de sus ojos e em suas particularidades para afirmar que a trama maior da
narrativa de Sacheri está composta por duas sub-tramas que se desenvolvem com
base em dois enigmas: o primeiro, relacionado à concretização do amor de Chaparro
por Irene, o qual conforma a tensão individual que chega ao leitor por meio da
focalização do narrador externo; o segundo, por sua vez, vinculado ao fato da morte
116
de Liliana, incidente motivador responsável por movimentar a narrativa de Sacheri e
configurar toda a tensão social que se alça na obra do escritor.
Nesta medida, concluímos que a busca pela verdade na obra surge a partir da
ânsia do protagonista por encontrar uma solução para conflitos de caráter social e
também individual. Há, de fato, uma relação direta entre ambas as buscas, haja vista
que a solução de conflitos relacionados à tensão social por Chaparro mostra-se, na
obra, condição básica para que o personagem solucione também suas tensões
individuais. Dito de outro modo, chegamos ao entendimento de que a verdade
contida no amor entre Chaparro e Irene só vem à tona quando uma verdade outra, a
do crime da jovem, evidencia-se na trama de Sacheri.
As categorias que compõem a obra constituíram-se como cerne para a
reflexão sobre os significados do romance. Como buscamos sinalizar ao longo desta
dissertação, a reflexão da narrativa em toda sua estrutura interna foi o caminho que
traçamos para vislumbrar um diálogo entre universos ficcional e extra-ficcional na
obra. É tão só a partir da análise de episódios pontuais em La pregunta de sus ojos,
tais como o arquivamento da denúncia feita pela falsa acusação e pela agressão
física sofrida pelos pedreiros; a perseguição e emboscada contra Chaparro como
consequência de seu envolvimento com o caso de Liliana Colotto; e o
desaparecimento do primo de Sandoval, que os temas da violência e da violação da
lei perfilam-se na narrativa. Vale confirmar que estes temas não são explorados por
Eduardo Sacheri de forma direta, explicitada, tal como se buscou apontar neste
estudo, mas antes a partir de episódios como os antes mencionados, os quais atuam
como caminho para o tratamento literário de tais temas pelo escritor.
Os elementos extra-ficcionais em questão – tomados aqui como significados
da narrativa de Sacheri, são elucidados em nosso estudo graças à leitura que se
buscou realizar da trama de busca como instrumento que evidencia as contradições
político-sociais da Argentina. Em suma, concluímos que é o envolvimento do
personagem com o caso da morte da jovem o responsável por movimentar a trama
e, por conseguinte, trazer a luz toda uma rede de corrupção nos escalões judiciais,
assentada na violência gratuita e na violação da lei. Na esteira de nossa análise,
encontramos nos espaços do romance um caminho de leitura destes significados da
narrativa, a partir de nossa intenção última de nos atermos às estratégias literárias
utilizadas pelo autor na conformação de La pregunta de sus ojos.
117
Constatou-se que os múltiplos espaços no romance de Sacheri intensificamse no transcorrer do tempo a partir da atuação dos personagens que neles
transitam. Nesta medida, a leitura que despendemos mostrou-nos que, ainda que
em sua definição configurem-se como sendo de justiça, haja vista sua intenção
primeira de atuar em favor da lei e em prol da verdade e da justiça mesma, ditos
espaços revelam-se na obra de Sacheri como espaços do crime, em função da
corrupção que opera nestes lugares onde antes a justiça deveria ser resguardada.
Em conexão com o tópico sobre a polifonia enunciativa, o último de nosso
estudo esteve dedicado à leitura do tratamento da memória pela narrativa de
Sacheri. Em diálogo com as reflexões de Beatriz Sarlo (2005), comparamos o
passado de Chaparro e do viúvo Morales a “un olor que asalta” o presente sem que
os personagens possam controlá-lo. É este passado insistente que impulsiona
Chaparro a querer organizá-lo por meio de um romance. Sarlo explica que recordar
o passado a partir do presente é tarefa essencial para que se possa compreender
este mesmo passado. De fato, para entender as razões que levaram um homem a
fazer justiça com suas próprias mãos, Chaparro retoma a história de vida deste
sujeito e é neste exercício da rememoração do passado realizado pelo personagem
que temos acesso a histórias de vidas marcadas por uma morte.
Pudemos entrever que o ato de memória de Chaparro é, antes de tudo,
libertador. Enquanto vítimas desta violência, se Morales se estanca e passa sua vida
encarcerado a seu passado doloroso, Chaparro, como vimos, decide organizar este
mesmo passado em forma de narrativa e, desta forma, consegue finalmente
solucionar suas próprias e antigas tensões individuais. Entendemos, nesta pesquisa,
que a literatura também se apresenta como um instrumento de realização de um ato
de memória, quando a mesma coloca em xeque discussões em circulação na
sociedade e, como em La pregunta de sus ojos, quando traz o tema da violação da
lei como pano de fundo de uma narrativa.
Concluímos que a análise das estratégias narrativas permitiu-nos refletir o
tema da mentira institucionalizada, elemento extra-ficcional representado na
narrativa de Sacheri a partir da violação da lei cometida por personagens que
deveriam resguardá-la. É importante observar que a violação da lei maior diz
respeito à própria transgressão da vida, representada no romance a partir do crime
contra uma jovem e, mais ainda, do crime contra a própria sociedade argentina, a
118
partir do terrorismo de Estado. Nesta medida, se o próprio Estado infringe inclusive
os limites humanos, é o sujeito – Ricardo Morales – quem age em busca de
vingança e se transforma ele mesmo em uma vítima perpétua de seus atos.
As hipóteses levantadas em nossa introdução, com respeito à presença de
um diálogo entre elementos ficcionais e extra-ficcionais na literatura de Sacheri,
fizeram-se confirmar na medida em que fomos traçando um recorrido que partisse
da análise das estratégias narrativas e desaguasse no que concebemos aqui como
significados do romance. Chegamos à conclusão de que, em La pregunta de sus
ojos, os elementos específicos da realidade sócio-histórica da Argentina deixam-se
entrever de uma forma outra que não a de um tratamento patente e duro desses
processos. A sutileza na apresentação dessas referências históricas pelo escritor
mostra-se como diferencial de La pregunta de sus ojos, a partir de sua fusão com o
literário num interessante jogo narrativo entre a memória fictícia de um personagem
e a memória de sua própria Nação.
A Argentina de Eduardo Sacheri é aquela que sai de Castelar e vai de trem a
Tribunales, a que caminha pela rua Talcahuano em direção a Corrientes, a das
escadarias do Palácio da Justiça, dos muitos Cafés de encontros na rua Tucumán,
dos bares mugrientos de Paseo Colón e da rua Venezuela, da marea humana que
marcha apressada nos terminais, a de uma longa conversa no banco de Rafael
Castillo, a das muitas esperas na Estación de Once. É também de Sacheri a
Argentina violenta das celas da prisão de Devoto, a de um deteriorado Arquivo
Central, a da corrupção cometida nos corredores judiciais, a da violação de vida(s), a
de um passado de dor guardado em um galpão.
De mãos dadas a Benjamín Chaparro, o leitor de La pregunta de sus ojos é
conduzido a um universo criado ingeniosamente pelo escritor, a partir de um diálogo
forte com a Argentina que o circunda e o interpela. Sacheri mostra-nos que sua
literatura nasce de elementos da cotidianidade, do extraordinário, como o próprio
autor afirma, obtido a partir do ordinário, rotineiro, comum. É tão só por meio de uma
mirada atenta a estes momentos peculiares inseridos no banal e costumeiro que
nasce a centelha para a escritura literária – a sua e a de seu próprio personagemautor Benjamín. O artístico, nesta medida, tem o poder de trazer a um primeiro plano
episódios que antes passariam desapercebidos, mas que encontram espaço de
manifestação e (re)criação graças a sua abordagem via literatura.
119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, Rubim Santos Leão de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar
Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. 11 ed. Rio de
Janeiro: Record, 2007.
ARFUCH, Leonor. Violencia política, autobiografía y testimonio. In: SELIGMANNSILVA, Márcio. GINZBURG, Jaime. FOOT HARDMAN, Francisco (Org.). Escritas da
violência, vol.2: representações da violência na história e na cultura contemporâneas
da América Latina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p.13-23
BAJTÍN, Mijaíl. El cronotopo. In: Teoría de la novela: Antología de textos del siglo
XX. Enric Sullà, ed. Barcelona: Crítica, 2001. p. 63-68.
BAL, Mieke. Teoría de la narrativa (una introducción a la narratología). Traducción
de Javier Franco. Ediciones Cátedra, 1995.
BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violencia. Trad. de Héctor A. Murena.
Buenos Aires: Editorial Leviatán, 1995.
BERENGUER, Ángel. Motivos y Estrategias: introducción a una teoría de los
lenguajes escénicos contemporáneos. In: Teatro, Revista de Estudios Escénicos.
Nº21. Alcalá de Henares, Universidad de Alcalá, p.49-72.
BORGES, Jorge Luis. El fin. In: Artificios, Alianza Editorial, Madrid, 1993, pág. 68.
Disponível em: <http://www.literatura.us/borges/elfin.html>. Acesso em: 15 set. 2013.
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Edição comemorativa do quarto
centenário patrocinada pelas academias espanholas. São Paulo: Alfaguara, 2004.
COHN, Dorrit. Técnicas de presentación de la consciencia. In: Teoría de la novela:
antología de textos del siglo XX. Enric Sullà, ed. Barcelona: Crítica, 2001. p.205-213.
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução: Eduardo
Guimarães. Campinas, SP: Pontes, 1987.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: NAU
Editora, 2002. Disponível em:
<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/121334/mod_resource/content/1/Foucaul
t_A%20verdade%20e%20as%20formas%20jur%C3%ADdicas.pdf>. Acesso em: 11
out. 2013.
GARRIDO DOMINGUÉZ, Antonio. El Texto Narrativo. Teoría de la Literatura y
Literatura Comparada. España: Editorial Síntesis, 2007.
120
GENETTE, Gèrard. Figuras III. Barcelona: Editorial Lumen, 1989.
GIARDINELLI, Mempo. El género negro: orígenes y evolución de la literatura policial
y su influencia en Latinoamérica. 1ª ed. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2013.
HERNÁNDEZ, José. El gaucho Martín Fierro. Disponível em:
<http://biblio3.url.edu.gt/Libros/gua_mf.pdf>. Acesso em: 15 set. 2013.
HOMERO. Ilíada. Trad. de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Abril, 2009.
Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/iliadap.pdf>. Acesso em
18 ago.2013.
JAMES, P.D. Segredos do romance policial. Tradução José Rubens Siqueira. São
Paulo: Três Estrelas, 2012.
LÁZARO CARRETER, Fernando; CORREA CALDERÓN, Evaristo. Cómo se
comenta un texto literario. 33ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 1998.
MCKEE, Robert. El guión: sustancia, estructura, estilo y principios de la escritura de
guiones. Barcelona: Alba Editorial, 2004.
MELVILLE, Herman. Moby Dick. Disponível em:
<http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/M/Melville,%20Herman%20%20Moby%20Dick.pdf>. Acesso em 30 out. 2013.
OLMOS, Ana Cecília. Narrar na pós-ditadura (ou no potencial crítico das formas
estéticas). In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. GINZBURG, Jaime. FOOT HARDMAN,
Francisco. (Org.). Escritas da violência, vol.2: representações da violência na história
e na cultura contemporâneas da América Latina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p.
133-142.
SACHERI, Eduardo. La pregunta de sus ojos. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus,
Alfaguara, 2010.
SACHERI, Eduardo. O segredo dos seus olhos. Tradução Joana Angélica d’Ávila
Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
______. Esperándolo a Tito y otros cuentos de fútbol. Buenos Aires: Galerna, 2000.
______. Te conozco Mendizábal y otros cuentos. Buenos Aires: Galerna, 2001.
______. Lo raro empezó después: cuentos de fútbol y otros relatos. 1ª ed. 10ª reimp.
Buenos Aires: Galerna, 2007.
121
______. Un viejo que se pone de pie y otros cuentos. 1ª ed. 3ª reimp. Buenos Aires:
Galerna, 2007.
______. Aráoz y la verdad. 1ª ed. 1ª reimp. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus,
Alfaguara, 2008.
______. Papeles en el viento. 1ª ed. 1ª reimp. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus,
Alfaguara, 2011.
______. Los dueños del mundo. Buenos Aires: Alfaguara, 2012.
______. La vida que pensamos. Buenos Aires: Alfaguara, 2013.
______. Ser feliz era esto. 1ª ed. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara,
2014.
SARLO, Beatriz. Tiempo pasado. In: Tiempo pasado: cultura de la memoria y giro
subjetivo. Una discusión. 1ª ed. Buenos Aires: Siglo XXI ediciones Argentina, 2005.
p.9-26.
SELIGMANN-SILVA, Márcio, org. Imagem e Memória. Belo Horizonte: FALE/UFMG,
2012.
SELIGMAN-SILVA, Márcio, org. História, memória e literatura: o testemunho na era
das catástrofes. São Paulo: Editora da Unicamp, 2003.
SHAKESPEARE, William. A trágica história de Hamlet, Príncipe da Dinamarca.
Fonte
Digital,
2000.
Disponível
em:
<
http://bibliotecaonline.net/ebooks/Shakespeare-Hamlet.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2013.
SÓFOCLES. Édipo Rei. Disponível em:
<http://www.uesb.br/evidencias/2014/01/fase-2-teatro/texto03.pdf>. Acesso em: 18
ago. 2013.
SULLÀ, Enric, ed. Teoría de la novela: antología de textos del siglo XX. Barcelona:
Crítica, 2001.
TOBIAS, Ronald. B. El guión y la trama: fundamentos de la escritura dramática
audiovisual. Madrid: Ediciones Internacionales Universitarias, 1999.
VILLEGAS, Juan. Nueva Interpretación y Análisis del Texto Dramático. Ottawa: Girol
Books, 1991.
122
El secreto de sus ojos (O segredo dos seus olhos). Direção: Juan José Campanella.
Argentina / España, 2009. 129 min. Roteiro: Eduardo Sacheri e Juan José
Campanella; baseado no romance La pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri.
Atores: Ricardo Darín (Benjamín Espósito), Soledad Villamil (Irene Menéndez),
Pablo Rago (Ricardo Morales), Javier Godino (Isidoro Gómez) e Guillermo Francella
(Sandoval).
123
APÊNDICE A
LINHA DO TEMPO EM LA PREGUNTA DE SUS OJOS
ANO
EPISÓDIO OCORRIDO
NO ROMANCE
1966
Ricardo Morales conhece
Liliana Colotto.
1967
Chaparro conhece Irene.
1968
1972
1973
1976
Morte de Liliana.
Chaparro conhece
Ricardo Morales, o viúvo
da vítima.
Ditadura autointitulada
“Revolução Argentina”
(1966 – 1973)
Governos de:
Onganía (1966 – 1970)
Levingston (1970 – 1971)
Lanusse (1971 – 1973)
Isidoro Gómez é preso
depois de uma briga em
um trem.
Isidoro Gómez é liberado
da prisão.
Desaparecimento de
Nacho, primo de
Sandoval.
Chaparro foge de Buenos
Aires a San Salvador de
Jujuy, acusado da morte
de Isidoro Gómez.
1982
EPISÓDIOS
HISTÓRICOS
REFERIDOS NO
ROMANCE
Ditadura militar
autointitulada
“Processo de
Reorganização Nacional”
(1976-1983)
Morte
de
Sandoval. Guerra das Malvinas entre
Inglaterra e Argentina
Chaparro volta a Buenos
(1982)
Aires para o enterro de
seu amigo.
124
1983
Chaparro regressa de vez
a Buenos Aires.
1991
Irene volta à Secretaria
como juíza.
1996
1999
Chaparro recebe a carta
de Ricardo Morales, vinte Greve geral contra o
anos após o seu último Governo
de
Carlos
encontro com o viúvo.
Menem (p.283)
Chaparro vai à casa de
Morales e descobre o
destino de Isidoro Gómez.
Chaparro se aposenta e,
duas semanas depois,
decide
escrever
um
romance sobre a história
de Morales.
125
APÊNDICE B
Entrevista que se realizó con el escritor argentino Eduardo Sacheri el 16 de
junio de 2014, en la ciudad de Buenos Aires, Argentina.
1. Pensando en tu labor de escritor, ¿en qué medida la cotidianidad te sirve
como material de creación literaria?
En mi caso, me sirve muchísimo. Te diría que es casi un objetivo mío cuando escribo
moverme dentro de ese mundo de lo cotidiano, pero porque creo que mi interés es
encontrar… o digamos plasmar en mis libros mi modo de entender la realidad. A mí
me parece que lo cotidiano es materia literaria, es material del arte. En todo caso, lo
que lo vuelve material artístico, material literario es la detención de la mirada del
autor. Tu vida, mi vida… probablemente estén constituidas por un montón de
momentos simples, rutinarios, anodinos, poco interesantes. Pero, sin embargo, hay
momentos que tienen una complexidad o una riqueza o una profundidad
especialísima. No necesariamente momentos límites de la vida… conozco a esta
persona o no la conozco, me caso o no me caso, tengo un hijo o no lo tengo, sin
duda, eso también… pero, tal vez, insisto, son momentos de una particular
clarividencia o de tomar conciencia de ciertas cosas o ubicarse frente a la vida de
determinado modo, que a veces tiene que ver con que procesemos de otro modo
recuerdos que tenemos y nos paramos en otro sitio. Por ejemplo, en La pregunta de
sus ojos, Benjamín tiene una determinada memoria sobre su pasado. Escribir un
libro, terminar de escribir un libro, terminar de cerrar ese pasado, de que la vida de
estas personas que… lo ubica en otro sitio y puede por primera vez hacer lo que no
fue capaz de hacer en treinta años, de enfrentar a esta mujer y decirle lo que siente
por ella. Eso es artístico para mí, para escribirlo, y para un lector, para leerlo.
2. Sobre tu biografía, ¿tu formación académica como licenciado en Historia
contribuye en alguna medida a la labor de escritor?
Yo creo que sí, porque atañe a la verosimilitud de lo que vas a contar. Si yo voy a
contar… un ejemplo, que La pregunta de sus ojos está situada en la Argentina de
126
los años sesenta y setenta, los sucesos históricos son un telón de fondo, en general,
no aparecen en primer plano. Mi protagonista no tiene una acción política, una
militancia, un compromiso. Sin embargo, lo que sucede en la política argentina los
afecta, pero también los afectan las costumbres de su época, el lenguaje de su
época. Sus horizontes de vida están limitados por la cultura y la sociedad de su
tiempo. Sus prácticas, sus modos de relacionarse con una mujer, lo que se le dice o
no se le dice a una mujer, por ejemplo. Esta historia no podría situarse en la
actualidad, porque hoy en día el silencio no es una opción o lo es mucho menos.
Habría que justificarlo de otro modo en el personaje, que haría algo mucho más
enfermizo al personaje. En cambio, en los años sesenta, una mujer comprometida
con otro tenía una sacralidad, era intocable. Y bueno, eso uno lo saca de la Historia,
de conocer Historia.
3. Es de gran importancia tu obra contística, constituida a partir de relatos
futbolísticos. ¿Identificas una razón para que tu producción literaria priorice
los cuentos en relación con las novelas?
Yo creo que tiene que ver con mi lenta, cómo decirte, con mi lenta construcción
como escritor. Yo no aprendí a ser escritor. Se nota (se ríe). Vos imaginás que un
licenciado en Historia que escribe trabajos académicos para su comunidad de
colegas, que siempre ha leído mucha ficción, cuentos y novelas, y que a los 26, 25…
26 años siente el deseo de escribir ficción. Este es mi punto de partida: no sé
hacerlo. Siento que un cuento es más abarcable, las fronteras del cuento son más
abarcables que las de una novela. Digamos, tiene sus propios desafíos. No digo que
es más fácil escribir un cuento que una novela, pero los límites están más cercanos.
Puede funcionar o no funcionar, pero es un éxito o un fracaso que se mide en horas
de trabajo, en días de trabajo. No en años, o en meses o en años de… Entonces yo
sentí en ese escritor y experto que era… yo voy a escribir un cuento y terminarlo.
Terminaba bien o terminaba mal, lo había logrado o no había logrado, pero en una…
Mis primeros cuentos están escritos en una noche, en un espasmo de necesidad,
más allá de la corrección que tuvieron después, que ahí sí le aplicaba en todo caso
ese trabajo artesanal que uno tiene en los trabajos académicos, de mejor este…
mejor esta palabra… Ese método, si querés, yo ya lo traía de mi trabajo académico,
127
pero esa necesidad, por eso digo como un espasmo… necesito escribir y terminar.
Yo podía resolverlo en los cuentos y no en una novela, porque en una novela vos
estás obligado a la insatisfacción de no terminar, de avanzar y seguir avanzando, y
seguir internándote en algo a ciegas, sin punto de referencia, porque las
dimensiones son mucho mayores. Yo, por eso, después de tres libros de cuentos,
recién me sentí mínimamente habilitado para intentar una novela. Y, sin embargo,
fijate como a mi protagonista lo puse a escribir una novela, como un modo de
exorcizar mis propios temores y de poner sobre sus espaldas dudas que eran mías.
Aun después de tres libros.
4. También con respecto a un aspecto biográfico y volviendo a La pregunta de
sus ojos, ¿hay relación entre el periodo en el que trabajaste en un juzgado y la
motivación para escribir la novela?
Mira, yo trabajé en el Juzgado entre el año 87 y el 91. Fueron cinco años. Y fue un
trabajo muy enriquecedor para mí. De hecho, en algún momento pensé en estudiar
Derecho o Abogacía como para continuar una carrera en el poder judiciario. No lo
hice, porque me gustaba mucho trabajar en la Justicia pero me resultaba muy
tedioso el estudio del Derecho. Como en la facultad de Derecho en la Universidad de
Buenos Aires, o sea… en Historia todo eran dudas, preguntas, inquietudes, era muy
interesante, mientras que en Derecho era todo monótono, aburrido, memorístico,
reiterativo, ¿me entendés? Entonces finalmente abandoné ese trabajo y me fui a
trabajar, mientras terminaba mis estudios, en otros lugares que no tienen nada que
ver. Y para mí fue una gran pérdida dejar de trabajar en ese… porque trabajar en un
Juzgado es muy estimulante, práctico y estimulante al mismo tiempo. Yo creo que en
algún punto, inventar esta historia, porque la historia es inventada, fue un modo de
saldar ese duelo, de volver a ese mundo y despedirme bien. De hecho, no he vuelto
a escribir sobre el mundo judiciario. No lo necesité. Pero, digamos, para mí fue una
muy mala decisión, viéndola en los años siguientes, yo me arrepentí mucho de
haber dejado este trabajo. Recién me reconcilié con la decisión, cuando me di
cuenta de que me gustaba mucho dar clases de Historia y cuando escribí esa
novela. Fue como un modo de cerrar esa, digo, escribir es un modo de dialogar con
128
tu propia vida y a veces saldar ciertas deudas. Bueno, esa novela fue, de cierto
modo, un saldar esa deuda.
5. Pero los problemas en este espacio también aparecen en la novela, la
violación a la ley…
Sí, porque…, digamos, en el Juzgado en que a mí me tocó trabajar, por suerte, me
tocó buena gente, gente comprometida con su trabajo y que quería hacer bien las
cosas. Pero en el medio de un mundo de burocracia e ignorancias y cosas mal
hechas y sobre todo una lentitud y una inaptitud muy fuerte. Pero, por suerte, yo
sentía que mi deseo de trabajar bien se amparaba en gente que trabajaba bien y me
enseñaba a trabajar bien. Por eso, la novela está dedicada, no sé si te has fijado, al
final de la novela hay una nota a mis compañeros, porque yo sentí que, si bien los
personajes son ficticios, vos fijate, ¿qué intentan esos empleados judiciales de La
pregunta de sus ojos? Intentan hacer justicia, intentan contraponer, y a veces con
decisiones levemente ilegales e intentan sobreponerse a lo que está malhecho. Y
mis personajes también.
6. ¿Y hay aquellos que están en contra a la justicia, al encuentro de la verdad
del crimen?
Bueno, eso es algo que yo siento que en mi país es muy fuerte también. Somos una
sociedad que se lleva muy mal con la ley, con la noción de ley, yo no digo con la ley
escrita, concreta y… Somos extremadamente individualistas, caóticos, egoístas.
Entonces, esto de aceptar que hay una ley que tengo que tolerar y respetar porque
es una ley, nos cuesta mucho procesar. Se ve en cosas menores, como manejamos
en la calle, y se ve en cosas más profundas, como esto de, el modo en que el
asesino logra amparo para salir de la cárcel.
7. Además de este periodo en el que trabajaste en el juzgado, ¿identificas
algún otro elemento biográfico en la novela?
129
Creo que no, tal vez… Geográficamente mi protagonista vive en Castelar, que es el
mismo pueblo en que vivo yo, y viaja a los Tribunales en el mismo tren, donde han
detenido en la novela al asesino, no detenido como en la película, sino detenido por
accidente en un tren. Bueno, pero eso tiene que ver con que encontrar lugares
familiares me parece que sea más sólido a la narración. Si yo tuviera que inventar
una persecución en las calles de Rio de Janeiro, no me atrevería porque no conozco
Rio de Janeiro. Y no me serviría google maps para decirme cruce a esta calle y
encuentre esta otra calle. No conozco los tiempos, no conozco los olores, no
conozco las fisionomías de las personas. Por eso prefiero que las geografías tengan
que ver con los lugares que conozco.
8.
¿Tuviste
alguna
influencia
estética,
literaria
que
reconozcas
conscientemente en la obra?
Mira, yo siento que como... para mí escribir es una prolongación del acto de leer. Me
expuse a escribir por la simple voluntad de experimentar más profundamente ciertos
placeres lectores, pero con esa sensación de, viste que vos como lector podéis
comprometerte mucho con una historia pero hay ciertos límites a tu labor como
lector, estancados por la propia historia que se está poniendo ahí el autor. Yo
sentía… ah, pero si yo fuera el autor iría para allá o me gustaría leer una historia que
tuviera algo que ver con eso pero no tanto… Yo siento que me puse a escribir, o
mejor, escribo y leo lo que tengo ganas de leer. Porque te hago todo este largo
prólogo, porque siento que mis influencias son los escritores que me encantó leer.
No sé si escribo como ellos, no creo poder escribir como ellos, pero sí siento que en
la mezcla que tengo en la cabeza, de todos los autores que me encantó leer a lo
largo de la vida, hay algo que se trasmite de algún modo, pero no tengo muy claro
cómo y tampoco estoy muy interesado en averiguarlo, porque siento que le quitaría
el elemento lúdico en juego, que es tan importante. Yo siento que esto me sale y no
quiero saber muy bien por qué me sale, porque quiero que me siga saliendo.
9. ¿Crees que La pregunta de sus ojos tiene algo del género policial o género
negro?
130
Yo creo que no. Yo creo que convertimos a la película en un policial, pero para mí la
novela no lo tiene. Para mí es una novela con un crimen, pero no es un policial…
¿Sabes por qué digo que no? Porque hay un elemento de azar que en policiales,
digamos, que la literatura policial pretende que no exista. O sea, creo que una de las
bases de los policiales… hay una investigación consciente que se le muestra más o
menos al lector y hay una serie de encadenamientos causales. Pero vos, fijate de lo
que hablamos antes… ¿cómo detienen al sospecho? De casualidad. Se encuentra
perdido en la nada, lo han dejado de buscar y de repente lo detienen porque se
golpea con un inspector de trenes en un tren. Hay un elemento accidental muy
fuerte. Del mismo modo, al final de la historia, quien le pone la verdad frente a los
ojos a Benjamín es el viudo, el carcelero, porque necesita que lo ayude a saldar esa
realidad que construyó en el campo. ¿Vos la viste en la película? Porque estos son
los dos cambios más grandes, porque Campanella me pidió que lo convirtiéramos en
un policial, entonces, por eso, la detención no es accidental, sino lo van a buscar y
tuve que escribir toda una serie de escenas que condujesen al estadio con esa cosa
del policial de te muestro las pistas – en ese caso el apellido de jugadores de fútbol,
pero te lo muestro así con ese pase de magia de un mago de… lo ves pero no lo ves
y te lo muestro solo en la escena final para que vos vayáis al estadio con esta carga
emotiva de ¡uy! Me acabo de dar cuenta. Y en el final quien decide ir al campo a
contestarse a sus preguntas es Benjamín, mientras que en la novela el motor no es
Benjamín. El motor es el viudo que dice voy a morir, por lo tanto voy a matar a ese
hombre, pero no quiero que la gente de este pueblo no entienda nada y me
considere un monstruo. Prefiero que no encuentren nada y voy a pedir ayuda a ese
tipo. Y ahí entra un elemento del azar en el hecho de que los sucesos de la novela
terminan en el año 96 y algunos años después Benjamín decide escribir la historia,
mientras que en la película se utiliza la indagación para la novela, es la que motiva al
mismo tiempo en ir a buscar a la verdad al campo. Por eso, digo, para mí yo no
encuentro casi elementos de policial clásico en la novela.
10. En mi lectura identifico dos tramas paralelas en la novela: una que se
relaciona al crimen de la joven y otra que se relaciona al amor de Benjamín por
Irene. ¿Identificas alguna relación de estas dos tramas y las dos voces que
131
narran en la novela? Porque son dos voces, una del narrador externo y otra del
propio Chaparro… ¿Hay relación entre estas dos tramas y las dos voces?
Como te contaba rato atrás, al momento de escribir la novela… En realidad, la
historia del crimen, por llamarlo como vos lo has identificado, yo hacía muchos años
que la tenía dando vueltas en la cabeza, pero me resultaba muy densa para
escribirla, en el sentido, yo había pensado, esto lo va a escribir un empleado judicial,
y no va a contar, yo creo que, bueno, lo cuenta un narrador omnisciente, lo cuenta el
viudo... No lo puede contar el asesino, porque ve poco, digamos, hay una cuestión
de, si lo va a contar un personaje tiene que conocer suficiente de lo que ha
sucedido. Entonces, lo va a contar un empleado judicial jubilado. Y yo pensaba…
ese hombre no tiene nada que hacer y va a contar esa historia. Esa historia que
tiene un final terrible. Decidí que lo contara un empleado judicial para que el
empleado y el lector se sorprendieran con el mismo final. Te digo que en los
policiales que el narrador sepa y el lector no a mí me suena como una estafa, como
si el narrador sabe todo desde el principio, por qué no… no sé cómo explicarte, no
me gusta cuando… Te digo no, el narrador de la historia del crimen se sorprende
junto con el lector, se encuentra con esa casa, con ese cadáver, con ese galpón y
adentro del galpón una jaula y dentro de la jaula otro cadáver y ahí entiende todo. Y
ahí termina la historia. ¡Qué historia triste! ¡Qué historia oscura! Yo no quiero
pasarme un año escribiendo esto que termine así. Di vueltas, empecé, fracasé,
empecé, fracasé, hasta que dije este tipo… digamos, vamos a encender una luz.
Vamos a iluminar de algún lado esta escenografía, y la luz viene de una mujer que
está fuera de esta trama, porque la novela está fuera de trama. En la película está
dentro de la trama y en la novela está fuera de la trama. Está en la trama de la vida
de él, pero no en la trama del medio Judicial, porque en la novela viste que está
enamorado de ella y la saca encima. La aleja. Entonces yo pensé la va… va a ser
como una extensión permanente de su vida y al final de la novela va a hablar con
ella. Y nunca nos vamos a enterar de que lo que ella le dice. Lo único que sabemos
es que le va a hablar. Entonces es una historia que va a envolverla a la otra.
Entonces, una historia la va a contar Benjamín, porque es su novela, es su primera
novela, su única novela, y la va a contar y va a hablar en primera persona y va a
tener un determinado nivel de lenguaje, ya no, porque no se piensa escritor, es una
132
especie de memoria. Y por fuera de él, un narrador omnisciente va a contarlo a él
mientras escribe la novela. De vez en cuando, en tiempo presente, igual el pretérito
que va a usar Benjamín para contar ese pasado, en el presente, ese narrador
omnisciente sabe cosas de Benjamín que Benjamín no dice de sí mismo. A veces
Benjamín habla en primera persona y apenas alude a Irene, porque en su novela no
va a perder jugando a sus sentimientos, pero el narrador omnisciente sí se anima, y
a veces hay una contradicción entre lo que Benjamín dice de sí mismo en relación a
Irene y lo que el narrador sabe que Benjamín habla sobre Irene. No sé si te he
contestado a tu pregunta.
11. En la novela que se propone construir, el personaje Benjamín deja
explícitas todas sus angustias en cuanto escritor, lo que garantiza un
interesante tono metanarrativo a La pregunta de sus ojos. ¿Compartes las
dudas de Chaparro? ¿Hay algo del escritor Eduardo en el escritor Benjamín?
Todo. Sobretodo el escritor Eduardo del año 2004. Ahora me siento más seguro.
Diez años atrás no, y menos para una novela. Sin duda, esta que tenéis vos en la
cartera es mi cuarta novela (se refiere a “Ser feliz era esto”, su nueva novela). Y ya
van cinco libros de cuentos, artículos de prensa. Pero ese Eduardo es un escritor
que todavía se siente muy inseguro. Con eso de tener una formación académica, a
mí me costó mucho reconsiderarme con la idea de que puedo ser escritor sin tener
un curso universitario que me habilite para serlo. Ahora está, pero en ese momento
me lo pensaba mucho. Entonces, me sentía muy cerca de ese improvisado de
escritor, que era Benjamín.
12. ¿Puedes identificar alguna estrategia de forma general para la construcción
de tus personajes?
Mira, hay algo que a mí me importa mucho en mis personajes, que es como hablan.
Hay un escritor argentino que yo admiro mucho que es Osvaldo Soriano. No sé si lo
has leído. A mí me gustan mucho las novelas de Osvaldo Soriano, me gustan mucho
los personajes de sus novelas. Te puedo decir que Soriano hacía algo con una
enorme maestría: él jamás describe a sus personajes. No dice ni físicamente cómo
133
son, ni describe sus emociones, pero los pone a hablar. Y, en lo que dicen, se
construyen para el lector. Y eso para mí es esencial, porque eso es lo que determina
la coherencia de un personaje, su modo de hablar. Te doy un ejemplo en La
pregunta de sus ojos, Benjamín y Pablo Sandoval son muy amigos. Jamás se dicen
casi nada cariñoso. Se insultan, se hacen burla, sin embargo, creo que nadie duda
que se quieren mucho, por como se burlan, como se insultan o por ciertos actos
mínimos que tienen, de los cuales hablan muy poco. Entonces, para mí, si a lo mejor
sigue una preocupación que recorre mi literatura es que los personajes sean
personas con cierta solidez en su modo de ser y en su modo de hablar.
13. ¿Encuentras alguna relación entre el bloqueo del personaje de realizarse
sentimentalmente, de concretizar su amor, con el problema de la justicia
desestructurada, que surge en la narrativa a partir del desarrollo del caso de la
muerte de Liliana? Hablaste un poco sobre eso, que Benjamín solo consigue
concretizar su amor cuando organiza un poco esa historia que está
desordenada en su cabeza, el caso de Liliana…
Para mí, y lo digo como lector, supongo que yo escribí el libro, ya no tengo chances,
pero… Si me preguntás a mí como lector, yo creo que en esa novela hay tres
hombres que aman de manera muy diferente entre sí. Uno ama de una manera
horrenda y monstruosa, que es Isidoro Gómez. Es incapaz de tolerar la frustración
de que esa mujer no lo ama. Entonces es capaz de atacarla, violarla y asesinarla
antes de que, con tal de que no pertenezca a otro. Después está el modo de amar
de Ricardo Morales, que es un modo fidelizado y cristalizado. Se enamora de una
mujer, para él inalcanzable, que de modo milagroso se enamora de él y la tragedia lo
inscribe para siempre en ese presente. Y vivir en ese presente, lo que el tipo le
permite a cada día levantarse e ir a darle de comer al asesino que tiene escondido, o
sea, permanecer en ese, digamos, perpetuar ese castigo es un modo de perpetuar
su situación sentimental con Liliana. Es capaz de renunciar a todo futuro con tal de
conservar lo que sea, las hilachas de ese presente. Y el modo de Benjamín, me
parece que es un tercer modo, que es el modo, que es el hecho de cambiar por una
mujer. Me parece que Benjamín después de escribir la no… escribir la novela es un
modo indirecto de volver a su propio amor, y a todo lo que no fue capaz de hacer por
134
ese amor. Pero el desenlace de esos dos muertos, para mí, vuelvo a decir, para mí
simplemente como lector, le dice… yo no quiero ser como esos dos, y a mí manera
me parezco bastante. O sea, mi amor callado es enfermizo. Mi amor callado se ha
perpetuado en esos treinta años, no he sido capaz de cambiar, ni de hacer nada
para cambiarlo para mejor.
14. Esta cuestión del castigo, que hablaste, es un tema que actualmente se
discute mucho en Brasil, cuando uno, con sus propias manos…
Aquí se le suele llamar Justicia por manos propias.
Entonces, Ricardo Morales, el viudo, hace justicia con sus propias manos
cuando se da cuenta de que no hay como seguir el camino institucional, para
que la ley se cumpla. ¿Crees que Morales termina por castigarse a sí mismo
cuando actúa para que el crimen no quede impune?
Yo creo que sí. Yo creo que, en realidad, la facha institucional desencadena una
tragedia mucho peor, aún que la tragedia inicial de la muerte de Liliana, porque tanto
el viudo como el asesino, digamos, también la situación de detención del asesino, y
hasta su muerte, son inhumanas a su manera. Y el hecho de Morales reducido a ser
carcelero a la perpetuidad, para mí es inhumano. O sea, para mí, aquí en la
Argentina me preguntaron mucho cuando salió la película sobre la justicia... Y lo que
yo siento es que no puedo tomar partido y ni puedo decir si está bien o está mal, si
yo lo haría. No tengo ni idea qué haría yo. A mí me… La primera imagen que me
viene de esa novela es la de las jaulas, y la del hombre afuera y del hombre adentro.
Y los dos. Y da lo mismo de cuál está, del lado afuera o del lado adentro. ¿Conoces
el cuento El hombre? Te lo digo porque la última frase de ese cuento que es algo así
como a fin de cuentas importa poco quién le da de comer a quién a través de las
rejas. Ese cuento yo lo escribí cuando tenía en mente la novela pero no me animaba
a escribir la novela. Te lo digo para que lo sepas porque si lo queréis incorporarlo de
alguna manera. Con eso de que quería escribir la novela pero no me animo a
escribir novelas, digo, voy a contar un día en la vida de Morales y Gómez. No sé, el
cuento simplemente, Morales se despierta en el campo, odiando estar ahí, odiando
la lluvia, soñó con Liliana, se levanta, desayuna, se va a trabajar, enciende el motor
de su viejo auto porque necesita que caliente, prepara su desayuno, camina a través
135
del campo, abre los candados, o sea, la misma escena que en la novela hará
Chaparro ese mismo recorrido… le da de comer a Gómez… levántese, Gómez, le
dice, le cambia la bandeja de comida, cierra los candados, se vuelve a su casa y se
va a trabajar. Te digo porque si queréis leer el cuento...
15. ¿Pero qué piensas sobre el castigo como reparación a un daño hecho?
Yo creo que el castigo tiene que existir… creo que el no castigo lo único que hace es
empeorar las tragedias o hacer más inhumano según los castigos. Me parece que en
eso soy bastante, cómo explicarte, bastante occidental y liberal, al estilo siglo XVIII,
quiero decir, me parece que los seres humanos tendemos a ser muy crueles unos
con otros y la ley es una de las pocas cosas que detienen nuestra parte más oscura
y más oprobiosa y más terrible. Pero que cuando quedamos librados a nuestros
impulsos somos peores.
16. ¿Y la justicia que se hace por las propias manos? ¿Ese tipo de castigo?
Es que no es justicia. Para mí la clave es que sea social, que la sociedad sea capaz
de responder, porque si no, solo hay tragedia, todo es peor. Yo no defiendo, no
justifico el…, para mí es un oxímoron eso de justicia con manos propias. No hay
modo de privatizar la justicia. El acto privado no es justicia a nadie. No es lo mismo.
17. ¿Qué importancia tienen los recuerdos en tu obra? Porque al final de la
novela, hay una nota en la que haces referencia a la Argentina de los años
setenta que surge como telón de fondo de La pregunta de sus ojos. ¿Qué
importancia tiene ese elemento histórico tan importante al país en la
constitución de la novela?
No es casual que yo estudié Historia. Para mí es muy importante… una cosa es lo
que hemos vivido... O sea, no somos tanto lo que hemos vivido, sino lo que
recordamos, según qué recordamos y cómo recordamos, nos ubica en la vida. Me
parece que eso nos pasa como persona y creo que nos pasa también como
sociedad. Por eso es tan importante indagar sobre el pasado, hacernos preguntas
136
complejas sobre el pasado, no comprar miradas simplistas sobre el pasado. Buenos,
malos, héroes, villanos… o sea, no me gustan las miradas facilitadoras del pasado,
exculpatorias del pasado. Y me parece… No es casual que la novela se sitúe antes
de la dictadura militar argentina… Porque en la Argentina hay como un fácil
consenso de…, digamos, Argentina tuvo una salvaje dictadura, probablemente la
peor de América Latina, del 76 al 83. Maravillosamente fuimos capaces de recuperar
la democracia y juzgar a los militares que habían violado los derechos humanos, en
un proceso de idas y vueltas. Fue muy complejo. Fueron a juicio, después otro
presidente perdonó a esos militares, después volvieron a ser encarcelados. Pero la
sociedad argentina se auto disculpó muy fácilmente, se perdonó a si misma muy
fácilmente, como los culpables son los militares. Nosotros no tuvimos nada que ver
con nada. Como si los militares hubieran bajado de platos voladores desde otro
planeta y de repente se encarnasen en Argentina. Y eso para mí es un error de la
memoria histórica, el no hacerse cargo de esa Argentina, violenta, enemiga de la
justicia, dispuesta a considerar al bando propio como dueño de toda la verdad, y
sobre esa Argentina intolerante y sangrienta que vienen los militares, a llevar el baño
de sangre a límites de una orgía de violencia. Y sin embargo me pasó que más de
uno me dijera ¿y por qué no situaste la historia a partir del 76? Era un modo de
decirme no te metás en la época anterior, y para mí hay que meterse, hay que
aceptar que la Argentina era, antes del 76, violenta, sangrienta, intolerante,
agonística. Sí éramos. Por algo vinieron los militares. Pero mi opinión es minoritaria.
Es mucho más tranquilizador pensarnos inocentes, puros y buenos y víctimas, sobre
todo, víctimas, cuando en realidad, digamos, eso de que consideremos a todos
víctimas no sea... Yo puedo decir, yo, cuando empezó la dictadura tenía nueve años.
137
APÊNDICE C
Entrevista realizada com o escritor argentino Eduardo Sacheri no dia 16 de
junho de 2014, na cidade de Buenos Aires, Argentina. (N. do T.) 152
1. Pensando em seu trabalho de escritor, em que medida a cotidianidade lhe
serve como material de criação literária?
No meu caso, me serve muitíssimo. Eu te diria que é quase um objetivo meu quando
escrevo mover-me dentro desse mundo do cotidiano, porque acho que meu
interesse é encontrar… ou digamos plasmar em meus livros meu modo de entender
a realidade. Acredito que o cotidiano seja matéria literária, material de arte. Em todo
o caso, o que o converte em material artístico, material literário, é a detenção pelo
olhar do autor. Sua vida, minha vida… provavelmente estejam constituídas por um
montão de momentos simples, rotineiros, anódinos, pouco interessantes. No entanto
há momentos que têm uma complexidade ou uma riqueza ou uma profundidade
especialíssima. Não necessariamente momentos limites da vida… conheço esta
pessoa ou não a conheço, me caso ou não me caso, tenho um filho ou não o tenho,
sem dúvida, isso também… mas, talvez, insisto, são momentos de uma particular
clarividência ou de tomar consciência de certas coisas ou situar-se diante da vida de
determinado modo, que às vezes tem a ver com que processemos de outro modo
lembranças que temos e paramos em outro lugar. Por exemplo, em La pregunta de
sus ojos, Benjamín tem uma determinada memória sobre seu passado. Escrever um
livro, terminar de escrever um livro, terminar de fechar esse passado, de que a vida
dessas pessoas que… o situa em outro lugar e assim pode pela primeira vez fazer o
que não foi capaz de fazer em trinta anos, enfrentar esta mulher e dizer-lhe o que
sente por ela. Isso é artístico para mim, para escrevê-lo e, para um leitor, para lê-lo.
2. Com relação a sua biografia, sua formação acadêmica como licenciado em
História contribui de alguma forma em seu trabalho de escritor?
Entrevista com tradução nossa. Nela, buscamos manter, ao máximo possível, a proximidade com
o que disse o autor na entrevista original (Ver apêndice B), o que inclui reformulações e titubeios
próprios da fala.
152
138
Acredito que sim, porque se relaciona com a verossimilitude daquilo que você vai
contar. Se eu vou contar… um exemplo, que La pregunta de sus ojos está situada
na Argentina dos anos sessenta e setenta, os fatos históricos são um pano de fundo,
de forma geral, não aparecem em primeiro plano. Meu protagonista não tem uma
ação política, uma militância, um compromisso. No entanto, o que sucede na política
argentina lhes afeta, mas também lhes afetam os costumes de sua época, a
linguagem de sua época. Seus horizontes de vida estão limitados pela cultura e pela
sociedade de seu tempo. Suas práticas, seus modos de relacionar-se com uma
mulher, o que se diz ou não se diz a uma mulher, por exemplo. Esta historia não
poderia estar situada na atualidade, porque hoje em dia o silêncio não é uma opção
ou é muito menos. Deveria estar justificado de outro modo no personagem, o que
faria do personagem algo muito mais enfermiço. Por outro lado, nos anos sessenta,
uma mulher comprometida com outro tinha uma sacralidade, era intocável. E bom,
isso alguém depreende da História, de conhecer História.
3. É de grande importância sua obra contística, constituída a partir de relatos
futebolísticos. Identifica alguma razão para que sua produção literária priorize
os contos em comparação aos romances?
Eu acho que tem a ver com minha lenta, como te digo, com minha lenta construção
como escritor. Eu não aprendi a ser escritor. Nota-se (sorri). Imagine você que um
licenciado em História, que escreve trabalhos acadêmicos para sua comunidade de
colegas, que sempre leu muita ficção, contos e romances, e que aos 26, 25… 26
anos sente o desejo de escrever ficção. Este é meu ponto de partida: não sei fazêlo. Sinto que um conto é mais abarcável, as fronteiras do conto são mais abarcáveis
que as de um romance, quero dizer, tem seus próprios desafios. Não digo que seja
mais fácil escrever um conto que um romance, mas os limites estão mais
delimitados. Pode funcionar ou não funcionar, mas é um êxito ou um fracasso que se
mede em horas de trabalho, em dias de trabalho. Não em anos, ou em meses ou em
anos de… Então eu senti nesse escritor e especialista que era… eu vou escrever um
conto e terminá-lo. Terminava bem ou terminava mal, havia conseguido ou não havia
conseguido, mas em uma… Meus primeiros contos estão escritos em uma noite, em
um espasmo de necessidade que está para além da correção que tiveram depois,
139
que aí sim se aplicava em todo o caso esse trabalho artesanal que se tem nos
trabalhos acadêmicos, de melhor este... melhor esta palavra… Esse método, vamos
dizer, eu já trazia de meu trabalho acadêmico, mas essa necessidade, por isso digo
como um espasmo… necessito escrever e terminar. Eu podia resolvê-lo nos contos
e não em um romance, porque em um romance você está obrigado à insatisfação de
não terminar, de avançar e seguir avançando, e seguir adentrando em algo às
cegas, sem ponto de referência, porque as dimensões são muito maiores. Eu, por
isso, depois de três livros de contos, recém me senti minimamente habilitado em
tentar um romance. E, no entanto, repare como coloquei o meu protagonista para
escrever um romance, como um modo de exorcizar meus próprios temores e de
colocar sobre suas costas dúvidas que eram minhas. Inclusive depois de três livros.
4. Ainda com respeito a um aspecto biográfico e voltando a La pregunta de sus
ojos, existe alguma relação entre o período em que trabalhou em um juizado e
a motivação para escrever este romance?
Olha, eu trabalhei no juizado entre os anos 87 e 91. Foram cinco anos. E foi um
trabalho muito enriquecedor para mim. De fato, em algum momento pensei em
estudar Direito ou Advocacia como um modo de continuar uma carreira no poder
judiciário. Não o fiz, porque gostava muito de trabalhar na Justiça mas me parecia
muito tedioso o estudo de Direito. Como na faculdade de Direito, na Universidade de
Buenos Aires, ou seja… em Historia tudo eram dúvidas, perguntas, inquietudes, era
muito interessante, enquanto que em Direito era tudo monótono, tedioso,
memorístico, reiterativo, você entende? Então finalmente abandonei esse trabalho e
fui trabalhar, enquanto terminava os meus estudos, em outros lugares que não
tinham nada a ver. E para mim foi uma grande perda deixar de trabalhar nesse…
porque trabalhar em um juizado é muito estimulante, prático e estimulante ao mesmo
tempo. Eu acho que em algum ponto, inventar esta história, porque a história é
inventada, foi um modo de saldar essa dor, de voltar a esse mundo e despedir-me
bem. De fato, não voltei a escrever sobre o mundo judiciário. Não necessitei. Mas,
digamos, para mim foi uma decisão muito ruim, vendo-a nos anos seguintes, eu me
arrependi muito de ter deixado esse trabalho. Recém me reconciliei com a decisão,
quando me dei conta de que gostava muito de dar aulas de História e quando
140
escrevi esse romance. Foi como um modo de fechar essa, digo, escrever é um modo
de dialogar com a sua própria vida e às vezes saldar certas dívidas. Bom, esse
romance foi, de certo modo, uma forma de saldar essa dívida.
5. Mas os problemas neste espaço também aparecem no romance, a violação à
lei…
Sim, porque…, digamos, no juizado que me coube trabalhar, por sorte, me coube
boa gente, gente comprometida com o seu trabalho e que queria fazer bem as
coisas. Mas no meio de um mundo de burocracia e ignorâncias e coisas mal feitas e
sobretudo uma lentidão e uma inaptidão muito forte... Mas, por sorte, eu sentia que
meu desejo de trabalhar bem se amparava em gente que trabalhava bem e me
ensinava a trabalhar bem. Por isso, o romance está dedicado, não sei se você se
deu conta, ao final do romance há uma nota a meus companheiros, porque eu senti
que, ainda que os personagens sejam fictícios, veja você, o que tentam esses
empregados judiciais de La pregunta de sus ojos? Tentam fazer justiça, tentam oporse, e às vezes com decisões levemente ilegais e tentam sobrepor-se ao que está
mal feito. E meus personagens também.
6. E há aqueles que estão contra a justiça, contra o encontro da verdade do
crime?
Bem, isso é algo que sinto que também é muito forte em meu país. Somos uma
sociedade que lida muito mal com a lei, com a noção de lei, não digo com a lei
escrita, concreta e… Somos extremamente individualistas, caóticos, egoístas. Então,
isto de aceitar que há uma lei que temos que tolerar e respeitar porque é uma lei,
nos custa muito processar. Pode-se ver em coisas menores, como conduzimos na
rua, e se vê em coisas mais profundas, como isto de, o modo como o assassino
consegue amparo para sair da prisão.
7. Além deste período em que você trabalhou no juizado, identifica algum outro
elemento biográfico no romance?
141
Acho que não, talvez… Geograficamente meu protagonista vive em Castelar, que é
a mesma cidade em que eu vivo, e viaja a Tribunales no mesmo trem, onde
prenderam no romance ao assassino, não preso como no filme, mas preso por
acidente em um trem. Bom, mas isso tem a ver com o fato de que encontrar lugares
familiares me parece que seja mais sólido à narração. Se eu tivesse que inventar
uma perseguição nas ruas do Rio de Janeiro, eu não me atreveria porque não
conheço Rio de Janeiro. E não me serviria google maps para me dizer cruze esta
rua e encontre esta outra rua. Não conheço os tempos, não conheço os aromas, não
conheço as fisionomias das pessoas. Por isso prefiro que as geografias tenham a
ver com os lugares que conheço.
8. Você sofreu alguma influência estética, literária que possa reconhecer
conscientemente na obra?
Veja, eu sinto que... para mim escrever é uma prolongação do ato de ler. Expus-me
a escrever pelo simples desejo de experimentar mais profundamente certos prazeres
leitores, mas com essa sensação de, você vê que como leitor pode comprometer-se
muito com uma história mas há certos limites a sua tarefa como leitor, estancados
pela própria história que aí coloca o autor. Eu sentia… ah, mas se eu fosse o autor
iria para lá ou gostaria de ler uma história que tivesse algo a ver com isso mas não
tanto… Eu sinto que comecei a escrever, ou melhor, escrevo e leio o que tenho
vontade de ler. Porque te faço todo este longo prólogo, porque sinto que minhas
influências são os escritores que adorei ler. Não sei se escrevo como eles, não
acredito poder escrever como eles, mas sim sinto que na mescla que tenho na
cabeça, de todos os autores que me encantou ler ao longo da vida, há algo que se
transmite de algum modo, mas não tenho muito claro como e também não estou
muito interessado em averiguá-lo, porque sinto que eliminaria o elemento lúdico em
jogo, que é tão importante. Eu sinto que isto me sai e não quero saber muito bem
por que me sai, porque quero que me siga saindo.
9. Você acredita que La pregunta de sus ojos tenha algo de gênero policial ou
gênero negro?
142
Eu acredito que não. Eu acho que convertemos o filme em um policial, mas para
mim o romance não o tem. Para mim é um romance com um crime, mas não é um
policial… Sabe por que digo que não? Porque há um elemento de azar que nos
policiais, digamos, que a literatura policial pretende que não exista. Ou seja, acho
que uma das bases dos policiais… há uma investigação consciente que se mostra
mais ou menos ao leitor e há uma série de encadeamentos causais. Mas você,
preste atenção naquilo que falamos antes… como prendem ao suspeito? Por
casualidade. Encontra-se perdido no nada, deixaram de buscá-lo e de repente o
prendem porque briga com um inspetor de trens em um trem. Há um elemento
acidental muito forte. Da mesma forma, ao final da história, quem coloca a verdade
diante dos olhos de Benjamín é o viúvo, o carcereiro, porque necessita que o
ajudem a saldar essa realidade que foi construída no campo. Você viu no filme?
Porque estas são as duas maiores mudanças, porque Campanella me pediu que o
convertêssemos em um policial, então, por isso, a detenção não é acidental, e sim
vão buscá-lo e tive que escrever toda uma série de cenas que conduzissem ao
estádio com essa coisa do policial de te mostro as pistas – nesse caso o sobrenome
de jogadores de futebol, mas te mostro assim com esse passe de mágica de um
mago de… você vê mas não vê e eu te mostro somente na cena final para que você
vá ao estádio com esta carga emotiva de caramba! Acabei de me dar conta. E no
final quem decide ir ao campo para responder a suas próprias perguntas é
Benjamín, enquanto que no romance o motor não é Benjamín. O motor é o viúvo
que diz vou morrer, portanto vou matar esse homem, mas não quero que as pessoas
deste lugar não entendam nada e me considerem um monstro. Prefiro que não
encontrem nada e vou pedir ajuda a esse homem. E aí entra um elemento de
casualidade no fato de que os episódios do romance terminam no ano 96 e alguns
anos depois Benjamín decide escrever a história, enquanto que, no filme, a
indagação é utilizada para o romance, é a que motiva ao mesmo tempo em ir buscar
a verdade no campo. Por isso, digo, para mim quase não encontro elementos do
policial clássico no romance.
10. Em minha leitura identifico duas tramas paralelas no romance: uma que se
relaciona ao crime da jovem e outra que se relaciona ao amor de Benjamín por
Irene. Identifica alguma relação entre estas duas tramas e as duas vozes que
143
narram no romance? Porque são duas vozes, uma do narrador externo e outra
do próprio Chaparro… Há relação entre estas duas tramas e as duas vozes?
Como te contava um instante atrás, no momento de escrever o romance… Em
realidade, a história do crime, por chamá-la como você a identificou, fazia muitos
anos que eu a tinha dando voltas na cabeça, mas me parecia muito densa para
escrevê-la, no sentido... eu havia pensado, isto vai escrever um empregado judicial,
e não vai contar, eu acho que, bom, conta um narrador omnisciente, conta o viúvo...
Não pode contar o assassino, porque vê pouco, digamos, há uma questão de, se vai
contar um personagem tem que conhecer suficientemente do que aconteceu. Desta
forma, vai contar um empregado judicial aposentado. E eu pensava… esse homem
não tem nada para fazer e vai contar essa história. Essa história que tem um final
terrível. Decidi que a contasse um empregado judicial para que o empregado e o
leitor se surpreendessem com o mesmo final. Te digo que nos policiais em que o
narrador saiba e o leitor não me soa como uma burla, como se o narrador sabe tudo
desde o principio, por que não … não sei como te explicar, não gosto quando… Te
digo, não, o narrador da história do crime se surpreende junto com o leitor, se
encontra com essa casa, com esse cadáver, com esse galpão e dentro do galpão
uma jaula e dentro da jaula outro cadáver e aí entende tudo. E aí termina a história.
Que história triste! Que história obscura! Eu não quero passar um ano escrevendo
algo que termine assim. Dei voltas, comecei, fracassei, comecei, fracassei, até que
disse este homem… digamos, vamos acender uma luz. Vamos iluminar de algum
lado esta cenografia, e a luz vem de uma mulher que está fora desta trama, porque o
romance está fora da trama. No filme está dentro da trama e no romance está fora
da trama. Está na trama da vida dele, mas não na trama do universo judicial, porque
no romance você viu que está apaixonado por ela e a afasta. Então eu pensei vai…
vai ser como uma extensão permanente de sua vida e ao final do romance vai falar
com ela. E nunca vamos saber o que ela lhe falou. A única coisa que sabemos é que
vai falar com ela. Desta forma é uma história que vai envolver a outra. Então, uma
história será contada por Benjamín, porque é seu romance, é seu primeiro romance,
seu único romance, e vai contá-lo e vai falar em primeira pessoa e terá um
determinado nível de linguagem, já não, porque não se pensa escritor, é uma
espécie de memória. E por fora dele, um narrador onisciente vai contá-lo enquanto
144
escreve o romance. De vez em quando, em tempo presente, igual o pretérito que vai
usar Benjamín para contar esse passado, em presente, esse narrador onisciente
sabe coisas de Benjamín que Benjamín não diz de si mesmo. Às vezes Benjamín
fala em primeira pessoa e somente alude a Irene, porque em seu romance não vai
expor os seus sentimentos, mas o narrador onisciente sim se anima, e às vezes há
uma contradição entre o que Benjamín diz de si mesmo em relação à Irene e o que o
narrador sabe que Benjamín fala sobre Irene. Não sei se respondi a sua pergunta.
11. No romance que se propõe construir, o personagem Benjamín deixa
explícitas todas as suas angústias enquanto escritor, o que garante um
interessante tom metanarrativo a La pregunta de sus ojos. Compartilha das
dúvidas de Chaparro? Há algo do escritor Eduardo no escritor Benjamín?
Tudo. Sobretudo o escritor Eduardo do ano 2004. Agora me sinto mais seguro. Dez
anos atrás não, e menos para um romance. Sem dúvida, este que você tem na bolsa
é meu quarto romance (refere-se a “Ser feliz era esto”, seu novo romance). E já vão
cinco livros de contos, artigos de imprensa. Mas esse Eduardo é um escritor que
ainda se sente muito inseguro. Com isso de ter uma formação acadêmica, me
custou muito reconsiderar-me com a ideia de que posso ser escritor sem ter um
curso universitário que me habilite a sê-lo. Agora não, mas nesse momento pensava
muito sobre isso. Desta forma, me sentia muito próximo desse improvisado de
escritor, que era Benjamín.
12. Pode identificar alguma estratégia de forma geral para a construção de
seus personagens?
Olha, há algo que me importa muito em meus personagens, que é como falam. Há
um escritor argentino que eu admiro muito que é Osvaldo Soriano. Não sei se você
já leu. Eu gosto muito dos romances de Osvaldo Soriano, gosto muito dos
personagens de seus romances. Posso dizer que Soriano fazia algo com uma
enorme maestria: ele jamais descreve seus personagens. Não diz nem fisicamente
como são, nem descreve suas emoções, mas os põe a falar. E, naquilo que dizem,
se constroem para o leitor. E isso para mim é essencial, porque isso é o que
145
determina a coerência de um personagem, seu modo de falar. Te dou um exemplo
em La pregunta de sus ojos, Benjamín e Pablo Sandoval são muito amigos. Jamais
se dizem quase nada carinhoso. Se insultam, se zombam, no entanto, creio que
ninguém duvida que se querem muito, por como se zombam, como se insultam ou
por certos atos mínimos que têm, dos quais falam muito pouco. Então, para mim, se
talvez exista uma preocupação que recorre minha literatura é a de que os
personagens sejam pessoas com certa solidez em seu modo de ser e em seu modo
de falar.
13. Encontra alguma relação entre o bloqueio do personagem de realizar-se
sentimentalmente, de concretizar seu amor, com o problema da justiça
desestruturada, que surge na narrativa a partir do desenvolvimento do caso da
morte de Liliana? Você falou um pouco sobre isso, que Benjamín só consegue
concretizar seu amor quando organiza um pouco essa história que está
desordenada em sua cabeça, o caso de Liliana…
Para mim, e o digo como leitor, considero que eu escrevi o livro e já não tenho
chances, mas… Se pergunta a mim como leitor, eu creio que nesse romance há três
homens que amam de maneira muito diferente entre si. Um ama de uma maneira
horrenda e monstruosa, que é Isidoro Gómez. É incapaz de tolerar a frustração de
que essa mulher não o ama. Então é capaz de atacá-la, violá-la e assassiná-la antes
de que, de forma que não pertença a outro. Depois está o modo de amar de Ricardo
Morales, que é um modo fidelizado e cristalizado. Apaixona-se por uma mulher, para
ele inalcançável, que de modo milagroso se apaixona por ele e a tragédia o inscreve
para sempre nesse presente. E viver nesse presente, o que lhe permite a cada dia
levantar-se e ir dar de comer ao assassino que tem escondido, ou seja, permanecer
nesse, digamos, perpetuar esse castigo é um modo de perpetuar sua situação
sentimental com Liliana. É capaz de renunciar a todo futuro com tal de conservar o
que seja, os fiapos desse presente. E o modo de Benjamín, me parece que é um
terceiro modo, que é o modo, que é o fato de mudar por uma mulher. Acredito que
Benjamín depois de escrever o ro… escrever o romance é um modo indireto de
voltar a seu próprio amor, e a tudo aquilo que não foi capaz de fazer por esse amor.
Mas o desenlace desses dois mortos, para mim, volto a dizer, para mim
146
simplesmente como leitor, se diz… eu não quero ser como esses dois, e a minha
maneira me pareço bastante. Ou seja, meu amor calado é doentio. Meu amor calado
se perpetuou nesses trinta anos, não fui capaz de mudar, nem de fazer nada para
mudá-lo para melhor.
14. Esta questão do castigo, da qual você falou, é um tema que atualmente se
discute muito no Brasil, quando alguém, com suas próprias mãos…
Aqui se costuma chamar Justiça pelas próprias mãos (Justicia con manos propias).
Então, Ricardo Morales, o viúvo, faz justiça pelas próprias mãos quando se dá
conta de que não há como seguir o caminho institucional, para que a lei se
cumpra. Acredita que Morales termina por castigar-se a si mesmo quando atua
para que o crime não termine impune?
Eu acredito que sim. Eu acho que, na realidade, a fachada institucional desencadeia
uma tragédia muito pior, inclusive que a tragédia inicial da morte de Liliana, porque
tanto o viúvo quanto o assassino, digamos, também a situação de detenção do
assassino, e até sua morte, são desumanas a sua maneira. E o fato de Morales
reduzido a ser carcereiro a toda perpetuidade, para mim é desumano. Ou seja, para
mim, aqui na Argentina me perguntaram muito quanto saiu o filme sobre a justiça... E
o que eu sinto é que não posso tomar partido e nem posso dizer se está bem ou
está mal, se eu faria o mesmo. Não tenho nem ideia do que faria eu. Para mim… A
primeira imagem que me vem desse romance é a das jaulas, e a do homem de fora
e do homem de dentro. E os dois. E tanto faz de qual lado está, do lado de fora ou
do lado de dentro. Conhece o conto El hombre? Te digo porque a última frase desse
conto que é algo assim como afinal de contas importa pouco quem lhe dá de comer
a quem através das grades. Esse conto eu escrevi quanto tinha em mente o
romance mas não me animava a escrever o romance. Te digo para que saiba
porque se quiser incorporá-lo de alguma maneira. Com isso de que queria escrever
o romance mas não me animo a escrever romances, digo, vou contar um dia na vida
de Morales e Gómez. Não sei, no conto simplesmente Morales acorda no campo,
odiando estar aí, odiando a chuva, sonhou com Liliana, se levanta, toma café, vai
trabalhar, liga o motor de seu velho carro porque necessita que ele aqueça, prepara
seu café, caminha através do campo, abre os cadeados, ou seja, a mesma cena que
147
no romance fará Chaparro nesse mesmo percurso… dá de comer a Gómez…
levante-se, Gómez, lhe diz, lhe troca a bandeja de comida, fecha os cadeados, volta
a sua casa e vai trabalhar. Te digo porque se quiser ler o conto...
15. E o que você pensa sobre o castigo como reparação a um dano feito?
Eu acho que o castigo tem que existir… acho que o não castigo o único que faz é
piorar as tragédias ou fazer mais desumano segundo os castigos. Acredito que nisso
sou bastante, como explicar, bastante ocidental e liberal, ao estilo século XVIII,
quero dizer, me parece que os seres humanos tendemos a ser muito cruéis uns com
os outros e a lei é uma das poucas coisas que detêm nossa parte mais obscura e
mais oprobriosa e mais terrível. Mas quando ficamos livres segundo nossos
impulsos somos piores.
16. E a justiça que se faz pelas próprias mãos? Esse tipo de castigo?
É que não é justiça. Para mim a chave é que seja social, que a sociedade seja
capaz de responder, porque se não, só existe tragédia, tudo é pior. Eu não defendo,
não justifico o…, para mim é um oximoro isso de justiça com as próprias mãos. Não
há modo de privatizar a justiça. O ato privado não é justiça para ninguém. Não é o
mesmo.
17. Que importância têm as recordações em sua obra? Porque ao final do
romance, há uma nota na qual se faz referência à Argentina dos anos setenta
que surge como pano de fundo de La pregunta de sus ojos. Que importância
tem esse elemento histórico tão importante ao país na constituição do
romance?
Não é casual que eu tenha estudado História. Para mim é muito importante… uma
coisa é o que vivemos... Ou melhor, não somos tanto o que vivemos, mas o que
recordamos, segundo o que recordamos e como recordamos, nos situa na vida. Eu
acredito que isso nos passa como pessoas e acredito que nos passa também como
sociedade. Por isso é tão importante indagar sobre o passado, fazer-nos perguntas
148
complexas sobre o passado, não comprar olhares simplistas sobre o passado. Bons,
maus, heróis, vilãos… ou seja, não gosto de miradas facilitadoras do passado,
defensoras do passado. E me parece… Não é casual que o romance se situe antes
da ditadura militar argentina… Porque na Argentina existe como que um fácil
consenso de…, digamos, Argentina teve uma selvagem ditadura, provavelmente a
pior da América Latina, de 76 a 83. Maravilhosamente fomos capazes de recuperar a
democracia e julgar os militares que haviam violado os direitos humanos, em um
processo de idas e voltas. Foi muito complexo. Foram a julgamento, depois outro
presidente perdoou esses militares, depois voltaram a ser encarcerados. Mas a
sociedade argentina se autodesculpou muito facilmente, se perdoou a si mesma
muito facilmente, como os culpados são os militares. Nós não tivemos nada a ver
com nada. Como se os militares tivessem descido em discos voadores vindos de
outro planeta e de repente se encarnassem na Argentina. E isso para mim é um erro
da memória histórica, o não encarregar-se dessa Argentina, violenta, inimiga da
justiça, disposta a considerar o bando próprio como dono de toda a verdade, e sobre
essa Argentina intolerante e sangrenta que vêm os militares, para levar o banho de
sangre aos limites de uma orgia de violência. E no entanto aconteceu que mais de
um me dissesse – e por que você não situou a história a partir de 76? Era um modo
de me dizer não se meta na época anterior, e para mim há que meter-se, deve-se
aceitar que a Argentina era, antes de 76, violenta, sangrenta, intolerante, agonística.
Sim éramos. Por algo vieram os militares. Mas minha opinião é minoritária. É muito
mais tranquilizador pensar-nos inocentes, puros e bons e vítimas, sobretudo,
vítimas, quando na realidade, digamos, isso de que consideremos a todos vítimas
não seja... Eu posso dizer, eu, quando começou a ditadura tinha nove anos.

Documentos relacionados