baixos - Avatares Antenados
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA VERDADE E MEMÓRIA: ESTRATÉGIAS E SIGNIFICADOS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS, DE EDUARDO SACHERI por ELEN FERNANDES DOS SANTOS Curso de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) RIO DE JANEIRO 2014 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA VERDADE E MEMÓRIA: ESTRATÉGIAS E SIGNIFICADOS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS, DE EDUARDO SACHERI ELEN FERNANDES DOS SANTOS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas). Orientador: Profº. Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Agosto de 2014 3 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA Verdade e memória: estratégias e significados de La pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri Elen Fernandes dos Santos Orientador: Professor Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas). Aprovada em: __/__/___ ___________________________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Miguel Ángel Zamorano Heras Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – UFRJ ___________________________________________________________________ Prof. Dr. Ary Pimentel Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – UFRJ ___________________________________________________________________ Profª. Drª. Martha Alkimin de Araújo Vieira Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura – UFRJ ___________________________________________________________________ Profª. Dr. Victor Manuel Ramos Lemus Membro suplente – Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – UFRJ ___________________________________________________________________ Profª. Drª. Ana Cristina dos Santos Membro suplente – Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas – UERJ 4 S237 Santos, Elen Fernandes dos Verdade e memória: estratégias e significados de La pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri / Elen Fernandes dos Santos. – Rio de Janeiro, 2014. 146 f. Il. Col. Orientador: Prof. Dr. Miguel Ángel Zamorano Heras Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Literatura Hispânica , Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro / Rio de Janeiro, 2014. 1. Sacheri, Eduardo – La pregunta de sus ojos – História e Crítica 2. Estratégias narrativas I. Título. II. Zamorano Heras, Miguel Ángel. CDD A863.6 5 Dedico este estudo a Elizeu, Elizete e Diogo. 6 AGRADECIMENTOS A Deus, Quem me inspira e acalma, mesmo quando as palavras fogem ou a ansiedade cerca. Glorifico o Seu Nome também aqui, porque sei que Sua luz foi a responsável pela coragem de seguir em frente. A Diogo Gonzaga, meu conselheiro e abrigo, pelo otimismo depositado neste estudo; agradeço todas as palavras, sempre tão certeiras, de incentivo; por ter se doado inteiramente a nós por todos estes anos. Para sempre o meu sim. A meus pais, Elizeu e Elizete, por serem alicerce da minha vida, vozes que aconselham, mãos que afagam, colos que confortam. À minha mãe Elizete Fernandes, em especial, agradeço imensamente a dádiva de ser chamada, até hoje, de sua “flor”; por ter ofertado sua juventude à nossa criação; por ter insistido em minha formação de todas as formas que estavam a seu alcance, desde quando ainda me levava, com sete ou dezessete, na garupa da bicicleta à escola. Sou mais eu porque sou você! A meu pai Elizeu Queiroz, quem traz em si cada membro da família “sentado no coração”, por todas as recomendações e demonstrações de afeto que são únicas; por sentir falta de sua Elita como se a semana tivesse passado como um mês. Agradeço a doação plena de vida, cada beijo afável e os passeios na “corcunda do pai”. Já te disse hoje? À minha irmã Evelin Fernandes, minha companheira pelas veredas da vida, a nossa “mana” e mamãe do nosso Gui, por ter estado ao meu lado desde sempre, igual a “papel e bala”. Agradeço a torcida por minha felicidade e as palavras que, encorajando ou demonstrando saudade, me tiram sempre um sorriso. Ao professor Doutor Miguel Ángel Zamorano, tão importante e querido para mim, por ter aceitado orientar-me e por fazê-lo com total disponibilidade e primor; por todos os encontros sempre muito enriquecedores e fundamentais para que este estudo tenha sido realizado; por ter me guiado pelo mundo estimulante e turbulento da pesquisa, ampliando meus horizontes. 7 Diante de todo o crescimento que esta parceria me proporcionou, sou grata por ter aguçado e estimulado em mim uma sensibilidade que eu não sabia existir. Agradeço por nunca ter se contentado com a primeira proposta, com o primeiro sumário ou com a primeira escritura; por ter exigido sempre um algo a mais e por acreditar que o melhor ainda estava por vir. Ao professor Doutor Ary Pimentel, pelas aulas maravilhosas que me fizeram escolher o caminho da Literatura; por toda a indicação bibliográfica; pela leitura atenciosa de partes deste texto; por doar-se tão plenamente à tarefa docente e por acreditar sempre no potencial de seus alunos. À professora Doutora Silvia Cárcamo, por ter me sugestionado no recorte de leitura realizado neste estudo; por ter lido um dos capítulos e ter me incentivado com comentários valiosos. Agradeço por ter me introduzido, durante a graduação, no universo acadêmico da pesquisa e, com sua sabedoria infinita e extrema doçura, inspirar-me como ideal de docente. Ao professor Doutor Víctor Lemus, por todo o conhecimento doado pelos muitos períodos em que fui sua aluna; por sua paixão pela Literatura que nos contagia. À professora Doutora Martha Alkimin, por brindar-me, com brilhantismo e leveza, um primeiro contato com o universo da teoria literária ainda na graduação. À professora Doutora Sonia Reis, pelos muitos esclarecimentos nos e-mails trocados durante o mestrado e por ter se mostrado tão atenciosa na solução de minhas dúvidas. Aos professores que integram à banca, por aceitarem tão gentilmente ler e discutir este estudo e por me possibilitarem a oportunidade de crescimento. Aos representantes da editora Alfaguara (Buenos Aires), por conferirem o contato com o escritor. Ao autor de La pregunta de sus ojos, Eduardo Sacheri, por toda a disponibilidade e atenção doadas a mim nos contatos via e-mail ou telefone, e por ter se mostrado extremamente generoso ao ceder uma entrevista para esta pesquisa. 8 Aos meus alunos – os que já passaram e os que ainda integrarão minha história, por me permitirem uma aprendizagem que é constante. A todos os colegas de caminhada da Faculdade de Letras da UFRJ, por terem feito parte de minha vida acadêmica e por ainda fazerem, cada qual a sua forma, parte de mim. Em especial à Gisele Reinaldo, amiga e conselheira, por me lembrar continuamente que já tenho o que realmente é importante e por mostrar-se sempre tão disponível, para a dissertação e para a vida. A Carolina, José Carlos, Felipe, Gláucia, Flávio, Cristiano, Bruno, Thiago e Débora, bem como àqueles que completam o nosso “grupo dos Amigos”, por, nestes mais de dez anos de convivência, constituírem para mim o que de melhor a palavra Amizade pode significar. 9 SINOPSE Análise das estratégias narrativas empregadas pelo escritor argentino Eduardo Sacheri no romance La pregunta de sus ojos, como caminho de compreensão dos significados históricoculturais que ecoam na obra. Reflexão sobre a importância da focalização como estratégia narrativa e sobre os personagens em sua caracterização e em sua dimensão oculta. Leitura da trama de busca como desencadeadora das ações no romance de Sacheri. Análise dos espaços representados e seus significados para a reflexão da violência e da violação da lei como motivos centrais no romance. O tratamento da memória por Eduardo Sacheri. 10 RESUMO SANTOS, Elen Fernandes dos. Verdade e memória: estratégias e significados de La pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta dissertação analisa as estratégias narrativas constituintes do romance La pregunta de sus ojos (2005), do escritor argentino Eduardo Sacheri, com o objetivo de refletir os significados histórico-culturais a partir da apreciação dos elementos estético-formais que integram o romance. Procuramos discutir, neste estudo, questões relacionadas à polifonia enunciativa; ao tipo de trama, denominado de busca; à caracterização das personagens e à importância simbólica dos espaços, como caminho que nos permita estabelecer um diálogo com a realidade sociocultural argentina que ecoa a todo instante no romance de Sacheri. As estratégias que o autor lança mão em seu processo de criação literária são, neste estudo, foco de nosso interesse, no intuito de que estes elementos compositivos do romance nos conduzam a uma apreciação dos significados latentes na obra – a violência e a violação da lei como uma constante em diferentes esferas sociais e a busca pela verdade enquanto valor fundamental para o próprio personagem e, em âmbito mais amplo, para toda a sociedade. Nesta medida, visamos refletir a busca do protagonista como forma de desvelamento da verdade de um crime que está para além da violação da vida de uma jovem. Entendemos que a trama de busca está a serviço da restauração de um valor básico para a vida social, mas que, por contrário, não está realizado na sociedade representada pela ficção. É o trabalho de organização da memória via escritura, realizado por um personagem, que atua como porta de acesso do leitor a uma Argentina de distintas temporalidades, trazida à luz pelas mãos do escritor. Palavras-chave: Eduardo Sacheri, Estratégias narrativas, Significados do romance, Focalização, Personagens, Trama de busca, Espaços, Violência, Violação da lei, Memória. 11 ABSTRACT SANTOS, Elen Fernandes dos. Verdade e memória: estratégias e significados de La pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. This paper analyzes the narrative strategies which occur in the novel La pregunta de sus ojos (2005), of the Argentinian writer Eduardo Sacheri, aiming to reflect upon the historic and cultural meanings based on the appreciation of the aesthetic and formal elements that constitutes the novel. We tend to discuss here issues related to the enunciative polyphony, the kind of plot called pursuit, the characters description, and the symbolic relevance of the spaces, as a way that allows us establishing a dialog with the Argentinian sociocultural reality that echoes continuously in Sacheri’s novel. In this study, the focus of our interests is on the strategies that the author employs in his literary creation process, wishing that these compositional elements of the novel can guide us through an appreciation of the latent meanings in the writing – the violence and the violation of the law as a regular fact in different social levels and the pursuit of the truth as an elementary value both to the character himself and to the whole society, in a wider scope. Doing so, our purpose is to reflect upon the pursuit of the protagonist as a way to reveal the truth of a crime that goes beyond the violation of the life of a young woman. We assume that the plot of searching is used for a restoration of a basic value for social life, which, on the other hand, is not taking place in the community represented in the fiction. It is the task of memory organization through writing (made by a character) that allows the reader to reach an Argentina of many temporalities, what comes up by the hands of the writer. Keywords: Eduardo Sacheri, Narrative strategies, Meanings of the novel, Focusing mechanism, Characters, Pursuit plot, Spaces, Violence, Violation of law, Memory. 12 RESUMEN SANTOS, Elen Fernandes dos. Verdade e memória: estratégias e significados de La pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta disertación analiza las estrategias narrativas que constituyen a la novela La pregunta de sus ojos (2005), del escritor argentino Eduardo Sacheri, con el objetivo de reflexionar los significados histórico-culturales a partir de la apreciación de los elementos estético-formales que integran la novela. Buscamos discutir, en este estudio, temas relacionados a la polifonía enunciativa; al tipo de trama, denominado de búsqueda; a la caracterización de los personajes y a la importancia simbólica de los espacios, como camino que nos permita establecer un diálogo con la realidad sociocultural argentina que resuena a todo instante en la novela de Sacheri. Las estrategias que el autor trae a luz en su proceso de creación literaria son, en este estudio, foco de nuestro interés, con tal de que estos elementos compositivos de la novela nos conduzcan a una apreciación de los significados latentes en la obra – la violencia y la violación de la ley como una constante en diferentes esferas sociales y la búsqueda por la verdad en cuanto valor fundamental para el propio personaje e, en ámbito más amplio, para toda la sociedad. De este modo, nos proponemos reflexionar la búsqueda del protagonista como forma de descubrimiento de la verdad de un crimen que está para más allá de la violación de la vida de una joven. Entendemos que la trama de búsqueda pone en servicio la restauración de un valor básico para la vida social, pero que, por contrario, no se realiza en la sociedad que se representa en la ficción. Es el trabajo de organización de la memoria vía escritura, realizado por un personaje, que actúa como puerta de acceso del lector a una Argentina de distintas temporalidades, que se trae a la luz por las manos del escritor. Palabras-clave: Eduardo Sacheri, Estrategias narrativas, Significados de la novela, Focalización, Personajes, Trama de búsqueda, Espacios, Violencia, Violación de la ley, Memoria. 13 Siempre fuiste mi espejo, quiero decir que para verme tenía que mirarte. Julio Cortázar La literatura no es más que un sueño dirigido. Jorge Luis Borges (1989) En cuanto a la sangrienta Argentina de los años setenta, que de tanto en tanto se asoma como telón de fondo de estas páginas, ojalá fuese igual de ficticia, igual de inexistente. Eduardo Sacheri (2010) 14 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 15 I VOZES E ENTORNOS DE EDUARDO SACHERI ................................................. 21 1.1 A arte de contar: mediação crítica sobre o autor ................................................. 21 1.2 Aspectos iniciais de La pregunta de sus ojos: argumento, estrutura formal e divisões ..................................................................................................................... 28 II ESTRATÉGIAS NARRATIVAS: UMA LEITURA DOS ELEMENTOS CONSTITUINTES DO ROMANCE LA PREGUNTA DE SUS OJOS........................ 30 2.1 A importância da focalização como estratégia narrativa: a polifonia enunciativa ... 30 2.1.1 Características do FP (focalizador-personagem) ............................................ 31 2.1.2 Características do FE (focalizador externo) ..................................................... 36 2.2 Os personagens de La pregunta de sus ojos ...................................................... 46 2.2.1 Os personagens e sua caracterização ............................................................. 48 2.2.2 Os personagens e sua dimensão oculta .......................................................... 52 2.3 Forma e sentido da trama: a busca da verdade como motivo central das ações ... 60 2.3.1 A trama de busca e os conflitos individuais ...................................................... 63 2.3.2 A trama de busca e os conflitos sociais............................................................ 68 III DAS ESTRATÉGIAS AOS SIGNIFICADOS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS ... 75 3.1 A violência e a violação da lei em La pregunta de sus ojos ................................ 75 3.2 Os espaços representados e seus significados no romance: espaços do crime e espaços da justiça ..................................................................................................... 85 3.3 O tratamento da memória pela narrativa de Eduardo Sacheri ..........................101 CONCLUSÃO .........................................................................................................112 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................119 APÊNDICES ...........................................................................................................123 15 INTRODUÇÃO La pregunta de sus ojos (2005)1 figura como um dos romances do escritor argentino Eduardo Sacheri (Buenos Aires, 1967). A escolha desta obra como objeto de estudo parte de um interesse mais amplo, enquanto professora, pesquisadora e leitora, pelo romance hispano-americano em suas muitas facetas estilísticas e contextuais. Na infinidade de possibilidades de pesquisas que este interesse abre a um futuro pesquisador, minha aproximação a Sacheri se deu pela leitura inicial e despretensiosa de seus contos, nas preciosas aulas de literatura ministradas por um professor querido na universidade. Do contato com a contística do autor, La pregunta de sus ojos me foi apresentada como a primeira empreitada de Sacheri como romancista. Também aqui muitas possibilidades de reflexão da obra se ergueram, em compasso com as discussões que realizávamos no meio acadêmico, as quais integraram um período intenso de autoconhecimento e de descoberta própria do desejo de ir ao encontro do universo da pesquisa em literatura. Foram estes diálogos vespertinos sobre literatura hispano-americana os causadores de meu interesse por investigar, aprofundando no estudo de um romance, a obra de Sacheri no mestrado, aspiração essa, como antes dito, nascida da troca de olhares e perspectivas que lançávamos sobre o texto do escritor. Estas distintas miradas que a obra admite que lhe sejam direcionadas me possibilitaram o exercício laborioso de aprender a delimitar o que poderia ou não configurar-se como um tema de pesquisa. Em verdade, as muitas e também necessárias tentativas de focar e objetivar o olhar conformaram um período difícil mas crucial para que chegássemos ao tema deste estudo. Decidir por pesquisar um romance contemporâneo argentino como consequência de um encantamento mais amplo pela literatura hispânica era só o início de todo um processo de aprendizagem como pesquisadora que se iniciava com a entrada para o mestrado. E, seguramente, a primeira destas aquisições – a bem dizer, uma aprendizagem metodológica – foi certificar-me de que o texto literário não é o fim, mas antes o início e a fonte de todas 1 SACHERI, Eduardo. La pregunta de sus ojos. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2010. 16 as nossas conjecturas, razão pela qual toda análise deve atentar-se primeiro àquilo que a obra literária tem a oferecer. Nesta medida, o tema deste estudo – a análise das estratégias narrativas empregadas por Eduardo Sacheri como caminho de leitura dos significados latentes em La pregunta de sus ojos – proporcionou-me o que considero o maior aprendizado nestes anos dedicados à análise e compreensão deste romance: associar à dimensão estética e artística, que é sempre única em cada obra, uma dimensão sociocultural de leitura, a qual se alcança tão somente concebendo-se a obra como fonte primeira de conhecimento e acesso a um mundo construído artisticamente pelo escritor. Não é aqui nosso intuito refletir estes aspectos artísticos do romance como uma espécie de verificação puramente formal e retórica que se encerra em si mesma, o que, a nosso ver, se afastaria do nobre propósito de buscar compreender e dialogar, ao final de tudo, com os significados inerentes à realidade histórico-social referida a todo instante em La pregunta de sus ojos. Considerar de forma mais detida cada estratégia narrativa possibilitou-nos por em prática os distintos modos como podemos discorrer sobre uma obra, comentar suas diversas partes e depreender sentidos a partir de como essas partes se relacionam. Entendemos que uma possível orientação de leitura de uma obra literária é pensar na análise da forma do texto literário tão somente a serviço de um tema2, o qual delimitamos após um processo contínuo de leitura e releitura da obra de Eduardo Sacheri. E é justamente este o caminho que tecemos neste estudo: partimos das estratégias narrativas empregadas pelo autor – selecionadas de forma que pudéssemos contemplar ao máximo a organização da obra literária como um todo artístico – e justificamos a escolha de cada uma destas estratégias a favor dos temas que intuímos conformar a obra, e que aqui chamamos de significados do romance. Assim, metodologicamente partimos de duas dimensões de análise – uma que se quer mais formalista-esteticista, voltada para os mecanismos internos de composição da narrativa; e outra que tomamos como uma dimensão mais sociológica-cultural de leitura, alcançada a partir do diálogo que a obra estabelece com a realidade sócio-histórica argentina. LÁZARO CARRETER, Fernando; CORREA CALDERÓN, Evaristo. Cómo se comenta un texto literario. 33ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 1998. 2 17 Em uma pequena reflexão sobre a consciência do trabalho de pesquisa que aqui se realiza, permito-me dizer que o exercício de análise aprofundado da obra de Sacheri a partir destas duas vertentes metodológicas, conectadas e vinculadas entre si, atuou no incremento de minhas habilidades críticas, que, mesmo longe de estarem concluídas, devem muito a este estudo e a toda a aprendizagem possibilitada por esta incursão literária. O desenvolvimento de minhas competências enquanto leitora e pesquisadora e, mais que isso, a ampliação de minha sensibilidade pela oportunidade do contato mais denso com o literário representam um ganho imensurável que devo a esta nossa busca contínua por conectar, ao longo de todo o processo de análise e apreciação da obra, estas duas dimensões de leitura. Tendo realizado estes esclarecimentos metodológicos, fundamentais para a concepção deste estudo e, em um pincelar introspectivo, ter apresentado a nosso leitor os sendeiros que nos conduziram a pesquisar a obra de Sacheri, ressalvamos aqui que este estudo visa atuar como caminho de iluminação de um segmento literário que também merece destaque dentro da obra do autor, haja vista o relevo dado a seus contos dentro de sua produção literária. Deste modo, pesquisar o primeiro romance de Sacheri, como aqui já sinalizamos, mostra-se uma tarefa desafiadora, em função da proposta mesma de buscar entrever a seleção e uso de recursos empregados pelo autor com o objetivo de indagar sobre a relação entre o uso destas estratégias e os significados político-sociais que ecoam na obra do escritor. Partindo à apresentação da estrutura organizacional deste estudo, reservamos ao capítulo inicial “Vozes e entornos de Eduardo Sacheri” a apresentação de um pequeno panorama da vida e da obra do escritor argentino. Em “A arte de contar: mediação crítica sobre o autor”, ofereceremos uma pequena mediação crítica construída a partir da junção de todo o material que encontramos sobre o escritor em meios eletrônicos, principalmente a partir de entrevistas – transcritas ou em vídeos, conferidas por Sacheri e disponibilizadas em sites específicos. No mais, também exploraremos neste capítulo a entrevista realizada com o autor em Buenos Aires e que nos foi cedida tão gentilmente para este estudo. Por sua vez, o subcapítulo de nome “Aspectos iniciais de La pregunta de sus ojos: argumento, estrutura formal e divisões” tem a função de contribuir para o 18 caminho que será trilhado nos capítulos que se seguem, a partir de uma concisa exposição da trama, da estrutura formal do romance e de suas divisões internas. Julgamos pertinente este aporte inicial em nossa pesquisa, tendo em vista que desde o princípio mesmo deste estudo nos lançamos à análise de estratégias artísticas que acionarão a todo instante a trama da obra. Após esta introdutória contextualização biográfica e literária, seguimos caminho para o segundo capítulo deste estudo, no qual lançamo-nos especificamente à leitura dos elementos constituintes de La pregunta de sus ojos. Sinalizamos aqui que nossa escritura buscou estruturar-se a partir de uma análise gradativa das estratégias literárias que Sacheri lança mão na conformação de seu romance. Nesta medida, nossa intenção foi a de traçar um fio condutor único neste segundo capítulo, de uma leitura sequencial dos elementos constituintes de La pregunta de sus ojos que aqui são explorados. Desta concepção de unidade resulta nosso sumário composto de tópicos sequenciais destas estratégias, reservadas umas das outros, ao passo que imbricadas e interdependentes. Acreditamos que estes elementos conformadores do romance, ainda que necessitem de capítulos específicos para uma análise mais detida e pormenorizada de cada um deles, atuam como peças que se atrelam e se inserem em um todo coeso e uno. É a convergência destas múltiplas partes que nos permitirão desaguar no que chamaremos aqui de significados do romance, os quais, a bem dizer, encerram em si tudo o que depreendemos do texto literário enquanto fonte única de nossas constatações e apreciações estéticas. O primeiro subcapítulo desta segunda parte, chamado “A importância da focalização como estratégia narrativa: a polifonia enunciativa”, tem por objetivo apresentar a arte de narrar como uma técnica artística fundamental para que se conforme um interessante jogo temporal entre passado e presente na obra. Dividido em duas seções, este capítulo visa analisar as instâncias narrativas de La pregunta de sus ojos em suas peculiaridades estilísticas, nas variações destas vozes que narram e em sua importância para esta dinâmica organizacional da obra a partir de duas temporalidades distintas. Para tanto, nos valeremos dos estudos narratológicos desenvolvidos por Mieke Bal (1995) e Dorrit Cohn (2001) e das reflexões sobre o fenômeno da polifonia realizadas por Oswald Ducrot (1987). Cada enunciador desempenha uma função narrativa que lhe é própria dentro do romance, primordial 19 para o efeito de edificação de duas obras que parecem ser escritas em compasso uma com a outra, mas a partir de sujeitos focalizadores e objetos de focalização distintos. Primeiramente, na seção intitulada “Características do FP (focalizadorpersonagem)”, nos deteremos em um destes sujeitos da focalização presentes no romance, que aqui chamaremos de focalizador interno ou focalizador-personagem (FP), representado na figura de Benjamín Miguel Chaparro, personagem-autor que se investe do papel de escritor e assume também ele a função de focalizador quando se propõe a narrar a história do viúvo Ricardo Morales. Na sequência, na segunda parte deste capítulo sobre a focalização como estratégia literária, nos fixamos na instância narrativa que não atua no romance enquanto um personagem, assim como Benjamín Chaparro, mas acompanha o mesmo em seu momento presente e em seu ofício de escritor. Em última instância, entendemos que a análise inicial desta polifonia enunciativa que norteia toda a construção do romance será de extrema importância para que se compreenda o tratamento da memória pela narrativa de Sacheri, valor semântico que buscaremos atribuir a este jogo narrativo dentro da obra. O segundo subcapítulo integrante desta segunda etapa está reservado à análise contrastante de personagens que despontam como peças chave em nosso estudo, a saber, o protagonista-escritor Benjamín Chaparro e o viúvo Ricardo Morales, que tem sua história contada pelo primeiro. De início nos deteremos em rastrear tudo o que conforma a imagem destes personagens e dizem respeito às caracterizações feitas por Sacheri. Logo, a luz de Robert McKee (2004) e de suas reflexões sobre a escritura criativa, nos lançaremos a aquilo que está por detrás das caracterizações feitas e que chamaremos aqui de dimensão oculta destes personagens, observável quando da aparição de situações de pressão que forçam os personagens a se posicionarem dentro do desenrolar da trama, ao mesmo tempo em que se desnudam através de suas ações. É por via da análise contrastiva de ambas as personagens que nos lançaremos à subsequente leitura das diferentes posturas tomadas por elas diante da memória do crime. Em seguida, no terceiro subcapítulo desta parte voltada à análise das estratégias narrativas, estendemos nossa reflexão para a trama de busca que alicerça o romance e que está, a nosso ver, a serviço da restauração da verdade 20 enquanto valor deteriorado na sociedade que se alça na narrativa de Sacheri. Neste apartado, então, procuraremos refletir as características específicas deste tipo de trama, amparados pelas reflexões teóricas de Ronald B. Tobias (1999). Entendemos que é a trama de busca a responsável por apresentar os conflitos – individuais e sociais, que impulsionam os personagens a abandonar a sua condição estática de modo a equilibrar suas necessidades éticas e emocionais. É a movimentação destes personagens na trama de Sacheri o que possibilita que o leitor se acerque a uma dimensão da própria qualidade humana destes personagens, os quais, enquanto seres ficcionais, se desvelam a partir das decisões que tomam no desenrolar da trama. E é também, neste sentido, que a busca pela verdade empreendida no romance traz a luz os temas da violência e da violação da lei como motivos substanciais na obra de Eduardo Sacheri. O caminho traçado até aqui conduziu-nos a esta terceira parte da pesquisa, a qual titulamos “Das estratégias aos significados de La pregunta de sus ojos”, ponto de afluência de toda a análise realizada até então. Dividida nos subcapítulos “A violência e a violação da lei em La pregunta de sus ojos”, “Os espaços representados e seus significados no romance: espaços do crime e espaços da justiça” e “O tratamento da memória pela narrativa de Eduardo Sacheri”, esta etapa tem a importância de atar os elementos analisados durante este estudo no intuito de conferir-lhes uma significação que dialogue com a esfera sócio-histórica manejada na obra. Como ressalvamos ao início, toda a compreensão a que chegamos neste estudo se dá por intermédio da obra de Sacheri enquanto criação artística que mantém um intercâmbio contínuo com elementos muito específicos do cenário social e histórico da Argentina. Assim, corroboramos mais uma vez que a análise da obra em toda sua conformação interna é, de fato, o caminho que trilhamos para chegar a este diálogo entre universos ficcional e extra-ficcional. O final de nosso estudo se encarregará de fazer um retrospecto analítico das instâncias compositivas do romance, as quais se constituíram como cerne das apreciações críticas levantadas nesta pesquisa. Todo o detalhamento das estratégias que entrevemos realizar neste estudo objetivará convergir na apreciação destes significados, a partir de um entrelaçamento último que conforma a obra em um todo artístico, fonte de deleite literário e oportunidade de lapidação do olhar de um crítico-leitor. 21 I VOZES E ENTORNOS DE EDUARDO SACHERI 1.1 A ARTE DE CONTAR: MEDIAÇÃO CRÍTICA SOBRE O AUTOR La pregunta de sus ojos (2005) configura-se como o primeiro romance do escritor argentino Eduardo Sacheri. Nascido em Buenos Aires, em 1967, Sacheri começou sua caminhada literária como contista em meados da década de 90 e seu reconhecimento inicial se deve a seus contos de futebol, difundidos na Argentina a partir de sua leitura em rádios esportivas3. As entrevistas feitas a Sacheri denotam o destaque dado a estes relatos futebolísticos4 em sua obra, quando questões como as paixões humanas, a relação desejo-fracasso inerente às decisões tomadas e a lealdade aos vínculos de amizade, são refletidas através das tramas engendradas pelo escritor. É o próprio autor quem afirma5 que o reconhecimento proporcionado por seus livros de contos lhe impulsionou a enveredar-se pelos caminhos da escritura de romances, gênero que, se comparado aos contos, ainda é pouco refletido dentro de sua obra e, por isso, apresenta pouca fortuna crítica desenvolvida. Seu segundo romance – Aráoz y la verdad (2008), adaptado ao teatro6, dá continuidade a temas já apresentados por Sacheri em La pregunta de sus ojos. Na esteira de sua criação literária, a obra Papeles en el viento (2011) figura como terceiro romance do autor. Na sequência destes três romances e de seus muitos livros de contos, seu mais recente romance – Ser feliz era esto (2014) – encerra este panorama das obras do escritor argentino. Como antes dito, os olhares lançados sobre a obra de Eduardo Sacheri evidenciam seus contos, quase sempre inseridos dentro da temática mais ampla “Contos de futebol”, quando o nome de Sacheri aparece ao lado de outros escritores Os primeiros contos de Sacheri foram lidos no programa “Todo por afecto”, na Radio Continental, pelo jornalista argentino conhecido como Alejandro Apo. Muitas destas leituras, que contribuíram para a difusão e o bom recebimento de sua obra pelo público, encontram-se em vídeos disponibilizados no youtube e em inúmeros blogs na Internet. 4 A obra contística de Sacheri é conformada, cronologicamente, pelos seguintes livros: Esperándolo a Tito y otros cuentos de fútbol (2000) / Te conozco Mendizábal y otros cuentos (2001) / Lo raro empezó después: cuentos de fútbol y otros relatos (2004) / Un viejo que se pone de pie y otros cuentos (2007) / Los dueños del mundo (2012) e La vida que pensamos (2013). 5 Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal LA NACIÓN, em 08/09/2009. Acesso em 10/03/2014 às 13:30h. In: <http://www.lanacion.com.ar/1171919-sacheri-el-autor-detras-del-exito-de-campanella>. 6 Aráoz y la verdad (2010). Adaptação ao teatro sob a direção de Gabriela Izcovich. Elenco: Diego Peretti, Luis Brandoni e David Di Nápoli. Cf. <http://www.mundoteatral.com/content/ar%C3%A1oz-yla-verdad-la-llave-de-un-secreto>. 3 22 argentinos que também cultivaram o gênero, tais como Roberto Fontanarrosa (1944), Osvaldo Soriano (1943) e José Pablo Feinmann (1943). Nesta medida, este trabalho de pesquisa busca adentrar em uma seara pouco iluminada da criação artística do escritor – o romance, uma possibilidade mais de conhecimento estilístico e temático de sua obra. Muitas questões tratadas em seus contos são desenvolvidas em seus romances, entre as quais se destacam a busca incessante por algo que seja primordial para um personagem e a reconstrução dos caminhos da memória, temas que também se integram a discussão de La pregunta de sus ojos que aqui se realiza. Em entrevista que recém realizamos com Eduardo Sacheri em Buenos Aires7, o escritor, quando perguntado sobre sua produção contística explica os motivos que o levaram a priorizar, ao longo de sua formação como escritor, os contos em comparação aos romances. Sacheri atribui esta prioridade às fronteiras mais balizadas do conto, as quais lhe permitem dar conta de encerrar um projeto de criação em um lapso temporal mais limitado que o necessário para a escritura de um romance.8 Para suprir aquilo que chama de espasmo de necessidade de iniciar e finalizar um processo de criação artística, o conto, em sua possibilidade de conformação a partir de dimensões mais cerceadas, mostrou-se como caminho para um contato inaugural de Sacheri com o universo de produção literária. […] en una novela vos estás obligado a la insatisfacción de no terminar, de avanzar y seguir avanzando, y seguir internándote en algo a ciegas, sin punto de referencia, porque las dimensiones son mucho mayores. Yo, por eso, después de tres libros de cuentos, recién me sentí mínimamente habilitado para intentar una novela. Y, sin embargo, fijate como a mi protagonista lo puse a escribir una novela, como un modo de exorcizar mis propios temores y de poner sobre sus espaldas dudas que eran mías. Aun después de tres libros.9 (Ver apêndice B, pergunta 3) Eduardo Sacheri, muito gentilmente, nos cedeu uma entrevista para esta dissertação, a qual se realizou no dia 16 de junho de 2014, na cidade de Buenos Aires. Optamos por mantê-la na íntegra (em espanhol e em tradução nossa ao português) ao final deste estudo e nos reportaremos, sempre que julgarmos necessário, às informações concedidas pelo autor ao longo de nosso texto. Para tanto, numeramos as perguntas e nos referiremos a elas de acordo com sua ordenação, de forma a facilitar a localização das mesmas por nosso leitor. Esclarecemos que a entrevista (apêndices B e C) encontra-se na sequência de um suplemento (apêndice A) que consta da linha do tempo com os episódios históricos referidos no romance. 8 Parece-nos interessante aportar o dado de que La pregunta de sus ojos foi precedido pela escritura de um conto (El Hombre) composto de elementos que posteriormente foram expandidos no romance. Em linhas gerais, dito conto busca retratar um dia na vida de Ricardo Morales, a partir de sua rotina de convivência com o passado pelo aprisionamento do assassino de sua mulher. Ver: SACHERI, Eduardo. Te conozco Mendizábal y otros cuentos. Buenos Aires: Galerna, 2001. p.37-48. 9 Em português: “[...] em um romance você está obrigado à insatisfação de não terminar, de avançar e seguir avançando, e seguir adentrando em algo às cegas, sem ponto de referência, porque as 7 23 Como antes dito, La pregunta de sus ojos, foco de nossa análise, integra o conjunto artístico de Eduardo Sacheri como primeiro romance do escritor. O autor revelou, ainda, que, se não se aventurou de início a percorrer os caminhos de escritura de um romance, o deve a certo incômodo antigo, a um receio de quem confessa não sentir-se habilitado por não possuir uma formação acadêmica específica na área de Literatura. Sacheri explica que custou muito alcançar um estágio de aceitação própria como escritor, independente da necessidade de títulos que o habilitem a sê-lo (ver apêndice B, pergunta 11). É interessante observar que suas dúvidas e receios enquanto escritor são trasladados a seu protagonista, como buscaremos aprofundar mais adiante neste estudo. Dando sequência a este pequeno panorama biográfico, destacamos que, além de escritor, Sacheri é licenciado em História10 e atuou como professor de escolas para jovens e como docente universitário11 em Buenos Aires. Na entrevista dimensões são muito maiores. Eu, por isso, depois de três livros de contos, recém me senti minimamente habilitado em tentar um romance. E, no entanto, repare como coloquei o meu protagonista para escrever um romance, como um modo de exorcizar meus próprios temores e de colocar sobre suas costas dúvidas que eram minhas. Inclusive depois de três livros.” (N. do T.) 10 Em entrevista ao jornal argentino Página 12, o autor explica os caminhos que o levaram a buscar a carreira de História: “–Cuando salí del secundario, como muchos pibes no sabía qué hacer. Seguí como carrera la única materia que me había gustado. Por el camino tuve otros trabajos. Uno de ellos en un juzgado. […] Terminé Historia y no me entusiasmaba para nada dar clase en el secundario (recordaba la bola que yo les había dado a mis profesores y pensaba: ¡Ir a predicar en el desierto!). Al final de la época de Menem el tema trabajo se había puesto muy difícil para un montón de gente, incluyéndome. Estaba trabajando en un supermercadito, en un barrio complicado, con niveles de violencia y de delincuencia. Y ahí te decís: “¿Cómo llegué hasta acá? ¿Qué decisiones me han traído hasta esta Pascua?”. Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal argentino PÁGINA 12, em data indisponível. Acesso em 10/03/2013 às 12:05h. In: <http://www.pagina12.com.ar/diario/dialogos/21-140771-2010-02-22.html> Em português: “–Quando saí da escola secundária, como muitos meninos, não sabia o que fazer. Segui como carreira a única matéria que eu tinha gostado. No meio do caminho tive outros trabalhos. Um deles em um juizado. [...] Terminei História e não me animei muito em dar aula em escolas (me lembrava do trabalho que eu tinha dado a meus professores e pensava: vou pregar no deserto!). No final da época de Menem a questão do trabalho tinha se tornado muito difícil para muita gente, inclusive para mim. Estava trabalhando em um mercadinho, em um bairro complicado, com altos níveis de violência e delinquência. Foi quando eu me disse: ‘Como eu cheguei até aqui? Que decisões minhas me conduziram a essa situação?’” (N. do T.) 11 Ainda em entrevista ao jornal argentino Página 12, o autor explica sobre a relação de sua prática docente com sua tarefa de escritor: “–Las dos prácticas son bien complementarias. La del escritor y la del docente. Escribir es un ejercicio muy cerrado, muy vuelto hacia adentro. La docencia es todo lo contrario. Me permite equilibrar esa cosa de caverna introspectiva a la cual me conduce no sólo mi profesión de escritor sino mi propia idiosincrasia. La docencia además me afirmó algo que creo importantísimo: estoy convencido de que la mirada que se echa sobre nosotros también nos construye: es clave cómo mirás a cada alumno, es absolutamente central. Una mirada adusta, rígida, solemne, exigente, condiciona en un sinnúmero de sentidos. A la inversa, una mirada benevolente, pródiga, optimista te impulsa y te abre camino.” Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal argentino PÁGINA 12, em data indisponível. Acesso em 10/03/2013 às 12:05h. In: <http://www.pagina12.com.ar/diario/dialogos/21-140771-2010-02-22.html> 24 que realizamos com o escritor, Sacheri traz a luz os proveitos possibilitados por esta formação acadêmica em sua produção artística. No que diz respeito especificamente à La pregunta de sus ojos, por exemplo, os conhecimentos acadêmicos mostram-se fundamentais para a exploração de aspectos históricos nacionais que conformam o romance, situado na Argentina dos anos sessenta e setenta. As nuances próprias de cada época são alvo da mirada detalhista de quem trafega por um território já familiar, ou seja, de quem já se interessava pelo passado antes mesmo de propor-se a dialogar com este passado através da ficção. O autor destaca que as relações sociais de um momento histórico específico lhe servem de base para a construção de seus personagens. Como sinalizado em nossa entrevista e como veremos ao longo deste estudo, os conhecimentos sobre História permitiram a Sacheri, a título de exemplo, posicionar o amor de seu personagem Benjamín Chaparro em um determinado momento histórico que justifica a existência deste tipo de amor. Para o autor, a omissão de sentimentos por tantos anos não se explica no momento presente, mas se enquadra na alçada temporal do romance (ver apêndice B, pergunta 2). Nesta medida, como colocado pelo próprio Sacheri, o conhecimento que provém de sua formação como licenciado em História12 lhe possibilita explorar estas modulações sociais na conformação interna de seu romance. Na esteira deste esclarecimento biográfico, importa mencionar que Eduardo Sacheri trabalhou durante cinco anos (1987-1991) no Juizado Criminal de Buenos Aires, quando ainda não vislumbrava seguir pelo caminho da escritura literária, mas antes atuar como professor universitário ou ainda obter um emprego na área Em português: “–As duas práticas são bem complementárias. A de escritor e a de docente. Escrever é um exercício muito fechado, muito voltado para dentro. Ao contrário da docência. Permite-me equilibrar isso de caverna introspectiva a qual sou conduzido não só por minha profissão de escritor mas por minha própria personalidade. A docência, além disso, afirmou em mim algo que acredito ser importantíssimo: estou convencido de que o olhar lançado sobre nós também nos constrói. É chave quando você olha a cada aluno, é absolutamente central. Um olhar severo, rígido, solene, exigente, condiciona uma infinidade de sentidos. Por outro lado, um olhar benevolente, pródigo, otimista te impulsiona e te abre caminho.” (N. do T.) 12 Ainda sobre esta relação entre seu ofício de professor e o de escritor, afirma o escritor o seguinte: “En el caso mío, que soy profe de historia, hay un relato, una narración, un argumento en lo que vas explicando. Hay una construcción narrativa en enseñar y en escribir naturalmente que también la hay, así que es un parentesco más que profundo”. Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal venezuelano PANORAMA.COM.VE, em 30/10/2012. Acesso em 10/03/2013 às 18h. In: <http://www.panorama.com.ve/portal/app/push/noticia40718.php> Em português: “No meu caso, que sou professor de história, há um relato, uma narração, um argumento naquilo que você vai explicando. Há uma construção narrativa ao ensinar e naturalmente também há esta construção na escritura. Nesta medida há um parentesco mais que profundo.” (N. do T.) 25 judiciária. Eduardo Sacheri explica a importância que têm para ele estes anos em que exerceu uma função no Juizado, cujo trabalho lhe parecia prático e estimulante. Não seguiu a carreira judicial pois no momento de escolha sobre os caminhos acadêmicos que tomaria, pesaram-lhe mais a dinamicidade e criticidade próprias da área da História, em oposição a um aspecto mais memorístico e reiterativo característico dos estudos de Direito (ver apêndice B, pergunta 4). Além disso, entendemos que este período no Juizado possui total relação com o processo de escritura de La pregunta de sus ojos, principalmente no que diz respeito à criação de uma atmosfera muito particular presente no romance, à conformação de tipos humanos que transitam por este espaço e à representação de rituais específicos da rotina judicial. O próprio escritor explica, em uma nota que encerra o romance, que sua fase de atuação no Juizado teve influência direta em seu desejo de escrever La pregunta de sus ojos, pois a trama lhe surgiu por ocasião de um fato contado por companheiros de trabalho. Tal relato lhe interpelava há alguns anos, até o instante em que Sacheri, depois de três livros de contos, sente a necessidade de finalmente organizar esta história que há muito tempo ecoava de seu passado. Escrever o romance foi, para o escritor, uma forma de render homenagens a antigos companheiros e a este período que marcou de alguma forma sua história de vida. Sobre este último aspecto motivador para a escritura do romance, na entrevista que nos foi concedida, Sacheri explica que escrever a obra foi uma forma de retornar a este mundo para despedir-se bem dele. Se não voltou a escrever sobre este universo, é justamente porque este acerto de contas com esta parte de sua história teve lugar único em La pregunta de sus ojos. Para o autor, “escribir es un modo de dialogar con tu propia vida y a veces saldar ciertas deudas.”13 (ver apêndice B, pergunta 4). Retomaremos esta “Nota del autor” ao final deste estudo, no capítulo referente ao tratamento da memória pela narrativa de Eduardo Sacheri. Para encerrar a apresentação destes aspectos biográficos do escritor, Eduardo Sacheri viveu sua primeira experiência com o cinema quando participou da escritura do roteiro14 de El secreto de sus ojos (2009), filme dirigido por Juan José Em português: “escrever é um modo de dialogar com a sua própria vida e às vezes saldar certas dívidas.” (N. do T.) 14 Eduardo Sacheri explica, em diferentes entrevistas, que o trabalho de construção do roteiro levou mais de um ano entre escrituras e reescrituras. O resultado final rendeu a El secreto de sus ojos o Prêmio Goya e o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010. 13 26 Campanella (Buenos Aires, 1959), cuja parceria proporcionou ao escritor uma difusão incontestável de sua obra. Vale observar que seu contato com o universo audiovisual, no entanto, foi anterior à escritura do roteiro, quando, como antes dito, seus contos eram lidos em rádios esportivas e o contato com seus leitores era ainda enquanto ouvintes. O penúltimo romance de Sacheri – Papeles en el viento, também conta com a previsão de ter uma versão cinematográfica a partir de uma parceria com o diretor argentino Juan Taratuto (Buenos Aires, 1971). As obras de Eduardo Sacheri também foram indicadas em Planos Nacionais que visavam o estímulo à leitura de crianças e jovens. O escritor também participou de projetos do Ministério de Educação quando seus contos de futebol eram distribuídos em estádios e em escolas nas periferias. De modo a encerrar esta mediação crítica sobre Eduardo Sacheri, importa sinalizar que o autor, em nossa entrevista, interpreta o seu papel de escritor como uma extensão de seu papel de leitor (ver apêndice B, pergunta 8). Ainda que abrangente e instigante em sua essência, a tarefa de um leitor estará, para Sacheri, sempre vedada às limitações impostas pelo autor. É da necessidade de expandir as fronteiras de seu contato com o literário que nasce seu afã por criar universos já buscados por ele enquanto um aficionado e antigo leitor de literatura. Há temas que se mostram recorrentes na obra contística e nos romances de Sacheri, com destaque dado pelo próprio autor ao tema da redenção. Quando fala de seu segundo romance15, Aráoz y la verdad (2008), Sacheri explica que a redenção de um tempo outro, que pesa e sufoca, mostra-se como um de seus tópicos de maior interesse. Saldar contas com o passado para que o futuro de fato se concretize é, para o escritor, um tema chave. Não no sentido de estagnar-se à memória de modo a paralisar-se diante de fatos passados, mas indagar e reinterpretar esta mesma memória para que se alcance um futuro redimido de dúvidas, medos, receios. E, de fato, entendemos que são justamente estas duas posturas diante do passado que encontraremos em La pregunta de sus ojos: a estagnação diante de um fato traumático e a reinterpretação deste mesmo fato via escritura. A cotidianidade também se revela como uma constante na obra do escritor argentino, que afirma interessar-se por seres ordinários que podem atravessar Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal argentino PÁGINA 12, em data indisponível. Acesso em 10/03/2013 às 12:05h. In: <http://www.pagina12.com.ar/diario/dialogos/21-140771-2010-02-22.html> 15 27 situações extraordinárias16. Assim, compreendemos que o leitor de Sacheri é aquele que constrói sentidos a partir de suas próprias experiências e se deleita com esta excentricidade e profundidade veladas no corriqueiro. É da cotidianidade que o autor extrai sua matéria-prima de criação artística. Em nossa entrevista, Sacheri chama a atenção para o objetivo último de seu fazer artístico – a compreensão da realidade na qual se insere (ver apêndice B, pergunta 1). Nesta medida, a cotidianidade, em toda sua constância e previsibilidade, também se vê irrompida por momentos dotados de beleza e complexidade, os quais merecem ser iluminados e capturados pela mirada artística. De fato, neste estudo entendemos que esta complexidade encontrada no rotineiro também é trazida à tona pelo escritor no romance foco de nossa leitura, construído com base em personagens que têm suas histórias marcadas por uma morte, que desestabiliza o que antes parecia seguro, ordinário, comum. Em entrevista o autor afirma: “Todos mis libros reflejan de un modo u otro el mundo en el que yo vivo: Castelar, Ituzaingó, las cosas que pasan en la provincia de Buenos Aires, de donde soy. Las que escribo son historias de gente común y corriente a la que, de vez en cuando, le toca enfrentar situaciones extraordinarias. Diría que me interesan las historias extraordinarias de personas ordinarias, las aventuras de la gente común. Entiendo que la vida de cualquiera de nosotros, bien mirada o mirada con atención, está plagada de situaciones asombrosas, emotivas, dolorosas, que merecen ser contadas y en las que muchos otros pueden reconocerse.” Cf. entrevista de Eduardo Sacheri à Revista Digital Cabal, em data indisponível. Acesso em: 15/02/2013. In: <http://www.revistacabal.coop/entrevista-eduardo-sacheri>. Em português: “Todos os meus livros refletem de um modo ou de outro o mundo em que vivo: Castelar, Ituzaingó, as coisas que acontecem na província de Buenos Aires, de onde sou. As histórias que escrevo são de gente comum e corrente que, de vez em quando, deve enfrentar situações extraordinárias. Eu diria que me interessam as histórias extraordinárias de pessoas ordinárias, as aventuras das pessoas comuns. Entendo que vida de qualquer um de nós, bem vista ou vista com atenção, está coberta de situações assombrosas, emotivas, dolorosas, que merecem ser contadas e nas quais muitos outros podem se reconhecer.” (N. do T.) 16 28 1.2 ASPECTOS INICIAIS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS: ARGUMENTO, ESTRUTURA FORMAL E DIVISÕES Tal como apontamos na introdução deste estudo e com vistas a facilitar a compreensão da análise que aqui se realizará das estratégias narrativas empregadas por Sacheri na conformação de seu romance, julgamos pertinente trazermos uma concisa exposição da trama de La pregunta de sus ojos17. Como explicamos ao início, esta apresentação preliminar se justifica pelo tema mesmo proposto neste estudo. De fato, entendemos que a leitura dos significados do romance a partir da reflexão de estratégias internas, realizada desde o princípio mesmo desta dissertação, se valerá de um contínuo diálogo com a trama do romance, a qual oferecemos a nosso leitor. Benjamín Miguel Chaparro trabalhava como vice-secretário de um Juizado de Instrução de Buenos Aires no início dos anos 70, quando lhe coube averiguar a notificação do homicídio brutal de Liliana Emma Colotto de Morales, uma jovem professora primária recém-casada que vivia há pouco mais de um ano na capital. Quando se vê implicado na investigação do caso, Chaparro conhece o viúvo da jovem, Ricardo Agustín Morales, e se envolve pouco a pouco com a história que há por detrás do crime. Junto a Chaparro, o leitor também tem acesso aos pormenores de investigação de busca pelo suspeito – Isidoro Gómez, o que engloba as relações conflituosas que mantém com os membros de sua Secretaria. Passados trinta anos do caso, Benjamín Chaparro, já aposentado, decide escrever um romance sobre a história do viúvo Ricardo Morales e da investigação inconclusa do assassinato de sua jovem esposa no ano de 1968. Para tanto, Chaparro volta à Secretaria onde trabalhou durante toda sua vida e recupera sua antiga máquina de escrever, instrumento que lhe possibilita resgatar através da escritura momentos importantes de seu passado, tais como o impacto pela morte da jovem e os desdobramentos do caso que influenciaram diretamente em sua vida. A Todas as referências a La pregunta de sus ojos feitas nesta dissertação se acompanharão de uma notação entre parênteses com o número da página onde se encontra o trecho em sua edição argentina ou brasileira. As referências em espanhol dizem respeito à edição argentina: SACHERI, Eduardo. La pregunta de sus ojos. 1ª ed. 6ª reimp. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2010. As traduções ao português que acompanham os trechos em espanhol estão em notas de pé de página e são de autoria de Joana Angélica d’Avila Melo como partes conformadoras da seguinte edição brasileira: SACHERI, Eduardo. O segredo dos seus olhos; tradução de Joana Angélica d’Avila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. 17 29 empreitada de Chaparro como romancista é acompanhada de perto por um narrador outro, que apresenta o personagem em seu momento presente, enquanto escritor que ainda cultua, depois de três décadas, um persistente e secreto amor pela juíza Irene Menéndez Hastings, com quem sempre trabalhou. Desta forma, o leitor de Sacheri é exposto a uma trama maior que se subdivide em suas subtramas, construídas a partir de vozes pertencentes a dois narradores distintos. La pregunta de sus ojos se estrutura com base em capítulos numerados e capítulos que possuem um título, em um total de quarenta e cinco capítulos numerados e catorze capítulos intitulados. Após o último capítulo, há uma nota do autor, de extrema importância para este estudo, pois dialoga em grande medida com o que aqui buscaremos interpretar como os significados do romance. Vale dizer que a ordenação de ditos capítulos, intercalados ao longo do romance de forma aparentemente não sistemática aos olhos do leitor, tem relação direta com os sujeitos enunciadores, vozes estas que nos conduzem a uma intricada rede de focalizações e significados que muito nos revelam sobre o jogo temporal entre passado e presente conformador de La pregunta de sus ojos. 30 II ESTRATÉGIAS NARRATIVAS: UMA LEITURA DOS ELEMENTOS CONSTITUINTES DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS. 2.1 A IMPORTÂNCIA DA FOCALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NARRATIVA: A POLIFONIA ENUNCIATIVA Como antes dito, os capítulos de La pregunta de sus ojos se distribuem com base em duas espécies de ordenações: uma que parte de uma sequência numérica e que se apresenta por uma voz que narra em primeira pessoa, e outra que contém títulos dados pelo sujeito que narra em terceira pessoa. Para uma melhor compreensão do jogo temporal entre passado e presente que estrutura o romance de Sacheri, faz-se necessária a reflexão mais detida destas duas instâncias narrativas que compõem La pregunta de sus ojos. De início, aclaramos que o conceito de “focalización” utilizado pela teórica neerlandesa da literatura Mieke Bal (1995)18 será neste estudo de grande importância na valoração destes distintos estratos do texto narrativo, haja vista que o termo se refere ao ponto de vista escolhido, à maneira específica de representar em uma narrativa. Segundo a autora, a focalização alude “a las relaciones entre los elementos presentados y la concepción a través de la cual se presentan. La focalización será, por lo tanto, la relación entre la visión y lo que se ‘ve’, lo que se percibe.”19 (BAL, 1995, p.108). Com base na definição proposta por Bal, entendemos que La pregunta de sus ojos apresenta mais de um foco de visão, ou seja, mais de um focalizador, ao mesmo tempo em que “lo que se ‘ve’”, ou seja, o objeto narrado, também varia de acordo com o focalizador que se tem em mente. De forma mais detida, inicia-se de antemão esta reflexão a partir da distinção entre as instâncias focalizadoras proposta por Mieke Bal, quando a autora explica que: Cuando la focalización corresponde a un personaje que participa en la fábula como actor, nos podremos referir a una focalización interna. Podremos indicar, entonces, por medio del término focalización externa que un agente anónimo, situado fuera de la fábula, opera como focalizador. Un BAL, Mieke. Teoría de la narrativa (una introducción a la narratología). Trad. de Javier Franco. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995. 19 Em português: “às relações entre os elementos apresentados e a concepção através da qual se apresentam. A focalização será, desta forma, a relação entre a visão e o que se vê, o que se percebe.” (BAL, 1995, p.108). (N. do T.) 18 31 focalizador externo no ligado a un personaje se abriría como FE.20 (BAL, 1995, p.111) A partir da distinção acima feita por Bal e dando início à análise da focalização no romance, entendida esta como a relação do agente que vê com aquilo que se vê, pode-se afirmar que La pregunta de sus ojos possui dois grandes sujeitos da focalização, ou seja, dois focalizadores que organizam seu discurso de acordo com o objeto que se propõem a focalizar: um focalizador interno ou focalizador-personagem (FP) e um focalizador externo (FE). O primeiro está representado na figura de Benjamín Miguel Chaparro, personagem protagonista de La pregunta de sus ojos que assume a função de focalizador quando se propõe a narrar a história do assassinato da jovem Liliana e todos os pormenores relacionados ao fato. O segundo, por sua vez, diz respeito a uma instância narrativa que não participa do romance enquanto personagem, tal como Benjamín Chaparro, mas que focaliza o mesmo em seu momento presente, enquanto escritor e focalizador de seu passado. Analisaremos a seguir estas duas vozes narrativas de forma a compreender sua importância para a composição estrutural do romance e para uma reflexão mais aprofundada do diálogo edificado entre passado e presente na narrativa de Eduardo Sacheri. 2.1.1 Características do FP (focalizador-personagem): Antes de iniciarmos uma leitura mais detida do focalizador-personagem ou focalizador interno, doravante FP ou FI, de La pregunta de sus ojos, cabe refletirmos sobre o próprio conceito de focalização interna, sugerido por Mieke Bal. A presença de um focalizador personagem no romance é claramente situada na primeira pessoa do singular (Yo) presente nos capítulos cuja organização se dá via classificação numérica. Tendo em vista a presença deste Yo que narra e insere sua perspectiva, seu ponto de vista na narrativa, importa refletirmos sobre algumas questões referentes à caracterização deste focalizador que integra o romance: já que a escritura é o instrumento que o converte em focalizador, o que motiva o personagem Em português: “Quando a focalização corresponde a um personagem que participa na fábula como ator, podemos nos referir a uma focalização interna. Podemos indicar, então, por meio do termo focalização externa quando um agente anônimo, situado fora da fábula, opera como focalizador. Um focalizador externo não ligado a um personagem se abriria como FE”. (BAL, 1995, p.111) (N. do T.) 20 32 a escrever? Que dimensão afetiva esta voz introduz no romance? Quais são as nuances dessa voz que narra e ao mesmo tempo participa da história narrada? O capítulo “1”, o segundo a aparecer na obra de Eduardo Sacheri, já nos coloca de início diante de um personagem que escreve uma história sem maiores certezas das razões que o levam a fazê-lo: “No estoy demasiado seguro de los motivos que me llevan a escribir la historia de Ricardo Morales después de tantos años.”21 (SACHERI, 2010, p.17). De fato, esta incerteza do personagem quanto a suas próprias motivações perpassa grande parte de La pregunta de sus ojos. Há uma clara necessidade do focalizador interno de justificar, perante a um hipotético leitor, o porquê de sua escritura. Leia-se incerto leitor, pois o personagem Chaparro, na incerteza que o define enquanto ser ficcional, não está seguro de que alguém algum dia leia o que ele mesmo escreve. Ao tentar encontrar uma resposta, uma função para sua empreitada como escritor, Chaparro apresenta ao leitor razões múltiplas e distintas para lançar-se ao ato de escrever. A primeira delas, por certo, se relaciona à atração mesma que o caso de Morales exerce sobre o personagem. Chaparro confessa não ter coragem de encarar suas próprias fraquezas e afirma encontrar na vida do outro um caminho mais cômodo de reflexão de seus próprios medos: Podría decir que lo que le pasó a ese hombre siempre ejerció en mí una oscura fascinación, como si me diera la oportunidad de ver reflejados, en esa vida destrozada por el dolor y la tragedia, los fantasmas de mis propios miedos.22 (SACHERI, 2010, p. 17) Na medida em que suas justificativas ganham corpo sólido em seu texto, o leitor de Chaparro se dá conta de que o assombro diante dos rumos tomados pelo caso de Liliana não figura como razão única para a escritura do personagem sujeito da focalização interna. No transcorrer de suas divagações literárias, Chaparro acaba por confessar que, se decide escrever a história de Morales, o faz para ocupar um vazio deixado pela saída da Secretaria de Instrução onde trabalhou durante toda sua Em português: “não tenho muito claros os motivos que me levam a escrever a história de Ricardo Morales depois de tantos anos.” (SACHERI, 2011, p.12). 22 Em português: “Eu poderia dizer que o que aconteceu a esse homem sempre exerceu sobre mim uma obscura fascinação, como se me desse a oportunidade de ver refletidos, naquela vida destroçada pela dor e pela tragédia, os fantasmas dos meus próprios medos.” (SACHERI, 2011, p.12). 21 33 vida: “Supongo que la cuento porque tengo tiempo. Mucho, demasiado tiempo” 23. (2010, p.18). No mais, se o personagem decide por fim que a trama de sua obra consistirá na história de Ricardo Morales e do crime de Liliana, também o faz, entre outras razões, em função de uma comodidade assumida por ele mesmo: Lo primero que pensé es que no tengo la imaginación suficiente como para escribir una novela. La solución que encontré fue escribir sin inventar nada, es decir, narrar una historia verdadera, algo de lo que yo hubiese sido, aunque indirectamente, testigo. Por eso decidí escribir la historia de Ricardo Morales. Por lo que dije al principio y porque es una historia que no necesita que yo le agregue nada, y porque sabiéndola cierta tal vez me atreva a contarla hasta el final, sin amedrentarme con la vergüenza de empezar a mentir para llenar baches, alargar la trama o convencer a quien la lea de que no la tire al cuerno apenas transcurridas quince páginas.24 (SACHERI, 2010, p. 21) No que tange ao fragmento acima citado, depreendemos que o focalizador personagem chama a atenção para o estatuto de verdade do objeto foco de sua mirada. Mieke Bal (1995) também menciona esta pretensão de objetividade por parte de um personagem que se propõe a focalizar, narrar algo. De acordo com a autora, a tentativa de apresentar só o que se vê (ou, no caso de La pregunta de sus ojos, o que se viu) é acompanhada de um desejo por eliminar qualquer comentário ou interpretação que fuja à objetividade. No entanto, como coloca a autora, a percepção se apresenta como um processo psicológico inerente ao focalizador, razão que leva Bal a afirmar que o esforço por ser objetivo no ato de narrar carece em grande medida de sentido. De fato, embora Benjamín Chaparro, no fragmento anteriormente citado, demonstre buscar contar a história de Morales com total fidelidade aos fatos e “sin inventar nada”, não consegue fazê-lo no decorrer de sua narrativa. As dúvidas do narrador se apresentam como problemas ficcionais que dão espaço a sugestivas reflexões narratológicas que apontam desde a ficcionalidade do narrado até as possibilidades, procedimentos e limites do ato de narrar, o que comprovamos na seguinte passagem de marcado caráter metanarrativo: Em português: “Acho que as escrevo porque tenho tempo. Muito, demasiado tempo.” (SACHERI, 2011, p.12). 24 Em português: “A primeira coisa que eu pensei foi que não tenho imaginação suficiente para escrever um romance. A solução que encontrei foi escrever sem inventar nada, isto é, narrar uma história verdadeira, algo de que eu tivesse sido testemunha, mesmo indiretamente. Por isso decidi escrever a história de Ricardo Morales. Pelo que afirmei no princípio e por ser uma história à qual não preciso acrescentar nada, e porque, sabendo-a por inteiro, talvez eu me atreva a contá-la até o final, sem amedrontar com a vergonha de começar a mentir para tapar buracos, alongar a trama ou convencer quem a ler a não jogá-la no lixo depois de dez páginas.” (SACHERI, 2011, p.14). 23 34 ¿Y qué hago con las partes de la historia que no he sido directamente testigo, esas partes que intuyo pero no conozco a ciencia cierta? ¿Las cuento igual? ¿Las invento de pe a pa? ¿Las ignoro? 25 (SACHERI, 2010, p. 22) Os problemas ficcionais antes citados têm relação direta com os capítulos em que Benjamín Chaparro abandona sua perspectiva de focalizador personagem e passa, também ele, à perspectiva de Narrador Externo aos fatos. Isso ocorre quando Chaparro decide por criar capítulos a partir de fatos que intui terem acontecido no transcorrer da investigação da morte de Liliana. E como ter a certeza de que os capítulos em questão não são estruturados pelo próprio focalizador externo de La pregunta de sus ojos? O leitor sabe que a voz que narra pertence a Chaparro porque já compactua da estrutura organizacional dos capítulos proposta pelo romance. Dito de outro modo, a partir do pacto de leitura que o leitor firma com a narrativa, sabemos que o capítulo 13, a título de exemplo, é construído por Chaparro por tratar-se de um capítulo numerado. Narrado em terceira pessoa, este capítulo nos descreve o momento em que o pai de Liliana Colotto, a jovem assassinada em 1968, vai até a casa da mãe de Isidoro Gómez, ainda suspeito da morte da jovem, para tentar conseguir informações sobre o paradeiro do possível assassino. Chaparro e o viúvo Morales confabulam juntos esta empreitada em busca de informações realizada pelo sogro de Morales, mas Chaparro não estava presente nesta expedição e o pai de Liliana a realiza sozinho. Como Chaparro tem acesso às informações pormenorizadas que narra ao leitor se não estava lá no momento em que sucede a ação? Como apontado aqui anteriormente, o próprio personagem nos avisa, de antemão, que irá “mentir” em alguns momentos “para llenar baches” em sua narrativa. Se o faz, assume que é tão só por uma questão de organização dos fatos para o leitor, já que o que lhe importa é contar o que viveu: [...] será mejor contar lo que sé y también lo que supongo, porque de lo contrario nadie va a entender un carajo. Ni yo mismo. Y otra cosa complicada, el léxico: en el renglón anterior resalta la palabra “carajo” como un cartel de neón en medio de las tinieblas. ¿Uso esas palabras burdas y soeces, o las elimino de mi lenguaje escrito? Cuántas dudas, carajo. Ahí 25 Em português: “E o que faço com as partes da história das quais não fui testemunha direta, aquelas partes que intuo mas não conheço em detalhes? Conto-as do mesmo jeito? Invento-as de cabo a rabo? Ignoro-as?” (SACHERI, 2011, p.15). 35 está, de nuevo, el improperio. Al final tendré que concluir que soy un malhablado.26 (SACHERI, 2010, p.22) A preocupação com a pessoa gramatical se faz acompanhar de dúvidas quanto ao léxico, ilustradas no fragmento anterior e que ratificam esta estrutura de metaficção observável em La pregunta de sus ojos. São muitos os momentos em que Chaparro tece comentários sobre seu próprio ato de narrar, dando-nos a impressão de que constrói seu romance em consonância com o ato de leitura realizado por seu leitor. En realidad y muy en el fondo, sospecho que esta página que porfío en llenar de palabras va a terminar también, como las diecinueve que la precedieron, echa un bollo en el rincón opuesto de la pieza.27 (SACHERI, 2010, p.20)28 O personagem que se propõe a ser também autor divaga quanto ao método de escritura que utilizará, bem como com relação ao que será ou não objeto ou foco de sua leitura do passado: La primera dificultad concreta, una vez decidido el tema: ¿En qué persona gramatical voy a redactar esta cosa? Cuando hable de mí mismo, ¿diré “yo” o diré “Chaparro”? Es tétrico que este escollo baste para detener todo mi brío literario. Tal vez sea mejor, para no verme tentado a volcar impresiones y vivencias demasiado personales. Eso lo tengo claro. No pretendo hacer catarsis con este libro, o con este embrión de libro, hablando más exactamente. Pero la primera persona me queda más cómoda. Por inexperiencia, supongo, pero me queda más cómoda.29 (SACHERI, 2010, p. 22) Em português: “[...] será melhor contar o que sei e também o que suponho, porque do contrário ninguém vai entender um caralho. Nem eu mesmo. E outra coisa complicada, o vocabulário: na linha anterior, destaca-se a palavra “caralho” como uma placa de neon em meio às trevas. Uso esses termos chulos e vulgares, ou elimino-os de minha linguagem escrita? Quantas dúvidas, caralho. Aí está, de novo, o palavrão. No final, terei de concluir que sou uma língua-suja.” (SACHERI, 2011, p.15) 27 Em português: “Na realidade, e muito no fundo, desconfio de que página que teimo em encher de palavras vai terminar também, como as 13 que a precederam, embolada no canto oposto do aposento.” (SACHERI, 2011, p.14) 28 Este fragmento ilustra um interessante efeito de ilusão de que a obra escrita por Chaparro é construída em compasso com a leitura realizada pelo leitor. Dito de outro modo, entendemos que este efeito é alcançado pela própria estrutura física da obra. No fragmento, retirado da página 20 de La pregunta de sus ojos, Chaparro faz referência às dezenove páginas anteriores que já foram escritas por ele. Refletindo este encaixe de obras dentro de uma única obra, como em uma espécie de boneca russa, são detalhes estilísticos como estes que nos levam inclusive a supor se não seria a própria La pregunta de sus ojos a obra escrita por Benjamín Chaparro. 29 Em português: “Decidido o tema, a primeira dificuldade concreta: em que pessoa gramatical vou redigir este troço? Quando falar de mim mesmo, direi ‘eu’ ou direi ‘Chaparro’? É tétrico que esse obstáculo seja suficiente para deter toda a minha energia literária. Suponhamos que eu escolha a terceira pessoa para a narrativa. Talvez seja melhor, para não me ver tentado a despejar impressões e vivências excessivamente pessoais. Isso está claro. Não pretendo me purificar como este livro, ou, 26 36 No transcorrer de sua escritura e em conformidade com a evolução de sua consciência de escritor, Benjamín Chaparro torna-se mais seguro de seus propósitos artísticos e abandona paulatinamente seus devaneios estilísticos e suas dúvidas quanto ao ato de narrar. A história de Morales, como nomeada pelo próprio personagem-autor, passa a ganhar forma e faz com que Chaparro comece a preocupar-se com o que seja ou não importante para o entendimento da história por parte do leitor. Benjamín Chaparro sabe que só teremos conhecimento dos fatos narrados por ele e, enquanto modalizador da recepção leitora, toma decisões que interferem no acesso que o leitor tem aos fatos. Como antes dito, se decide criar a partir do que imagina ter acontecido, o faz pois assume sua posição de autor diante do que narra e de responsável pela melhor transmissão possível de um passado que ainda lhe parece próximo e que faz nascer no personagem o desejo de sua organização e transmissão via escritura. No mais, esta análise de Chaparro na qualidade de autor, focalizador de uma história já vivida, se complementará com a análise que se fará de Chaparro enquanto personagem, em um capítulo específico que será reservado à leitura desta categoria narrativa no romance. 2.1.2 Características do FE (focalizador externo): No que diz respeito ao focalizador externo, como vimos, Mieke Bal o define como aquele que está situado fora da fábula. Segundo a autora, Cuando en un texto el narrador nunca se refiere explícitamente a sí mismo como personaje, podremos, de nuevo, hablar de narrador externo (NE). Ya que no figura en la fábula que él mismo narra, hablaremos de un narrador vinculado a un personaje, un (NP).30 (BAL, 1995, p.128) Além da oposição aqui já apontada por Bal entre as vozes interna e externa de um romance, os modos de apresentação da consciência são também estudados pela austríaca Dorrit Cohn31, teórica que centrou seu trabalho na análise da estrutura falando mais exatamente, como este embrião de livro. Mas a primeira pessoa me é mais cômoda. Por inexperiência, imagino, mas me é mais cômoda.” (SACHERI, 2011, p.14). 30 Em português: “Quando em um texto o narrador nunca se refere explicitamente a si mesmo como personagem, poderemos, de novo, falar de narrador externo (NE). Já que não figura na fábula que ele mesmo narra, falaremos de um narrador vinculado a um personagem, um (NP).” (BAL, 1995, p.128). 31 COHN, Dorrit. “Técnicas de presentación de la consciencia”. En SULLÀ, Enric, ed. Teoría de la novela: antología de textos del siglo XX. Barcelona: Crítica, 2001. p.205-213. 37 formal da ficção narrativa. Pensando nos discursos em terceira pessoa, a autora chama de “psiconarração” a técnica narrativa que se efetiva quando um narrador (em terceira pessoa) expõe com sua própria voz emoções, pensamentos e desejos de um ou mais personagens, tecendo ou não comentários sobre os mesmos. De acordo com a autora, a psiconarração trata-se do “discurso del narrador sobre la conciencia de un personaje”32 (2001, p.209). Nesta medida, se no discurso em primeira pessoa verifica-se “la retrospección dentro de una conciencia”, na psiconarração o que se constata é “la inspección de una conciencia”.33 (COHN, 2001, p.209). O narrador externo de La pregunta de sus ojos acompanha as ações realizadas por Chaparro desde o primeiro capítulo do romance, a partir do dia em que lhe organizam uma festa de despedida por sua aposentadoria, da qual o personagem prefere não participar. Antes mesmo da apresentação da voz de Chaparro como narrador, é este narrador externo e onisciente quem abre a narrativa de La pregunta de sus ojos no primeiro capítulo, quando somos informados por uma voz outra que não a de Chaparro, sobre a decisão do personagem de escrever um romance: Le dice que, aunque no tiene ni idea de qué va a hacer de ahora en adelante, anda con ganas de probar el viejo proyecto de escribir un libro. En cuanto lo dice, se siente un imbécil. Viejo, dos veces divorciado, jubilado, con veleidades de escritor. El Hemingway de la tercera edad. El García Márquez del oeste del conurbano.34 (SACHERI, 2010, p.14 – Capítulo “Despedida”) Ao descrever as emoções e sensações de Benjamín Chaparro, dentro do que a autora Dorrit Cohn chama de “psiconarração”, o narrador externo abre espaço para a caracterização de Chaparro a partir de uma perspectiva diferente. Como também assinala Mieke Bal, o NE difere de um narrador personagem porque nunca se refere a si mesmo como um personagem35. A principal função do NE em La pregunta de Em português: “discurso do narrador sobre a consciência de um personagem.” (COHN, 2001, p.209). (N. do T.) 33 Em português: “a retrospecção dentro de uma consciência” e “a inspeção de uma consciência”. (COHN, 2001, p.209). (N. do T.) 34 Em português: “Diz que, embora não tenha a menor ideia do que vai fazer de agora em diante, anda com vontade de tentar o antigo projeto de escrever um livro. Enquanto diz, sente-se um imbecil. Velho, duas vezes divorciado, aposentado, com veleidades de escritor. O Hemingway da terceira idade. O García Márquez do oeste da Grande Buenos Aires.” (SACHERI, 2011, p.10). 35 Gérard Genette (1972), usando outra terminologia, chamará narrador homodiegético ao que participa dos fatos que narra e narrador heterodiegético, o que não o faz e narra a partir de uma 32 38 sus ojos é narrar a vida presente de Chaparro, seu projeto de escritura e os obstáculos que o personagem precisa superar para concretizá-lo. Chaparro, por sua vez, é autor do romance (focalizador interno) e também personagem objeto da focalização do narrador externo. Ocupa um lugar destacado nas duas instâncias narrativas. Joga com seus personagens, mas também atua como parte de um jogo mais amplo, que engloba a ele mesmo e a todo seu projeto narrativo: [Benjamín Chaparro] Se incorpora, satisfecho. Dos días atrás estaba desesperado por la certeza de que jamás podría escribir su libro, ahogado en la nebulosa del principio. Ahora ese principio está escrito. Bien o mal, pero escrito. Eso lo pone contento, aunque también siga ansioso. Pero ansioso por seguir, por contar lo ocurrido con esas personas. Se pregunta si esta será la sensación que tienen los escritores cuando narran. Esa módica omnipotencia de jugar con las vidas de sus personajes. No está seguro, pero, si es así, la sensación le agrada.36 (SACHERI, 2010, p.28 – Capítulo “Cine”) Neste fragmento percebe-se que as divagações de Chaparro quanto a seu processo de escritura, expostas no subcapítulo anterior através da focalização do próprio personagem, também são colocadas ao leitor a partir da perspectiva deste narrador externo. No fragmento, a adjetivação empregada pela voz do NE confirma o que nos coloca Dorrit Cohn (2001), quando a autora defende que o narrador em terceira pessoa realiza uma “inspección” da consciência do personagem foco de sua narração. É o narrador externo de La pregunta de sus ojos quem nos apresenta um Chaparro “satisfecho”, “desesperado”, “contento”, “ansioso”, sentindo uma “módica omnipotencia” por jogar com a vida de seus personagens. Vale chamar a atenção uma vez mais para este seguimento contínuo a Chaparro, quando todo o processo de escritura do protagonista é acompanhado de perto por este NE. Observa-se que este acompanhamento ininterrupto do narrador externo sobre o personagem ganha um ar de veracidade a partir de interessantes procedimentos narrativos realizados por Eduardo Sacheri em La pregunta de sus ojos: maior distância dos fatos narrados, geralmente em terceira pessoa. Não utilizaremos esta terminologia do autor, mas damos conta de sua existência. Ver: GENETTE, Gèrard. Figuras III. Editorial Lumen, 1989. 36 Em português: “Levanta-se, satisfeito. Dois dias atrás, afogado na névoa do início, estava desesperado pela certeza de que jamais poderia escrever seu livro. Agora, esse início está escrito. Bem ou mal, mas escrito. Isso o deixa contente, embora ele continue ansioso. Mas ansioso por continuar, por contar o acontecido com essas pessoas. Pergunta-se se será essa a sensação que os escritores têm quando narram. Essa moderada onipotência de jogar com a vida de seus personagens. Não tem certeza, mas, se assim for, a sensação o agrada.” (SACHERI, 2011, p.19). 39 Chaparro tira de la hoja que acaba de terminar con la suficiente energía como para liberarla del rodillo sin romperla y la relee. Las últimas palabras lo hacen sonreír. Le resulta grato el ejercicio de la memoria: esa frase con la que ha cerrado el capítulo, la de “el día en que los boludos hagan una fiesta”, la había creído absolutamente olvidada. Pero ahora ha salido a flote junto con otro montón de recuerdos de su pasado y de la gente con la que ha vivido ese pasado.37 (SACHERI, 2010, p.137 – Capítulo “Nombre y apellido”) Parece-nos oportuno observar que o capítulo de La pregunta de sus ojos que antecede ao acima citado, cuja escritura é feita por Benjamín Chaparro, termina justamente com estas palavras que “lo hacen sonreír”, como apontado pelo narrador externo no fragmento acima. A frase filosófica de seu amigo Sandoval, utilizada somente em momentos especiais, lhe salta à memória e suas reações durante o ato de escritura são acompanhadas de perto (e também expostas) por este narrador externo. Ora, como neste estudo já foi explicitado, tais passagens de caráter metanarrativo dão ao leitor a sensação de que lê dois romances que são concebidos simultaneamente. O narrador externo narra concomitantemente à escritura de Chaparro, enquanto esta se desenvolve em sincronia com a narrativa realizada pelo NE. Este jogo narrativo também perpassa a própria conformação da obra, como já sinalizado, a partir da ordenação do romance em capítulos numerados (referentes a Chaparro) e capítulos intitulados (referentes ao NE): Acomoda sobre el resto de la pila la última hoja mecanografiada, y aprecia el espesor. No es poco, para ese primer mes de trabajo. ¿O ya es un mes y medio? Puede ser. El tiempo pasa rápido gracias a este asunto. Lo asalta una duda recurrente: ¿qué título le pondrá a su novela? No sabe. No tiene la menor idea. Chaparro siente que no es bueno para los títulos. En un primer momento pensó en ponerle un título a cada capítulo, pero ahora ha renunciado a semejante pretensión. Si no se le ocurre un nombre para el conjunto, mucho menos se le ocurrirá para cada apartado. Y ya lleva escritos dieciséis y le faltan mucho más.38 (SACHERI, 2010, p.138 – Capítulo “Nombre y apellido”) Em português: “Chaparro puxa a página que acaba de redigir com energia suficiente para liberá-la do cilindro sem rasgá-la e a relê. As últimas palavras o fazem sorrir. O exercício da memória o agrada: essa frase com que encerrou o capítulo, aquela de ‘no dia em que os babacas fizeram uma festa’, ele a acreditara completamente esquecida. Mas agora veio à tona, junto com outro monte de lembranças de seu passado e das pessoas com quem ele conviveu no passado.” (SACHERI, 2011, p.90). 38 Em português: “Acomoda sobre o resto da pilha a última folha datilografada e aprecia a espessura. Não é pouco, para o primeiro mês de trabalho. Ou já é um mês e meio? Pode ser. O tempo passa depressa, graças a esse assunto. Uma dúvida recorrente o assalta: que título dará ao seu romance? Não sabe. Não tem a mínima ideia. Chaparro sente que não é bom de títulos. Num primeiro momento pensou em dar um a cada capítulo, mas agora renunciou a semelhante pretensão. Se não lhe ocorre um nome para o conjunto, 37 40 É curioso pensar que os capítulos escritos por Chaparro sejam numerados porque, ainda que tivesse a pretensão inicial de tecer entradas para cada um deles, o personagem não se sente “bueno para los títulos”. Em contrapartida, os capítulos escritos pelo narrador externo contêm cada um deles um título diferente, conectados literariamente ao assunto tratado. É como se, em alguma medida, a inexperiência declarada sem qualquer reserva por Chaparro não fosse uma das caraterísticas do outro narrador, capaz de engendrar seus próprios títulos. Partindo à análise de outro procedimento narrativo relacionado à focalização externa presente em La pregunta de sus ojos, pode-se constatar que os dilemas de Chaparro chegam até o leitor por meio de perguntas feitas por este narrador em terceira pessoa, o que evidencia que este NE, através de tais questionamentos, de perguntas que aparecem interpoladas em sua narração, segue o fluxo de pensamento de Chaparro, trazendo à tona momentos de autocrítica, enquanto o toma como objeto de sua focalização: “Imaginate, Irene, no me voy a poner a mis años a aprender computación, sabés. Y esa Remington la tengo incorporada en la punta de los dedos como si fueran una cuarta falange” (¿cuarta falange?, ¿pero de dónde ha sacado semejante imbecilidad?).39 (SACHERI, 2010, p.14 – Capítulo “Despedida”) Em seus estudos sobre o caráter polifônico da enunciação, o linguista francês Oswald Ducrot (1987)40 busca ilustrar “como o enunciado assinala, em sua enunciação, a superposição de diversas vozes.” (DUCROT, 1987, p.172). A certeza teórica de que há uma unicidade intrínseca ao sujeito da enunciação (quando se afirma “o sujeito”) é questionada por Ducrot, que defende que nem sempre o autor de um enunciado é o responsável por aquilo que de fato se diz no enunciado. Dito de outro modo, o sujeito falante ou locutor (em nosso caso a voz do NE) nem sempre tem a responsabilidade pelo enunciado produzido. Ducrot cita o caso das retomadas, quando o que se recupera não é de responsabilidade do falante muito menos lhe ocorrerá para cada segmento. E já escreveu dezesseis, e faltam muito mais.” (SACHERI, 2011, p.91). 39 Em português: “‘Imagine, Irene, na minha idade não vou me meter a aprender computação. E essa Remington se incorporou à ponta dos meus dedos como uma quarta falange’ (quarta falange? Mas de onde tirou semelhante besteira?)” (SACHERI, 2011, p.10). 40 DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução: Eduardo Guimarães. Campinas, SP: Pontes, 1987. 41 enquanto ser único, mas de um enunciador outro, que tem seu enunciado assimilado pela voz que fala, tal como notamos no fragmento acima citado. O ato de pergunta realizado pelo NE de La pregunta de sus ojos em “(¿cuarta falange?, ¿pero de dónde ha sacado semejante imbecilidad?).”, de fato, trata-se de uma retomada que revela a polifonia presente na voz deste narrador, que traz os questionamentos que pertencem ao objeto de sua focalização. No fragmento, podese ler este questionamento que parte da voz do NE como um momento de autocrítica que Chaparro levanta sobre si mesmo, sobre o que acaba de dizer a Irene. Há uma fusão de vozes quando o pensamento de outro enunciador – no caso, o de Chaparro – é assimilado pela voz em 3ª pessoa que narra em La pregunta de sus ojos e que acompanha as ações de Chaparro em seu momento presente. É bastante considerável a quantidade de questionamentos que aparecem como indício da polifonia presente na voz do narrador externo do romance. Em suma, tais questionamentos denotam a fusão de vozes antes citada, como momentos de autocrítica ou de dúvidas que correspondem a Chaparro, mas que este narrador traz interpolados em seu discurso. Chaparro, mientras prepara el mate, se encuentra sumergido, de repente, en el mismo deseo culpable de tantas otras veces, aunque de inmediato se llame a sosiego. Una Irene repentinamente viuda… ¿no podría enamorarse de él? Nada le asegura semejante cosa. Así que mejor dejar en paz al pobre ingeniero, que siga disfrutando de su vida y de su mujer, mal rayo lo parta. Acomoda sobre el resto de la pila la última hoja mecanografiada, y aprecia el espesor. [...]41 (SACHERI, 2010, p.138 – Capítulo “Nombre y apellido”) O fragmento antes citado também figura como amostra de uma estratégia narrativa recorrente em La pregunta de sus ojos, também concernente à análise da instância narrativa aqui tida como externa: quando o narrador, em 3ª pessoa gramatical, distanciado e anônimo, introduz no meio de seu relato uma expressão que não se pode atribuir a ele enquanto narrador. Tal procedimento – que aqui será Em português: “Chaparro, enquanto prepara o mate, se vê submergido, de repente, no mesmo desejo culpado de tantas outras vezes, embora se censure de imediato. Uma Irene repentinamente viúva... não poderia se apaixonar por ele? Nada lhe assegura semelhante coisa. Portanto, melhor deixar em paz o pobre engenheiro, que continue desfrutando de sua vida e de sua mulher, raios o partam. Acomoda sobre o resto da pilha a última folha datilografada e aprecia a espessura. [...]”. (SACHERI, 2011, p.91). 41 42 chamado de Procedimento da Voz Indexada42 – diz respeito à presença da voz de outro, inserida na voz do narrador externo. Esta voz indexada, encoberta, não está identificada por aspas ou por qualquer outro recurso gráfico, mas é percebida pelo leitor como pertencente a outro enunciador, diferente daquele que fala. De posse do trecho acima, observa-se que “mal rayo lo parta” diz respeito a um enunciado que não é de responsabilidade do sujeito falante, mas de outro enunciador. Tal procedimento torna possível que, através da ficção, o narrador externo esteja conectado, de alguma forma, à consciência do personagem objeto de sua descrição, o que, como vimos, Oswald Ducrot (1987) aponta como um dos movimentos da polifonia, quando a voz de um único locutor traz em si indícios de mais de um enunciador. Ducrot estabelece uma metáfora teatral e compara o locutor a um ator, na medida em que ambos se assumem como porta-vozes de diferentes personagens, que no caso da polifonia textual referem-se aos diferentes enunciadores que se fazem “falar” pela voz do narrador externo. Assim, segundo o teórico, “dizendo que o locutor faz de sua enunciação uma espécie de representação, em que a fala é dada a diferentes personagens, os enunciadores, alarga-se a noção de ato de linguagem.” (DUCROT, 1987, p.217). De acordo com Ducrot, existe a possibilidade discursiva de que o pensamento que se comunica não seja pertencente àquele que fala. Vale dizer que não se trata aqui do relato de um discurso no discurso de outro (em estilo direto ou indireto), mas da presença de várias vozes em uma única consciência. Os pensamentos de Ducrot servem de amparo nesta pesquisa pois tal procedimento contribui para que se revise o conceito e a função clássica do narrador em 3ª pessoa de La pregunta de sus ojos, como aquele que age de forma anônima, onisciente e distanciada. De fato, tal distanciamento é colocado em xeque quando a linearidade do discurso do narrador externo é rompida por estas indexações abruptas, portadoras de uma voz que não lhe pertence. Para esta pesquisa, julgamos necessária a criação de um conceito que pudesse dar conta deste procedimento narrativo tão recorrente em La pregunta de sus ojos. Desta forma, chamamos aqui de Procedimento da Voz Indexada, termo sugerido por meu orientador Miguel Ángel Zamorano em um de nossos encontros, ao fenômeno de aparição de um enunciado interpolado na voz do narrador externo, mas que não pertence a este. O leitor identifica o enunciado como estranho à voz que narra, como se a voz do narrador se fundisse com a voz de outro enunciador, em uma espécie de mescla de consciências em uma única voz. 42 43 Benjamín Miguel Chaparro se detiene en seco y decide que no va. No va y punto. Al cuerno con todos. Aunque haya prometido lo contrario y aunque vengan preparando la despedida desde hace tres semanas y aunque hayan reservado la mesa para veintidós personas en El Candil y aunque Benítez y Machado hayan confirmado que se vienen desde el fin del mundo para celebrar la jubilación del dinosauro. Su gesto es tan abrupto que el hombre que viene caminando detrás de él, por Talcahuano y hacia el lado de Corrientes, casi se lo lleva por delante y a duras penas logra esquivarlo bajando un pie de la vereda al pavimento para seguir andando.43 (SACHERI, 2010, p.9 – Capítulo “Despedida”) No fragmento acima selecionado, “Al cuerno con todos” não é um discurso pertencente ao sujeito detentor do enunciado, mas a Chaparro, cuja voz é justaposta no meio dos fatos narrados pelo NE. Confirma-se assim o postulado por Ducrot, quando o teórico defende que nem sempre o locutor (o responsável pelo enunciado) é o mesmo que o enunciador (aquele que se expressa através da enunciação). Ainda com base no fragmento antes destacado, percebe-se que o primeiro parágrafo se distingue amplamente do segundo pois em um primeiro momento promove uma sensação de que não corresponde à narração dos fatos feita pelo NE. É como se de alguma forma o narrador, no primeiro parágrafo do fragmento, se fundisse com o personagem Benjamín Chaparro a partir de uma imersão em sua consciência, criando um efeito de abolição do distanciamento clássico e esperado de um narrador externo. O segundo parágrafo, por sua vez, retoma este tempo cronológico e linear, como se o narrador abandonasse suas digressões e retornasse à progressão externa dos fatos que conta. Sob tal ótica, entende-se mais uma vez que a concepção teórica de um narrador externo distanciado é questionada quando se pensa no NE de La pregunta de sus ojos. São muitos os momentos em que o narrador externo se introduz na consciência do personagem e, ao compartilhar de seus desejos, sonhos e angústias, elimina a distância prototípica do ato de narrar. Quando opta por não expor ações, mas antes traduz a consciência do personagem objeto de sua focalização, narrador e personagem parecem fundir-se em uma só identidade. As consciências não se Em português: “Benjamín Miguel Chaparro se detém de repente e decide que não vai. Não vai e pronto. Que se danem todos. Embora tenha prometido o contrário, embora eles venham preparando a despedida há três semanas e tenham reservado mesa para 22 pessoas em El Candil, e embora Benítez e Machado tenham confirmado que vêm lá do fim do mundo para comemorar a aposentadoria do dinossauro. Seu gesto é tão repentino que o homem que vem caminhando atrás dele pela Talcahuano, na direção de Corrientes, quase o derruba e a duras penas consegue se esquivar, descendo um pé da calçada para o asfalto a fim de continuar andando.” (SACHERI, 2011, p.7). 43 44 distanciam, mas se mesclam em um só relato. Conclui-se que, muitas das vezes, concepções simplificadoras não fazem jus ao conceito de narrador externo, posto que a voz em 3ª pessoa também permite uma série de modulações, graduadas pelo interesse do enunciador em manter ou não maior distância dos fatos narrados. Ainda a partir do fragmento acima citado, nota-se que o que chamamos aqui de Procedimento da Voz Indexada dá lugar à conexão entre dois tempos e dois espaços distintos: os que pertencem ao narrador externo e os que competem à voz indexada. O fluxo temporal do narrado pelo NE é interrompido pelo tempo da consciência, diferente da temporalidade da trama, do tempo cronológico. Quando o narrador se funde com o “eu” do personagem, há uma alternância de duas perspectivas distintas dentro de uma só voz: as ações vistas como exterioridade (e que seguem o fluxo temporal cronológico) e aquilo que integra a consciência do personagem (um não tempo ou um tempo suspenso). […] Todavía no han cerrado la puerta principal. Se trepa al primer ascensor que tiene a tiro. No necesita aclararle al ascensorista que va al quinto piso, porque en el Palacio lo conocen hasta las piedras. Avanza, a paso firme, haciendo ruido con los mocasines de suela sobre las baldosas blancas y negras del pasillo que corre paralelo a la calle Tucumán hasta encararse con la alta y angosta puerta de su Secretaría. Se detiene mentalmente en el posesivo “su”. Sí, qué tanto. Es suya, y mucho más suya que del secretario García, o que de cualquiera de los otros secretarios que han precedido a García, o que de cualquiera de los que habrán de sucederlo. Mientras abre la puerta el enorme manojo de llaves tintinea en el silencio del pasillo vacío. Cierra con cierta fuerza, para que la jueza se percate de que alguien ha entrado en la oficina. Momento: ¿por qué eso de “la jueza”? Porque lo es, claro, pero ¿por qué no Irene? Porque no, justamente por eso. Ya bastante tiene con ir a pedir lo que está por pedir, como para sumarle el descalabro de saber que se lo tiene que pedir a Irene y no simplemente a la doctora Hornos.44 (SACHERI, 2010, p.11-12 – Capítulo “Despedida”). Em português: “[...] Ainda não fecharam a porta principal. Entra no primeiro elevador que chega. Não precisa esclarecer ao ascensorista que vai para o quinto andar, porque no Palácio até as pedras o conhecem. Avança, em passo firme, fazendo ruído com os mocassins sobre os ladrilhos brancos e pretos do corredor que segue paralelo à rua Tucumán, até topar com a porta estreita e alta de sua Secretaria. Detém-se mentalmente no possessivo ‘minha’. Sim, e como. É dele, e muito mais dele que do secretário García, ou de qualquer dos outros secretários que precederam García, ou de qualquer dos que o sucederão. Enquanto abre a porta, ouve a enorme penca de chaves tilintar no silêncio do corredor vazio. Fecha com certa força, para a juíza perceber que alguém entrou no gabinete. Um momento: por que isso de ‘juíza’? Porque ela o é, claro, mas por que não Irene? Porque não, justamente por isso. Já basta ir pedir o que está prestes a pedir, para ainda acrescentar a isso a desgraça de saber que deve pedir a Irene, e não simplesmente à doutora Hornos.” (SACHERI, 2011, p.8-9) 44 45 O fragmento acima se encarrega de ilustrar as colocações feitas até agora sobre a interessante polifonia presente no narrado pelo NE de La pregunta de sus ojos, índice da complexidade de uma das vozes focalizadoras do romance. O tempo cronológico, o da narração dos fatos, é interrompido por divagações subjetivas que se inserem na voz que detém a narração. O segundo parágrafo do fragmento acima revela esta combinação de vozes. Pensar no possessivo “su”, afirmar que a Secretaria “es suya” ou ainda questionar-se quanto ao vocativo “la jueza” figuram como ações que competem a Chaparro, mas narradas pelo narrador externo. Logo, mais que apresentar ao leitor a vida presente do personagem Benjamín Chaparro por via de um distanciamento, o NE em questão se mescla e se confunde com o objeto de sua mirada. Em última instância, não se trata aqui de um mero caráter onisciente inerente a este narrador, mas da fusão de identidades e de vozes, que já no primeiro capítulo do romance revela o tom dado à obra pelo escritor. 46 2.2 OS PERSONAGENS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS El diseño de los personajes comienza con la organización de sus dos aspectos principales: la “caracterización” y la “verdadera personalidad”. Robert McKee (2004, p.446) 45 É a partir desta dupla análise proposta pelo teórico norte-americano Robert McKee (2004), estudioso da escrita criativa, que buscaremos aqui lançar um olhar sobre os personagens de La pregunta de sus ojos: tanto no que diz respeito à caracterização feita por Eduardo Sacheri na obra, quanto no que tange àquilo que Robert McKee concebe como verdadeira personalidade, a qual optamos por chamar de dimensão oculta destes personagens, como aquela que, de acordo com McKee, encontra-se sempre camuflada por detrás de aspectos mais superficiais, ou seja, de caraterizações explícitas dadas tanto pelo narrador quanto por outros personagens. Neste capítulo buscaremos pensar os personagens de La pregunta de sus ojos a partir desta concepção de dimensão oculta, a qual transcende a ideia preconcebida de que o conhecimento de um personagem se dá unicamente via descrições externas. A dimensão oculta, de fato, surge do contraste entre o sentido construído pelas palavras (proferidas pelo próprio personagem foco da análise, pelo narrador ou por outro personagem) e o sentido depreendido de suas ações. É o saldo resultante do contraste entre ações, fundamentais nesta lógica de entendimento de um personagem, e palavras o que nos permite o acesso a aquilo que Robert McKee chama de “verdadeira personalidade” de um personagem. Segundo o teórico, a caracterização corresponderia à soma dos traços que são observáveis em um determinado personagem, ou seja, a tudo aquilo que serve para distingui-lo como ser único em comparação com os demais. Nesta medida, seus traços físicos, a gestualidade, sua personalidade, sua idade, o lugar onde vive ou com quem vive são alguns dos aspectos que cita o autor como caracterizadores do personagem foco de nossa leitura (MCKEE, 2004, p.446). No entanto, McKee afirma que estes mesmos aspectos devem ser lidos como uma espécie de véu ou disfarce que oculta a essência do personagem. Nas palavras do autor, tais aspectos Em português: “O desenho dos personagens começa com a organização de seus dois aspectos principais: a ‘caracterização’ e a ‘verdadeira personalidade’”. (MCKEE, 2004, p.446) (N. do T.) In: MCKEE, Robert. El guión: sustancia, estructura, estilo y principios de la escritura de guiones. Barcelona: Alba Editorial, 2004. 45 47 atuam como uma “máscara” que nossa análise deve ser capaz de pouco a pouco tirar para que a dimensão oculta, antes encoberta e velada, possa revelar-se diante de um olhar mais crítico e atento. Quando nos propomos a refletir sobre esta dimensão oculta de um personagem, também importa pensar o defendido pelo crítico chileno Juan Villegas46, quando coloca que um personagem é sempre portador de um conteúdo ideológico, ou seja, possui uma funcionalidade que é sempre única na obra. Segundo Villegas, “el personaje – protagonista, héroe, antagonista o secundarios – generalmente es el producto de una concepción del mundo y del hombre.”47 (VILLEGAS, 1991, p.93). Diante disto, quando buscamos pensar nos personagens para além de sua superficial caracterização, como nos propõe Robert McKee, também consideramos esta funcionalidade inerente a cada um deles, como nos atenta Villegas, ou seja, consideramos os personagens como legítimos portadores de mundo dentro do conjunto da obra. Desta forma, partindo do defendido por Robert McKee e das reflexões levantadas por Juan Villegas, nos propomos a fazer uma leitura da função desempenhada pelos personagens portadores de mundo em La pregunta de sus ojos. Com vistas a um recorte mais preciso da análise que aqui se fará, sinalizamos de antemão que para este capítulo nos deteremos mais especificamente na leitura de dois personagens do romance – Benjamín Miguel Chaparro e Ricardo Agustín Morales – no intuito de refletir esta dimensão oculta da qual nos fala Robert McKee e por crermos que ambas as personagens trazem em si condutas muito distintas diante do fato do crime da jovem. Assim, a análise contrastante de ambas as personagens nos auxiliará na posterior reflexão sobre os significados por detrás de suas caracterizações, ou seja, nos conduzirá à leitura sobre as diferentes posturas tomadas diante da morte da jovem e da recuperação de sua memória, máxima contínua ao longo de todo o romance de Sacheri. VILLEGAS, Juan. Nueva Interpretación y Análisis del Texto Dramático. Canadá: Girol Books, 1991. Em português: “o personagem – protagonista, herói, antagonista ou secundários – geralmente é o produto de uma concepção de mundo e do homem.” (VILLEGAS, 1991, p. 93). (N. do T.) 46 47 48 2.2.1 Os personagens e sua caracterização: Pensar na caracterização como “la suma de todas las cualidades observables”48 (MCKEE, 2004, p.446) nos abre a possibilidade de que analisemos aspectos variados e quase infindáveis sobre um personagem. Como vimos na apresentação das características do focalizador interno, no capítulo anterior, o protagonista Benjamín Chaparro pode ser caracterizado como um homem de 60 anos que, ao final de sua carreira como pró-secretário de uma Secretaria de Instrução de Buenos Aires, sente-se velho, sem rumo e sem saber em que exatamente se converteu com o passar dos anos. A insegurança que caracteriza Chaparro já é apresentada ao leitor no início da narrativa pela voz do narrador externo. Chaparro é aquele que está “seguro de muy pocas cosas” e que tem “escasas certezas” (SACHERI, 2010, p.9). As hesitações que acompanham o personagem compõem sua caracterização e perfilam uma figura que a primeira vista mostra-se insegura e cheia de incertezas, mas que, como se verá, se desvela através de suas ações no transcorrer da narrativa. É também este narrador externo quem, ao início da obra, nos apresenta um Chaparro já amadurecido pelo tempo corrido, mas que ainda traz impasses antigos, de toda uma vida: Una novia que tuvo de joven solía burlarse de su manía de mirarse en las vidrieras. Ni a ella, ni a ninguna de las otras mujeres que han pasado por su vida, Chaparro ha llegado a confesarle la verdad: su hábito de mirarse en los espejos no tiene nada que ver ni con quererse ni con gustarse. Siempre ha sido ni más ni menos que otro intento de aprender a saber quién carajos es él mismo.49 (SACHERI, 2010, p.10 – Capítulo “Despedida”) São muitos os sentimentos de Chaparro que são observáveis ao longo do romance: a dor por ver-se obrigado a anunciar a morte de Liliana Colotto a seu marido: “[…] me ponía en el lugar de ese hombre mutilado que se había quedado sin vida y me horrorizaba por eso.”50 (2010, p.48); a nostalgia indesejável do passado Em português: “a soma de todas as qualidades observáveis” (MCKEE, 2004, p.446) (N. do T.) Em português: “Uma namorada dos tempos da juventude costumada zombar de sua mania de se olhar nas vitrines. Nem a ela, nem a nenhuma das outras mulheres que passaram por sua vida, Chaparro chegou a confessar a verdade: seu hábito de se fitar nos espelhos não tem nada a ver com se amar nem com gostar de si. Sempre foi nada mais nada menos que outra tentativa de descobrir quem, caralho, é ele mesmo.” (SACHERI, 2011, p.7) 50 Em português: “[...] me colocava no lugar daquele homem mutilado que havia ficado sem vida e me horrorizava com isso.” (SACHERI, 2011, p.33). 48 49 49 quando vê as fotografias que o marido de Liliana insiste em mostrar-lhe: “…una sensación de pérdida, de nostalgia incurable, de paraíso perdido detrás de cada uno de esos instantes minúsculos llegados desde el pasado como polizones cándidos.”51 (2010, p.101); a inveja do amor que Morales e Liliana sentiam um pelo outro: “Aunque no del todo, había logrado ponerle un nombre a lo que había sentido mientras lo escuchaba hablar a Morales. Era envidia. El amor que había vivido ese hombre me despertaba una enorme envidia, más allá de la piedad […]”52 (2010, p.150); ou ainda a tristeza diante do fim cruel dado a este amor: “Creo que por primera vez pensé en ellos dos vivos, tomando el café en la cocina de su casa, charlando y sonriéndose; y la vida me pareció insoportablemente cruel y pendenciera.”53 (2010, p. 307). O processo de conhecimento do personagem pelo leitor ocorre muito de acordo com os desdobramentos do caso que este mesmo personagem se propõe a contar. Mesmo os sentimentos não tão nobres e não tão comumente associados a um herói não são omitidos. Pelo contrário, como quando o personagem assume sentir uma alegria culpada diante das tragédias alheias, como se as chances de que lhe passe o mesmo diminuíssem pelo simples fato de que tenham acontecido com pessoas próximas (SACHERI, 2010, p.17). Ou ainda quando se dá conta de que, junto a seu companheiro de escritório, encara a morte de forma insensível em um jogo de sorte que decide quem assume o homicídio da vez (SACHERI, 2010, p.31). Chaparro também assume a dúvida se seu pudor diante das fotos da autopsia de Liliana tem a ver com alguma espécie de desejo por contemplar o corpo da jovem que acabara de morrer, tal como faziam os policiais na cena do crime (Capítulo “Fojas”). O personagem também confessa sua atitude mesquinha quando se dá conta de que suas ações impulsivas podem ter prejudicado o desenvolvimento do caso: “Aunque fuese ruin, estaba más preocupado en ese momento por no quedar Em português: “...uma sensação de perda, de nostalgia incurável, de paraíso perdido por trás de cada um daqueles instantes minúsculos vindos do passado como cândidos passageiros clandestinos.” (SACHERI, 2011, p.67). 52 Em português: “Embora não totalmente, eu tinha conseguido dar um nome àquilo que havia sentido enquanto escutava Morales falar. Era inveja. O amor que aquele homem tinha vivido me despertava uma enorme inveja, acima da piedade […]” (SACHERI, 2011, p.99). 53 Em português: “Acho que pela primeira vez pensei neles dois vivos, tomando café na cozinha de sua casa, conversando e sorrindo um para o outro; e a vida me pareceu insuportavelmente cruel e belicosa.” (SACHERI, 2011, p.204). 51 50 como un chambón que por agarrar al hijo de puta que había hecho aquello, fuese Gómez o cualquier otro forajido.”54 (SACHERI, 2010, p.123) Nesta medida, seja pela voz do narrador externo, seja por suas próprias colocações no livro que escreve, Chaparro nos é apresentado em seus atributos mais nobres e em seus sentimentos mais baixos. Contraditório em sua essência, sua caracterização concorre para que o leitor construa a imagem de um homem comum, com conflitos existenciais e dilemas que sempre o acompanharam. Como protagonista de La pregunta de sus ojos, Chaparro é caracterizado em sua complexa e profunda cotidianidade, que o torna tão trivial e ao mesmo tempo tão indispensável quanto qualquer outro que se insere no universo criado pela ficção de Sacheri. Seu protagonismo se revela no instante em que se envolve com o caso da morte de Liliana Colotto, pois é o crime da jovem o “incidente incitador” (MCKEE, 2004, p.446) responsável por levar-nos a refletir toda sua potencialidade e tudo aquilo que é único em sua natureza ficcional. Por sua vez, Ricardo Agustín Morales, o marido da jovem assassinada em 1968, tem sua caracterização construída muito pelas impressões que Benjamín Chaparro tece sobre ele em seu romance, fruto de todos os anos que mantiveram contato por conta dos desdobramentos do caso do crime da jovem: Jamás se había destacado en nada. Ni en la escuela, ni en los deportes, ni siquiera en la familia había merecido más que algún ocasional elogio por cualidades en el fondo intrascendentes. Pero el 16 de noviembre de 1966 había conocido a Liliana, y con eso había bastado para cambiarle la vida. Con ella, por ella, gracias a ella, él había sido distinto.55 (SACHERI, 2010, p. 25) Quanto a este último aspecto sobre as caracterizações dos personagens, o teórico espanhol Antonio Garrido Dominguéz56 (2007) explica que as fontes de informação sobre um ser ficcional são muito variadas e vão desde a auto apresentação feita pelo próprio personagem até a apresentação que parte de um narrador não implicado na história. Além destas duas fontes de informações sobre Em português: “Embora fosse um sentimento mesquinho, naquele momento eu estava mais preocupado com não ficar parecendo um inútil do que com agarrar o filho da puta que havia feito aquilo, fosse Gómez ou qualquer outro foragido.” (SACHERI, 2011, p.81). 55 Em português: “Jamais se destacara em nada. Nem na escola, nem nos esportes, nem sequer na família havia merecido mais que algum elogio ocasional por qualidades, no fundo, triviais. Mas em 16 de novembro de 1966 tinha conhecido Liliana, e isso bastara para mudar sua vida. Com ela, por ela, graças a ela, havia sido diferente.” (SACHERI, 2011, p.17) 56 GARRIDO DOMINGUÉZ, Antonio. El Texto Narrativo. Teoría de la Literatura y Literatura Comparada. España: Editorial Síntesis, 2007. 54 51 um personagem, em nossa análise de La pregunta de sus ojos tem importância o que Garrido Dominguéz elucida sobre a apresentação realizada por um outro personagem da narrativa: Diferente es la presentación de un personaje puesta en boca de otro personaje. En este caso la información se ve condicionada por el “campo visual” del personaje-narrador, el cual ha de limitarse a reflejar básicamente el comportamiento y palabras del personaje descrito (aunque también pueda acudir a otras fuentes como testimonios de terceros, documentos o escritos encontrados, etc.). La imagen final del personaje depende en este caso no tanto de la disponibilidad de información sino, en especial, de la “actitud” del narrador hacia él.57 (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.77) As colocações de Garrido Dominguéz aplicam-se em nosso estudo quando temos em mente que conhecemos Morales através da mirada de Benjamín Chaparro. A caracterização do viúvo que chega ao leitor tem por base todas as colocações feitas pelo personagem-autor desde o instante mesmo em que este se propõe a “escribir la historia de Ricardo Morales.” (SACHERI, 2010, p.17). O narrador externo de La pregunta de sus ojos não apresenta o caso da morte de Liliana, como já apontamos no capítulo anterior, e, por isso, em sua narração tampouco surgem os personagens nele envolvidos. Deste modo, certificamos o fato de que não temos acesso ao viúvo Morales senão pelas apreciações que Chaparro constrói sobre a vida do personagem no romance que busca escrever. No que diz respeito a estas caracterizações mais informativas e esclarecedoras sobre o perfil de Morales, construídas a partir da escritura de Chaparro, sabemos que o viúvo é um homem loiro e alto, que trabalha como caixa em um banco de Buenos Aires. Conheceu Liliana em uma eventual visita da jovem ao banco, quando, recém-graduada, acabara de chegar à capital para viver com umas tias. Pela descrição feita por Chaparro, o leitor se dá conta de que a vida de Morales se resume a uma rotina constante, a qual o personagem se adapta de forma pacífica, como se lhe coubesse viver como vive por forças do acaso. Através da escrita de Chaparro, nos inteiramos de que Morales acredita não ser digno de Em português: “Diferente é a apresentação de um personagem posta na boca de outro personagem. Neste caso a informação se vê condicionada pelo ‘campo visual’ do personagemnarrador, o qual deverá limitar-se a expor basicamente o comportamento e palavras do personagem descrito (ainda que também possa acudir a outras fontes como testemunhos de terceiros, documentos ou escritos encontrados, etc.). A imagem final do personagem depende neste caso não tanto da disponibilidade de informação senão, em especial, da ‘atitude’ do narrador para com ele.” (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.77) (N. do T.) 57 52 maiores ganhos e de que se diz satisfeito com a vida sossegada e sem grandes ganhos que leva. Sua maior realização de vida foi ter conhecido Liliana, ainda que sua visão pessimista sempre lhe tenha deixado sob alerta de que, cedo ou tarde, o destino lhe cobraria tamanha felicidade: – ¿Y por qué se le ocurrió que Gómez podía estar en esta lista? Ahora fue Morales quien se tomó un instante para responder, como si la pregunta lo hubiese sorprendido. Por fin habló, con una mueca irónica. – ¿Quiere que le diga la verdad? Por simple aplicación del principio existencial que gobierna mi vida. –… – Todo lo que pueda salir mal va a salir mal. Y su corolario. Todo lo que parezca marcharse bien, tarde o temprano se irá al carajo.58 (SACHERI, 2010, p. 217) 2.2.2 Os personagens e sua dimensão oculta: Partindo ao que Robert McKee (2004) chama de análise da verdadeira personalidade – e que aqui optamos por chamar de dimensão oculta dos personagens, nossa leitura segue baseando-se no que afirma o autor: El verdadero carácter se desvela a través de las opciones que elige cada ser humano bajo presión: cuanto mayor sea la presión, más profunda será la revelación y más adecuada resultará la elección que hagamos de la naturaleza esencial del personaje.59 (MCKEE, 2004, p.132) O autor explica que sob a superficial caracterização de um personagem se encontra uma dimensão que só conseguimos alcançar a partir das decisões que o personagem toma quando se encontra em uma situação de pressão. Na busca por satisfazer os desejos que o movem, um personagem sempre decide por determinados caminhos e atua de acordo com seus princípios, mas é, segundo McKee, tão só em uma situação de crise, de pressão intensa que este personagem Em português: “– E por que lhe ocorreu que Gómez podia estar nessa lista? Dessa vez foi Morales quem demorou um instante para responder, como se a pergunta o pegasse de surpresa. Finalmente falou, com uma careta irônica. – Quer que eu lhe diga a verdade? Pela simples aplicação do princípio existencial que governa minha vida. –... – Tudo o que puder dar errado vai dar errado. E sua consequência natural. Tudo o que parece correr bem vai para o caralho mais cedo ou mais tarde.” (SACHERI, 2011, p.143). 59 Em português: “O verdadeiro caráter se desvela através das opções que elege cada ser humano sob pressão: quanto maior seja a pressão, mais profunda será a revelação e mais adequada resultará a escolha que façamos da natureza essencial do personagem” (MCKEE, 2004, p.132) (N. do T.) 58 53 revela-se a si mesmo em toda sua profundidade e essência. Como aqui já sinalizamos, é o sentido depreendido das ações de um personagem, em contraste com aquilo que é dito, por ele mesmo ou por outros personagens, o que nos fornece a chave de acesso a um determinado ser ficcional em toda sua complexidade. E é a partir do colocado por McKee que partiremos à nossa leitura do que vislumbramos como a dimensão oculta do protagonista de La pregunta de sus ojos. Vimos que, em sua caracterização, Benjamín Chaparro se descreve, por ocasião da escritura de seu próprio romance, como um homem previsível, introspectivo e cheio de receios. Considerando este objetivo nosso de refletir a dimensão oculta de um personagem e pensando em categorias mais estanques de classificação, algumas questões vêm à tona com respeito ao objeto foco de nossa leitura: poderíamos definir Benjamín Chaparro como um personagem forte e com coragem ou, antes, como um personagem fraco e temeroso? Como herói da narrativa, é realmente um ser de esperados sentimentos nobres? Para além dos momentos em que se acovarda diante dos rumos da investigação e de quando pensa em desistir porque duvida sobre a relevância em ajudar ou não ao viúvo Ricardo Morales, Chaparro passa por situações que servem de amparo à leitura aqui realizada. Assim, com vistas a analisar esta dimensão oculta de que nos fala Robert McKee, para este capítulo selecionamos um episódio da obra que consideramos como uma situação de grande pressão a Chaparro e que, por isso, julgamos como uma importante ocasião de tensão para que o personagem se desvele através de suas próprias decisões: – ¿Pero no hay otra salida que rajar como un prófugo? –no me resignaba a quedarme sin vida de un día para otro. Báez me miró un rato, tal vez esperando que me diera cuenta solo. No fue el caso, de manera que terminó explicándomelo. – ¿Sabe qué pasa, Benjamín? La única manera de asegurarse de que Romano se deje de joderlo es enterarlo de la verdad. Yo puedo pactar un encuentro, si usted quiere. Pero para eso tengo que decirle a Romano que el que le amasijó a su amiguito no fue usted sino Ricardo Morales. – Hizo una pausa, antes de concluir la idea–. Si usted quiere, lo hacemos. “Mierda”, pensé. No podía hacer eso, la puta madre. No podía. – Tiene razón –acepté–. Dejemos las cosas como están.60 (SACHERI, 2010, p.265) Em português: “– Mas eu não tenho outra saída a não ser sair correndo como um fugitivo? – Não me resignava a ficar sem vida de um dia para outro. Báez me encarou um tempinho, talvez esperando que eu compreendesse sozinho. Não foi o caso, de modo que ele acabou me explicando. 60 54 Em uma pequena recuperação da trama da obra a nosso leitor, importa sinalizar que depois de conseguir sua liberdade graças a um jogo de vingança contra Chaparro, Isidoro Gómez, o assassino confesso de Liliana, desaparece sem deixar sinais de seu paradeiro. Pedro Romano, o responsável pela libertação do assassino, acredita que seu protegido tenha sido morto pelo próprio Chaparro como uma espécie de resposta ou contra-ataque pela libertação de Isidoro da prisão. Como consequência desta suposta revanche, Chaparro tem seu apartamento destruído, com a ameaça de que retornariam para que esta dívida de morte fosse paga. Diante disto, a Benjamín Chaparro lhe cabe escolher entre entregar o viúvo Ricardo Morales como suposto assassino de Isidoro Gómez ou seguir sendo acusado de matar Isidoro e, por conseguinte, continuar como foragido de um crime que não cometeu. Diante de uma situação de intensa pressão, como nos coloca Robert McKee (2004), o personagem, ainda que temeroso e titubeante ao longo da narrativa no que se refere a seguir ou não o caminho em busca do criminoso, decide por fim manterse ao lado do viúvo Morales e assume os riscos de pagar por um crime que não é seu. Desta forma, através destas situações de pressão, entendemos neste estudo que, ao revelar-se a si mesmo em sua dimensão oculta, o personagem manifesta toda a sua potencialidade moral. No mais, compreendemos que este processo de desvelamento de uma dimensão oculta do personagem é verificável tanto pelo leitor quanto pelo próprio personagem, que passa a perceber-se a si mesmo a partir de um processo de autoconhecimento, de leitura própria de seu caráter. Nesta medida, o episódio antes analisado nos permite por em prática a concepção sobre o personagem de Robert McKee e comprovar que, de fato, em um personagem sempre “hay una naturaleza oculta que espera escondida detrás de una fachada de rasgos.”61 (MCKEE, 2004, p.134). O episódio antes descrito em que Chaparro revela, de acordo com nossa leitura, o que seria sua dimensão oculta tem relação uma vez mais com as reflexões – Sabe o que acontece, Benjamín? A única maneira de garantir que Romano pare de persegui-lo é contar a ele a verdade. Posso marcar um encontro, se o senhor quiser. Mas, para tanto, tenho que dizer a Romano que quem detonou o amiguinho dele não foi o senhor, mas Ricardo Morales. – Fez uma pausa, antes de concluir a ideia. – Se quiser, faremos isso. – ‘Merda’, pensei. Eu não podia fazer aquilo, caralho. Não podia. – Tem razão – concordei. –Vamos deixar as coisas como estão.” (SACHERI, 2011, p.175176) 61 Em português: “há uma natureza oculta que espera escondida atrás de uma fachada de traços.” (MCKEE, 2004, p.134). (N. do T.) 55 levantadas pelo crítico literário espanhol Garrido Dominguéz (2007) sobre a construção de um personagem. O autor amplia o próprio conceito de “caracterização”, ao afirmar que La tarea de dotar al personaje de identidad se realiza de forma gradual y, de hecho, no se consuma hasta que el escritor pone el punto final. Esta afirmación puede resultar exagerada si el término caracterización se interpreta en un sentido restrictivo –esto es, como simple presentación del personaje, generalmente, en los comienzos del relato–, pero en modo alguno lo es si se tiene en cuenta que no son sólo las cualidades o atributos lo que define a un agente, sino también su conducta.62 (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.77) Diante do que postula Garrido Dominguéz com relação à importância da conduta, podemos afirmar que também em La pregunta de sus ojos a identidade de um personagem está para além de suas “cualidades o atributos” e engloba as decisões que este personagem toma em situações de tensão ao longo da trama, como aqui já foi apontado através de Robert McKee. Dita análise a partir da conduta de um personagem, clamada por Garrido Dominguéz, também nos permite trazer a luz uma reflexão sobre a imagem construída por Chaparro sobre o viúvo da vítima. Como vimos em sua caracterização, Ricardo Agustín Morales surge na narrativa como um homem pacífico e até conformado com seu papel coadjuvante na vida. Sempre viveu sem sentir-se digno de grandes conquistas e não lhe parecia que o mundo pudesse ser distinto, razão pela qual lhe cabia unicamente resignar-se e condicionar-se ao lugar que lhe foi determinado: Más adelante, cuando Morales se permitiera hablarme de sí mismo, me tocaría escucharlo describirse como un tipo anodino, grisáceo, con un destino propio de esa chatura. Morales se catalogaba sin compasión como ese hombre que transita la familia, las escuelas y los empleos sin dejar huella alguna en los otros. Nunca había tenido nada bueno, ni nada especial, y siempre le había parecido justo. Así hasta Liliana. Porque ella había sido las dos cosas. Enormemente, lo había sido.63 (SACHERI, 2010, p.24) Em português: “A tarefa de dotar o personagem de identidade se realiza de forma gradual e, de fato, não está consumada até que o escritor coloque o ponto final. Esta afirmação pode parecer exagerada se o termo caracterização é interpretado em um sentido restritivo –isto é, como simples apresentação do personagem, geralmente, a início do relato–, mas de modo algum assim será se se tem em conta que não são só as qualidades ou atributos que definem a um agente, mas também a sua conduta”. (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.77) (N. do T.) 63 Em português: “Mais adiante, quando Morales viesse a se permitir me falar de si mesmo, me caberia ouvi-lo se descrever como um tipo insignificante, apagado, com um destino próprio dessa platitude. Ele se catalogava sem compaixão como aquele homem que transita pela família, pelas 62 56 Caracterizado na obra como homem pacato e retraído, Morales parece reprimir uma dor que o consome desde o dia em que lhe foi anunciado o crime de Liliana: A medida que transcurrían los minutos, y el interrogatorio de Báez se internaba en detalles que a Morales y a mí nos tenían sin cuidado, vi cómo la expresión del chico se iba vaciando, los rasgos se les distendían paulatinamente en una expresión neutra, y las lágrimas y el sudor que en un primer momento habían asomado a su piel se secaban definitivamente. Como si una vez frío, una vez vacante de emociones y sentimientos, una vez sentada la humareda del polvo de su vida hecha ruinas, Morales pudiera avizorar, más allá, en qué consistiría su futuro, y comprobara sin lugar para el equívoco que sí, que no había duda alguna, que su futuro era nada.64 (SACHERI, 2010, p.49) Ao longo da narrativa, sentimos que Morales sofre gradualmente pelos muitos obstáculos com os quais se depara o caso da morte de sua mulher: a falta de pistas sobre o assassino; sua inesperada captura e sua posterior liberação da prisão de Devoto; a suposta e consequente desistência por encontrá-lo. A falta de perspectiva do personagem por encontrar justiça ao caso chega a tal ponto que, em conversa com Chaparro sobre a morte como caminho único de vingança, Morales afirma – Y eso de matarlo... ¿qué quiere que le diga? Parece demasiado fácil, ¿no? Mire que tuve tiempo de pensarlo en esos años en los que buscaba en las terminales ferroviarias. ¿Y si lo encontraba entonces? ¿Qué hacer? ¿Cagarlo a tiros? Demasiado fácil. Demasiado rápido. ¿Cuánto dolor puede sentir un tipo al que acaban de vaciarle un cargador en el pecho? Sospecho que no mucho.65 (SACHERI, 2010, p.222) Pelo modo como se posiciona Ricardo Morales sobre a morte como caminho de vingança, o leitor crê que o personagem seja incapaz de cometer algum crime e escolas e pelos empregos sem deixar nenhuma marca nos outros. Nunca tivera nada de bom, nem nada de especial, e isso sempre lhe parecera justo. Foi assim até Liliana aparecer. Porque ela havia sido as duas coisas. Enormemente.” (SACHERI, 2011, p.16) 64 Em português: “À medida que os minutos transcorriam, e que o interrogatório de Báez enveredava por detalhes aos quais nem Morales nem eu dávamos importância, vi a expressão do viúvo se esvaziar aos poucos, seus traços se distenderem paulatinamente em uma expressão neutra, e as lágrimas e o suor que num primeiro momento haviam assomado à sua pele secarem definitivamente. Como se, uma vez frio, uma vez esvaziado de emoções e sentimentos, uma vez assentada a nuvem de poeira de sua vida feita ruínas, Morales pudesse vislumbrar, mais além, em que consistiria seu futuro e comprovasse sem equívocos que sim, que não havia dúvida alguma, que seu futuro era nada.” (SACHERI, 2011, p.34) 65 Em português: “– Quanto a matá-lo… o que posso dizer? Parece muito fácil, não? Veja que eu tive tempo de pensar nisso durante os anos em que o procurava nos terminais ferroviários. E se o encontrasse então? O que fazer? Abatê-lo a tiros? Fácil demais. Rápido demais. Quanta dor pode sentir um indivíduo em cujo peito acabam de esvaziar um carregador? Desconfio de que não muita.” (SACHERI, 2011, p.146) 57 que lhe resta unicamente sofrer em silêncio pela morte de sua esposa, haja vista que nada mais pode ser feito diante dos rumos tomados pelo caso da jovem na trama de Sacheri. Contudo, se pensamos em sua dimensão oculta, o que causa estranhamento em Chaparro (e, por extensão, também no leitor) é que Morales, em última instância, não é um resignado e conformado com os caminhos que o destino lhe reservou, tal como a imagem do personagem vinha sendo construída ao longo da narrativa de Chaparro. A resolução do caso de Liliana pelas próprias mãos de Morales nos desvela um homem convencido a arriscar tudo (inclusive a sua própria vida) por aquilo que realmente acredita. Se a prisão perpétua é, em tese, o destino dado pela lei a um homicida confesso, a justiça feita pelas próprias mãos de Morales leva até os últimos limites o que a lei prega em teoria: En realidad, todo eso lo vi después, desde el piso de cemento sobre el que me derrumbé jadeante. Porque durante varios minutos no pude sacar los ojos de la celda, la celda construida en el centro del recinto, la celda cuadrada de barrotes gruesos desde el piso hasta el techo, con una puerta de dos cerraduras sin picaportes y una portezuela pequeña en un rincón, de esas que se usan para meter y sacar cosas en un calabozo, la celda con un lavatorio y un inodoro en una esquina y una mesa y una silla en otra, con un camastro sobre la reja del fondo, la celda con un cuerpo acostado y vuelto de espaldas sobre ese camastro. Supongo que en ese momento sentí horror, incredulidad, aprensión, pasmo. Pero, por sobre todas las cosas, sentí una descomunal sorpresa que me golpeó con la ferocidad de unas mandíbulas hambrientas, y que poco a poco me obligó a convertir en polvo todo lo que yo había pensado de Morales y su historia en los últimos veinte años.66 (SACHERI, 2010, p.301302) Após a leitura deste fragmento que retrata o instante em que Chaparro descobre o destino de Isidoro Gómez, assassino da jovem, cabe aqui chamarmos atenção ao que nos coloca Robert McKee com relação às transformações pelas quais passa um personagem ao longo da trama. Segundo o autor, “una buena escritura no sólo revela la verdadera personalidad, sino que gira o altera esa misma Em português: “Na realidade, tudo isso eu só vi depois, do piso de cimento sobre o qual me joguei, ofegante. Porque durante vários minutos não consegui tirar os olhos da cela, a cela construída no centro do recinto, a cela quadrada de barras grossas, do piso até o teto, com uma porta de duas fechaduras sem maçanetas e uma portinhola num canto, daquelas que se usam em jaulas para meter e tirar coisas, a cela com uma pia e um vaso sanitário num ângulo e uma mesa com cadeira em outro, com um catre encostado à grade do fundo, a cela com um corpo deitado e virado de costas sobre esse catre. Penso que nesse momento senti horror, incredulidade, apreensão, desfalecimento. Mas, por sobre todas as coisas, senti uma surpresa descomunal que me golpeou com a ferocidade de mandíbulas famintas, e que pouco a pouco me obrigou a transformar em pó tudo o que eu havia pensado de Morales e sua história nos últimos vinte anos.” (SACHERI, 2011, p.200). 66 58 naturaleza interna, para bien o para mal, a lo largo de la narración.”67 (MCKEE, 2004, p.135). Ricardo Morales, de fato, também tem sua dimensão oculta revelada quando uma situação de pressão se impõe ao personagem. O consequente estranhamento do leitor e dos demais personagens vem à tona precisamente quando esta dimensão oculta de Morales entra enormemente em choque com o que até então havia sido apresentado como sua caracterização. Como nos explica Robert McKee, é justamente esta incompatibilidade entre caracterização e dimensão oculta de um personagem o que faz de uma escritura mais atrativa, envolvente e instigante. A revelação da prisão perpétua do assassino pelo próprio viúvo da vítima vai de encontro à imagem construída de Morales por Chaparro e, por conseguinte, pelo próprio leitor. Trazendo à luz uma vez mais a entrevista com Eduardo Sacheri, sinalizamos a intenção do escritor de que o encontro da verdade por Chaparro surpreendesse tanto o leitor quanto o próprio narrador (ver apêndice B – pergunta 10). É tão só ao final da narrativa que temos acesso ao que seria a dimensão oculta de Morales, obtida a partir da fusão dos traços que o caracterizam, das decisões que toma em situações de pressão e de sua relação com os demais personagens da narrativa, tal como mais uma vez aponta Antonio Garrido Dominguéz (2007), quando afirma que La construcción del personaje se presenta, pues, como resultado de la interacción entre los signos que integran la identidad del personaje, los que reflejan su conducta y, finalmente los que expresan sus vínculos con los demás personajes. Exceptuando quizá el primer tipo de rasgos (y, desde luego, no en todos los casos), los demás se van definiendo –y, con mucha frecuencia, modificando– al compás del desarrollo de la acción. De ahí que pueda afirmarse con toda justicia que el diseño del personaje no se culmina hasta que finaliza el proceso textual.68 (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.88) Para retomarmos a Robert McKee (2004), entendemos, neste estudo, que a verdadeira personalidade de um personagem dá espaço a muitas dimensões que Em português: “uma boa escritura não só revela a verdadeira personalidade, mas também gira ou altera essa mesma natureza interna, para bem ou para mal, ao longo da narração.” (MCKEE, 2004, p.135) (N. do T.) 68 Em português: “A construção do personagem se apresenta, pois, como resultado da interação entre os signos que integram a identidade do personagem, os que refletem sua conduta e, finalmente os que expressam seus vínculos com os demais personagens. Excetuando-se talvez o primeiro tipo de características (e, claro, não em todos os casos), os demais vão definindo-se –e, com muita frequência, modificando-se– de acordo com o desenvolvimento da ação. Daí que se possa afirmar com total razão que o desenho do personagem não se culmina até que finaliza o processo textual.” (GARRIDO DOMINGUÉZ, 2007, p.88) (N. do T.) 67 59 nos permitem vê-lo através de diferentes prismas. Sentimentos nobres e baixos convivem em um único ser, conformando uma personalidade que revela-se multifacetada e mutável no desenrolar da trama. Como vimos na análise dos dois personagens de La pregunta de sus ojos e à luz das reflexões teóricas aqui feitas, os dilemas que um personagem vê-se obrigado a enfrentar no transcurso da trama de Sacheri são os responsáveis por revelar-nos a verdadeira natureza destes mesmos personagens. Ler um personagem é ler suas transformações. De débil a forte. De titubeante a convicto de seus atos. De conformado a determinado a modificar sua situação. Através das pressões exercidas pela estrutura narrativa sobre as vidas de Benjamín Chaparro e Ricardo Morales, o leitor é exposto a toda uma trajetória de existência e de desenvolvimento pessoal. A funcionalidade de cada um deles, como nos sinaliza Juan Villegas (1991), nos revela que, de fato, o personagem é portador de mundo e experimenta mudanças ao longo de toda a ação. São os personagens os que nos enredam em seus dramas, nos seduzem com seus argumentos, nos convencem de suas motivações. São estes mesmos personagens os que nos surpreendem, os que rompem com nossas expectativas, os que nos fazem testemunhas de seus conflitos e cúmplices das decisões que tomam. Lê-los profundamente em sua humanidade é uma tentativa de compreendê-los para além da superficialidade de caracterizações, de forma a alcançar tudo aquilo que é único em cada um deles. 60 2.3 FORMA E SENTIDO DA TRAMA: A BUSCA DA VERDADE COMO MOTIVO CENTRAL DAS AÇÕES. O teórico norte-americano Ronald B. Tobias69 (1999) afirma que o escritor é sempre um explorador (TOBIAS, 1999, p.11). Tobias chega a este convencimento pautando-se nos caminhos que um escritor deve percorrer até conseguir que suas histórias cheguem ao leitor. Explora lugares longínquos e lugares muito próximos. Explora épocas distantes e acontecimentos que se deram há pouco. Explora os anseios alheios e sentimentos mais íntimos. Em suma, “un explorador de la condición y naturaleza humana.”70 (TOBIAS, 1999, p.11). Antes de lançar-se à aventura problemática de classificar os tipos de trama que considera, o autor define o próprio conceito de “trama” como a lógica interna de uma história. A trama, nesta medida, figura como uma estrutura narrativa, um caminho de escritura que é geralmente familiar ao escritor (TOBIAS, 1999, p.12). Cada tipo específico possui uma estrutura peculiar que a caracteriza e a diferencia entre as outras possibilidades de trama. Sob tal ótica e partindo do pressuposto de que todas as categorias de trama permitem que se alce uma mirada crítica sobre suas partes estruturantes, este estudo se centrará nos elementos constituintes de La pregunta de sus ojos para afirmar que a obra apresenta uma “trama de busca”, por ser este o motivo central que define a ação básica à qual se ligam os personagens principais. Na definição dada por Ronald B. Tobias, a trama de busca trata-se da búsqueda que efectúa el protagonista de una persona, un lugar o una cosa, sea tangible o intangible. [...] El personaje principal busca específicamente (y no casualmente) algo que espera o desea cambiará su vida de una manera significativa.71 (TOBIAS, 1999, p. 81). Com base nesta definição e voltando-nos a obra corpus desta pesquisa, nos surgem os primeiros questionamentos quanto à trama de La pregunta: o que procura o protagonista do romance? O que espera conseguir caso alcance o objeto de sua TOBIAS, Ronald. B. El guión y la trama: fundamentos de la escritura dramática audiovisual. Madrid: Ediciones Internacionales Universitárias, 1999. 70 Em português: “um explorador da condição e natureza humana”. (TOBIAS, 1999, p.11). (N. do T.) 71 Em português: “busca que efetua o protagonista por uma pessoa, um lugar ou uma coisa, seja palpável ou intocável. [...] O personagem principal busca especificamente (e não casualmente) algo que espera ou deseja que modifique sua vida de uma maneira significativa.” (TOBIAS, 1999, p. 81). (N. do T.) 69 61 procura? Benjamín Chaparro busca, antes de tudo, a verdade de um crime. Desde o instante em que se vê obrigado a encarar o corpo de Liliana Colotto, o personagem é impelido a encontrar respostas a dúvidas que o interpelam durante anos de sua vida: quem é o verdadeiro assassino de Liliana? Que destino foi dado ao assassino? Qual a verdade por detrás do crime da jovem? Antes de entrarmos na trama de busca própria de La pregunta de sus ojos, vale observar que o mito da busca é uma constante na literatura universal e perpassa a tradição literária das mais diferentes sociedades e épocas. Já na tragédia de Sófocles, a trama surge quando Édipo72 (427a.C.) se sente impelido a buscar a verdade por detrás da morte de Laio. Michel Foucault73 (2002) afirma que a tragédia de Édipo é “a história de uma pesquisa da verdade” (FOUCAULT, 2002, p.31). De acordo com o autor, Édipo é aquele que não se satisfaz com verdades obscurecidas que lhe chegam através de predições ou profecias, mas que busca ordenar os fatos por detrás da revelação até que uma verdade realmente justificada venha à tona, ou seja, é aquele que sai em busca de confirmações concretas que comprovem, de fato, se é ele ou não o assassino de seu próprio pai. Ainda a título de exemplo dentro da literatura clássica, a Ilíada74 também se alicerça em uma trama de busca, quando o povo grego antigo empreende uma expedição por vingança após a fuga de Helena de Esparta com Páris, príncipe de Tróia. Além do resgate que desemboca na própria guerra, uma busca outra está latente nos versos do poema de Homero – aquela por valores morais, como a glória e o reconhecimento após a morte, representada no afã de guerreiros que, como Aquiles, anseiam ser eternizados. E também não é a busca o que impulsiona, em El Quijote (1605)75, o personagem a deixar suas terras e sair ao encontro de aventuras? A mesma iniciase no instante em que decide hacerse caballero andante y irse por todo el mundo con sus armas y caballo a buscar las aventuras y a ejercitarse en todo aquello que él había leído que caballeros andantes se ejercitaban, deshaciendo todo género de agravio y SÓFOCLES. Édipo Rei. Disponível em: <http://www.uesb.br/evidencias/2014/01/fase-2teatro/texto03.pdf>. Acesso em 18 ago. 2013. 73 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. 74 HOMERO. Ilíada. Trad. de Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Abril, 2009. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/iliadap.pdf>. Acesso em 18 ago.2013. 75 CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Edição comemorativa do quarto centenário patrocinada pelas academias espanholas. São Paulo: Alfaguara, 2004. 72 62 poniéndose en ocasiones y peligros donde, acabándolos, cobrase eterno nombre y fama.76 (CERVANTES, 2004, p.31) É a trama de busca o que alicerça al Quijote e que se mostra a responsável por dotar a obra de um caráter de série aberta, como se os episódios interpolados na narrativa pudessem seguir ad infinitum, a partir de uma busca que avança de forma incessante. No que tange à literatura de língua inglesa, também em Hamlet77 (1599), consagrada tragédia shakespeariana, a trama de busca aparece quando o Príncipe procura vingar a morte de seu pai. Em Moby Dick78 (1851), do escritor estadunidense Herman Melville, o capitão Ahab busca encontrar a baleia cachalote que lhe arrancou uma perna. Como último exemplo, encontramos na literatura policial a trama de busca de forma explicitada, enquanto essência do próprio gênero que se desenvolve a partir do rastreio de um crime. Nesta medida, mostram-se infindáveis os exemplos que conformam a trama de busca como uma estrutura universal, como uma constante em obras artísticas de um modo geral. Nossa pesquisa entende que a trama maior de busca de La pregunta de sus ojos constitui-se de duas sub-tramas que se alicerçam a partir de dois enigmas e de dois sujeitos narradores. O primeiro enigma relaciona-se com a impossibilidade do personagem de amar e é a responsável por trazer as tensões individuais de um homem – Benjamín Chaparro, o qual, como aqui vimos, na primeira trama é narrador, mas que na voz de um narrador outro, externo, surge como objeto narrado. O segundo enigma, por sua vez, tem relação direta com o crime da jovem Liliana, grande motivador de uma série de ações que conformam toda a tensão social presente no romance de Eduardo Sacheri. Sob tal ótica, buscaremos aqui refletir sobre estas duas grandes tramas que transcorrem de forma paralela em La pregunta de sus ojos. Intimamente relacionadas, trazem cada uma delas as tensões individuais e sociais constituintes da figura multifacetada de Benjamín Chaparro. Em português: “tornar-se cavaleiro andante e ir por todo o mundo com suas armas e cavalo para buscar aventuras e por em prática tudo aquilo que ele havia lido que cavaleiros andantes realizam, desfazendo toda sorte de ofensa e colocando-se em ocasiões e perigos, os quais, terminados, rendam-lhe eterno nome e fama.” (CERVANTES, 2004, p.31) (N. do T.) 77 SHAKESPEARE, William. A trágica história de Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Fonte Digital, 2000. Disponível em: < http://biblioteca-online.net/ebooks/Shakespeare-Hamlet.pdf>. Acesso em 18 ago. 2013. 78 MELVILLE, Herman. Moby Dick. Disponível em: 76 <http://www.edu.mec.gub.uy/biblioteca_digital/libros/M/Melville,%20Herman%20-%20Moby%20Dick.pdf>. Acesso em 30 out. 2013. 63 2.3.1 A trama de busca e os conflitos individuais: Como vimos no capítulo dedicado à polifonia enunciativa que constitui La pregunta de sus ojos, a voz do narrador externo é a responsável por apresentar ao leitor os conflitos internos do personagem Benjamín Chaparro. Discutiu-se aqui sobre sua importância enquanto voz que insere outro ponto de vista no romance e permite que o leitor tenha acesso à história de La pregunta de sus ojos a partir de mais de uma perspectiva, mais de um campo de visão. Esta primeira trama do romance de Sacheri traz em si as tensões pessoais de um indivíduo dotado de muitos questionamentos, mas que não quer que seus desejos, inseguranças e medos sejam a tônica do livro que busca escrever. Estes conflitos individuais chegam a nós, leitores, através desta voz onisciente que, em uma trama paralela a de Chaparro, apresenta o personagem em seu momento presente, enquanto um solitário pro secretário de instrução já aposentado, de sessenta anos de idade, cheio de anseios, dúvidas e receios. A primeira tensão individual a que temos acesso é aquela que apresenta o antigo e secreto amor do personagem por Irene. Tendo em vista que Chaparro opta por não falar de si próprio no livro que se propõe a escrever, não temos, como leitores de Chaparro, informações sobre esta parte de sua vida. Dito de outro modo, se tivesse acesso unicamente ao texto de Chaparro, o leitor, de fato, não se inteiraria do amor que o personagem sente pela juíza. Seu nervosismo e titubeio diante de Irene, o medo de confessar seu amor e não ser correspondido ou o temor de expor seus desejos e ser mal interpretado são sentimentos que chegam até o leitor através da focalização do narrador externo, como antes dito, embora este amor seja insinuado em muitos momentos na narrativa de Benjamín. Quanto a estas tensões individuais, observa-se que a trama de envolvimento com Irene começa a ser construída já no primeiro capítulo de La pregunta de sus ojos: Da dos golpecitos suaves y escucha decir “adelante”. Cuando traspone la puerta, ella se sorprende y le pregunta qué está haciendo todavía por ahí, que cómo no está ya en el restaurante. En realidad, le pregunta “¿qué estás haciendo por acá?” y “¿cómo no estás ya en el restaurante?”, que no es lo mismo. Pero Chaparro quiere evitar enmarañarse en la cuestión del tuteo o, más correctamente hablando, del voseo, porque esa también puede ser una fuente de turbación que hunda en el fracaso su propósito manifiesto de 64 requerirle lo que sobre la calle Talcahuano casi Corrientes ha decidido ir a solicitar.79 (SACHERI, 2010, p.12 – Capítulo “Despedida”). De posse das duas escrituras – a de Chaparro e a do narrador externo, o leitor se dá conta de que o primeiro não cita (diretamente) seu amor por Irene. A história de amor (ou de dúvidas quanto a este amor) só aparece na história intercalada com a de Chaparro, ou seja, naquela que nos apresenta sua vida de escritor. No entanto, vale dizer que por mais que o queira, Chaparro não se exime totalmente de fazer comentários sobre seus sentimentos, que aparecem sempre nas entrelinhas daquilo que escreve: ¿Qué haría yo en sus zapatos? Sinceramente no lo sabía. Pero no lo sabía, fundamentalmente, porque por ninguna mujer yo había sentido lo que sentía Ricardo Morales por su difunta esposa. ¿O sí lo sentía, por una mujer acerca de la cual me he propuesto no decir una palabra en estas páginas? Tal vez pensando en ella, en esta otra, a la que guardo como mi único secreto digno de tal nombre, yo sí habría podido interpretar el amor de Morales por su mujer. Creo que por ella habría sido capaz de todo. Igualmente ella nunca me había pertenecido, como sí se habían correspondido Morales y su esposa. De modo que no era equiparable a la historia de Morales.80 (SACHERI, 2010, p.221) Chaparro parece oscilar sempre entre a certeza e a dúvida por revelar este amor que carrega consigo por mais de três décadas81. Sua busca pela verdade, máxima na obra de Sacheri, também implica o anseio de Chaparro por saber o que realmente sente Irene. Eis um dos enigmas de La pregunta de sus ojos: Em português: “Dá duas batidinhas suaves e a escuta dizer ‘entre’. Quando transpõe a porta, ela se surpreende e pergunta o que ele ainda está fazendo ali, por que já não está no restaurante. Na realidade, pergunta ‘o que você está fazendo por aqui?’ e ‘por que você já não está no restaurante?’, o que não é a mesma coisa. Mas Chaparro quer evitar se emaranhar na questão do tratamento por você ou por senhor, porque essa também pode ser uma fonte de perturbação que mergulha no fracasso seu propósito manifesto de requerer aquilo que, na rua Talcahuano quase já lá na Corrientes, decidiu solicitar.” (SACHERI, 2011, p.9). 80 Em português: “O que eu faria, na pele dele? Sinceramente, não sabia. Mas não sabia, fundamentalmente, porque nunca havia sentido por nenhuma mulher o que Ricardo Morales sentia por sua falecida esposa. Ou eu sentia, sim, por uma mulher sobre a qual me propus não dizer uma só palavra nestas páginas? Pensando nela, nessa outra, que guardo como meu único segredo digno desse nome, talvez eu pudesse, sim, interpretar o amor de Morales por sua esposa. Acredito que por ela eu seria capaz de tudo. Só que ela nunca me pertencera, ao passo que Morales e sua esposa tinham convivido. De modo que minha história não era equiparável à de Morales.” (SACHERI, 2011, p.146). 81 Considerando-se o fato de que Chaparro sempre entrega alguns capítulos de seu livro para que Irene os leia (o que sempre se configura na narrativa como um pretexto mais para vê-la), são comentários como os que constam no fragmento acima que levam o leitor a imaginar a possível reação da Juíza quando de sua leitura da obra de Benjamín. Se reconheceria Irene nas entrelinhas deste amor omitido por Chaparro em seu romance? 79 65 corresponderia a Juíza aos sentimentos de Chaparro e estaria também ela esperando que esta verdade venha à tona? Busca la billetera sobre un estante, revisa que tenga algún dinero y se va al cine. Lo que más disfruta del programa no es tanto ver tal o cual película, sino saber que después va a contárselo a Irene, cuando la vea. Se lo comentará de refilón, como de costado, como quien no quiere la cosa. Y ella le preguntará por la película. Les gusta hablar de cine. Tienen gustos parecidos. Y algo le dice a Chaparro que a Irene le agradaría que pudiesen ir juntos. No pueden, claro. No corresponde. Y tal vez sea idea de él, a fin de cuentas. ¿De dónde saca eso de que a ella le gustaría acompañarlo? De su propio deseo de que a ella le guste. ¿Tiene acaso alguna certeza? Ninguna. Nunca. Jamás.82 (SACHERI, 2010, p.29 – Capítulo “Cine”) Tal como ilustrado no fragmento acima, o leitor tem a sensação de que todas as decisões tomadas por Chaparro têm relação com seu amor por Irene: ir ao cinema para que depois conversem sobre o filme; revisar o processo e encontrar um dado confuso para checar as informações com Irene; ignorar a ideia momentânea de assinar sua obra com um pseudônimo e passar a fazer questão de seu nome na capa do livro, unicamente para que Irene o veja. Como aqui já apontamos, o personagem encontra diferentes razões para escrever um romance e constantemente tenta justificar sua decisão ao leitor, mas uma (senão a maior) destas razões parece estar conectada também a esta tensão individual que é constituinte de La pregunta de sus ojos: “[...] Y Chaparro sospecha que es para eso que lo escribe. Para dárselo a ella, para que ella sepa algo de él, tenga algo de él, piense en él, aunque sea mientras lee.”83 (SACHERI, 2010, p. 280). E por que não confessar este amor e assumir as consequências desta revelação, ao invés de viver com a aflição da dúvida? O medo da recusa mostra-se tão intenso que qualquer aspiração mínima de assumir seus próprios sentimentos é logo abandonada pelo personagem. Em português: “Procura a carteira sobre uma prateleira, confere se tem algum dinheiro e vai ao cinema. O que ele mais curte no programa não é tanto ver este ou aquele filme, mas saber que depois vai contá-lo a Irene, quando a encontrar. Fará um comentário de passagem, de relance, como quem não quer nada. E ela lhe perguntará pelo filme. Ambos apreciam falar de cinema. Têm gostos parecidos. E algo diz a Chaparro que para Irene seria agradável se pudessem ir juntos. Não podem, claro. Não seria cabível. E talvez isso seja ideia dele, afinal. De onde tirou isso de que ela gostaria de acompanhá-lo? De seu próprio desejo de que assim fosse. Por acaso tem alguma certeza? Nenhuma. Nunca. Jamais.” (SACHERI, 2011, p.19). 83 Em português: “E Chaparro desconfia de que é para isso que escreve. Para dá-lo a ela, para que ela saiba algo sobre ele, tenha algo dele, pense nele, embora seja apenas enquanto lê.” (SACHERI, 2011, p.186). 82 66 ¿Qué mejor atajo para facilitarle a Chaparro el acceso al viejo expediente que un llamado informal de la jueza de instrucción del Juzgado en el que se ha tramitado esa vieja causa? Redondo. Tendrá la oportunidad de tomar un café con Irene y de darse aires de escritor en acción. A ella le gusta ese proyecto en el que lo ve embarcado. E Irene se pone más hermosa todavía cuando habla de algo que la entusiasma. Por lo tanto, excusa perfecta. ¿Por qué, entonces, se pone tan nervioso, y retrocede justo antes de decidirse a llamarla? Precisamente porque todo es un pretexto. En el fondo es así de simple. Todo es, al cabo, una coartada para estar cerca de ella. Y chaparro se siente morir ante la mínima posibilidad de quedar expuesto delante de la mujer a la que ama.84 (SACHERI, 2010, p.74 – Capítulo “Teléfono”) Por mais que tente encontrar justificativas que convençam a si próprio sobre sua escolha por manter suas emoções encobertas, buscando motivos constantes que o façam seguir em silêncio, Chaparro nunca se contenta com a decisão tomada e não consegue viver sem remoer este amor, que o corrói e aprisiona. O peso dos anos passados parece abafar ainda mais um amor que sempre esteve calado e que agora, no transcorrer de tanto tempo, não ousa mais falar: De todos modos, Chaparro cortó esas elucubraciones desde la raíz. Se preguntó –no pudo evitarlo– si valía la pena confesarle la verdad a esa mujer a la que amaba y se respondió que no, que de ningún modo. Declararle su amor a esa mujer, ¿no era reconocer que la había amado durante casi treinta años? ¿No era confesar que se había pasado la vida queriéndola en la lejanía?85 (SACHERI, 2010, p. 83 – Capítulo “Coartadas y partidas”) “La pregunta que le formula con la mirada” (2010, p. 226) é a mesma que Chaparro não consegue responder em função de uma crise constante sobre este amor, que hora parece estar adormecido e conformado, hora lhe consome com questionamentos inquietantes. O término da escritura de seu romance trouxe em si uma catártica coragem de encontrar o que há de concreto em sua relação com Irene. Em português: “Qual o melhor atalho para lhe facilitar o acesso à velha pasta, senão um telefonema informal da titular do Juizado de Instrução no qual aquele velho processo tramitou? Perfeito. Ele terá a oportunidade de tomar um café com Irene e de bancar o escritor em ação. Ela gosta desse projeto no qual o vê embarcado. E fica ainda mais bonita quando fala de algo que a entusiasma. Portanto, desculpa perfeita. Por que então, ele fica tão nervoso e recua bem na hora de decidir ligar? Precisamente porque tudo é um pretexto. No fundo, é simples assim. Afinal, é tudo um álibi para esta perto de Irene. E Chaparro se sente morrer ante a mínima possibilidade de ficar exposto diante da mulher a quem ama.” (SACHERI, 2011, p.50). 85 Em português: “Fosse como fosse, Chaparro cortou esses devaneios pela raiz. Perguntou-se – não pode evitar – se valia a pena confessar a verdade àquela mulher a quem amava e respondeu a si mesmo que não, que de modo algum. Declarar seu amor àquela mulher não era reconhecer que a tinha amado durante quase trinta anos? Não era confessar que havia passado a vida querendo-a de longe?” (SACHERI, 2011, p.56). 84 67 Trazendo à luz mais uma vez as discussões de Ronald B. Tobias (1999) vale observar que o teórico chama a atenção para o aspecto primordial do objeto de busca na concepção do sujeito que o procura. Não se trata de uma mera desculpa para a ação, mas de um elemento de forte atuação no protagonista da obra. Nesta medida, o objeto maior de busca no romance de Sacheri – a solução do enigma por detrás do crime ou, mais bem, a organização do passado em um romance – atua na transformação do personagem protagonista. Segundo Tobias, é graças ao objeto de busca que o protagonista revela-se como ser muito diferente ao final da história de como se apresentou ao início. Em La pregunta de sus ojos, é a busca efetuada pelo protagonista a responsável pela evolução de sua consciência e pela sua autolibertação. Desta forma, voltando-nos aos conflitos individuais de Chaparro, neste estudo entendemos que a capacidade de amar do personagem mantém uma relação direta com sua empreitada como escritor, de modo que o personagem só consegue realizar-se sentimentalmente, só é capaz de libertar-se de seus receios, medos e aflições quando termina de escrever o seu romance, quando resolve as tensões sociais, as quais abordaremos no subcapítulo que se segue e que, como veremos, têm relação direta com sua capacidade de amar. [...] (Irene) le está preguntando ni más ni menos qué le pasa, qué le pasa a él, a él con ella, a él con ellos dos; y la respuesta parece interesarle, parece ansiosa por saber, tal vez angustiada y probablemente indecisa sobre si lo que le pasa es lo que ella supone que le pasa. Ahora bien –barrunta Chaparro–, el asunto es si lo supone, lo teme o lo desea, porque esa es la cuestión, la gran cuestión de la pregunta que le formula con la mirada, y Chaparro de pronto entra en pánico, se pone de pie como un maníaco y le dice que tiene que irse, que se le hizo tardísimo; ella se levanta sorprendida –pero el asunto es si sorprendida y punto o sorprendida y aliviada, o sorprendida y desencantada–, y Chaparro poco menos que huye por el pasillo al que dan las altas puertas de madera de los despachos, huye sobre el damero de baldosas negras y blancas dispuestas como rombos, y recién retoma el aliento cuando se trepa a un 115 milagrosamente vacío a esa hora pico del atardecer; se vuelve a su casa de Castelar, donde esperan ser escritos los últimos capítulos de su historia, sí o sí, porque ya no tolera más esta situación, no la de Ricardo Morales e Isidoro Gómez, sino la propia, la que lo une hasta destrozarlo con esa mujer del cielo o del infierno, esa mujer enterrada hasta el fondo de su corazón y su cabeza, esa mujer que a la distancia le sigue preguntando qué le pasa, con los ojos más hermosos del mundo.86 (SACHERI, 2010, p. 226-227 – Capítulo “Más café”). Em português: “[...] (Irene) pergunta nem mais nem menos o que está lhe acontecendo, o que está acontecendo a ele, a ele com ela, a ele com eles dois; e a resposta parece interessá-la, ela parece ansiosa por saber, talvez angustiada e provavelmente sem compreender se o que está acontecendo a ele é o que ela supõe estar acontecendo a ele. Pois bem – reflete Chaparro –, o problema é se ela o supõe, teme ou deseja, porque essa é a questão, a grande questão da pergunta que lhe formula 86 68 2.3.2 A trama de busca e os conflitos sociais: Este bloqueio que caracteriza Benjamín Chaparro e que confere sua incapacidade de amar é, como antes dito, o responsável pela conformação do primeiro enigma de La pregunta de sus ojos: saber se este amor intenso e antigo de Chaparro por Irene de fato se concretizará. Ao lado da trama de amor, aquela que chega ao leitor através da voz do narrador externo, transcorre a história que Chaparro decide arquitetar, aquela que apresenta o crime de Liliana Colotto e todas as implicações que a morte da jovem traz ao universo da trama e aos personagens que nele habitam. Os conflitos sociais encontram espaço no romance de Eduardo Sacheri a partir desta segunda trama, que sai de uma mirada interna e mais subjetiva lançada sobre o personagem Benjamín Chaparro e traz à tona as relações que o indivíduo estabelece no campo social. São as tensões sociais, nesta medida, as que têm início no instante em que a notificação da morte da jovem chega aos funcionários da Secretaria. Em nosso estudo acreditamos que é a partir deste anúncio do crime que o romance de Sacheri ganha uma forma inspirada em grande medida nos romances de cunho policial. Ainda que a narrativa contenha elementos do gênero, o autor, em entrevista87, afirma que a obra não se adequa a todas as exigências e transcende a estrutura do policial clássico. Tampouco é aqui intenção nossa catalogar a obra de Sacheri em algum lugar estanque. Atestamos que o romance dialoga com o gênero negro quando apresenta o enigma de um crime como grande motivador para o desenvolvimento de uma sequência de ações que ocorrem na esfera social e é este aqui nosso foco de interesse. com o olhar, e Chaparro de repente entra em pânico, levanta-se como um doido e diz que precisa ir, que ficou tardíssimo; ela se levanta, surpreendida – mas o problema é se surpreendida e ponto, ou surpreendida e aliviada, ou surpreendida e desencantada –, e Chaparro praticamente foge pelo corredor para o qual dão as altas portas de madeira dos escritórios, foge sobre o tabuleiro de ladrilhos pretos e brancos dispostos como losangos, e só recupera o fôlego quando entra num 115 miraculosamente vazio no horário de pico do entardecer; volta à sua casa de Castelar, onde os últimos capítulos de sua história esperam ser escritos, haja o que houver, porque ele já não tolera a situação, não a de Ricardo Morales e Isidoro Gómez, mas a própria, a que o une até destroçá-lo com essa mulher do céu ou do inferno, a mulher enterrada até o fundo de seu coração e de sua cabeça, a mulher que a distância continua perguntando o que está acontecendo a ele, com os olhos mais bonitos do mundo.” (SACHERI, 2011, p.149). 87 Cf. entrevista de Eduardo Sacheri ao jornal argentino LOS ANDES, publicada em 08/11/2009. Acesso em 15/01/2014 às 11h. In: <http://www.losandes.com.ar/notas/2009/11/8/estilo-455769.asp>. 69 Em nossa entrevista, Sacheri chama a atenção para o elemento de acaso presente em La pregunta de sus ojos, como grande fator que afasta o romance das obras de cunho policial (ver apêndice B – pergunta 9). De fato, o enigma relacionado à morte de Liliana não se sustenta no romance com base na descoberta única de quem é assassino, enigma muito peculiar em narrativas do gênero. Em La pregunta de sus ojos, o leitor é informado do assassinato de início, a partir de um personagem – Benjamín Chaparro – que quer narrar uma história sobre a qual já conhece o desfecho. Além disso, é o próprio assassino da vítima quem confessa seus atos, após ter sido capturado (também por casualidade) quando se envolvia em uma briga em um trem. Tal elemento de casualidade apontado pelo escritor perpassa grande parte da narrativa, como quando a própria verdade sobre o paradeiro do assassino chega a Benjamín Chaparro através de uma carta enviada por Ricardo Morales, na qual o viúvo pede a Chaparro que o ajude com “cierto asunto inconcluso” (2010, p.297). Chaparro não procurava informações sobre Morales e Gómez, quando a carta com a verdade sobre estes personagens lhe chega em sua Secretaria. A casualidade que caracteriza a descoberta sobre o fim dado ao assassino em La pregunta de sus ojos foge, em grande medida, às exigências ortodoxas do gênero policial, que pregam a investigação como caminho para a solução de um mistério. No entanto, nesta pesquisa entendemos que a trama de La pregunta dialoga com elementos do gênero pelo tom mesmo de sigilo que envolve toda a narrativa; pela presença de um detetive de importante papel na trama; pela tensão criada, em grande parte do romance, pela busca de um assassino; e por, mais que tudo, trazer a tona um amplo leque de conflitos sociais a partir da apresentação de um crime. Cabe destacar que a busca por um assassino, própria da estrutura de um policial clássico, cede espaço no romance de Sacheri a uma reflexão sobre as consequências desse mesmo crime na vida dos personagens envolvidos com o fato da morte. Se considerarmos as exigências do policial clássico, insistimos, La pregunta de sus ojos de fato não cumpre com todas as suas premissas, mas entendemos que esse dado também não nega o fato de que o romance dialoga em inúmeros aspectos com elementos próprios do gênero. 70 Para dar conta deste diálogo, neste estudo consideraremos o conceito erigido pelo teórico argentino Mempo Giardinelli88 (2012), quando o autor busca refletir as transformações sofridas pelo gênero desde sua gênese, em um momento em que as preocupações dos escritores ainda pareciam restringir-se a arquitetar armadilhas que pudessem entreter e, ao mesmo tempo, enganar o leitor. Giardinelli reflete acerca de uma nova vertente do policial que sai dos emaranhados de pistas a serem desvendadas à custa de noites de sono do leitor, para centrar-se na cotidianidade das cidades, em personagens mais palpáveis, com problemas sociais que ecoem na cotidianidade do leitor. O autor traça um panorama do gênero desde suas origens norte-americanas com a chamada Literatura de Far West ou Novela de vaqueros até chegar ao que concebe como “novela negra”, definida como aquela que incorpora elementos de la vida real: la lucha por el poder político y/o económico por parte de sujetos sobrados de ambición, sexismo, violencia e individualismo, productos todos de una sociedad... vista por casi todos los autores como corrompida y en descomposición.89 (GIARDINELLI, 2012, p.19) Giordianelli explica que a “novela enigma, novela-problema o de cuarto cerrado” refere-se a textos clássicos que tinham o propósito exclusivo de desenvolver tramas em que quase sempre aquele que mata desaparece sem deixar sombra de pistas. O único mistério está na morte inexplicável e é tarefa do leitor tentar descobrir o assassino. Por sua vez, a versão mais moderna do gênero, de envergadura crítica e sociológica, traz a luz uma nova vertente do policial, repleta de “inacabables posibilidades al ocuparse de la vida real y ser reflejo de ella y no de un pequeño universo hermético y mental.”90 (GIARDINELLI, 2012, p.19). Sobre este “ocuparse de la vida real” de que nos fala Giardinelli, a escritora e crítica literária norte-americana P.D. James91 (2012) afirma que 88 GIARDINELLI, Mempo. El género negro: orígenes y evolución de la literatura policial y su influencia en Latinoamérica. 1ª ed., Buenos Aires, Capital Intelectual, 2013. 89 Em português: “incorpora elementos da vida real: a luta pelo poder político e/ou econômico por parte de sujeitos repletos de ambição, sexismo, violência e individualismo, produtos todos de uma sociedade... vista por quase todos os autores como corrompida e em decomposição.” (GIARDINELLI, 2012, p.19) (N. do T.) 90 Em português: “inacabáveis possibilidades ao ocupar-se da vida real e ser reflexo dela e não de um pequeno universo hermético e mental.” (GIARDINELLI, 2012, p. 19). (N. do T.) 91 JAMES, P.D. Segredos do romance policial. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Três Estrelas, 2012. 71 Cada vez mais os autores de romances de crime e de histórias de detetive refletirão esse mundo tumultuado em suas obras e lidarão com ele com realismo sempre maior do que era possível na Era Dourada. A solução do mistério ainda se encontra como centro da história de detetive, mas hoje ela não é mais isolada da sociedade contemporânea. Sabemos que os policiais não são invariavelmente mais virtuosos e honestos do que a sociedade onde são recrutados, e que a corrupção pode rondar os corredores do poder e esconder-se no próprio coração do governo e do sistema de justiça criminal. (JAMES, 2012, p.169) Assim como P.D. James, Mempo Giardinelli também chama a atenção para as mudanças estruturais sofridas pelo gênero desde sua formação. Em suas muitas versões, exigências ortodoxas cedem lugar a variações dentro do cânone. Como nos coloca Giardinelli, […] Lo solamente policiaco ha caducado como posibilidad fundamental de definición. El género, modernamente, supera con holgura tal perspectiva. […] Es evidente que el género se alejó de la presencia del policía institucional o privado: en muchos casos, éste quedó en segundo plano o simplemente desapareció. Hoy en este género no es indispensable que exista el policía. Más allá de la opinión que se tenga acerca de los “guardianes del orden” – seres repudiados en muchas sociedades – lo que subsiste en esta literatura es el hecho delictivo, sin el cual no hay posibilidad de género. Subsisten la transgresión, el apropiamiento indebido, la violación de la ley, la supresión de la vida ajena, etcétera, y existen encarnados en personajes cada vez más exóticos, impuros, maniqueos, es decir, hijos de la realidad social en que se desenvuelven.92 (GIARDINELLI, 2012, p. 49 – grifo nosso) A bem dizer, em La pregunta de sus ojos, o personagem Benjamín Chaparro, quando de seu envolvimento com o caso da morte da jovem, surge também ele como uma espécie de detetive, ainda que saiba que as decisões que toma são por vezes frustradas e prejudiciais à captura do assassino. Chaparro é ajudado pelo inspetor Báez, um investigador aos moldes tradicionais, que tangencia e auxilia o protagonista em sua expedição, cedendo-lhe informações mais burocráticas e formais sobre o caso da jovem. Como coloca Giardinelli no fragmento supracitado, se a figura do policial dentro do gênero em suas versões clássicas encontra hoje Em português: “[…] O policial puro caducou como possibilidade fundamental de definição. O gênero, modernamente, supera com facilidade tal perspectiva. […] É evidente que o gênero se afastou da presença do policial institucional ou privado: em muitos casos, este ficou em segundo plano ou simplesmente desapareceu. Hoje neste gênero não é indispensável que exista o policial. Para além da opinião que se tenha sobre os ‘guardiões da ordem’ – seres repudiados em muitas sociedades – o que subsiste nesta literatura é o fato delitivo, sem o qual não há possibilidade de gênero. Subsistem a transgressão, a apropriação indevida, a violação da lei, a supressão da vida alheia, etecetera, e existem encarnados em personagens cada vez mais exóticos, impuros, maniqueístas, ou seja, filhos da realidade social em que se desenvolvem.” (GIARDINELLI, 2012, p. 49) (N. do T.) 92 72 possibilidades de variação, o que persiste em narrativas do gênero, ou, em nosso caso, em narrativas que dialoguem com o gênero, é o fato delitivo, à violação da lei, inclusive, do direito à vida, estopim que movimenta a trama de La pregunta de sus ojos. Parece importante recorrermos uma vez mais ao teórico Ronald B. Tobias (1999) quando o autor fala de um incidente motivador como aquele que retira o personagem de sua inércia e o leva a atuar. Este incidente motivador pode ser definido, e aqui justamente parece ser o caso, como o acontecimento que desencadeia a ação. Nesta medida, traz em si um forte poder causal, pois, como fato desencadeador de ações, muda a ordem dos acontecimentos e obriga o personagem a atuar. Sob tal ótica, pode-se afirmar que, em La pregunta de sus ojos, a origem das ações se concentra neste fato delitivo do qual nos fala Giardinelli, ou seja, na morte de Liliana Colotto como acontecimento que suscita uma série de outras ações que se desenrolam no transcorrer da trama. Tobias também explica que antes de sair rumo ao objeto de sua busca, “el héroe se halla en el punto de partida, por lo habitual en su hogar. Una fuerza le impele a actuar, bien por necesidad bien por deseo.”93 (TOBIAS, 1999, p.83). Em verdade, encontramos este “hogar” de Chaparro em seu lugar de trabalho – uma das Secretarias do Juizado de Instrução de Buenos Aires. Ligado ao incidente motivador da morte, outras ações são desencadeadas de forma a impulsionar a atuação do protagonista do romance: o telefone que toca em uma hora de número par, que deveria ser atendida por Chaparro, e não de número ímpar, que corresponderia a Romano, funcionário da Secretaria ao lado. Em um jogo de acaso, como já visto, “casi como si tratara de um desafio desportivo” (SACHERI, 2010, p.31), a morte da jovem, “fuerza al héroe a abandonar su hogar. No es suficiente que desee marcharse; algo debe alentarle. Puede que tenga dudas sobre partir o no […], pero el incidente inclina la balanza.”94 (TOBIAS, 1999, p.85). Em última instância, entendemos neste estudo que é o crime da jovem o grande incidente motivador para que as ações se desenvolvam na obra. Vale Em português: “o herói se encontra em um ponto de partida, no geral em sua casa. Uma força lhe motiva a atuar, seja por necessidade, seja por desejo.” (TOBIAS, 1999, p.83) (N. do T.) 94 Em português: “força o herói a abandonar seu lar. Não é suficiente que deseje partir; algo deve estimulá-lo. Talvez tenha dúvida sobre partir ou não […], mas o incidente inclina a balança.” (TOBIAS, 1999, p.85). (N. do T.) 93 73 observar que Chaparro não tem ambição de desvendar o caso de Liliana já de início. Pelo contrário, após cumprir a ordem de examinar o local do assassinato, o personagem não exterioriza nenhum impulso por encontrar a verdade do crime. Seu envolvimento com a história de Liliana se deu como parte de um interesse maior pela vida de Ricardo Morales, história que busca narrar no livro que escreve. Chaparro é envolvido pouco a pouco no caso de Liliana a partir do encontro que tem com Ricardo Morales logo após a morte de sua mulher, juntamente com o oficial inspetor Báez, personagem que atua, como antes dito, como uma espécie de detetive na narrativa e que contribui em grande medida para este certo tom policial do romance de Sacheri. A busca pela verdade por detrás do crime – aquela que acontece no nível ficcional – é responsável por nosso envolvimento imediato com a trama da narrativa, quando, junto a Chaparro, o leitor é tomado pela ansiedade e aflição por encontrar uma solução para o caso da morte da jovem. Vale sublinhar mais uma vez aqui que esta verdade vem em uma dimensão outra que não a da revelação sobre quem é o assassino. A busca pela verdade sobre a qual nos referimos neste estudo implica fazer justiça pela morte da jovem e envolve questões bem mais amplas que a descoberta do criminoso. Como afirma Tobias, todos os acontecimentos da trama devem corroborar para que se concretize o objetivo último da busca do personagem, que, de fato, entendemos nesta pesquisa que, mais que na solução do crime, implica na restauração da verdade enquanto valor fundamental para o próprio personagem e, em âmbito mais amplo, para toda a sociedade. A trama de busca, desta forma, está a serviço da restauração de um valor básico para a vida social, mas que, por contrário, não está realizado e implementado na sociedade representada pela ficção, e este fato, por si próprio, causa um desequilíbrio estrutural que atinge a personagens que, como Chaparro, lutam para que a justiça seja feita. Em última instância, entendemos que o diálogo da obra com o gênero negro reside justamente nesse compromisso que La pregunta de sus ojos estabelece com os conflitos sociais inerentes à realidade argentina e que são trazidos à tona por Sacheri. O crime da jovem, como já dito, configura-se como detonador que nos conduzirá a uma reflexão mais profunda sobre toda uma rede de corrupção judicial que age de modo desfavorável à realização desta verdade na narrativa. A análise 74 que se segue sobre os significados do romance nos ajudará a ponderar estas questões que se mostram como desdobramentos do enigma da morte e figuram como indícios dos muitos conflitos sociais que a obra de Sacheri permite que sejam refletidos. 75 III DAS ESTRATÉGIAS AOS SIGNIFICADOS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS 3.1 A VIOLÊNCIA E A VIOLAÇÃO DA LEI COMO MOTIVOS DE LA PREGUNTA DE SUS OJOS O tema da violência e da violação da lei surge no cenário literário argentino desde o século XIX, quando já então as marcas da violência política faziam-se notar, marcas que seguem presentes até hoje em uma ampla gama de textos que figuram como índice do forte vínculo que sempre existiu entre política e literatura nacional. A título de exemplo deste vínculo, a própria formação do Estado a partir da lei assentada na violência prévia tem sua representação no gaucho Martín Fierro (1872)95, personagem deslocado em um projeto de desenvolvimento do país e que não se encaixa em um ideal de modernização argentina. Excedente num cenário de progresso que se visa consolidar naquele momento, o gaucho é trazido à tona pela literatura enquanto símbolo de uma identidade cultural do país. Na primeira obra aparece recrutado forçadamente a lutar nas fronteiras e sofre as consequências sociais que esta imposição impõe a sua história de vida e que o conduzem, ao final, a isolar-se em meio aos indígenas. Por ocasião de sua volta, escrita em 1879, as injustiças sociais sofridas pelo gaucho seguem retratadas. O ser valente, autônomo e livre, que vive solitário nos pampas, se transforma ao compasso das atrocidades sociais impostas por sua vida marginalizada de gaucho. Jorge Luis Borges dialoga com o Martín Fierro (1953)96 e questiona a legitimidade do gaucho enquanto símbolo de retidão. O personagem paradigmático passa a réu de um julgamento moral sobre suas decisões ao longo do poema de José Hernández e é colocado em xeque por Borges: é Martín Fierro um herói, um arquétipo nacional a ser seguido? São muitas as análises que apontam a violência em Martín Fierro como reflexo de um processo de marginalização mais amplo ao que submetem o gaucho. Sofre com as truculências daqueles que detêm o poder e é relegado a uma vida de pobreza e criminalidade. No entanto, Borges sinaliza que a valentia diante dos percalços que encontra em seu caminho não deve omitir o peso HERNÁNDEZ, José. El gaucho Martín Fierro. Disponível em: <http://biblio3.url.edu.gt/Libros/gua_mf.pdf>. Acesso em: 15 set. 2013. 96 BORGES, Jorge Luis. El fin. En Artificios, Alianza Editorial, S.A., Madrid, 1993, pág. 68. Disponível em: <http://www.literatura.us/borges/elfin.html>. Acesso em: 15 set. 2013. 95 76 de determinadas atitudes tomadas, como quando duela e assassina ao Negro, episódios trazidos à luz décadas depois por um Borges questionador. Nesta medida, este retrospecto literário leva-nos a afirmar que, tendo como marco inicial o próprio Martín Fierro, observa-se que a literatura argentina vem assumindo e debatendo o tema da violência e da lei desde a formação do Estado Nacional. A incompreensão do outro e a negação da diferença vêm sendo abordadas em distintas obras a partir de perspectivas múltiplas e de uma pluralidade de vozes. E é nesta tradição argentina que La pregunta de sus ojos se situa, quando traz como pano de fundo a ferocidade de um passado argentino que ainda se mantém como preocupação de escritores e críticos e que se desborda no hoje a partir da apresentação da violência por vieses distintos. Como vimos no capítulo antecedente, denominado “Forma e sentido da trama”, a busca do personagem por uma verdade por detrás da morte de Liliana é a responsável por movimentar grande parte da trama de Sacheri. O envolvimento de Benjamín Chaparro com o caso da jovem se dá em compasso com o surgimento de fatos que compõem o que o personagem chamará, em seu posterior romance de “a história de Ricardo Morales”, a qual se inicia para Chaparro no instante em que a notícia da morte da jovem lhe chega por telefone e finaliza-se com sua ida à casa do viúvo para cumprir um pedido feito por uma carta de Morales. Entre estes dois marcos, a trama se desenvolve e cresce a cada capítulo, sempre permeada de conflitos entre personagens que de alguma forma se inserem nesta órbita de ações que tem como centro a morte de Liliana Colotto. Durante todos os anos em que se viu implicado no caso da jovem, Chaparro viveu um constante enfrentamento com aqueles que são avessos ao esclarecimento justo e lícito dos fatos. E é por meio deste embate contínuo que a violência ganha espaço na obra de Sacheri. A ânsia do personagem por fazer justiça e todo o seu esforço por encontrar a verdade por detrás do crime, por tentar minimizar o sofrimento do viúvo, vão de encontro a interesses superiores contrários ao cumprimento da justiça no caso da jovem. Como aqui vem sendo exposto, este dado constitui-se em um ponto chave em nossa leitura, tendo em vista que na busca por solucionar o caso da morte da jovem, Chaparro traz a luz toda uma rede de corrupção, baseada na violência e na violação à lei, e que se deixa entrever no diaa-dia de personagens que conformam a malha judicial da narrativa. 77 É por via das peripécias com as quais se envolve Chaparro que o leitor tem acesso a personagens integrantes da Justiça na trama, os quais denotam a falência de uma Instituição que é apresentada ao leitor de forma deteriorada e corrupta. O episódio que se segue é bastante representativo destas questões levantadas em nosso estudo sobre a malha judicial representada na narrativa: Es cierto que a los pocos meses me rozó un coletazo desagradable del asunto. Tuve que declarar en la investigación contra Romano y el policía Sicora, por los apremios ilegales a los albañiles. La declaración en sí fue un trámite: apenas ratificar mi denuncia inicial y aclarar un par de detalles. Me extrañó (me disgustó) que pusieran a un pinche a llevar ese sumario: una mala señal, como si en ese Juzgado dieran por sentado que la causa iba a una vía muerta y estuvieran limitándose a guardar las formas. ¿Qué necesitaban para procesar a esos dos atorrantes? Tenían mi declaración, las de un par de policías de la seccional y la pericia médica sobre las lesiones de los dos pobres tipos. Pese a la desconfianza que me produjo, decidí esperar. El juez era Batista, un tipo al que consideraba honesto, y a quien conocía un poco por haber trabajado con él en alguna feria de enero. Además, como ya dije, el envión de compromiso virulento con todo el proceso se me había pasado. Tiempo después el propio Batista me citó a su despacho. Me recibió sonriendo, me estrechó calurosamente la mano y, cuando nos sentamos, me dijo que lo que iba a decirme era absolutamente confidencial, y que por favor no lo divulgara porque los dos nos jugábamos el puesto. “La pucha”, pensé. ¿Qué podía ser tan serio? Supongo que el juez estaba incómodo, porque después de dudar un momento me vomitó todo el asunto en el menor tiempo posible, como si quisiera desembarazarse rápido de algo molesto y sucio. Así que me informó sin atenuantes que le había llegado la orden “de arriba” (y completó la imagen señalando con el dedo índice el techo de su despacho, pero queriendo significar… ¿qué?, ¿la Cámara?, ¿la Corte?, ¿el gobierno?), para frenar todo el asunto y sobreseer sin procesados. Agregó que no podía ser mucho más explícito, pero que al parecer ese muchacho… Romano, el compañero mío, tenía una banca grande, bien arriba. Al decir lo de la “banca grande” Batista se había tocado el hombro izquierdo con dos dedos de la mano derecha.97 (SACHERI, 2010, p. 140-141) Em português: “É verdade que, dali a poucos meses, me atingiu um vestígio desagradável do assunto. Tive que depor a investigação contra Romano e o policial Sicora, pela coação ilegal contra os pedreiros. O depoimento em si foi rápido: somente ratificar minha denúncia inicial e esclarecer uns detalhes. Estranhei (não gostei) que colocassem um auxiliar para tocar esse inquérito: mau sinal, como se naquele Juizado dessem por estabelecido que a causa não iria adiante e estivessem se limitando a manter as aparências. De que precisavam para processar aqueles dois vagabundos? Tinham meu depoimento, os de uns policiais da seção e a perícia médica sobre as lesões dos dois pedreiros. Apesar da desconfiança que isso produziu em mim, resolvi esperar. O juiz era Batista, um homem que eu considerada honesto e a quem conhecia um pouco por ter trabalhado com ele em algum plantão de janeiro, durante o recesso judicial. Além disso, como já afirmei, meu impulso de compromisso virulento com todo o processo já passara. Algum tempo depois, o próprio Batista me convocou ao seu gabinete. Me recebeu sorrindo, apertou calorosamente minha mão e, quando nos sentamos, observou que o que iria me dizer era absolutamente confidencial, e que por favor eu não divulgasse nada, porque nesse caso nós dois estaríamos pondo em risco nossos cargos. ‘Puta merda’, pensei. O que podia ser tão sério? Imagino que o juiz estava agoniado, porque, depois de hesitar um momento, me vomitou a coisa toda no menor tempo possível, como se quisesse se livrar rapidamente de algo incômodo e sujo. De modo 97 78 Como se observa no fragmento supracitado, a impunidade aparece como marca de uma teia judicial que assegura a liberdade daqueles que cometem crimes, mas que se mantêm incólumes graças à degeneração da instituição representada na trama de Sacheri. Uma ordem que, no diálogo entre os personagens, se mostra abstrata, tão simplesmente “de arriba”, já justifica que se abandone o caso, como se o prosseguimento da investigação estivesse fadado ao esquecimento, impedido por forças maiores e inquestionáveis, contra o risco de revanches de alto custo àqueles que ousem objetar-se. A violência de um silêncio imposto. Chaparro sofre ao longo da narrativa as muitas retaliações consequentes de sua oposição a funcionários implicados com a corrupção do governo, com destaque a maior delas e que aqui trazemos à análise: La puerta de mi departamento estaba abierta, y desde adentro se proyectaba un haz de luz hacia el pasillo en penumbra. ¿Me habían robado? Caminé hasta el umbral y lo atravesé sin reparar en la posibilidad de que el intruso todavía estuviese dentro. De hecho no había nadie. Pero eso lo pensé después, porque el departamento estaba en un desorden absoluto. Los sillones y las sillas volcados, la biblioteca tirada, los libros despanzurrados y esparcidos por el piso. En el dormitorio, el colchón estaba destrozado y había espuma de goma por toda la pieza. La cocina era otro desbarajuste. Estaba tan aturdido que tardé en advertir que el televisor y el combinado de música no estaban, ni en su sitio ni en ningún otro. ¿Eran ladrones, entonces? No se entendía, en ese caso, el ensañamiento con el que habían actuado. Al final entré al baño, sabiendo que iba a encontrar el mismo caos. Pero había algo más, aparte de la cortina de baño en hilachas, el contenido del botiquín regado por el piso y los grifos del bidé abiertos al máximo para inundar todo el sitio. En el espejo había un mensaje escrito con jabón: “Esta vez te salvaste, Chaparro hijo de puta. La próxima sos boleta”.98 (SACHERI, 2010, p.241-242). que me informou sem atenuantes que havia recebido ordens ‘de cima’ (e completou a imagem apontando com o indicador o teto de seu gabinete, mas querendo significar... o quê? a Câmara? a Corte? o governo?) para frear todo o assunto e suspender sem processados. Acrescentou que não podia ser muito mais explícito, porque aparentemente aquele rapaz... Romano, o meu colega, tinha um ‘pistolão’, bem no alto. Ao falar ‘pistolão’, Batista havia tocado o ombro esquerdo com dois dedos da mão direita.” (SACHERI, 2011, p. 93-94). 98 Em português: “A porta do meu apartamento estava aberta, e do interior uma luz se projetava no corredor em penumbra. Tinham me roubado? Caminhei até a entrada e a transpus sem pensar na possibilidade de que o intruso ainda estivesse lá dentro. De fato não havia ninguém. Mas isso eu pensei depois, porque, mal entrei, percebi apavorado que o apartamento estava numa desordem absoluta. Poltronas e cadeiras viradas, a estante arrastada, os livros arrebentados e espalhados pelo piso. No quarto, o colchão estava despedaçado e havia flocos de borracha por todo o aposento. A cozinha era outra bagunça. Fiquei tão aturdido que demorei a notar que a televisão e a vitrola não estavam nem nos seus lugares nem em nenhum outro. Tinham sido ladrões, então? Nesse caso, não se explicava a fúria com que haviam agido. Por fim entrei no banheiro, sabendo que ia encontrar o mesmo caos. Mas havia algo mais, afora a cortina de plástico rasgada a tiras, o conteúdo do armário de remédios esparramado pelo piso e as torneiras do bidê abertas ao máximo para inundar o local. No espelho havia uma mensagem escrita com sabonete: ‘desta vez você se salvou, Chaparro filho da puta. Na próxima, está liquidado.’” (SACHERI, 2011, p.159). 79 Tal como mencionamos no tópico referente à dimensão oculta dos personagens, por ocasião da crença de que Isidoro Gómez, o assassino de Liliana, tivesse sido morto pelo próprio Chaparro, o personagem tem seu apartamento destruído por Pedro Romano e seus aliados. Na sequência de violência como represália ao personagem, Chaparro se vê obrigado a fugir de Buenos Aires e refugiar-se em San Salvador de Jujuy, capital da província de Jujuy, a noroeste da Argentina, naquele “frío invierno de 1976” (2010, p.81) (ver apêndice A). Vale observar que este intervalo de tempo em que Chaparro passa foragido em um lugar ao qual não se sente pertencente atua na narrativa como um momento de grande aflição interna do personagem. Ainda que assumisse a culpa por um crime que não cometeu e tivesse, de alguma forma, consciência de sua nobreza, Chaparro se sente um covarde e um fraco por não ter enfrentado seus algozes e não ter permanecido em sua casa, seu escritório, seu bairro, sua vida. “Maravilloso”, pensé. Iba a vivir en el confín de la patria y a trabajar con un señor feudal, más o menos. Pero en ese momento se me cruzó la imagen de mi departamento hecho polvo y automáticamente se me aquietaron las ínfulas. Si con el tipo iba a estar a salvo, mejor sería meterme la pedantería en el último rincón y darle para adelante. Recordé la vergüenza ajena que me había dado, años atrás, ver al juez Batista recular cuando no se animó a bajarle la caña a Romano, en la causa de apremios. Yo también era un cobarde. Yo también había encontrado mi límite.99 (SACHERI, 2010, p.268) Aparte da violência sofrida por Chaparro, que narra todas as consequências que o envolvimento no caso da jovem gerou em sua vida, a obra também dá espaço a uma violência mais ampla, implicada ao contexto histórico que serve de pano de fundo à narrativa de Sacheri (ver apêndice A). Na esteira desta segunda violência que permeia toda a obra do escritor, merece destaque significativo a análise de um importante episódio que agora terá nosso foco neste estudo: o desaparecimento do primo de Pablo Sandoval, grande amigo de Chaparro e companheiro de trabalho no Juizado. – Hoy me llamó mi tía Encarnación, la hermana de mi vieja –hizo una pausa; le tembló la voz–. Me dijo que ayer se lo llevaron a mi primo Nacho. Em português: “‘Maravilhoso’, pensei. Eu ia viver nos cafundós da pátria e trabalhar com um senhor feudal, mais ou menos. Mas nesse momento me passou pela cabeça a imagem do meu apartamento destruído, e automaticamente minhas pretensões de acalmaram. Se com aquele sujeito eu estaria a salvo, melhor seria deixar para lá o pedantismo e seguir em frente. Recordei a vergonha por tabela que havia sentido, anos antes, ao ver o juiz Batista recuar quando não se animou a enquadrar Romano no processo por coação ilegal. Eu também era um covarde. Eu também havia encontrado meu limite.” (SACHERI, 2011, p.178). 99 80 Cree que eran milicos. Pero no está segura. Entraron rompiendo todo, en plena noche. Iban vestidos de civil. De nuevo hizo silencio. No lo interrumpí. Sabía que no había terminado. – La pobre vieja preguntó qué podía hacerse. Le dije que se viniera para casa. La acompañé a hacer la denuncia –encendió un cigarrillo antes de terminar–: ¿Qué iba a decirle? – Hiciste bien, Pablo –me atreví. – No sé –dudó, antes de continuar–. Sentí como si la estuviese engañando. Tal vez debería haberle dicho la verdad. – Hiciste bien, Pablo –repetí–. Si le decís la verdad, la matás. La verdad. Qué cosa jodida que es a veces la verdad. [...]100 (SACHERI, 2010, p.230-231) Parece interessante interromper o fragmento antes citado para chamar a atenção ao fato de que a certeza desta verdade sobre o ocorrido com Nacho, primo de Sandoval, não é referida em forma de palavras no diálogo entre os personagens. Chegamos a esta verdade através da demonstração da tristeza de Sandoval, pelas reservas de Chaparro ao tocar no tema com seu amigo, na preocupação de Sandoval por contar ou não algo que seria tão devastador a uma mãe que já sofre pela ausência de um filho. É nas entrelinhas do diálogo entre os amigos que entendemos que no desaparecimento irremediável do jovem está implícita a sua morte, o fato trágico que foi ocultado como forma de poupar a tia, esta “verdad”, cruel e implacável, que não se quer ou não se consegue exteriorizar. A presença do elemento histórico na obra, que até então se fazia notar pelo clima de tensão da Argentina naquelas décadas ou pela referência a uma Buenos Aires cinzenta, agora aparece no episódio da morte de Nacho de forma mais explicitada, patente. Vale enfatizar que a morte do jovem não é mencionada no texto, como antes colocamos, mas o contexto situado na voz de Chaparro, que aparece na sequência do diálogo mantido com Sandoval e que abaixo citamos, se responsabiliza por deixar manifesto o destino do jovem: Em português: “– Hoje me ligou minha tia Encarnación, a irmã da minha mãe – começou, e fez uma pausa. Sua voz tremeu. – Disse que ontem levaram meu primo Nacho. Ela acha que eram milicos. Mas não tem certeza. Entraram quebrando tudo, em plena noite. Estavam em trajes civis. De novo, fez silêncio. Não o interrompi. Eu sabia que ele não tinha terminado. – A pobre velha me perguntou o que se podia fazer. Pedi que ela viesse para minha casa e a acompanhei para fazer a denúncia. – Acendeu um cigarro antes de terminar: – O que eu ia dizer? – Fez bem, Pablo – me atrevi. – Não sei – hesitou ele, antes de continuar. – Senti como se a estivesse enganado. Talvez devesse ter dito a verdade. – Fez bem, Pablo – repeti. – Se disser a verdade a ela, você a mata. A verdade. Que coisa fodida é a verdade, às vezes. [...]” (SACHERI, 2011, p.152). 100 81 […] Con Sandoval hablábamos mucho de todo el asunto de la violencia política y de la represión. Sobre todo desde la muerte de Perón101 en adelante. Ahora aparecían menos cadáveres en los descampados. Evidentemente los asesinos habían perfeccionado su estilo. Trabajando en la Justicia Criminal estábamos demasiado lejos de los hechos como para saberlos al dedillo, pero lo suficientemente cerca como para intuirlos. No hacía falta ser adivinos, tampoco. Todos los días veíamos detener gente, por ahí. O nos llegaba el dato. Sin embargo esos detenidos jamás llegaban a la alcaidía, jamás subían a declarar a los juzgados, jamás eran trasladados después a Devoto o a Caseros. –No sé. Alguna vez tendrá que enterarse.102 (SACHERI, 2010, p.231) O diálogo que o personagem estabelece com seu amigo é interrompido para uma pequena explanação de Chaparro sobre o modo como as informações com respeito aos desaparecidos e mortos chegam a sua Secretaria. Uma vez mais ganha destaque na narrativa de Sacheri a impunidade como marca de um lugar que recebe detidos tão só por cumprir formalidades, sem declarações e registros, sem encaminhamento algum ao cárcere. No final da sequência, se retoma, nas palavras de Sandoval, a dúvida sobre fazer chegar ou não à tia a violência desta verdade, que lhe pesa, sufoca e lhe tira do trajeto que Chaparro toma como seguro a seu amigo, o de cruzar a rua Tucumán até o lado de Córdoba, em direção a sua casa. A dor da perda, a certeza da impunidade e a tormenta da dúvida sobre dar ou não esperanças a uma mãe que perde seu filho conduzem Sandoval aos bares de sempre, de Paseo Colón ou da Rua Venezuela, espécie de refúgio onde cabe a Chaparro ir buscar e trazer nos braços de volta à realidade (a esta “verdad” que se quer esquecer) o seu melhor funcionário e amigo. Juan Domingo Perón (1895-1974), militar e político, exerceu a presidência argentina em três períodos: de 1946 a 1952; de 1952 a 1955, interrompido pelo golpe militar deste ano; e, após dezoito anos no exílio em Madrid, exerceu-a de 1973 até sua morte em 1974. Perón foi substituído por Isabel Perón na presidência de 1974 a 1976. Neste último ano, Isabel Perón foi deposta pela Junta Militar encarregada do chamado “Processo de Reorganização Nacional”, autodesignação dada à ditadura militar argentina ocorrida entre 1976 e 1983. (Ver AQUINO, Rubim Santos Leão de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.) 102 Em português: “[...] Sandoval e eu falávamos muito da questão toda da violência política e da repressão. Sobretudo, da morte de Perón em diante. Agora apareciam menos cadáveres nos descampados. Evidentemente os assassinos haviam aperfeiçoado seu estilo. Trabalhando na Justiça Criminal, estávamos muito distantes dos fatos para sabê-los na ponta da língua, mas suficientemente próximos para intuí-los. Também não precisávamos ser adivinhos. Todos os dias víamos deterem gente, aqui e ali. Ou recebíamos a informação. No entanto esses detidos jamais chegavam à sala de custódia, jamais subiam para depor nos juizados, jamais eram trasladados depois para Devoto ou para Caseros. – Não sei. Em algum momento ela terá que saber.” (SACHERI, 2011, pp. 152-153). 101 82 A professora e pesquisadora argentina Leonor Arfuch103 confirma a recorrência do tema da violência política nas narrativas argentinas contemporâneas, quando explica que En los últimos años, y quizá confirmando que hay, en toda elaboración colectiva de un pasado traumático, temporalidades de la memoria, fueron apareciendo en la Argentina diversas narrativas en torno de la violencia política de los años ’70, que no sólo abordaban la terrible experiencia de la represión desatada por la última dictadura militar (1976-1983) sino que también traían al debate, la rememoración o la ficción, la experiencia guerrillera, tanto en sus primeras fases de campaña al norte del país, ya en los tempranos años ’60, como en su radicalización urbana, antes y después del pasaje a la clandestinidad de las agrupaciones armadas que se consolidan en la década posterior.104 (ARFUCH, 2012, p.13). O desaparecimento de Nacho, primo de Sandoval, atua na narrativa como um importante momento que ilustra este diálogo entre o ficcional e o extra-ficcional no romance de Sacheri. Como explicita Arfuch, a ficção também assume para si o tema da violência política argentina, compondo também ela esse conjunto de narrativas que tratam da repressão sob diferentes ângulos. Ainda sobre uma literatura argentina que traz em si as marcas de um passado de repressão, a pesquisadora e professora Ana Cecília Olmos105 sinaliza que Sem poder se furtar a essa experiência histórica, a literatura colocou em circulação uma diversidade de estratégias narrativas que trazem a um primeiro plano a inevitabilidade dos vínculos que, em situações de exceção social, se estabelecem entre o estético, o político e o ético. Trata-se de vínculos irredutíveis seja porque a literatura se opõe à univocidade de um poder hegemônico e se propõe como uma voz outra em substituição de um campo político anulado; seja porque questiona as relações do estético com o político que se sustentam numa lógica de expressão; seja porque convoca a dimensão ética ao trazer à tona a relação nunca resolvida da violência e ARFUCH, Leonor. Violencia política, autobiografía y testimonio. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. GINZBURG, Jaime. FOOT HARDMAN, Francisco. (Org.). Escritas da violência, vol.2: representações da violência na história e na cultura contemporâneas da América Latina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p.13-23. 104 Em português: “Nos últimos anos, e talvez confirmando que há, em toda elaboração coletiva de um passado traumático, temporalidades da memória, foram aparecendo na Argentina diversas narrativas em torno da violência política dos anos ’70, que não só abordavam a terrível experiência da repressão desatada pela última ditadura militar (1976-1983) mas que também traziam ao debate, à rememoração ou à ficção, a experiência guerrilheira, tanto em suas primeiras fases de campanha ao norte do país, já nos iniciados anos ’60, como em sua radicalização urbana, antes e depois da passagem à clandestinidade das agrupações armadas que se consolidam na década posterior.” (ARFUTH, 2012, p.13). (N. do T.) 105 OLMOS, Ana Cecília. Narrar na pós-ditadura (ou no potencial crítico das formas estéticas). In: SELIGMANN-SILVA, Márcio. GINZBURG, Jaime. FOOT HARDMAN, Francisco (Org.). Escritas da violência, vol.2: representações da violência na história e na cultura contemporâneas da América Latina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p.133-142. 103 83 sua representação. Noutras palavras, uma leitura crítica dessa literatura deve levar em conta que suas estratégias narrativas, para além das particularidades estéticas de cada caso, concentram um potencial crítico que, nos anos de terror, visou desestabilizar o silêncio imposto pelo monopólio da voz do Estado e, nos anos posteriores, objetivou trabalhar pela construção de uma memória crítica do passado imediato. (OLMOS, Ana Cecília. 2012, p.133 – grifo nosso) A autora fala de diferentes estratégias narrativas de amplo potencial crítico, utilizadas por uma literatura que mantém vínculos indissolúveis com esferas histórico-sociais. Em nossa leitura de La pregunta de sus ojos, entendemos que a crítica sobre a violência de uma experiência histórica baseada no autoritarismo de Estado se ergue a partir de episódios que se entremeiam no romance. Não formam parte da narrativa enquanto cerne fundamental para o desenvolvimento da trama de busca, mas surgem interpolados na trama maior. O diálogo entre os personagens sobre o desaparecimento de Nacho não traz uma referência explícita à morte como consequência do Terrorismo de Estado, mas, como antes dito, a dor de Sandoval, compartilhada por Chaparro, se encarrega desta construção de uma memória crítica por vias literárias. Trazendo à luz uma vez mais a entrevista realizada com o escritor, Sacheri chama a atenção para a necessidade de que este passado recente argentino seja revisado por olhares que o problematizem. O escritor questiona os olhares simplistas sobre um passado que não deve resumir-se a antagonismos limitadores e facilitadores (ver apêndice B – pergunta 17) de uma Argentina que já se mostrava violenta e corrupta antes mesmo do início da ditadura de 1976. Walter Benjamin (1921)106 defende a importância de uma reflexão sobre o tema da violência para que se construa um futuro social aceitável. Como coloca o autor, correntes filosóficas já postulavam a utilização pela sociedade de meios legitimados de violência para que se alcancem fins considerados justos pelo Poder. Benjamin questiona esta legitimação de certos meios que se constituem de violência, mas que são aceitos por se tratarem de meios para fins jurídicos, ou seja, meios de violência utilizados para conservar os direitos instituídos pelo Poder (BENJAMIN, 1995, p.18). Em contrapartida a esta agressão institucionalizada, o autor defende a liberdade criativa como único caminho de superação desta violência In: BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violencia. Trad. de Héctor A. Murena. Buenos Aires: Editorial Leviatán, 1995. 106 84 sancionada como poder. Contra o rompimento da lei ou a violência criadora de direitos de interesse do Poder, a liberdade criativa é aquela que cria estratégias outras de negociação de conflitos humanos. Neste estudo acreditamos que se pode identificar a trama de busca e de memória como importantes estratégias criadoras em Eduardo Sacheri como meio de reflexão do tema da violência, como clamado por Benjamin. A busca revela-se como caminho para restaurar uma verdade ocultada e a memória aparece na obra como eixo estruturante das ações dos personagens, que estão presos a seu passado e têm o impulso de buscar sempre a algo. Entendemos que na obra de Sacheri o mundo é representado como um lugar descomposto e desestruturado, com destaque à Justiça, representada como uma instância falida que longe de atuar de acordo com valores éticos em prol dos desfavorecidos, se apresenta ao leitor enquanto instituição deteriorada que oculta a verdade. Tal como colocado por Benjamin quando fala de uma liberdade criadora, em Sacheri a obra literária responde esteticamente a agressão de uma sociedade de história desordenada, que necessita encontrar sua verdade e ter sua memória organizada para seguir em frente. Ou seja, neste estudo entendemos que o motivo agressor107 presente na obra do escritor – a violação da lei – encontra uma resposta em Sacheri na trama de busca enquanto estratégia discursiva e estética. A trama de busca e o tratamento da memória, desta forma, surgem como reação criativa a este entorno de recordações distorcidas, que merecem ser refletidas, tal como o faz Benjamín Chaparro, por meio da escritura. Explicamos que a noção de reação estética às agressões do entorno conforma a Teoria de Motivos e Estratégias, de Ángel Berenguer. 107 85 3.2 OS ESPAÇOS REPRESENTADOS E SEUS SIGNIFICADOS NO ROMANCE: ESPAÇOS DO CRIME E ESPAÇOS DA JUSTIÇA A leitura do tema da violação da lei em La pregunta de sus ojos pode ser viabilizada se também consideramos os significados que os espaços possuem na obra de Eduardo Sacheri. Antes de refletirmos a significação destes espaços na narrativa, como vimos, este trabalho parte da aceitação de que o romance apresenta, quanto à sua forma, uma trama de busca. Resgatando mais uma vez os aspectos da trama elencados por Ronald B. Tobias (1999), vale observar que uma das características da trama de busca é que “la acción es muy abundante; los protagonistas están siempre en movimiento, explorando, buscando.”108 (TOBIAS, 1999, p.82). Se Chaparro é impulsionado a fazer justiça ao caso de Liliana Colotto, sua atuação ao longo da obra, como aqui já apontamos, é a responsável por permitir que conflitos inerentes à sociedade argentina sejam colocados em xeque na narrativa. Sob tal ótica, a ação está em constante movimento em função dos distintos cenários pelos quais transita o personagem. Em sua busca pela verdade, Chaparro percorre os rincões de uma Buenos Aires de encontros marcados e colisões inesperadas, de ruas rotineiras e de vielas desconhecidas, das paredes da Secretaria de toda uma vida e dos recônditos e ignorados arquivos nacionais. Para uma melhor reflexão do tema da violação da lei a partir de uma leitura dos espaços que compõem o romance, este estudo parte do conceito de cronotopo erigido pelo pesquisador russo Mikhail Bakhtin (1989). De acordo com Bakhtin, o conceito trata-se de uma metáfora que faz referência à conexão essencial existente entre tempo e espaço, vinculação esta assimilada artisticamente pela literatura. Segundo o teórico, ambos (tempo e espaço) têm seu aspecto indissolúvel representado no conceito cronotopo, elemento figurativo de um “todo inteligible y concreto”109 (1996, p.63). Para o autor, El tiempo se condensa aquí, se comprime, se convierte en visible desde el punto de vista artístico; y el espacio, a su vez, se intensifica, penetra en el movimiento del tiempo, del argumento, de la historia. Los elementos de tiempo se revelan en el espacio, y el espacio es entendido y medido a 108 Em português: “a ação é muito abundante; os protagonistas estão sempre em movimento, explorando, buscando.” (TOBIAS, 1999, p.82). (N. do T.) 109 Em português: “todo inteligível e concreto” (BAKHTIN, 1996, p.63). (N. do T.) 86 través del tiempo. La intersección de las series y uniones de esos elementos constituye la característica del cronotopo artístico.110 (BAKHTIN, 1996, p.63, grifo nosso) No que tange à análise dos espaços de La pregunta de sus ojos, confirma-se o colocado por Bakhtin quando o autor afirma que o espaço se intensifica no movimento do tempo. O tempo da ação no romance de Sacheri abarca um espaço temporal de quase três décadas, se tomamos por ponto de partida o assassinato da jovem Liliana Colotto e por término temporal a revelação dada pela carta do viúvo Ricardo Morales a Benjamín Chaparro. Em consonância com o transcorrer dos anos, o protagonista circula por distintos espaços e perfaz um caminho de idas e vindas por uma Argentina de distintas temporalidades. É sabido que um personagem atua sempre em um determinado lugar e em um tempo específico, cronotopo espaço-temporal que chega ao leitor definido pela voz que narra. Como vimos no capítulo sobre as vozes do romance, La pregunta de sus ojos conta com a presença de dois focalizadores distintos: um focalizador interno (o próprio personagem Benjamín Chaparro, que se dispõe a narrar a história de Morales) e um FE – focalizador externo (a voz onisciente, que em 3ª pessoa narra as ações de um Chaparro amadurecido com o passar dos anos). Em um olhar comparativo, vale observar que, ainda que a partir de pontos de vista distintos, as descrições espaciais feitas pelo FE não destoam daquelas feitas pelo personagemnarrador, posto que as descrições realizadas pelo narrador externo se efetivam muito em função das recordações do próprio Chaparro, percepções íntimas, mas que chegam a nós graças ao caráter onisciente da voz deste narrador externo. No que diz respeito a nossa metodologia de leitura e com o objetivo de analisar de maneira mais sistemática e proveitosa os muitos espaços que compõem a narrativa, nosso estudo privilegiou uma divisão destes espaços por grupos semânticos. Espaços múltiplos e significativos, que partem do âmbito do privado e mais restrito (a casa de Chaparro; a Secretaria de Instrução; a pensão onde Chaparro se refugia quando é perseguido; a sala da Juíza Irene; a prisão de Villa Devoto; o living da casa onde o personagem escreve) a espaços corriqueiros e Em português: “O tempo se condensa aqui, se comprime, se converte em visível desde o ponto de vista artístico; e o espaço, por sua vez, se intensifica, penetra no movimento do tempo, do argumento, da história. Os elementos de tempo se revelam no espaço, e o espaço é entendido e medido através do tempo. A interseção das séries e uniões desses elementos constitui a característica do cronotopo artístico.” (BAKHTIN, 1996, p.63, grifo nosso) (N. do T.) 110 87 abertos ao público (o bar onde Chaparro e Morales se encontram; a cafeteria de encontro com o oficial inspetor Báez; os bares da Estação de Once; as ruas de Buenos Aires). Nesta medida, para uma melhor reflexão sobre como os espaços são significativos para a leitura de temas como a violação da lei e a violência no romance de Sacheri, partiremos de uma classificação semântica dos mesmos com base numa divisão entre “espaços do crime” versus “espaços de justiça”. De antemão, explicamos que, em nossa leitura, os “espaços do crime” são aqueles que, ao longo da trama, aparecem como cenário de atuação de personagens conectados à violação da lei ou que agem de forma desfavorável à solução do crime da morte de Liliana. Por sua vez, “espaços de justiça” são os espaços que atuam, cada qual a seu modo, contra esta violação e contribuem para a busca pela verdade empreendida na narrativa. Este estudo também levanta a possibilidade de nomear “espaços híbridos”, haja vista o duplo caminho de leitura como lugares de crime e de justiça, de acordo com as características do espaço que se ressaltam. Ressalvas feitas, a seleção realizada por este estudo prioriza a análise de três espaços que se mostram fundamentais em nossa leitura do tema da violação da lei e da violência na narrativa: a prisão de Devoto, a Secretaria de Instrução e o Arquivo Central de Buenos Aires. A leitura aqui realizada inicia-se pela apresentação, no romance, da Carcelaria de Villa Devoto. Após confissão na Secretaria de Instrução feita ao próprio Chaparro e a seu amigo Sandoval, o suspeito pela morte de Liliana – Isidoro Antonio Gómez – é detido na prisão de Devoto, onde é quase morto por outros presos. Ainda debilitado, o personagem é então chamado dentro da prisão por Peralta (personagem que posteriormente o leitor descobre tratar-se de Pedro Romano, inimigo de Chaparro) para prestar-lhe um serviço. O cenário de encontro – uma sala escura de uma ala restrita aos presos – apela para um clima de sigilo e ilegalidade. Em conversa com o Inspetor Báez, personagem que, como vimos, exerce o papel de investigador na trama policial de La pregunta, Chaparro descobre que Isidoro consegue ser libertado da prisão para atuar como instrumento de vingança de Pedro Romano contra ele. Gómez se ha salvado. Pero aquí tenemos la primera curiosidad, porque... ¿sabe dónde consta todo este incidente de la riña, los heridos y la mar en coche? En ningún lado. A ninguno de los dos heridos lo remiten al hospital. Los atienden ahí nomás, en la enfermería del Penal. No hay una sola 88 actuación administrativa, ni la declaración de un solo guardia, ni de un solo preso. Lo que hay, lo único que hay en el legajo de Gómez, es una orden de traslado a otro pabellón, dos semanas más tarde, cuando al tipo le dan alta. […] Lo que termina pasando es que lo envían al pabellón de delitos políticos. Acá le confieso que me desorienté feo: ¿qué podía tener que ver Gómez y su asesinato pasional con todos esos tipos de las FAR, el ERP, los Montoneros? Y encima esos presos estaban a disposición del fuero especial, y no del fuero penal común de los otros, ¿me sigue? Gómez no tiene nada que ver con eso, me dije.111 (SACHERI, 2010, p.208). A saída de Gómez da prisão de Devoto é um dos casos que mais ilustram o tratamento da violação da lei pela narrativa. Primeiramente no que diz respeito ao incidente de briga dentro da prisão, já que não há qualquer espécie de registro policial ou em hospitais do caso. Logo, Gómez é recrutado como informante pelo centro de inteligência criado para delatar, dentro do pavilhão de presos políticos, os envolvidos com as guerrilhas contra o governo. Em seguida, o assassino confesso e preso por homicídio consegue deixar a prisão em uma Anistia dada a estes presos políticos: […] Pero si llegó vivo hasta mayo en ese pabellón tan mal no lo habrá hecho. ¿Por qué no seguir usándolo afuera? Así que el procedimiento para sacarlo es sencillísimo. En realidad, no hay tal procedimiento. Se hace solo. Cuando los detenidos que saben que van a salir con la amnistía armen las listas, van a incluirlo también a Gómez con todo gusto y con todos los honores. Y, si no, igual no hay problema. Lo agrega al pie la gente de Peralta, y listo.112 (SACHERI, 2010, p. 210). Ainda que permita uma leitura como espaço de realização de justiça, tendo em vista que atua, em sua definição, como lugar de detenção dos que cometeram Em português: “Gómez se salvou. Mas aqui temos a primeira curiosidade, porque... sabe onde consta esse incidente da briga, dos feriados e tudo o mais? Em lugar nenhum. Nenhum dos feridos é mandado para o hospital. São atendidos ali mesmo, na enfermaria do presídio. Não há um só registro administrativo, nem o depoimento de um só guarda, nem de um só preso. O que há, a única coisa que há na papelada de Gómez, é uma ordem de transferência para outro pavilhão, duas semanas depois, quando ele recebe alta. [...] O que acaba acontecendo é que o enviam ao pavilhão de presos políticos. A essa altura, confesso que me desorientei pacas: o que Gómez e seu assassinato passional podiam ter a ver com todos aqueles caras das FAR, do ERP*, dos Montoneros? E ainda por cima esses presos estavam à disposição do foro especial, e não do foro penal comum dos outros, está me acompanhando? Gómez não tinha nada a ver com isso, pensei.” (SACHERI, 2011, p.136137) * Siglas de Fuerzas Armadas Revolucionarias e Ejército Revolucionario del Pueblo. (Nota da edição de 2011). 112 Em português: “[...] mas, se chegou vivo até maio naquele pavilhão, não deve ter trabalhado muito mal. Então, por que não continuar a usá-lo lá fora? O procedimento para soltá-lo é muito simples. Na verdade, não existe esse procedimento. A coisa anda sozinha. Quando os detidos que sabem que vão sair com a anistia fizerem as listas, vão incluir Gómez com todo o gosto e com todas as honras. E, se não incluírem, também não há problema. O pessoal de Peralta acrescenta o nome dele no pé da página, e pronto.” (SACHERI, 2011, p.138). 111 89 infrações contra a sociedade, a Prisão de Devoto, em La pregunta de sus ojos, é descrita como um “espaço do crime”, quando se considera a violação da lei no que tange à corrupção do sistema judiciário verificada nas negociações feitas dentro do cárcere e no que diz respeito à própria liberdade de Isidoro, um retrocesso na investigação e na solução do caso da morte de Liliana Colotto. A reflexão aqui feita dos espaços representados em La pregunta de sus ojos parte agora à análise da descrição da Secretaria de Instrução em que Chaparro trabalha. Grande parte da narrativa transcorre neste espaço. É este o lugar em que o personagem vê Irene por primeira vez e que passa anos tentando encontrá-la e esquecê-la. É o lugar em que Chaparro vê sua vida transformada quando, às oito e cinco da manhã do dia 30 de maio de 1968, lhe chega a notificação policial do homicídio de uma jovem, a qual é obrigado a averiguar. Sube las escalinatas de Talcahuano. Todavía no han cerrado la puerta principal. Se trepa al primer ascensor que tiene a tiro. No necesita aclararle al ascensorista que va al quinto piso, porque en el Palacio lo conocen hasta las piedras. Avanza a paso firme, haciendo ruido con los mocasines de suela sobre las baldosas blancas y negras del pasillo que corre paralelo a la calle Tucumán hasta encararse con la alta y angosta puerta de su Secretaría.113 (SACHERI, 2010, p.11 – Capítulo “Despedida”) As descrições feitas na narrativa deixam bem marcado o longo tempo de vida que Chaparro passa em sua Secretaria. A adjetivação enfatiza a magnitude espacial, com destaque dado à escadaria do Palácio da Justiça situado na rua Talcahuano. Lugar de manifestações públicas, a escadaria da Suprema Corte representada na narrativa de Sacheri também surge como palco de acontecimentos históricos, como exemplo das inúmeras greves contra as políticas aplicadas pelo governo de Carlos Menem114 na década de 90 no país: Em português: “Sobe a escadaria que dá para a Talcahuano. Ainda não fecharam a porta principal. Entra no primeiro elevador que chega. Não precisa esclarecer ao ascensorista que vai para o quinto andar, porque no palácio até as pedras o conhecem. Avança, em passo firme, fazendo ruído com os mocassins sobre os ladrilhos brancos e pretos do corredor que segue paralelo à rua Tucumán, até topar com a porta estreita e alta de sua Secretaria.” (SACHERI, 2011, p.8) 114 Carlos Menem (1930) exerceu seu mandato de 1989 a 1995 e, após sua reeleição neste ano, seguiu na presidência até 1999. Sua política presidencial foi marcada pelo intenso aumento do desemprego, gerador de inúmeras greves e protestos sindicalistas. (Ver AQUINO, Rubim Santos Leão de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007). 113 90 El 26 de septiembre de 1996 era un jueves como cualquier otro, excepto tal vez por el batifondo que venía de la calle. Desde las doce comenzaba la primera huelga general contra el gobierno de Carlos Menem, y una columna del sindicato de judiciales metía bochinche con algún que otro petardo, mientras se concentraba en las escalinatas de la calle Talcahuano.115 (SACHERI, 2010, p.283). Vale observar que, seja como trajeto que conduz o personagem a seu lugar de trabalho ou como caminho de acesso ao mundo de fora da Secretaria, as escadarias do Palácio aparecem em diferentes instantes da narrativa, incluindo o momento de desfecho em que Chaparro se recobre de coragem para finalmente confessar o seu amor à juíza: Por eso se pone finalmente en movimiento y sube saltando de dos en dos los escalones de la entrada de Lavalle. Toma el ascensor hasta en quinto piso. Camina a grandes trancos por el pasillo de baldosas blancas y negras dispuestas en rombo.116 (SACHERI, 2010, p.315 – Capítulo “Devolución”). É também na janela de sua Secretaria de Instrução que Chaparro se debruça todas as vezes que seu companheiro e funcionário Pablo Sandoval sai do escritório, para atestar se seu amigo cruza a rua Tucumán em direção a sua casa em Viamonte ou se segue em direção a um dos muitos bares da rua Venezuela: – Me voy – Sandoval se puso de pie de repente, se colocó el saco y caminó hacia la puerta–. Nos vemos. “La puta madre”, pensé. Otra vez. Abrí la ventana y esperé. Pasaron varios minutos, pero Sandoval no cruzó Tucumán hacia Viamonte. Me sentí un poco culpable: “una inundación en la India deja cuarenta mil muertos, pero, como no los conozco, me angustia más la salud de mi tío que tuvo un infarto”. En algún regimiento, en alguna comisaría, a Nacho lo estaban reventando a golpes de puño y de picana. Pero yo no me angustiaba tanto por él como por su primo Pablo, que era mi amigo y pretendía emborracharse hasta quedar en coma. ¿Yo era el egoísta o todos lo éramos? Me consolé pensando que por Sandoval podía hacer algo, y por su primo Nacho, no. ¿Era así? Decidí darle la ventaja habitual: tres horas antes de salir a buscarlo. Me senté a corregir una prisión preventiva. Decidí que fueran dos horas. Tres tal vez fuesen demasiadas.117 (SACHERI, 2010, p.231-232). Em português: “O dia 26 de setembro de 1996 era uma quinta-feira como qualquer outra, exceto talvez pela algazarra que vinha da rua. A partir das doze começava a primeira greve geral contra o governo de Carlos Menem, e uma facção do sindicato dos judiciários provocava tumulto com uma ou outra bomba, enquanto se concentrava na escadaria da calle Talcahuano.” (SACHERI, 2011, p.187). 116 Em português: “Por isso, finalmente se põe em movimento e sobe pulando de dois em dois os degraus da entrada da Lavalle. Toma o elevador até o quinto andar. Caminha em grandes passadas pelo corredor de ladrilhos brancos e pretos dispostos em losango.” (SACHERI, 2011, p.209). 117 Em português: “– Estou indo. – Sandoval se levantou de repente, vestiu o paletó e caminhou em direção à porta. – A gente se vê. 115 91 É interessante notar que, ainda que Benjamín Chaparro saiba o quanto aquele ambiente é recorrente em sua biografia e integra sua própria história de vida, o personagem sente alguma espécie de incômodo quando pensa que sua imagem pode estar vinculada de forma previsível àquele espaço: Antes de abrir el sobre, volví a mirar el destinatario. Era yo, sin duda. “Benjamín Miguel Chaparro. Juzgado Nacional de Primera Instancia en lo Criminal de Instrucción nº 41, Secretaria nº 19”. ¿Cómo sabía Morales que iba a encontrarme allí? Me disgustó un poco ese envío intempestivo, aunque… ¿qué era exactamente lo que me molestaba? De hecho no lo hacía responsable por mi huida desesperada de 1976. Al respeto siempre tuve claro que eso se lo debía al malparido de Romano. ¿Me perturbaba que me escribiese tantos años después? Tampoco. Guardaba de él un recuerdo afable, casi cariñoso. ¿Qué era entonces? Demoré un rato en caer en la cuenta de que lo que verdaderamente me ofuscaba era ser tan previsible, tan monótono, tan igual a mí mismo, como para que alguien pudiera ubicarme en el mismo Juzgado, la misma Secretaría, el mismo cargo y el mismo escritorio dos décadas después de nuestro último contacto.118 (SACHERI, 2010, p. 283-284). A partir da reflexão feita nesta pesquisa sobre a representatividade dos espaços dentro da narrativa e sua vinculação com o tema da violação da lei, a Secretaria de Instrução pode ser lida enquanto “espaço de Justiça”, se a entendemos como lugar de investigação e busca por solução de fatos encarados como delito. O objetivo de uma Secretaria de Instrução, em tese, é o de garantir o direito de defesa aos que são alvo de processos de investigação e o direito de proteção às vítimas envolvidas nos delitos em questão. No entanto, em La pregunta ‘Puta merda’, pensei. Outra vez. Abri a janela e esperei. Passaram-se vários minutos, mas Sandoval não atravessou a Tucumán em direção à Viamonte. Me senti meio culpado: ‘Uma inundação na Índia deixa quarenta mil mortos, mas, como não os conheço, me angustia mais a saúde do meu tio que teve um infarto.’ Em algum regimento, em alguma delegacia, estavam arrebentando Nacho a socos e choques elétricos. Mas eu não me angustiava tanto por ele quanto por seu primo Pablo, que era meu amigo e pretendia se embebedar até entrar em coma. Eu era egoísta, ou todos éramos? Me consolei pensando que por Sandoval podia fazer algo, mas por seu primo Nacho, não. Era assim? Decidi dar a ele a vantagem habitual: três horas antes de sair à sua procura. Me sentei para corrigir uma prisão preventiva. Resolvi que seriam duas horas. Três talvez fossem demais.” (SACHERI, 2011, p.153). 118 Em português: “Antes de abrir o envelope, voltei a olhar o destinatário. Era eu, sem dúvida. ‘Benjamín Miguel Chaparro. Juizado Nacional de Primeira Instância no Criminal de Instrução nº41, Secretaria nº19’. Como Morales sabia que ia me encontrar ali? O envio imprevisto me chateou um pouco, embora... o que me incomodava, exatamente? Na verdade, eu não o responsabilizava pela minha fuga desesperada em 1976. Sempre tivera muito claro que isso se devia ao escroto do Romano. O fato de ele me escrever tantos anos depois me perturbava? Também não. Minha lembrança de Morales era afável, quase carinhosa. O que era, então? Demorei um pouco a me dar conta de que verdadeiramente o que me aborrecia era o fato de eu ser tão previsível, tão monótono, tão igual a mim mesmo, a ponto de alguém poder me localizar no mesmo Juizado, na mesma Secretaria, no mesmo cargo e na mesma escrivaninha, duas décadas depois de nosso último contato.” (SACHERI, 2011, p.187). 92 de sus ojos, a Secretaria também pode ser refletida como um dos “espaços do crime”, se se considera a crítica feita no romance de seus escalões internos e a violação da lei por parte dos funcionários integrantes das Secretarias Judiciais. Um episódio muito representativo no romance diz respeito à falsa solução ao crime a partir da culpabilização de inocentes. A violação dos direitos a partir da violência física e moral aos pedreiros que trabalhavam no apartamento adjacente ao da jovem se apresenta na obra enquanto ato corriqueiro naquele espaço onde a lei e os direitos humanos deveriam ser preservados. Personagens que deveriam salvaguardar a lei aproveitam-se de suas posições para interferir a seu bel prazer nos rumos da investigação do crime de Liliana. – Los tengo listos para declarar – [Sicora] blandió dos carpetas de cartulina de las que asomaban unas cuantas actuaciones –. Sebastián Zamora. Paraguayo, 38 años. Albañil. Vive en los Polvorines. El otro es José Carlos Almandós, 26 años. También albañil. Este por lo menos es argentino, pero vive en Ciudad Oculta.119 (SACHERI, 2010, p.55). Se Chaparro manipula seus superiores e, de maneira engenhosa, consegue assinaturas de forma a postergar o arquivamento do caso, o faz como modo de sanar um mal feito por membros da Justiça contra inocentes. De fato, a vinculação de Chaparro no caso da jovem se concretizou a partir deste episódio de violência contra os pedreiros. Em última instância, se o personagem antes havia se compadecido do viúvo, a violência cometida serve de estopim para que Chaparro decida agir mais intensamente em prol da solução do crime. É esta falsa solução dada à morte da jovem Liliana Colotto pelos personagens Sicora e Pedro Romano, investigador oficial e um dos secretários de Instrução da Secretaria adjacente a de Chaparro, que nos aponta a corrupção destes personagens representantes da Justiça na narrativa. Tal como o Juiz Fortuna Lacalle, Pedro Romano é descrito pelo próprio Chaparro como um homem inferior intelectualmente e de sentimentos baixos e mesquinhos: [Pedro Romano] Acababa de colgar el teléfono. Lo había visto alternando unas cuantas exclamaciones vociferadas (para que a nadie le quedasen dudas de que se traía entre manos algo muy importante) con largas 119 Em português: “– Estão prontos para depor – disse ele, erguendo duas pastas de cartolina das quais surgiam alguns autos. – Sebastián Zamora. Paraguaio, 38 anos. Pedreiro. Mora em Los Polvorines. O outro é José Carlos Almandós, 26 anos. Também pedreiro. Este pelo menos é argentino, mas mora em Ciudad Oculta.” (SACHERI, 2011, p.38). 93 parrafadas en un susurro conspirativo. En mi distracción inicial me había preguntado para qué cuernos venía a hablar por teléfono a mi Secretaría en lugar de quedarse en la suya. Cuando vi que el juez Fortuna estaba en el despacho del secretario Pérez, entendí que Romano pretendía lucirse. […] Me causaba más gracia que fastidio que Romano pugnara por deslumbrar a nuestros superiores. No tanto por el intento de lucimiento ante el cual Romano pretendía destacarse. Hacerse el empleado modelo delante de un juez podía resultarme ligeramente patético, pero hacerlo sin advertir que el juez en cuestión era un idiota de marca mayor que no iba a notar ese lucimiento me dejaba sin palabras. Más allá de eso, que una vez terminada su conversación telefónica Pedro Romano me dijese que el caso estaba resuelto, alargándome un papel con dos nombres escritos y mirándome con cara de “acá te hice el favor aunque no me corresponde porque la causa es de tu Secretaría”, me sorprendió profundamente. – Albañiles. Están trabajando en el departamento tres. Cambiando los pisos. Al parecer Romano consideraba que el estilo telegráfico, salpicado de silencios teatrales, aumentaba el dramatismo de su primicia. Me pregunté cómo un tipo tan limitado había llegado a ser prosecretario. Me respondí que un buen casamiento obra milagros. Su mujer no era particularmente linda, ni particularmente simpática, ni particularmente inteligente. Pero era particularmente hija de un coronel de infantería, y eso en la Argentina de Onganía era un mérito sobresaliente. Evoqué la ceremonia del casamiento, plagada de gorras verdes, y creció mi fastidio.120 (SACHERI, 2010, p. 51). O fragmento acima se revela como um dos instantes na narrativa de referência clara ao período histórico denominado “Revolución Argentina” (19661973)121. O governo de Juan Carlos Onganía (1966-1970) surge no romance como Em português: “[Pedro Romano] Acabava de desligar o telefone. Eu o vira mantendo uma demorada conversana qual havia alternado algumas exclamações berradas (para que ninguém duvidasse de que ele tinha nas mãos algo muito importante) com longas frases pronunciadas num sussurro conspiratório. Em minha distração inicial, eu tinha me perguntado por que diabos ele vinha falar ao telefone na minha Secretaria, em vez de permanecer na sua. Quando vi que o juiz Fortuna estava no gabinete do secretário Pérez, entendo que Romano pretendia se exibir. […] achava mais engraçado do que irritante o empenho de Romano em deslumbrar nossos superiores. Não tanto pela tentativa de exibição quanto pela qualidade moral e intelectual do superior ante o qual Romano pretendia se destacar. Bancar o funcionário-modelo diante de um juiz podia me parecer ligeiramente patético, mas fazer isso sem perceber que o juiz em questão era um idiota de marca maior, que não ia notar esse brilho, me deixava sem palavras. Afora isso, o fato de, terminada sua conversa telefônica, Pedro Romano me dizer que o caso estava resolvido, estendendo-me um papel com dois nomes escritos e me olhando com cara de ‘fiz um favor a você, embora não me caiba, porque o inquérito é de sua Secretaria’, me surpreendeu profundamente. – Pedreiros. Estão trabalhando no apartamento três. Trocando o piso. Aparentemente, Romano considerava que o estilo telegráfico, salpicado de silêncios teatrais, aumentava a dramaticidade da notícia. Me perguntei como um indivíduo tão limitado havia chegado a ser vice-secretário. E me respondi que um bom casamento faz milagres. Sua mulher não era particularmente bonita, nem particularmente simpática, nem particularmente inteligente. Mas era particularmente filha de um coronel de infantaria, e isso, na Argentina de Onganía, era um mérito destacável. Evoquei a cerimônia do casamento, lotada de quepes verdes, e minha irritação cresceu.” (SACHERI, 2011, p.35-36). 121 A ditadura militar argentina, deflagrada pelo golpe militar no ano de 1966 e com término em 1973, foi denominada pelos próprios militares como “Revolução Argentina”. Constituiu-se dos governos de três militares, a saber, Juan Carlos Onganía (de 1966 a 1970), período referido em La pregunta de sus ojos; Roberto Marcelo Levingston (de 1970 a 1971) e Alejandro Agustín Lanusse (de 1971 a 120 94 época de explícito nepotismo militar, representado em La pregunta de sus ojos através da posição ascendida por Pedro Romano no escalão judiciário, alcançada após ter se casado com a filha de um coronel de infantaria. Desta forma, esta falsa solução dada prontamente ao caso por Pedro Romano, quando a culpa da morte é lançada, com provas falsas, sobre dois pedreiros que trabalhavam em um apartamento contíguo ao que vivia o casal, ilustra de forma clara o tratamento da violação da lei pela narrativa de Sacheri. De acordo uma vez mais com o teórico Ronald B. Tobias, El protagonista […] irá de un sitio a otro en pos del objeto de su deseo, atravesando una serie de acontecimientos a lo largo del camino. Estos acontecimientos deben relacionarse de algún modo con la consecución del objetivo final. El protagonista debe inquirir por los caminos, hallar y descubrir pistas y pagar una entrada por el precio de admisión.122 (TOBIAS, 1999, p.83) Como se viu com o episódio de libertação de Isidoro Gómez da prisão, o protagonista de La pregunta de sus ojos, ao envolver-se com a investigação do caso de Liliana Colotto, sofre com os efeitos de suas decisões. Por opor-se a um funcionário de relações que lhe parecem duvidosas (um funcionário casado com a filha de um coronel de Infantaria, ou seja, um possível envolvido com os militares), Chaparro é exposto a complicações que surgem ao longo do romance como consequência de seus atos. Denuncia a funcionários superiores por abuso de poder e precisa fugir de Buenos Aires por isso, ou seja, no caminho de sua busca pela verdade, paga um preço por suas decisões, como nos coloca Ronald B. Tobias. No mais, tal como ocorre na caracterização de Romano, a adjetivação utilizada na descrição dos funcionários da Secretaria salienta a falta de qualidades intelectuais e morais destes servidores. Decisões que deveriam ser tomadas com total responsabilidade e após intensa apuração de fatos são antes um indício da arbitrariedade das ações destes personagens representantes da Justiça na narrativa: 1973). (Ver AQUINO, Rubim Santos Leão de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007). 122 Em português: “O protagonista […] irá de um lugar a outro detrás do objeto de seu desejo, atravessando uma série de acontecimentos ao longo do caminho. Estes acontecimentos devem estar relacionados de algum modo com a obtenção do objetivo final. O protagonista deve inquirir pelos caminhos, encontrar e descobrir pistas e pagar uma entrada pelo preço de admissão.” (TOBIAS, 1999, p.83) (N. do T.) 95 El oficial ayudante Sicora, de Homicidios, era un especialista en escabullirse el bulto al trabajo. Odiaba contactar gente, aborrecía caminar la calle, detestaba el laburo propio de un investigador. O sea, su único parecido con Báez estaba, creo, en el blanco del ojo. Sicora armaba sus hipótesis desde el living de su casa, encajándole el sambenito de homicida al primer perejil que se ponía a tiro.123 (SACHERI, 2010, p. 52) Como antes dito, se o papel de uma Secretaria é o de garantir o direito de defesa dos investigados, no romance o que se percebe é a representação de um espaço outro. A lei é violada quando os possíveis culpados são alvo de violência moral, enquanto vítimas de um forte discurso preconceituoso e de violência física, quando são espancados para que declarações convenientes aos funcionários da Secretaria sejam dadas: Caminé por un pasillo hacia el que daban las rejas de cuatro pares de celdas. Nos detuvimos frente a la última de la izquierda. No había olor a comida. El agente maniobró con la puerta, que se abrió con un chirrido. La luz estaba encendida. Dos hombres yacían acostados en los camastros que ocupaban las paredes laterales. Uno dormía y ni se movía cuando entramos. El otro, que permanecía acostado boca arriba y que se tapaba la cara con los brazos recogidos, giró el cuerpo para vernos. Saludé y el otro farfulló una respuesta. Nos miramos un instante. – Llame a Sicora –ordené al agente que me acompañaba. Dudó. – No puedo dejarlo solo en la celda. Me tenían harto. Alcé la voz cuando insistí. – Llámelo o usted también se va a comer un sumario. El policía salió. Decidí tratar de que la rabia y el espanto no se me colaran en la voz: – ¿Cómo se siente? El otro pareció sonreír, por debajo de la costra de sangre seca que le cubría el rostro bajo la nariz. Le faltaban dos dientes delanteros, y estuve seguro de que la pérdida era reciente. Como pudo, el hombre se las compuso para decirme que ahora le dolía un poco menos, pero que a su compadre le habían pegado muchas patadas en las costillas, y que había estado llorando hasta conseguir dormirse, rato atrás.124 (SACHERI, 2010, p.58). Em português: “O oficial auxiliar Sicora, da Homicídios, era um especialista em tirar o cu da reta. Odiava entrar em contato com as pessoas, abominava caminhar pela rua, detestava o trabalho próprio de um investigador. Ou seja, sua única semelhança com Báez estava, creio, no branco do olho. Sicora armava suas hipóteses plantado na sala de sua casa, tachando de homicida o primeiro coitado ao seu alcance.” (SACHERI, 2011, p.36). 124 Em português: “Caminhei por um corredor para o qual davam as grades de quatro pares de celas. Paramos em frente à última da esquerda. Não havia cheiro de comida. O agente manobrou com a porta, que se abriu com um rangido. A luz estava acesa. Dois homens jaziam nos catres encostados às paredes laterais. Um dormia e nem se mexeu quando entramos. O outro, que permanecia deitado de costas e cobria o rosto com os braços dobrados, girou o corpo para nos ver. Cumprimentei, e ele gaguejou uma resposta. Nos fitamos por um instante. – Vá chamar Sicora – ordenei ao agente que me acompanhava. Ele hesitou. – Não posso deixar o senhor sozinho na cela. Eu já estava de saco cheio. Insisti, levantando a voz: – Chame, ou também vai encarar um processo O policial sair. Decidi tentar que a raiva e o horror não impregnassem minha voz: 123 96 Em última instância, percebe-se que o episódio de acusação contra os pedreiros pela morte de Liliana Colotto tem papel fundamental dentro da narrativa, posto que atua como um dos elementos de motivação que levam o personagem Benjamín Chaparro a atuar. Como nos coloca Ronald B. Tobias, na trama de busca, “[...] hay que dotar a los personajes de un fuerte deseo de ir hacia algún lugar, de hacer algo.”125 (TOBIAS, 1999, p.86). É este desejo do personagem de encontrar o que procura que o faz deixar sua inércia e seguir ao encontro do objeto de sua busca. Se Chaparro se via pouco a pouco envolvido com o sofrimento de Morales, a acusação falsa aos pedreiros integra a obra enquanto outro incidente motivador relacionado à morte da jovem Liliana, ou seja, como fato que impulsiona Chaparro a buscar justiça ao caso como forma de minimizar a injustiça cometida por outro funcionário judicial. Trazendo à luz uma vez mais a máxima backtiniana de que o espaço se intensifica no movimento do tempo, a rigor, é neste transcorrer temporal e na exploração de novos espaços pela narrativa que os funcionários da Secretaria vão revelando-se a partir de seus próprios atos. Com as decisões e caminhos elegidos por estes personagens, os espaços que estes ocupam enchem-se de significação e intensidade dentro do romance, como exemplo da própria Secretaria de Instrução aqui analisada, que de início mostra-se como local de trabalho corriqueiro, mas que logo se revela como lugar para o desenvolvimento da trama, haja vista que decisões são tomadas naquele espaço, que ações desenvolvidas em toda trama têm seu início na Secretaria e que ali personagens desvelam-se a partir de seus próprios atos e das decisões que tomam diante do fato maior do crime da jovem. O terceiro espaço analisado em sua relação com o tema da violação da lei no romance é o Archivo General da cidade de Buenos Aires. De início, a descrição do lugar demarca uma oposição entre espaço interno e externo na narrativa: Entrar en el Archivo General le ocasiona siempre la misma sensación. Al principio un efecto opresivo, como si estuviese ingresando en un sepulcro. – Como se sente? O outro pareceu sorrir, por baixo da crosta de sangue seco que lhe cobria o rosto abaixo do naiz. Faltavam-lhe dois dentes dianteiros, e tive certeza de que a perda era recente. O homem se virou como pôde para me diszer que agora doía um pouco menos, mas que seu companheiro tinha levado muitos chutes nas costelas e estivera chorando até conseguir adormecer, pouco antes.” (SACHERI, 2011, p.40). 125 Em português: “[...] deve-se dotar os personagens de um forte desejo de ir até algum lugar, de fazer algo.” (TOBIAS, 1999, p.86) 97 Pero después, una vez dentro de esa especie de mazmorra muda y oscura, caminar por esos pasillos estrechos y flanqueados por estanterías gigantescas y abarrotadas de legajos le genera un infrecuente sentimiento de seguridad, de cobijo.126 (SACHERI, 2010, p.86 – Capítulo “Archivo”) Em contraste com o mundo exterior, um Arquivo completo de documentos e papéis pode parecer sufocador e claustrofóbico. No entanto, se em um primeiro momento Chaparro se incomoda e compara o Arquivo a um sepulcro, logo o ambiente deixa de lhe parecer hostil e atua como uma espécie de abrigo contra a agitação e o burburinho do lado de fora. Capa da edição do romance publicada por Alfaguara, em 2010. Em português: “Entrar no Arquivo Geral sempre lhe causa a mesma sensação. No princípio, um efeito opressivo, como se ele estivesse penetrando num sepulcro. Mas depois, uma vez dentro dessa espécie de masmorra muda e escura, caminhar pelos corredores estreitos, ladeados por estantes gigantescas e abarrotadas de maços de papel, gera nele uma sensação incomum de segurança, de abrigo.” (SACHERI, 2011, p.58). 126 98 Já dentro do Arquivo e tomado pelo silêncio rotineiro daquela “silenciosa catacumba”, Chaparro supõe que o funcionário que ali trabalha, seu conhecido de várias décadas, também se sente protegido contra uma cidade ofuscante e estrondosa. Nesta medida, “pensar que ese hombre no está tal vez en una cárcel, sino en un refugio, lo tranquiliza.”127 (2010, p.86). O funcionário é descrito com certo tom fantasmagórico, como um ser mítico conhecedor dos labirínticos e sombrios corredores que percorre com a “circunspecta determinación de un ratón acostumbrado a las tinieblas.”128 (2010, p.87). Quanto à apresentação do espaço, sua descrição apela fortemente para metáforas que acionam no leitor a imagem de escuridão, penumbra: [...] Chaparro lo sigue hasta el final de ese pasillo y gira tras él hacia la derecha. Si todos los corredores están escasamente iluminados, este se encuentra casi a oscuras. Tanto que Chaparro se detiene en un intento de que sus ojos se habitúen a la oscuridad, porque teme llevarse por delante las estanterías, perdido en el pozo de límites negros. Los pasos del archivero siguen alejándose hasta que dejan de oírse, como si acabara de internarse en un mar de niebla. Después de unos segundos en los que a Chaparro está a punto de atraparlo la angustia súbita de la soledad, siente un chasquido lejano: el viejo acaba de encender un velador que se apoya sobre una mesa desnuda. Una silla destartalada completa el mobiliario del “rincón de lectura” que el otro parece estar acondicionándole. Camina hacia allí contento de escapar del agujero insondable del corredor.129 (SACHERI, 2010, p.87 – Capítulo “Archivo”) Além do contraste com as ruas da cidade no que diz respeito aos pares opositivos luz versus escuridão, ruído versus silêncio ou agitação versus imobilidade, a apresentação do Arquivo Geral também chama a atenção pelo viés de abandono que traz a sua descrição. Ainda que alvo de muitos projetos de revitalização e de translado a espaços outros, dotados de melhor infraestrutura e investimento em engenharia e tecnologia, o Arquivo Nacional representado em La pregunta de sus Em português: “Tranquiliza-o pensar que o homem talvez não esteja num cárcere, mas num refúgio.” (SACHERI, 2011, p.58). 128 Em português: “[...] séria determinação de um rato acostumado às trevas.” (SACHERI, 2011, p.58). 129 Em português: “Chaparro o segue até o final do corredor e dobra à direita atrás dele. Se todos os corredores estão escassamente iluminados, este se encontra quase às escuras. Tanto que Chaparro se detém numa tentativa de que seus olhos se habituem à escuridão, porque teme tropeçar nas estantes, perdido neste poço de limites negros. Os passos do arquivista continuam se afastando até que param de se fazer ouvir, como se ele acabasse de penetrar num mar de névoa. Depois de alguns segundos em que está prestes a ser tomado pela angústia súbita da solidão, Chaparro ouve um estalido distante: o velho acaba de acender um abajur pousado sobre uma mesa nua. Uma cadeira escangalhada completa o mobiliário do ‘cantinho de leitura’ que o outro parece estar ajeitando para ele. Caminha até ali quase contente por escapar do buraco insondável do corredor.” (SACHERI, 2011, p. 58-59). 127 99 ojos é descrito então como uma espécie de “cementerio de papeles”130. A escrita de Sacheri traz em si a representação de um espaço deteriorado e sem qualquer preocupação com a manutenção e zelo com a memória histórica que comporta. Se em sua acepção, o Arquivo Nacional tem por finalidade acolher inumeráveis documentos em forma escrita, sonora ou visual que atuem como testemunho de acontecimentos de importância nacional desde a época colonial, em La pregunta de sus ojos o edifício que conserva a memória da Nação é o mesmo lugar de abandono e de propagação de pragas: […] Para salir tiene que avanzar en diagonal. En cada encrucijada doble una vez a la izquierda, una a la derecha, y así – acompaña sus palabras con un gesto vago del brazo –. Si escucha ruidos, no se preocupe: son estas ratas de mierda que andan por todos lados. Ya no sabemos qué ponerles: veneno, trampas… probamos de todo. Todos los días saco un montón de ratas muertas. Pero cada día son más, no menos. Igual no van a molestarlo. No les gusta la luz. –Gracias – responde Chaparro, pero el viejo ya le ha dado la espalda y se pierde al girar al fondo del corredor.131 (SACHERI, 2010, p.88 – Capítulo “Archivo”) Se voltarmos à subdivisão inicial proposta neste estudo, poderíamos examinar o Arquivo como um lugar de Justiça, posto que sua proposta é a de conservação da memória de fatos de interesse nacional. Em contrapartida, se este espaço é apresentado como degradado e em ruínas, o Arquivo é também um espaço do crime, pois atua como repositório de informações a serem esquecidas. É significativo, no romance, que estejam depositados neste “espaço híbrido” de esquecimento e abandono, os papéis com as informações sobre o caso da morte de Liliana. [Chaparro] Abre el expediente y, aunque no repara en ello, se topa con las mismas actuaciones policiales, las mismas declaraciones testimoniales, la misma pericia forense que revisó en agosto de 1968, cuando le ordenaron sobreseer sin procesados y él decidió hacerse olímpicamente el otario. Cf. expressão utilizada na edição do jornal Clarín Digital em 31/01/1997. Acesso em 13/02/2013. Disponível em: <http://edant.clarin.com/diario/1997/01/31/faiv-01.htm>. 131 Em português: “[...] Para sair, o senhor tem que avançar na diagonal. Em cada encruzilhada, dobre uma vez à esquerda e uma à direita, e assim por diante – explica, acompanhando suas palavras com um gesto vago dos braços. – Se ouvir ruídos, não se preocupe: são esses ratos de merda, que andam por todo canto. Já não sabemos o que usar: veneno, armadilhas.... experimentamos tudo. Todo dia, eu tiro um monte de ratos mortos. Mas a cada dia eles aumentam, não diminuem. De qualquer modo, não vão incomodá-lo. Não gostam de luz. – Obrigado – responde Chaparro. Mas o velho já lhe deu as costas e desaparece ao dobrar no fundo do corredor.” (SACHERI, 2011, p.59). 130 100 Avanza algunas páginas. Aunque se arrepiente casi de inmediato, no puede sustraerse al impulso de volver a mirar las fotografías de la escena del crimen. Treinta años después, Liliana Emma Colotto de Morales sigue tendida sobre el parqué del dormitorio, abandonada y desvalida, los ojos fijos y muertos muy abiertos, la piel cárdena en el cuello.132 (SACHERI, 2010, p. 92 – Capítulo “Fojas”) A violação da lei se dá também neste ato de descaso com a morte da jovem, quando a memória do crime e toda a informação necessária ao entendimento dos rumos tomados pelas investigações encontram-se em total abandono, no vazio obscurecido que tem por consequência última o esquecimento. À memória lhe sobra ficar estancada nas fotografias de Liliana feitas para o processo. Como se verá no próximo e último tópico que conforma este estudo, a escritura de Chaparro tem o papel de arrematar os fatos e unir, em um só lugar, vítimas e criminosos, aquilo que se presenciou enquanto narrador e o que se crê ter acontecido, a história trágica do casal Morales e a história trágica dos próprios argentinos. É, de fato, a obra que escreve Chaparro a responsável por não deixar que a morte da jovem, enquanto fato passado, se esvaia e desapareça no transcorrer de um tempo presente, incessante e contínuo. Em português: “[Chaparro] Abre a pasta e, embora não repare nisso, topa com os mesmos autos policiais, as mesmas declarações testemunhais, a mesma perícia forense que ele havia revisado em agosto de 1968, quando lhe ordenaram arquivar sem processados e ele decidiu olimpicamente se fazer de bobo. Avança algumas páginas. Embora se arrependa quase de imediato, não consegue se furtar ao impulso de olhar de novo as fotografias da cena do crime. Trinta anos depois, Liliana Emma Colotto de Morales continua caída no chão do quarto, abandonada e desvalida, os olhos fixos e mortos muito abertos, a pele arroxeada no pescoço.” (SACHERI, 2011, p.62). 132 101 3.3 O TRATAMENTO DA MEMÓRIA PELA NARRATIVA DE EDUARDO SACHERI Detalhes de uma sala de trabalho ou dos corredores de um arquivo. Nomes de ruas cruzadas durante uma vida. Horários precisos de entrada de um inquérito. A memória de um anúncio de morte. A memória de um amor entre desconhecidos que ecoa em um já conhecido amor. Pretextos que amparam um desejo antigo. Imagens, lugares, datas certeiras ou estimadas, frases ditas por um amigo. A captura e a soltura de um culpado. A penalidade por mãos inimagináveis. Uma punição perpétua. Uma autopunição perpétua. Beatriz Sarlo (2005) reflete sobre uma característica inerente e incontrolável do passado: ainda que se queira reprimi-lo ou deixá-lo restrito ao espaço do ontem, o mesmo “sigue allí, lejano y próximo, acechando el presente como el recuerdo que irrumpe en el momento menos pensado, o como la nube insidiosa que rodea el hecho que no se quiere o no se puede recordar.”133 (SARLO, 2005, p.9). A autora o compara a um aroma que chega sem que se queira ou espere, daí que optar por não recordar é o mesmo que “proponerse no percibir un olor, porque el recuerdo, como el olor, asalta, incluso cuando no es convocado.”134 (SARLO, 2005, p.9). Nesta medida, em La pregunta de sus ojos, o passado surge como este “olor que asalta” e que impulsiona o personagem narrador Benjamín Miguel Chaparro a querer capturálo através da arte e organizá-lo em forma de palavras. De acordo com Sarlo, recordar e entender são ações que caminham juntas. Se entender se apresenta como mais importante que recordar, o ato de recordar se mostra imprescindível para que se chegue a algum tipo de entendimento. Recordar, nesta medida, surge como caminho de organização e entendimento de um passado “soberano e incontrolable” que sempre “se hace presente”135. (SARLO, 2005, p.10). E é justamente a partir do tempo presente que este passado é recordado e, assim, entendido. Em La pregunta de sus ojos, entender os caminhos que conduziram um homem a fazer justiças com suas próprias mãos requer recordar a história de vida Em português: “segue ali, distante e próximo, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento menos pensado, ou como a nuvem insidiosa que rodea o fato que não se quer ou não se pode recordar.” (SARLO, 2005, p.9). (N. do T.) 134 Em português: “propor-se a não perceber um cheiro, porque a recordação, como o aroma, acomete inclusive quando não é convocada.” (SARLO, 2005, p.9). (N. do T.) 135 Em português: “se faz presente” (SARLO, 2005, p.10) (N. do T.) 133 102 deste mesmo homem. É a partir do ato de memória de um personagem que o leitor tem acesso a histórias de vida que se imbricam ao redor de uma morte. E é também na rememoração destes momentos de vida que somos levados a refletir temas como o tratamento da memória pela literatura. No que concerne ao diálogo entre literatura e este passado que “se hace presente” do qual nos fala Sarlo, Márcio Seligmann-Silva136 (2012) afirma que a relação do passado com o presente e a necessidade de refletirmos criticamente sobre as experiências e vivências individuais e coletivas, a partir das quais se constroem os relatos sobre o passado, são preocupações que não se limitam ao âmbito profissional de historiadores, mas que estão presentes nos estudos literários, artísticos e culturais, perpassando linguagens e mídias diversas. (SELIGMANN-SILVA et al., 2012, p.9) Com base nas palavras de Seligmann-Silva, confirmamos que o passado também pode ser recordado (e entendido) pelo discurso artístico. Como explica o autor, a abordagem do passado não se restringe ao campo da disciplina História, mas encontra possibilidades de realização a partir de diálogos interdisciplinares com os Estudos Literários, Filosóficos, Culturais, em Artes Plásticas, Visuais e InterSemióticos (2012, p.9). O tratamento da memória pela Literatura, nesta medida, se justifica quando refletimos o discurso literário enquanto instrumento que também é capaz de dialogar com o passado a partir do viés ficcional. Em La pregunta de sus ojos, o passado “se hace presente” a partir de personagens que se encontram enredados a fatos que os impedem de seguirem com suas vidas sem que este passado constantemente ressurja e os interpele. Nesta medida, vemos que este passado se faz presente a partir do impacto pela morte da jovem, que atua de modo distinto em Benjamín Chaparro e no viúvo Morales, aqui já analisados no capítulo referente aos personagens. Chaparro sofre com o bloqueio amoroso que lhe submete a décadas de silêncio, de idas e vindas de um amor que o sufoca e o faz sofrer calado. A vida de Morales, por sua vez, mantém-se estagnada, posto que o personagem tem sua morte simbólica consolidada com a morte de sua esposa Liliana. Agora bem, Morales sofre pela perda de sua mulher e Benjamín porque nunca teve aquela a quem ama. Dois homens que tentam seguir com suas vidas 136 In: SELIGMANN-SILVA, Márcio, org. Imagem e Memória. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2012. 103 marcadas pela dor da perda: do que tiveram ou do que desejaram ter. E, diante desta dor, os personagens posicionam-se de modo diverso: o convívio perpétuo com um passado que não pode ser esquecido e a organização deste passado através da escritura. Se Morales demonstra por vezes ter recalcado a sua dor, suas ações revelam um homem obcecado por encontrar ao culpado pela morte de sua mulher. Ao final descobrimos que, de fato, sua vida não avançou. Pelo contrário, desde as buscas incansáveis nos terminais de trens até a prisão do assassino por conta própria, entendemos que, com a morte de Liliana, Morales também encontra a sua própria morte: – Disculpe, don – me acerqué sonriendo. Siempre me produce una cierta turbación entrar a un negocio en el que no tengo intenciones de comprar nada–. Ando buscando a un muchacho que suele parar acá, alguna que otra tardecita. Es medio rubión. Bastante pálido. Un tipo alto, flaco. Usa un bigotito recto. El gordo me miró. Supongo que para regentear un bar en el Once una de las competencias necesarias es distinguir rápidamente a los locos y a los estafadores. Pareció descartar en silencio que yo estuviese incluido en alguna de las dos categorías. Asintió levemente y miró el mostrador, como iniciando una búsqueda en la memoria. – Ah – dijo de repente. – Ya sé. Usted lo busca al Muerto. No me sorprendió que caracterizara a Morales de ese modo. No había ni asomo de burla en su voz. Era sencillamente una caracterización objetiva construida a partir de ciertos signos evidentes. Un cliente que viene todas las semanas, pide lo mismo, paga con cambio y se pasa dos horas en silencio, inmóvil, mirando hacia fuera, puede resultar bastante parecido a un cadáver o a un fantasma. Por eso no sentí que hubiera de mi parte una traición, o un sarcasmo, o una exageración cuando le contesté que sí.137 (SACHERI, 2010, pp.181-182) Não só Isidoro tem sua vida encarcerada até seus últimos momentos de vida. Com a prisão do assassino de sua mulher, Morales também se apresenta ao leitor Em português: “– Desculpe, moço – disse eu e me aproximei sorrindo. Sempre me produz certa perturbação isso de entrar numa loja na qual não tenho intenção de comprar nada. – Estou procurando um rapaz que costuma parar aqui, um ou outro final de tarde. É meio louro. Bastante pálido. Um tipo alto, magro. Usa um bigodinho reto. O gordo me encarou. Imagino que, para gerenciar um bar no Once, uma das habilidades necessárias seja distinguir rapidamente os malucos e os caloteiros. Ele pareceu descartar, em silêncio, que eu me incluísse em alguma das duas categorias. Fez que sim levemente o olhou para o balcão, como se iniciasse uma busca na memória. – Ah – disse de repente. – Já sei. O senhor está procurando o Morto. Não me surpreendeu que ele caracterizasse Morales desse modo. Não havia nenhum indício de gozação em sua voz. Era simplesmente uma caracterização objetiva, construída com base em certos sinais evidentes. Um cliente que vem todas as semanas, pede a mesma coisa, paga com dinheiro trocado e passa duas horas em silêncio, imóvel, olhando para fora, por ficar bastante parecido com um cadáver ou um fantasma. Por isso, não senti que houvesse de minha parte uma traição, ou um sarcasmo, ou um exagero, quando respondi que sim.” (SACHERI, 2011, p.119). 137 104 como uma vítima perpétua das decisões que toma, quando decide transportar seu passado de dor para dentro de sua própria casa, para seu presente, para o resto de seus dias: “¿No pasaba el tiempo, para este hombre? ¿Todo era un eterno presente que se sumaba a los anteriores?”138 (SACHERI, 2010, p.288). – Pobre tipo. Las dos palabras que pronunció Báez flotaron un segundo sobre la mesa hasta que se evaporaron y volvió el silencio. No contesté, pero entendía sin lugar para el equívoco de quién estaba hablando el policía. No hablaba de Romano, ni de Gómez, ni de él, ni de mí. Hablaba de Ricardo Morales, que de lleno o de rebote, de primera o de segunda, por h o por b, girara como girase la perinola, terminaba siempre inmolado como una víctima perpetua.139 (SACHERI, 2010, p.214) Por sua vez, Chaparro se utiliza do literário como mecanismo de ordenamento de fatos que já integram a sua própria história. Como já dito, em La pregunta de sus ojos, o ato de recordar se efetiva a partir da escritura deste personagem, quem, após aposentar-se como pró-secretário de uma Secretaria de Instrução de Buenos Aires, decide contar a história de vidas que se cruzam em um romance. É também Beatriz Sarlo quem afirma que el tiempo pasado es ineliminable, un perseguidor que esclaviza o libera, su irrupción en el presente es comprensible en la medida en que se lo organice mediante los procedimientos de narración y, por ellos, de una ideología que ponga de manifiesto un continuum significativo e interpretable de tiempo.140 (SARLO, 2005, p.13). O caminho encontrado por Chaparro para organizar este tempo passado que não pode ser eliminado também se baseia em procedimentos de narração, tal como coloca Sarlo no fragmento citado. Como constantemente afirmamos neste estudo, Em português: “O tempo não passava para aquele homem? Tudo era um eterno presente que se somava aos anteriores?” (SACHERI, 2011, p.190). 139 Em português: “– Pobre homem. As duas palavras que Báez pronunciou flutuaram um segundo sobre a mesa até se evaporarem, e o silêncio voltou. Não respondi, mas sem sombra de dúvida, entendi de quem o policial estava falando. Não era de Romano, nem de Gómez, nem dele mesmo, nem de mim. Ele falava de Ricardo Morales, o qual, em cheio ou por ricochete, de primeira ou de segunda, por isto ou por aquilo, girasse como girasse a carrapeta, sempre acabava imolado como uma vítima perpétua.” (SACHERI, 2011, pp. 140-141) 140 Em português: “O tempo passado é ineliminável, um perseguidor que escraviza ou libera, sua irrupção no presente é compreensível na medida em que seja organizado mediante procedimentos de narração e, por eles, de uma ideologia que coloque em xeque um continuum significativo e interpretável de tempo.” (SARLO, 2005, p.13) (N. do T.) 138 105 Chaparro almeja escrever um romance e é este o instrumento que utiliza para recordar e entender o seu passado e o das vidas que o rodeiam. Sarlo fala de modalidades não acadêmicas na escritura da história, baseadas não em regras do método da disciplina histórica (SARLO, 2005, p.14), mas nos sentidos comuns do presente, como aquela modalidade que “atiende las creencias de su público y se orienta en función de ellas.”141 (SARLO, 2005, p.15). Benjamín Chaparro é símbolo dessa voz do homem comum que se alça e estrutura um relato histórico a partir de seu próprio ponto de vista, daquilo que vivenciou ou que presenciou na vida de pessoas próximas. Homens comuns que “no sólo seguían itinerarios sociales trazados sino que protagonizaban negociaciones, transgresiones y variantes.”142 (SARLO, 2005, p.18). É a partir deste destaque dado a “la rememoración de la experiencia” (SARLO, 2005, p.21) que ganham espaço os discursos em primeira pessoa como forma privilegiada para a apresentação de pontos de vista, caminho que revigora o viés subjetivo dos discursos sobre o passado. Como aponta a autora, “[...] la historia oral y el testimonio han devuelto la confianza a esa primera persona que narra su vida (privada, pública, afectiva, política), para conservar el recuerdo o para reparar una identidad lastimada.”143 (SARLO, 2005, p.22). Quanto aos testemunhos e à valorização dos discursos em primeira pessoa, Beatriz Sarlo também afirma que la memoria ha sido el deber de la Argentina posterior a la dictadura militar y lo es en la mayoría de los países de América Latina. El testimonio hizo posible la condena del terrorismo de estado; la idea del “nunca más” se sostiene en que sabemos a qué nos referimos cuando deseamos que eso no se repita. Como instrumento jurídico y como modo de reconstrucción del pasado, allí donde otras fuentes fueron destruidas por los responsables, los actos de memoria fueron una pieza central de la transición democrática […].144 (SARLO, 2005. p.24). Em português: “atende as crenças de seu público e se orienta em função delas.” (SARLO, 2005, p.15). (N. do T.) 142 Em português: “não só seguiam itinerários sociais traçados mas que protagonizavam negociações, transgressões e variantes.” (SARLO, 2005, p.18). (N. do T.) 143 Em português: “[...] a história oral e o testemunho devolveram a confiança a essa primeira pessoa que narra sua vida (privada, pública, afetiva, política), para conservar a memória ou para reparar uma identidade lastimada.” (SARLO, 2005, p.22). (N. do T.) 144 Em português: “a memória foi o dever de uma Argentina posterior à ditadura militar e é na maioria dos países da América Latina. O testemunho tornou possível a condenação do terrorismo de estado; a ideia do “nunca mais” se sustenta no fato de que sabemos a que nos referimos quando desejamos que isso não se repita. Como instrumento jurídico e como modo de reconstrução do passado, ali onde outras fontes foram destruídas pelos responsáveis, os atos de memória foram uma peça central da transição democrática […].” (SARLO, 2005. p.24). (N. do T.) 141 106 Quando da leitura de sua dimensão oculta no capítulo referente aos personagens, vimos que Chaparro não consegue esquecer-se dos fatos que o marcaram de forma a seguir com sua vida com algum padrão de normalidade, ainda que o tente e que os demais recriminem sua postura. Reagir a este passado através do recalque e do esquecimento já não é mais possível e, por isso, o caminho que encontra é o processamento simbólico de seu passado através de uma antiga máquina de escrever. Sua necessidade de voltar-se para o ontem a fim de reconstruir os caminhos da memória demonstra que seu passado só pode ser compreendido quando verbalizado, razão pela qual a literatura surge como instrumento que lhe permite ao indivíduo avançar e retomar sua vida depois de um acerto de contas com sua própria história. De repente [Benjamín Chaparro] se sobresalta. El tren avanza, ruidoso, entre los paredones lúgubres que se levantan a los costados de las vías entre Caballito y Once. ¿En qué ha estado pensando la última media hora? No puede recordarlo. ¿En Morales? ¿En Gómez? No. Ellos ya descansan. Llamativamente, desde que ha contado todo, ya no lo asaltan, no lo perturban, no lo increpan a cada rato.145 (SACHERI, 2010, p. 313 – Capítulo “Devolución”). O fragmento mostra-se fundamental para a leitura dos significados do romance que aqui nos propomos realizar. Chaparro utiliza o literário como ferramenta de entendimento e organização de seu passado e dos fatos que de alguma forma afetaram sua própria história de vida. O passado, enquanto emaranhado de momentos e recordações mescladas e confusas, ganha linearidade, sequenciamento, lógica interna, a partir do ato de escritura. É tão só através desta segurança organizacional conferida pela escritura de algo que lhe parecia perturbador, assim como observamos no fragmento supracitado, que Chaparro se sente livre, desprendido, numa soltura que lhe chegou “desde que ha contado todo”. Nesta medida, a máquina de escrever que Chaparro utiliza para contar a história de Morales é simbólica em La pregunta de sus ojos, pois permite que um pro-secretário aposentado se invista de seu papel de escritor e, assim, assuma a responsabilidade de organização da memória de vidas outras que se cruzaram com Em português: “De repente [Benjamín Chaparro] se sobressalta. O trem avança, ruidoso, entre os paredões lúgubres que se erguem nas laterais da via férrea entre Caballito e Once. Em que esteve pensando na última meia hora? Não consegue se lembrar. Em Morales? Em Gómez? Não. Eles já estão descansando. Curiosamente, desde que contou tudo, já não o assaltam, não o perturbam, não o censuram a cada momento.” (SACHERI, 2011, p. 208). 145 107 a sua. O projeto antigo de escrever um livro ganha concretude quando o personagem finalmente compreende que é tão só pelo caminho da escritura que o desalinhado, desconexo, ganha uma dimensão compositiva mais coerente e, por isso, mais clara e compreensível para quem carregava por tanto tempo o peso de um passado que lhe parecia tão nebuloso e sufocante. Nesta linha de leitura, a busca pela verdade que ancora a narrativa e sobre a qual constantemente nos referimos neste estudo tem relação direta com a auto investidura de Chaparro como escritor. A verdade não implica somente saber o que de fato ocorreu ao assassino da jovem, uma vez que a carta de Morales se encarrega de esclarecer estas pendências da história a Chaparro, mas, antes, envolve também a preocupação constante de trazer a verdade impressa naquilo que se diz sobre este passado. Deja los elementos del mate sobre el escritorio y se encamina hasta el aparador de la sala. Sabe que las cartas están en el segundo cajón, cada una en su sobre. No están amarillentas porque no son tan antiguas. Y aunque no ha vuelto a leerlas, cree recordarlas con exactitud, casi hasta sus textuales palabras. Pero no quiere falsear la verdad que tienen en las manos. Por eso las sacará de allí para llevárselas al escritorio. Para citarlas todas las veces que lo considere necesario. “¿Por qué semejante prurito de exactitud?”, se pregunta. Porque sí, es su primera respuesta. Porque en ellas se esconde la verdad, o la propia palabra de Ricardo Morales que en este caso es la última verdad, se contesta luego. Porque así, con las pruebas documentales en la mano, citando lo que haya que citar, es como ha trabajado cuarenta años en Tribunales, agrega. Y esa otra respuesta también es verdadera.146 (SACHERI, 2010, p.281-282 – Capítulo “Más dudas”). A despeito de contar uma história partindo da aceitação de sua imprecisão intrínseca, Chaparro não se contenta em trazer a seu leitor uma versão própria dos fatos. Ainda que tenha consciência da subjetividade que atravessa sua narração, o personagem-autor continuamente assume sua inquietude por encontrar a verdade e ser fiel a ela em seu processo de escritura. Em português: “Deixa os utensílios do mate sobre a escrivaninha e se dirige até o aparador da sala. Sabe que as cartas estão na segunda gaveta, cada uma em seu envelope. Não estão muito amareladas porque não são assim tão antigas. E, embora não as tenha relido, ele acredita recordálas com exatidão, quase nas palavras textuais. Mas não quer falsear a verdade que tem nas mãos. Por isso irá tirá-las dali e leva-las para a escrivaninha. Para citá-las sempre que considerar necessário. ‘Por que semelhante escrúpulo de exatidão?’, se pergunta. Porque sim, é sai primeira resposta. Porque nelas se esconde a verdade, ou a própria palavra de Ricardo Morales, que neste caso é a última verdade, responde-se em seguida. Porque assim, com as provas documentais na mão, citando o que for preciso citar, é como ele trabalhou por quarenta anos em Tribunales, acrescenta. E essa outra resposta também é verdadeira.” (SACHERI, 2011, p.186). 146 108 La mitad de Chaparro que odia la incertidumbre, y que anhela hasta la desesperación concluir con eso, opina que es perfecto llegar hasta aquí: mal que mal ha conseguido contar lo que se había propuesto, y el tono que encontró para hacerlo le da la impresión de ser el adecuado. Los personajes que ha creado se parecen insólitamente a los seres de carne y hueso que él conoció, y esos personajes han dicho y hecho, mal que mal, las cosas que esos seres reales hicieron y dijeron. Esa mitad cautelosa de Chaparro sospecha que, si se extiende más, todo se irá al diablo, y la historia se saldrá de cauce, y los personajes terminarán moviéndose a su antojo sin atenerse a los hechos, o a su memoria de los hechos, que para el caso es lo mismo, y todo habrá sido al divino botón.147 (SACHERI, 2010, p.187 – Capítulo “Abstinencia”) Esta preocupação por trazer a seu leitor a história de Morales com o máximo de exatidão possível implica o manejo com o contexto espaço-temporal de desenvolvimento destes fatos passados. Vimos que a estratégia utilizada por Benjamín Chaparro como forma de lidar com os fatos que marcaram sua história é a de organizar o passado via escritura, mecanismo que lhe viabiliza entender os caminhos que o conduziram ao lugar onde está: sua força e sua covardia; seus desejos e suas inumeráveis dúvidas; sua nobreza e sua mesquinhez; a história de Morales e a sua; a história do Juizado Criminal de Instrução nº 41 e a história da própria Argentina. Ainda que seu objetivo seja o de oferecer-nos tão só um relato sobre o que aconteceu a Ricardo Morales, Chaparro nos oferece sua própria vida, a das pessoas que o cercam, a de sua Nação. Chaparro tira de la hoja que acaba de terminar con la suficiente energía como para liberarla del rodillo sin romperla y la relee. Las últimas palabras lo hacen sonreír. Le resulta grato el ejercicio de la memoria: esa frase con la que ha cerrado el capítulo, la de “el día en que los boludos hagan una fiesta”, la había creído absolutamente olvidada. Pero ahora ha salido a flote junto con otro montón de recuerdos de su pasado y la gente con la que ha vivido ese pasado.148 (SACHERI, 2010, p.136 – Capítulo “Nombre y apellido”) Em português: “A metade de Chaparro que odeia a incerteza, e que anseia até o desespero por acabar com isto, opina que é perfeito chegar até aqui: mal ou bem, ele conseguiu contar aquilo a que se propusera, e o tom que encontrou para fazê-lo lhe parece adequado. Os personagens que criou se parecem insolitamente com os seres de carne e osso que conheceu, e esses personagens disseram e fizeram, de um modo ou de outro, as coisas que os seres reais fizeram e disseram. Essa metade cautelosa de Chaparro suspeita de que, se ele se estender mais, tudo será posto a perder, e a história sairá dos eixos, e os personagens acabarão se movendo segundo os próprios caprichos, sem se aterem aos fatos, ou à sua memória dos fatos, que no caso dá no mesmo, e tudo terá sido inútil”. (SACHERI, 2011, p.123). 147 Em português: “Chaparro puxa a página que acaba de redigir com energia suficiente para liberá-la do cilindro sem rasgá-la e a relê. As últimas palavras o fazem sorrir. O exercício da memória o agrada: essa frase com que encerrou o capítulo, aquela de ‘no dia em que os babacas fizerem uma festa’, ele a acreditara completamente esquecida. Mas agora veio à tona, junto com outro monte de lembranças de seu passado e das pessoas com quem ele conviveu no passado.” (SACHERI, 2011, p.90). 148 109 É esta memória própria e alheia na qual o personagem está submerso que serve de instrumento de autoconhecimento a Chaparro e que traz à luz a memória coletiva de seu próprio país. Bem mais que o resgate da história de um crime de uma jovem, a escritura do personagem dá espaço ao passado de uma Nação quando momentos históricos surgem como pano de fundo da narrativa. Nesta medida, o desejo contínuo do personagem por trazer a verdade em sua narração do passado o leva a explorar também o contexto histórico de acontecimento destes fatos. É neste detalhamento da escritura, tão valorizado por Benjamín Chaparro, que a obra de Eduardo Sacheri abre espaço para que elementos históricos ecoem em La pregunta de sus ojos, tal como vimos no transcurso deste estudo. A trama de busca em Sacheri, ambientada em uma Argentina dos anos sessenta e setenta, atua como veículo que permite a apreciação de conflitos políticos e sociais próprios do país, a partir de uma evolução temporal que contempla diferentes episódios de importância nacional. A obra dialoga com a memória argentina quando traz, na voz do personagem Chaparro, a violação da lei aqui já discutida, referente em grande medida ao período de repressão ditatorial do país. Contudo, importa chamar mais uma vez a atenção para o trato sutil na apresentação dessas referências históricas por Sacheri, as quais se mesclam com o literário num intrigante jogo narrativo entre a memória da Argentina e a memória de um personagem. Com vistas a elucidar este jogo narrativo, La pregunta de sus ojos se encerra com uma nota do próprio autor, aqui já referida e que agora trazemos à discussão de forma mais aprofundada, tendo em vista sua enorme importância à leitura que aqui se realiza: En febrero de 1987 ingresé a trabajar como empleado en el Juzgado Nacional de Primera Instancia en lo Criminal de Sentencia “Q”, de la Capital Federal. Una mañana cualquiera mis compañeros más experimentados me contaron una vieja anécdota: a raíz de la amnistía para presos políticos que el gobierno de Cámpora dictó en 1973, y en circunstancias que siempre quedaron en la más completa oscuridad, salió en libertad un preso común que estaba detenido en la cárcel de Devoto a la orden del Juzgado. Se lo acusaba de delitos muy graves, y lo aguardaba una larguísima condena. Sin embargo, y sin que nadie supiera nunca el motivo, salió en libertad aquella jornada. Tiempo después recordé esa historia, y en mi imaginación se le sumaron innumerables hechos y situaciones que, aunque inventados, 110 podían encajar como posibles antecedentes y consecuencias de la liberación injusta de un homicida convicto. [...]149 (SACHERI, 2010, p.316) A nota do autor configura-se a partir de episódios de intenso carácter autobiográfico. Como vimos ao início deste estudo no capítulo dedicado à mediação crítica do autor, Eduardo Sacheri já trabalhou em um Juizado Criminal e é da experiência pessoal e de um episódio contado por companheiros mais experientes – a liberação de um assassino confesso por ocasião de uma anistia para presos políticos em 1973, que nasce La pregunta de sus ojos. A recordação de uma história verídica, mas que ocorreu em circunstâncias nebulosas e vagas, configura-se como material de criação artística porquanto uma infinidade de possibilidades que se relacionam ao fato ocorrido surge na mente ingeniosa do escritor. [...] Por lo demás, la historia que se narra en estas páginas es enteramente ficticia, como lo son todos sus personajes. De hecho, a fines de la década de los sesenta las secretarías nº18 y nº19 pertenecían a un Juzgado de Sentencia, y no a uno de Instrucción. Además, no existía ningún Juzgado en lo Criminal de Instrucción, en la Capital Federal, que llevase el nº 41. En cuanto a la sangrienta Argentina de los años setenta, que de tanto en tanto se asoma como telón de fondo de estas páginas, ojalá fuese igual de ficticia, igual de inexistente.150 (SACHERI, 2010, p.316-317) A necessidade de que ao leitor lhe seja esclarecido, ao final, o caráter fictício do romance denuncia o intenso tratamento de fatos da memória nacional por Eduardo Sacheri. Entendemos que a apresentação desta nota pelo autor se justifica pelo fato de o romance dialogar amplamente com fatos históricos da Argentina. O jogo narrativo se conforma a partir da memória do próprio escritor, que recupera um fato passado e o atualiza pelo viés ficcional. Sob tal ótica, a memória do escritor dá Em português: “Em fevereiro de 1987, entrei para trabalhar como funcionário no Juizado Nacional de Primeira Instância no Criminal de Sentença ‘Q’, da capital federal. Numa manhã qualquer, meus colegas mais experientes me contaram um velho episódio: em razão da anistia para presos políticos que o governo de Cámpora decretou em 1973, e em circunstâncias que sempre permaneceram na mais completa obscuridade, foi libertado um preso comum que estava detido no cárcere de Devoto por ordem do Juizado. Era acusado de delitos muito graves, e aguardava-o uma longa pena. No entanto, e sem que ninguém jamais soubesse o motivo, ele foi solto naquela ocasião. Tempos depois, recordei essa história, e em minha imaginação a ela se somaram incontáveis fatos e situações que, embora inventados, podiam se encaixar como possíveis antecedentes e consequências da libertação injusta de um homicida convicto. [...]” (SACHERI, 2011, p.210). 150 Em português: “De resto, a história narrada nestas páginas é inteiramente fictícia, como o sõ todos os seus personagens. Na verdade, no final da década de 1960 as secretarias nº18 e nº19 pertenciam a um Juizado de Sentença, e não a um de Instrução. Além disso, não existia nenhum Juizado no Criminal de Instrução, na capital federal, que tivesse o nº41. Quanto à sangrenta Argentina dos anos 1970, que de vez em quando surge como pano de fundo destas páginas, quem dera fosse igualmente fictícia, igualmente inexistente.” (SACHERI, 2011, p.210). 149 111 lugar a memória de um personagem que vivencia este fato e, por sua vez, também decide recuperá-lo por meio da escritura de um romance. Ambas as obras – a de Chaparro e, de forma extensiva, a de Eduardo Sacheri, dialogam amplamente com a memória da Argentina, arcabouço sócio-histórico que edifica La pregunta de sus ojos. 112 CONCLUSÃO Chaparro se pregunta si la vida de los seres humanos, una vez extinguidas, no se prolongan en la vida de los otros, los que aún viven y los recuerdan.151 Eduardo Sacheri, 2010, p. 311 – La pregunta de sus ojos Este estudo iniciou-se com a apresentação de uma mediação crítica sobre Eduardo Sacheri (1967), a fim de contextualizar o autor no marco literário contemporâneo argentino. Nesta exposição inicial, visamos apresentar ao leitor um Sacheri professor, roteirista, contista e romancista, a partir de informações que denotassem as multifaces que se complementam e totalizam a figura plural do escritor. Pudemos entrever que La pregunta de sus ojos nasce de um desejo antigo por experimentar a vivência da escritura de um romance, anseio concretizado logo de uma intensa incursão pelo universo dos contos pelo autor. Considerando-se que esta dissertação tratou da análise das estratégias narrativas empregadas por Sacheri, como caminho de reflexão dos significados histórico-sociais latentes no romance, optou-se por, em um capítulo inicial, na sequência desta mediação crítica antes dita, trazer a luz informações estruturais mais gerais sobre o romance foco deste estudo, tendo em vista os muitos momentos em que se mostrou necessário acionar a trama da obra para fins de reflexão nesta dissertação. A partir de nosso objetivo norteador, a segunda parte foi dedicada à leitura propriamente dita das estratégias narrativas utilizadas por Sacheri na conformação do romance. Procuramos expor que os elementos constituintes foram selecionados de maneira que pudéssemos contemplar a obra como um todo composto a partir de esferas compositivas narratológicas diversas. Assim, priorizou-se, nesta pesquisa, a leitura de aspectos relacionados às vozes que narram no romance, à caracterização de personagens e ao contorno da trama concebida por Eduardo Sacheri. Nesta medida, fixamos nosso estudo, em um primeiro momento, na análise da focalização narrativa, por julgarmos ser ela a responsável por edificar o interessante jogo temporal entre passado e presente conformador do romance de Sacheri. Pudemos constatar que o entrelaçamento de acontecimentos que se deram Em português: “Chaparro se pergunta se as vidas dos seres humanos, uma vez extinguidas, não se prolongam na vida dos outros, aqueles que ainda existem e os recordam.” (SACHERI, 2011, p.207). 151 113 em épocas distintas ocorre graças à junção de vozes que têm espaço intercalado na obra. Ainda que separadas no que se refere à organização estrutural, ambas as focalizações, nascidas de uma concepção da obra como um todo coeso e unificado, constituem-se como vozes interdependentes, as quais despontam de narradores que se complementam na conformação de La pregunta de sus ojos pelo escritor. Iniciamos a análise da focalização a partir da exploração de conceitos alçados por Mieke Bal (1995), quem nos serviu de base para a distinção entre as noções de focalização interna e externa à fábula, ambas com lugar de realização no romance de Sacheri. A partir destas peculiaridades de cada voz, detivemo-nos nos dois focalizadores de La pregunta de sus ojos, de modo a dar conta das nuances próprias de cada um deles. Verificou-se que o personagem e narrador interno Chaparro dedica-se a contar a história de Ricardo Morales, homem que tem sua vida marcada pelo assassinato de sua esposa em 1968. Buscamos dar conta dos motivos que levam o personagem a narrar a história de um crime décadas depois de seu acontecimento e pudemos entrever que a história de sofrimento de Morales é um reflexo das tensões individuais vivenciadas pelo próprio narrador interno. Benjamín Chaparro, investido de seu papel de focalizador-personagem, é aquele que busca a objetividade máxima naquilo que é narrado, ainda que não consiga eximir-se totalmente de mostrar-se a si mesmo em seu processo de escritura. Reflexivo em sua essência, Chaparro também é aquele que, na qualidade de escritor da história de Morales, deixa explícitas todas as dúvidas e titubeios surgidos durante o seu projeto de escritura. Assim, constatou-se que as muitas e variadas reflexões narratológicas do personagem ao longo de seu romance trazem expressas todas as possiblidades que se abrem a quem se autoimpõe a tarefa de narrar, bem como as limitações provenientes deste antigo projeto de converter-se, ainda que hesitante sobre seus reais motivos, em autor de um romance. Na sequência de nossa análise sobre a focalização como estratégia, procuramos expor que o narrador externo surge como aquele que acompanha o personagem-narrador em seu afã como escritor. Para refletir esta instância narrativa, além dos estudos de Mieke Bal (1995), nos fizemos valer dos conceitos alçados por Dorrit Cohn (2001), no que respeita a “psiconarração” realizada por um narrador que discursa sobre a consciência de um personagem ou, nas palavras próprias de Cohn, inspeciona esta mesma consciência. Nesta linha de leitura, pudemos observar que o 114 narrador externo de La pregunta de sus ojos revela-se como veículo de apreciação de Chaparro a partir de uma dimensão outra que não aquela vinda do próprio personagem, mas de uma voz externa à trama de Sacheri. Vale dizer que este caráter de exterioridade aos fatos deste narrador não implica um distanciamento comumente associado a esta instância narrativa, como se sua função fosse unicamente apresentar o momento presente de Chaparro de modo onisciente, neutro, apartado. Pelo contrário, este narrador externo também autoriza uma série de modulações que desfazem a concepção deste afastamento como alternativa única de configuração desta voz no romance. À luz das reflexões teóricas de Oswald Ducrot (1987), pudemos abordar neste estudo a possibilidade de superposição de vozes em uma única voz, fenômeno discursivo que se faz presente na voz deste narrador externo que se alça na narrativa de Eduardo Sacheri. A partir do que foi concebido nesta dissertação como Procedimento da Voz Indexada, pudemos vislumbrar a presença de um narrador externo que não se restringe a apresentar o objeto de sua focalização de modo distanciado, como antes dito, mas que o faz a partir de uma mescla de consciências que se efetiva em uma única voz. O acompanhamento ininterrupto junto a Chaparro realizado por este narrador nos conduz à apreciação deste fenômeno de aparição de um enunciado interpolado na voz do narrador externo, mas reconhecível como estranho a sua voz. Tal fenômeno, tão recorrente na obra, rompe com a linearidade do discurso deste NE e, na fusão de vozes que apresenta, configura-se como revelador das possibilidades múltiplas de articulação destas instâncias focalizadoras no romance. Concluímos que, de forma intercalada na narrativa de Sacheri, ambas as vozes investem-se de funções próprias e, juntas, tratam de abarcar a Argentina de agora, de um Chaparro já aposentado e amadurecido, e uma Argentina de outrora, de trinta anos antes. É esta última a que se configura como cenário de ocorrência do crime da jovem, decorrente da violência e da violação da lei cometidas por um homem. Por extensão, é também este o lugar de tantos crimes outros, referidos na trama de Sacheri, como consequência da violência e da violação da lei cometidas por aqueles que deveriam atuar em prol da justiça e não contra ela. Nesta medida, compreendemos neste estudo que a estruturação da obra a partir de duas vozes, diferenciadas quanto a suas funções próprias, mas imbricadas na conformação de La pregunta de sus ojos como um todo unificado, atua em prol 115 do tratamento da memória na narrativa, tendo em vista que as duas vozes dedicamse a esferas temporais distintas – o presente e o passado argentinos, que se imbricam e arquitetam o romance com base em duas temporalidades. Após a análise destes primeiros aspectos voltados à polifonia enunciativa, procuramos tecer uma leitura de dois personagens que assumem o papel de protagonistas nas duas narrativas – Chaparro, protagonista da obra do narrador externo; e o viúvo Morales, protagonista do romance que Chaparro decide escrever. Visamos trazer à reflexão a caracterização realizada por Sacheri de ambos os personagens, para mostrar, em seguida, como muitas vezes estas caracterizações vão de encontro ao que conceituamos, a partir das concepções teóricas levantadas por Robert McKee (2004), como a dimensão oculta destes personagens, alcançável quando nos propomos a lê-los para além de superficiais caracterizações e nos atentamos às decisões que estes personagens tomam em situações de pressão. A leitura comparativa de ambas as personagens foi fundamental para que chegássemos ao entendimento de que diferentes posturas tomadas diante da memória da morte trazem em si consequências diversas para os personagens. Se o viúvo Morales decide fazer justiça com as próprias mãos e encarcera ele mesmo o assassino de sua esposa, converte-se também ele em uma vítima perpétua de suas decisões. Chaparro, por sua vez, decide lidar com o passado que o marcou através da escritura. O personagem só consegue seguir com sua vida – só concretiza um amor antigo, quando, após descobrir o destino dado às vidas que marcaram sua história, retoma os caminhos tortuosos do caso da jovem através de um romance. Dando sequência à análise das estratégias narrativas empregadas por Sacheri, dedicamo-nos à leitura da trama de busca que conforma La pregunta de sus ojos. Com base nas reflexões levantadas por Ronald B. Tobias (1999) com respeito aos aspectos próprios da trama, pudemos entrever que o mito da busca é uma constante na literatura universal e atua como alicerce estrutural em obras com diferentes linhas argumentativas e em diferentes épocas. Culminamos em La pregunta de sus ojos e em suas particularidades para afirmar que a trama maior da narrativa de Sacheri está composta por duas sub-tramas que se desenvolvem com base em dois enigmas: o primeiro, relacionado à concretização do amor de Chaparro por Irene, o qual conforma a tensão individual que chega ao leitor por meio da focalização do narrador externo; o segundo, por sua vez, vinculado ao fato da morte 116 de Liliana, incidente motivador responsável por movimentar a narrativa de Sacheri e configurar toda a tensão social que se alça na obra do escritor. Nesta medida, concluímos que a busca pela verdade na obra surge a partir da ânsia do protagonista por encontrar uma solução para conflitos de caráter social e também individual. Há, de fato, uma relação direta entre ambas as buscas, haja vista que a solução de conflitos relacionados à tensão social por Chaparro mostra-se, na obra, condição básica para que o personagem solucione também suas tensões individuais. Dito de outro modo, chegamos ao entendimento de que a verdade contida no amor entre Chaparro e Irene só vem à tona quando uma verdade outra, a do crime da jovem, evidencia-se na trama de Sacheri. As categorias que compõem a obra constituíram-se como cerne para a reflexão sobre os significados do romance. Como buscamos sinalizar ao longo desta dissertação, a reflexão da narrativa em toda sua estrutura interna foi o caminho que traçamos para vislumbrar um diálogo entre universos ficcional e extra-ficcional na obra. É tão só a partir da análise de episódios pontuais em La pregunta de sus ojos, tais como o arquivamento da denúncia feita pela falsa acusação e pela agressão física sofrida pelos pedreiros; a perseguição e emboscada contra Chaparro como consequência de seu envolvimento com o caso de Liliana Colotto; e o desaparecimento do primo de Sandoval, que os temas da violência e da violação da lei perfilam-se na narrativa. Vale confirmar que estes temas não são explorados por Eduardo Sacheri de forma direta, explicitada, tal como se buscou apontar neste estudo, mas antes a partir de episódios como os antes mencionados, os quais atuam como caminho para o tratamento literário de tais temas pelo escritor. Os elementos extra-ficcionais em questão – tomados aqui como significados da narrativa de Sacheri, são elucidados em nosso estudo graças à leitura que se buscou realizar da trama de busca como instrumento que evidencia as contradições político-sociais da Argentina. Em suma, concluímos que é o envolvimento do personagem com o caso da morte da jovem o responsável por movimentar a trama e, por conseguinte, trazer a luz toda uma rede de corrupção nos escalões judiciais, assentada na violência gratuita e na violação da lei. Na esteira de nossa análise, encontramos nos espaços do romance um caminho de leitura destes significados da narrativa, a partir de nossa intenção última de nos atermos às estratégias literárias utilizadas pelo autor na conformação de La pregunta de sus ojos. 117 Constatou-se que os múltiplos espaços no romance de Sacheri intensificamse no transcorrer do tempo a partir da atuação dos personagens que neles transitam. Nesta medida, a leitura que despendemos mostrou-nos que, ainda que em sua definição configurem-se como sendo de justiça, haja vista sua intenção primeira de atuar em favor da lei e em prol da verdade e da justiça mesma, ditos espaços revelam-se na obra de Sacheri como espaços do crime, em função da corrupção que opera nestes lugares onde antes a justiça deveria ser resguardada. Em conexão com o tópico sobre a polifonia enunciativa, o último de nosso estudo esteve dedicado à leitura do tratamento da memória pela narrativa de Sacheri. Em diálogo com as reflexões de Beatriz Sarlo (2005), comparamos o passado de Chaparro e do viúvo Morales a “un olor que asalta” o presente sem que os personagens possam controlá-lo. É este passado insistente que impulsiona Chaparro a querer organizá-lo por meio de um romance. Sarlo explica que recordar o passado a partir do presente é tarefa essencial para que se possa compreender este mesmo passado. De fato, para entender as razões que levaram um homem a fazer justiça com suas próprias mãos, Chaparro retoma a história de vida deste sujeito e é neste exercício da rememoração do passado realizado pelo personagem que temos acesso a histórias de vidas marcadas por uma morte. Pudemos entrever que o ato de memória de Chaparro é, antes de tudo, libertador. Enquanto vítimas desta violência, se Morales se estanca e passa sua vida encarcerado a seu passado doloroso, Chaparro, como vimos, decide organizar este mesmo passado em forma de narrativa e, desta forma, consegue finalmente solucionar suas próprias e antigas tensões individuais. Entendemos, nesta pesquisa, que a literatura também se apresenta como um instrumento de realização de um ato de memória, quando a mesma coloca em xeque discussões em circulação na sociedade e, como em La pregunta de sus ojos, quando traz o tema da violação da lei como pano de fundo de uma narrativa. Concluímos que a análise das estratégias narrativas permitiu-nos refletir o tema da mentira institucionalizada, elemento extra-ficcional representado na narrativa de Sacheri a partir da violação da lei cometida por personagens que deveriam resguardá-la. É importante observar que a violação da lei maior diz respeito à própria transgressão da vida, representada no romance a partir do crime contra uma jovem e, mais ainda, do crime contra a própria sociedade argentina, a 118 partir do terrorismo de Estado. Nesta medida, se o próprio Estado infringe inclusive os limites humanos, é o sujeito – Ricardo Morales – quem age em busca de vingança e se transforma ele mesmo em uma vítima perpétua de seus atos. As hipóteses levantadas em nossa introdução, com respeito à presença de um diálogo entre elementos ficcionais e extra-ficcionais na literatura de Sacheri, fizeram-se confirmar na medida em que fomos traçando um recorrido que partisse da análise das estratégias narrativas e desaguasse no que concebemos aqui como significados do romance. Chegamos à conclusão de que, em La pregunta de sus ojos, os elementos específicos da realidade sócio-histórica da Argentina deixam-se entrever de uma forma outra que não a de um tratamento patente e duro desses processos. A sutileza na apresentação dessas referências históricas pelo escritor mostra-se como diferencial de La pregunta de sus ojos, a partir de sua fusão com o literário num interessante jogo narrativo entre a memória fictícia de um personagem e a memória de sua própria Nação. A Argentina de Eduardo Sacheri é aquela que sai de Castelar e vai de trem a Tribunales, a que caminha pela rua Talcahuano em direção a Corrientes, a das escadarias do Palácio da Justiça, dos muitos Cafés de encontros na rua Tucumán, dos bares mugrientos de Paseo Colón e da rua Venezuela, da marea humana que marcha apressada nos terminais, a de uma longa conversa no banco de Rafael Castillo, a das muitas esperas na Estación de Once. É também de Sacheri a Argentina violenta das celas da prisão de Devoto, a de um deteriorado Arquivo Central, a da corrupção cometida nos corredores judiciais, a da violação de vida(s), a de um passado de dor guardado em um galpão. De mãos dadas a Benjamín Chaparro, o leitor de La pregunta de sus ojos é conduzido a um universo criado ingeniosamente pelo escritor, a partir de um diálogo forte com a Argentina que o circunda e o interpela. Sacheri mostra-nos que sua literatura nasce de elementos da cotidianidade, do extraordinário, como o próprio autor afirma, obtido a partir do ordinário, rotineiro, comum. É tão só por meio de uma mirada atenta a estes momentos peculiares inseridos no banal e costumeiro que nasce a centelha para a escritura literária – a sua e a de seu próprio personagemautor Benjamín. O artístico, nesta medida, tem o poder de trazer a um primeiro plano episódios que antes passariam desapercebidos, mas que encontram espaço de manifestação e (re)criação graças a sua abordagem via literatura. 119 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AQUINO, Rubim Santos Leão de; LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de; LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. 11 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. ARFUCH, Leonor. Violencia política, autobiografía y testimonio. In: SELIGMANNSILVA, Márcio. GINZBURG, Jaime. FOOT HARDMAN, Francisco (Org.). Escritas da violência, vol.2: representações da violência na história e na cultura contemporâneas da América Latina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p.13-23 BAJTÍN, Mijaíl. El cronotopo. In: Teoría de la novela: Antología de textos del siglo XX. Enric Sullà, ed. Barcelona: Crítica, 2001. p. 63-68. BAL, Mieke. Teoría de la narrativa (una introducción a la narratología). Traducción de Javier Franco. Ediciones Cátedra, 1995. BENJAMIN, Walter. 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Roteiro: Eduardo Sacheri e Juan José Campanella; baseado no romance La pregunta de sus ojos, de Eduardo Sacheri. Atores: Ricardo Darín (Benjamín Espósito), Soledad Villamil (Irene Menéndez), Pablo Rago (Ricardo Morales), Javier Godino (Isidoro Gómez) e Guillermo Francella (Sandoval). 123 APÊNDICE A LINHA DO TEMPO EM LA PREGUNTA DE SUS OJOS ANO EPISÓDIO OCORRIDO NO ROMANCE 1966 Ricardo Morales conhece Liliana Colotto. 1967 Chaparro conhece Irene. 1968 1972 1973 1976 Morte de Liliana. Chaparro conhece Ricardo Morales, o viúvo da vítima. Ditadura autointitulada “Revolução Argentina” (1966 – 1973) Governos de: Onganía (1966 – 1970) Levingston (1970 – 1971) Lanusse (1971 – 1973) Isidoro Gómez é preso depois de uma briga em um trem. Isidoro Gómez é liberado da prisão. Desaparecimento de Nacho, primo de Sandoval. Chaparro foge de Buenos Aires a San Salvador de Jujuy, acusado da morte de Isidoro Gómez. 1982 EPISÓDIOS HISTÓRICOS REFERIDOS NO ROMANCE Ditadura militar autointitulada “Processo de Reorganização Nacional” (1976-1983) Morte de Sandoval. Guerra das Malvinas entre Inglaterra e Argentina Chaparro volta a Buenos (1982) Aires para o enterro de seu amigo. 124 1983 Chaparro regressa de vez a Buenos Aires. 1991 Irene volta à Secretaria como juíza. 1996 1999 Chaparro recebe a carta de Ricardo Morales, vinte Greve geral contra o anos após o seu último Governo de Carlos encontro com o viúvo. Menem (p.283) Chaparro vai à casa de Morales e descobre o destino de Isidoro Gómez. Chaparro se aposenta e, duas semanas depois, decide escrever um romance sobre a história de Morales. 125 APÊNDICE B Entrevista que se realizó con el escritor argentino Eduardo Sacheri el 16 de junio de 2014, en la ciudad de Buenos Aires, Argentina. 1. Pensando en tu labor de escritor, ¿en qué medida la cotidianidad te sirve como material de creación literaria? En mi caso, me sirve muchísimo. Te diría que es casi un objetivo mío cuando escribo moverme dentro de ese mundo de lo cotidiano, pero porque creo que mi interés es encontrar… o digamos plasmar en mis libros mi modo de entender la realidad. A mí me parece que lo cotidiano es materia literaria, es material del arte. En todo caso, lo que lo vuelve material artístico, material literario es la detención de la mirada del autor. Tu vida, mi vida… probablemente estén constituidas por un montón de momentos simples, rutinarios, anodinos, poco interesantes. Pero, sin embargo, hay momentos que tienen una complexidad o una riqueza o una profundidad especialísima. No necesariamente momentos límites de la vida… conozco a esta persona o no la conozco, me caso o no me caso, tengo un hijo o no lo tengo, sin duda, eso también… pero, tal vez, insisto, son momentos de una particular clarividencia o de tomar conciencia de ciertas cosas o ubicarse frente a la vida de determinado modo, que a veces tiene que ver con que procesemos de otro modo recuerdos que tenemos y nos paramos en otro sitio. Por ejemplo, en La pregunta de sus ojos, Benjamín tiene una determinada memoria sobre su pasado. Escribir un libro, terminar de escribir un libro, terminar de cerrar ese pasado, de que la vida de estas personas que… lo ubica en otro sitio y puede por primera vez hacer lo que no fue capaz de hacer en treinta años, de enfrentar a esta mujer y decirle lo que siente por ella. Eso es artístico para mí, para escribirlo, y para un lector, para leerlo. 2. Sobre tu biografía, ¿tu formación académica como licenciado en Historia contribuye en alguna medida a la labor de escritor? Yo creo que sí, porque atañe a la verosimilitud de lo que vas a contar. Si yo voy a contar… un ejemplo, que La pregunta de sus ojos está situada en la Argentina de 126 los años sesenta y setenta, los sucesos históricos son un telón de fondo, en general, no aparecen en primer plano. Mi protagonista no tiene una acción política, una militancia, un compromiso. Sin embargo, lo que sucede en la política argentina los afecta, pero también los afectan las costumbres de su época, el lenguaje de su época. Sus horizontes de vida están limitados por la cultura y la sociedad de su tiempo. Sus prácticas, sus modos de relacionarse con una mujer, lo que se le dice o no se le dice a una mujer, por ejemplo. Esta historia no podría situarse en la actualidad, porque hoy en día el silencio no es una opción o lo es mucho menos. Habría que justificarlo de otro modo en el personaje, que haría algo mucho más enfermizo al personaje. En cambio, en los años sesenta, una mujer comprometida con otro tenía una sacralidad, era intocable. Y bueno, eso uno lo saca de la Historia, de conocer Historia. 3. Es de gran importancia tu obra contística, constituida a partir de relatos futbolísticos. ¿Identificas una razón para que tu producción literaria priorice los cuentos en relación con las novelas? Yo creo que tiene que ver con mi lenta, cómo decirte, con mi lenta construcción como escritor. Yo no aprendí a ser escritor. Se nota (se ríe). Vos imaginás que un licenciado en Historia que escribe trabajos académicos para su comunidad de colegas, que siempre ha leído mucha ficción, cuentos y novelas, y que a los 26, 25… 26 años siente el deseo de escribir ficción. Este es mi punto de partida: no sé hacerlo. Siento que un cuento es más abarcable, las fronteras del cuento son más abarcables que las de una novela. Digamos, tiene sus propios desafíos. No digo que es más fácil escribir un cuento que una novela, pero los límites están más cercanos. Puede funcionar o no funcionar, pero es un éxito o un fracaso que se mide en horas de trabajo, en días de trabajo. No en años, o en meses o en años de… Entonces yo sentí en ese escritor y experto que era… yo voy a escribir un cuento y terminarlo. Terminaba bien o terminaba mal, lo había logrado o no había logrado, pero en una… Mis primeros cuentos están escritos en una noche, en un espasmo de necesidad, más allá de la corrección que tuvieron después, que ahí sí le aplicaba en todo caso ese trabajo artesanal que uno tiene en los trabajos académicos, de mejor este… mejor esta palabra… Ese método, si querés, yo ya lo traía de mi trabajo académico, 127 pero esa necesidad, por eso digo como un espasmo… necesito escribir y terminar. Yo podía resolverlo en los cuentos y no en una novela, porque en una novela vos estás obligado a la insatisfacción de no terminar, de avanzar y seguir avanzando, y seguir internándote en algo a ciegas, sin punto de referencia, porque las dimensiones son mucho mayores. Yo, por eso, después de tres libros de cuentos, recién me sentí mínimamente habilitado para intentar una novela. Y, sin embargo, fijate como a mi protagonista lo puse a escribir una novela, como un modo de exorcizar mis propios temores y de poner sobre sus espaldas dudas que eran mías. Aun después de tres libros. 4. También con respecto a un aspecto biográfico y volviendo a La pregunta de sus ojos, ¿hay relación entre el periodo en el que trabajaste en un juzgado y la motivación para escribir la novela? Mira, yo trabajé en el Juzgado entre el año 87 y el 91. Fueron cinco años. Y fue un trabajo muy enriquecedor para mí. De hecho, en algún momento pensé en estudiar Derecho o Abogacía como para continuar una carrera en el poder judiciario. No lo hice, porque me gustaba mucho trabajar en la Justicia pero me resultaba muy tedioso el estudio del Derecho. Como en la facultad de Derecho en la Universidad de Buenos Aires, o sea… en Historia todo eran dudas, preguntas, inquietudes, era muy interesante, mientras que en Derecho era todo monótono, aburrido, memorístico, reiterativo, ¿me entendés? Entonces finalmente abandoné ese trabajo y me fui a trabajar, mientras terminaba mis estudios, en otros lugares que no tienen nada que ver. Y para mí fue una gran pérdida dejar de trabajar en ese… porque trabajar en un Juzgado es muy estimulante, práctico y estimulante al mismo tiempo. Yo creo que en algún punto, inventar esta historia, porque la historia es inventada, fue un modo de saldar ese duelo, de volver a ese mundo y despedirme bien. De hecho, no he vuelto a escribir sobre el mundo judiciario. No lo necesité. Pero, digamos, para mí fue una muy mala decisión, viéndola en los años siguientes, yo me arrepentí mucho de haber dejado este trabajo. Recién me reconcilié con la decisión, cuando me di cuenta de que me gustaba mucho dar clases de Historia y cuando escribí esa novela. Fue como un modo de cerrar esa, digo, escribir es un modo de dialogar con 128 tu propia vida y a veces saldar ciertas deudas. Bueno, esa novela fue, de cierto modo, un saldar esa deuda. 5. Pero los problemas en este espacio también aparecen en la novela, la violación a la ley… Sí, porque…, digamos, en el Juzgado en que a mí me tocó trabajar, por suerte, me tocó buena gente, gente comprometida con su trabajo y que quería hacer bien las cosas. Pero en el medio de un mundo de burocracia e ignorancias y cosas mal hechas y sobre todo una lentitud y una inaptitud muy fuerte. Pero, por suerte, yo sentía que mi deseo de trabajar bien se amparaba en gente que trabajaba bien y me enseñaba a trabajar bien. Por eso, la novela está dedicada, no sé si te has fijado, al final de la novela hay una nota a mis compañeros, porque yo sentí que, si bien los personajes son ficticios, vos fijate, ¿qué intentan esos empleados judiciales de La pregunta de sus ojos? Intentan hacer justicia, intentan contraponer, y a veces con decisiones levemente ilegales e intentan sobreponerse a lo que está malhecho. Y mis personajes también. 6. ¿Y hay aquellos que están en contra a la justicia, al encuentro de la verdad del crimen? Bueno, eso es algo que yo siento que en mi país es muy fuerte también. Somos una sociedad que se lleva muy mal con la ley, con la noción de ley, yo no digo con la ley escrita, concreta y… Somos extremadamente individualistas, caóticos, egoístas. Entonces, esto de aceptar que hay una ley que tengo que tolerar y respetar porque es una ley, nos cuesta mucho procesar. Se ve en cosas menores, como manejamos en la calle, y se ve en cosas más profundas, como esto de, el modo en que el asesino logra amparo para salir de la cárcel. 7. Además de este periodo en el que trabajaste en el juzgado, ¿identificas algún otro elemento biográfico en la novela? 129 Creo que no, tal vez… Geográficamente mi protagonista vive en Castelar, que es el mismo pueblo en que vivo yo, y viaja a los Tribunales en el mismo tren, donde han detenido en la novela al asesino, no detenido como en la película, sino detenido por accidente en un tren. Bueno, pero eso tiene que ver con que encontrar lugares familiares me parece que sea más sólido a la narración. Si yo tuviera que inventar una persecución en las calles de Rio de Janeiro, no me atrevería porque no conozco Rio de Janeiro. Y no me serviría google maps para decirme cruce a esta calle y encuentre esta otra calle. No conozco los tiempos, no conozco los olores, no conozco las fisionomías de las personas. Por eso prefiero que las geografías tengan que ver con los lugares que conozco. 8. ¿Tuviste alguna influencia estética, literaria que reconozcas conscientemente en la obra? Mira, yo siento que como... para mí escribir es una prolongación del acto de leer. Me expuse a escribir por la simple voluntad de experimentar más profundamente ciertos placeres lectores, pero con esa sensación de, viste que vos como lector podéis comprometerte mucho con una historia pero hay ciertos límites a tu labor como lector, estancados por la propia historia que se está poniendo ahí el autor. Yo sentía… ah, pero si yo fuera el autor iría para allá o me gustaría leer una historia que tuviera algo que ver con eso pero no tanto… Yo siento que me puse a escribir, o mejor, escribo y leo lo que tengo ganas de leer. Porque te hago todo este largo prólogo, porque siento que mis influencias son los escritores que me encantó leer. No sé si escribo como ellos, no creo poder escribir como ellos, pero sí siento que en la mezcla que tengo en la cabeza, de todos los autores que me encantó leer a lo largo de la vida, hay algo que se trasmite de algún modo, pero no tengo muy claro cómo y tampoco estoy muy interesado en averiguarlo, porque siento que le quitaría el elemento lúdico en juego, que es tan importante. Yo siento que esto me sale y no quiero saber muy bien por qué me sale, porque quiero que me siga saliendo. 9. ¿Crees que La pregunta de sus ojos tiene algo del género policial o género negro? 130 Yo creo que no. Yo creo que convertimos a la película en un policial, pero para mí la novela no lo tiene. Para mí es una novela con un crimen, pero no es un policial… ¿Sabes por qué digo que no? Porque hay un elemento de azar que en policiales, digamos, que la literatura policial pretende que no exista. O sea, creo que una de las bases de los policiales… hay una investigación consciente que se le muestra más o menos al lector y hay una serie de encadenamientos causales. Pero vos, fijate de lo que hablamos antes… ¿cómo detienen al sospecho? De casualidad. Se encuentra perdido en la nada, lo han dejado de buscar y de repente lo detienen porque se golpea con un inspector de trenes en un tren. Hay un elemento accidental muy fuerte. Del mismo modo, al final de la historia, quien le pone la verdad frente a los ojos a Benjamín es el viudo, el carcelero, porque necesita que lo ayude a saldar esa realidad que construyó en el campo. ¿Vos la viste en la película? Porque estos son los dos cambios más grandes, porque Campanella me pidió que lo convirtiéramos en un policial, entonces, por eso, la detención no es accidental, sino lo van a buscar y tuve que escribir toda una serie de escenas que condujesen al estadio con esa cosa del policial de te muestro las pistas – en ese caso el apellido de jugadores de fútbol, pero te lo muestro así con ese pase de magia de un mago de… lo ves pero no lo ves y te lo muestro solo en la escena final para que vos vayáis al estadio con esta carga emotiva de ¡uy! Me acabo de dar cuenta. Y en el final quien decide ir al campo a contestarse a sus preguntas es Benjamín, mientras que en la novela el motor no es Benjamín. El motor es el viudo que dice voy a morir, por lo tanto voy a matar a ese hombre, pero no quiero que la gente de este pueblo no entienda nada y me considere un monstruo. Prefiero que no encuentren nada y voy a pedir ayuda a ese tipo. Y ahí entra un elemento del azar en el hecho de que los sucesos de la novela terminan en el año 96 y algunos años después Benjamín decide escribir la historia, mientras que en la película se utiliza la indagación para la novela, es la que motiva al mismo tiempo en ir a buscar a la verdad al campo. Por eso, digo, para mí yo no encuentro casi elementos de policial clásico en la novela. 10. En mi lectura identifico dos tramas paralelas en la novela: una que se relaciona al crimen de la joven y otra que se relaciona al amor de Benjamín por Irene. ¿Identificas alguna relación de estas dos tramas y las dos voces que 131 narran en la novela? Porque son dos voces, una del narrador externo y otra del propio Chaparro… ¿Hay relación entre estas dos tramas y las dos voces? Como te contaba rato atrás, al momento de escribir la novela… En realidad, la historia del crimen, por llamarlo como vos lo has identificado, yo hacía muchos años que la tenía dando vueltas en la cabeza, pero me resultaba muy densa para escribirla, en el sentido, yo había pensado, esto lo va a escribir un empleado judicial, y no va a contar, yo creo que, bueno, lo cuenta un narrador omnisciente, lo cuenta el viudo... No lo puede contar el asesino, porque ve poco, digamos, hay una cuestión de, si lo va a contar un personaje tiene que conocer suficiente de lo que ha sucedido. Entonces, lo va a contar un empleado judicial jubilado. Y yo pensaba… ese hombre no tiene nada que hacer y va a contar esa historia. Esa historia que tiene un final terrible. Decidí que lo contara un empleado judicial para que el empleado y el lector se sorprendieran con el mismo final. Te digo que en los policiales que el narrador sepa y el lector no a mí me suena como una estafa, como si el narrador sabe todo desde el principio, por qué no… no sé cómo explicarte, no me gusta cuando… Te digo no, el narrador de la historia del crimen se sorprende junto con el lector, se encuentra con esa casa, con ese cadáver, con ese galpón y adentro del galpón una jaula y dentro de la jaula otro cadáver y ahí entiende todo. Y ahí termina la historia. ¡Qué historia triste! ¡Qué historia oscura! Yo no quiero pasarme un año escribiendo esto que termine así. Di vueltas, empecé, fracasé, empecé, fracasé, hasta que dije este tipo… digamos, vamos a encender una luz. Vamos a iluminar de algún lado esta escenografía, y la luz viene de una mujer que está fuera de esta trama, porque la novela está fuera de trama. En la película está dentro de la trama y en la novela está fuera de la trama. Está en la trama de la vida de él, pero no en la trama del medio Judicial, porque en la novela viste que está enamorado de ella y la saca encima. La aleja. Entonces yo pensé la va… va a ser como una extensión permanente de su vida y al final de la novela va a hablar con ella. Y nunca nos vamos a enterar de que lo que ella le dice. Lo único que sabemos es que le va a hablar. Entonces es una historia que va a envolverla a la otra. Entonces, una historia la va a contar Benjamín, porque es su novela, es su primera novela, su única novela, y la va a contar y va a hablar en primera persona y va a tener un determinado nivel de lenguaje, ya no, porque no se piensa escritor, es una 132 especie de memoria. Y por fuera de él, un narrador omnisciente va a contarlo a él mientras escribe la novela. De vez en cuando, en tiempo presente, igual el pretérito que va a usar Benjamín para contar ese pasado, en el presente, ese narrador omnisciente sabe cosas de Benjamín que Benjamín no dice de sí mismo. A veces Benjamín habla en primera persona y apenas alude a Irene, porque en su novela no va a perder jugando a sus sentimientos, pero el narrador omnisciente sí se anima, y a veces hay una contradicción entre lo que Benjamín dice de sí mismo en relación a Irene y lo que el narrador sabe que Benjamín habla sobre Irene. No sé si te he contestado a tu pregunta. 11. En la novela que se propone construir, el personaje Benjamín deja explícitas todas sus angustias en cuanto escritor, lo que garantiza un interesante tono metanarrativo a La pregunta de sus ojos. ¿Compartes las dudas de Chaparro? ¿Hay algo del escritor Eduardo en el escritor Benjamín? Todo. Sobretodo el escritor Eduardo del año 2004. Ahora me siento más seguro. Diez años atrás no, y menos para una novela. Sin duda, esta que tenéis vos en la cartera es mi cuarta novela (se refiere a “Ser feliz era esto”, su nueva novela). Y ya van cinco libros de cuentos, artículos de prensa. Pero ese Eduardo es un escritor que todavía se siente muy inseguro. Con eso de tener una formación académica, a mí me costó mucho reconsiderarme con la idea de que puedo ser escritor sin tener un curso universitario que me habilite para serlo. Ahora está, pero en ese momento me lo pensaba mucho. Entonces, me sentía muy cerca de ese improvisado de escritor, que era Benjamín. 12. ¿Puedes identificar alguna estrategia de forma general para la construcción de tus personajes? Mira, hay algo que a mí me importa mucho en mis personajes, que es como hablan. Hay un escritor argentino que yo admiro mucho que es Osvaldo Soriano. No sé si lo has leído. A mí me gustan mucho las novelas de Osvaldo Soriano, me gustan mucho los personajes de sus novelas. Te puedo decir que Soriano hacía algo con una enorme maestría: él jamás describe a sus personajes. No dice ni físicamente cómo 133 son, ni describe sus emociones, pero los pone a hablar. Y, en lo que dicen, se construyen para el lector. Y eso para mí es esencial, porque eso es lo que determina la coherencia de un personaje, su modo de hablar. Te doy un ejemplo en La pregunta de sus ojos, Benjamín y Pablo Sandoval son muy amigos. Jamás se dicen casi nada cariñoso. Se insultan, se hacen burla, sin embargo, creo que nadie duda que se quieren mucho, por como se burlan, como se insultan o por ciertos actos mínimos que tienen, de los cuales hablan muy poco. Entonces, para mí, si a lo mejor sigue una preocupación que recorre mi literatura es que los personajes sean personas con cierta solidez en su modo de ser y en su modo de hablar. 13. ¿Encuentras alguna relación entre el bloqueo del personaje de realizarse sentimentalmente, de concretizar su amor, con el problema de la justicia desestructurada, que surge en la narrativa a partir del desarrollo del caso de la muerte de Liliana? Hablaste un poco sobre eso, que Benjamín solo consigue concretizar su amor cuando organiza un poco esa historia que está desordenada en su cabeza, el caso de Liliana… Para mí, y lo digo como lector, supongo que yo escribí el libro, ya no tengo chances, pero… Si me preguntás a mí como lector, yo creo que en esa novela hay tres hombres que aman de manera muy diferente entre sí. Uno ama de una manera horrenda y monstruosa, que es Isidoro Gómez. Es incapaz de tolerar la frustración de que esa mujer no lo ama. Entonces es capaz de atacarla, violarla y asesinarla antes de que, con tal de que no pertenezca a otro. Después está el modo de amar de Ricardo Morales, que es un modo fidelizado y cristalizado. Se enamora de una mujer, para él inalcanzable, que de modo milagroso se enamora de él y la tragedia lo inscribe para siempre en ese presente. Y vivir en ese presente, lo que el tipo le permite a cada día levantarse e ir a darle de comer al asesino que tiene escondido, o sea, permanecer en ese, digamos, perpetuar ese castigo es un modo de perpetuar su situación sentimental con Liliana. Es capaz de renunciar a todo futuro con tal de conservar lo que sea, las hilachas de ese presente. Y el modo de Benjamín, me parece que es un tercer modo, que es el modo, que es el hecho de cambiar por una mujer. Me parece que Benjamín después de escribir la no… escribir la novela es un modo indirecto de volver a su propio amor, y a todo lo que no fue capaz de hacer por 134 ese amor. Pero el desenlace de esos dos muertos, para mí, vuelvo a decir, para mí simplemente como lector, le dice… yo no quiero ser como esos dos, y a mí manera me parezco bastante. O sea, mi amor callado es enfermizo. Mi amor callado se ha perpetuado en esos treinta años, no he sido capaz de cambiar, ni de hacer nada para cambiarlo para mejor. 14. Esta cuestión del castigo, que hablaste, es un tema que actualmente se discute mucho en Brasil, cuando uno, con sus propias manos… Aquí se le suele llamar Justicia por manos propias. Entonces, Ricardo Morales, el viudo, hace justicia con sus propias manos cuando se da cuenta de que no hay como seguir el camino institucional, para que la ley se cumpla. ¿Crees que Morales termina por castigarse a sí mismo cuando actúa para que el crimen no quede impune? Yo creo que sí. Yo creo que, en realidad, la facha institucional desencadena una tragedia mucho peor, aún que la tragedia inicial de la muerte de Liliana, porque tanto el viudo como el asesino, digamos, también la situación de detención del asesino, y hasta su muerte, son inhumanas a su manera. Y el hecho de Morales reducido a ser carcelero a la perpetuidad, para mí es inhumano. O sea, para mí, aquí en la Argentina me preguntaron mucho cuando salió la película sobre la justicia... Y lo que yo siento es que no puedo tomar partido y ni puedo decir si está bien o está mal, si yo lo haría. No tengo ni idea qué haría yo. A mí me… La primera imagen que me viene de esa novela es la de las jaulas, y la del hombre afuera y del hombre adentro. Y los dos. Y da lo mismo de cuál está, del lado afuera o del lado adentro. ¿Conoces el cuento El hombre? Te lo digo porque la última frase de ese cuento que es algo así como a fin de cuentas importa poco quién le da de comer a quién a través de las rejas. Ese cuento yo lo escribí cuando tenía en mente la novela pero no me animaba a escribir la novela. Te lo digo para que lo sepas porque si lo queréis incorporarlo de alguna manera. Con eso de que quería escribir la novela pero no me animo a escribir novelas, digo, voy a contar un día en la vida de Morales y Gómez. No sé, el cuento simplemente, Morales se despierta en el campo, odiando estar ahí, odiando la lluvia, soñó con Liliana, se levanta, desayuna, se va a trabajar, enciende el motor de su viejo auto porque necesita que caliente, prepara su desayuno, camina a través 135 del campo, abre los candados, o sea, la misma escena que en la novela hará Chaparro ese mismo recorrido… le da de comer a Gómez… levántese, Gómez, le dice, le cambia la bandeja de comida, cierra los candados, se vuelve a su casa y se va a trabajar. Te digo porque si queréis leer el cuento... 15. ¿Pero qué piensas sobre el castigo como reparación a un daño hecho? Yo creo que el castigo tiene que existir… creo que el no castigo lo único que hace es empeorar las tragedias o hacer más inhumano según los castigos. Me parece que en eso soy bastante, cómo explicarte, bastante occidental y liberal, al estilo siglo XVIII, quiero decir, me parece que los seres humanos tendemos a ser muy crueles unos con otros y la ley es una de las pocas cosas que detienen nuestra parte más oscura y más oprobiosa y más terrible. Pero que cuando quedamos librados a nuestros impulsos somos peores. 16. ¿Y la justicia que se hace por las propias manos? ¿Ese tipo de castigo? Es que no es justicia. Para mí la clave es que sea social, que la sociedad sea capaz de responder, porque si no, solo hay tragedia, todo es peor. Yo no defiendo, no justifico el…, para mí es un oxímoron eso de justicia con manos propias. No hay modo de privatizar la justicia. El acto privado no es justicia a nadie. No es lo mismo. 17. ¿Qué importancia tienen los recuerdos en tu obra? Porque al final de la novela, hay una nota en la que haces referencia a la Argentina de los años setenta que surge como telón de fondo de La pregunta de sus ojos. ¿Qué importancia tiene ese elemento histórico tan importante al país en la constitución de la novela? No es casual que yo estudié Historia. Para mí es muy importante… una cosa es lo que hemos vivido... O sea, no somos tanto lo que hemos vivido, sino lo que recordamos, según qué recordamos y cómo recordamos, nos ubica en la vida. Me parece que eso nos pasa como persona y creo que nos pasa también como sociedad. Por eso es tan importante indagar sobre el pasado, hacernos preguntas 136 complejas sobre el pasado, no comprar miradas simplistas sobre el pasado. Buenos, malos, héroes, villanos… o sea, no me gustan las miradas facilitadoras del pasado, exculpatorias del pasado. Y me parece… No es casual que la novela se sitúe antes de la dictadura militar argentina… Porque en la Argentina hay como un fácil consenso de…, digamos, Argentina tuvo una salvaje dictadura, probablemente la peor de América Latina, del 76 al 83. Maravillosamente fuimos capaces de recuperar la democracia y juzgar a los militares que habían violado los derechos humanos, en un proceso de idas y vueltas. Fue muy complejo. Fueron a juicio, después otro presidente perdonó a esos militares, después volvieron a ser encarcelados. Pero la sociedad argentina se auto disculpó muy fácilmente, se perdonó a si misma muy fácilmente, como los culpables son los militares. Nosotros no tuvimos nada que ver con nada. Como si los militares hubieran bajado de platos voladores desde otro planeta y de repente se encarnasen en Argentina. Y eso para mí es un error de la memoria histórica, el no hacerse cargo de esa Argentina, violenta, enemiga de la justicia, dispuesta a considerar al bando propio como dueño de toda la verdad, y sobre esa Argentina intolerante y sangrienta que vienen los militares, a llevar el baño de sangre a límites de una orgía de violencia. Y sin embargo me pasó que más de uno me dijera ¿y por qué no situaste la historia a partir del 76? Era un modo de decirme no te metás en la época anterior, y para mí hay que meterse, hay que aceptar que la Argentina era, antes del 76, violenta, sangrienta, intolerante, agonística. Sí éramos. Por algo vinieron los militares. Pero mi opinión es minoritaria. Es mucho más tranquilizador pensarnos inocentes, puros y buenos y víctimas, sobre todo, víctimas, cuando en realidad, digamos, eso de que consideremos a todos víctimas no sea... Yo puedo decir, yo, cuando empezó la dictadura tenía nueve años. 137 APÊNDICE C Entrevista realizada com o escritor argentino Eduardo Sacheri no dia 16 de junho de 2014, na cidade de Buenos Aires, Argentina. (N. do T.) 152 1. Pensando em seu trabalho de escritor, em que medida a cotidianidade lhe serve como material de criação literária? No meu caso, me serve muitíssimo. Eu te diria que é quase um objetivo meu quando escrevo mover-me dentro desse mundo do cotidiano, porque acho que meu interesse é encontrar… ou digamos plasmar em meus livros meu modo de entender a realidade. Acredito que o cotidiano seja matéria literária, material de arte. Em todo o caso, o que o converte em material artístico, material literário, é a detenção pelo olhar do autor. Sua vida, minha vida… provavelmente estejam constituídas por um montão de momentos simples, rotineiros, anódinos, pouco interessantes. No entanto há momentos que têm uma complexidade ou uma riqueza ou uma profundidade especialíssima. Não necessariamente momentos limites da vida… conheço esta pessoa ou não a conheço, me caso ou não me caso, tenho um filho ou não o tenho, sem dúvida, isso também… mas, talvez, insisto, são momentos de uma particular clarividência ou de tomar consciência de certas coisas ou situar-se diante da vida de determinado modo, que às vezes tem a ver com que processemos de outro modo lembranças que temos e paramos em outro lugar. Por exemplo, em La pregunta de sus ojos, Benjamín tem uma determinada memória sobre seu passado. Escrever um livro, terminar de escrever um livro, terminar de fechar esse passado, de que a vida dessas pessoas que… o situa em outro lugar e assim pode pela primeira vez fazer o que não foi capaz de fazer em trinta anos, enfrentar esta mulher e dizer-lhe o que sente por ela. Isso é artístico para mim, para escrevê-lo e, para um leitor, para lê-lo. 2. Com relação a sua biografia, sua formação acadêmica como licenciado em História contribui de alguma forma em seu trabalho de escritor? Entrevista com tradução nossa. Nela, buscamos manter, ao máximo possível, a proximidade com o que disse o autor na entrevista original (Ver apêndice B), o que inclui reformulações e titubeios próprios da fala. 152 138 Acredito que sim, porque se relaciona com a verossimilitude daquilo que você vai contar. Se eu vou contar… um exemplo, que La pregunta de sus ojos está situada na Argentina dos anos sessenta e setenta, os fatos históricos são um pano de fundo, de forma geral, não aparecem em primeiro plano. Meu protagonista não tem uma ação política, uma militância, um compromisso. No entanto, o que sucede na política argentina lhes afeta, mas também lhes afetam os costumes de sua época, a linguagem de sua época. Seus horizontes de vida estão limitados pela cultura e pela sociedade de seu tempo. Suas práticas, seus modos de relacionar-se com uma mulher, o que se diz ou não se diz a uma mulher, por exemplo. Esta historia não poderia estar situada na atualidade, porque hoje em dia o silêncio não é uma opção ou é muito menos. Deveria estar justificado de outro modo no personagem, o que faria do personagem algo muito mais enfermiço. Por outro lado, nos anos sessenta, uma mulher comprometida com outro tinha uma sacralidade, era intocável. E bom, isso alguém depreende da História, de conhecer História. 3. É de grande importância sua obra contística, constituída a partir de relatos futebolísticos. Identifica alguma razão para que sua produção literária priorize os contos em comparação aos romances? Eu acho que tem a ver com minha lenta, como te digo, com minha lenta construção como escritor. Eu não aprendi a ser escritor. Nota-se (sorri). Imagine você que um licenciado em História, que escreve trabalhos acadêmicos para sua comunidade de colegas, que sempre leu muita ficção, contos e romances, e que aos 26, 25… 26 anos sente o desejo de escrever ficção. Este é meu ponto de partida: não sei fazêlo. Sinto que um conto é mais abarcável, as fronteiras do conto são mais abarcáveis que as de um romance, quero dizer, tem seus próprios desafios. Não digo que seja mais fácil escrever um conto que um romance, mas os limites estão mais delimitados. Pode funcionar ou não funcionar, mas é um êxito ou um fracasso que se mede em horas de trabalho, em dias de trabalho. Não em anos, ou em meses ou em anos de… Então eu senti nesse escritor e especialista que era… eu vou escrever um conto e terminá-lo. Terminava bem ou terminava mal, havia conseguido ou não havia conseguido, mas em uma… Meus primeiros contos estão escritos em uma noite, em um espasmo de necessidade que está para além da correção que tiveram depois, 139 que aí sim se aplicava em todo o caso esse trabalho artesanal que se tem nos trabalhos acadêmicos, de melhor este... melhor esta palavra… Esse método, vamos dizer, eu já trazia de meu trabalho acadêmico, mas essa necessidade, por isso digo como um espasmo… necessito escrever e terminar. Eu podia resolvê-lo nos contos e não em um romance, porque em um romance você está obrigado à insatisfação de não terminar, de avançar e seguir avançando, e seguir adentrando em algo às cegas, sem ponto de referência, porque as dimensões são muito maiores. Eu, por isso, depois de três livros de contos, recém me senti minimamente habilitado em tentar um romance. E, no entanto, repare como coloquei o meu protagonista para escrever um romance, como um modo de exorcizar meus próprios temores e de colocar sobre suas costas dúvidas que eram minhas. Inclusive depois de três livros. 4. Ainda com respeito a um aspecto biográfico e voltando a La pregunta de sus ojos, existe alguma relação entre o período em que trabalhou em um juizado e a motivação para escrever este romance? Olha, eu trabalhei no juizado entre os anos 87 e 91. Foram cinco anos. E foi um trabalho muito enriquecedor para mim. De fato, em algum momento pensei em estudar Direito ou Advocacia como um modo de continuar uma carreira no poder judiciário. Não o fiz, porque gostava muito de trabalhar na Justiça mas me parecia muito tedioso o estudo de Direito. Como na faculdade de Direito, na Universidade de Buenos Aires, ou seja… em Historia tudo eram dúvidas, perguntas, inquietudes, era muito interessante, enquanto que em Direito era tudo monótono, tedioso, memorístico, reiterativo, você entende? Então finalmente abandonei esse trabalho e fui trabalhar, enquanto terminava os meus estudos, em outros lugares que não tinham nada a ver. E para mim foi uma grande perda deixar de trabalhar nesse… porque trabalhar em um juizado é muito estimulante, prático e estimulante ao mesmo tempo. Eu acho que em algum ponto, inventar esta história, porque a história é inventada, foi um modo de saldar essa dor, de voltar a esse mundo e despedir-me bem. De fato, não voltei a escrever sobre o mundo judiciário. Não necessitei. Mas, digamos, para mim foi uma decisão muito ruim, vendo-a nos anos seguintes, eu me arrependi muito de ter deixado esse trabalho. Recém me reconciliei com a decisão, quando me dei conta de que gostava muito de dar aulas de História e quando 140 escrevi esse romance. Foi como um modo de fechar essa, digo, escrever é um modo de dialogar com a sua própria vida e às vezes saldar certas dívidas. Bom, esse romance foi, de certo modo, uma forma de saldar essa dívida. 5. Mas os problemas neste espaço também aparecem no romance, a violação à lei… Sim, porque…, digamos, no juizado que me coube trabalhar, por sorte, me coube boa gente, gente comprometida com o seu trabalho e que queria fazer bem as coisas. Mas no meio de um mundo de burocracia e ignorâncias e coisas mal feitas e sobretudo uma lentidão e uma inaptidão muito forte... Mas, por sorte, eu sentia que meu desejo de trabalhar bem se amparava em gente que trabalhava bem e me ensinava a trabalhar bem. Por isso, o romance está dedicado, não sei se você se deu conta, ao final do romance há uma nota a meus companheiros, porque eu senti que, ainda que os personagens sejam fictícios, veja você, o que tentam esses empregados judiciais de La pregunta de sus ojos? Tentam fazer justiça, tentam oporse, e às vezes com decisões levemente ilegais e tentam sobrepor-se ao que está mal feito. E meus personagens também. 6. E há aqueles que estão contra a justiça, contra o encontro da verdade do crime? Bem, isso é algo que sinto que também é muito forte em meu país. Somos uma sociedade que lida muito mal com a lei, com a noção de lei, não digo com a lei escrita, concreta e… Somos extremamente individualistas, caóticos, egoístas. Então, isto de aceitar que há uma lei que temos que tolerar e respeitar porque é uma lei, nos custa muito processar. Pode-se ver em coisas menores, como conduzimos na rua, e se vê em coisas mais profundas, como isto de, o modo como o assassino consegue amparo para sair da prisão. 7. Além deste período em que você trabalhou no juizado, identifica algum outro elemento biográfico no romance? 141 Acho que não, talvez… Geograficamente meu protagonista vive em Castelar, que é a mesma cidade em que eu vivo, e viaja a Tribunales no mesmo trem, onde prenderam no romance ao assassino, não preso como no filme, mas preso por acidente em um trem. Bom, mas isso tem a ver com o fato de que encontrar lugares familiares me parece que seja mais sólido à narração. Se eu tivesse que inventar uma perseguição nas ruas do Rio de Janeiro, eu não me atreveria porque não conheço Rio de Janeiro. E não me serviria google maps para me dizer cruze esta rua e encontre esta outra rua. Não conheço os tempos, não conheço os aromas, não conheço as fisionomias das pessoas. Por isso prefiro que as geografias tenham a ver com os lugares que conheço. 8. Você sofreu alguma influência estética, literária que possa reconhecer conscientemente na obra? Veja, eu sinto que... para mim escrever é uma prolongação do ato de ler. Expus-me a escrever pelo simples desejo de experimentar mais profundamente certos prazeres leitores, mas com essa sensação de, você vê que como leitor pode comprometer-se muito com uma história mas há certos limites a sua tarefa como leitor, estancados pela própria história que aí coloca o autor. Eu sentia… ah, mas se eu fosse o autor iria para lá ou gostaria de ler uma história que tivesse algo a ver com isso mas não tanto… Eu sinto que comecei a escrever, ou melhor, escrevo e leio o que tenho vontade de ler. Porque te faço todo este longo prólogo, porque sinto que minhas influências são os escritores que adorei ler. Não sei se escrevo como eles, não acredito poder escrever como eles, mas sim sinto que na mescla que tenho na cabeça, de todos os autores que me encantou ler ao longo da vida, há algo que se transmite de algum modo, mas não tenho muito claro como e também não estou muito interessado em averiguá-lo, porque sinto que eliminaria o elemento lúdico em jogo, que é tão importante. Eu sinto que isto me sai e não quero saber muito bem por que me sai, porque quero que me siga saindo. 9. Você acredita que La pregunta de sus ojos tenha algo de gênero policial ou gênero negro? 142 Eu acredito que não. Eu acho que convertemos o filme em um policial, mas para mim o romance não o tem. Para mim é um romance com um crime, mas não é um policial… Sabe por que digo que não? Porque há um elemento de azar que nos policiais, digamos, que a literatura policial pretende que não exista. Ou seja, acho que uma das bases dos policiais… há uma investigação consciente que se mostra mais ou menos ao leitor e há uma série de encadeamentos causais. Mas você, preste atenção naquilo que falamos antes… como prendem ao suspeito? Por casualidade. Encontra-se perdido no nada, deixaram de buscá-lo e de repente o prendem porque briga com um inspetor de trens em um trem. Há um elemento acidental muito forte. Da mesma forma, ao final da história, quem coloca a verdade diante dos olhos de Benjamín é o viúvo, o carcereiro, porque necessita que o ajudem a saldar essa realidade que foi construída no campo. Você viu no filme? Porque estas são as duas maiores mudanças, porque Campanella me pediu que o convertêssemos em um policial, então, por isso, a detenção não é acidental, e sim vão buscá-lo e tive que escrever toda uma série de cenas que conduzissem ao estádio com essa coisa do policial de te mostro as pistas – nesse caso o sobrenome de jogadores de futebol, mas te mostro assim com esse passe de mágica de um mago de… você vê mas não vê e eu te mostro somente na cena final para que você vá ao estádio com esta carga emotiva de caramba! Acabei de me dar conta. E no final quem decide ir ao campo para responder a suas próprias perguntas é Benjamín, enquanto que no romance o motor não é Benjamín. O motor é o viúvo que diz vou morrer, portanto vou matar esse homem, mas não quero que as pessoas deste lugar não entendam nada e me considerem um monstro. Prefiro que não encontrem nada e vou pedir ajuda a esse homem. E aí entra um elemento de casualidade no fato de que os episódios do romance terminam no ano 96 e alguns anos depois Benjamín decide escrever a história, enquanto que, no filme, a indagação é utilizada para o romance, é a que motiva ao mesmo tempo em ir buscar a verdade no campo. Por isso, digo, para mim quase não encontro elementos do policial clássico no romance. 10. Em minha leitura identifico duas tramas paralelas no romance: uma que se relaciona ao crime da jovem e outra que se relaciona ao amor de Benjamín por Irene. Identifica alguma relação entre estas duas tramas e as duas vozes que 143 narram no romance? Porque são duas vozes, uma do narrador externo e outra do próprio Chaparro… Há relação entre estas duas tramas e as duas vozes? Como te contava um instante atrás, no momento de escrever o romance… Em realidade, a história do crime, por chamá-la como você a identificou, fazia muitos anos que eu a tinha dando voltas na cabeça, mas me parecia muito densa para escrevê-la, no sentido... eu havia pensado, isto vai escrever um empregado judicial, e não vai contar, eu acho que, bom, conta um narrador omnisciente, conta o viúvo... Não pode contar o assassino, porque vê pouco, digamos, há uma questão de, se vai contar um personagem tem que conhecer suficientemente do que aconteceu. Desta forma, vai contar um empregado judicial aposentado. E eu pensava… esse homem não tem nada para fazer e vai contar essa história. Essa história que tem um final terrível. Decidi que a contasse um empregado judicial para que o empregado e o leitor se surpreendessem com o mesmo final. Te digo que nos policiais em que o narrador saiba e o leitor não me soa como uma burla, como se o narrador sabe tudo desde o principio, por que não … não sei como te explicar, não gosto quando… Te digo, não, o narrador da história do crime se surpreende junto com o leitor, se encontra com essa casa, com esse cadáver, com esse galpão e dentro do galpão uma jaula e dentro da jaula outro cadáver e aí entende tudo. E aí termina a história. Que história triste! Que história obscura! Eu não quero passar um ano escrevendo algo que termine assim. Dei voltas, comecei, fracassei, comecei, fracassei, até que disse este homem… digamos, vamos acender uma luz. Vamos iluminar de algum lado esta cenografia, e a luz vem de uma mulher que está fora desta trama, porque o romance está fora da trama. No filme está dentro da trama e no romance está fora da trama. Está na trama da vida dele, mas não na trama do universo judicial, porque no romance você viu que está apaixonado por ela e a afasta. Então eu pensei vai… vai ser como uma extensão permanente de sua vida e ao final do romance vai falar com ela. E nunca vamos saber o que ela lhe falou. A única coisa que sabemos é que vai falar com ela. Desta forma é uma história que vai envolver a outra. Então, uma história será contada por Benjamín, porque é seu romance, é seu primeiro romance, seu único romance, e vai contá-lo e vai falar em primeira pessoa e terá um determinado nível de linguagem, já não, porque não se pensa escritor, é uma espécie de memória. E por fora dele, um narrador onisciente vai contá-lo enquanto 144 escreve o romance. De vez em quando, em tempo presente, igual o pretérito que vai usar Benjamín para contar esse passado, em presente, esse narrador onisciente sabe coisas de Benjamín que Benjamín não diz de si mesmo. Às vezes Benjamín fala em primeira pessoa e somente alude a Irene, porque em seu romance não vai expor os seus sentimentos, mas o narrador onisciente sim se anima, e às vezes há uma contradição entre o que Benjamín diz de si mesmo em relação à Irene e o que o narrador sabe que Benjamín fala sobre Irene. Não sei se respondi a sua pergunta. 11. No romance que se propõe construir, o personagem Benjamín deixa explícitas todas as suas angústias enquanto escritor, o que garante um interessante tom metanarrativo a La pregunta de sus ojos. Compartilha das dúvidas de Chaparro? Há algo do escritor Eduardo no escritor Benjamín? Tudo. Sobretudo o escritor Eduardo do ano 2004. Agora me sinto mais seguro. Dez anos atrás não, e menos para um romance. Sem dúvida, este que você tem na bolsa é meu quarto romance (refere-se a “Ser feliz era esto”, seu novo romance). E já vão cinco livros de contos, artigos de imprensa. Mas esse Eduardo é um escritor que ainda se sente muito inseguro. Com isso de ter uma formação acadêmica, me custou muito reconsiderar-me com a ideia de que posso ser escritor sem ter um curso universitário que me habilite a sê-lo. Agora não, mas nesse momento pensava muito sobre isso. Desta forma, me sentia muito próximo desse improvisado de escritor, que era Benjamín. 12. Pode identificar alguma estratégia de forma geral para a construção de seus personagens? Olha, há algo que me importa muito em meus personagens, que é como falam. Há um escritor argentino que eu admiro muito que é Osvaldo Soriano. Não sei se você já leu. Eu gosto muito dos romances de Osvaldo Soriano, gosto muito dos personagens de seus romances. Posso dizer que Soriano fazia algo com uma enorme maestria: ele jamais descreve seus personagens. Não diz nem fisicamente como são, nem descreve suas emoções, mas os põe a falar. E, naquilo que dizem, se constroem para o leitor. E isso para mim é essencial, porque isso é o que 145 determina a coerência de um personagem, seu modo de falar. Te dou um exemplo em La pregunta de sus ojos, Benjamín e Pablo Sandoval são muito amigos. Jamais se dizem quase nada carinhoso. Se insultam, se zombam, no entanto, creio que ninguém duvida que se querem muito, por como se zombam, como se insultam ou por certos atos mínimos que têm, dos quais falam muito pouco. Então, para mim, se talvez exista uma preocupação que recorre minha literatura é a de que os personagens sejam pessoas com certa solidez em seu modo de ser e em seu modo de falar. 13. Encontra alguma relação entre o bloqueio do personagem de realizar-se sentimentalmente, de concretizar seu amor, com o problema da justiça desestruturada, que surge na narrativa a partir do desenvolvimento do caso da morte de Liliana? Você falou um pouco sobre isso, que Benjamín só consegue concretizar seu amor quando organiza um pouco essa história que está desordenada em sua cabeça, o caso de Liliana… Para mim, e o digo como leitor, considero que eu escrevi o livro e já não tenho chances, mas… Se pergunta a mim como leitor, eu creio que nesse romance há três homens que amam de maneira muito diferente entre si. Um ama de uma maneira horrenda e monstruosa, que é Isidoro Gómez. É incapaz de tolerar a frustração de que essa mulher não o ama. Então é capaz de atacá-la, violá-la e assassiná-la antes de que, de forma que não pertença a outro. Depois está o modo de amar de Ricardo Morales, que é um modo fidelizado e cristalizado. Apaixona-se por uma mulher, para ele inalcançável, que de modo milagroso se apaixona por ele e a tragédia o inscreve para sempre nesse presente. E viver nesse presente, o que lhe permite a cada dia levantar-se e ir dar de comer ao assassino que tem escondido, ou seja, permanecer nesse, digamos, perpetuar esse castigo é um modo de perpetuar sua situação sentimental com Liliana. É capaz de renunciar a todo futuro com tal de conservar o que seja, os fiapos desse presente. E o modo de Benjamín, me parece que é um terceiro modo, que é o modo, que é o fato de mudar por uma mulher. Acredito que Benjamín depois de escrever o ro… escrever o romance é um modo indireto de voltar a seu próprio amor, e a tudo aquilo que não foi capaz de fazer por esse amor. Mas o desenlace desses dois mortos, para mim, volto a dizer, para mim 146 simplesmente como leitor, se diz… eu não quero ser como esses dois, e a minha maneira me pareço bastante. Ou seja, meu amor calado é doentio. Meu amor calado se perpetuou nesses trinta anos, não fui capaz de mudar, nem de fazer nada para mudá-lo para melhor. 14. Esta questão do castigo, da qual você falou, é um tema que atualmente se discute muito no Brasil, quando alguém, com suas próprias mãos… Aqui se costuma chamar Justiça pelas próprias mãos (Justicia con manos propias). Então, Ricardo Morales, o viúvo, faz justiça pelas próprias mãos quando se dá conta de que não há como seguir o caminho institucional, para que a lei se cumpra. Acredita que Morales termina por castigar-se a si mesmo quando atua para que o crime não termine impune? Eu acredito que sim. Eu acho que, na realidade, a fachada institucional desencadeia uma tragédia muito pior, inclusive que a tragédia inicial da morte de Liliana, porque tanto o viúvo quanto o assassino, digamos, também a situação de detenção do assassino, e até sua morte, são desumanas a sua maneira. E o fato de Morales reduzido a ser carcereiro a toda perpetuidade, para mim é desumano. Ou seja, para mim, aqui na Argentina me perguntaram muito quanto saiu o filme sobre a justiça... E o que eu sinto é que não posso tomar partido e nem posso dizer se está bem ou está mal, se eu faria o mesmo. Não tenho nem ideia do que faria eu. Para mim… A primeira imagem que me vem desse romance é a das jaulas, e a do homem de fora e do homem de dentro. E os dois. E tanto faz de qual lado está, do lado de fora ou do lado de dentro. Conhece o conto El hombre? Te digo porque a última frase desse conto que é algo assim como afinal de contas importa pouco quem lhe dá de comer a quem através das grades. Esse conto eu escrevi quanto tinha em mente o romance mas não me animava a escrever o romance. Te digo para que saiba porque se quiser incorporá-lo de alguma maneira. Com isso de que queria escrever o romance mas não me animo a escrever romances, digo, vou contar um dia na vida de Morales e Gómez. Não sei, no conto simplesmente Morales acorda no campo, odiando estar aí, odiando a chuva, sonhou com Liliana, se levanta, toma café, vai trabalhar, liga o motor de seu velho carro porque necessita que ele aqueça, prepara seu café, caminha através do campo, abre os cadeados, ou seja, a mesma cena que 147 no romance fará Chaparro nesse mesmo percurso… dá de comer a Gómez… levante-se, Gómez, lhe diz, lhe troca a bandeja de comida, fecha os cadeados, volta a sua casa e vai trabalhar. Te digo porque se quiser ler o conto... 15. E o que você pensa sobre o castigo como reparação a um dano feito? Eu acho que o castigo tem que existir… acho que o não castigo o único que faz é piorar as tragédias ou fazer mais desumano segundo os castigos. Acredito que nisso sou bastante, como explicar, bastante ocidental e liberal, ao estilo século XVIII, quero dizer, me parece que os seres humanos tendemos a ser muito cruéis uns com os outros e a lei é uma das poucas coisas que detêm nossa parte mais obscura e mais oprobriosa e mais terrível. Mas quando ficamos livres segundo nossos impulsos somos piores. 16. E a justiça que se faz pelas próprias mãos? Esse tipo de castigo? É que não é justiça. Para mim a chave é que seja social, que a sociedade seja capaz de responder, porque se não, só existe tragédia, tudo é pior. Eu não defendo, não justifico o…, para mim é um oximoro isso de justiça com as próprias mãos. Não há modo de privatizar a justiça. O ato privado não é justiça para ninguém. Não é o mesmo. 17. Que importância têm as recordações em sua obra? Porque ao final do romance, há uma nota na qual se faz referência à Argentina dos anos setenta que surge como pano de fundo de La pregunta de sus ojos. Que importância tem esse elemento histórico tão importante ao país na constituição do romance? Não é casual que eu tenha estudado História. Para mim é muito importante… uma coisa é o que vivemos... Ou melhor, não somos tanto o que vivemos, mas o que recordamos, segundo o que recordamos e como recordamos, nos situa na vida. Eu acredito que isso nos passa como pessoas e acredito que nos passa também como sociedade. Por isso é tão importante indagar sobre o passado, fazer-nos perguntas 148 complexas sobre o passado, não comprar olhares simplistas sobre o passado. Bons, maus, heróis, vilãos… ou seja, não gosto de miradas facilitadoras do passado, defensoras do passado. E me parece… Não é casual que o romance se situe antes da ditadura militar argentina… Porque na Argentina existe como que um fácil consenso de…, digamos, Argentina teve uma selvagem ditadura, provavelmente a pior da América Latina, de 76 a 83. Maravilhosamente fomos capazes de recuperar a democracia e julgar os militares que haviam violado os direitos humanos, em um processo de idas e voltas. Foi muito complexo. Foram a julgamento, depois outro presidente perdoou esses militares, depois voltaram a ser encarcerados. Mas a sociedade argentina se autodesculpou muito facilmente, se perdoou a si mesma muito facilmente, como os culpados são os militares. Nós não tivemos nada a ver com nada. Como se os militares tivessem descido em discos voadores vindos de outro planeta e de repente se encarnassem na Argentina. E isso para mim é um erro da memória histórica, o não encarregar-se dessa Argentina, violenta, inimiga da justiça, disposta a considerar o bando próprio como dono de toda a verdade, e sobre essa Argentina intolerante e sangrenta que vêm os militares, para levar o banho de sangre aos limites de uma orgia de violência. E no entanto aconteceu que mais de um me dissesse – e por que você não situou a história a partir de 76? Era um modo de me dizer não se meta na época anterior, e para mim há que meter-se, deve-se aceitar que a Argentina era, antes de 76, violenta, sangrenta, intolerante, agonística. Sim éramos. Por algo vieram os militares. Mas minha opinião é minoritária. É muito mais tranquilizador pensar-nos inocentes, puros e bons e vítimas, sobretudo, vítimas, quando na realidade, digamos, isso de que consideremos a todos vítimas não seja... Eu posso dizer, eu, quando começou a ditadura tinha nove anos.