ser krahô-kanela, prim
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ser krahô-kanela, prim
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS MUSEU AMAZÔNICO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL “SER KRAHÔ-KANELA, PRIMEIRAMENTE, É A GENTE TER CONSEGUIDO VOLTAR PRO NOSSO TERRITÓRIO” KARINY TEIXEIRA DE SOUZA MANAUS 2011 UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS MUSEU AMAZÔNICO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL KARINY TEIXEIRA DE SOUZA “SER KRAHÔ-KANELA, PRIMEIRAMENTE, É A GENTE TER CONSEGUIDO VOLTAR PRO NOSSO TERRITÓRIO” Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Helena Ortolan Matos MANAUS 2011 Ficha Catalográfica (Catalogação realizada pela Biblioteca Central da UFAM) Souza, Kariny Teixeira de S729s “Ser Krahô-Kanela, primeiramente, é a gente ter conseguido voltar pro nosso território” / Kariny Teixeira de Souza. Manaus: UFAM, 2011. 191 f.; il. color. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) Universidade Federal do Amazonas, 2011. Orientadora: Profª. Dra. Maria Helena Ortolan Matos –– 1. Etnografia 2. Povos indígenas – Política social 3. Identidade social I. Matos, Maria Helena Ortolan (Orient.) II. Universidade Federal do Amazonas III. Título CDU 39(043.3) KARINY TEIXEIRA DE SOUZA “SER KRAHÔ-KANELA, PRIMEIRAMENTE, É A GENTE TER CONSEGUIDO VOLTAR PRO NOSSO TERRITÓRIO” Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Aprovado em 09 de novembro de 2011. BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Maria Helena Ortolan Matos Presidente Universidade Federal do Amazonas Prof. Dr. Almir Diniz de Carvalho Júnior Membro Universidade Federal do Amazonas Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira Filho Membro Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional MANAUS 2011 Aos Krahô-Kanela. AGRADECIMENTOS Se cheguei até aqui, foi porque contei com o apoio de diversas pessoas e instituições. Estes agradecimentos certamente não refletirão toda a minha gratidão, mas nem por isso poderia deixar de registrá-los aqui. Aos Krahô-Kanela, cuja luta corajosa foi a motivação principal para a realização desta pesquisa etnográfica. Em especial, ao Argemiro Krahô-Kanela, pelo voto de confiança. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela bolsa concedida, o que permitiu minha dedicação integral ao curso de mestrado. Ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), onde tudo começou.... Especialmente à Sara Sanches, à Laudovina Pereira e ao CIMI - Regional Goiás/Tocantins, pelo apoio à pesquisa. Ao procurador da República do Ministério Público Federal no Tocantins, Dr. Álvaro Lotufo Manzano, pela valiosa contribuição com este trabalho, por autorizar minha consulta aos documentos constante no processo aberto pela PRTO relativo às demandas dos KrahôKanela, por permitir meu acompanhamento na realização de perícia antropológica em novembro de 2008, pela entrevista concedida e pelas conversas informais ao longo de viagens e caronas. Ao Superintendente Regional do INCRA no estado do Tocantins, José Ribeiro Forzani, pela conversa e entrevista concedida. Aos professores do PPGAS-UFAM, cujas aulas contribuíram para meu amadurecimento intelectual. Especialmente ao professor Alfredo Wagner Berno de Almeida, pelo exemplo de que “militância” também pode ser feita através da produção de conhecimento e pela oportunidade singular de atuar como pesquisadora do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. À Maria Helena Ortolan Matos, sou especialmente grata pela orientação acadêmica, por acreditar, desde o início, na relevância deste trabalho e pela relação de confiança e amizade. À Franceane, secretária do PPGAS-UFAM, pela gentileza e solicitude com que sempre me atendeu. Aos professores da banca por suas sugestões e ponderações, enriquecendo ainda mais esta etnografia. A João Pacheco de Oliveira devo ainda minha paixão pela Antropologia, pois suas publicações compuseram o conjunto de minhas primeiras leituras antropológicas; e, ainda por ter me aceitado, como aluna especial, na disciplina Antropologia do Colonialismo, a qual ministrou no âmbito do PPGAS/Museu Nacional no primeiro semestre de 2010. À Almir Diniz de Carvalho Júnior, cuja participação na banca representa meu reencontro com a História. À Patrícia Rodrigues e Júlio César Melatti, pela disponibilidade e gentileza com que responderam as minhas dúvidas. Aos colegas da turma de mestrado com quem compartilhei momentos de discussão teórica, aprendizagem, inquietações e alegrias. A Wellington Antenor pelo incentivo, por parte das fotografias que ilustram o trabalho e pela digitalização dos esquemas genealógicos; ao Iago pela ajuda com os mapas; e Maysa, pela gentileza com que elaborou o abstract. Aqueles que, em momentos distintos desta minha trajetória acadêmica, gentilmente me hospedaram em suas casas: Cimi Norte I, Rosenira, Márcio, Paulino, irmã Primitiva (diretora do Pensionato Lar Gonçalves de Araújo, RJ), Wagner Krahô-Kanela e Argemiro KrahôKanela. Ao Márcio Martins dos Santos, com quem troquei as primeiras ideias sobre os KrahôKanela, antes mesmo de entrar para o mestrado e que, desde então, vem me incentivando e apoiando como um verdadeiro “co-orientador”, meu agradecimento especial. Sem a sua ajuda teria sido muito mais difícil. Obrigada por tudo! A toda minha família (toda mesmo) agradeço pelo porto seguro. Especialmente ao meu pai (in memorian), com quem aprendi a sonhar; à minha mãe, maior responsável pela realização dos meus sonhos; às minhas irmãs, às quais devo, agora compreendo, os primeiros exercícios antropológicos de compreensão das diferenças. Hoje, porém, tenho minha própria família nuclear. Assim, ao Marco Antônio, a quem conheci no meio deste caminho, sou grata pelo seu companheirismo, carinho, apoio, compreensão por conta de minhas ausências e pela paciência naqueles momentos mais complicados da escrita etnográfica. À Sofia, minha filha amada, apelidada de “Sol” pela avó coruja, porque ela é assim, ilumina e aquece todos os nossos dias... A todos, minha gratidão sincera! RESUMO Esta dissertação consiste em uma etnografia da sociogênese do grupo indígena Krahô--Kanela (TO). Pretendo demonstrar como se deu a constituição deste grupo étnico e suas reelaborações identitárias face a um processo de territorialização e mobilização política pela demarcação de sua terra tradicional, por eles denominada Mata Alagada. Analiso também como os Krahô-Kanela operam os critérios político-organizativos de pertencimento e inclusão a este grupo étnico. Para tanto, refletirei sobre o caráter histórico, processual, relacional, situacional, político e simbólico da identidade. Abordarei ainda o processo de reconhecimento étnico e territorial dos Krahô-Kanela, examinando o posicionamento e a intervenção do Estado - mais especificamente da FUNAI, do INCRA e do Ministério Público Federal - em relação à aplicação das políticas relacionadas com direitos étnicos e territoriais, bem como as formas de atuação e mediação por parte de cientistas sociais, entidades da sociedade civil e do movimento indígena em apoio à luta deste grupo. Palavras-chave: Krahô-Kanela, sociogênese, identidade, etnicidade, mobilização, territorialização. ABSTRACT This dissertation consists in a sociogenesis' ethnography of the indigenous group KrahôKanela (TO). The intention is to demonstrate how this group was constituted and their identities reelaboration in front of a process of territorialization and political mobilization for the demarcation of their traditional land, which they call Mata Alagada. I also analyze how The Krahô-Kanela operate the political organizatives criterias of belonging and inclusion to this ethnical group. For this, I am reflecting about the historical, procedural, relational, situational, political and symbolic caracter of identity. I will still approach the process of ethnical and territorial recognition of the Krahô-Kanela, doing an exam of the position and intervention of the Brazilian State - more specifically of Funai, Incra and the Ministério Público Federal (Federal Public Ministry) - in relation to the application of political policies related with ethnical and territorial rights, and also the ways of actuation and mediation of social scientists, entities of civil society, the indigenous movement and their support to the struggle of this group. Keywords: Krahô-Kanela, sociogenesis, identity, ethnicity, mobilization, territorialization. LISTA DE FIGURAS Figura 01 – Mapa com a localização da Terra Indígena Krahô-Kanela.................... 13 Figura 02 – Deslocamento Krahô a partir do século XIX......................................... 34 Figura 03 – Dona Antônia e Alderez Krahô-Kanela................................................. 42 Figura 04 – Esquema genealógico de Florêncio e Alfredo Krahô............................ 50 Figura 05 – Fotografia de Alfredo e Inês.................................................................. 51 Figura 06 – Esquema genealógico do grupo Krahô-Kanela...................................... 53 Figura 07 – O casal Almir Krahô-Kanela e Letícia Karajá....................................... 80 Figura 08 – Fotografias da segunda retomada da Terra Mata Alagada.................... 81 Figura 09 – Mapa dos deslocamentos de Florêncio e do grupo Krahô-Kanela......... 83 Figura 10 – Raimundo Krahô-Kanela e filhos retornando da roça........................... 86 Figura 11 – Audiência Pública para se discutir o direito de posse dos Krahô-Kanela 145 sobre seu território tradicional................................................... Audiência no auditório da Comissão de Direitos Humanos e 148 Legislação Participativa........................................................................ Figura 12 – Figura 13 – Figura 14 – Mobilização em frente a Administração Executiva Regional da FUNAI 151 de Gurupi.................................................................................. Lideranças Krahô-Kanela e representantes do CIMI reunidos com o 154 Senador Paulo Paim............................................................................... LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AER – Administração Executiva Regional (FUNAI) DAF – Diretoria de Assuntos Fundiários CF – Constituição Federal CGEP – Coordenação-Geral de Estudos e Pesquisas (FUNAI) CIMI – Conselho Indigenista Missionário FUNAI – Fundação Nacional do Índio FUNASA – Fundação Nacional de Saúde IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IDAGO – Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MIRAD – Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário MPF – Ministério Público Federal PA – Projeto de Assentamento PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PR-TO – Procuradoria da República no estado do Tocantins TI – Terra Indígena SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................... 013 CAPÍTULO I – AO ENCONTRO DOS KRAHÔ-KANELA..................................... 019 – (RE) CONSTRUINDO OS CAMINHOS DA PESQUISA..................... 020 1.1.1 – (Re) Construindo a inserção em campo................................................... 024 1.2 – POR UMA HISTÓRIA KRAHÔ-KANELA: TRAJETÓRIA E MEMÓRIA............................................................................................... 032 1.2.1 – Florêncio e o povo Krahô......................................................................... 033 1.2.2 – A peregrinação de Florêncio e sua família............................................... 040 1.2.3 – A Terra Mata Alagada e a aldeia do Lago da Praia............................... 044 1.2.4 – “Saímos da terra foi por expulsão mesmo”.............................................. 046 CAPÍTULO II – A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA IDENTIDADE KRAHÔKANELA FACE A UM PROCESSO DE MOBILIZAÇÃO PELA DEMARCAÇÃO TERRITORIAL.............................................................................. 052 – DE KRAHÔ A KANELA A KRAHÔ-KANELA: CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA E CONSOLIDAÇÃO DA TERRITORIALIDADE...... 055 2.1.1 – A vida em Dueré e o início da luta........................................................... 055 2.1.2 – Como caboclos ou como índios: um grupo étnico socialmente distinto 058 2.1.3 – Na Ilha do Bananal................................................................................... 061 2.1.4 – No Projeto de Assentamento Tarumã...................................................... 067 2.1.5 – “Os Marianos”.......................................................................................... 071 2.1.6 – A primeira retomada................................................................................ 073 2.1.7 – No Projeto de Assentamento Loroti......................................................... 075 2.1.8 – Estada na antiga casa do índio em Gurupi.............................................. 078 2.1.9 – A segunda retomada................................................................................. 080 1.1 2.1 2.2 – “TODA NOSSA HISTÓRIA TÁ NELA, NA MATA ALAGADA”.............. 084 2.2.1 – O que significa ser Krahô-Kanela e identificar-se como tal................... 089 2.2.2 – A autoidentificação e o etnônimo Krahô-Kanela..................................... 097 2.3 – REDEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ÉTNICAS................................... 099 CAPÍTULO III – O CAMPO DE ATUAÇÃO INDIGENISTA: VISÕES E ESTRATÉGIAS EM TORNO DO RECONHECIMENTO OFICIAL DOS KRAHÔ-KANELA E DE SEU TERRITÓRIO TRADICIONAL............................... 104 3.1 – O PROCESSO DE RECONHECIMENTO ÉTNICO E TERRITORIAL DOS KRAHÔ-KANELA.............................................. 105 3.1.1 – Dois relatórios antropológicos, ofícios, pareceres e uma única sentença: o não reconhecimento da identidade étnica........................... 109 3.1.2 – Novos caminhos na busca pelo reconhecimento..................................... 125 3.1.3 – Parecer nº 194/CGID/ 2004: “o contraditório foi antecipado pelo próprio órgão indigenista que, ao invés de validar o direito indígena o questionou”............................................................................................... As tênues fronteiras entre a antropologia e o indigenismo................... 132 3.1.4 – 138 3.1.5 -- Negociações e desapropriações para criação da Terra Indígena KrahôKanela....................................................................................................... 143 3.1.6 – Articulando redes sociais em Brasília...................................................... 150 3.2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO DE RECONHECIMENTO E “CRIAÇÃO” DA TI KRAHÔ-KANELA 155 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 162 REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 169 Referências teóricas...................................................................................................... 169 Decretos, documentos, leis e outros mecanismos jurídico-formais......................... 178 ANEXOS........................................................................................... 182 – 13 INTRODUÇÃO Considero este trabalho um exercício de antropologia histórica onde procuro descrever analiticamente a sociogênese do grupo indígena Krahô-Kanela, ou seja, como este foi se constituindo ao longo de uma trajetória marcada por movimentos de territorialização e deslocamentos e por uma incansável luta pela demarcação de seu território tradicional. Os Krahô-Kanela reconhecem como seu território tradicional a área por eles denominada Mata Alagada, situada no município de Lagoa da Confusão, extremo oeste do estado do Tocantins, entre os rios Formoso e Javaé. No interior da citada Terra Indígena, vive, atualmente, uma população de aproximadamente 78 pessoas1, residentes numa única aldeia chamada Lankraré que, segundo me explicaram os próprios indígenas, significa Barreira de Tingui2. Figura 01: Mapa com a localização da Terra Indígena Krahô-Kanela Fonte: Funai, 2006. 1 Número levantado no período da realização do trabalho de campo em janeiro de 2010. Ver anexo 2: População Krahô-Kanela – Aldeia Lankraré (janeiro/fevereiro 2010). 2 Ver anexo 1: Croqui da Aldeia Lankraré. 14 Este grupo étnico3 teve os direitos ao reconhecimento e à demarcação de seu território tradicional4 questionados e negados pelo órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Esta negativa os levou a se articularem, tanto internamente quanto junto ao movimento indígena e setores organizados da sociedade civil a fim de exigir, da parte do Estado, o cumprimento de suas demandas políticas. Neste contexto, minha atividade profissional na época, como membro do Conselho Indigenista Missionário – CIMI5, possibilitou uma atuação direta com o povo por cerca de três anos, o que me desafiou à realização deste trabalho. Pretendo, a partir da pesquisa etnográfica, efetivar reflexões teoricamente embasadas sobre as seguintes questões: i) o que significa ser Krahô-Kanela segundo os próprios agentes sociais ou, em outras palavras, quais são os elementos acionados que conferem identidade e unidade a este grupo; ii) de que forma foi construída a tradicionalidade da terra indígena Mata Alagada; iii) no campo de lutas simbólicas e políticas por reconhecimento e pelo direito de classificar a realidade social, o que nos revela o posicionamento da FUNAI ao questionar – e, em diversas circunstâncias, negar – a identidade Krahô-Kanela e os direitos a esta inerentes. Tais as questões serão aprofundadas ao longo de três capítulos. Inicio o primeiro capítulo, intitulado “Ao encontro dos Krahô-Kanela”, descrevendo os caminhos da pesquisa, desde meus primeiros contatos com lideranças do grupo por conta de minha atividade profissional às condições de realização da mesma. Para além de sinalizar minhas opções teóricas e metodológicas, o diálogo entre estas e o campo empírico (a objetividade será conferida por este confronto sistemático e constante entre o instrumental teórico-metodológico e a realidade sócio-histórica analisada), problematizarei: i) o processo de construção do objeto, abordando a questões da transformação de um “problema social” em “problema científico” (BOURDIEU, 1989); ii) e a relação de pesquisa (BOURDIEU, 1997) em comparação à minha atuação enquanto militante, com o povo Krahô-Kanela - ou seja, refletirei sobre a maneira como tanto eu quanto os Krahô-Kanela percebemos e lidamos com os diferentes papéis assumidos ao longo das várias etapas deste relacionamento. Posteriormente, lançarei mão da memória social e coletiva como fonte de conhecimento para o trabalho antropológico, a fim de descrever, a partir de suas narrativas, as representações que 3 No primeiro capítulo, esclareço minha opção teórico-metodológica por utilizar a categoria “grupo étnico” para me referir aos Krahô-Kanela. 4 Direitos assegurados, especialmente, pela Constituição Federal de 1988, pelo Estatuto do Índio e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho 5 O Conselho Indigenista Missionário/CIMI, é um organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB. Foi criado em 1972 com o objetivo de conferir um novo sentido ao trabalho da Igreja Católica junto aos povos indígenas. Ver www.cimi.org.br. 15 os Krahô-Kanela fazem sobre si próprios e sobre sua trajetória. Tomar a memória oral enquanto fonte privilegiada nos permitirá apreender como estes sujeitos históricos concebem a si próprios, selecionam e interpretam situações sociais relevantes para a constituição do grupo. Como menciona Amado (1995: 132), “a memória torna as experiências inteligíveis, conferindo-lhes significado”. Prosseguindo a descrição, no Capítulo 2, “A construção social da identidade KrahôKanela face a um processo de mobilização pela demarcação territorial”, veremos, como o título já sugere, que a forma com que os Krahô-Kanela se mobilizaram com vistas ao reconhecimento e à demarcação de sua terra tradicional guarda estreita a relação com a construção social desta identidade étnica. Demonstrarei, a partir da análise de como este grupo opera os laços de parentesco e os critérios organizativos e de pertencimento, em um contexto de embates, não apenas entre eles e os demais agentes não indígenas, mas também entre os grupos familiares dos próprios indígenas com interesses e estratégias distintas, que a constituição do grupo e da identidade Krahô-Kanela decorre de um processo histórico, político e simbólico. Considerar a dimensão histórica de constituição do grupo Krahô-Kanela significa tomá-los como uma unidade sociocultural em interação com outras unidades, inseridas no mesmo espaço-temporal (OLIVEIRA, 1999). Esta opção teórica nos permitirá compreender, ao contrário da representação exotizada do “índio”, o quanto este e outros grupos étnicos são coletividades constituídas no tempo histórico e inseridas na contemporaneidade. Este entendimento é necessário para que possamos relativizar o peso das identidades étnicas mais “antigas” e já legitimadas por pesquisas etnográficas em detrimento às suspeitas que recaem sobre as reelaborações identitárias mais recentes e pouco estudadas, como é o caso dos KrahôKanela e dos chamados “índios emergentes”. Os estudos sobre “identidades sociais” desenvolveram-se, no âmbito das ciências humanas, na segunda metade do século XX, especificamente a partir dos anos setenta. A partir de então, por meio de mudanças na concepção de “etnicidade”, de novas perspectivas de abordagem, a temática vem se impondo como uma questão-chave para as ciências sociais (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1998: 84) e como uma tendência na antropologia (ERIKSEN e NIELSEN, 2007: 152). Abner Cohen impulsionou estes estudos ao demonstrar o caráter político dos símbolos étnicos e ao propor a separação entre etnicidade e cultura (Idem, 2007: 153 e 154); de igual modo, Fredrik Barth concebeu a cultura e a organização social enquanto fenômenos distintos – dimensões separáveis na análise da identidade étnica – frutos de um processo dinâmico e histórico (BARTH, 2000, 2005). 16 Referenciando-me nestas perspectivas teóricas para etnografar as reelaborações identitárias dos Krahô-Kanela, considerarei, então, duas questões fundamentais. Primeiramente, identidade e cultura são duas dimensões distintas que, embora se relacionem, não podem ser reduzidas uma à outra (BARTH, 2005: 15), sob o risco de tratar a relação dinâmica entre grupos através da perspectiva dos estudos de aculturação (BARTH, 2000: 20). Em segundo lugar, uma vez que as sociedades e as relações sociais são dinâmicas, também a identidade não é estática, essencializada, ela “se constrói, se desconstrói e se reconstrói segundo as situações. Ela está sem cessar em movimento; cada mudança social leva-a a se reformular de modo diferente” (CUCHE, 2002:198). São os próprios agentes, “orientados por situações presentes e projetos futuros” (SANTOS, 2003: 89) que constroem socialmente a identidade que irá diferenciá-los dos demais grupos. Portanto, a identidade é sempre situacional, relacional, política e simbólica; uma construção em processo contínuo sujeita a reinterpretações e reconstruções. A proposta do Capítulo 3, “O campo de atuação indigenista: visões e estratégias em torno do reconhecimento oficial dos Krahô-Kanela e de seu território tradicional”, é refletir, em interface com uma leitura antropológica acerca do campo do Direito, sobre o posicionamento do Estado – especificamente, da Funai, do Incra e do Ministério Público Federal – analisando e comparando as competências e intervenções destes diferentes órgãos estatais em relação à aplicação das políticas étnicas e territoriais ao longo do processo de reconhecimento étnico dos Krahô-Kanela, de sua mobilização política e demarcação de seu território tradicional. As formas de atuação e mediação por parte de entidades civis e do movimento indígena em apoio à luta deste grupo também serão analisadas. O estudo acerca da etnicidade, conduzido à luz da situação histórica, implica o desvelamento deste campo, onde interagiram (e interagem) diversos agentes e agências, estatais ou não, em constante correlação de forças; implica, como salienta Oliveira (1999: 125), na “análise dos processos de articulação interétnica, dos modos de dominação, dos mecanismos de coerção e de disciplinamento do Estado e de formas mais abrangentes de classificação e categorização social”. Dialogarei com os referenciais teóricos ao longo do trabalho, à medida em que a descrição dos dados empíricos o exigirem, portanto não me estenderei acerca destes nesta introdução. Resta-me, portanto, apresentar algumas opções metodológicas que recortarão o texto etnográfico. Contemporaneamente compreendemos que o saber antropológico é construído, sobretudo, através da relação cognitiva entre pesquisador e agente pesquisado, em outras 17 palavras, é na relação dialógica estabelecida no cotidiano da pesquisa que vamos nos dando conta de que “a Antropologia é uma experiência empírica partilhada, e não apenas teoria e metodologia” (OLIVEIRA, 2007) 6. Por isso, como uma das formas de reconstituir o lugar dos agentes sociais nesta etnografia, trechos de entrevistas permearão o texto. Os agentes entrevistados serão identificados segundo o papel político e social que ocupavam à época da pesquisa - mesmo que, atualmente, vigore nova configuração. Esta opção tem por finalidade situar socialmente o lugar de fala de cada agente na ocasião do trabalho de campo. Conforme problematiza Bourdieu (2003) em relação a transcrição de entrevistas, “(...) transcrever é necessariamente escrever, no sentido de reescrever” (Idem: 710). Nesse sentido, como sugere o autor, a fim de tornar a leitura mais fluida, os trechos das entrevistas transcritas foram aliviados de redundâncias verbais ou certos tiques de linguagem, como a repetição de bom ou né, sem contudo, alterar o sentido do que foi dito. Como pondera o autor, “(...) a passagem do oral ao escrito impõe, com a mudança de base, infidelidades que são sem dúvida a condição de uma verdadeira fidelidade” (Idem). Esclareço que trechos de entrevistas ou depoimentos compulsados de outras fontes, bem como citações, classificações e designações externas, no corpo do texto, serão impressos entre “aspas”. Em itálico serão destacadas as autodefinições. Para enfatizar o sentido de palavras, expressões ou frases, o negrito será utilizado. Gostaria, por fim, de registrar que, durante a realização do meu trabalho de campo, sobretudo durante a escrita etnográfica, relembrei, constantemente, uma pesquisa que realizei pelo Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, em agosto de 2008, sobre os povos indígenas – especificamente, sobre aqueles em situação de isolamento – localizados na área de influência do “Complexo Madeira”7. Após quase nove anos de atuação junto às comunidades indígenas como indigenista do CIMI – o termo institucionalmente mais apropriado seria “missionária”, mas, para além do teor simbólico deste termo, minha identificação pendeu mais para ação de militância indigenista – esta foi minha primeira atividade realizada, numa área indígena, como pesquisadora, razão pela qual a relacionei com um ”ritual de passagem”. Nesta ocasião, apesar de ter sido avaliada por uma antiga colega de trabalho como uma “ex-missionária que abandonou o compromisso com a luta social para entrar na academia e se preocupar com pesquisas”, vivi uma enorme inquietação por buscar uma confluência entre a militância e a pesquisa. Eu tinha clareza de que, naquela ocasião, 6 Anotações pessoais realizadas durante palestra proferida pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira na Universidade Federal do Amazonas, em 13/12/07, por ocasião do lançamento do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. 7 Ver Souza, 2009. 18 meu papel não era de assessoria, não se tratava de um momento ou “encontro” com vistas à formação política dos indígenas. A posição de pesquisador(a) nos coloca num lugar onde se deve ouvir mais e falar menos. Mas, como desobrigar-me de tal função por mim realizada durante tantos anos? Diante da insuficiência de informações por parte das comunidades indígenas, de suas dúvidas e perguntas, não pude me eximir de apresentar a conjuntura, ao mesmo tempo em que creio não ter sido capaz de isentar minhas falas de certo “tom militante”. O “incômodo” por ter sido, neste momento, mais indigenista militante e menos pesquisadora só foi posteriormente abrandada com a leitura de “O mal-estar da ética na antropologia prática”, onde Roberto Cardoso de Oliveira (2006: 229) assume que, em um dado momento de sua trajetória intelecual, seu trabalho de antropólogo teria sido marcado pela combinação, da qual nunca se libertou, do etnólogo e do indigenista. O fato é que essa “crise de identidade” entre a militância indigenista e a pesquisa me acompanhou durante toda a pesquisa. As reflexões iam tanto da crítica à militância sem fundamentação teórica, quanto ao conhecimento científico sem uma aplicação prática. Agrada-me pensar que uma possibilidade seria poder apoiar-se numa “antropologia comprometida não apenas com a busca de conhecimentos sobre seu objeto de pesquisa, mas, sobretudo com a vida dos sujeitos submetidos à observação” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006: 225-226). De modo que este trabalho sobre os Krahô-Kanela pretende inserir-se nesta seara, simultaneamente produzindo conhecimento etnográfico sobre um povo ainda relativamente desconhecido pela antropologia brasileira e contribuindo para a continuidade de suas lutas, através da visibilização de sua trajetória. 19 CAPÍTULO I – AO ENCONTRO DOS KRAHÔ-KANELA Inicialmente, pretendo, neste capítulo, tecer algumas considerações sobre a realização deste trabalho sobre os Krahô-Kanela. Situarei a pesquisa como resultado de minha trajetória profissional e acadêmica, bem como a orientação teórico-metodológica que me orientou e o processo de construção do objeto (sem desconsiderar que este é permeado pela subjetividade do pesquisador, de tal modo que ele mesmo não deixa de, num certo sentido, “construir” seu próprio objeto). Posteriormente, através da “objetivação participante” (BOURDIEU, 2004)8 que, em síntese, é o conhecimento da relação pesquisador-pesquisado, objetivarei minha prática de pesquisa e as condições sociais de realização da mesma, ou seja, a “situação etnográfica” (OLIVEIRA, 1999, 2003) na qual me encontrei, pois, não o fazê-lo implicaria “quebra do rigor científico” (OLIVEIRA, 1999: 114). Em outras palavras, tomarei o trabalho de campo, mesmo que brevemente, como objeto de análise. Na segunda parte deste capítulo, analisarei as narrativas dos Krahô-Kanela sobre a trajetória de seus ascendentes como uma possível “reconstituição histórica”. Posto que a memória coletiva não se refere somente ao passado, mas também a projetos em devir, para além de trazer à tona a memória histórica dos Krahô-Kanela, procuro demonstrar que eles interpretam sua história e se constroem ao longo de suas narrativas. Ao valorizar estas narrativas sobre a trajetória de seus antepassados, contadas através dos deslocamentos entre os estados do Maranhão e Tocantins, até a Terra Mata Alagada, pretendo posicionar a memória dos Krahô-Kanela, enquanto sujeitos históricos, na produção do conhecimento antropológico sobre sua própria constituição. Em síntese, este capítulo descreve, então, os meus “encontros” com os Krahô-Kanela – primeiro enquanto indigenista e, depois, como pesquisadora; e o “encontro” deles próprios com sua memória histórica. 8 “A objetivação participante encarrega-se de explorar não a “experiência vivida” do sujeito do conhecimento, mas sim as condições sociais de possibilidade – e, dessa forma, os efeitos e limites – dessa experiência e, mais precisamente, do próprio ato de objetivação. Visa objetivar a relação subjetiva com o próprio objeto, o que, longe de levar a um subjetivismo relativista e mais ou menos anticientífico, é uma das condições da objetividade científica genuína” (BOURDIEU, 2003 apud WACQUANT, 2006: 23). 20 1.1 – (RE) CONSTRUINDO OS CAMINHOS DA PESQUISA Os antropólogos sociais não se deviam classificar a si próprios como perseguidores de uma verdade objetiva; o seu propósito é ganhar conhecimentos sobre o comportamento das outras pessoas, ou mesmo, sobre si próprio. (LEACH, 1982: 50) A motivação para a realização de uma pesquisa etnográfica sobre os Krahô-Kanela se deve à relação profissional que estabeleci com este grupo indígena, no período em que atuei como indigenista no Conselho Indigenista Missionário - CIMI. Meu primeiro contato com lideranças Krahô-Kanela ocorreu durante a Assembleia Nacional do CIMI realizada em 2001. Naquele ano, o CIMI-Regional Goiás/Tocantins, após tomar conhecimento da existência desse grupo através de indígenas Javaé, fez sua primeira visita ao mesmo, que, na ocasião, residia em um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. Durante a Assembleia, emocionado, o cacique Mariano Krahô-Kanela contou a história de peregrinação, sofrimento e resistência do grupo e, desde então, o apoio à luta pelo reconhecimento étnico e pela demarcação territorial passou a ser uma prioridade assumida pela entidade. Nesta época, eu atuava no estado do Pará, pelo Regional Norte II, e não acompanhei os desdobramentos daí decorridos. Somente em 2003, reencontrei o Sr. Mariano, durante o “I Encontro dos Povos Ressurgidos”, realizado em Olinda. Trocamos apenas umas poucas palavras, mas, em meio a tantas trajetórias e lutas ali narradas, a história dos Krahô-Kanela me provocava de maneira especial. Neste mesmo ano mudei-me para o estado do Tocantins onde passei a compor o quadro Regional Goiás/Tocantins e a acompanhar pessoalmente a mobilização do grupo pela demarcação de sua terra tradicional. A minha prática da atuação política e militante, apesar de favorecer o vínculo com os Krahô-Kanela e de contribuir com a mobilização pela garantia de seus direitos étnicos e territoriais, não respondia, porém, às questões de outra ordem que para mim se colocavam. Refiro-me à necessidade do conhecimento antropológico acerca de temas e categorias, tais como, etnicidade, identidade, grupo étnico, tradicionalidade, campo de poder, essenciais ao entendimento de todo o processo vivido pelos Krahô-Kanela. Percebi que, neste caso, a militância carecia de sustentação teórica.9 9 Na ocasião, só haviam sido realizados estudos antropológicos a serviço da Fundação Nacional do Índio - FUNAI e no âmbito dos processos administrativos e judiciais visando à regularização fundiária da terra 21 Foi então que, no final de 2007, tive a oportunidade de fazer o curso de especialização “Gestão para o Etnodesenvolvimento”, na área de Antropologia, ofertado pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. No decorrer do curso, refletindo mais detidamente sobre a trajetória e a luta dos Krahô-Kanela, ocorreram-me três questionamentos que norteariam as leituras teóricas específicas (e, consequentemente, minha futura pesquisa): Como foi construída a identidade étnica Krahô-Kanela? O que faz da Mata Alagada território tradicional deste grupo? Por que seus direitos territoriais não foram reconhecidos pelo órgão indigenista? Através desse exercício analítico foi possível a construção e sistematização dos dados que apresentei como projeto para o ingresso no curso de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da UFAM. Tal curso me possibilitou, por meio da leitura de um amplo conjunto de autores durante as disciplinas, o aprofundamento teórico necessário à reflexão e análise proposta por esta pesquisa: a construção da identidade Krahô-Kanela face a um processo de territorialização e mobilização política pelo reconhecimento oficial e demarcação de seu território tradicional. Para tanto elegi três autores que constituem a espinha dorsal desta análise etnográfica: Fredrik Barth (2000), João Pacheco do Oliveira (1987, 1988, 1998, 1999, 2004, 2003, 2006) e Pierre Bourdieu (1989, 1996, 2003, 2004) A fundamentação teórica foi inspirada, sobretudo, nos estudos de Barth (2000), para quem a identidade de um grupo social é construída através da ação e interação dos agentes entre si e nos limites das fronteiras étnicas. Segundo o autor, os grupos étnicos são constituídos por meio de critérios político-organizativos. É nesse sentido que opto por denominar os Krahô-Kanela, ao longo deste trabalho, como grupo étnico, seguindo as orientações de Barth: Ao se enfocar aquilo que é socialmente efetivo, os grupos étnicos passam a ser vistos como um tipo de organização social. Nesse sentido organizacional, quando atores tendo como finalidade a interação, usam identidades étnicas para se categorizar e categorizar os outros, passam a formar grupos étnicos (BARTH, 2000: 32). indígena Recentemente, Victor Ferri Mauro defendeu uma dissertação em História - “A trajetória dos índios Krahô-Kanela: etnicidade, territorialização e reconhecimento de direitos territoriais” – pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), ainda não disponível para consulta até a conclusão da escrita de minha dissertação. 22 Complementando a proposição de Barth, dialogo com Oliveira e Bourdieu. Do primeiro, aproprio-me de sua orientação interdisciplinar (mais especificamente entre a Antropologia e a História) e de sua produção teórica, referente principalmente aos indígenas do nordeste, a fim de melhor compreender e abordar o fenômeno aqui investigado: a etnicidade em contextos políticos contemporâneos. De Bourdieu, seus pressupostos analíticos, que perpassaram praticamente todo o trabalho, orientando metodologicamente o desenvolvimento da pesquisa e a análise do “campo” indigenista sobre o qual se assentou o processo de territorialização e mobilização política com vistas ao reconhecimento étnico e territorial dos Krahô-Kanela. O trabalho de campo foi priorizado a fim de apreender as representações dos próprios Krahô-Kanela sobre sua constituição, suas ações e a realidade social por eles vivida. Por meio do convívio partilhado, das conversas informais e da realização de entrevistas – coletivas e individuais, abertas e fechadas, com homens e mulheres, jovens e anciãos – pude identificar a pluralidade de narrativas e concepções acerca da própria trajetória. Parti do pressuposto de que (...) o antropólogo deve privilegiar a pesquisa sobre as categorias e práticas nativas, pelas quais o grupo étnico se constrói simbolicamente, bem como as ações sociais nas quais ele se atualiza. O agente classificatório e o objeto primário de sua etnografia devem ser o próprio grupo investigado (OLIVEIRA, 1994:121). Todavia, o foco dessa pesquisa recai sobre a construção identitária de um grupo étnico, portanto, sobre sua própria constituição. Como esta não se realiza isoladamente, mas sim, mediante interações sociais nas quais se constroem e se atualizam as categorias de atribuição, adscrição e de identificação, faz-se necessário contextualizar as “situações históricas” (OLIVEIRA, 1999) sobre o qual o grupo se constituiu, sua composição diversificada, suas ações, intencionalidades, ideologias e os capitais em jogo. Por esta razão também entrevistei e/ou conversei com agentes representantes de órgãos públicos (Ministério Público Federal, FUNAI e INCRA) do Conselho Indigenista Missionário, do movimento indígena e moradores regionais. Também lancei mão da utilização de fontes e dados secundários - relatórios, matérias jornalísticas, processos administrativos e judiciais. Foi realizada pesquisa documental nos arquivos do Cimi Regional Goiás/Tocantins e, com autorização do procurador responsável, nos Processos Administrativos abertos pela Procuradoria da República no estado do Tocantins 23 - PR/TO relacionados à demanda apresentada pelo grupo Krahô-Kanela quanto ao reconhecimento oficial de sua identidade étnica e regularização fundiária de seu território tradicional. A utilização dessas diferentes fontes permitiu o deslindamento dos diferentes agentes e posicionamentos que conformaram o campo aqui analisado. Os dados apresentados nesta etnografia foram formulados não só pelas minhas experiências com os Krahô-Kanela no trabalho de campo realizado por mim durante o curso de Mestrado – de 08/01 a 08/02/2010 –, mas também pelo convívio mais direto com o grupo entre os anos de 2003 e 2007 enquanto membro do CIMI, e por ocasião do meu acompanhamento à realização de perícia efetuada por antropólogos do Ministério Público Federeal – MPF, entre 17 e 21 de novembro de 2008, em razão de uma situação de conflito e faccionalismo ocorrida entre os indígenas. Considerando ter obtido dados em momentos bastante diferentes de minha trajetória pessoal e intelectual, foi necessário manter uma constante “vigilância epistemológica” por meio de exercício de reflexividade sobre a posição que eu ocupava nesta complexa teia de inter-relações e as consequências que tais posicionamentos trouxeram para o material etnográfico. Apesar de a análise mais detalhada sobre a situação de conflito faccionalismo mencionada acima ficar para o próximo capítulo, anteciparei aqui uma breve contextualização para o entendimento das descrições que se seguem. Um grupo, então, identificando-se como Krahô, foi expulso de seu território em 1976, tendo como consequência a dispersão de suas famílias. Ao vivenciar um novo processo de territorialização, com a mobilização sociopolítica pelo reconhecimento oficial e à demarcação territorial, uma dessas famílias passou a se autoidentificar como Krahô-Kanela. Depois de vários embates pela regularização oficial da terra, no final de 2006, conseguiram, finalmente, demarcar a Terra Indígena Mata Alagada. Por essa ocasião, as demais famílias, outrora dispersas, intentaram retornar e nela se fixar, todavia tal pretensão foi negada pelos Krahô-Kanela10. O conflito gerado por este episódio acabou por deflagrar – ou apenas acentuar – uma cisão entre estes parentes, visivelmente divididos em duas “facções”: o grupo que se autoidentifica como Krahô-Kanela e as demais famílias identificadas por este como o outro grupo11. Podemos, inicialmente, compreender esta “divisão” fazendo analogia a “Os estabelecidos e os outsiders”, de autoria de Elias e Scotson (2000). Se, em Winston Parva (nome fictício da comunidade onde foi realizada a pesquisa dos autores), a divisão entre seus habitantes em estabelecidos e “outsiders” estava diretamente 10 11 As justificativas para este posicionamento serão analisadas no Capítulo 2. Como recurso metodológico, adotarei esta classificação quando necessário. 24 relacionada ao tempo de moradia no local, em minha pesquisa, pretendo analisar, especificamente no segundo capítulo, os critérios que, aos olhos dos Krahô-Kanela, justificariam a divisão ocorrida a partir deste conflito. Resumindo, por ora, “superioridade social e moral, autopercepção e reconhecimento, pertencimento e exclusão são elementos dessa dimensão da vida social que o par estabelecidos – outsiders ilumina exemplarmente: as relações de poder” (NEIBURG, 2000: 8). Antecipo a análise afirmando que a eclosão deste conflito foi compreendida por mim como um “fato social total”, o que, nos termos de Mauss, significa um fenômeno onde “tudo se mistura, tudo o que constitui a vida propriamente social (...)” (MAUSS, 2003: 187); por meio dele, exprimem-se, de uma só vez as mais diversas instituições – políticas, morais, jurídicas, etc (Idem). Pelo fato do conflito deflagrado ter grande importância para o entendimento dos aspectos simbólicos e políticos relacionados ao parentesco, à construção de fronteiras sociais e à etnicidade Krahô-Kanela, o mesmo será abordado como uma situação social que permitirá clarificar a análise proposta, mesmo não sendo objeto principal da pesquisa. 1.1.1 (Re) Construindo a inserção em campo Por ocasião da perícia antropológica que tive o privilégio de acompanhar, em 2008, antecipei aos Krahô-Kanela a informação de que tão logo passasse na seleção do Mestrado eu retornaria para desenvolver minha pesquisa junto a eles. Minha intenção foi recebida com entusiasmo, afinal, como eles mesmos pontuaram, eu era uma pessoa conhecida que, além de já ter lutado junto a eles, ao me tornar antropóloga, poderia contribuir ainda mais com suas reivindicações étnicas e territoriais. Fazendo coro à pergunta de Roberto Cardoso de Oliveira (2006: 227) – “qual de nós, especialmente os etnólogos, não se viu um dia pressionado para agir simultaneamente ao seu esforço em conhecer?” – confesso que essa expectativa era (é) recíproca. Em meio a tantas demandas indígenas é difícil para o antropólogo ser apenas um observador, contudo, a teoria e o fazer antropológico nos orientam a não confundir nosso papel com o papel do mediador e porta-voz de uma identidade (CASTRO, 2008: 85) – o que, por sua vez, não inviabiliza o fato de a pesquisa antropológica situar-se no interstício entre “solidariedade” e “pesquisa” (ALBERT, 1997: 59 apud CASTRO, 2008: 89). 25 Ao ingressar no Mestrado, preparei meu retorno - mais do que previamente anunciado para os Krahô-Kanela. Obtive a autorização formal das principais lideranças para a realização da pesquisa (procedimento exigido pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Amazonas) e, por telefone, conversei com o cacique sobre a data de minha viagem à aldeia. Parti, então, para a realização do trabalho de campo, em janeiro de 2010, com muitas expectativas e a certeza de que tudo daria certo. Porém, já no início, percebi que poderia enfrentar algumas dificuldades e imprevistos. Encontrei-me com Wagner, então cacique, em Lagoa da Confusão, conforme havíamos combinado. Expliquei-lhe os objetivos da pesquisa, procurei esclarecer suas dúvidas em relação à mesma e conversamos sobre como eu pretendia realizá-la. Assim que perguntei sobre o Sr. Arsênio (ancião do outro grupo), esclarecendo que sua participação seria importante, pois considerava que ele poderia contribuir com a pesquisa narrando as histórias “de antigamente”, Wagner, exaltado, foi tachativo: “Você não vai falar com ele não, né?! O trabalho não é sobre o nosso grupo Krahô-Kanela? Se eu soubesse que você iria conversar com ‘o outro grupo’ eu não teria autorizado a pesquisa” (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 11/01/2010)12. Tentei argumentar, ele não se convenceu, mas, depois de um tempo, ficou mais calmo. Em seguida, listou uma série de pessoas e instituições com as quais eu poderia conversar: o Centro de Direitos Humanos, o CIMI, a Organização Indígena do Tocantins, enfim, todos aqueles que, em sua visão, estariam “do lado dos Krahô-Kanela”. Encerramos a conversa, e ele reforçou que eu deveria colocar, em reunião, para toda comunidade a necessidade de conversar com o outro grupo, “pra ver o que eles vão dizer...” (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 11/01/2010). Minha conversa com Wagner Krahô-Kanela nos remete a um aspecto relevante que deve permear qualquer pesquisa: a negociação das condições de exercício do trabalho de campo. Esta negociação que, certamente, implicará momentos de hospitalidade e hostilidade (DERRIDA, 2003), não se refere apenas a uma autorização para o início da pesquisa, mas em também considerar os interesses de ambas as partes no decorrer da mesma, bem como a maneira através da qual o pesquisador repassará para os pesquisados os dados obtidos, os 12 Meses antes da minha chegada, outra pesquisadora esteve na aldeia (os indígenas não souberam informar com precisão qual era o objeto da pesquisa. O fato é que, segundo depoimento de uma Krahô-Kanela, a pesquisadora mencionou a intenção de passar um final de semana numa aldeia Javaé, próxima à Terra Mata Alagada, para conversar com os mesmos sobre os Krahô-Kanela. Estes não concordaram “porque ela poderia ficar confusa, já que a gente fala uma coisa, os Javaé poderiam dizer outra diferente, aí ela não saberia em quem acreditar. Então, Wagner disse que era melhor ela se retirar, que o tempo que passou na aldeia [15 dias] era suficiente pra ela escrever o trabalho”. Verifica-se, assim, o protagonismo do grupo em exercer uma espécie de “controle social” das pesquisas, autorizando com quem se pode falar. 26 quais podem ser apropriados de diversas formas, conforme os interesses do grupo. A realização de meu trabalho de campo foi diariamente negociada com os agentes sociais. Acredito que este processo de negociações e renegociações constitua uma série de momentos oportunos para restituir o lugar do Outro, afinal o pesquisador deve reconhecer que a construção do conhecimento depende diretamente da relação e da intersubjetividade estabelecida. Ademais, como reflete Gerald Berreman (1980), o trabalho etnográfico consiste numa tarefa científica que, todavia, provém de uma experiência humana onde nem sempre as escolhas são apenas do etnógrafo. Razão pela qual avaliou Garnelo (2002) que recorrer a interlocutores cada vez mais politizados, como lideranças indígenas, exige do pesquisador a tarefa de (...) negociar continuamente com ‘sujeitos’ muito ativos, que tem suas próprias idéias e tentam fazê-las valer, sobre o que deve e o que não deve ser pesquisado, sobre o que é importante e/ou de utilidade para seus próprios fins. Passam a ser, em suma, coparticipantes no processo de pesquisa, mesmo daquelas que não se propõem a ser uma pesquisa-ação (GARNELO, 2002:37 apud ORTOLAN MATOS, 2006:27). No terceiro dia após minha chegada à aldeia, foi realizada uma reunião com a comunidade para que eu discorresse sobre a pesquisa. Antes, porém, durante visitas e conversas informais, eu já havia introduzido o assunto. Sem muitas formalidades, uma vez que já nos conhecíamos, expliquei publicamente os objetivos e metodologia da pesquisa; ressaltei a importância de um trabalho antropológico sobre o grupo e expus que também seriam ouvidas outras pessoas que faziam parte da história do grupo, por ter participado de sua trajetória e luta pela territorialidade. A esta altura já havia desistido de conversar com pessoas do outro grupo, por respeito à posição do cacique que, visivelmente, expressava a posição dos demais. Após minhas explicações, todos consentiram com a realização da pesquisa, enfatizando a mim que a mesma poderia contribuir com a luta reivindicatória do grupo. Foi bastante significativo que, quando todos já estavam se retirando da reunião, apenas uma liderança apontou impedimentos para a realização da pesquisa, alegando o fato de a FUNAI ter proibido ou restringido a entrada de pessoas em área indígena por conta da grande disseminação da gripe H1N1. Confesso que minha primeira reação diante da postura desta liderança foi de mágoa – afinal nos conhecíamos há tanto tempo que esperava, por parte dele, um voto de confiança. Em seguida me recordei do artigo de Alcida Rita Ramos (1995), “O 27 índio hiper-real”13, e pude, então, relativizar minha reação. Mais tarde compreendi que a oposição daquela liderança, por quem tenho tanto apreço, naquele momento, não se dirigia diretamente a mim e/ou à realização da pesquisa, tanto que, posteriormente, o mesmo se mostrou disponível para a interlocução. Compreendi que seu posicionamento era um reflexo do campo da política indígena local. Os primeiros dias em campo foram suficientes para compreender que: a) o conflito com o outro grupo não era o único vivido pelos Krahô-Kanela; internamente, naquele momento, as relações de poder eram ainda mais conflituosas; b) minha mudança de papel - de indigenista à antropóloga - implicou também uma mudança de comportamento dos KrahôKanela em relação a mim. Para refletir sobre a interligação entre estes dois pontos - conflito interno e mudança de comportamento do grupo frente à mudança do meu papel - recorrerei a Berreman (1980). Este autor, ao realizar um estudo antropológico numa aldeia camponesa do baixo Himalaia, na Índia Setentrional, percebeu e analisou os problemas e consequências inerentes à interação do etnógrafo com os agentes pesquisados. Para ele as impressões que damos e que dos agentes recebemos constituiriam um aspecto básico desta interação14. Segundo Berreman (1980:127), os Paharis desencorajavam a presença de estranhos na aldeia, pois acreditavam que qualquer pessoa “de fora” teria motivos ocultos para a aproximação ou poderia ser um agente do governo que, ao tomar conhecimento de algumas atividades ilegais ou infrações praticadas na pelos aldeões, poderia penaliza-los ou extorquilos. De modo que os Paharis também suspeitaram de sua intenção enquanto pesquisador: ele também deveria ter um motivo oculto para estar ali. Descreve o etnógrafo: “Como assunto de conversa cordial e, segundo supúnhamos, neutra, escolhemos a agricultura. (...) surgiu a suspeita de que éramos agentes do governo, enviados para uma reavaliação da terra, que visava a estabelecer novos impostos (...)” (BERREMAN, 1980: 130). Por ser já conhecida dos Krahô-Kanela, acreditei passar a impressão de ser uma “pessoa de confiança”, que, embora houvesse mudado de papel na interlocução, continuaria 13 A autora discorre sobre o modo como Organizações Não Governamentais e entidades indigenistas constroem, ou melhor, idealizam seu próprio modelo de “índio”, buscando adequá-lo às suas necessidades. Por meio dessa idealização, é criada, segundo Ramos, a representação do “índio hiper-real”. 14 “As tentativas de dar a impressão desejada de si próprio, e de interpretar com precisão o comportamento e as atitudes dos outros são uma componente inerente de qualquer interação social e são cruciais para a pesquisa etnográfica” (Berreman, 1980: 125). Para Berreman, tanto o etnógrafo quanto os agentes pesquisados procuram projetar as impressões que lhes sejam favoráveis (BERREMAN, 1980: 142). 28 sendo interpretada por eles como estando posicionada “do lado do grupo”. No entanto, minhas perguntas voltadas à autoidentificação e à identidade suscitaram a desconfiança de alguns membros da comunidade. Enquanto indigenista minha prática consistia em somar forças ao pleito reivindicatório dos Krahô-Kanela, ora atuando em atividades visando à informação e formação política dos mesmos, ora como mediadora junto aos órgãos do Estado. Nessa condição, aceitava a autoatribuição étnica como fato dado, consoante a legislação vigente, portanto objeto de direito, sem qualquer questionamento ou problematização. Porém, ao ter elegido a reelaboração étnica como objeto de estudo enquanto exercício etnográfico de minha formação no Mestrado, causei apreensão ao grupo quanto às minhas intencionalidades, mesmo me esforçando para controlar os efeitos dos questionamentos e assegurar uma comunicação não violenta (BOURDIEU, 2003). Um dos indígenas chegou a me dizer que eles não estavam entendendo o porquê do meu atual interesse em pesquisar sobre a identidade étnica do grupo se, por já conhecê-los, eu deveria saber que eles eram Krahô-Kanela. Embora Berreman (1980: 142, 143) afirme que, dependendo do objeto de estudo, seria desnecessário explicitar aos agentes nossas hipóteses de pesquisa e seus campos de interesse para não criar maiores dificuldades à obtenção de informações e à realização da própria pesquisa, eu preferi assumir a postura contrária. Deixei claras minhas intenções com a ressalva de que, ao propor descortinar o processo de construção identitária do grupo através da teoria antropológica, poderia colaborar com o grupo na formulação de respostas aos inúmeros questionamentos ainda existentes acerca da sua etnicidade. Atualmente, “o trabalho antropológico, diante da constante autoafirmação da identidade indígena, 'é um meio, às vezes decisivo, de viabilização' de projetos de territorialização e autonomia social das comunidades indígenas” (ALBERT, 2002: 246 apud CASTRO 2008: 89). Contudo, ao longo do processo de mobilização reivindicatória dos Krahô-Kanela, diferentes antropólogos, responsáveis pela elaboração de relatórios e pareceres para a FUNAI, questionaram a etnicidade do grupo e/ou mostraram-se relutantes em reconhecer o direito deste sobre seu território tradicional15, chegando a delegar ao INCRA a responsabilidade de assentá-los.16 Tais posicionamentos, para além de prolongar as tensões interétnicas do grupo, tiveram reflexos na representação que os Krahô-Kanela construíram em 15 À exceção de Vieira (2003) e Almeida (2004). 29 relação ao antropólogo: um agente dotado de um certo poder para acatar ou não suas demandas, e que pode estar do lado ou contra eles. Assim, como eu me apresentei como antropóloga durante todo meu trabalho de campo do Mestrado, também fui avaliada e julgada enquanto tal: eu estaria do lado ou contra eles? Aqui faço alusão à reflexão de Bourdieu (2003: 698) sobre as relações de pesquisa e de entrevista: “(...) o interrogatório tende naturalmente a tornar-se uma socioanálise a dois na qual o analista está preso e é posto à prova, tanto quanto aquele que interroga”. Esta nova relação estabelecida com os Krahô-Kanela não impediu a construção de dados relativos ao objeto da pesquisa, mas, certamente, a limitou. A exemplo da experiência de Berreman (1980: 136), se a variabilidade do conhecimento que me foi permitido era bem maior do que o possibilitado a um estranho, foi também bem menor do que o compartilhado pelos agentes sociais. Então, como acontece com muitos pesquisadores, tive que reorganizar minha prática de pesquisa, aproveitando os dados de trabalhos de campo anteriores e as consultas a fontes documentais complementares ao levantamento etnográfico. Somados às questões aqui colocadas, problemas referentes à política indígena do grupo também influenciaram na realização da pesquisa. Não cabe a mim expor tais problemas, por duas razões: eles não estão relacionados ao objetivo da pesquisa e, principalmente, porque assumi o compromisso junto aos indígenas de não o fazer. Considero importante, todavia, apresentar uma breve contextualização de alguns fatos ocorridos no período, a fim de suscitar uma reflexão acerca do trabalho de campo e do fazer antropológico. Depois de dez dias na aldeia, um indígena me disse que algumas pessoas estavam pensando em “interromper a pesquisa, pois não seria o momento mais apropriado para sua realização, já que o grupo estava dividido”. Perguntou se teria a possibilidade de “suspender a pesquisa e retornar quando as coisas estivessem mais calmas.” Expliquei-lhe que, como mestranda, eu precisava conciliar o tempo entre disciplinas acadêmicas e a pesquisa – que envolveria o trabalho de campo e a escrita da dissertação – dentro do prazo previsto pelo Programa de Pó-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), ao qual meus estudos estão vinculados; e ainda, que eu teria os meses de janeiro e fevereiro para a realização do trabalho de campo, pois, a partir de março, eu já havia me comprometido em cursar, como aluna especial, uma disciplina do PPGAS-Museu Nacional/UFRJ. Ele prosseguiu narrando os 16 capítulo. O campo de atuação indigenista e o processo de demarcação territorial serão analisados no último 30 conflitos que o grupo estava vivenciando e enfatizou que o problema não era comigo, afirmando que eles gostavam de mim e confiavam no meu trabalho, mas, concluiu: “o problema é a confusão interna. Você pode ficar confusa com o que um e outro falar. E eu sei que o seu compromisso é com a verdade, não é? Eu sei que é... e isso pode trazer algum problema” (XX, 21/01/2010)17. O trecho do diálogo descrito acima poderia me levar a refletir sobre a dificuldade em conciliar o tempo destinado às disciplinas acadêmicas, ao trabalho de campo e à escrita e defesa da dissertação; ou ainda, advogar que nossas dissertações não são ficções etnográficas (CLIFFORD, 2002) e nem verdades absolutas – como sugeriu meu interlocutor. Mas, foi através da leitura de Berreman que compreendi o que este indígena queria me dizer. Este autor se apropria do conceito de Erving Goffman para apreender a interação social do ponto de vista do controle das impressões. Goffman (1959: 238 apud BERREMAN, 1980:140, 141) vê a interação social como um grupo de atores, que cooperam na apresentação de uma determinada definição da situação para uma platéia. (...) Com frequência, descobrimos uma divisão entre região interior, onde a representação de uma rotina é preparada, e região exterior, onde a representação é apresentada. O acesso a essas regiões é controlado, a fim de impedir que a platéia veja os bastidores e que estranhos tenham acesso a uma representação que não se dirige a eles. Entre os membros da equipe, descobrimos que prevalece a familiaridade, que a solidariedade tem possibilidade de se desenvolver e que segredos, capazes de fazerem fracassar o espetáculo, são compartilhados e guardados. O grupo de atores, explica Berreman, seriam os sujeitos pesquisados, a plateia, o etnógrafo. Enquanto “o etnógrafo procura obter informações sobre a região interior; os sujeitos procuram proteger seus segredos, já que representam uma ameaça à imagem pública que desejam manter” (BERREMAN, 1980:142). A confusão interna a que o indígena se refere é vivida no âmbito desta “região interior”, a qual não deveria ser por mim penetrada sob o risco de confrontar-se com a imagem grupal projetada, com a impressão que eles desejavam dar de si mesmo. Eu deveria me afastar da aldeia “até que as coisas estivessem mais calmas” para não descobrir, muito menos revelar os segredos envoltos da “região interior”. Como segredos não são para serem revelados (e toda etnografia os têm), procurei resguardar também “as informações de bastidores” (BERREMAN, 1980:171), tanto para 17 A partir deste dia, fiquei apreensiva e passei a esperar pelo momento que alguém chegaria a mim solicitando o fim do trabalho de campo. O que realmente acabou acontecendo. 31 proteger os interlocutores, quanto para não incitar ainda mais o problema interno vivido pelo grupo. Refiro-me ao fato de, num momento de conversa com alguns jovens, entre estes, o próprio cacique, ter sido abordada pelo mesmo dizendo querer conversar comigo “pra saber como anda a pesquisa.... o que eu já tinha”. Coloquei-me à disposição e perguntei se ele queria ver as fotos. Ele respondeu que queria ver as fotos e o que eu já tinha escrito. Expliquei-lhe que as anotações em meu “diário de campo” eram pessoais e que, por uma questão de ética, para preservar a identidade de meus interlocutores eu não poderia mostrálas; ainda, que nem tudo ali escrito seria utilizado na dissertação, e, por fim, que esta se tornaria pública, quando concluída. Todos, surpresos com minha resposta, se entreolharam. No dia seguinte, a maioria das lideranças pediu que eu encerrasse o trabalho de campo, alegando que muitos ficaram desconfiados depois que eu me recusei a mostrar minhas anotações e que eu já possuía material suficiente para a pesquisa18. Em reunião com as lideranças, depois de alguma discussão e esclarecimentos, eles reconsideraram e me consentiram mais cinco dias para concluir o trabalho, porém acatei a decisão anterior e encerramos o trabalho de campo. Poucos meses depois, alguns dados de minha pesquisa relativos ao empréstimo feito pelos Krahô-Kanela junto ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar PRONAF, no período em que foram deslocados para um assentamento do INCRA, foram utilizados pelo antropólogo/perito da PR-TO num trabalho que subsidiou processo judicial que visa obter o perdão da dívida contraída pelos indígenas junto às instituições bancárias. Ter parte de dados da pesquisa – ainda que estes não sejam referentes ao objeto de estudo – utilizados em favor do grupo, parece tê-los “tranquilizado” em relação às minha intenções, tanto que, posteriormente, recebi dois e-mails do cacique à época. Em ambos, ele lamentou o mal entendido ocorrido, agradeceu a ajuda para o perdão da dívida e me convidou para retornar à aldeia e apresentar a pesquisa ao grupo. Evidencia-se, com esta situação etnográfica vivida por mim, além do protagonismo do grupo em exercer uma espécie de “controle social” da pesquisa, um caráter de imprevisibilidade acarretado pela complexidade e pela diversidade das possíveis leituras que o trabalho etnográfico permite aos nossos interlocutores. Maria Helena Ortolan Matos (2006:29, 36) problematiza que este tipo de “controle” se deve a uma mudança recente nas relações de 18 Não descreverei as falas e posicionamentos dos indígenas em relação a esta decisão, pois isso implicaria descortinar elementos da “região interior” mencionada anteriormente. 32 pesquisa entre antropólogos e indígenas, onde estes se posicionam de forma mais consciente como parte do processo de produção do conhecimento, atentos que estão aos resultados e implicações éticas e políticas das etnografias. Enfim, trata-se, certamente, de condições e situações não previsíveis pelo antropólogo, mas nem por isso devem deixar de, necessariamente, ser objeto de nossas reflexões e questionamentos. 1.2 – POR UMA HISTÓRIA KRAHÔ-KANELA: TRAJETÓRIA E MEMÓRIA (...) eles realmente são índios porque eles sabem contar sua história direitinho (...) são eles que sabem o que eles são (José Miguel Krahô, morador da aldeia Pedra Branca, 11/03/2006). Os Krahô-Kanela referem-se a Florêncio Caboclo, índio Krahô, como o ancestral do qual teriam se originado, razão pela qual será necessário descrever brevemente o processo de territorialização do povo Krahô, contextualizado no âmbito da história das frentes de expansão e de povoamento da região que atualmente abarca os estados do Maranhão e do Tocantins. Todavia, a fim de reconstituir aqui a sociogênese do grupo Krahô-Kanela, a memória coletiva e a história oral serão valorizadas como fontes primordiais para construção dos dados. Para Maurice Halbwachs (2004), a memória é, sobretudo, uma construção social e um fenômeno coletivo. A memória individual se estrutura e se insere na memória coletiva, ou seja, modelada pela família e pelo grupo social do qual um sujeito faz parte. A memória, devido o seu caráter seletivo, seria objeto de manipulações frequentes, de ordem política e ideológica, podendo, também, estar sujeita ao esquecimento. Tendo em vista que a memória pode ser tomada como “resultado de um trabalho de organização e de seleção daquilo que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência – isto é, de identidade” (ALBERTI, 2004: 27), pretendo identificar a construção e os usos da memória: o que foi retido na memória social do grupo Krahô-Kanela e de que forma essas recordações são interpretadas, reinterpretadas e acionadas pelos próprios agentes sociais quando inseridos em diferentes situações históricas (OLIVEIRA, 1999). Esclareço que, apesar de me referir ao grupo utilizando o etnônimo atual – KrahôKanela –, no período correspondente à descrição que se segue eles se autoidentificavam como 33 Krahô. Procedo deste modo para, desde já, orientar o leitor a tomar o grupo como uma coletividade distinta, cuja identidade étnica, não sendo uma “essência” rígida e imutável, passou por variados processos de (re) construção, diretamente relacionados com sua trajetória e lutas. 1.2.1 - Florêncio e o povo Krahô Até o século XIX, os Krahô ocupavam uma área compreendida pela bacia do rio Balsas, no estado do Maranhão, período em que a região foi tomada pelas frentes de expansão agrícola maranhense-paraense e pastoril baiana. A partir daí, constituíram-se novas relações entre os regionais não indígenas, fazendeiros e os Krahô e entre estes e os povos indígenas vizinhos, em um processo que culminou na reorganização espacial do povo Krahô (MELATTI, 2009). Isto ocorreu porque, segundo Melatti (2009), através de uma “aliança” estabelecida com os criadores de gado, os Krahô empreendiam “guerras” com os povos indígenas vizinhos a fim de tomar-lhes os territórios para a atividade pecuária. Tendo as frentes de expansão se estabelecido, os Krahô deixaram de ser vistos como aliados e passaram a incomodar os fazendeiros (Idem: 24). Como “solução” para este problema, afirma Melatti (2009: 24): Havia um antigo projeto de afastá-los, como podemos notar em Pohl (1951, 2a. parte, p.139), para a foz do rio do Sono, a fim de constituírem a povoação de São Fernando, projetada por volta de 1810. Seria um modo de isolá-los da zona pastoril ao mesmo tempo que os punha sozinhos contra seus inimigos, os acuéns. Portanto, mesmo afastados, eles deveriam continuar a lutar em favor dos criadores de gado. O plano de transferência só foi, entretanto, realizado em 1848 com o estabelecimento da missão de Pedro Afonso, na foz do rio do Sono. O governo do Império havia autorizado a mandar vir da Itália missionários capuchinhos (Colleção das Leis ... de 1843, tomo V, parte I, pp. 25-26). A um deles, Frei Rafael de Taggia, coube a catequese dos índios craôs e xerentes, para o que criou o aldeamento de Pedro Afonso em 1848, transferindo para lá os primeiros, dedicando um outro aldeamento, o de Teresa Cristina (atual Tocantínia), às margens do Piabanha, aos segundos. Contudo, os Krahô “não permaneceram no lugar onde os havia estabelecido Frei Rafael, mas foram-se deslocando para o norte, vindo a ocupar o seu território atual” (Idem: 26): a terra indígena Kraolândia (homologada pelo Decreto nº 99.062, de 7-3-90) com cerca de 320.000 ha, localizada entre os rios Manoel Alves Grande e Manoel Alves Pequeno, afluentes da margem direita do Tocantins, nos municípios de Itacajá e Goiatins, nordeste do estado do Tocantins. 34 Vejamos o mapa a seguir: Figura 02: Deslocamento Krahô a partir do século XIX Fonte: Melatti, 2009:919. 19 O município de Barra do Corda (MA) não consta no mapa original, ele foi aqui acrescentado, com base em uma localização aproximada, tendo em vista sua importância para os Krahô-Kanela enquanto região de origem. 35 Esses deslocamentos constituem o contexto sócio-histórico que compõe a narrativa dos Krahô-Kanela sobre seu processo de territorialização. Ao narrar sua história e a fim de conectá-la à história do povo Krahô, os Krahô-Kanela remetem-se ao seu território “originário” na região conhecida como Morro do Chapéu, entre as cidades de Carolina e Barra do Corda, no estado do Maranhão20 No “Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da terra Indígena KrahôKanela” (ALMEIDA, G., 2004), a versão narrada sobre Florêncio situa seu nascimento nessa região por volta de 1885 e relata ele ter abandonado o povo Krahô “para morar com a família de Manoel Soares, criador de gado da Ilha de Balsas, ainda no Maranhão” (Almeida,G., 2004: 77). De acordo com Arsênio (um dos filhos de Florêncio), em entrevista concedida à antropóloga Graziela de Almeida, Florêncio casou-se pela primeira vez no ano de 1902 (com a primeira esposa teve dezesseis filhos) e, por volta de 1907, deixou a região da Ilha de Balsas, deslocando-se para a região da Bacaba (Idem: 77, 78)21, onde já se encontravam os Krahô. Alderez Krahô-Kanela, em sua narrativa, aponta o que seria a razão para o deslocamento de Florêncio e sua família: A trajetória do meu povo é do Maranhão pra cá. A gente não viveu tudo isso, mas sabe algumas coisas pontilhadamente por ouvir minha mãe falar, meu pai, meus tios, os mais velhos que contam. Os Krahô-Kanela, meu pessoal saiu do Maranhão. Era identificado nessa época só como Krahô, não como Krahô-Kanela. O nome Krahô-Kanela é um nome recente. Meus avós saíram do Maranhão, eu não sei dizer o motivo certo, sei que eles saíram por causa de um massacre, uma briga que teve no Maranhão e eles tiveram que migrar pra outras terras, pra outro estado, sem ter um local determinado pra ficar22. Sofreram muita discriminação, muita peregrinação, pobreza porque não tinham terra pra habitarem. Ele [Florêncio] saiu com a mulher e os filhos que eram pequenos ainda, poucos que alcançavam doze anos de idade, os outros eram pequenininhos. Chegando no estado de Goiás, que hoje é Tocantins, eles chegaram do outro lado do rio Tocantins, nas proximidades do rio Sono, [do rio] Manoel Alves Pequeno e [do rio] Manoel Alves Grande (Alderez 20 Em resposta à minha solicitação de dados etnográficos sobre os Krahô, o professor Dr. Júlio César Melatti me relatou que a localidade Morro do Chapéu a que os Krahô-Kanela se referem (chamada pelos Krahô de Wokrã) fica próximo de Carolina. Esclarece, no entanto, que Curt Nimuendaju, no livro “The Eastern Timbira”, indica outra localidade, com o mesmo nome, no alto rio Pindaré, município Alto Alegre do Pindaré (Melatti, comunicação pessoal, 23/10/2009). 21 A região conhecida como Bacaba foi habitada pelos Krahô quando estes se deslocaram para o então estado de Goiás. Contudo, ficou fora dos limites demarcados da atual terra indígena Kraholândia. 22 Os Kanela do Araguaia também relatam a ocorrência de um massacre que os teriam obrigado a deslocar-se da mesma região que os Krahô-Kanela referenciam como sua região “de origem”. Estes dois povos fizeram uma trajetória muito semelhante até se fixarem nos respectivos territórios onde se encontram atualmente. Ver Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Série: Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil Central. Fascículo 1. Povo Indígena Kanela do Araguaia, Manaus 2009. 36 Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010, grifos meus). Já no atual estado do Tocantins e também junto ao povo Krahô, Florêncio teria residido em três aldeias: Pedra Furada, Pitoró e Donzela, conforme depoimento de Mariano: Ele [Florêncio Krahô] falou que o lugar que eles moraram foi Pedra Furada. Foi pouco tempo, mas foi o lugar que eles ficaram mais tempo. De lá eles saíram. Teve um período no Pitoró; do Pitoró foi pra Donzela, que foi de onde ele saiu do meio do povo. Hoje essas duas áreas não estão dentro da terra deles [do povo Krahô]. Quando eu tive lá fazendo uma visita pros Krahô eles falaram que essas duas áreas não estão dentro da terra demarcada, mas eles estão reivindicando elas, que é área de aldeia (20/01/2010, grifos meus). Conforme Melatti (2009), as aldeias acima mencionadas por Mariano foram registradas por Curt Nimuendaju na ocasião de sua visita ao povo Krahô, no ano de 1930. O etnólogo teria encontrado o povo dividido em três aldeias: Pedra Branca, Pedra Furada e Donzela. Parece que quando esse pesquisador esteve entre os craôs, em 1930, esta aldeia [Donzela] já era fruto de uma cisão que sofrera uma outra aldeia maior, situada em Pitoró: uma parte foi localizar-se em Donzela, chefiada por Secundo; outra permaneceu em Pitoró, tendo Bernardino como "capitão". Este último grupo abandonou logo a forma circular da aldeia, os cerimoniais e passaram as famílias que o constituíam a morar em casas afastadas umas das outras, segundo o padrão dos civilizados da área. Pouco a pouco, porém, os membros do grupo de Pitoró foram-se passando para o de Donzela e com isso retornando aos costumes indígenas (Melatti, 2009: 31,32, grifo meu). Em 2006, quando eu ainda atuava no CIMI, em visita à aldeia Krahô denominada Campo Limpo, conversei com o Sr. José Miguel Krahô, morador e antigo cacique da aldeia Pedra Branca (que se encontrava naquela para trabalhar na roça de seu filho, cacique Renato). Este, ao me questionar se “o problema dos Krahô-Kanela” já havia sido solucionado, disse apoiar a luta deste grupo por acreditar, segundo suas próprias palavras, que “eles realmente são índios porque eles sabem contar sua história direitinho (...) são eles que sabem o que eles são” (11/03/2006). Ao relembrar histórias do passado, o sr. José Miguel contou sobre uma antiga briga Krahô, acontecida na época em que ainda moravam na região de Carolina (MA). Tal briga aconteceu porque alguns indígenas teriam matado a ema de uma família, que teria ficado com muita raiva, daí começaram as hostilidades entre esta família e os demais indígenas que teriam matado seu animal. Depois desse episódio, os Krahô começaram a “descer” do Maranhão até chegar à região atualmente por eles habitada. As brigas tornaram-se frequentes até a família se separar do grupo. Dispersa, esta família (e o grupo formado a partir 37 dela) passou a ser denominada pelos Krahô por “Mãkraré” (filhos da ema), e construiu a aldeia chamada Donzela (José Miguel Krahô, 11/03/2006). Alfredo, um dos filhos de Florêncio, do qual descende o grupo aqui tomado por Krahô-Kanela, segundo depoimento de Mariano, teria nascido e sido criado nesta aldeia. Conforme os Krahô-Kanela relataram a Graziela Almeida (2004: 10), Florêncio se viu obrigado a deixar o povo Krahô após a ocorrência de um outro massacre praticado por volta de 1926. Em outra ocasião, “Mariano contou que seu pai e seus tios fugiram quando duas aldeias Krahô foram atacadas pelos fazendeiros Mundico Soares e Santiago” (CIMI, Equipe Guaraí, 2003). Mariano refere-se a este como o massacre do Manoel Alves (já que o massacre ocorrera às margens do rio Manoel Alves) – a partir do qual Florêncio, com sua segunda esposa e filhos, “passou a buscar uma terra onde pudesse viver em paz” (Mariano, KrahôKanela, liderança, 20/01/2010). O massacre responsável pela partida de Florêncio se deve à relação instável e conflituosa entre os Krahô e os criadores de gado. Possivelmente vários enfrentamentos entre eles se davam de forma violenta. O episódio mais conhecido e registrado na bibliografia referente a este conflito diz respeito ao “massacre de 1940”, quando o fazendeiro Mundico Soares, filho de Agostinho Soares23, liderou o ataque às aldeias Pedra Branca e Pedra Furada com o objetivo de por fim aos furtos de gado dos quais os Krahô eram acusados24. A notícia deste massacre repercutiu nacionalmente, gerando, como consequência, o início do procedimento demarcatório do território Krahô (MELATTI, 2009: 27,28). Melatti (2009:28) sinaliza, porém, que haveria acontecido um massacre anterior ao de 1940, “sobre o qual as notícias são muito vagas. Nessa ocasião, o fazendeiro Agostinho Soares teria interferido a favor dos índios. Tal ataque não teve, por outro lado, a repercussão e as consequências do assalto de 1940”. Referências a esses massacres são recorrentes nas narrativas dos KrahôKanela. 23 Agostinho Soares, criador de gado vindo do Maranhão, foi um dos maiores fazendeiros naquela época. Segundo registros, ele era reconhecido como “amigo dos índios”. Em dada ocasião, sua fazenda foi rendida por peões que ensejavam roubar-lhe seu rebanho e dinheiro. Agostinho fugiu para pedir proteção em uma aldeia Krahô, de onde partiram quinze guerreiros que conseguiram impedir o assalto. Como recompensa Agostinho Soares, até sua morte, presenteava os indígenas, anualmente, com dois bois (Jornal do Tocantins, 15/02/2003, p. 1). 24 “Mundico Soares assumiu o controle da fazenda em meados da década de 1930 com a morte de Agostinho Soares e mudou o modo de se relacionar com os índios, chegando a um confronto com os mesmos por causa das reses que eles matavam. Juntando-se a outros fazendeiros e com a ajuda da polícia, partiram para o ataque” (Jornal do Tocantins, 15/02/2003, p. 1). 38 O tio Aleixo [Krahô] falou pra nós que depois desse massacre [primeiro massacre ocorrido no estado do Maranhão] esparramou gente pra todo lado. Aí depois, aqui, já na terra de Goiás [atual estado do Tocantins], teve outro massacre de um tal de Raimundo [Mundico Soares] que eles correram também. Desse local a tia Rosa correu com o papai [Alfredo] no braço, ele tinha 4 anos de idade, ela tinha 12 anos. O tio Aleixo falou que no local desse massacre a água do córrego corria vermelha de sangue, porque os índios corriam pra grota e eram mortos na travessia. Em Santa Maria, próximo a Itacajá, tinha uma fazenda - onde hoje é a sede do Kapey [associação Krahô], foram eles que massacraram os Krahô. O Tipinha [Arsênio], meu tio, tava com 14 anos de idade, ele foi vaqueiro pra eles, pro fazendeiro, um tal de Agostinho, e o filho dele foi quem fez o massacre. Eles viviam assim, trabalhavam numa fazenda, moravam como agregado, tocavam boiada pra longe. Aí eles vinham correndo de todos esses massacres. Cada local que eles chegava eles plantava uma roça e já aparecia um dono. Ás vezes eles moravam como agregados, e os donos queriam que eles vivessem como homem branco, mexendo com gado – foi com isso que meu pessoal aprendeu a trabalhar com gado. (...) eles ficaram andando de um local ao outro, trabalhando com fazendeiro, negando sua identidade, porque eles não podiam falar do passado, não podiam falar a língua deles, eles não podiam apresentar nenhuma outra cultura além da de viver no mato. Se trabalhavam pra outra pessoa e se identificavam como índio eram mandados embora, porque no local onde eles chegavam tinha apoio do fazendeiro, mas nessa condição: ‘ vocês não vão dizer que são índios (Alderez KrahôKanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Nos depoimentos acima, Mariano e Alderez, além de relatarem como a ocorrência do massacre acarretou a separação de Florêncio e sua família do povo Krahô, também demonstram a aproximação ainda maior do grupo com a lida com o gado. Veremos, no capítulo 2, que esta atividade será determinante para construção da tradicionalidade da terra Mata Alagada, território reivindicado pelos Krahô-Kanela. Percebemos ainda que, por meio das narrativas, os Krahô-Kanela também interpretam e refletem sobre a experiência sócio-histórica do seu grupo. A memória coletiva é acionada e os indígenas reforçam a positividade do grupo explicitando o vínculo com seu ancestral de origem, guardando fatos deste período distante como uma estratégia para demonstrar sua continuidade histórica e legitimar sua etnicidade. Nos dizeres de Oliveira (2004: 32,33) A etnicidade supõe, necessariamente, uma trajetória (que é histórica e determinada por múltiplos fatores) e uma origem (que é uma experiência primária, individual, mas que também está traduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplar). O que seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade. 39 Os Krahô-Kanela lamentam, porém, não conhecer, em detalhes, a história de seus antepassados, por se tratar de um assunto triste, do qual “os mais velhos não gostavam de falar, por causa do sofrimento e do medo dos fazendeiros, do massacre...” (Mariano, KrahôKanela, liderança, 17/01/2010); justificando também que, determinados assuntos, “naquele tempo os adultos não conversavam na frente das crianças” (Dona Inês, 14/01/2010). O reconhecimento analítico destas falas como estratégia discursiva que permite aos KrahôKanela a flexibilidade na construção de seus relatos históricos não nos autoriza, enquanto antropólogos, a desmerecer a relevância do sentimento provocado pelo tema da interlocução no grupo. Sobre a figura de Florêncio, Mariano relata: Eu era pequeno quando ele morreu, então eu lembro poucas coisas dele. Eu lembro que ele gostava de colher fruta como mamão, banana, macaúba, essas coisas assim. Ele gostava de colher e trazer pra nós, lima, goiaba, mexerica, laranja, ele gostava de apanhar pra nós; aquelas tangerinas grandes ele descascava e dava pra nós, a lima ele descascava pra gente não cortar mão. Ele gostava muito de carne assada e sempre que ele ia comer uma carne ele chamava todo mundo e repartia com nós. Ele gostava muito de leite; naquele tempo o pessoal já tinha gado, um pouquinho, e ele gostava muito de leite; botava farinha na cuia e mandava tirar o leite em cima... não era muita farinha não, era mais leite em cima; aí chamava nós tudinho pra comer. E depois nosso pai fazia isso também. (...) Ele não gostava de conversar sobre a história do povo dele, ele nunca gostou de falar. Ele gostava, assim, de brincar mais nós... dificilmente, mas de vez em quando ele brincava. Ele gostava de observar nós brincar, ele ficava olhando, mas não gostava de falar nada não. Às vezes a gente sentava no cofo de gado, às vezes na esteira, a noitinha, ele gostava de conversar, de contar alguma coisa, mas não do povo dele, era mais brincadeira (20/01/2010). No ano de 2003, época em que os Krahô-Kanela residiam no assentamento Loroti, também conhecido como Capão de Coco, e que estavam sendo realizados os estudos de identificação e delimitação da terra indígena, o CIMI promoveu uma visita do Sr. Aleixo Krahô, ancião e liderança, ao grupo Krahô-Kanela, com o objetivo de estimular a aproximação entre eles e provocar uma espécie de “reavivamento” de memórias que pudessem ajudar a elucidar a história do grupo25. Mariano, ao se referir a este episódio, esclareceu-me que Aleixo Krahô era filho de Margarida, irmã de Florêncio, cujo nome indígena seria Ipôi. A seguir transcrevo um trecho da entrevista onde Alderez Krahô-Kanela narra o encontro: 25 Além do Sr. Aleixo, também participaram da visita, ocorrida em 15/07/2003, Rufino, Vilma, Juliana e Liberato, lideranças Krahô das aldeias Morro do Boi, Macaúba e Sta. Cruz (CIMI, Equipe Guaraí, 2003). 40 Em 2003 ele veio visitar nós, veio ele com uma família, eles vieram em sete pessoas. Tiveram conosco por três dias. Foi uma visita rápida, mas muito alegre, porque a gente conheceu essa pessoa que se identificou como nosso tio-avô. Ele contou pra nós a história do sofrimento do grupo Krahô quando esse grupo saiu do Maranhão. Ele contou a história que meu avô Florêncio era tio dele, irmão da mãe dele, e que pra ele tinha sido uma surpresa muito grande porque há tempos eles tinha ouvido falar em nós, mas não conhecia pessoalmente. Então ele veio pra nos conhecer e saber se realmente a gente era desse grupo dele. Quando ele chegou, armamos uma rede pra ele deitar, ele deitou e pediu que o Mariano sentasse perto dele. Ele mandou o Mariano contar nossa história, ele queria primeiramente ouvir o Mariano contar a história. Aí o Mariano contou a pequena história que ele sabia, porque o Mariano, na época, não era nascido, ele contou só aquele pouquinho que ouvia o meu pai e o meu avô falar.... aí ele contou. Aí o velho Aleixo levantou e veio abraçar nós tudinho e disse que ele era realmente nosso tio-avô, que daquele momento em diante, se nós quisesse, poderia chamar ele de avô Aleixo. Ele falou que agora estava satisfeito, que naquele momento se ele morresse, ele tava satisfeito porque ele tinha conhecido uma família do sangue dele, que nunca ele pensava de encontrar porque ele tinha perdido o contato completamente na década de 20; eles tinham perdido esse contato e nunca mais tinha ouvido falar pra onde o Florêncio tinha ido, não sabia se ele tinha morrido ou se tinha fugido porque, ao terminar o massacre, eles não se viram mais, não se comunicaram mais. (...) Sempre a gente tinha notícia dele... encontrava com outros Krahô e ele mandava recado pra nós, que tava esperando nós e que queria vir também onde nós tava. Depois que a gente voltou pra terra, ele não conseguiu vir [Aleixo faleceu em junho de 2009] (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010, grifo meu). 1.2.2 - A peregrinação de Florêncio e sua família Percebemos, até aqui, como as frentes de expansão econômica condicionam os processos de territorialização indígena e a política indigenista, conforme já analisado por Oliveira (1988, 1994, 2004) e Ferreira (2007). O processo de territorialização dos Krahô ao longo dos séculos XIX e XX foi desencadeado pelas frentes agrícola e pastoril e posteriormente dirigido pelo Estado, através do regime tutelar26. Para Oliveira (2004: 23), seria a presença colonial responsável pela constituição de uma nova relação da sociedade com o território, intervindo arbitrariamente para a fixação “de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados”. Todavia, não se trata de um movimento de mão única, do qual os indígenas estejam alheios, esclarece Oliveira (2004: 24) 26 A construção de ‘povoações indígenas’, ‘centros agrícolas’, ‘parques’, ‘reservas’, são exemplos de processos de territorialização dirigidos pelo Estado, via agência de contato. 41 (...) processo de territorialização é precisamente o movimento pelo qual um objeto político administrativo – nas colônias francesas seria a ‘etnia’, na América espanhola as ‘reducciones’ e ‘resguardos’, no Brasil as ‘comunidades indígenas’ – vem se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso). (...) As afinidades culturais ou lingüísticas, bem como os vínculos afetivos e históricos porventura existentes entre os membros dessa unidade político-administrativa (arbitrária e circunstancial), serão retrabalhados pelos próprios sujeitos em um contexto histórico determinado e contrastados com características atribuídas aos membros de outras unidades, deflagrando um processo de reorganização sociocultural de amplas proporções. O autor chama atenção para os múltiplos aspectos da vida social que são articulados e reordenados através deste processo, entre eles: culturais, econômicos, políticos, simbólicos e identitários. Interessa-nos, assim, atentar para o modo como estes aspectos foram sendo reordenados a partir da separação de Florêncio e sua família do povo Krahô, e do seu subsequente movimento de territorialização - se assim considerarmos o que os Krahô-Kanela chamam de “peregrinação”. Segundo o relato de Mariano, após separar-se do povo Krahô, Florêncio, sua segunda esposa e os filhos teriam se instalado em duas localidades da área indígena Xerente (município de Tocantínia, TO): Gorgulho e Jenipapo (esta última, próxima à aldeia Porteira)27. Posteriormente, por volta de 1938, de acordo com o relato de D. Inês, o grupo se estabeleceu na Serra do Carmo, no local por eles denominado de Testa Branca – porção centro-oeste do estado do Tocantins, próximo ao território onde, anos depois, seria construída a capital Palmas28. Dona Inês e seus pais já moravam nesta região quando da chegada de Florêncio, e conforme conta, ela sempre foi “criada como branca, mas o Florêncio e sua família sempre foram tidos como índios por onde passava” (Dona Inês, 14/01/2010)29. Ela e Alfredo (filho de Florêncio) casaram-se em 1945, sendo que a filha mais velha do casal, Gentileza, nasceu nesta região. Outros filhos de Florêncio – Antônio, Celé, Rosa, Antão, Anísio – também casaram-se neste período; alguns, à medida que iam se casando, também se separavam do grupo: 27 Mariano não soube precisar a data e o tempo em que permaneceram nessas localidades. Segundo Graziela Almeida (2004: 11), o grupo teria permanecido neste local de 1933 a 1949. 29 D. Inês, nascida em Pedro Afonso (TO), onde morou até os seis anos de idade, é filha de Damásio Gonçalves (índio Kanela) e Eva Aguiar (não-indígena). 28 42 Os filhos foram casando e foram saindo e ele ficou ali com outros filhos... ele teve muito filho! Ele possuiu duas mulheres e diante das duas mulheres ele teve vinte e dois filhos. E ficou ali até quando apareceu um novo dono daquelas terras e eles saíram da Serra do Carmo e vieram pra próximo do rio Tocantins, num local denominado Água Fria (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Figura 03: Dona Antônia e Alderez Krahô-Kanela Fonte: Kariny Teixeira de Souza. Acervo de pesquisa, janeiro de 2010. Dos filhos de Florêncio Krahô, apenas três estão vivos: Dona Antônia (foto acima), Arsênio e Francilina. Dona Antônia mora em Cristalândia, mas mantém contato frequente com o grupo, que a tem em grande estima. No período de realização da pesquisa ela estava passando uns dias na aldeia, onde também mora seu ex-marido, João Felipe. Da Testa Branca, o grupo se deslocou, então, para uma região denominada Água Fria, nas proximidades de Porto Nacional (TO)30. Em ambas as localidades, os Krahô-Kanela trabalharam para fazendeiros criadores de gado, mas “eles ficaram aí por poucos anos porque, novamente, apareceu um dono da terra. Aí eles atravessaram o rio Tocantins e vieram para a região de Cristalândia [TO]” (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 30 Não souberam precisar a data deste deslocamento bem como o tempo de permanência neste local. 43 26/01/2010). A partir de então os Krahô-Kanela habitaram diversas localidades pertencentes ao território deste município. Por volta de 1949, estabeleceram-se na localidade denominada Mumbuca. “Mumbuca é um riachozinho; aí, em três locais, o pessoal se instalou: se instalaram perto da cabeceira... primeiro foi mais no meio, depois mais embaixo, depois mais em cima” (Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/01/2010). Alderez nomeia dois desses locais à beira do Mumbuca: Capão dos Caboclos e Macaúba. Nessa região, nasceram os demais filhos de Alfredo Krahô e Inês Kanela. Nessa época, nessa divisa de Mumbuca, lá eles ficavam longe um do outro, mas, quando eles saíam pra caçada, em qualquer local, pra fazer alguma viagem em alguma região, ia sempre os quatro irmãos. É claro, tinha as mulheres, irmãs, mas os homens é que predominavam, né. Sempre estavam junto, que eram meu pai, o tio Antônio, o Xavier e o Pinha [Arsênio]. As roças eram juntas, tudo deles era junto. Apesar de ficar morando meio longe um do outro, sempre se reunia pra qualquer coisa, né... e procurando um local onde pudessem ficar junto (Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/01/2010). Através do depoimento de Mariano e da conversa com outros indígenas, é possível presumir que, nessa época, as famílias nucleares que compunham o grupo habitavam áreas dispersas, as quais chamam de locais de temporada. São eles: São Luiz, à beira do rio Urubu – onde Florêncio faleceu e foi enterrado; Poço Danta; Salina; Mineiro; Pedra; Onça e Atoleiro. Isso tudo é localidade que esse grupo morou. E em todos esses lugares por onde eles moraram eles foram identificados caboclos... era ‘os locais dos caboclos’. Era índio, mas até hoje, na região, não se fala índio, só caboclo31. E eles moraram nessas terras até permanecerem de vez na Mata Alagada (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Segundo Alderez, os Krahô-Kanela ficavam fazendo pontilhação da beira do Mumbuca até chegarem à terra Mata Alagada no início da década de 60. Ela ainda esclarece que, na localidade da Onça, os indígenas começaram a criar o próprio gado e sinaliza que esta atividade acabou por levar o grupo à terra Mata Alagada: Lá no Onça era muito bom de pasto e muito bom de aguada. Lá eles começaram a criação de gado. Cada um tinha um pouquinho: o Pinha tinha um pouquinho, o Xavier tinha um pouquinho, o Antônio Caboclo era o que tinha mais, o papai tinha pouquinho. Os filhos que foram crescendo e foram casando foram criando pouquinho também. Aí, no dia que resolveram, trouxeram tudo pra Mata Alagada, porque aqui era bom como você pode ver (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). 31 No próximo capítulo, realizarei uma reflexão acerca da categoria caboclo. 44 1.2.3 – A Terra Mata Alagada e a aldeia do Lago da Praia Entre 1959 e início de 1960, o grupo residia na região denominada Atoleiro, município de Cristalândia. Os Krahô-Kanela relatam que sua chegada à terra Mata Alagada – ou ao Lago da Praia32 - se deve a duas atividades apreciadas pelo grupo: a caça e a criação de gado. Segundo os indígenas, ao realizar uma expedição de caça e pesca, Alfredo Caboclo, conheceu um índio pertencente a etnia Javaé ou Karajá chamado Ibidjauá (ou Ididorá) que o convidou a se instalar com seu grupo na referida terra33. A seguir, transcrevo trechos de três narrativas por serem complementares no que se refere à chegada do grupo à Mata Alagada: A região lá [Atoleiro] era muito escassa de caça. No começo do verão, eles gostavam de vir caçar, caçar num local mais distante, né. Quando eles vieram a primeira vez tava chovendo muito aí não puderam ficar, aí voltaram e prepararam pra vir no outro ano. Quando foi no outro ano eles vieram. Eles fizeram duas explorações nessa época. Quando eles vieram pro Lago da Praia eles vieram pela parte de fora, vieram beirando a mata até num lugar chamado Canto Bom, onde eles atravessaram. Nesse local, os brancos subiam com os barcos vendendo uns trens e já tinha uma fazenda, aí lá os barcos ficavam. Eles botaram o nome do lugar de Armazém. E ali eles encontraram um índio Karajá, que foi quando eles vieram pra cá. E da primeira vez que eles vieram, eles vieram pra aldeia Dueré34. E de longe, muito longe, enxergava aquela mata – onde terminava o cerrado e começava a Mata Alagada... muito longe, mas eles pegaram a direção já sabendo que era tudo alagado... porque já tinha entrado umas duas vezes pra alcançar aquela terra seca. Aí eles vieram a pé, por dentro da mata. Quando atravessaram as aguadas velhas aí viram a estrada pro rumo do morro – mas era estrada só de bicho, de anta, de porcão, só carreira de bicho. Aí eles falaram: ‘aqui vai pra terra seca’; aí eles cortaram naquele rumo e aí acharam o morro e ali fizeram os alicerces. No outro ano eles vieram até o rio Formoso, aí quando atravessaram o rio Formoso eles gostaram demais do lugar: tinha muita caça, peixe, gostaram mesmo do lugar, parece, assim, que abriram o coração pro lugar, sem ninguém pra perturbar, sem nada. (...) O índio Karajá eles só viram na primeira vez que vieram. Eles vinham e ficavam entrando, explorando mais lugares da região (Mariano KrahôKanela, liderança, 20/01/2010, grifo meu). 32 Mata Alagada refere-se à área que compreende a terra tradicional como um todo, enquanto Lago da Praia seria a denominação da antiga aldeia Krahô-Kanela. 33 Não há consenso quanto à etnia de origem deste indígena “anfitrião”. Tanto os documentos pesquisados, quanto os próprios Krahô-Kanela referem-se a ele ora como Javaé, ora como Karajá, já que ambas as etnias encontram-se, em territórios demarcados, no interior da Ilha do Bananal. Contudo, a maior proximidade geográfica da Mata Alagada seria com as aldeias Javaé, indicando uma maior possibilidade de que o referido indígena seja membro desta etnia. Para Toral (1985:4), não há dúvidas de que se trate de um índio Javaé, já que os aldeamentos Karajá localizam-se do outro lado da Ilha do Bananal, limitando-se ao curso principal do Araguaia. 34 Antiga e extinta aldeia Javaé. 45 Quando ele [Alfredo] chegou aqui, eu não me lembro a época mais não, quando ele veio pra cá ele morava no Atoleiro, e lá, de verão, fica ruim pro gado, aí eles começaram a por o gado em Dueré, onde tinha um retiro bom. Aí eles vinham de verão e voltava no inverno. Aí chegou um fazendeiro que disse que era dele, que não era mais pra por o gado lá. Aí eles ficaram sem saber onde ia por o gado. Aí chegou um índio Javaé e falou: ‘ali tem um lugar muito bom, até se vocês quiserem morar é bom pra morar, é enxuto e lá não é de ninguém não, lá não tem dono não. Se você quiser eu mostro ele pra você’. Aí juntou os quatro irmãos [Alfredo, Xavier, Antônio e Arsênio] e vieram ver. Chegaram, agradaram do lugar e nesse ano mesmo eles começaram o serviço no lugar. Fizeram o curral, fizeram o barraco e no outro ano vieram embora. Aí saíram da Mumbuca e vieram pra esse local chamado Lago da Praia. Do Lago da Praia vieram pra esse local onde nós tamo hoje [onde atualmente é a aldeia Lamkraré], que aqui é furo de pau... um tio meu, caçando, achou muito bonito o lugar, a mata, aí colocou uma rocinha aqui, fez um rancho, uma casinha; aí, de vez em quando ele vinha caçar aqui, plantar. A vida deles era assim mesmo, andando e caçando (Raimundo Krahô-Kanela, 22/01/2010, grifo meu). O primeiro facão que cortou mato no Lago da Praia, aonde eles fizeram aldeia na beira do rio Formoso, foi o nosso35. Eles roçaram, fizeram um alicerce pra marcar e foram embora decididos a retornarem. Isso no ano de 61. Aí eles entraram e foram desbravando. De primeiro não levaram mulher porque ficaram com medo. Primeiro de tudo foi tia Raimunda, esposa do Antônio Caboclo e a mamãe... aí depois foram indo as outras, aí levaram a mudança... aí foram acostumando e foi todo mundo. Mas, no primeiro ano que eles foram eles não levaram as mulheres (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). A bibliografia aqui analisada sinaliza que a área em questão teria sido, bem antes a chegada do grupo, um antigo aldeamento Javaé ou Karajá, tendo em vista os vestígios encontrados e o fato de ser limítrofe ao Parque Indígena do Araguaia, Ilha do Bananal. De acordo com Toral: (...) é possível que um Javaé [Ibidjauá ou Ibidorá], que estivesse se retirando, tivesse entrado em entendimentos com os chegantes para empréstimo, vigilância ou cessão do uso do lote. Certamente não seria o primeiro caso de negociações com terras feita por líderes Javaé, que detinham a ‘posse’ da área, com moradores, retireiros e fazendeiros que chegavam para ocupá-las. É provável ainda que a identificação dos filhos de Florêncio como ‘caboclos’ tenha criado alguma identidade comum que tenha facilitado os entendimentos (Toral, 1985:04, grifo do autor). 35 Durante o levantamento realizado por Toral, em dezembro de 1984, quando parte do grupo encontravase na cidade de Dueré, Alfredo Krahô teria proferido uma frase semelhante, posteriormente transcrita em relatório: “o primeiro facão que cortou lá foi o nosso” (Toral, 1985: 6). Ambos relatos constituem-se em narrativas argumentativas que afirmam a legitimidade do direito sobre a terra, a partir do tropos também usado pelo campesinato de fronteira que afirma o direito a terra por meio do seu trabalho sobre a natureza intocada. 46 Conforme os depoimentos acima transcritos, a ocupação da Mata Alagada não foi imediata: ao menos, inicialmente, os Krahô-Kanela ocuparam-na concomitante a outras regiões do cerrado, sendo a principal delas a localidade conhecida como Atoleiro. Isto devido à necessidade de adequar a atividade de criação de gado às variações sazonais36 Quando chovia muito e eles viam que ia encher eles pegavam o gado, no mês de dezembro, e voltava tudo pro cerrado, levava pro Atoleiro, levava pro Mineiro, levava pra Onça, pra esses locais, porque aqui [Mata Alagada] não podia invernar – eles temiam não só da água subir e tomar o gado, mas porque aqui também tinha muita praga, muriçoca... nessa época tinha muriçoca demais nesse varjão... aí eles levavam o gado pra essas localidades do cerrado (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010. Grifo meu). Assim, se no início da década de 60, a terra Mata Alagada foi ocupada na forma de “acampamento de verão”, nos anos subsequentes - entre 1963 (TORAL, 1985) e 1965 (ALMEIDA, G., 2004) - os Krahô-Kanela nela se fixaram permanentemente. 1.2.4 – “Saímos da terra foi por expulsão mesmo”37 No ano de 1976, os Krahô-Kanela começaram a ser ameaçados por pessoas que estariam interessadas na terra O pessoal chegou aqui e ficou amedrontando nós, fazendo medo. Como o pessoal já tinha matado os outros índios [Javaé] aqui o nosso pessoal ficou com medo. O gerente da [então fazenda] Capão de Coco nessa época fazia mais medo pro pessoal nosso, incentivando o pessoal pra ir embora que os outros iam chegar (Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/01/2010, grifos meus). Em documento escrito por representantes Krahô-Kanela, é relatado que um fazendeiro chamado José Flávio, acompanhado por quatro homens, chegou à aldeia do Lago da Praia dizendo-se dono da terra e disposto a pagar uma indenização para que os indígenas deixassem a propriedade. O sr. Milton [gerente da fazenda Capão de Coco] chamou os pais de família para uma combinação. Quando chegaram na fazenda o sr. José Flávio disse pra nós desocupar a área que ele ia nos indenizar, e nós falamos que não saía 36 À semelhança do que descreve Evans-Pritchard (2005) sobre o tempo ecológico dos Nuer. O autor nos explica que em função dos Nuer serem essencialmente pastores e de toda a sua vida social girar em torno do gado, suas atividades econômicas, políticas e sociais etavam estreitamente relacionadas à sazonalidade. 37 Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/01/2010. Quando me referir a este fato ao longo do trabalho, utilizarei o termo expulsão e /ou expulsos porque esta é a expressão utilizada pelos indígenas. 47 da terra, que ela é nossa por isso não queria dinheiro. Eles levaram nós para uma sala . O Sr. Milton nos disse que era melhor nós aceitar o dinheiro porque esse povo é rico e perigoso, ‘é melhor aceitar porque vocês vai sair de qualquer maneira’. Obrigaram a receber 10 cruzeiros e só cinco recebeu38 (Documento da comunidade, 16/09/2001:s/p, grifo meu). Ressalto que o recebimento deste valor irrisório e não aceito por todos, bem como a futura “indenização” que receberiam para desocupar a Ilha do Bananal, para onde foram deslocados pela própria Funai39, serão utilizados como argumento pelo órgão indigenista para questionar-lhes a identidade étnica e o direito ao reconhecimento e demarcação da terra Mata Alagada. De acordo com a avaliação dos antropólogos do MPF, Um dos motivos alegados pela Funai para negar-lhes o direito ao reconhecimento da terra tradicional, foi de que parte do grupo recebeu dinheiro pela terra perdida: como poderiam justificar como tradicional aquela terra que teriam, supostamente, vendido? O Sr. Valdete relata que foi intenso o processo de persuasão e pressões, intermediado por um tal senhor que, como emissário do proprietário e travestido de amigo dos índios, lhes fazia chegar que os poderosos proprietários, detentores da titularidade e dos ‘direitos’ sobre a terra, de modo voluntário lhes ofereciam uma recompensa, à qual ‘não tinham direito’, mas de modo benemérito estava posta à disposição. Caso contrário seriam expulsos à bala, pois ‘não deteriam direito algum sobre a terra, nem fariam jus à recompensas monetárias. Portanto a alegação da intencionalidade da venda da terra encobre esse contexto de pressões e ameaças que lhes impôs o seguinte raciocínio, ‘melhor receber alguma coisa do que sair sem nada’ (Schettino e Santos: 2009:9). Entre setembro e outubro de 1976, os Krahô-Kanela foram expulsos de seu território pela Companhia e Cervejaria Brahma40, com base na alegação de que esta empresa, tendo comprado a terra do fazendeiro José Flávio, seria a legítima proprietária do imóvel. “Nós saímos porque botaram nós pra fora, a Brahma botou pra fora. Chegou um dia lá dizendo que a terra era deles, que tinham comprado, que era pra nós ir embora, que não queriam nós lá. Nós pelejou pra não sair, mas não teve jeito.” (Raimundo Krahô-Kanela, 22/01/2010). Abro aqui um parêntese com vistas a contextualizar brevemente a conjuntura políticoeconômica da época. Em artigo sobre a expropriação fundiária no antigo norte de Goiás, atual Tocantins, Mauro e Oliveira, J. E. (2010) esclarecem que, com a inauguração da rodovia Belém-Brasília ou Transbrasiliana – BR 153, na década de 1960, as terras da região tornaram38 Segundo me relataram, quatro pessoas receberam o pagamento: Arsênio, seus filhos Waldete e Walter, e Xavier. 39 Este episódio será descrito no capítulo 2. 40 A data de 1976 me foi relatada pelos próprios indígenas durante a realização do trabalho de campo, razão pela qual a utilizo ao longo deste trabalho, porém, em outros documentos a data referida ao fato da expulsão é 1977. 48 se valorizadas, o que despertou o interesse e a cobiça de grileiros e especuladores. Como resultado, terras devolutas, tribais, invadidas ou ocupadas foram griladas ou compradas a preço simbólico, por grileiros, latifundiários, fazendeiros e empresários implicando na expulsão, ou subordinação de índios, sitiantes, caboclos, posseiros e colonos (BARBOSA, 1989/1990: 121 apud MAURO e OLIVEIRA, J. E.,2010: 108). Isso com a conivência e legalização por parte do Estado que, através da criação do Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás – IDAGO, órgão responsável pela venda e titulação das terras devolutas, “titulou territórios tradicionais a favor de terceiros, os representantes das frentes pioneiras” (MAURO e OLIVEIRA, J, E., 2010:103). 41 Tendo em vista que os Krahô-Kanela tinham por costume realizar suas atividades econômicas sazonalmente, com base nas variações climáticas ao longo do ano, utilizando não apenas a área compreendida pela Mata Alagada, como também a região de cerrado circunvizinha42, algumas famílias não estavam presentes na aldeia no momento da expulsão: Quando chegou a notícia pra nós, nós tava no Atoleiro. Meu pai chorou como criança, era final de setembro. Aí, no outro dia papai foi falar com o tio Antônio que tava no ‘Mineiro’, que era outra localidade nossa: ‘Antônio, o pessoal invadiu a terra , o Lago da Praia e tirou todo mundo de lá.’ Isso foi um pânico, muito choro, bateu uma tristeza nesse povo tão grande! (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010) Após a expulsão, a família de Alfredo voltou para a região do Atoleiro, mas, em seguida, com apoio do prefeito de Dueré, foi instalada na periferia do município. Nós voltamos pro Atoleiro, mas aí nosso pessoal viu que não tinha condições de ficar lá porque não tinha mato, era seco, de verão era muito ruim. Aí de lá nós saímos pra caçar um lugar melhor e também caçar um jeito de voltar pro Lago da Praia. Aí nós fomos pra Dueré... isso foi de 79 pra 80 (Mariano, Krahô-Kanela, liderança, 20/01/2010). As demais famílias se dispersaram entre as cidades circunvizinhas, tais como Formoso do Araguaia, Aliança do Norte, Gurupi e Cristalândia. Mariano relata o afastamento das mesmas e a intenção de sua família em retornar à terra: Quando o pessoal saiu [da Mata Alagada], nós ficamos pensando como fazer pra voltar pra cá... mas aí nós ficamos também sem contato com o nosso pessoal, com os outros parentes, porque um saiu para um rumo, outro pra 41 Como reflexo, até os dias atuais, intensificou-se na região os grandes empreendimentos agropecuários, voltados à pecuária extensiva e produção de grãos, especificamente, soja e arroz. 42 Refiro-me, especialmente, à atividade pecuária. A terra Mata Alagada é propícia para a criação de gado, contudo, no período das chuvas, a área se transforma numa grande várzea, sendo necessária a retirada do gado para uma área mais seca, de cerrado. 49 outro rumo. Quem ficou mais fácil de nós conversar foi o Zé Caboclo porque ele ficou na Barreira do Formoso, os outros saíram pra mais longe; nós sabia onde estavam mas era difícil pra ir (Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/01/2010). De acordo com Toral (1985:6), Alfredo Krahô procurou ajuda junto ao Sindicato Rural de Cristalândia, onde teria sido aconselhado a retornar à sua terra, sem que, contudo, lhes oferecessem apoio ou garantias. Conforme o relato de Felicíssimo Krahô-Kanela, o seu pai, Alfredo, tentou retornar a terra, mas, diante da possibilidade de um conflito, recuou. Em 77, o pessoal quis voltar de novo, aí eles ameaçaram: se viesse eles iam matar. Aí o pessoal ficou com medo e não veio mais. Mas papai tentou voltar. Nós veio, limpou um local que tava sujo e aí, no segundo dia, já de tarde, nosso pai observou que eles iam atacar. Aí atravessamos pro outro lado do rio, aí de noite, lá no barracão, o pessoal foi e falou ‘se nós voltasse pra lá não saia mais não, eles iam matar’. Aí o pessoal não veio mais não (Felicíssimo Krahô-Kanela, 18/01/2010). A expulsão da terra Mata Alagada desencadeou uma nova etapa em seu longo processo de territorialização e uma nova reconfiguração do grupo: enquanto algumas famílias se dispersaram, buscando individualmente os meios necessários para seu sustento, a família de Alfredo permaneceu unida e empreendeu esforços junto à Fundação Nacional do Índio – Funai para retornar à Mata Alagada através de sua demarcação como terra tradicional43. Este trabalho refere-se, portanto, a este grupo, cuja descendência é atribuída a Alfredo Krahô e sua viúva, Inês Kanela, sendo esta a razão pela qual passaram a se autoindentificar KrahôKanela44. 43 Até então, apesar da manutenção de fronteiras étnicas que os diferenciavam da população regional, o grupo descendente de Florêncio Krahô não era reconhecido e nem contava com assistência do órgão indigenista (inicialmente o Serviço de Proteção ao Índio-SPI e, a partir de 1967, a FUNAI). A exemplo do que nos retrata a bibliografia referente aos povos do Nordeste, foi a pressão fundiária sobre o território no qual construíram o sentimento de pertença e a relação de tradicionalidade, que deflagrou seu processo de emergência e sua organização em torno da reivindicação pelo reconhecimento étnico e territorial. 44 No próximo capítulo me deterei à análise da construção identitária deste grupo. 50 Figura 04: Esquema genealógico de Florêncio e Alfredo Krahô Fonte: Elaborado por Kariny Teixeira de Souza 51 Legenda da Figura 05: A – Alfredo Krahô B – Anísio Krahô C – Vitório Krahô D – Antônio Krahô E – Antão Krahô F – Arsênio Krahô (vivo) G – Xavier Krahô H – Celestina Krahô I – Rosalina Krahô J – Francilina Krahô (viva) K – Maria Krahô L – Antônia Krahô (viva) M – Domingas Krahô N – Sebastiana Krahô O – Matilde Krahô P – Sem informação Q – Inês Kanela R – Damásio Gonçalves Kanela S – Eva Aguiar (não indígena) 1 – Gentileza Krahô-Kanela 2 – Osmar Krahô-Kanela 3 – Raimundo (Tonico) Krahô-Kanela 4 – Mariano Krahô-Kanela 5 – Lucirez Krahô-Kanela 6 – Aldereis Krahô-Kanela 7 – Argemiro Krahô-Kanela 8 – Felicíssimo (Pexereca) Krahô-Kanela 9 – Sebastião Krahô-Kanela 10 – Oneide Krahô-Kanela 11 – Estevão (Defé) Krahô-Kanela 12 – Ivonete (Mocinha) Krahô-Kanela Figura 05: Fotografia de Dona Inês e Alfredo. Fonte: Fotografia cedida por Dona Inês Krahô-Kanela 52 CAPÍTULO II – A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA IDENTIDADE KRAHÔ-KANELA FACE UM PROCESSO DE MOBILIZAÇÃO PELA DEMARCAÇÃO TERRITORIAL No capítulo anterior, descrevi como se deu a trajetória do grupo - que então se identificava Krahô – do estado do Maranhão ao atual estado do Tocantins. A partir de uma nova “situação”, veremos como novas narrativas foram construídas a fim de vincular a sociogênese deste grupo a uma saga familiar consagrada pelo casamento interétnico entre uma mulher Kanela e um índio Krahô e pela crença e luta em torno do direito de retornar ao território tradicional do qual foi expulsa. Partindo do pressuposto de que a territorialização é feita através de ações e práticas sociais cotidianas e de que constitui uma dimensão central que articula política e identidade (FERREIRA, 2007: 73), analisarei a estreita relação entre a construção da identidade Krahô-Kanela, seu processo de territorialização e a mobilização pelos direitos territoriais. Neste sentido, elucida Gallois (2000: 7): A emergência e a transformação de unidades étnicas, políticas e culturais encontra um dos seus terrenos mais férteis nas experiências de territorialização, processos em que a apropriação política de uma terra articula-se à recomposição de fronteiras sociais. Apresento abaixo o esquema genealógico deste grupo. Advirto, porém, que este tem por finalidade sinalizar a constituição do grupo étnico que se autoidentifica Krahô-Kanela, segundo seus próprios critérios, no período de realização do trabalho de campo. Não tenho como objetivo cristalizar sua composição, pois, como pretendo demonstrar ao longo deste trabalho, as fronteiras étnicas são fluidas e sujeitas a alterações conjunturais. 53 Figura 06: Esquema genealógico do grupo Krahô-Kanela Fonte: Elaborado por Kariny Teixeira de Souza 54 Legenda da Figrua 06: 1 – Gentileza 24 – Raila 47 – Almir 70 – Elias 2 – Anoá 25 – Mariano 48 – Letícia Karajá 71 – Oneide 3 – Agaús 26 – Aldereis 49 – Letiele 72 – Abraão 4 – Magdiel 27 – João Batista 50 – Evilácio 73 – Wagner 5 – Osmar 28 – Hosana 51 – Auricélia 74 – Olga 6 – Mariquinha 29 – Noé 52 – Jhennes 75 – Leiza 7 – Raiane 30 – Estevão 53 – Gabriel 76 – Raquel 8 – Raimundo 31 – Argemiro 54 – Eduardo 77 – Glênio 9 – Irene 32 – Damiana 55 – Carlane 78 – Joãozinho 10 – Regiane 33 – Valdir 56 – Ivonete 79 – João Felipe 11 – Reginaldo 34 – Albertina 57 – Samuel 80 – Armando 12 – Geane 35 – Messias 58 – Manoel 81 – Sem informação 13 – Jeciane 36 – Joel 59 – Felicíssimo 82 – Keilane 14 – Lorrane 37 – Josiel 60 – Raru E – Lucirez 15 – Daniel 38 – Valdiléia 61 – Baioque 16 – João Paulo 39 – Exequiel 62 – Iriú 17 – Rejane 40 – Valdicléia 63 – Alfredo 18 – Ediglei 41 – Valdilene 64 – Patrícia 19 – Jhones 42 – Jurandir 65 – Rodolfo 20 – Maria Eduarda 43 – Mateus 66 – Sebastião 21 – Elielton 44 – Maiqueli 67 – Francine 22 – Regimare 45 – Cauã 68 – Amare 23 – Gildete 46 – Taís 69 – Raiabe 55 Observações: i) Damiana (32) possui mais sete filhos que residem em Gurupi, Dueré, Palmas e Brasília; um deles, Adonias, foi casado com Ivonete (56). ii) Albertina (34) é neta de Antônio Krahô ( representado pela letra D no Esquema genealógico Florêncio Krahô), filha de José Caboclo. iii) Raiane (7), criada pelo casal, é neta de Mariquinha (6). iv) João Felipe (79) é ex-marido de Antônia Krahô (representada pela letra L no Esquema genealógico Florêncio Krahô – Fig. 4). Eles têm três filhos. 2.1 – DE KRAHÔ À KANELA À KRAHÔ-KANELA: CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA E CONSOLIDAÇÃO DA TERRITORIALIDADE 2.1.1– A vida em Dueré e o início da luta Na cidade de Dueré, Mariano e Alderez, filhos de Alfredo, são contratados como funcionários da prefeitura municipal. “O prefeito de Dueré, no final de 79, mandou chamar o meu pai e os filhos no Atoleiro, pra botar os filhos na escola e os maiores pra trabalhar”. (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Segundo os indígenas, essa foi a forma encontrada pelo prefeito para ajudar o grupo que, então, passava por dificuldades. “Ele me deu o cargo de auxiliar de secretaria. Eu era secretário auxiliar do prefeito.” (Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/01/2010). A vida em Dueré é descrita pelos indígenas como um período de sofrimento: enquanto as mulheres e as crianças ficavam na cidade, os homens precisavam sair em busca de trabalho, geralmente como vaqueiros e agregados em fazendas, mas, conforme explica dona Inês, sempre nas redondezas: “entre a cidade e o rio Dueré” (D.Inês, 30/07/03 apud ALMEIDA, G., 2004: 19). Em Dueré, era ruim demais! A gente trabalhava, pelejava, a gente trabalhava em todo serviço que aparecia pra fazer - de cerca, de roçado, capinar, era todo serviço que nós fazia - porque desde pequeno nós aprendemos a trabalhar, os pais botavam pra trabalhar na roça, pra capinar, roçar de machado, andar montado, tudo nós aprendeu. Aí, pra não morrer de fome tinha que trabalhar. Mas ganhava pouco, porque quem trabalha na juquira não ganha dinheiro, só faz sofrer. (...) Eu andava, trabalhava, voltava pra Dueré, andava, arrumei família, voltei pra Dueré, aí passei dois anos lá e não aguentei não; trabalhava demais e não dava conta de dar de comer pra minha família, o dinheiro que ganhava era pouco demais. Aí nós viemos pra dentro da Ilha [Ilha do Bananal, 56 trabalhando como vaqueiro]. Eu vim em 84, quando foi em 87 o meu povo chegou lá, aí fomos morar tudo junto (Raimundo Krahô-Kanela, 22/01/2010). Apesar de seguirem tocando a vida, a projeção do grupo era retornar a Mata Alagada, a despeito da opinião do prefeito que, segundo Mariano Krahô-Kanela, sempre o aconselhava a esquecer a terra já que os fazendeiros que dela se apropriaram eram muito ricos e poderiam reagir com violência. Quando eu falei com o prefeito ele não quis me ajudar aí eu falei ‘eu vou por conta própria’. Em 78 levaram o papai pra Goiânia pra ele falar com o governo sobre a terra dele, mas a pessoa que levou o papai foi só tapeação. Quando foi um dia eu fui mais ele, já em 80. Quando eu cheguei lá o atendimento não foi bom. Eu voltei, falei com o prefeito e o prefeito me desanimou. Ninguém me falou da Funai. (Mariano KrahôKanela, liderança, 20/01/2010) Dueré, uma cidade situada na rota de passagem para a Ilha do Bananal, atraía muitas caravanas de turistas interessados na prática de pesca esportiva. Os Krahô-Kanela, conhecedores da região, eram constantemente procurados por estes turistas para guiá-los nas pescarias. Numa dessas ocasiões, Mariano foi orientado sobre os caminhos institucionais e burocráticos por onde poderia recorrer: Lutando, andando mais as caravanas que vinham pescar – eles gostavam de procurar nós em Dueré porque uns diziam: ‘tem uns índios ali que são bons, que conhecem a região’ – aí um dia eu fui pescar com um pessoal e eu contei a história pra eles; aí um falou: ‘olha, tem o Ministério do Interior, tem um órgão ligado ao Ministério do Interior que resolve a causa de vocês45. (Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/01/2010). Em 1983, Mariano assumiu o cargo de cacique46 e foi até a cidade de Cristalândia a fim de retirar no cartório a certidão negativa da escritura da terra Mata Alagada. No cartório, de posse da certidão: eles mostraram que tinha documento de uma parte da terra , mas da outra não tinha. Aí eu fui pro IDAGO com aquele documento e procurei lá como é que tava... O presidente do Idago me deu as informações tudo por escrito, aí eu fui pra Brasília, eu fui procurar esse Ministério do Interior, 45 O turista se referia à FUNAI que, nas décadas de setenta e oitenta, era vinculada ao Ministério do Interior. Na década de noventa, o órgão passou para esfera do Ministério da Justiça. À época do Serviço de Proteção ao Índio-SPI, a agência indigenista já esteve vinculada ao Ministério da Agricultura, ao Ministério do Exército e ao Ministério do Trabalho. 46 Mais adiante, no item 2.1.5, sinalizarei como Mariano assumiu a liderança do grupo. 57 mas não consegui achar. Eu peguei um táxi e o taxista me levou pra casa do [deputado] Juruna47. (...) Contei o caso pra ele e ele me levou pra FUNAI. Foi a primeira vez que ouvi falar da FUNAI. Isso foi em 1984, que foi quando começou a luta pela mão da FUNAI (Mariano KrahôKanela, liderança, 20/01/2010). A administração central da FUNAI, em Brasília, o encaminhou então à regional de Araguaína e, a partir deste primeiro contato, explica Mariano, “começou a dar assistência, como alimento, roupa...” Conforme Memo nº 561/DAI (FUNAI) O remanescente indígena MARIANO RIBEIRO, apresentou uma Certidão do Cartório do Registro Geral, do município de Cristalândia – Goiás, onde consta a Fazenda Garoto de Goiás, situada no município de mesmo nome, com uma área total de 19.931.25 há, constituída dos lotes nºs: 1, 3 e 4 do loteamento denominado MATA ALAGADA.(...) Proprietário atual – COMPANHIA CERVEJARIA BRAHMA, sediada na cidade do Rio de Janeiro – RJ: adquiriu por compra feita a GAROTA S/A AGRO-INDUSTRIAL, pessoa jurídica de direito privado com sede em Goiânia-GO. O lote nº 2 não consta na certidão expedida pelo cartório, porém, conforme declaração do remanescente, a Companhia Cervejaria Brahma incorporou o lote nº 2 à sua propriedade, não deixando que seus familiares desenvolvam qualquer espécie de agricultura. (...) diz que se criou na área, que faz mais de 25 anos que seus pais moram neste mesmo lote, de onde foram expulsos e estão ameaçados de morte, caso tentem a voltar para o local (...) (ALVES, 06/06/84). Este é, portanto, um importante marco no processo de lutas e reivindicações dos Krahô-Kanela: o momento em que Mariano e seu grupo reivindicaram o retorno ao que seria o lote nº 2 do loteamento por eles denominado Mata Alagada, alegando que a Companhia Cervejaria Brahma teria dele se apropriado de maneira ilegal. Consoante a alegação dos indígenas, Mauro e Oliveira, J. E. (2010: 110) esclarecem que, àquela época, a falsificação e a adulteração de documentos de propriedade fundiária eram práticas comuns na região (...) (idem:109). O IDAGO não teria encontrado dificuldades em concretizar as fraudes, pois os posseiros e indígenas além de não possuírem títulos, não se preocupavam até então com a delimitação das terras que ocupavam. Para eles pouco importava um papel escriturado, pois o que legitimava o seu domínio sobre a terra eram a ocupação e o trabalho desenvolvidos nela. 47 Mário Juruna foi eleito deputado federal, representando o estado do Rio de Janeiro, pelo Partido Democrático Trabalhista (1983-1987). Foi o primeiro indígena a ser eleito para este cargo no Brasil. Apesar do nome “Juruna”, com o qual ficou conhecido, era índio Xavante. 58 Em síntese, conforme os autores citados acima, a prática do IDAGO consistia em lotear terras indígenas e áreas ocupadas por posseiros como terras devolutas, sem ao menos verificar se, nestas, havia ou não moradores (Idem). 2.1.2 – Como caboclos ou como índios: um grupo étnico socialmente distinto João Batista, não indígena, chegou em Dueré no ano de 1974, vindo do Maranhão e, por volta de 1980, conheceu a família de Alfredo, posteriormente, casando-se com Alderez Krahô-Kanela. Ele relata que os Krahô-Kanela eram reconhecidos pela população regional como “caboclos”: “O pessoal pra cá não chama de índio, chama de caboclo. Aí eu fiquei sabendo logo que eles eram índios” (João Batista, 30/01/2010). De igual modo, relata Carlane: “Conhecia eles como caboclos, porque naquela época não chamavam de índio, chamavam caboclo, era a mesma coisa” (Carlane, não indígena, casada com Felicíssimo Krahô-Kanela, 28/01/2010). Consoante estes depoimentos, Toral (1985:4) esclarece que, tanto os Javaé, quanto os Karajá também são referidos como “caboclos” pela população dos municípios a leste da Ilha do Bananal. Quanto à categoria “caboclo”, Oliveira (1999: 198) esclarece que, no interior do Brasil, principalmente em regiões onde existiram conflitos entre índios e não índios, a identidade dos primeiros foi semantizada negativamente pela sociedade local, daí sua classificação como “caboclos”, “descendentes” ou “remanescentes”, segundo a representação atemporal e genérica do índio. De acordo com Cardoso de Oliveira (2006: 42,43), tais conflitos e a aplicação dessas categorias seriam reflexos da dominação econômica e política que determinados segmentos regionais exerciam, e em alguns locais ainda exercem, sobre os grupos indígenas. Veremos, no capítulo 3, que estas classificações não são dadas apenas pelo senso comum. Antropólogos a serviço da FUNAI e indigenistas, como demonstrará a análise do processo de reconhecimento étnico e territorial dos KrahôKanela, também tratarão este grupo étnico por tais categorias. Isto porque, segundo Oliveira (1999:199) a ideologia indigenista não rompeu com a representação do índio como um ser pretérito, mas circunscreveu-se aos conteúdos semântico já existentes, adaptando-os às suas próprias conveniências. A rápida 59 aceitação da legitimidade do discurso indigenista, a sua carga persuasiva e o simbolismo que o envolveu tiveram como condição de sucesso justamente a sua sobreposição àquela representação genérica sobre o índio. Ainda quanto à diversidade de classificações utilizadas para designar um grupo indígena, Arruti (1997) explica, por exemplo, que, na São Paulo colonial, o termo índio referia-se apenas aos integrantes dos aldeamentos, reservando-se para a vasta maioria da população indígena não aldeada a denominação de ‘negros da terra’; em fins do século XVII, a denominação preferencial se simplificava para apenas ‘negros’, só cedendo lugar a outras denominações no século seguinte, com o aumento do afluxo de escravos africanos nos plantéis paulistas (ARRUTI, 1997: 17). Não raro, certas categorias identitárias também podem ser assumidas pelos grupos étnicos. Oliveira (2003: 169) analisa, por exemplo, que entre os Caxixó, “gentio”, “índio caboclo”, “povo do mato”, “povo do Tio”, “povo da mãe Joana”, são categorias referentes a um passado mais distante, utilizadas pelos seus membros. Também os Krahô-Kanela, no passado, identificavam-se tanto como Krahô, quanto como caboclos e, de igual modo, assim se referem a seu antepassado Florêncio e aos filhos deste. A razão de indígenas ou grupos evitarem a identificação étnica, explica Cardoso de Oliveira (1976: 17), está relacionada aos conflitos com segmentos da sociedade regional no contexto de contato e ao fato de que, vivendo fora de terras indígenas, não contariam com a ação protetora do Estado48. Observa-se, contudo, que, independente da dominação utilizada, ela sinaliza sempre uma “identidade contrastiva” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976). Ponderemos, portanto, acerca deste conceito e do significado de ser identificado como caboclo. Segundo Cardoso de Oliveira (1976, 2003), um indivíduo ou grupo afirma sua identidade contrastando-a com outras identidades com as quais se relaciona. Deste modo, a “identidade contrastiva” tem um caráter autoafirmativo em oposição ao “outro” que, somada à possibilidade de atualização diante de riscos de perdas ou ganhos, em situações específicas de contato, constituiriam “as propriedades estruturais do processo de identificação étnica” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2003: 131). Se uma identidade só pode 48 Em outro trabalho o autor defende que a interiorização da categoria “caboclo” pelos índios Tikuna simboliza a interiorização do mundo do branco, a divisão da consciência Tikuna em duas: “uma voltada para seus ancestrais, outras para os poderosos homens que o circundam. O caboclo é, assim, o Tikuna vendo-se a si mesmo com os olhos do branco (...)” (Cardoso de Oliveira, 1964:80 apud Cardoso de Oliveira, 2006: 43). 60 ser entendida por contraste e oposição, neste fato poderemos observar que o grupo KrahôKanela sempre manteve e reafirmou ao longo de sua trajetória uma “identidade contrastiva” nos termos de Cardoso de Oliveira. Complementando a análise, Barth (2005: 18) elucida que o pluralismo cultural, a constante interação e comunicação entre as pessoas é a condição normal da humanidade. Isso não se aplica somente à era do mundo globalizado, segundo o autor, todas as grandes civilizações, através da história, foram certamente caracterizadas por este tipo de pluralismo. A Ásia, a África, o Mediterrâneo e amplas partes do mundo antes de Colombo, todos tinham essa característica (Idem). Importa ressaltar com Barth que as diferenças sociais e culturais não são apagadas pelo contato interétnico e pela interdependência entre etnias (BARTH, 2000: 26). Como, então, diante desses contatos inevitáveis é mantida a distintividade e a constituição de grupos étnicos?49 Para Barth, é justamente através das relações entre os grupos sociais que se pode entender o fenômeno das identidades, uma vez que um grupo étnico só existe em relação ao outro; ou seja, é a partir da relação com o outro que se constrói e se mantém a identidade. Uma vez compreendidas as particularidades e a organização social que definem a identidade de um grupo étnico, esta unidade dependerá da manutenção de fronteiras étnicas a marcar os limites entre “nós” e “eles”. Tais fronteiras, sociais e simbólicas – “ainda que possam ter contrapartida territorial” (BARTH, 2000: 34) – não são imutáveis, podendo ser constantemente renovadas; também, ao contrário do que se poderia supor, não irão isolar os grupos, mas, sim, canalizar sua vida social, pois pressupõe que todos os membros do grupo “estejam jogando o mesmo jogo” (Idem). De acordo com o autor, “se um grupo mantém sua identidade quando seus membros interagem com outros, disso decorre a existência de critérios para determinação do pertencimento, assim como as maneiras de assinalar este pertencimento ou exclusão” 49 Barth sugere que, para responder a esta questão, devemos observar três princípios de investigação: analisar em detalhes os fatos empíricos de cada caso específico para melhor adequação dos conceitos aos fatos e dados (Barth, 2000: 26); analisar os diferentes processos gerativos de tal coletividade e “deslocar o foco da investigação da constituição interna e da história de cada grupo para as fronteiras étnicas e a sua manutenção” ( Idem: 27). 61 (Ibidem). Assim, grupos étnicos podem ser entendidos como grupos organizacionais, que usam identidades para se categorizar e categorizar os outros. Nesse sentido, considerando que categorias de classificação denotam identidade contrastiva, os Krahô-Kanela sempre foram reconhecidos, no contexto regional, enquanto um grupo socialmente distinto, seja como “caboclos”, seja como “índios”, conforme relato de um morador da cidade de Dueré (TO) à antropóloga Graziela Almeida: “(...) Nós tinha eles [os Krahô-Kanela] aqui como índio... vinham aqui fazer uma comprinha... Eu passava montado no meu cavalo e via o pessoal debaixo do pé de pequi, cheio de menino...” (ALMEIDA, G., 2004:18). Toral (1985: 8) também afirma: “Vi como a população de Dueré considera-os como ‘caboclos’ e como eles fazem questão de acentuar sua identidade em contraste com a população local, ‘branca’”. Eis, portanto, uma das características do fenômeno das identidades: elas são construídas em interação, ou, em outras palavras, a identidade é relacional. Como explica Cardoso de Oliveira (1976:36), ela “(...) surge por oposição, implicando a afirmação de nós diante dos outros, jamais se afirmando isoladamente”, de modo que, um grupo étnico, enquanto uma unidade social, só existe mediante a relação com outras unidade sociais. 2.1.3 - Na Ilha do Bananal Ficamos doze anos na Ilha, mas foram doze anos perdidos, só de sofrimento. Mentalmente o pessoal vivia numa tensão horrível.50 Mariano foi convidado para uma reunião na FUNAI em Goiânia, onde teria sido proposto a ele a “transferência” do grupo para a Ilha do Bananal51, pois, se os KrahôKanela continuassem residindo na cidade de Dueré e não em uma terra indígena, o órgão não poderia mais continuar prestando assistência ao grupo – para isso era necessário que 50 Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010. Alfredo Wagner Berno de Almeida (1996: 33) nos chama a atenção para a existência de “(...) um léxico peculiar composto de eufemismos – que abrandam o sentido coercitivo das medidas de deslocamento e que buscam, em última análise, torná-las um procedimento naturalizado, tais como “transferência” – e de termos de sentido direto, sem perífrases. Com toda certeza, estes termos não são transitivos, nem podem ser acionados segundo uma simples sinonímia, já que sua utilização varia segundo a destinação preconizada e a modalidade de intervenção dos diferentes órgãos responsáveis”. 51 62 eles estivessem “aldeados” (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Segundo Mariano, a FUNAI já havia se antecipado e consultado os caciques Javaé e Karajá e “todos os caciques aceitaram nossa presença, apenas um foi contra; ele perguntou se futuramente não teriam problema, pois o Eliseu [cacique Javaé] já tinha levado um grupo da Bahia [Tuxá] pra aldeia Canoanã” (20/10/2010, grifos meus). Porém, tendo em vista ser uma “solução provisória”, os dezoito caciques consultados em reunião concordaram com o deslocamento dos Krahô-Kanela para seu território. “A FUNAI falou que era só pra que o pessoal tivesse um local de referência, porque cidade não era referência de índio não” (Felicíssimo Krahô-Kanela, 18/01/2010). À proposta de ir para a Ilha do Bananal, Mariano teria respondido que não poderia aceitá-la: “o meu pessoal não vai pra Ilha do Bananal. Eles não vão querer ir pra lá porque eles têm medo de perder a nossa terra” (20/10/2010), mas comprometeu-se a consultar o grupo. Eu consultei todo o pessoal, não só os que estavam em Dueré, mas os troncos velhos também, e eles não eram a favor... E aqueles que já trabalhavam pra fazenda Brahma não quiseram tomar conhecimento de nenhum lado, eles não queriam voltar pra terra (Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/10/2010). Mariano se refere, principalmente, ao seu tio Arsênio e seus filhos (que, na época, trabalhavam na fazenda Brahma). Ressalto que serão estes, acompanhados pelos demais familiares, que, após a demarcação de parte da Mata Alagada, tentarão retornar a esta e serão impedidos pelos Krahô-Kanela, o que em parte será justificado exatamente pela recusa destes parentes ao convite de Mariano para irem para Ilha – deslocamento este que, como veremos adiante, se desdobrará em sacrifícios, lutas e na própria reelaboração identitária do grupo. Ao comunicar a decisão do grupo à FUNAI, esta foi irredutível, afirmando que caso não fossem para Ilha do Bananal estaria cancelada a assistência prestada a eles. Foi então constituído pelo órgão indigenista, em janeiro de 1987, um Grupo de Trabalho Multidisciplinar, composto por duas antropólogas e um técnico indigenista, com o objetivo de realizar o cadastramento dos indígenas, analisar suas condições de vida, suas atividades econômicas junto à sociedade local e, principalmente, analisar a viabilidade de 63 “transferência” dos Krahô-Kanela para a Ilha do Bananal. Os irmãos Mariano, Osmar e Raimundo acompanharam os servidores do Grupo de Trabalho Multidisciplinar em uma viagem à Ilha do Bananal a fim de definirem a área onde construiriam a nova aldeia KrahôKanela. Como a Ilha do Bananal, embora fosse território indígena, encontrava-se invadida por não indígenas ocupados com a criação de gado no local52, a FUNAI garantiu que “todo morador que tivesse por perto de onde nosso pessoal fosse ficar, eles iriam tirar tudinho pra gente ficar tranquilo... tinha morador branco demais” (Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/10/2010). De acordo com Felicíssimo Krahô-Kanela, nove moradores não indígenas foram retirados de uma área para que o grupo pudesse se estabelecer. Lá construíram a aldeia por eles denominada Aruari . Ao serem deslocados para a Ilha do Bananal, Mariano teria convidado outros parentes que, desde a expulsão da terra, se encontravam dispersos, conforme relata Albertina, neta de Antônio Krahô (irmão de Florêncio, também conhecido como Antônio Caboclo): eles chamaram para gente morar junto. Quando a gente trabalhava em fazenda alheia, não tinha onde morar, aí meu tio convidou nós pra vir, para ir para Ilha do Bananal. Eles viram que a gente não tinha onde morar, né?! Eles vieram na frente, depois arrumaram um carro pra puxar nós (Albertina Krahô-Kanela, 30/01/2010). Além de Albertina, somente João Felipe, ex-marido de Antônia (irmã de Alfredo), aceitou o convite de juntar-se ao grupo. Conforme relatam os indígenas, a permanência na Ilha do Bananal foi marcada por uma convivência conflituosa com os funcionários da FUNAI /AER Gurupi, em razão da “mudança de atitude” do órgão para com os Krahô-Kanela53: “a FUNAI levou nós pra Ilha do Bananal depois não queria cuidar de nós como indígena. A gente não sabe porque isso aconteceu” (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010). Tal situação interferiu na própria relação do grupo Krahô-Kanela com os Javaé: “no começo era bom... mas, com 52 De acordo com Mauro e Oliveira, J. E. (2010: 114), “(...) a própria FUNAI permitiu a ocupação irregular da Ilha do Bananal por terceiros e o arrendamento de terras indígenas para a criação de gado mediante a cobrança de uma taxa”. 53 Mais do que mera mudança de atitude, o que se reflete é o modo como o Estado é constituído por intencionalidades diversas que disputam entre si a orientação política das práticas estatais. Desta forma, para compreender essa atitude desencontrada do órgão indigenista estatal com os Krahô-Kanela é preciso considerar as tensões internas e interesses distintos nas esferas da instituição, sobretudo entre as administrações regionais e a direção em Brasília. 64 poucos dias a FUNAI arrependeu e começou a colocar os índios contra nós” (João Batista, não indígena, casado com Alderez Krahô-Kanela, 30/01/2010). Segundo os próprios Krahô-Kanela, enquanto moravam na Ilha do Bananal, eram constantemente humilhados e ameaçados por servidores da Funai/Gurupi que, alegando ser a terra de outros povos, não lhes permitiam desenvolver suas atividades econômicas, como a caça, o plantio de roça, a pesca e a coleta de matérias-primas: Disseram que era pra nós ir [pra Ilha do Bananal] com direito de criar, plantar, pescar. A Funai falou isso e levou o povo. Aí, com pouco tempo isso acabou, não era mais pra plantar, pra criar, pra pescar, nem nada. No começo podia, depois não podia mais não. Se caísse uma parede da casa ou tivesse uma goteira, eles diziam: ‘não é pra arrumar não’; a Funai não deixava. Ela ia lá todo mês tentar nós. Aí dizia que nós não era índio, que era pra nós ir embora (Raimundo Krahô-Kanela, 22/02/2010, grifo meu). Essa tensão permaneceu durante toda a estada do grupo nesta terra, até tornar-se inevitável a eclosão de conflitos maiores. Os Krahô-Kanela relatam a ocorrência de um massacre54 sofrido em 1991: Os índios [Javaé] disseram pra nós que o chefe de posto chamou eles pra ir pescar tartaruga, e os índios foram. Eles chegaram num boteco que tem na estrada – tinha um boteco lá da Maria Lúcia – e compraram bebida pra descerem pra praia. Aí ele [o chefe de posto] começou a distribuir cachaça para os índios e só depois que eles beberam foi que ele falou que era pra vir pra aldeia: ‘ nós não vamos pescar não, vamos fazer uma visita lá na aldeia do Mariano, vamos tirar eles hoje de lá, vamos botar eles pra correr’. Aí os índios já estavam de cabeça cheia, aprovaram. Aqueles que não faziam nada ficavam pelejando pra controlar os outros; os filhos do Eliseu falavam: ‘rapaz pára com isso’, tentavam impedir. Todos estavam armados... os tiros emendavam. A mamãe desmaiou, quase morreu; a Albertina tava com dezesseis dias que tinha ganhado menino, eu pensei que ela fosse morrer, a mulher ficou louca; a Oneide correu pro outro lado do rio mais a Francina e as crianças delas. E eles atiravam, entravam nas casas e apanhavam as coisas. Isso aconteceu no dia 29 de outubro. Eu tava lá pra ganhar neném, aí eles viram a mala de roupa do neném e mandaram eu abrir a mala com o revólver na minha cabeça; eles achavam que tinha arma na mala. Até que o Juarez [Javaé] chegou – o Juarez buchudo – ele era o cacique lá na Barreira Branca. Ele chegou assim: ‘Mariano o que ta acontecendo?!’ Aí ele viu o chefe de posto e foi lá perguntar e deu logo uma bronca nele: ‘mas rapaz, isso é serviço que se faça?’. Aí ele falou um bocado e mandou: ‘vocês vão embora agora!’. Aí 54 Quando o termo massacre é usado por indígenas e indigenistas, é preciso compreendê-lo também pela interpretação textual de seu significado como narrativa estruturada para promover o sentido da história indígena como a de um povo heróico capaz de lutar corajosamente contra os seus inimigos. 65 eles correram. Era uns oitenta índios. Eles fizeram um tiroteio feio! (Alderez, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010) Alderez Krahô-Kanela, que estava grávida de nove meses, ficou abalada e em estado de choque por ocasião do massacre, entrou em trabalho de parto e acabou perdendo a criança, que nasceu morta. Segundo ela, a permanência na Ilha do Bananal, nessas circunstâncias, foi se tornando insustentável, “dessa hora em diante ninguém mais teve aquele prazer de viver dentro da Ilha, porque a gente tava num local alheio e podia sofrer a consequência a qualquer hora.” (Alderez, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Alderez narra o episódio que resultou na saída dos Krahô-Kanela da Ilha do Bananal em 1999: No dia eles [índios Javaé] chegaram pra tirar nós... chegaram, instalaram um rádio; o Walter [Javaé] instalou um rádio dentro da casa da escola pra falar com as aldeias. Aí ele disse: ‘o procurador vai mandar um pessoal aqui pra ajudar a fazer a mudança de vocês, pra tirar vocês e arrumar outra terra’. A gente não sabia de nada; aquilo foi uma coisa entre Mário Lúcio [na época, procurador da Procuradoria da República no Estado do Tocantins], Funai e índio Javaé. Nós não sabia de nada. No dia tava poucas pessoas nas casas, os homens estavam tudo fora, viajando. Aí aquele povo chegou – o Walter e o grupo dele – pra assistir a nossa saída. Aí eu falei: ‘mudar pra onde? Eu não to sabendo que nós vai sair daqui pra lugar nenhum. Ninguém avisou nós’. Ele falou: ‘arrumaram uma terra pra vocês’. Aí eu falei: ‘mãe, vamos começar a arrumar esses trem, vamos embalar nossas coisas e vamos pra beira do rio’. Aí fomos embalando as coisas e levando pra beira do rio (...) e o Batista, de canoa, atravessava as coisas pro outro lado. Do outro lado era dos ‘Doutor’ e dos ‘Pereira’, e o Batista falou com eles, perguntou se podia descarregar as coisas do outro lado e eles falaram que podia, e aí foram ajudar a atravessar as coisas, foi muita gente ajudar. Aí ficamos na praia desse pessoal; ficamos quarenta e cinco dias e nada de Ministério Público nem Funai aparecer. Aí o Mariano e os meninos foram em Palmas e aí o Ministério Público falava que tava arrumando uma terra pra colocar nós – o Ministério Público e a Funai (Alderez, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010, grifos meus). Maria Elisa Guedes Vieira, antropóloga/consultora que realizou, entre os dias 19 e 23 de novembro de 2002, o levantamento prévio dos estudos de identificação e delimitação da terra reivindicada pelos Krahô-Kanela, avaliou que grande parte dos conflitos se deve ao não reconhecimento étnico dos Krahô-Kanela por parte da Funai- AER Gurupi, em 66 razão da fragilidade simbólica do grupo na condição de “índios misturados”55 desvinculados do grupo originário (VIEIRA, 2003:s/p). Contudo, apesar do constante questionamento à identidade étnica do grupo, os indígenas sempre reafirmavam sua etnicidade e unidade, como explícito no relato de Wagner: “Mesmo a Funai dizendo que nós não era índio, nós se considerava índio e nós sempre ficava junto, mesmo com tudo isso que acontecia, com o massacre, a gente ficava junto” (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010). Por ocasião do deslocamento para a Ilha do Bananal, duas questões se tornarão significativas para a consolidação desse grupo indígena: i) o grupo, que até então se autoidentificava como Krahô, será orientado a se identificar como Kanela. A ascendência Kanela de Dona Inês passou a ser assumida, fortalecendo a coesão desta família extensa que, posteriormente, passará a se identificar e ser identificada como Krahô-Kanela: Toda vida nós era Krahô, porque só minha mãe pertence aos Kanela, mas, meu pai, meus tios, meu avô, tudo é Krahô. Quando foi na época que levaram nós, em 87, pra Ilha do Bananal, teve uma reunião em Gurupi, onde a FUNAI falou para o pessoal não se identificar como Krahô e sim como Kanela porque senão nós não ficava na Ilha, porque Javaé tinha uma restrição com Krahô, eles já tinham brigado. Isso aí foi jogo da FUNAI de fazer isso. Depois, quando saiu, aí a FUNAI colocou KrahôKanela porque minha mãe é Kanela e meu pai é Krahô. Aí ficou KrahôKanela pra diferenciar do Krahô (Argemiro Krahô-Kanela, liderança, 26/01/2010). ii) O convite de Mariano aos demais parentes para se mudarem para a Ilha do Bananal agregou e incorporou aqueles parentes dispostos a constituírem uma unidade em torno da confiança e da crença no projeto de retornar à terra Mata Alagada. Só foi pra Ilha do Bananal a família da mamãe, fora os filhos foi só a Albertina mais o [marido] Valdir. A Albertina toda a vida foi ligada a nós, desde antes de casar, desde moça. O pai dela [Antônio Caboclo] morava numa fazenda perto do rio Formoso e ela estudava em Dueré, ficava na casa da mamãe. Aí ela casou com o Valdir, nós fomos pra Ilha do Bananal e ela foi mais nós. E a Damiana [não-indígena] já morava com o Argemiro [Krahô-Kanela] e também foi pra Ilha. Aí toda vida nós 55 Para João Pacheco de Oliveira, se até há pouco a expressão “índios misturados” era encontrada em documentos oficiais como uma fabricação ideológica e distorcida, atualmente “merece uma outra ordem de atenção, pois permite explicitar valores, estratégias de ação e expectativas dos múltiplos atores presentes nessa situação interétnica” (OLIVEIRA,2004:19). 67 ficamos juntos, não separamos não (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). 2.1.4 – No Projeto de Assentamento Tarumã: A gente nunca foi feliz nesse lugar; a gente sempre se lembrava da nossa região.56 A partir desse momento, dois novos atores entram em cena, desempenhando papéis relevantes para desdobramento político do contexto ensejado: refiro-me ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Com a desintrusão do Parque Indígena do Araguaia/ Ilha do Bananal e a retirada dos ocupantes não indígenas, em 1999, os Krahô-Kanela, em razão dos conflitos já descritos, também foram obrigados a se retirarem, recebendo, na ocasião, indenização por benfeitorias de “boa-fé”. Tal indenização até hoje origina questionamentos quanto à identidade étnica do grupo e aos seus direitos territoriais por parte de integrantes da sociedade regional e, até mesmo, de servidores da FUNAI. Na avaliação desses agentes sociais, o pagamento caracterizaria os Krahô-Kanela como “ocupantes de boa fé de terra indígena” ao invés de indígenas propriamente ditos. O INCRA havia criado o Projeto de Assentamento Loroti, ou Capão de Coco, como é mais conhecido localmente, com o objetivo de assentar os ocupantes não indígenas retirados da Ilha do Bananal. Inicialmente, a proposta deste órgão consistia, também, em nele, assentar os Krahô-Kanela. Todavia, os assentados mostraram-se contrários à presença dos indígenas neste local. Segundo Wagner Krahô-Kanela “eles não gostavam de nós, de nós ficar ali; eles não gostavam de índio porque eles tinham sido retirados da Ilha do Bananal porque a terra era indígena. Eles queriam ter ficado na Ilha porque a terra era boa e tudo” (15/01/2010). Informação também confirmada pelo superintendente do INCRA: “O que eu já ouvi eles falando foi o seguinte: já que a gente não pôde ficar dentro da Ilha, os índios também não podem ficar junto com a gente” (José Roberto Ribeiro Forzani, 04/02/2010). De acordo com os relatos dos indígenas, essa animosidade era ainda 56 Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010. Os Krahô-Kanela foram transferidos para este assentamento em 08 de julho de 1999 (CIMI, 09/08/2001:03) 68 incentivada por servidores do INCRA, que não queriam assumir a responsabilidade por um grupo indígena. Foi necessário que a Procuradoria da República no estado do Tocantins (PR-TO) mediasse um acordo entre FUNAI e INCRA, o que culminou num novo deslocamento do grupo, desta vez para o Projeto de Assentamento Tarumã, localizado no município de Araguacema (TO), a 630 km da terra Mata Alagada. Eles falaram que tinham arrumado uma terra com as características da Ilha do Bananal, até melhor porque tinha cerrado, tinha mata de água, que era na beira do rio Araguaia. Aí nós confiamos. Eles marcaram e mandaram um ônibus pra pegar o pessoal e a mudança. Aí fomos embora pra Araguacema. Chegando em Araguacema - meu Deus do céu! – aquela dificuldade! Quando chegamos lá é que ficamos sabendo que era um assentamento: já tinha passado da cidade quando à caminho da fazenda um homem entrou no ônibus pra pegar carona com nós e foi aí, na estrada, que ele falou que lá é um assentamento. (...) Aí os meninos zangaram, pediram pro ônibus parar, conversaram com o rapaz do INCRA e queriam voltar. Aí conversaram, acalmaram e resolveram conhecer o local. O homem que ia no ônibus mais nós falou assim: ‘olha, lá tem duzentos homens pra botar vocês pra trás (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Os assentados, insatisfeitos com a presença indígena, tentaram impedir que os Krahô-Kanela se estabelecessem no P.A. Tarumã, situação que foi contornada pelos servidores do INCRA presentes na ocasião. A fim de evitar conflitos com os assentados, mas, sobretudo, como uma forma de manter o grupo enquanto uma coletividade distinta, os Krahô-Kanela instalaram-se a cerca de 15 km de distância da agrovila, nas proximidades do povoado do Senhor do Bonfim (sendo esta, possivelmente, a razão pela qual os indígenas referem-se de forma mais costumeira ao povoado e não ao assentamento). “Aí até que nós conseguiu fazer a aldeia do nosso jeito”. (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010) Contudo, no espaço destinado a eles, na nova aldeia Bee-Wari, eram impedidos, por funcionários do INCRA, de realizarem suas atividades tradicionais, como a pintura corporal, danças e cantos durante festas rituais. Pois estes funcionários acreditavam que já que o grupo estava em um projeto de assentamento, não deveria deixar transparecer nenhum traço de sua identidade indígena (ALMEIDA, G., 2004:27). 69 Neste local, ainda sofriam com as condições adversas de um ambiente distinto de seu território tradicional: não se podia plantar segundo o costume tradicional, porque a terra era pedregosa, seca e infértil, necessitando a utilização de adubo e calcário para o plantio; não era possível criar gado nem caçar porque havia muitas cobras; para se ter acesso ao rio a mulher descia e subia agarrada nos paus até chegar perto da água porque a ladeira era muito alta. A região não prestava e o sofrimento que o pessoal passava era tão grande que nenhuma mulher tinha menino mais, a mulher não produzia mais (Felicíssimo Krahô-Kanela, 18/01/2010). Os indígenas manifestaram-se por diversas vezes junto ao Ministério Público e ao INCRA quanto à falta de adaptação ao local, explicitando o desejo de retornarem à sua terra tradicional. Em relação à FUNAI, eles testemunham que o órgão teria lhes “virado as costas”, lhes tirando a assistência de 1999 a 2001, pois, “nessa época a FUNAI dizia que nós não era índio” (Felicíssimo Krahô-Kanela, 18/01/2010). Talvez por conta da negativa da FUNAI, enquanto órgão indigenista oficial, em reconhecer a etnicidade do grupo, o posicionamento da Procuradoria da República no estado do Tocantins - PRTO em relação ao grupo, inicialmente, também tenha sido de resistência: (...) a gente não tinha mais o atendimento da FUNAI, só do INCRA. Mas nós sabia que não era o INCRA que devia atender nós, porque o Incra não atende índio, atende o pessoal da reforma agrária. A gente não tinha o atendimento de saúde. Algumas vezes a gente ia no Ministério Público [PRTO], mas o Ministério Público queria atender nós como o pessoal do assentamento, mas ele sabia que nós era índio, só que jogou nós pra lá, nós não sabe porque... querendo esquecer de nós (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010. Grifo meu). Sem se adaptar às condições geográficas e à imposição de mudanças em sua organização sociocultural, algumas famílias Krahô-Kanela planejavam retornar para a região próxima à Terra Mata Alagada. Oneide e sua família já teriam retornado à Dueré, “Pexereca [Felicíssimo Krahô-Kanela] e Tonico [Raimundo Krahô-Kanela] já estava se arrumando porque nós ia vir embora, nós ia caçar lote aqui. Dentro do Bonfim [P A Tarumã] nós não ia ficar não” (Carlane, 28/01/2010. Grifos meus). Nesta época, dois acontecimentos importantes marcam a história dos KrahôKanela: o encontro com o Conselho Indigenista Missionário-CIMI, e a iniciativa do grupo em retomar à Terra Mata Alagada 70 Um dia mesmo eu fui no pasto e tinha quatro bicho morto: um cavalo da Alderez, uma égua da mamãe, uma vaca minha e um boi do Mariano... tudo morto, cobra matou. Aí eu cheguei em casa e falei para os meninos: ‘olha, é o seguinte, eu vou me embora; não vou ficar aqui num lugar desses não. Eu vou embora ao menos trabalhar pros outros na região em que eu conheço’. Aí arranquei a mandioca, botei de molho e tava torrando a farinha pra vir embora, aí a Laudovina chegou lá mais a Izaura [ambas missionárias do CIMI]. Aí, desse dia pra cá o trem mudou... Aí nós viemos, mas, foi de outro jeito, viemos todo mundo junto! (Raimundo Krahô-Kanela, 22/01/2010) É oportuno ressaltar que, desde a expulsão de seu território considerado tradicional, os Krahô-Kanela, organizados em torno da liderança de Mariano, já reivindicavam o reconhecimento étnico e o direito oficial à demarcação da terra Mata Alagada. A partir do apoio do Conselho Indigenista Missionário, o grupo intensifica sua articulação, tanto internamente quanto junto ao movimento indígena e setores organizados da sociedade civil, construindo e ampliando uma rede de aliados e apoiadores. Utilizo a ideia de “rede” desenvolvida por Barnes (1987) como estratégia analítica capaz de pôr em relevo o conjunto de relações estabelecidas entre os Krahô-Kanela e diversos outros agentes sociais em torno da luta política pela demarcação de seu território, o que nos permitirá apreender as intencionalidades, estratégias e ações, bem como escolhas individuais e/ou coletivas de acordo com a distribuição de poder, os interesses em jogo e as situações enfrentadas. Este contexto de lutas e embates políticos nos remete a Bourdieu (1989:124), para quem os indivíduos e os grupos investem nas lutas de classificação todo o seu ser social, tudo o que define a ideia que eles têm deles próprios, todo o impensado pelo qual eles se constituem como ‘nós’ por oposição a ‘eles’, aos ‘outros’ e ao qual estão ligados por uma adesão quase corporal. O que explicaria a força mobilizadora da identidade, chamando-nos a atenção para a importância do reconhecimento externo: (...) a oficialização tem a sua completa realização na manifestação, ato tipicamente mágico (o que não quer dizer desprovido de eficácia) pelo qual o grupo prático, virtual, ignorado, negado se torna visível, manifesto, para os outros grupos e para ele próprio, atestando assim a sua existência como grupo conhecido e reconhecido, que aspira à institucionalização. O mundo social é também representação e vontade, e existir socialmente é também ser percebido como distinto (BOURDIEU, 1989: 117-118). 71 Cardoso de Oliveira (2006) também chama a atenção para a importância do reconhecimento étnico na instância pública. Segundo este autor, à luta de um grupo pelo reconhecimento de sua identidade étnica seguir-se-iam demandas em torno da cidadania e dos direitos associados a esta etnicidade, razão pela qual, para além do reconhecimento jurídico, também estaria em jogo o reconhecimento moral. A maneira com que o CIMI toma conhecimento da existência dos Krahô-Kanela também é um dado importante para a análise da constituição deste grupo étnico por nos remeter à categoria identitária “Os Marianos”, o que será tratado a seguir. 2.1.5 – “Os Marianos” Ao serem expulsos da terra, Mariano teria refletido com si mesmo: “Hoje eu ainda sou menino, mas daqui uns dias que eu for homem mesmo, eu vou trazer o meu pessoal pra cá outra vez...” (Mariano, 30/07/2003 apud ALMEIDA, G., 2004:19). Por sua disposição e iniciativas, o seu pai, Alfredo Krahô, já doente e, pouco antes de falecer, o nomeou cacique, fazendo-o responsável pela realização de sua “profecia”. Desde então, Mariano liderou o grupo na luta pelo reconhecimento étnico e pela demarcação de seu território, realizando viagens constantes a Brasília, Goiânia e Palmas, atuando como interlocutor entre seu grupo e diversas instituições governamentais. Podemos relacioná-lo ao que Arruti (2004) denominou de “liderança peregrina”, referindo-se a lideranças que, através das viagens aos centros de poder, ampliavam seu prestígio e autoridade junto aos seus e à população regional57. Algumas vezes Mariano viajava acompanhado por algum de seus irmãos, contudo, por razões financeiras, realizava a maioria das viagens sozinho. Para Arruti, o papel da liderança peregrina e suas viagens repercute em todos os aspectos da vida da comunidade, desde sua relação com a memória, até seu arranjo interno de autoridade, no qual passam a ocupar um lugar diferencial justamente aqueles responsáveis pela busca dos direitos (ARRUTI, 2004: 253). Por esta razão Mariano é tido e reconhecido como o membro com maior legitimidade para narrar a trajetória do grupo, bem como para intermediar negociações junto aos órgãos 57 De acordo com o depoimento de membros do Conselho Indigenista Missionário, Mariano era respeitado como líder não só pelo seu grupo, mas também pela população não indígena, que o considerava sábio e o admirava pelos conhecimentos que o mesmo adquiria na realização de suas viagens. 72 governamentais, principalmente, no que se refere à regularização fundiária da Terra Mata Alagada. Para Oliveira (2004), as peregrinações de lideranças indígenas podem ser um importante meio constituidor de unidades socioculturais. O autor, ao analisar as viagens de lideranças indígenas do Nordeste, explica que essas configuram verdadeiras romarias políticas, que instituíram mecanismos de representação, constituíram alianças externas, elaboraram e divulgaram projetos de futuro, cristalizaram internamente os interesses dispersos e fizeram nascer uma unidade política antes inexistente. É preciso perceber que essas viagens só assumiram tal significação porque os líderes atuaram também em uma outra dimensão, realizando outras viagens, que foram peregrinações no sentido religioso, voltadas para a reafirmação de valores morais e crenças fundamentais que fornecem as bases de possibilidade de uma existência coletiva (OLIVEIRA, 2004: 34). Em certo sentido, podemos dizer, então, que, em torno da liderança de Mariano e da mobilização política pela terra, foi sendo constituído esse grupo étnico. Conforme testemunha Carlane, o que manteve eles junto mesmo foi a busca da terra. Se eles se separasse seria mais difícil, aí eles resolveram ficar junto, mas, só o povo da Dona Inês, porque os outros [aqueles que se dispersaram após a expulsão da terra] não quiseram. Aí eles ficaram junto, todo mundo lutando. Às vezes não viajava todo mundo, mas juntava dinheiro pro Mariano ir (Carlane, casada com Felicíssimo, 28/01/2010. Grifo meu). A liderança de Mariano fez com que o grupo se tornasse conhecido regionalmente, além de “Caboclos”, também, como “os Marianos”. Foi através dessa categoria identitária que o CIMI chegou até eles, conforme demonstra o trecho do relatório enviado por esta entidade à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal: Durante a Assembleia do Regional Goiás/Tocantins (GO/TO) do Cimi, realizada nos dias 14 a 17 de maio do ano em curso [2001], chegou ao conhecimento dos missionários da entidade, através dos relatos dos indígenas Javaé ali presentes, da existência de uma comunidade indígena, denominada “Marianos”, vivendo no referido assentamento do Incra. De posse de tais informações a Coordenação Regional do Cimi buscou a aferição in loco da situação mencionada, o que foi constatado nos dias 25 e 26 de julho p.p., através de visita ao citado assentamento, oportunidade em que se travou contato com o líder da comunidade, Sr. Mariano Ribeiro, e alguns de seus familiares (CIMI, 09/08/2001:03. Grifo meu). 73 A antropóloga Patrícia de Mendonça Rodrigues explicou-me que os Javaé têm uma ênfase cultural na primogenitura e, ainda, no caso de outros povos, era comum, na mitologia histórica, que eles ficassem conhecidos com os nomes do líder do grupo58. Para ela essa lógica se manteve nos tempos atuais, já que eles identificavam o grupo dos KrahôKanela pelo nome do líder, como era feito comumente desde tempos míticos (RODRIGUES, 03/05/ 2011, comunicação pessoal). Em muitos dos documentos elaborados pela FUNAI e analisados como dados secundários para a consecução deste trabalho, foi possível identificar que o órgão indigenista também se referia aos Krahô-Kanela através da figura de Mariano: “o grupo do Sr. Mariano”, “Sr. Mariano e seu grupo”, “grupo liderado por Mariano”, “o grupo encabeçado pelo Sr. Mariano”.59 Mariano foi o cacique do grupo desde o início da luta até, finalmente, a demarcação parcial do território, quando então, através de uma eleição entre a comunidade, ele foi destituído do cargo. Contudo, tendo a comunidade decidido retomar a mobilização para a demarcação do restante da terra e diante da eclosão de um conflito interno (que será abordado adiante), por sua experiência e postura conciliadora, Mariano retomou sua posição de cacique no início de 2010. 2.1.6 - A primeira retomada A garantia dos direitos territoriais constitui uma das principais reivindicações dos povos indígenas em todo o país. Apesar de estes direitos constarem da Constituição Federal desde 1988, muitos territórios indígenas se encontram invadidos e ocupados de maneira ilegal por agentes não indígenas de diversos perfis e com distintos interesses econômicos sobre eles. Via de regra, a maior parte destes territórios sequer tem iniciado os procedimentos administrativos adequados para encaminhar sua demarcação, ou então, tais 58 Sobre este tema ver: RODRIGUES, Patrícia de Mendonça. A caminhada de Tanyxiwè: Uma teoria Javaé da História. Tese apresentada ao Departamento de Antropologia da Divisão de Ciências Sociais para obtenção do título de Doutor em Filosofia (PhD). Chicago, Illinois, 2008. 953 pp. 59 Esclareço, no entanto, que a categoria “grupo” por mim utilizada – enquanto coletividade que se constitui segundo critérios político-organizativos, com base me Barth (2000), não corresponde àquela adotada pela Funai. 74 procedimentos se prolongam em função da pressão de forças políticas e econômicas locais, que tentam impedir a conclusão dos processos – e, consequentemente, provocam conflitos violentos pela posse da terra. Como estratégia de resistência, os indígenas realizam as chamadas retomadas (intensificadas a partir de 1998), que devem ser entendidas como atos simbólicos e políticos de retornar, através da organização e mobilização étnica, a seus territórios tradicionais. Para Ferreira (2007), esta estratégia, reflexo da mudança nas relações de poder entre índios, Estado e grupos dominantes, retrata “a resistência aos padrões de territorialização impostos pelo regime tutelar e também às condições econômico-sociais que derivam dele” (FERREIRA, 2007: 104), representando, consequentemente, “um novo processo de territorialização, dirigido pelos índios, com origem nas suas próprias demandas, materiais e simbólicas” (Idem). Segundo este autor, que analisa, em sua tese, as formas de resistência Terena Podemos falar que a retomada de terras é uma das técnicas da resistência política camponesa e que o seu emprego indica que os grupos sociais construíram condições materiais, organizativas e ideológicas, para sua utilização. A partir do momento em que grupos sociais empregam a retomada de terras, configura-se um conflito político em que os indígenas desenvolvem uma política de resistência a (e simbolicamente de inversão) uma situação de desigualdade gerada pela dominação estabelecida. A retomada de terras expressa esse desenvolvimento da capacidade política indígena através do conflito político que desencadeia novas formas de territorialização (FERREIRA, 2007: 105). Em 22 de setembro de 2001, os Krahô-Kanela empreenderam uma tentativa de retomada de sua terra tradicional. A motivação para esta atitude podemos encontrar no depoimento de Felicíssimo: “o tempo que a gente tava no Bonfim [P.A. Tarumã] foi o tempo que nós mais sofreu, porque além da gente estar longe da nossa terra, era um lugar muito ruim demais, tinha muita doença. Se nós não saísse de lá nós morria (...) ” (18/01/2010, grifo meu). Para além das motivações individuais de retornar à região conhecida, ou do maior conhecimento dos Krahô-Kanela acerca dos direitos e da política indigenista a partir do contato com o CIMI, um fator que se apresenta nos depoimentos como motivação da estratégia de retomada foi a relação que estabeleceram com o povo Xerente. No ano de 2000, Estevão Krahô-Kanela casou-se com uma índia Xerente, que passou a morar no assentamento Tarumã, levando consigo alguns de seus parentes. Os Krahô-Kanela contam 75 que, embora o casamento tenha durado apenas alguns meses, os Xerente, por terem testemunhado o sofrimento vivido por eles, os aconselharam: “olha, o único meio é, se vocês tiverem coragem, voltar para a terra de vocês” (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010). Desta forma, os Krahô-Kanela narram a participação de algumas lideranças Xerente na primeira retomada territorial, ressaltando a importância de receberem de outro grupo étnico da região tanto o apoio quanto o acompanhamento da mobilização. Sob a justificativa de que iriam pescar tartaruga próximo à Ilha do Bananal, os indígenas fretaram um caminhão e um ônibus e seguiram para a antiga Fazenda Brahma – atualmente Fazenda Planeta. A escolha dessa fazenda deve-se ao fato de ter sido esta área que abrigou a antiga aldeia do Lago da Praia, ou seja, é uma parte da área tradicional de grande significância para o grupo (que, contudo, ficou fora da demarcação parcial). Lá ficaram acampados, na beira do rio Formoso, por cinco dias; “todo mundo alegre, pegando tartaruga, pegando peixe. (...) Ninguém botava na ideia que a gente ia ter que ir embora, achava que nós tava na nossa terra para sempre”. (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Passados cinco dias, o grupo foi levado por um oficial de justiça para o Projeto de Assentamento Loroti, no município de Lagoa da Confusão-TO, vizinho à fazenda retomada. No momento em que ocorreu o deslocamento para o PA Loroti, o grupo já adotava o etnônimo Krahô-Kanela: “virou Krahô-Kanela quando nós saiu do assentamento Tarumã... nós tem assim o sangue da nossa mãe né, então nós não quer falar que não é Kanela porque ela vai ficar triste, então nós é Krahô-Kanela” (Entrevista com Mariano, 30.07.03 apud ALMEIDA, G., 2004: 74).60 2.1.7 - No Projeto de Assentamento Loroti A gente se sentia muito preso, não tinha para onde ir, nem o que fazer. Nós sofreu demais61. 60 61 Uma reflexão sobre o etnônimo será realizada mais adiante. Albertina, 30/01/2010. 76 Novamente a Procuradoria da República no estado do Tocantins mediou o deslocamento e a permanência dos Krahô-Kanela neste assentamento. A Dra. Gina [assessora do Procurador da República] determinou que a gente ficaria na casa-sede da assentamento. Ela falou para os assentados: ‘eles vão ficar aí dois anos; é o prazo que eu vou dar pra Funai resolver o problema da terra deles. Dentro de dois anos eles vão ficar aqui e vocês não mexam com eles e eles também não vão mexer com a vida de vocês (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010. Grifo meu). Foi realizada uma reunião com a participação do Ministério Público, FUNAI, INCRA, CIMI, Centro de Direitos Humanos de Palmas, assentados e indígenas a fim de definir a situação. Como em 1999, quando da primeira tentativa em deslocar o grupo indígena para este P.A., os assentados demonstraram grande insatisfação diante desta nova medida. De acordo com o próprio Superintendente do INCRA, “com os assentados não teve acordo não, foi imposto que eles [os Krahô-Kanela] ficassem no assentamento Loroti” (José Roberto R. Forzani, 04/02/2010. Grifo meu). Em 30 de outubro de 2001, foi assinado um “Termo de acordo e permanência no P. A. Loroti entre o INCRA e os índios do grupo Mariano Ribeiro Krahô-Kanela e outros e a FUNAI”, através do qual ficou estabelecido: a desistência dos lotes do P.A. Tarumã por parte dos indígenas; a permanência provisória no P.A. Loroti por um período de dois anos - de 30/10/2001 a 30/10/2003, bem como o comprometimento da FUNAI em retirar as famílias ao término deste prazo; a assistência ao grupo deveria ser prestada pela FUNAI (INCRA, 2001). Para os Krahô-Kanela, a vida neste assentamento não foi diferente da anterior. A Capão [P. A. Loroti] era uma cadeia, nós ficamos presos. Era um lugar muito ruim, a gente não dá conta nem de falar, parecia fim de história. Era falta de alimentação, de atendimento a saúde, tudo era ruim demais. A gente não tinha nem espaço para andar porque o acordo era para gente ficar quieto, não fazer nada. E a gente sabia que muitos no assentamento não gostavam de nossa estadia lá (Mariano Krahô-Kanela, liderança, 20/01/2010. Grifo meu). Segundo a já citada antropóloga responsável pelo levantamento prévio dos estudos de identificação e delimitação da T. I, que foi realizado justamente no período em que os Krahô-Kanela se encontravam neste assentamento, eles recebiam constantes ameaças de servidores do INCRA, bem como, chegaram a receber um ofício deste órgão solicitando a saída da sede e retorno ao PA Tarumã. 77 Referida solicitação foi contornada e anulada pelo MPF do Tocantins (...) (VIEIRA, 2003). Em 2003 é instituído pela FUNAI um Grupo Técnico - GT com vistas à realização dos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Mata Alagada. Através dos trabalhos de levantamento fundiário, tornou-se público que nove lotes do assentamento Loroti estavam sobrepostos à terra reivindicada pelos Krahô-Kanela. Tal fato provocou a ira dos assentados que, violentamente, expulsaram os indígenas recordando o vencimento do prazo para a permanência dos mesmos no assentamento, sobre o qual a FUNAI e o INCRA já teriam sido alertado, através de documentos enviados pelos assentados. Como ambos os órgãos não se manifestaram, no dia 02 de novembro, um grupo composto de 300 pessoas, moradoras do assentamento, bloqueou a entrada da sede, fazendo reféns todo o povo Krahô-Kanela que se encontrava ali no momento, funcionários do Itertins (Instituto de Terras do TO), Funai e Incra, que concluíam o estudo fundiário da terra indígena Mata Alagada (Relato da situação do povo Krahô/Canela, Coordenação do CIMI GO/TO s/d). No dia seguinte a este episódio, vários agentes se deslocaram para o local da tensão: representantes da FUNAI e do INCRA (do estado e de Brasília); o Procurador da República, Dr. Adrian Pereira Ziemba; agentes da Polícia Federal; representantes do CIMI e do Centro de Direitos Humanos de Palmas. Após reunião com os assentados – sem a participação dos indígenas – concluiu-se pela retirada dos Krahô-Kanela do assentamento. A narrativa de Alderez sintetiza o ocorrido: Fechou o prazo dos dois anos e os assentados se rebelaram contra nós. Eles trancaram nós na sede; com trinta e seis horas que nós tava retido foi que a FUNAI e o Ministério Público chegaram pra negociar com eles. Mas, não teve nem como negociar, já fizeram foi tirar nós. O administrador da FUNAI de Gurupi combinou com o Ministério Público e fez uma proposta pra nós: ‘olha eu tenho um local pra botar vocês e vocês não podem dizer que não porque é a única opção. Essa é uma situação de salvar vidas porque pelo que nós tem ouvido vocês não podem permanecer aqui de jeito nenhum. Então, tem a casa do índio de Gurupi, lá está abandonado, está feio, mas nós vamos deixar limpo até amanhã pra quando vocês chegarem. Nós vamos levar vocês pra antiga casa do índio em Gurupi, lá está desativado e dá pra vocês ficarem’. O pessoal não quis ir porque a gente tava saindo do mato onde tinha pelo menos o rio pra gente banhar (...) mesmo sem querer a gente teve que ir (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). 78 A pluricidade de agentes do estado e da sociedade civil envolvidos na resolução da tensão territorial entre os Krahô-Kanela e os assentados demonstra a prática indigenista atual de resolução de conflitos articulando na mesa de negociação agentes que podem criar maiores tensões para a FUNAI do que as já existentes. Ou seja, neste caso de conflito, vêse como os agentes estatais tentam acordar com os possíveis aliados dos Krahô-Kanela para que as decisões tomadas pelo órgão indigenista sejam aceitas no campo indigenista. O reconhecimento do território Krahô-Kanela envolveu negociações em que órgãos estatais e civis se afirmam como mediadores da vontade e dos interesses dos indígenas e dos assentados, que, neste caso, são duas categorias que, desprovidas de seu direito à terra, se tornaram concorrentes junto ao Estado do direito de ter direito territorial. 2.1.8 - Estada na antiga casa do índio em Gurupi A FUNAI - desta vez, sem delegar a responsabilidade ao INCRA - levou os KrahôKanela para a antiga Casa do Índio, em Gurupi (TO). Admitindo que o local não oferecia as condições necessárias para abrigá-los por muito tempo, o órgão indigenista teria se comprometido a alugar uma chácara, mais afastada da cidade, onde os indígenas aguardariam a regularização fundiária da terra Mata Alagada. Chegou a ser discutida em reunião da qual participaram, além das lideranças indígenas, representantes do Ministério Publico Federal, do INCRA, da FUNAI, do CIMI e da Igreja Anglicana, a possibilidade de negociar os nove lotes do assentamento Loroti a fim de destiná-los aos Krahô-Kanela e evitar futuros deslocamentos. Contudo os indígenas permaneceriam por três anos na antiga Casa do Índio, dependentes da assistência da FUNAI/Gurupi e de doações, pois, por falta de espaço, não podiam desenvolver atividades econômicas. A ruína que a gente passava ali era aquela depressão, aquela tensão que a gente vivia achando que a FUNAI cruzava os braços porque achava que a gente ia acostumar com aquela situação de ter arroz, feijão e carne, e deixava o tempo passar. Era preciso a gente ficar cutucando Brasília, porque, se ia na FUNAI de Gurupi ela dizia que não podia fazer nada (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Durante o período em que permaneceram na cidade de Gurupi, os Krahô-Kanela mantiveram-se articulados com o movimento indígena que, em diversos momentos de 79 encontros e reuniões promovidos pelo CIMI, manifestou o apoio ao grupo, conforme demonstra o “Documento Final do Encontro dos Indígenas”: Nós, lideranças indígenas dos povos Apinajé, Karajá-Xambioá, Krahô, Javaé, Karajá, Xerente, Krahô-Kanela, Tapuya e Karajá de Aruanã, reunidos na sede da Associação Kapey nos dias 05 e 06 do corrente ano, discutimos vários assuntos de nosso interesse (...) decidimos nos unir para ajudar os parentes Krahô-Kanela a retomarem sua terra, diante da demora por parte da Funai em não publicar o relatório de identificação no Diário Oficial, para que a Funai retire os fazendeiros e moradores da Área Indígena Krahô-Kanela, caso contrário, nós, povos indígenas dos estados de Tocantins e Goiás iremos nos unir para fazermos a retomada (...) (abril de 2005, assinam as lideranças indígenas). A articulação de líderes indígenas de várias referências étnicas para promoção da agenda reivindicatória de um deles é uma forma de ação bastante usual da política indígena contemporânea quando em interação com o Estado (ORTOLAN MATOS, 1997). A constituição da coletividade política por meio do referencial de “sermos todos parentes” tem sido estratégico para os enfrentamentos indígenas com o Estado, aproveitando-se da abordagem estatal de definir os direitos indígenas pela identidade genérica “índio”. Entidades, movimentos e pastorais sociais somaram forças junto ao CIMI GO/TO na criação do Comitê pela Demarcação da Terra Mata Alagada,62 em outubro de 2005, a fim de fortalecer a mobilização dos Krahô-Kanela. Além da realização de manifestações, audiências públicas e reuniões no estado do Tocantins, também foram denunciados, nacional e internacionalmente, a omissão e o tratamento preconceituoso dispensado pelo Estado Brasileiro – sobretudo pelo órgão indigenista oficial - aos Krahô-Kanela, a exemplo da denúncia feita por Mariano Krahô-Kanela ao relator da Organização das Nações Unidas-ONU sobre Formas Contemporâneas de Racismo, Discriminação Racial e Xenofobia quando de sua vista ao Brasil em outubro de 2005. 62 Além do Cimi, uma diversidade de entidades compuseram o Comitê: Centro de Direitos Humanos de Palmas - CDHP, Casa da Mulher 8 de Março, Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLP-TO, Alternativas para a Pequena Agricultura – APA-TO, Movimento dos Atingidos por Barragem – MAB, Prelazia de Cristalândia, Arquidiocese de Palmas e Porto Nacional, Igreja Anglicana, entre outros. 80 Figura 07: O casal Almir Krahô-Kanela e Letícia Karajá Fonte: Wellington Antenor Os jovens Almir Krahô-Kanela e Letícia Karajá (etnia Karajá-Xambioá) se conheceram no contexto de encontros e mobilizações entre os povos do estado do Tocantins em apoio à luta dos Krahô-Kanela. Na foto, a filha do casal, Letiele Xanariru Krahô-Kanela. 2.1.9 – A segunda retomada A segunda tentativa de retomar o território tradicional foi realizada em 10 de junho de 2004. A iniciativa foi tomada diante da demora da FUNAI em publicar o relatório dos estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Mata Alagada – “Nós fomos forçados por causa da omissão da FUNAI” (Mariano Krahô-Kanela, cacique na ocasião, apud Porantim, 2004:08). Os Krahô-Kanela, com o apoio de lideranças indígenas dos povos Apinajé, KarajáXambioá e Krahô, somando um total de aproximadamente 180 pessoas, ocuparam 81 novamente a Fazenda Planeta/Gurupi Participações. Dispostos a permanecerem no local, após ser expedida, no dia 11 de junho, a primeira liminar de reintegração de posse pelo juiz de Cristalândia, os indígenas fizeram reféns os dois oficiais de justiça que, no dia 12, foram ao local levar a notificação.63 Este fato repercutiu na imprensa regional e nacional, com matéria vinculadas em duas emissoras de TV. Após negociações entre os indígenas, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, CIMI e Centro de Direitos Humanos de Palmas, e a transferência do caso para a Justiça Federal, os oficiais de justiça foram liberados. A primeira liminar foi revogada no dia 14, e a competência do caso foi transferida à Justiça Federal, que concedeu, no dia 16 a segunda liminar de reintegração de posse contra o povo Krahô-Kanela (LUCHIN, 2004:08). Figura 08: Fotografias da segunda retomada da Terra Mata Alagada Fonte: Wellington Antenor Representantes Apinajé e Krahô apoiam os Krahô-Kanela na segunda retomada da Terra Mata Alagada. Lideranças Krahô-Kanela em negociação com o procurador da PRTO, Dr. Álvaro Manzano. 63 Ferreira, explica que “os processos de ocupação são realizados de forma a combinar-se com outras técnicas de luta política. Podemos dizer que o uso frequente dessas técnicas permite que as agrupemos em quatro grandes categorias: 1) ocupação de terras; 2) sequestros (ou tomada de reféns); 3) bloqueios de estradas e rodovias; 4) ocupações de prédios públicos” (FERREIRA, 2007: 105). Destas, somente a terceira ação não foi realizada pelos Krahô-Kanela durante o processo de luta política pela demarcação de seu território. 82 Os Krahô-Kanela retornaram à antiga Casa do Índio em Gurupi mediante mais um novo acordo que nunca seria cumprido: a Funai se comprometeu a, num prazo de quarenta e cinco dias, arrendar terras nas proximidades da região para abriga-los até a demarcação da terra por eles reivindicada. Em razão desta postura, o CIMI avalia que “tirar o povo de um local para evitar um conflito maior, prometer que soluções favoráveis a eles serão providenciadas e depois deixá-los à própria sorte, tem sido a prática do órgão indigenista” (CIMI, 2004). Somente em 2006, após a realização de um acordo entre INCRA e FUNAI, o grupo pôde retornar a Mata Alagada. Este processo será analisado no capítulo 3. 83 Figura 09: Mapa dos deslocamentos de Florêncio e do grupo Krahô-Kanela Fonte: IBGE, s/d. Observação: os pontos marcados no mapa não contêm precisão cartográfica, são apenas localizações aproximadas para que o leitor visualize a área compreendida pelos deslocamentos do grupo. Legenda da Figura 09: 1) Região denominada por Bacaba; aldeia Pedra Furada, Pitoró e Donzela (atual T.I. Kraholândia; 2) Gorgulho e Jenipapo (duas localidades na T. I. Xerrente); 3) Testa Branca ou Serra do Carmo; 4) Água Fria; 5) Locais de temporada pertencentes ao município de Cristalândia: São Luiz, Poço Danta, Salina, Mineiro, Pedra, Onça e Atoleiro; 6) Mata Alagada; 7) Cidade de Dueré; 8) Ilha do Bananal; 9) P.A. Tarumã (município de Araguacema); 10) P.A. Loroti (município de Dueré); 11) Cidade de Gurupi. 84 2.2 – “TODA NOSSA HISTÓRIA TÁ NELA, NA MATA ALAGADA”64 Ao longo da mobilização étnica empreendida pelos Krahô-Kanela, a terra por eles reivindicada sempre foi a Mata Alagada, e não aquelas por eles denominadas de locais de temporada (descritas no primeiro capítulo). Como analisa Graziela Almeida (2005:03) (...) a sua concepção, enquanto coletividade, de sua terra, seu local de pertencimento, é referente à Mata Alagada. É essa terra que reúne todas as condições para a reprodução física e cultural dos Krahô-Kanela (...) E quais seriam, segundo os próprios indígenas, essas “condições” que os vinculam à Mata Alagada? Como esta terra foi “escolhida”, convertendo-se, a partir de seu uso e de seu significado, em território tradicional? O conceito de terra indígena que nos é dado pela Constituição Federal de 1988 remete à ideia de “ocupação tradicional”. Não raro, entendimentos divergentes vêm sendo aplicados ao termo “ocupação tradicional”. Veremos no próximo capítulo, por exemplo, que a FUNAI contestou a tradicionalidade da Terra Mata Alagada porque se baseou na noção imemorialidade, de antiguidade da ocupação. Contudo, “tradicionalidade” deve ser entendida como a atribuição de valores e significados dados por determinado grupo ao território ocupado, ou seja, o território é socialmente construído pelo grupo através do sentimento de pertencimento e de sua história nele inscrita. Desde que Florêncio Caboclo e sua família saíram da região de Itacajá, separandose do povo Krahô, passaram por diversas localidades e, para sobreviver, “ficavam trabalhando com fazendeiro, negando sua identidade, porque eles não podiam falar do passado, não podiam falar a língua... eles não podiam apresentar nenhuma cultura além da de viver no mato” (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Embora por vezes tenham tentado se fixar em algumas localidades, ficavam sempre por pouco tempo, pois logo chegava alguém dizendo que era dono, então não dava tempo deles ficarem. Não plantavam roça nem nada; às vezes plantavam uma rocinha, mas largavam tudo e ia embora. Por isso o pessoal andou muito... quando 64 Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010. 85 eles começava a querer se instalar, aparecia dono (Mariano KrahôKanela, liderança, 20/01/2010). Conforme explicou Mariano, esses foram locais de temporada e não de moradia como viria a ser a Mata Alagada. Já nas proximidades da Mata Alagada, convidados por um índio Javaé, os filhos de Florêncio, ascendentes do grupo que hoje se autodenomina Krahô-Kanela, conheceram uma terra sem dono, onde não morava ninguém, onde, esclarece Alderez, “o primeiro facão que cortou o mato no Lago da Praia, onde eles fizeram aldeia na beira do rio Formoso, foi o nosso” (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Na minha análise eles se apegaram mais a essa região, a Mata Alagada, é porque aqui eles chegaram e não tinha ninguém que aborrecesse eles. Eles vieram para a região que o índio indicou porque não tinha ninguém. Os índios [Javaé] já estavam saindo pra outro lugar, pra outro lado do rio Javaé, no Morro de Areia, na Ilha do Bananal. Eles estavam saindo de uma antiga aldeia deles na Capão de Coco. Nessa época, na Ilha do Bananal tinha a aldeia Boto Velho, Macaúba, Canoanã e Capão de Areia. Eles tinham saído pra fora da área deles mas estavam procurando voltar pra área deles novamente. Então, eu acho assim, que eles [ascendentes Krahô-Kanela] chegaram no Lago da Praia e se acharam seguro, longe de perseguição, acharam que tinha chegado num paraíso, aonde não ia ter perseguição de nenhum lado, aonde até mesmo a doença pra eles era muito difícil. Era muito difícil um índio gripar porque eles não tinha contato com ninguém, eles não davam febre, não davam diarréia, nenhuma criança morria, não tinha doença pra atacar. Então eles achavam que ali eles estariam seguros, livres, porque eles vinham de uma perseguição muito grande; passaram por tantas localidades sem sossego, formaram aldeias e tiveram que abandonar (Alderez, 26/01/2010. Grifos meus). A terra Mata Alagada foi constituída pelos Krahô-Kanela como seu território tradicional tanto pelo sentimento de ter sido “desbravada” pelos seus antepassados quanto pela valorização da área enquanto local de existência de maior segurança de vida, isto porque oferecia aos indígenas recursos naturais de que necessitavam e também o bem considerado mais precioso a sua sobrevivência, a saúde: A história do nosso pessoal quando nós morávamos na Mata Alagada, antes do branco chegar naquela região era de uma aldeia muito boa, nosso pessoal não sofria nenhum tipo de doença, com muita alimentação, muito peixe, muita caça, muita fruta nativa. Nós fazíamos roça, plantávamos bananas, cana, mandioca, batata, inhame, arroz, milho, feijão, fava. Plantávamos tudo para nossa alimentação e criávamos animais como: porco, galinha, vaca. Não tínhamos necessidade de ir à cidade, e nem o 86 povo da cidade tinha necessidade de ir até nós (Mariano apud CIMI, 2004:03). Como pode ser constatado nos depoimentos transcritos, esta terra traz saúde, assim como só se tem saúde estando nesta terra. Ao descrever o retorno do grupo ao território tradicional depois de anos de luta, Wagner Krahô-Kanela reflete: tudo do índio tá relacionado a terra. Índio sem terra é índio doente, sem esperança, porque a esperança do índio é a terra. Se o índio é retirado da terra ele é índio doente, sem vida, não tem esperança. Chegar aqui foi a mesma coisa de ter estado doente e voltar a ser sadio. Pra nós a doença acabou e chegou a saúde (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010). Os momentos que passaram nos demais locais para onde foram deslocados são sempre lembrados como períodos de sofrimento, dor e doença, a exemplo do P. A. Tarumã: “Nós não gostava do lugar porque era muito doentio. Toda vez que chegava lá tinha uma pessoa nossa gemendo de doença. Não vi nenhum dia nesses dois anos [em que moraram no referido assentamento] que não tivesse uma pessoa nossa doente”. (Mariano, liderança, 20/01/2010. Grifo meu). Figura 10: Raimundo Krahô-Kanela e filhos retornando da roça Fonte: Kariny Teixeira de Souza. Acervo de pesquisa, janeiro de 2010. 87 Outra motivação para os Krahô-Kanela elegerem Mata Alagada como sua terra tradicional está relacionada ao grupo possuir uma relação estreita com a criação de gado, conforme já descrito no primeiro capítulo: i) Florêncio, o ancestral mítico do grupo, iniciou a lida com o gado no momento em que se apartou dos Krahô e, desde então, sua família passou a desenvolver esta atividade, seja trabalhando para fazendeiros, seja criando suas próprias cabeças de gado. Mesmo quando se referem a este período de peregrinação, anterior à ocupação da Terra Mata Alagada, uma frase é constantemente repetida pelos indígenas: “nessa época nosso pessoal já mexia com gado... desde que eu me entendo por gente, nós já mexia com gado”. ii) Ao narrar a forma com que os Krahô-Kanela iniciaram a ocupação da Terra Mata Alagada, Raimundo Krahô-Kanela indica que o grupo estava à procura de um retiro onde pudesse instalar o gado no período do inverno. iii) Atualmente, a criação bovina é a principal atividade econômica dos Krahô-Kanela. Conforme depoimento de um membro do CIMI: “o gado determina a direção do povo; eles veneram o gado” (X. X, 08/01/2010). Como os próprios indígenas dizem, “o gado é a nossa poupança”; sempre que necessitam de dinheiro para algum imprevisto, como compra de material escolar, viagens, conserto de veículo, recorrem à venda de gado. Quase que diariamente negociantes não indígenas chegam à aldeia para comercializar gado com os indígenas. Entre os membros do grupo, compra, venda ou trocas envolvendo gado também são constantes. Portanto, Mata Alagada é identificada como terra tradicional dos Krahô-Kanela por oferecer saúde, bem-estar, fartura caça, pesca, alimentos cultivados na roça, e também por apresentar as condições ecológicas propícias (pastagens naturais) para a criação bovina, prática que se tornou a principal atividade econômica com adequação às variações sazonais65. Ao trazer esses dados, não estou querendo apontar que os Krahô-Kanela teriam a visão utilitarista de seu território66, mas sim, que a criação de gado funciona como um mapa cognitivo que orienta a relação entre os indígenas e o território. 65 Durante meu trabalho de campo, seu Tonico fez questão de me mostrar o varjão – pasto nativo, para onde conduzem o gado durante o verão (período seco) 66 Douglas e Isherwood (2006) criticam essa visão utilitarista dos bens. Para os autores - antropóloga e economista respectivamente – “os bens são neutros, seus usos são sociais; podem ser usados como cercas ou 88 O sentimento de pertencimento dos Krahô-Kanela à Mata Alagada e a crença do grupo de que um dia retornariam para esta terra são expressos pela preocupação constante em relação à sua preservação ambiental. Esta preocupação os acompanhou durante os vários deslocamentos fora de sua terra, por exemplo, quando estavam no assentamento Tarumã realizavam viagens ao território, fiscalizando as atividades dos fazendeiros a fim de garantir que a terra estaria em boas condições para quando então retornassem. O pessoal sempre pensava de um dia de chegar aqui, de voltar para a nossa terra. Durante trinta anos nós não passou um ano que não viesse aqui, todo ano nós andava aqui dentro da terra; quando a gente não andava de cavalo, a gente andava de pé, andava de canoa. Nós, no Tarumã, nós tava lá e nós veio; e nós viemos de novo quando foi noutro ano, quando foi em 2000. Todo ano nós andava aqui dentro. Todo dia nosso pensamento era de voltar pra cá, porque o lugar que nós podia viver era aqui, noutro lugar nós não vivia não, era só de sofrimento. Aqui era onde nós via nossas coisas, nós via a mata, nós via o peixe, nós via a caça, via nossa terrona. E outro local não era nosso não. Agora essa aqui, toda vida ela sempre foi nossa, o fazendeiro tirou nós. Por isso foi pra lei, porque nós não tinha como fazer de outro jeito, só mesmo a lei. E toda a vida nós vivemos confiando, confiando que nós voltava pra cá (Felicíssimo Krahô-Kanela, 18/01/2010). De igual modo, no período em que permaneceram no assentamento Loroti, denunciaram ao IBAMA e ao Ministério Público Federal o desmatamento que estava sendo realizado pela Fazenda Planeta/Empresa Gurupi Participações S/C Ltda e a construção de uma estrada – que cortaria a área reivindicada - pela Prefeitura Municipal de Lagoa da Confusão (interligando a fazenda ao assentamento Loroti) sem que tivesse sido realizado o processo de licenciamento ambiental pelo órgão competente. (...) A comunidade pede para que o senhor, como lei, pará as atividades destruidoras da nossa terra Mata Alagada, as quais são: tirações de madeiras, desmatamentos, aluguéis de pastos nativos, rede de energia, estradas vicinais de rodagem. Pois nós da comunidade já se desespera vendo a destruição que se encontra em nossa terra (Documento da comunidade à Procuradoria da República no Estado do Tocantins, 2002). Servidores do IBAMA, em fiscalização à área, comprovaram as denúncias feitas pelos indígenas autuando os infratores - Fazenda Planeta/Empresa Gurupi Participações S/C Ltda e Prefeitura Municipal de Lagoa da Confusão – determinando o pagamento de como pontes” (:.36). Ou seja, são comunicadores de categorias culturais e valores sociais. Mais que prover a subsistência, os bens produzem e mantém relações sociais. É neste sentido que devemos conceber o território. 89 indenização pelos crimes ambientais de desmatamento e construção de estrada sem autorização, obra que foi, então, embargada (IBAMA, 2002: s/p). Desta forma, as representações dos Krahô-Kanela sobre a Mata Alagada são construídas tanto em relação ao que foi vivido no passado, quanto em relação com o que é vivenciado no presente e às projeções em relação ao futuro. Mais do que isso, o grupo condiciona seus projetos de vida e, consequentemente, sua reprodução física e cultural, aos usos que fez, faz e pretende fazer de seu território constituído, desta forma, como tradicional. 2.2.1 - O que significa ser Krahô-Kanela e identificar-se como tal Segundo Max Weber (1991), um grupo étnico se constitui segundo sua crença subjetiva numa “origem comum”, sendo que esta origem remete a uma memória coletiva relacionada a um “passado simbólico” e não a um “passado primordialista/essencialista”. Este autor ainda elucida que a formação de grupos étnicos se deve às relações sociais estabelecidas entre agentes que compartilham crenças, honras e motivações políticas, independente do parentesco consanguíneo, da existência de “uma comunidade de sangue”. Tais considerações são necessárias para a abordagem de um conflito entre famílias originadas do mesmo grupo, cuja ocorrência me ajudou a compreender o “parentesco” e a “identidade” não como dados a priori, mas enquanto processos políticos em constante construção e reconstrução, de maneiras diversas, por sujeitos concretos e em situações específicas. Refiro-me ao fato de que, após ter se constituído a reserva em parte da terra reivindicada (em 2006), as famílias que outrora se dispersaram, por ocasião da expulsão do povo em 1976, intentaram retornar e nela se fixar. Todavia, tal pretensão foi negada pelo grupo que, permanecendo unido, vivenciou as experiências dos deslocamentos compulsórios e da luta pelo reconhecimento oficial e pela demarcação territorial. Duas famílias primeiramente aceitas e que já estavam construindo suas casas, acabaram sendo expulsas em 27/04/2008. Este fato surpreendeu a todos que acompanharam a história do grupo, como por exemplo, as entidades indigenistas, os movimentos sociais, o MPF e a FUNAI. Ao saber do acontecido, a minha primeira reação 90 também foi de surpresa. O grupo Krahô-Kanela sempre reconheceu a existência de outras famílias que, de alguma forma, a ele estariam ligadas, por isso, parecia evidente que, após a demarcação, o território seria compartilhado com estes parentes. Por que, então, o conflito? Por que razão foi-lhes negado o direito de retornar à Mata Alagada? Foram estas perguntas que me possibilitaram analisar empiricamente as nuances da constituição de um grupo étnico. Vimos, até aqui, como e em quais circunstâncias históricas e políticas se deu a constituição do grupo étnico que passou a se identificar e ser identificado como KrahôKanela. A fim de fazer emergir as relações de sociabilidade que contribuíram para a vinculação deste grupo étnico, recorro agora à “teoria da dádiva” como exercício analítico. Nesse sentido, uma das leituras de Marcel Mauss (2003) nos sugere que a “dádiva” permite: explicar as boas razões para que as sociedades se organizem a partir da obrigação (mas não só) ou a partir do interesse (mas não só), ou a partir do prazer (mas não só) ou a partir da espontaneidade (mas não só); ou seja, uma teoria que permite se acrescentar boas razões para os indivíduos agirem livremente e desinteressadamente, movidos simplesmente pelo prazer de interagir ou pela mera obrigação aos preceitos coletivos (MARTINS e CAMPOS, 2006:14 e 15). Faz sentido aqui retomar a obra “Ensaio sobre a dádiva” (2003), na qual Mauss analisa a reciprocidade e a troca nas “sociedades arcaicas” e nos apresenta um entendimento da constituição da vida social como um constante dar e receber. As trocas envolveriam uma tríplice obrigação: dar, receber e retribuir. Os bens trocados, cujo objetivo seria a construção de alianças, tanto econômicas quanto religiosas, políticas, matrimoniais, jurídicas e diplomáticas, não se limitariam a bens materiais: trocam-se mulheres, nomes, palavras, visitas, títulos, festas, gentilezas, gracejos, hospitalidades, desejos, memórias, sonhos e intenções. Mauss analisou as trocas como um conjunto de atividades sociais que não se restringe ao domínio do estritamente econômico, pois seu princípio fundamental estaria na reciprocidade e na aliança, ou seja, no comprometimento social daqueles que trocam, para além das coisas trocadas. Para Mauss (2003: 311) , “nas sociedades, apreendemos mais que ideias ou regras, apreendemos homens, grupos e seus comportamentos”. É importante trazermos à reflexão que ele concebia a sociedade como um fenômeno total, relacional, incerto e aberto que se faz primeiramente pela circulação de dádivas. Seria justamente através da circulação 91 contínua das obrigações mútuas (de dar, receber e retribuir) e dos bens materiais e simbólicos que os vínculos ou elos entre os membros de um grupo social são criados e mantidos. Ora, se a circulação de dádiva cria relações, consequentemente, sua ausência divide e separa (STRATHERN, 2007:288). Portanto, após passar pela expulsão de sua terra tradicional e por deslocamentos compulsórios ao longo de 30 anos, tendo algumas famílias se dispersado durante esta trajetória, podemos supor o rompimento de vínculos - “Eles não conviveram com nós nessa trajetória desses trinta anos” (Oneide Krahô-Kanela, 19/11/2008), ao mesmo tempo em que novas alianças podem ter sido estabelecidas. O grupo que permaneceu unido, quando deslocado para assentamentos do INCRA, passou a se organizar, tanto internamente quanto junto ao movimento indígena e setores organizados da sociedade civil, reivindicando o reconhecimento étnico e o direito oficial à demarcação de sua terra tradicional. As demais famílias, embora algumas pessoas ajudassem pontualmente, não teriam dispensando forças junto à mobilização política reivindicatória. Segundo o depoimento de Alderez os Krahô-Kanela sempre chamava, convidava [as famílias dispersas] para que somassem na luta. Eles sempre diziam que não acreditavam, que ‘não tinha fé’ de que fossem conquistar a Mata Alagada... Diziam assim ‘isso é viagem igual a viagem de Moisés a terra prometida, vão viajar a vida inteira e não vão pisar os pés nela’ (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 19/11/2008. Grifo meu). Assim, a não participação na luta pela demarcação territorial é utilizada como principal argumento para rechaçar o retorno das outras famílias à Mata Alagada, bem como para a expulsão das duas que já haviam lá se instalado. Este posicionamento também pode ser creditado à relação hierárquica67 que parece ter se estabelecido entre os dois grupos em virtude da mobilização étnica: a luta pela demarcação investiu o grupo liderado por Mariano, os filhos de Alfredo, de capital social e simbólico, razão pela qual, atribuem a si a legitimidade do direito exclusivo sobre a terra. 67 A perspectiva hierárquica de L. Dumont é um importante instrumento de análise que permite o exame das mais variadas questões humanas nas suas relações de dependências. Segundo o autor, a vida social seria regida pela conjunção dos princípios da hierarquia e da igualdade e não pela supressão de um em favor do outro: “em um sentido mais amplo, igualdade e hierarquia estão necessariamente combinados, de uma forma ou de outra, em todo sistema social” (DUMONT, 2000: 15). Para ele, o homem está a todo tempo fazendo escolhas e adotando valores, o que supõe uma hierarquia que afeta as idéias e as pessoas. Essa hierarquia, no entanto, embora suponha diferença, não implicaria, necessariamente, em dominação. 92 Essa ideia de reivindicação, de voltar pra essa terra não foi do meu pai, não foi dos meus tios, não foi deles. Já foi dos novos que tomaram conhecimento. A gente dizia: ‘os primeiros habitantes daquela área Mata Alagada foi nós, ninguém cortou primeiro do que nós ali, ninguém! Por que é que nós vamos sair de lá corrido, sem direito a nada e ficar parado? Vamos correr atrás e ver se nós volta pra ela!’ Foi idéia dos novos, dos filhos. Filhos de quem? Filhos do Alfredo que tanto lutamos pela terra até o dia que ganhamos sem ajuda do grupo que ta lá fora. Porque a idéia que o grupo que ta lá fora tinha era de que nós ia morrer. Eles tinham medo de brigar (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Os outros, segundo Alderez Krahô-Kanela, haviam perdido o desejo pela terra: Durante o período que lutamos acreditamos que ia voltar a morar junto. Mas, muito desse pessoal que não lutou, que não voltou a morar junto, parece que eles perderam o desejo pela terra. Pra eles, hoje, é cidade, querem a cidade, são formados, seus filhos também são formados, trabalham no comércio, repartição pública... e parece que eles perderam o desejo pela terra enquanto nós ficamos lutando nesses trinta anos pra voltar pra ela (Alderez Krahô-Kanela, liderança, agente indígena de saúde, 26/01/2010). Podemos perceber, portanto, que a crença no retorno à Mata Alagada e a luta pela sua demarcação são estabelecidas como critérios de pertencimento e inclusão ao grupo Krahô-Kanela. É importante aqui estabelecer um paralelo com a etnografia de Raymond Firth que busca demonstrar a relação entre o uso ou posse da terra e o parentesco e a importância da hierarquia para a compreensão do direito territorial entre os Tikopia (LANNA, 2005: 73). Também Bourdieu, em seu estudo sobre os camponeses no Béarn, sinaliza que o verdadeiro sujeito das alianças é a terra (WOORTMANN, 2002:03). Os Krahô-Kanela também questionam a identidade étnica dos membros do outro grupo, acionando assim, a matrilinearidade Kanela como critério de inclusão e pertencimento a este grupo étnico. Para eles, as outras famílias seriam apenas Krahô, pois, conforme justificou Oneide, “a mãe deles não é Kanela. Quem é Kanela é a nossa mãe. Então eles são só Krahô” (Oneide Krahô-Kanela, 19/11/2008). O questionamento à identidade das demais famílias nos leva à seguinte questão: de que forma os Krahô-Kanela operam os laços de parentesco e os critérios político organizativos que conferem unidade ao grupo? Se tomarmos o que nos diz Barth (2000) em relação à constituição de um grupo étnico ser dada por uma dimensão organizacional e não por vínculos hereditários ou primordiais, veremos que não há dissonância nem contradição com a perspectiva analítica da dádiva aqui utilizada, uma vez que, segundo Martins (2006: 99), 93 o entendimento do sentido sociológico da dádiva introduz a idéia da ação social como <inter-ação>, como movimento circular acionado pela força do bem (simbólico ou material) dado, recebido e retribuído, o qual interfere diretamente tanto na distribuição dos lugares dos membros do grupo social como nas modalidades de reconhecimento, inclusão e prestígio. Dessa forma, o que leva à agregação ou desagregação de um grupo social são as dádivas que circulam no seu interior. A dádiva, ao atravessar a totalidade da vida social, acaba veiculando um outro tipo de valor para além dos valores de uso e de troca: o valor do vínculo (GODBOUT, 1996: 174 apud MARTINS, 2006: 110-111). Segundo Caillé (2006: 30) o objetivo da dádiva seria alimentar, criar ou recriar o elo social, entre as pessoas; o elo importa mais que o bem trocado. Ou seja, é pela dádiva que o indivíduo se coletiviza. Conforme o depoimento de um jovem Krahô-Kanela esse vínculo não foi criado entre seu grupo e as demais famílias: (...) esses parentes nossos, na época em que a gente foi pra Ilha, eles não foram com a gente, não conviveram com a gente, e também não são descendentes da minha avó. (...) São parentes que a gente não tem mais esse laço familiar porque devido ao nosso processo histórico e todo esse problema da gente ter chamado eles e eles não vieram contribuir com a gente. Ao invés disso a gente ouvia, na realidade, mais desânimo da parte deles. Então foi criando um certo muro de relação familiar. A gente não teve contato com eles (Amaré Krahô-Kanela, liderança jovem, graduando em Direito, 29/01/2010). Vale a pena introduzir aqui David Schneider que, segundo Kuper (2002: 171), desafiou a teoria do parentesco ao argumentar que esta nada mais seria do que obsessões dos próprios antropólogos projetadas sobre outras culturas. O autor explica que Schneider pretendia “provar que a teoria do parentesco estava fundamentada numa ilusão etnocêntrica, que seus conceitos básicos – as genealogias, a descendência e a própria família – eram criações culturalmente específicas dos europeus e dos norte-americanos” (Idem). Desde então, novas contribuições vêm apontando para a necessidade de se tomar o parentesco como um fenômeno político, e não mais pautado na consaguinidade: alguns especialistas afirmavam que o parentesco devia ser considerado como uma ideologia, um discurso, uma linguagem em que assuntos de política e economia eram debatidos. De acordo com Edmund Leach, os ‘sistemas de parentesco não têm qualquer realidade, exceto, no que diz respeito à terra e propriedade. O que os antropólogos chamam de estrutura de parentesco é apenas uma forma de falar sobre relações de 94 propriedade que também podem ser referidas de outras formas. (KUPER, 2002: 192) Esta concepção também seria compartilhada por Firth, para quem a esfera do parentesco nas sociedades Malaia, Maori e Tikopia resultaria de determinações políticoeconômicas (LANNA, 2005:59). Lanna nos explica que, para Firth, o parentesco Tikopia estrutura-se em torno de escolhas e estratégias (Idem: 61). Strathern (1995) e Bourdieu (apud WOORTMANN, 2002) também compartilham posições semelhantes. Para Strathern, parentes são, antes de mais nada, redes de relações, enquanto Bourdieu, contrapondo-se ao formalismo de uma teoria fundada na regra, propõe que se considere o “parentesco prático”, ou seja, para ele, os laços de parentesco são criados cotidianamente, por via do convívio prático e das atividades compartilhadas. Para Bourdieu genealogias são apenas mapas que conduzem a uma percepção geométrica do parentesco. Mais que os caminhos “formais” dos mapas, importam os caminhos efetivamente percorridos pelos sujeitos das relações de parentesco. ... O que torna o parentesco algo real, são os caminhos cultivados pelos sujeitos. Caminhos não percorridos e não cultivados tendem a desaparecer. É como numa floresta, onde caminhos que não são continuamente transitados são cobertos pela vegetação, ainda que continuem figurando num mapa abstrato (WOORTMANN, 2002:03). Sob a ótica da dádiva e recorrendo à metáfora de Bourdieu, no caminho percorrido pelos Krahô-Kanela, no cotidiano de suas das práticas socioculturais, quais foram os bens – materiais ou simbólicos – que circularam a favor da criação do vínculo social? O que circulou entre os Krahô-Kanela – refiro-me aqui ao grupo que se manteve “coeso” – muito mais do que bens materiais, foram ações e estratégias em torno de um objetivo comum: reconquistar a terra Mata Alagada, afinal, as dádivas circulam com a certeza de que serão retribuídas (MAUSS, 2003: 236). O que fez nós ficar unido foi sempre nós falar ‘nós vamos voltar pra nossa terra, nós queremos ela de volta; e pra nós conseguir ela nós temos que ficar unido. O que acontecer nós vamos resistir junto, nós não vamos se dividir não. É junto que nós vamos resistir, nós vamos ficar junto pra conseguir a nossa terra’. E o que deu essa união foi isso, nós sempre colocou na cabeça nossa: ‘nós vamos ficar junto pra nós conseguir nossa terra de volta. O fazendeiro tomou, mas nós vamos conseguir de volta (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010). 95 Podemos dizer que os Krahô-Kanela deram-se a si próprios esperando alcançarem a demarcação de seu território. Por isso, o direito ao usufruto da Terra Mata Alagada pressupõe a obrigação de ter se dado na luta por ela, e: essa obrigação se exprime de maneira mítica, imaginária ou, se quiserem, simbólica e coletiva: ela assume o aspecto do interesse ligado às coisas trocadas: estas jamais se separam completamente de quem as troca; a comunhão e a aliança que elas estabelecem são relativamente indissolúveis (MAUSS, 2003: 232). Em meio a estas dimensões políticas e simbólicas da dádiva, podemos encontrar ainda a ideia de “sacrifício” e a “noção de honra”: os Krahô-Kanela, a partir do momento em que perderam seu local de pertencimento, passaram por adversidades, necessidades, sofrimentos – a exemplo do massacre sofrido quando estavam na Ilha do Bananal, ou dos deslocamentos compulsórios para assentamentos do INCRA – e aceitaram o sacrifício de nada ter até que pudessem recuperá-lo. E, segundo Cuche (2002: 191) o sentimento de uma injustiça coletivamente sofrida provoca nos membros do grupo vítima de uma discriminação um forte sentimento de vinculação à coletividade. Quanto maior for a necessidade da solidariedade de todos na luta pelo reconhecimento, maior será a identificação com a coletividade. Este dever social de compartilhar o sacrifício é refletido nas palavras de Wagner: “eu não conheço eles; os que eu conheço é esse pessoal que tá aqui, que ficou junto, que lutou pela terra, que foi massacrado, que foi humilhado muitas vezes, que passou fome” (Wagner Krahô-Kanela, cacique, 15/01/2010); e também na frase “enquanto a gente lutava eles comiam do bom e do melhor” (13/01/2010), proferida durante a reunião realizada na aldeia para que eu explicasse o objetivo da pesquisa, e onde foram discutidos outros assuntos. Vimos, então, que, ser Krahô-Kanela, segundo os próprios agentes sociais, significa i) ter a hereditariedade ligada a Alfredo Krahô e Inês Kanela, e, ii) ter participado da luta pelo reconhecimento territorial. Há ainda outro fator relevante: de acordo com os KrahôKanela, as demais famílias que se dispersaram não aceitam o regime da aldeia, o que, para eles, impossibilitaria a convivência na mesma área, conforme afirma o cacique: “(...) não tem como eles conviverem com nós nesses 7.000 ha porque, em primeiro lugar, eles não se 96 adequam ao regime que tem nossa aldeia, eles não aceitam e não respeitam” (Wagner Krahô-Kanela, 18.11.2008). Compreende-se com isso que as famílias “de fora” não aceitam o regime moral ou o ethos coletivo que prescreve, segundo o que levantamos nas entrevistas: não ingerir bebida alcoólica; não levar gente de fora da aldeia para a convivência comunitária; saber a procedência de quem é de fora e que venha conviver na aldeia; manter um comportamento considerado decente dentro da comunidade, como, por exemplo, não andar à noite sem uma razão aceitável pelo grupo; participar da partilha comunitária daquilo que não é comprado com a renda individual ou familiar, a exemplo dos recursos naturais disponíveis na reserva (SCHETTINO e SANTOS, 2009: 5). Barth nos ajuda a compreender essa questão ao apontar que a distintividade étnica seria marcada por conteúdo cultural de duas ordens: (i) sinais e signos manifestos, que constituem as características diacríticas que as pessoas buscam e exibem para mostrar sua identidade (....), [e o que nos interessa aqui] (ii) orientações valorativas básicas, ou seja, os padrões de moralidade e excelência pelos quais as performances são julgadas. Uma vez que pertencer a uma categoria étnica implica ser um certo tipo de pessoa e ter determinada identidade básica, isto também implica reivindicar ser julgado e julgar-se a si mesmo de acordo com os padrões que são relevantes para tal identidade (BARTH, 2000: 32. Grifo meu). Teríamos, portanto, uma situação na qual, além da valorização dada ao papel desempenhado pelos agentes sociais no processo de luta pela terra, da descendência Krahô e – também – Kanela, a adesão ou não a um determinado conjunto de prescrições de caráter moral cumpriria papel fundamental na definição de quem é ou não Krahô-Kanela, sempre sob a ótica do grupo que atualmente reside na Mata Alagada. Essa questão vai ao encontro tanto das ideias de Bourdieu quanto de Schneider, já que para ambos os laços de parentesco são menos uma relação biológica do que um “código de conduta”. Schneider observa que, enquanto algumas pessoas se tornam parentes através de acordos legais (casamento ou adoção, por exemplo), outras podem ser aparentadas pela aplicação de um código de conduta apropriado (KUPER, 2002: 181). Já em Bourdieu, o “habitus” seria o princípio unificador das práticas sociais, núcleo gerador de cotidiano e de incorporação dos atores às regras do campo. Nesse sentido, conforme me explicou uma liderança Krahô-Kanela, os cônjuges não indígenas “não são Krahô-Kanela”, posto não descenderem diretamente destas etnias, mas são considerados 97 membros deste grupo étnico (leia-se “com os mesmos direitos”) por compartilharem as outras condições do reconhecimento étnico: lutaram pela regularização fundiária; mantiveram-se unidos a despeito dos deslocamentos compulsórios e seguem o “regime da aldeia”. Ressalto, porém, que esta informação necessita de maior investimento analítico por meio de mais pesquisas de campo sobre o tema. 2.2.2 - A autoidentificação e o etnônimo Krahô-Kanela Questionamentos à etnicidade do grupo relacionam-se à estranheza provocada pelo próprio etnônimo Krahô-Kanela, que evoca duas etnias distintas e foi elaborado num momento relativamente recente. Conforme esclarece Oliveira (1999:100), “os etnônimos mais antigos também têm a sua história”, a diferença é que, em razão da distância cronológica, do silêncio e ausências da historiografia oficial, não dispomos de documentos e testemunhos para traçar sua sociogênese. Deste modo, as identidades étnicas mais antigas são naturalizadas, enquanto aquelas consideradas “emergentes”, posto que reelaboradas ao longo de um processo histórico mais contemporâneo, são vistas com suspeição pela sociedade nacional, pelos indigenistas e por alguns antropólogos. Como, por exemplo, o entendimento de Paraíso em relação aos Caxixó (SANTOS e OLIVEIRA, 2003). Em situação semelhante aos KrahôKanela, a constituição do etnônimo Caxixó se deu concomitante à constituição do próprio grupo, cuja identidade foi dinamicamente constituída a partir de relações interétnicas, por um processo histórico não preexistente à colonização (SANTOS, 2003:114). Razão pela qual o etnônimo, expressão que traduz a identidade de um grupo, deve ser visto em seu contexto histórico e situacional, pois, fruto da convenção social, pode ser criado e mudado pelas coletividades que os utilizam para se referenciar (OLIVEIRA, 2003: 170). De acordo com Oliveira, Longe de ser uma profunda expressão de unidade de um grupo, um etnônimo frequentemente resulta de um acidente histórico, que é conceitualizado como um ato falho, associado a um jogo de palavras e com efeito de chiste. Muitas vezes um grupo dominado não é mantido como uma unidade isolada, mas é incorporado a outras populações (igualmente dominadas ou, inversamente, frações da população 98 dominante), sendo dividido, subdividido e somado a outras unidades de diferentes tipos. Esquartejado, montado e remontado sob modalidades diversas e em diferentes contextos situacionais, qual a continuidade histórica [leia-se aqui em termos de um mesmo etnônimo que atravesse diferentes conjunturas históricas] que um tal grupo dominado pode ainda apresentar? (OLIVEIRA, 1994: 123 apud OLIVEIRA, 2003: 170. Grifo do autor) Ademais, o fato de um grupo étnico ter sua descendência relacionada a dois ou mais grupos distintos não deslegitima a nova identidade constituída. Trata-se de um fenômeno observado em outros povos. Cito como exemplo os Tapuia (GO), cujo etnônimo “ao invés de Xavante ou descendentes de Xavante, Javaé e Kaiapó, foi acionado por funcionários da Funai como uma espécie de camisa de força categórica, dentro da qual os índios deveriam se ajustar para ter direito a ser indígena nos termos da Funai” (SILVA, 2001/2002 apud SILVA 2005: 136). Outro caso emblemático reporta ao que Stephen Baines chamou de “a invenção social da etnicidade”, referindo-se à identidade étnica dos Waimiri-Atroari (AM) como construção “dirigida” pelo órgão indigenista oficial, então subserviente ao interesse de grandes empresas sobre o território indígena (BAINES, 1995). Teremos, assim, que a identidade não se constitui exclusivamente por determinado grupo étnico. Ela se constitui num campo de relações, ou seja, é a relação entre grupos – nos casos exemplificados, com a agência de contato – que lhes dá significado. Nos termos de Dominique Gallois (2000: 8,9), a etnogênese dos grupos compostos, que se apresentam hoje como unidades tribais distintas – ‘Tirió’, ‘Waiãpi’, ‘Wayana Aparai’, para citar alguns – deve, portanto ser abordada como o produto do intercâmbio entre visões ‘sobre’ essas sociedades e visões ‘dessas’ sociedades sobre si mesmas. Contudo o poder classificatório não é do outro. Como esclarece Alfredo Wagner Berno de Almeida (2002), na medida em que um grupo étnico é uma categoria socialmente construída pelos próprios agentes sociais através da “manipulação” de um repertório de ações coletivas que forjam a coesão em torno de uma certa identidade e de representações em face de outros grupos, “os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são produto de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes” (ALMEIDA, A. W., 2002: 68). 99 A ênfase na atribuição como característica fundamental dos grupos étnicos nos remete à “dimensão das escolhas – chave para qualquer estudo sobre etnicidade” (OLIVEIRA, 2003: 175) e, segundo Barth (2000: 33), resolveria duas dificuldades conceituais: a continuidade do grupo torna-se inquestionável, pois ela depende somente da manutenção de uma fronteira, ainda que haja mudanças nas características culturais ou mesmo na forma de organização do grupo; e apenas os fatores socialmente relevantes tornam-se importantes para diagnosticar o pertencimento dos membros a um determinado grupo. De acordo com Almeida, G. (2004: 75), o grupo em questão, ao adotar este etnônimo, “tem consciência de que não é pertencente nem à etnia Krahô, nem à etnia Kanela, mas sim considera-se descendente das mesmas”. Segundo ela, o etnônimo traduz uma identidade específica fundamentada, entre outros fatores, num forte senso de unidade do grupo e de pertencimento a uma comunidade étnica específica (Almeida, G., 2004: 76 e 80). A despeito de questionamentos, como defendem os estudos recentes na área das ciências sociais e também o ordenamento jurídico em vigor e a Convenção 169, é a autoatribuição, ou seja, a consciência da própria identidade, o critério que deve determinar a pertença de uma pessoa a um determinado grupo étnico. Em relação ao grupo aqui analisado, a explicação para o etnônimo nos é dada pelos próprios indígenas: “(...) minha mãe é Kanela e meu pai é Krahô. Aí ficou Krahô-Kanela pra diferenciar do Krahô” (Argemiro Krahô-Kanela, liderança, 26/01/2010). Consideremos ainda que, ao longo do processo de luta pelo reconhecimento étnico e demarcação territorial, os Krahô-Kanela passaram a apoiar-se, também, nos instrumentos legais para afirmarem o etnônimo constituído frente ao Estado e à sociedade nacional. 2.3 – REDEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS ÉTNICAS O referencial teórico utilizado para compreender a construção identitária dos Krahô-Kanela nos aponta para o entendimento de que: i) a identidade coletiva é um processo de identificação e diferenciação que se dá mediante uma situação relacional, ou seja, ela é construída a partir de uma relação que opõe um grupo aos outros; ii) as fronteiras étnicas – resultantes de “um compromisso entre o que o grupo pretende marcar e 100 o que os outros querem lhe designar” (CUCHE, 2002: 200) – são demarcações sociais e simbólicas; iii) as fronteiras estão sujeitas a constantes renovações e deslocamentos caso haja qualquer mudança na situação relacional e no contexto histórico, resultando daí as reelaborações de identidade. Razão pela qual, para se compreender o caráter flutuante da identidade é preciso analisá-la por um plano diacrônico, focalizando as renovações e os deslocamentos das fronteiras. Feita esta síntese, prossigo refletindo, a partir dos desdobramentos do conflito já mencionado, sobre como o laço étnico pode ser evocado e as fronteiras, deslocadas. Em alguns momentos da mobilização, foi estratégico, para os Krahô-Kanela e para os seus apoiadores, trazer em cena a existência de outras famílias com o intuito de fortalecer a luta através da construção de uma “imagem ampliada” do grupo. Com a demarcação parcial do território reivindicado e a inviabilidade de se agrupar em uma área reduzida68, famílias que há muito tempo não conviviam e que apresentam entre si modos de vida e sociabilidades bem distintos, uma estratégia inversa foi adotada: passaram a questionar a identidade étnica dessas outras famílias e seu direito sobre o território69. Ao término da perícia antropológica realizada em novembro de 2008, por conta do conflito, os dois grupos chegaram ao consenso de que “apenas a regularização do restante de seu território tradicional solucionará o impasse que estão enfrentando” (SCHETTINO e SANTOS, 2009: 10), ficando definido, na ocasião, que os dois grupos “se uniriam” para reivindicar a demarcação total do território. Contudo o impasse permaneceu. Enquanto os Krahô-Kanela, ainda resistentes em relação ao direito territorial do outro grupo, procuravam resolver seus problemas internos, o outro grupo, passando a identificar-se como Krahô, reivindicava junto aos órgãos competentes, a demarcação do restante do território para si. 68 Antropólogos do MPF chamam a atenção para as condições ecológicas da área demarcada e para possíveis problemas daí decorrentes: “(...) notamos que o território tem uma limitada capacidade de suporte para o assentamento humano, decorrente das suas características ecológicas. São restritas as áreas não alagáveis passíveis de uso para a instalação de moradias e roças. Situação agravada pela impossibilidade de manterem a dinâmica de ocupação em áreas diferenciadas nos períodos de seca e chuvas. As casas foram instaladas em uma estreita faixa de terra mais alta, que por um lado se confronta com uma lagoa e por outro com um pasto que nas chuvas vira um charco. É iminente o problema sanitário que decorrerá do transbordo das fossas nos períodos de cheias (SCHETTINO e SANTOS, 2009: 8,9). 69 Comerford (2003), em um trabalho sobre “as dimensões da vida na roça” na região de Muriaé, Zona da Mata de Minas Gerais, pondera que “em algumas circunstâncias se diz que tudo é parente, em outras circunstâncias – de conflito, por exemplo, essa afirmação pode ser negada” (COMERFORD, 2003: 34). 101 Em meados de 2010, após uma mudança na “chefia” política dos Krahô-Kanela, os dois grupos retomaram o diálogo, oficializando um acordo para a demanda apresentada. Por considerar o conteúdo da ata de reunião entre os grupos e o MPF significativo para a compreensão da conjuntura, transcrevo alguns trechos: Aos quatro dias do mês de agosto de 2010, às 10:00, na aldeia Lankraré, do povo indígena Krahô-Kanela, com a presença do procurador Álvaro Lotufo Manzano, reuniram-se o MPF, membros da comunidade local e representantes do grupo liderado pelo cacique Valdete, que demanda o direito de residir no território indígena. O cacique Mariano, da aldeia Lankraré, iniciou os trabalhos, esclarecendo tratar-se de uma continuação da última reunião, realizada em Palmas, com o objetivo de chegar a um acordo entre os dois grupos, relativo à moradia no interior da terra atualmente demarcada e à reivindicação pela demarcação do restante do território. (...) Valdete afirmou que seu grupo pretende continuar no local onde está (“Jacaré”), saindo de lá apenas quando for conquistado o restante da terra, ressaltando que pretendem participar da luta por este território. Considera que “não estão ocupando terra de ninguém”, que estão fazendo “benefícios” no local e não entende porque estariam sendo “perseguidos”. (...) Mariano afirmou que pretende chegar a um acordo, mas a postura do grupo de Valdete não estaria possibilitando isto. Relatou tratar-se da sétima reunião sobre o mesmo assunto da qual está participando. Wagner sugeriu que, caso não se chegue a um acordo, os integrantes do grupo de Valdete devem ir para suas antigas moradias e apenas retornar após a demarcação do restante do território. Seguiu-se uma discussão sobre a identidade do grupo Krahô-Kanela, envolvendo critérios de “consideração”, “consanguinidade” e “parentesco”, a qual explicitou uma série de divergências entre os participantes da reunião. Abordou-se, também, a importância da participação em determinadas etapas do processo de luta pelo território. O procurador ponderou que é importante os grupos considerarem que, por se tratar de um processo de negociação, há a necessidade de que sejam feitas concessões, pois somente assim será possível conciliar os interesses de ambos. Seguiramse mais alguns minutos de debates intensos e acirrados. Na sequência, foram definidos os seguintes encaminhamentos: 1 O grupo liderado por Valdete se instalará num local situado no lado direito da entrada da terra indígena, enquanto o gado de sua propriedade poderá ficar no interior da terra, junto com o restante do gado da comunidade da aldeia Lankraré. O gado deverá permanecer na mesma quantidade que existe hoje, sem aumento do rebanho. Não poderão trazer gado que não seja pertencente aos membros da comunidade Krahô Kanela. Será definida, também, uma área onde poderão plantar sua roça. 2 Mariano será o cacique da aldeia Lankraré e será o representante da comunidade como um todo para negociações externas. Valdete continuará como cacique do seu grupo. Será elaborado, pelos próprios indígenas, um documento detalhando as normas internas de convivência entre os grupos. 3 Lideranças de ambos os grupos irão juntas à Brasília reivindicar a demarcação ou aquisição do restante do território junto aos órgãos competentes. (MPF – PRTO. Memória da Reunião 04.08.2010) 102 Se, até então, a descendência de Inês Kanela e Alfredo Krahô, prescrições de caráter moral e a mobilização política pela demarcação territorial foram utilizadas pelos Krahô-Kanela como marcadores de diferença a delimitar a fronteira entre si e o outro grupo, no documento acima, percebemos a intenção em negociar dois desses marcadores, através da elaboração de normas de convivência e da decisão de que ambos os grupos devem somar esforços para a reivindicação do restante do território. Esta negociação pode ser entendida como um mecanismo de “manipulação positiva da identidade étnica” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006b: 93) do qual se apropriam indivíduos ou grupos com base em critérios de “ganhos ou perdas” quando diante de uma determinada situação (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976: 24; 2006a: 79). O que, por sua vez, pode vir a representar um deslocamento da fronteira étnica a partir do momento em que os membros do outro grupo passem a cumprir os termos do acordo. Esta possibilidade reflete o caráter estratégico e político da identidade. Nas palavras de Cuche (2002: 197), “a identidade não existe em si mesma, independentemente das estratégias de afirmação dos atores sociais que são ao mesmo tempo o produto e o suporte das lutas sociais e políticas”; portanto, ela é, também, resultado de um processo de negociação e estratégias dos agentes sociais. Sobretudo, quando estão em jogo lutas sociais de classificação, a identidade pode ser reelaborada como meio de reverter uma situação de dominação. De igual modo, corrobora a advertência de Barth sobre não ser correto alegar que toda diversificação interna a um grupo seja um primeiro passo rumo à divisão e à multiplicação de unidades (BARTH, 2000:31). Importa ressaltar, também, que a identidade étnica não se funda numa percepção cinestésica de ser, mas numa auto apreensão de si em situação. Tomando por referência um modelo existencial de pessoa, diríamos que o que transforma o indivíduo em pessoa é a situação, num sentido fenomenológico e, portanto, como fato de consciência. Mas, a peculiaridade que engendra a identidade étnica é a situação de contato interétnico (...) (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976:6. Grifos do autor). O “contato interétnico” a que o autor se refere deve aqui ser entendido como um contato não apenas entre índios e não índios, mas, entre índios. Por isso, a frase-título desta dissertação – “Ser Krahô-Kanela, primeiramente, é a gente ter conseguido voltar pro 103 nosso território”70– me remete ao entendimento de que é possível tomar a participação na luta e mobilização reivindicatória pela regularização fundiária da T.I. Mata Alagada como um ritual por meio do qual se legitima o pertencimento social ao grupo, conforme proposto por Pierre Bourdieu (1996). Este autor retoma a noção de rito de passagem proposta por Van Gennep e Turner e propõe uma revisão: segundo ele, os ritos de passagem deveriam ser denominados ritos de instituição, de legitimação, ou de consagração, pois teriam a função social “de separar aqueles que já passaram por ele daqueles que ainda não o fizeram e, assim, instituir uma diferença duradoura entre os que foram e os que não foram afetados” (BOURDIEU, 1996: 97). Para Bourdieu, não é a passagem que importa, mas, sim, a instituição da ordem estabelecida, que obriga o indivíduo a viver segundo as expectativas sociais ligadas à sua nova categoria. Desta forma, “o rito consagra a diferença” (Idem: 98). Esses rituais ou atos instituem uma identidade social, tornando aquele que passou pelo rito membro de um grupo, de uma classe, ou seja, distinto daqueles que não passaram. Contudo, se “a instituição é um ato de magia social capaz de criar a diferença” (Idem:100), para que tais ritos se realizem, é necessário que haja a crença em sua eficácia simbólica. A demarcação de diferenças por parte desses ritos acarreta conseqüências, conforme demonstra Bourdieu (1996:100): A instituição de uma identidade (...) é a imposição de um nome, isto é, de uma essência social. Instituir, atribuir uma essência, uma competência, é o mesmo que impor um direito de ser que é também um dever ser (ou um dever de ser). É fazer ver a alguém o que ele é e, ao mesmo tempo, lhe fazer ver que tem de se comportar em função de tal identidade. Ressalta-se, neste processo, a importância de pensarmos a mobilização étnica como um plano de sociabilidade, que leva a novas configurações sócio-organizacionais. Neste sentido, a expectativa dos Outros se tornarem Nós implica ressocializá-los por meio do compromisso político de somar forças e lutar pela demarcação total da Terra Mata Alagada. 70 Amaré Krahô-Kanela, liderança jovem, graduando em Direito. Entrevista concedida a Kariny Teixeira de Souza em 29/01/2010. 104 CAPÍTULO III - O CAMPO DE ATUAÇÃO INDIGENISTA: VISÕES E ESTRATÉGIAS EM TORNO DO RECONHECIMENTO OFICIAL DOS KRAHÔ-KANELA E DE SEU TERRITÓRIO TRADICIONAL Este capítulo consiste na análise do campo indigenista sobre o qual se assentou o processo político-administrativo de reconhecimento oficial dos Krahô-Kanela e de seu território. Examinarei o posicionamento do Estado ao longo desse processo, analisando e comparando as competências e intervenções dos diferentes órgãos estatais – FUNAI e INCRA – em relação à aplicação das políticas relacionadas com direitos étnicos e territoriais, bem como as formas de atuação e mediação por parte de entidades civis – principalmente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) – e do movimento indígena. Também será objeto de análise a participação e os diferentes posicionamentos assumidos pelos antropólogos envolvidos no reconhecimento em questão. O “campo social”, um dos conceitos centrais na obra de Pierre Bourdieu, pode ser entendido como campo de lutas sociais, pois é constituído por processos de poder e relações de força, devido às relações hierárquicas e assimétricas entre os agentes sociais que nele se relacionam. As lutas ocorrem pela conquista de posições e poder conferidos pelo acúmulo de certos capitais – cultural, político e econômico e, sobretudo, simbólico. A partir das proposições do autor, tomo por campo indigenista o espaço estruturado de posições constituído ao longo do processo reivindicatório acima mencionado, onde interagiram diversos agentes (indígenas, missionários, militantes, técnicos indigenistas, antropólogos, juristas, etc) e agências, estatais ou não, em constante correlação de forças, no caso em questão, pelo poder - capital social e simbólico – de legitimar representações e classificações acerca da etnicidade Krahô-Kanela e assim garantir os direitos a ela correspondentes. 105 3.1 – O PROCESSO DE RECONHECIMENTO ÉTNICO E TERRITORIAL DOS KRAHÔ-KANELA Mesmo a FUNAI dizendo que nós não era índio, nós se considerava índio e nós sempre ficava junto (Wagner KrahôKanela, 15/01/2010). Procurei demonstrar, no primeiro capítulo, que Florêncio Krahô e sua família, conforme depoimento de Dona Inês, “sempre foram tidos como índios por onde passavam” (14/01/2010). Após sua morte, seus descendentes mantiveram a identidade contrastiva e a fronteira étnica que os diferenciavam da população regional ao longo dos sucessivos deslocamentos até a ocupação da Mata Alagada. Apesar disso, o grupo não era reconhecido e nem contava com assistência do órgão indigenista - à época o Serviço de Proteção ao Índio-SPI e, a partir de 1967, a FUNAI. A exemplo do que nos retrata a bibliografia referente aos povos do Nordeste, foi a pressão fundiária sobre o território no qual construíram o sentimento de pertença e a relação de tradicionalidade que deflagrou o processo de emergência do grupo Krahô-Kanela e sua organização em torno da reivindicação pelo reconhecimento étnico e territorial. Processo similar se deu com o povo Caxixó, em Minas Gerais: a mobilização étnica caxixó teve início a partir de um conflito de terras em que os caxixós sentiram a ameaça concreta de dissolução de sua última base territorial. (...) Como fator responsável pela mobilização étnica, a terra foi a razão da revelação da identidade indígena caxixó (CALDEIRA, 2006: 133. Grifo da autora). É necessário ressalvar, porém, que estudos críticos referentes à “etnogênese” ou “emergência étnica”, como os processos relacionados acima, nos esclarecem que não se trata do “surgimento” de uma identidade étnica, mas de um processo social e histórico71. Para Oliveira (1998), tais termos - assim como “índios emergentes”, ou “novas etnicidades”, que passaram a ser utilizados, entre as décadas de setenta e oitenta, no contexto “das reivindicações e mobilizações de povos indígenas que não eram reconhecidos pelo órgão indigenista nem estavam descritos na literatura etnológica” (OLIVEIRA, 1998: 61, 62)72 seriam metáforas naturalizantes73 imbuídas de pressupostos 71 Como nos demonstram Oliveira, 1998; Bartolomé, 2006; Arruti, 1995; Barreto Filho, 1992, 1994. Dentre tantos outros, podemos citar Tingui-Botó e Koiupamká em Alagoas; Tumbalalá na Bahia; Xetá no Paraná; Munduruku no Pará; Kambemba no Amazonas; Aranã e Puris em Minas Gerais. 73 “(...) ligando a dinâmica das sociedades ao ciclo biológico [ nascimento e morte] dos indivíduos”, Oliveira esclarece que o termo “etnogênese”, foi empregado por Gerald Sider (1976) – e posteriormente por 72 106 arbitrários e equivocados que, “por sua ambiguidade pode ser suscetível de usos variados sem, no entanto, contribuir para o entendimento de aspectos relevantes do fenômeno que designa” (Idem: 62). Por dar margem a entendimentos divergentes, podemos encontrar, na utilização destes termos, em parte, a raiz da incompreensão e da distorção dos processos vividos por estes povos: remetendo-se a uma “aparição imprevista”, a identidade étnica de coletividades indígenas é posta sob suspeição por diversos setores (tanto no âmbito da sociedade civil quanto dos poderes estatais) contrários aos interesses e aos direitos das mesmas. Tais setores “anti-indígenas”, como são chamados pelos movimentos indígena e indigenista, alegam, equivocadamente, posto que sem fundamentação teórica, que a “descontinuidade histórica” dessas comunidades as relegaria à categoria de “remanescentes” de grupos “extintos” e que, pelo viés evolucionista, estariam “integradas à sociedade nacional”. Antropólogos e entidades de apoio aos povos indígenas são acusadas de “inventar índio”, onerar o Estado com gastos voltados à aplicação de políticas diferenciadas/étnicas e prejudicar o desenvolvimento do país ao reivindicar a demarcação de territórios indígenas. Vide, por exemplo, a reportagem da revista “Veja” que alardeia a existência de uma “indústria de demarcação”, instituída para demarcar territórios indígenas e quilombolas. Segundo esta reportagem, laudos e relatórios antropológicos seriam os culpados por “ressuscitarem povos extintos há mais de 300 anos”, por encontrar “etnias em estados da federação nos quais não há registro histórico de que elas tenham vivido lá”, ou ainda, “por acharem quilombos em regiões que só vieram a abrigar negros depois que a escravatura havia sido abolida” (COUTINHO; PAULIN; MEDEIROS, 2010: 154-161)74. Como forma de se compreender os processos designados por “etnogênese” ou “emergência étnica”, postos em cena a partir de 1970 e acentuados nas duas últimas décadas - não apenas no Nordeste, mas também nas demais regiões do país -, cabe-nos empreender “um esforço de reflexão e interpretação de natureza histórica, mas também sobre a natureza histórica desses grupos, tantas vezes produzida, apagada, reproduzida, contraproduzida” (ARRUTI, 1995: 45 Grifos do autor), de forma que se evidencie conforme procurei fazer até aqui em relação aos Krahô-Kanela - como cada grupo étnico outros autores, em oposição ao fenômeno do etnocídio, sem contudo, explicá-lo em termos teóricos (Oliveira, 1998: 62). 74 Ver Nota da Comissão de Assuntos Indígenas-CAI/ABA em resposta a matéria publicada pela revista Veja em http://www.abant.org.br/?code=2.31. 107 tem acionado a sua memória social e coletiva e reescrito sua história baseado na visão que tem de si próprio e da sua experiência de interação com outros grupos da sociedade nacional. Sob o signo da invenção, Stephen Grant Baines (1995: 22) problematiza: Considerando que todas as formas da etnicidade são inventadas, a 'invenção social da etnicidade' abrange diversos fenômenos. No caso de administrações indigenistas respaldadas por grandes empresas que estão ocupando o território indígena, a invenção social da etnicidade por seus indigenistas faz parte de um regime colonial que reproduz as relações assimétricas, a apropriação pelos índios da etnicidade imposta sendo uma estratégia política de sobrevivência em situações extremas de sujeiçãodominação, onde não existe espaço senão para aprender as regras do jogo de um indigenismo autoritário. No nordeste brasileiro, a invenção social da etnicidade pelas populações toma a dimensão de uma estratégia política para legitimar a sua reivindicação a garantia de acesso à terra. O conceito da "invenção social da etnicidade" não questiona, em si, a autenticidade de representações culturais defendidas por populações indígenas. Resta para o pesquisador distinguir os diversos fenômenos que o conceito pode abranger, e explicitar as circunstâncias particulares de cada situação (BAINES, 1995: 22). O autor nos propõe que a categoria jurídico-administrativa “índio” seja posta em xeque-mate para que o foco de análise recaia sobre o processo dinâmico e particular que leva grupos étnicos a se reinventarem, tanto a partir das representações que fazem de si próprios, quanto da configuração de um campo de lutas, alianças, negociações e estratégias, no qual estão inseridos, em interação com diversificados agentes sociais. No entanto, quando se trata da administração pública, a despeito dos preceitos jurídicos e institucionais, o modelo do que deve ser o “índio” ainda parece balizar a atuação do órgão indigenista. Isto porque (...) todos los clasificadores son municiados con indicadores que derivan de una representación anacrónica del indígena como primitivo y que no se aplican a numerosos casos concretos. Eso da lugar a la frustación de várias expectativas, además de muchas dudas relativas a la condición de indígena de una determinada población. La identificación de uma colectividad como ‘indígena’ se convierte en una cuestión de grado, de mayor cercanía o distancia del estereotipo de la primitividad. (OLIVEIRA, 2006: 186) Posta esta reflexão, esclareço que minha intenção agora é, justamente, analisar etnograficamente o processo de reconhecimento étnico dos Krahô-Kanela e de 108 identificação de sua terra tradicional como um campo de poder onde o que está em jogo é a luta pelo direito de validar classificações75: no caso específico, referentes à identidade étnica e à tradicionalidade ou não tradicionalidade da terra Mata Alagada. Neste campo interagem, principalmente, indígenas (Krahô-Kanela e movimento indígena), assentados, meios de comunicação, CIMI e aliados da causa indígena (pastorais e movimentos sociais, entidades confessionais, parlamentares), FUNAI, INCRA, Ministério Público Federal e antropólogos. Para efeito de análise, meu foco recairá sobre a atuação do órgão indigenista em resposta à reivindicação dos Krahô-Kanela. Não pretendo com isso apresentar o processo como uma disputa dicotômica e polarizada, mas sim partir de um ponto de vista por meio do qual seja possível demonstrar a existência de uma complexa rede de mediadores e aliados que interagem e se entrelaçam através de ações, estratégias e negociações. Tomarei como eixo para nortear a análise aqui efetuada cinco documentos, todos elaborados por antropólogos, para subsidiar as ações da Fundação Nacional do Índio/FUNAI, tratam-se: do relatório intitulado “Os ‘Caboclos’ de Dueré e Cristalândia (GO)”, escrito por André Amaral de Toral, antropólogo do Museu Nacional/UFRJ, datado de 26/01/1985; do “Relatório de viagem à Dueré”, de 1987, de co-autoria de Mônica Thereza S. Pechincha e Ester Maria de O. Silveira, antropólogas então recém formadas ligadas ao quadro da FUNAI (MAURO e OLIVEIRA, J. E. 2010:130); da “Informação nº 07/ DEID-FUNAI”, de Maria Elisa Vieira, cuja autoria está identificada pela condição de antropóloga e consultora, datado de 11/02/2003; do “Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Krahô-Kanela”, escrito por Graziela Rodrigues Almeida enquanto coordenadora do GT 613/PRES, de 2004; e, por fim, do “Parecer n° 194 / CGID- FUNAI”, datado de 2004 e de autoria da então Coordenadora da Coordenação Geral de Identificação e Delimitação, Nadja Havt Bindá.76 Estes foram selecionados porque se constituem, em seu conjunto, em expressão do saber administrativo 75 Neste sentido, as lutas de classificações são lutas pela autoridade de fazer e desfazer grupos a partir da imposição de uma determinada “definição legítima das divisões do mundo social” (BOURDIEU,1989). O que está em jogo é “o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de divisão que, quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo” (Idem: 113). 76 Trata-se de documentos anexados no Processo Administrativo aberto pela Procuradoria da República no Estado do Tocantins - PR/TO relacionados à demanda apresentada pelo grupo Krahô-Kanela e que foi por mim consultado durante o trabalho de campo. 109 e da ideologia que sustenta a relação entre o órgão indigenista e os Krahô-Kanela, sendo que a partir deles desdobraram-se os entendimentos e as ações mais significativas da instituição em relação a este grupo indígena. Ainda que os mesmos referenciem a reflexão aqui proposta, ofícios, pareceres, cartas e outros documentos, além de entrevistas e conversas informais também recortarão a análise. Sem ignorar o contexto de produção de tais documentos – por exemplo, o fato de dois deles terem sido produzidos num período anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988 o que, em certa medida, os contrasta com os demais – tentarei desenvolver a análise antropológica em interface com o Direito. Este procedimento inspirase na reflexão de Oliveira (1985) sobre a contribuição do antropólogo para o estudo de fenômenos jurídicos, explicitada quando este focaliza as leis como parte integrante de processos sociais. O autor ressalta: Trata-se de abordar as leis como um fenômeno histórico e cultural, cuja eficácia social e dinamismo (surgimento e modificações) devem ser explicados através do inter-relacionamento entre valores e interesses de determinados grupos sociais, com contextos sociais mutáveis (como formas de Estado e políticas de colonização) e com outros usos sociais e costumes (preexistentes ou alternativos) (OLIVEIRA, 1985:18 apud BARRETO FILHO, 2005: 120). Considerar os dispositivos jurídicos e normativos que versam sobre políticas étnicas e territoriais, permite problematizar ações ambíguas e encaminhamentos questionáveis, do ponto de vista legal, por parte de agências e agentes sociais, relativos à demanda reivindicatória dos Krahô-Kanela. 3.1.1 - Dois relatórios antropológicos, ofícios, pareceres e uma única sentença: o não reconhecimento da identidade étnica Em resposta à reivindicação do grupo Krahô-Kanela de retornar à Mata Alagada – área correspondente ao lote nº 2 do qual a Companhia Cervejaria Brahma teria se apropriado de maneira ilegal – a FUNAI instaurou o Processo Administrativo Funai/BSB/28870.001701/84 e, através da Portaria nº 1794/E de 14/11/84, autorizou o antropólogo André Amaral Toral a “efetuar a identificação da presença de remanescentes indígenas no município de Dueré” (DOMINGUES, 14/11/84). 110 O estudo de Toral foi realizado em dezembro de 1984, culminando no já citado relatório, intitulado “Os ‘Caboclos’ de Dueré e Cristalândia (GO)”. O antropólogo utiliza a categoria “caboclo” para se referir aos Krahô-Kanela e seu esforço principal é no sentido de comprovar a origem do grupo, como se somente a partir desta comprovação fosse possível legitimar a identidade através da qual o grupo se autodefine. Para ele: (...) a possibilidade de uma identificação positiva de que grupo indígena os ‘caboclos’ são descendentes é muito remota. Apesar disso temos que a ascendência indígena da comunidade é um fato relativamente seguro. Prova-a tanto a aparência física de alguns dos caboclos como também sua auto-identificação como tais e pela população de Dueré e Cristalândia (...) (TORAL, 1985:10). Em termos analíticos, é interessante contrapor a posição de Toral em buscar a identificação do grupo Krahô-Kanela fundamentado em critérios primordialistas e até biológicos, à compreensão de Max Weber (1991). Para este um grupo étnico se constitui segundo sua crença subjetiva numa “origem comum”, sendo que esta origem remete a uma memória coletiva relacionada a um “passado simbólico” e não a um “passado primordialista”. Toral persistiu sua busca por traços comprobatórios ao relacionar identidade à cultura, enfatizando a língua como um critério para a identificação do grupo: Muitos dos dados culturais que permitiriam uma identificação definitiva, se perderam nos 60 anos que marcam a fase de deslocamentos (...) (Toral, 1985:08). Mariano, além das palavras que disse ter aprendido com seu pai e tios, apresentou outras que, sem qualquer dúvida, aprendeu com índios Javaé ou Karajá (o Javaé é uma variação dialetal do Karajá) que encontrou na região ou em suas viagens à Funai de Brasília. Demonstram, estas últimas palavras, uma atitude bastante comum em Mariano que é a de construir ou obter mais dados sobre a cultura ‘indígena’ de seu avô além daqueles pouquíssimos elementos culturais ainda lembrados por seu pai e seus tios (TORAL, 1985: 17,18). A esta postura analítica do referido antropólogo, podemos contrapor os estudos teóricos sobre etnicidade que, desde a década de 1960, concebiam identidade e cultura como duas dimensões distintas que, embora se relacionem, não podem ser reduzidas uma à outra, sob o risco de tratar a relação dinâmica entre grupos através da perspectiva dos estudos de aculturação (BARTH, 2000: 15, 20). Minha análise aqui segue o reconhecimento de Roberto Cardoso de Oliveira à importância das contribuições de Barth, 111 cuja análise sobre os Pathan demonstrou que “a ordem cultural pode mudar significativamente sem, no entanto, ocorrer mudança na identidade étnica” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2005: 10). Portanto, as mudanças na identidade étnica seriam determinadas por fatores organizacionais e não culturais. O próprio Cardoso de Oliveira, com a publicação de “O processo de assimilação Terena”, em 1960, mostrou que a despeito da intensa relação interétnica e da mudança em sua cultura, a identidade Terena foi mantida. Quanto à apropriação de palavras de outras etnias por parte de Mariano e sua atitude de buscar mais dados sobre a cultura Krahô, a que Toral faz referência, em certo sentido, como forma de deslegitimar a etnicidade do grupo, João Pacheco de Oliveira esclarece: É preciso entender que as manifestações simbólicas dos índios atuais estarão marcadas comumente por diferentes tradições culturais. Para serem legítimos componentes de uma cultura, costumes e crenças não precisam ser exclusivos daquela sociedade, frequentemente sendo compartilhados com outras populações (indígenas ou não). Tais elementos culturais também não são necessariamente antigos ou ancestrais, constituindo-se em fato corriqueiro a adaptação de pautas culturais ao mundo moderno globalizado. A incorporação de rituais, crenças e práticas exógenas não necessariamente significa que aquela cultura já não seria ‘autenticamente indígena’ ou pertencesse a ‘índios aculturados’ no sentido pejorativo de ‘ex-índios’ ou ‘falsos índios77. Operadores externos são ressemantizados e fundamentais para preservação ou adaptação de uma organização social e um modo de vida indígena. Sobretudo cabe indagar quais as coletividades indígenas reais que poderiam demonstrar-se totalmente refratárias aos fluxos e correntes culturais (OLIVEIRA, 1999:117). Investido da autoridade institucional de ser o agente analítico escolhido pelo órgão oficial indigenista para proferir recomendações, fundamentadas em conhecimentos antropológicos de como proceder quanto às demanda dos Krahô-Kanela, Toral conclui seu relatório apontando não ser possível confirmar a identidade étnica do grupo. Mas, ressaltando que “sendo a sua atual descaracterização como ‘índios’ resultante das vicissitudes que passaram, seria no mínimo incorreto ou injusto a Funai não tomar qualquer providência em relação a estes remanescentes” (TORAL, 1985:09), sugere 77 Ou, como insiste Toral, de ‘caboclos’. 112 Se ficar comprovada a versão dos caboclos, e a autenticidade da ‘doação’[do índio Javaé ao Alfredo e seu grupo], a Funai deverá entrar em contato com a Cia Cervejaria Brahma no sentido de discutir a cessão de uma parte das terras ocupadas para assentamento das famílias que lá residiam. Caso estes últimos entendimentos resultarem morosos recomenda-se que a Funai entre em contato com outros órgãos federais (como o Incra) e estaduais para auxiliar o assentamento definitivo dos caboclos de Dueré e Cristalândia.(Idem:11. Grifo meu) Atendendo à recomendação de Toral, o então presidente da FUNAI, Gerson da Silva Alves, solicita à Companhia Cervejaria Brahma informações e documentações referentes ao lote nº 2, pleiteado pelos Krahô-Kanela como território tradicional (ALVES, Carta nº 152 /PRES/DPI – Funai, 23/05/85). Ao que a Companhia esclarece 1 – Em 05.10.79, esta Companhia adquiriu os lotes 1, 3 e 4 do Loteamento Mata Alagada, localizado em Cristalândia/Goiás, através da Escritura Pública de Compra e Venda (doc.anexo 1), lavrada no Cartório do 1º Ofício de Salvador/Bahia; (...) 3 – Em 10.11.80, por Escritura Pública lavrada no Cartório de Paz e Notas de Itaituba/Minas Gerais (doc. anexo 4), esta Companhia adquiriu o lote 2 do Loteamento Mata Alagada (...) que foi incorporado ao patrimônio da Capiaba Agro-Pecuária S/S. (COMPANHIA CERVEJARIA BRAHMA, 1985). No entanto, as dúvidas sobre a aquisição dos lotes não foram dirimidas com as informações prestadas: Ocorre que o representante dos remanescentes Krahô afirma que o lote nº 2 referido na escritura não é o mesmo de posse indígena, vizinho aos de nºs 1, 3 e 4, adquiridos pela Brahma. Coincidentemente, os três primeiros foram adquiridos da firma Garota S.A, enquanto que o de nº2, de posse indígena, do qual foram expulsos, segundo a escritura foi adquirido de outros vendedores (CARVALHO, Assessor Jurídico da Funai. Informação nº 040/PJ/86, 27/02/86). Posteriormente, foi feito o levantamento da cadeia dominial do referido lote a partir de 1968. Baseado em certidão expedida pelo Cartório de Registro Geral de Imóveis da Comarca de Cristalândia, esclarece-se: (...) o imóvel foi adquirido pela Companhia Cervejaria Brahama (que, posteriormente, se associou à firma Capiaba Agro-Pecuária S/A) de Luiz Augusto de Melo e sua mulher Célia de Andrade Melo, e dr. Márcio de Andrade Melo e sua mulher Arlete Aparecida Faria Melo, que o adquiriram de José Favaro e sua mulher Júlia Maria Gonçalves Favaro, estes o adquiriram de José do Nascimento Caixeta, este o adquiriu de Olímpio Peixoto de Carvalho e sua mulher, estes o adquiriram de 113 Antônio Lima e Silva, Francisco Bezerra Peixoto e sua mulher, José Luiz Galvão e sua mulher, Raimunda Bezerra Lima e Geraldo de Carvalho e sua mulher, estes, por sua vez, o adquiriram do Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás (IDAGO) (CINTRA DE PAULA, 08/07/86). Conforme sinalizado nos capítulos anteriores, de acordo com Mauro e Oliveira, J. E., o IDAGO arrecadava terras como devolutas enquanto, na verdade, muitas eram ocupadas por índios ou colonos, e as loteavam a apadrinhados e intermediários que as revendiam em outros estados: “Eram emitidas escrituras em nome de posseiros fictícios, que depois faziam a sua transferência” (2010: 110). Nessa época, segundo Barbosa, a instituição “funcionava como uma imobiliária” e sua prática de favorecimento de terceiros foi por ele chamada de “grilo oficializado” (1996 apud MAURO E OLIVEIRA, J. E., 2010: 110). Para além destas irregularidades, comprovou-se, com o levantamento da cadeia dominial, que, quando da titulação do lote em questão (ou melhor, da terra Mata Alagada), os Krahô-Kanela já se encontravam ocupando a área. No entanto, se de acordo com o disposto no artigo 62º da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio), as negociações envolvendo a compra da mesma não teriam efeito jurídico78, a Funai decidiu assumir mais investigações sobre a etnicidade Krahô-Kanela antes de definir sua responsabilidade no que se refere ao reconhecimento do direito territorial do grupo. Com base no relatório de Toral, o Superintendente Reinaldo Florindo, através da Informação nº 076/DDF/SUAF/86 (FUNAI), comunica que a proposta para a identificação da terra do povo Krahô-Kanela não atende às determinações e diretrizes estabelecida pelo Decreto nº 88.118/83, para a definição de terras indígenas, e que ainda existem “dúvidas levantadas pelo antropólogo André Amaral Toral, quanto ao questionamento da identidade étnica do grupo indígena, como também da localização da área efetivamente ocupada” (FLORINDO, 1986). Então, sugere a criação de um Grupo de Trabalho Multidisciplinar a fim de propor solução à demanda do povo. A sugestão da Informação nº076/DDF/SUAF/86 (FUNAI) implicou desdobrar o primeiro estudo de identificação do grupo, feito por antropólogo, para um trabalho investigativo dirigido às possíveis ações a serem implementadas, conjugando para isso conhecimentos antropológicos às experiências indigenistas. Em janeiro de 1987, foi 78 Art.62°. Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos dos atos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação das terras habitadas pelos índios ou comunidades indígenas (Lei 6.001 de 10 de dezembro de 1973). 114 constituído o Grupo de Trabalho Multidisciplinar, composto por duas antropólogas e um técnico indigenista, com os objetivos de realizar um cadastramento dos indígenas, analisar suas condições de vida, suas atividades econômicas junto à sociedade local e, principalmente, a viabilidade de “transferência” dos Krahô-Kanela para a Ilha do Bananal79. No “Relatório de Viagem a Dueré”, as antropólogas contextualizam: a partir de outubro de 1986, Mariano Ribeiro foi encaminhado à 6ª SUER, em Goiânia, que passou a se ocupar do processo de transferência do grupo, não se sabendo ao certo onde surgiu a ideia de transferi-los para a Ilha do Bananal. De qualquer forma as expectativas já foram criadas e o grupo está certo de sua mudança pra Ilha (PECHINCHA e SILVEIRA, 1987:s/p). Apesar de tal indicação, o “Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Krahô-Kanela” e os depoimentos coletados em meu trabalho de campo apontam para outra direção, ou seja, que o deslocamento referido se deu a contragosto dos indígenas, justamente por temerem perder definitivamente sua terra tradicional, e que também a proposta teria partido não do grupo, mas dos próprios funcionários da Administração Regional da FUNAI em Goiânia. De acordo com o levantamento realizado, foram “cadastrados” trinta e quatro indígenas que deveriam ser “transferidos”. Contudo, na ocasião, eles teriam esclarecido que “outras pessoas da família, em número aproximado de 250 pessoas que vivem em outras localidades próximas, posteriormente se mudariam para a Ilha do Bananal” (PECHINCHA e SILVEIRA, 1987: s/p). Ressalto aqui que o esclarecimento feito no citado “Relatório de Viagem” permitia vislumbrar os possíveis problemas que a medida proposta poderia causar no futuro. A Ilha do Bananal, embora fosse reconhecido território indígena dos Javaé, Karajá e Tapirapé, encontrava-se invadida, até pouco tempo atrás, por não índios ocupados com a criação de gado no local. A FUNAI decidiu solucionar a demanda territorial do Krahô-Kanela com a prática indigenista de deslocamento de um grupo específico para o território de outros povos, o que lhes causou mais conflitos. A ambiguidade desta medida reflete também a análise apresentada ao longo do relatório em questão. Tal como o estudo realizado em 84, esta equipe multidisciplinar ainda insistia em identificar o grupo do qual os Krahô-Kanela seriam originários, buscando 79 Para a realização deste estudo, realizaram o trabalho de campo na Cidade de Dueré e uma viagem à área da Ilha do Bananal pretendida para assentar os Krahô-Kanela. 115 encontrar sua ascendência através de traços culturais e da definição do um suposto tronco linguístico. Esclarecem: É difícil garantir por esta análise, que o grupo seja descendente de índios Krahô, como se supunha anteriormente, pois apenas uma das palavras recolhidas pertence ao vocabulário Krahô. (...) Fica impossibilitada a constatação por outras vias, pois não é observada pelo grupo a preservação de qualquer traço cultural que os possa associar a um grupo indígena qualquer, pelo menos que se perceba de imediato, com o pouco contato (PECHINCHA e SILVEIRA, 1987: s/p). O “Relatório de Viagem a Dueré” constituiu-se numa narrativa em constante contradição. Ora as autoras do relatório refletem sobre a dinamicidade da cultura, sobre o fato de um grupo étnico não ser definido através de critérios biológicos e culturais, dado que “a transfiguração cultural e racial, a modificação na língua, costumes e crenças podem acontecer sem prejuízo da existência de uma etnia.... que, por sua vez é função apenas da auto-identificação de um grupo e da sua identificação pela sociedade envolvente” (Idem, 1987:s/p); ora insistem em negar a etnicidade dos Krahô-Kanela. Para elas o grupo de Dueré não é representante de uma etnia indígena determinada, dado a não persistência de tradições culturais de origem indígena; e sim apresentam o perfil cultural de caboclos e é a partir desta situação que fica estabelecida a distinção do mesmo do restante do segmento rural regional (Pechincha e Silveira, 1987:s/p). Posteriormente, as antropólogas assumem outro posicionamento e defendem que “o grupo é de fato descendente de índios e é um grupo representativo das vicissitudes históricas por que vem passando grupos de índios destribalizados” (Idem, 1987: s/p). O uso de termos e expressões como “descendente de índio” e “destribalizados” etc., se por um lado pode funcionar como recurso narrativo para indicar a indianidade dos Krahô-Kanela, por outro pode ser discriminatório por não reconhecer a identidade étnica específica do grupo. As antropólogas chegaram a justificar a demanda apresentada pelos Krahô-Kanela com o esclarecimento de que, para grupos nessa situação de “acamponesamento indígena”, discriminados e explorados como mão de obra, é na condição de “índios” que alguns garantirão “pelo menos direitos formais e poder de reivindicação da assistência do Estado e da posse da terra” (Idem, 1987:s/p). E concluem o relatório alertando que o deslocamento dos Krahô-Kanela para a Ilha do Bananal, embora solucionasse em curto prazo a questão, não seria prudente, pois poderia dar margem à entrada de mais posseiros no local. Por fim, 116 como já sinalizado por Toral, as antropólogas apontam como sugestão e possível “solução” o assentamento do grupo só que, desta vez, por meio da intervenção de outro órgão estatal, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), cuja competência não é específica às demandas dos povos indígenas. Segundo nota técnica do Ministério Público Federal, a FUNAI argumentava que a moradia na Ilha do Bananal seria provisória, vigorando apenas durante o tempo necessário para a solução da questão fundiária com a empresa Brahma. “Essa transferência se concretizou em 17/07/1987 e foi, pela Funai estabelecida como condição para assisti-los” (SCHETTINO e BAPTISTA, 2005). Todavia, conforme relatam os indígenas, foi precária a assistência prestada pelo órgão indigenista: (...) foi só nós ir pra lá que eles viraram as costas pra nós, que nós não era índio... botou os índios [Javaé] contra nós.... Nós chegamos lá foi bom, nós pescava, nós criava, nós plantava, mas dois anos em diante, aí atrapalhou... não caçava, não pescava, não fazia a roça (Tonico apud ALMEIDA,G., 2004:24). Vimos então que os dois estudos sobre o grupo (TORAL, 1985; PECHINCHA e SILVEIRA, 1987) seguiram uma mesma linha de análise e, basicamente, convergiram em suas conclusões. Em ambos, seus autores, que são antropólogos, alegaram dificuldade em comprovar a origem do grupo, isto porque buscavam a definição de traços culturais e de um tronco linguístico, insistindo em relacionar identidade à cultura. Ambos relatórios apontaram que a contrastividade ou distintividade entre os Krahô-Kanela e a sociedade nacional se devia ao fato de serem “caboclos” e não, propriamente, indígenas. Apesar da perspectiva e das conclusões desses relatórios irem na contramão dos estudos críticos acerca da etnicidade e da constituição das identidades, devemos considerar que são eles que subsidiarão os próximos encaminhamentos da FUNAI. É paradigmático notar ainda que, estando os Krahô-Kanela na Ilha do Bananal, a FUNAI deu sequência à análise das demandas do grupo, mas para isso se fundamentou para além dos argumentos antropológicos e indigenistas, pois recorreu ao parecer jurídico. O posicionamento e os encaminhamentos, porém, continuaram sempre em uma única e mesma direção: o questionamento da identidade étnica e o entendimento de que a responsabilidade por assentá-los não cabia ao órgão indigenista, como se pode observar através do Parecer nº 003/ASS.JUR./GYN/88 117 (...) restou amplamente demonstrado e provado que os caboclos de Dueré, estão identificados à maioria da população do Médio Norte Goiano e Matogrossense – remotos descendentes de índios. O produto da miscigenação do pré-colombiano, lusitano e africano, deu origem a raça autenticamente brasileira, que se faz mais presente na região Central do país. (...) dominante é o gene índio, por isso a semelhança fisionômica deles com a raça pré-colombiana. Dessa forma, observamos que o grupo ora analisado não se enquadra na definição do índio, descrita pela lei 6.001/73 (...) Finalmente, concluímos que o Órgão Tutor dos índios, sobrecarregado de problemas (...) não pode assumir mais essa tutela, de pessoas com remota ascendência indígena. Contudo, a Funai sensível como tem demonstrado através dos seus representantes (...), poderá levar o apelo aos Órgãos Competentes que são responsáveis pelo assentamento das famílias sem terras, na área Federal é competência do MIRAD e na área Estadual é o IDAGO; para a fixação do Grupo do Mariano, de forma segura e bem projetada (MAIA, 26/01/1988). A definição na qual, segundo advogado da FUNAI, os Krahô-Kanela não se encaixariam é ditada pelo artigo 3º do Estatuto do Índio: I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência précolombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional; II - Comunidade Indígena ou Grupo Tribal - É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados. Percebe-se, então, por meio deste dispositivo que ainda hoje orienta as ações da FUNAI, que os Krahô-Kanela não se “enquadram” nesta definição porque: i) o órgão indigenista (bem como o senso comum de nossa sociedade) opera com conceitos essencialistas acerca das identidades sociais. A rigor, tende a idealizar uma etnicidade primordialista, associando identidade à cultura e enfatizando nesta “cultura” os sinais diacríticos visíveis em termos “materiais”, o que certamente contribui para a cristalização de certa “imagem de índio”. No entanto, os analistas da FUNAI, sejam eles antropólogos, indigenistas ou advogados, concluíram que os Krahô-Kanela não apresentavam sinais diacríticos em termos de cultura material, ou, conforme a citação do artigo acima, as “características culturais” que os distinguiriam “da sociedade nacional”. Todavia, a distintividade dos Krahô-Kanela se deve à forma com que se constituíram enquanto grupo étnico a partir de critérios político-organizativos próprios (BARTH, 2000) e, os sinais diacríticos que podemos identificar referem-se à “seleção de alguns símbolos que 118 garantem, diante das perdas culturais, a continuidade e a singularidade do grupo” (CUNHA, 1986: 116). No segundo capítulo desta dissertação, descrevi um destes “símbolos”: o projeto coletivo de retornar à Mata Alagada, seu território tradicional, e a mobilização étnica e política em torno desta expectativa. ii) O dispositivo jurídico usado, anterior à Constituição de 1988, contém em si a ideia de que os “índios” constituem uma categoria transitória, em vias de desaparecimento a partir da “integração” 80 . Foi neste contexto que constituíram a leitura de que os Krahô-Kanela não seriam mais “índios” porque estariam “integrados à comunhão nacional”. Conforme descrito no segundo capítulo, tão logo os Krahô-Kanela foram deslocados para a Ilha do Bananal, conflitos surgiram entre estes e os Javaé, sendo que os últimos passaram a cobrar da FUNAI medidas no sentido de resolver o problema – criado por ela mesma. Conforme a tensão dos acontecimentos ia se prolongando, cada vez mais agentes institucionais foram sendo envolvidos diretamente nas negociações e, por meio deles, mais documentos foram produzidos relatando a situação com a perspectiva de preparar todos para acordar a melhor decisão, senão para os Krahô-Kanela, para o órgão indigenista. No ofício nº 282/ADRA/87, destinado ao Superintendente da 6ª SUER, o Administrador Regional do Araguaia, Gilson Garcia Nunes, informa que, a pedido de Elizeu Javaé, Chefe do Posto Indígea Canoanã, dirigiu-se à região denominada de “Capão de Areia”, na Ilha do Bananal, juntamente com o Administrador da AER Gurupi, “a fim de manter contato com o Sr. Mariano de tal e outros elementos, alguns deles descendentes de índios Canela”. Em seu relato sobre a transferência dos Krahô-Kanela para a Ilha do Bananal, o Administrador Regional usou das restrições e recomendações não seguidas pelo grupo inserido na Ilha do Bananal para enfatizar a necessidade de sua retirada tendo em conta a situação tensa na área: no tocante a criação de galinhas e porcos, não derrubada das árvores de mata ali existentes, não negociação de peixe, etc. (...) e logo se teve notícia de que não estavam cumprindo com sua parte no acordo firmado (...). Ao chegarmos à casa do Sr. Mariano, os demais componentes do grupo se reuniram e o servidor Elizeu Javaé passou a relatar os fatos, concluindo com um pedido para que os mesmos deixassem a área e voltassem para suas casas nas cidades de Dueré e Formoso do Araguaia, 80 O Estatuto do Índio (Lei 6001/73) classifica os grupos indígenas de acordo com um suposto grau de integração à “comunhão nacional”. De acordo com este critério evolutivo - a intensidade do contato mantido com a sociedade nacional – os grupos indígenas seriam considerados “isolados”, “em contato intermitente”, “em contato permanente” e “integrados”. Ver Ribeiro (1996) 119 para evitar um possível confronto com os índios. Naquele momento alguns elementos do grupo se exaltaram, falando inclusive em disposição de ‘matar ou morrer’ para não abandonar o local. (...) Após intenso diálogo, o grupo finalizou dizendo que somente desocupará a área após a Funai tomar providências para a desapropriação do lote nº 2 da Fazenda da Brahma no município de Formoso do Araguaia a qual alegam lhes pertencer por direito e da qual foram despejados por ação daquela empresa. (...) mantenho V. Sª. informado da situação, bem como aguardamos qualquer instrução especial dessa SUER, quanto ao comportamento a ser adotado em tão delicada situação. (NUNES, 1987) Para além das restrições, o que em si já inviabilizaria a permanência deste grupo no local por privá-los das condições de subsistência, fica claro que a FUNAI estava sendo pressionada tanto pelos Javaé, que passam a exigir a retirada dos Krahô-Kanela da Ilha do Bananal, quanto por estes últimos, que reivindicam a desapropriação da fazenda Brahma e a regularização do seu território. Como alternativa para solucionar o impasse, o órgão indigenista segue o encaminhamento sugerido pelos antropólogos Toral (1985), Pechincha e Silveira (1987) e pelo Parecer nº 003/ASS.JUR./GYN/88, intentando delegar sua atribuição de assistência aos Krahô-Kanela a outros órgãos: (...) contatamos com o IDAGO e, também, com o MIRAD. Do que ouvimos de ambos os órgãos nos foi dado a concluir que não há terras públicas onde se possa assentar o GRUPO do Sr. Mariano, como recomenda essa Superintendência. A CIA BRAHMA, faz muito, adquiriu os lotes objetos deste processo. (RIBEIRO, 20/09/88) A pressão dos Javaé para a retirada dos Krahô-Kanela da Ilha tornou-se um fato destacado nas negociações em busca de solução, conforme demonstra a análise documental. Quer seja através do acirramento dos conflitos com o grupo (vide capítulo 2), quer seja intervindo junto a FUNAI, a desaprovação dos povos moradores da Ilha do Bananal quanto a manter os Krahô-Kanela na área passou a ser um dos ganchos para o ógão anunciar a decisão já previamente recomendada. Em carta encaminhada ao Superintendente Regional, Amilton Gerônimo de Figueiredo, por Daniel Coxini (Karajá), o mesmo se posiciona: o Caboclo Mariano Ribeiro Krahô ou Mariano Ribeiro Kanela é um grupo de Caboclo de Dueré que se dizem descendente de índio muito longe. Na realidade, nós das comunidades Karajá e Javaé não o reconhecemos como índio. Pelo motivo de a elevada miscigenação e a perda de todas as suas características do costumes, tradições e culturas, considerados valores fundamentais e primordiais para a identificação e 120 reconhecimento de um tribal.(...) [em relação a fixação do grupo na Ilha do Bananal, informa]: a maioria dos caciques não aceitaram, alegando que a terra só pertencia às comunidades Karajá e Javaé (...). Somente o senhor Eliseu Javaé, ex-chefe do Posto Indígena de Canoanã, concordou com o ingresso do mesmo, por isso, conforme entendimento entre caciques e a Funai, ficariam o grupo de Mariano, numa área mais próximo da comunidade de Javaé-Canoanã. (...) ficou estabelecido que se criassem problemas às comunidades e à Funai, imediatamente a Funai providenciaria a retirada do grupo da Área Indígena. (...) Assim sendo, solicitamos de V.Sª que providencie a imediata retirada da área indígena. (Daniel Coxini, 11/06/90. Grifo meu) Analisando os encaminhamentos que foram tomados e, sobretudo, o que registram como acontecimentos nos documentos, posso inferir que a pressão exercida pelos Javaé se deve, em parte, à igual pressão das equipes locais do órgão indigenista sobre estes, orientando-os a buscarem solução recorrendo às instâncias superiores do órgão81 e/ou instigando os confrontos como meio de intimidar os Krahô-Kanela (conforme os depoimento destes transcritos no capítulo 2). Um dos exemplos mais ilustrativos da postura assumida pelo órgão indigenista em relação ao grupo Krahô-Kanela, ao longo de todo o processo de reconhecimento étnico e territorial, nos é dado através do documento remetido por Thomaz Wolney de Almeida. O então assessor da FUNAI - 6ª SUER, em resposta a Hamed Farias Seabra - Coordenador/CORPI, que comunica que os índios “Kanelas” Mariano, Argemiro e Osmar estiveram na Coordenadoria de Patrimônio Indígena-CORPI solicitando autorização para venda de peixes na cidade de Formoso em razão da destruição de suas lavouras pelas enchentes ocorridas na Ilha do Bananal, e solicita orientação (CI. nº 105 CORPI/90 ), respalda-se no relatório de Pechincha e Silveira (1987) para, alegando a dificuldade do órgão de concluir por uma identificação precisa do grupo, chega a propor que a retirada dos Krahô-Kanela da Ilha do Bananal se desse via liminar de reintegração de posse: 81 Em analogia a Faleiro (2005: 311), “(...) cada instituição pública está organizada em níveis hierárquicos geograficamente distribuídos. A ‘ponta’ está situada no local e na base da hierarquia (...). Seguindo a hierarquia, temos as representações estaduais, regionais, ou ambas. (...) Por fim, há a ‘sede’ dos órgãos em Brasília – DF (com poucas exceções) e o topo da hierarquia”. Pensar a atuação de aparelhos estatais sob a perspectiva de que os mesmos constituem-se em níveis hierárquicos, nos permite compreender que, embora regido por preceitos jurídicos e institucionais, o Estado (e, conseqüentemente, os órgãos da administração pública), não é um todo coeso e homogêneo. “(...) de fato, atores, grupos e redes que dão vida a essas categorias ideais [Estado, governo e administração pública] nem sempre atuam de acordo com tais preceitos” (Idem: 307, grifo meu) 121 (...) ficou patente a nocividade de se permitir o acesso do grupo à Ilha do Bananal, visto tratar-se de indivíduos perfeitamente integrados à sociedade, alguns com vínculo empregatício, outros executando tarefas diárias – biscates, todos porém, certos de direito de receberem ajuda da Funai.(...) A reunião havida em Goiânia objetivou exclusivamente ratificar nossa posição contrária à assistência plena, a irregularidade do acesso à Ilha do Bananal, bem como, da criação de um Posto Indígena em função de comunidade cabocla. (...) Não cabe, pelo exposto, analisar o pedido contido na CI. nº 105 CORPI/90, que comunica o comparecimento àquela Coordenadoria de Índios Kanela – quando restou impossível à antropólogos, definirem a etnia dos ascendentes vivosjustificando o pleito, pela perda de lavouras, se porventura existiram, face às enchentes, demonstrando inaptidão e, desconhecimento dos períodos, áreas e lavouras cultiváveis, determinadas pela habitualidade das mesmas. Acrescente-se ainda que, a atividade proposta é proibida (...) A permanência do ‘Grupo de Caboclos de Dueré’ na Ilha do Bananal, pela omissão ou passividade da Funai, induz a que, detentores de ascendência indígena, e o somos em número bastante significativo, usufruam da assistência tutelar e das terras indígenas, promovendo, incentivando e legitimando as invasões, com conseqüências incomensuráveis e incontroláveis (...) Considerando inadmissível, a tolerante e perniciosa convivência com a ilegalidade da situação, sugiro seja designada equipe de servidores, visando, a curto prazo, oferecer estudo de alternativas, para imediata retirada do ‘Grupo de Caboclos de Dueré’ do interior da Ilha do Bananal. (...) Face as características da ocupação – não índios em área indígena é cabível propor liminar de reintegração de posse, junto à Justiça Federal (Thomaz Wolney de Almeida, assessor da Funai- 6ª SUER, s/d . Processo PRTO, Fls 149). O teor do documento e a reiterada categorização dos Krahô-Kanela como não indígenas contrapõem-se às novas bases para a atuação indigenita que, na época, já haviam sido estabelecidas com a promulgação da Constituição Federal de 1988, na medida em que esta reconhece aos indígenas o direito à sua organização social e à demarcação das terras que tradicionalmente ocupam (CF de 1988, Capítulo XVIII, artigo 231). Ademais, segundo interpretação jurídica da sub-procuradora da 6ª Câmara do MPF, Dra. Deborah Duprat Pereira, a Constituição assegura a um grupo étnico o direito à auto-representação (art. 216, I), uma vez que formas de expressão são conjuntos de signos por meio dos quais se revela a representação da realidade (Foucault 1966: 89). Assim, requer-se que a coletividade possa se reconhecer em suas formas de expressão, sob pena de lhes negar realidade, o que implica dizer que a representação da realidade partilhada envolve necessariamente a representação de si própria, ou seja, a autocompreensão do grupo. Dessa forma, interdita-se ao legislador, ao administrador, ao juiz e a qualquer outro ator estranho ao grupo dizer o que este é de fato. (PEREIRA, 2002: 44. Grifos da autora) 122 Do deslocamento para a Ilha do Bananal em 1987 até sua expulsão pelos Javaé – com a conivência e participação da FUNAI local – em 1998, o posicionamento do órgão indigenista em relação aos Krahô-Kanela consistia, conforme os documentos analisados, ora em questionar sua identidade étnica, propondo a realização de novos laudos e relatórios antropológicos com vistas a dirimir a dúvida, ora em negar-lhes explicitamente o reconhecimento da identidade. Tais posicionamentos e encaminhamentos, porém, somente são adotados mediante alguma pressão (prova-os lacunas e ausência de providências ao longo do processo administrativo), seja por parte dos próprios indígenas ou de agentes mobilizados por este. Oliveira e Almeida, A. W. (2006) já haviam avaliado que: Las iniciativas del órgano tutor se configuran siempre como respuesta a uma situación de emergencia y corresponden a um progresivo reconecimiento interno sobre las consecuencias catastróficas que la no intervención tendria para los indígenas así como la propia estructura adminstrativa. (...) Los propios operadores de esa máquina (indigenistas, índios y funcionários) ya aprendieron este hecho y transmiten verbalmente este conocimiento a los no iniciados através de uma máxima utilitária: ‘FUNAI sólo actúa bajo presión’. La práctica cotidiana se encarga de inculcar uma Fe profunda em la veracidad de dicha afirmación a los actores sociales, mostrándoles la inocuidad de estabelecer planes e prioridades, y alertando a los próprios miembros de la corporación sobre el aletargamiento, la impotencia y la falta de sensibilidad del órgano para cumplir sus responsabilidades más elementales e indeclinables (OLIVEIRA e ALMEIDA, A. W., 2006: 52. Grifos dos autores). É importante destacar que, no quadro interno da FUNAI, a demanda dos Krahô-Kanela não constava entre as prioridades do órgão, conforme comentário feito por um ex-servidor durante conversa informal, existiam casos muito mais antigos e mais graves que o dos KrahôKanela e que, no entanto, ainda estariam “emperrados”, aguardando uma solução. Sem explicar-me os critérios do órgão para a definição de “casos mais graves” e “casos menos graves”, o ex-servidor mostrou-se indignado com o atendimento do pleito reivindicatório deste grupo indígena. Para ele, o que conferiu agilidade a este processo foi o fato de os KrahôKanela serem, segundo suas palavras, “clientes do Cimi”82. Mediante este último comentário, 82 Somando-se a esta reflexão, Sílvia Aguiar Carneiro Martins, em sua dissertação “Os Caminhos da Aldeia... Índios Xucuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais”, ilustra a falta de critério do órgão indigenista para o encaminhamento burocrático-administrativo de demandas relacionadas ao reconhecimento étnico e territorial, apontando alguns exemplos: “os Geripancó, que sem reconhecimento oficial, tiveram 200 ha de terras adquiridos pela FUNAI em 1987 e apenas em 1992, território identificado; os Pankararu (AI Vargem Alegre, BA), que receberam 1.000 ha doados pelo INCRA em 1980 e contavam com presença de posto indígena, tiveram área homologada em 1992, sem realização pela FUNAI de estudos referentes a sua identificação; e, os Kantaruré, que estão em processo de reconhecimento do órgão, tendo sido já realizado relatório antropológico (BRITO,1990), mas cuja situação fundiária ainda não foi estudada. São exemplos que demonstram a ausência de uma metodologia e de critérios no trabalho da FUNAI durante processo administrativo de reconhecimento e regularização das áreas” (MARTINS, 1994:10. Grifos da autora). 123 posso afirmar que a indignação maior expressada aqui extrapola o fato de a FUNAI responder a pressões externas, por estar relacionada à disputa de agências no campo indigenista; ela revela a ideologia de que sempre tem algum outro agente por trás das demandas indígenas que os orientariam como se comportar nesses enfrentamentos. Mais de uma vez me deparei com documentos que revelaram a relevância da pressão externa sobre o órgão indigenista para que fossem tomadas providências sobre o reconhecimento territorial dos Krahô-Kanela. Mas, também revelaram que a falta de disposição para resolver a questão estaria vinculada à forma como os indigenistas estatais entendiam a problemática Krahô-Kanela: ou seja, para que os servidores da FUNAI pudessem tomar qualquer atitude relativa à definição territorial do grupo, caberia definir, antes, a sua etnicidade, pois somente assim o órgão indigenista seria responsável pelo atendimento ao pleito reivindicatório e pela solução do caso. Noraldino Vieira Cruvinel, na função de antropólogo da Funai, por meio da Informação nº 052/DID/DAF/94 dirigida ao chefe do DID, sugere a pertinência de se ouvir o posicionamento da CGPE, no que se refere ao processo PROC.MJ/GM/SAA/4680/93 instaurado a partir de solicitação feita pelo prefeito de Formoso do Araguaia-TO ao Ministro da Justiça: (...) Ao que entendemos quaisquer análises sobre a questão terra, de atribuição deste DID, depende da definição clara de que o Sr. Mariano e seu grupo, são indígenas. Os estudos de identificação étnica constantes do processo (...) não são cabalmente conclusivos quanto a etnicidade do grupo (...). (CRUVINEL, 1994) Em resposta, o então Coordenador Geral de Projetos Especiais, Artur Nobre Mendes, esclarece que o assunto exige a realização de laudo antropológico, visto que “em relação à etnicidade do grupo familiar do Sr. Mariano Wekedece Canela, esta Coordenação carece de elementos para qualquer posicionamento conclusivo” (MENDES, Memo CGPE/Nº 87/94, 12/05/94). Sem que o laudo antropológico tivesse sido realizado, três anos depois, o posicionamento do órgão é o mesmo: respondendo à carta do Deputado Federal Udson Bandeira, onde são solicitadas definições da presidência da FUNAI quanto ao destino do grupo (Carta nº 102/96 – GDUB/CD), Walter Coutinho Júnior, Diretor Substituto de Assuntos Fundiários à época esclarece que: 124 o assunto vem sendo tratado através dos Processos FUNAI/BSB/28870.001701/84 e PROC.MJ/GM/SAA/4680/93, que se encontram no momento na Coordenação de Promoção e Acompanhamento de Pesquisa (CPAP) para a realização de laudo antropológico de identificação étnica do grupo liderado por Mariano Ribeiro. (COUTINHO JÚNIOR, Ofício n° 376/DID/DAF, 27/05/97) Para o procurador da Procuradoria da República-TO, responsável pelo processo judicial referente à demanda dos Krahô-Kanela, a ambiguidade é a marca da atuação da Funai em relação ao reconhecimento deste grupo (corroborando os fatos até aqui descritos): Depois da primeira vez que eles [os Krahô-Kanela] foram lá [à sede do órgão indigenista em Brasília], em 84, a Funai mandou o antropólogo André Toral para conversar com eles e tentar descobrir a que etnia pertenceriam (...). Perdeu-se muito tempo nisso, achando que eles pertenceriam a algum grupo específico e tentando localizá-lo para mandálos para o local de onde eles fossem; e, em outras épocas, mandando fazer novos estudos (...). Mandaram um grupo técnico que os convenceram a ir pra Ilha do Bananal (...) A Funai, teve uma época que tinha essa mentalidade: a Ilha do Bananal era uma terra indígena e qualquer índio podia morar lá, tipo o parque do Xingu (Dr. Álvaro Manzano, Procurador PRTO, 04/02/2010. Grifos meus). O fato é que, extrapolando o plano das ambiguidades, a FUNAI, valendo-se do contexto da desintrusão dos ocupantes não indígenas da Ilha do Bananal, permite que os Krahô-Kanela sejam tomados por “posseiros ocupantes de boa-fé” e que recebam indenizações para se retirarem da Ilha. Neste momento, exime-se da responsabilidade frente ao grupo e, sem apresentar qualquer alternativa, é conivente com o deslocamento do mesmo para assentamentos de reforma agrária. Assim procedendo, o órgão assume, pública e oficialmente, que não reconhece os Krahô-Kanela como um grupo indígena. O deslocamento dos Krahô-Kanela para o Projeto de Assentamento Tarumã se deve à mediação do Ministério Público Federal. Contudo, pela complexidade (e ilegalidade) do que estava sendo acordado – o deslocamento de indígenas relegados à condição de posseiros para assentamento do INCRA, não ficou claro de qual órgão teria partido essa solução. Em conversas informais e entrevistas, versões diferentes foram apresentadas, inclusive pelo mesmo agente. De modo que não foi possível esclarecer se coube ao INCRA recorrer ao MPF para solucionar a questão, ou se, ao contrário, foi o próprio MPF que solicitou apoio ao INCRA, ou ainda se coube à FUNAI, pelo fato de não reconhecê-los 125 como indígenas, apresentar a proposta aos demais órgãos. O Superintendente Regional do INCRA no estado do Tocantins, ao ser questionado se, no momento do deslocamento dos Krahô-Kanela para o assentamento Tarumã, o órgão tinha conhecimento de que se tratava de um grupo indígena, respondeu: Tinha conhecimento, mas, se não me engano, eles ainda não tinham sido reconhecidos pela FUNAI... tava um processo meio demorado. Eu imagino que [o INCRA] sabia, na época, que eles eram índios sim, inclusive eles vieram aqui dentro algumas vezes, eles vinham pintados, com bordunas... pelo menos é essa história que eu já ouvi. (José Roberto Ribeiro Forzani, 04/02/2010) Por sua vez, o procurador do MPF explica que o contato desta instituição com o grupo começou na época em que os Krahô-Kanela moravam na Ilha do Bananal. Foi na época que a FUNAI estava fazendo a desintrusão da Ilha, tirando os não-índios que moravam lá dentro, e houve uma intermediação do Ministério Público com outras entidades para fazer o assentamento deles no P. A. Tarumã, lá em Araguacema. Nesses ofícios que foram encaminhados pelo INCRA, inclusive, não mencionam que eles eram índios, falavam que eram moradores da Ilha do Bananal. (....) O primeiro contato do MPF com os Krahô-Kanela foi a partir do ofício do [procurador] Mário Lúcio solicitando ao INCRA o assentamento dessas pessoas (Dr. Álvaro Manzano, PRTO, 04/02/2010). 3.1.2 – Novos caminhos na busca pelo reconhecimento A antropóloga Ana Flávia Moreira Santos, em laudo antropológico sobre os Caxixó, aborda um fator significativo em processos de emergência étnica e demandas por reconhecimento: “a presença de agentes deflagadores (incluindo grupos étnicos já reconhecidos) de uma consciência relativa ao direito indígena” (SANTOS, 2003: 119). Segundo ela, trata-se de um processo legítimo de viabilização de uma alternativa política – a alternativa étnica – que possibilita a sustentação do pleito por um direito anteriormente desconhecido (o reconhecimento oficial e os direitos daí decorrentes), frequentemente a partir do contato com uma concepção de índio que, de modo reflexivo, repercute nas concepções auto-identitárias do grupo. Não se pode, contudo, atribuir a consolidação do pleito por reconhecimento exclusivamente à atuação dessas entidades – e ao campo indigenista, se ampliamos o contexto. (Idem) É, pois, de acordo com esta perspectiva que devemos compreender o que a participação do CIMI deflagrou no processo de reconhecimento dos Krahô-Kanela. A 126 partir do momento em que a entidade tomou conhecimento da história do grupo (que então residia no assentamento Tarumã), uma rede de aliados e apoiadores, em nível nacional e internacional, foi sendo construída. Este fato, somado à crescente participação dos KrahôKanela no movimento indígena, o que os investiu de certo capital social e simbólico – uma vez reconhecida sua etnicidade pelos “parentes”, quem haveria de contestá-la? – permitiu uma maior visibilidade da sua reivindicação pelo reconhecimento étnico e territorial e, consequentemente, o aumento da pressão política sobre o órgão indigenista. Como primeiros desdobramentos e consequências deste novo quadro podemos destacar: o envolvimento da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, que passa a intervir intensamente, cobrando da FUNAI a realização dos estudos relativos à identidade étnica do grupo; a realização de duas retomadas pelos Krahô-Kanela, com o apoio do movimento indígena do estado do Tocantins; o envolvimento do movimento indígena em nível nacional, como a manifestação de apoio da Comissão PósConferência Indígena dos 500 anos e do Conselho Indígena de Roraima/CIR através de cartas encaminhadas ao presidente da FUNAI e ao Ministro da Justiça; a Indicação nº 2.507 de 2001, do deputado João Grandão, que “sugere ao Poder Executivo, por intermédio do Ministério da Justiça, a instauração de procedimento demarcatório em favor dos índios da comunidade Krahô” (08/11/2001). E, finalmente, o reconhecimento do grupo pelo órgão indigenista, oficializado em fax encaminhado pelo então presidente da FUNAI, Otacílio Antunes a Euclides Dias Lopes, Administrador Executivo Regional substituto em Gurupi. Por meio desta comunicação, a Presidência do órgão solicita que a AER-Gurupi dispense a devida atenção aos Krahô-Kanela, informando que seria iniciado o processo de regularização fundiária do grupo (Fax / PRES nº 027, 11/07/2002)83. No mesmo dia, o presidente da FUNAI também solicita ao presidente da FUNASA, a prestação de atendimento de saúde aos Krahô-Kanela (Ofício nº 218 /PRES, 11/07/2002). 83 Esta comunicação é tomada por Vieira (2003) como marco do reconhecimento do grupo: “(...) no ano de 2002, o então presidente da Funai, Otacílio Antunes e posteriormente Artur Nobre Mendes, declaram como legítima a reivindicação dos indígenas por estudos de identificação e delimitação da T.I. Krahô-Kanela, vindo a recomendar ao Departamento de Identificação e Delimitação o início dos trabalhos de regularização fundiária da terra em questão. Por esta decisão, está subentendido que o órgão indigenista os reconhece em sua autodenominação Krahô-Kanela, garantindo-lhes apoio em seu processo de resgate e reelaboração etnocultural, bem como o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocuparam”. 127 É impossível deixar de observar a grande resistência por parte da AER Gurupi ao longo do processo de reconhecimento dos Krahô-Kanela, o que pode ser constatado através de documentação expedida por dois de seus administradores, em momentos distintos: Gilson Garcia Nunes recomenda ao Departamento de Desenvolvimento Comunitário/ DEDC/FUNAI que seria “(...) mais prudente, efetuar nova análise antropológica, já que as anteriores, apesar de conclusivas, parecem não ter sido suficientes para convencer alguns segmentos da Funai e outras entidades ora envolvidas (...)” (nº 355/GAB/AER/GRP/2001, 13/11/2001); posteriormente, Euclides Dias Lopes viria a informar ao presidente do órgão indigenista que os Krahô-Kanela foram cadastrados no levantamento fundiário dos ocupantes não-índios da Ilha do Bananal, tendo recebido as indenizações por benfeitorias de boa fé e, posteriormente, assentados pelo Incra tanto no assentamento Loroty quanto no Tarumã, como os demais ocupantes não índios retirados da Ilha do Bananal84. Como os laudos constantes do processo 28.870.001701/84 não concluem pela indigeneidade dos membros do grupo, a decisão mais sensata, naquela época, foi a de se realizar um novo estudo antropológico, tendo o assunto sido repassado para um antropólogo contratado pela DAF, a quem repassamos as informações preliminares, sempre com o cuidado de não criar expectativas, pois os próprios índios javaé alegam que a Funai ‘não pode gastar dinheiro com o atendimento de não índios’ (...)” (LOPES, Fax Nº 114/GAB/ERA/GRP/02, 18/07/2002). Poucos dias após o presidente da FUNAI comunicar o prosseguimento do processo de regularização fundiária da terra Mata Alagada, é determinado, pela Instrução Executiva nº 139 / DAF/02, o deslocamento da antropóloga Maria Elisa Guedes Vieira, consultora Funai/Unesco, para realizar levantamento prévio dos estudos de identificação e delimitação da terra pleiteada pelos Krahô-Kanela. O estudo realizado por esta antropóloga, embora sucinto, irá se diferenciar dos dois anteriores, não apenas porque pôde se respaldar em direitos constitucionais, mas principalmente, por adotar um viés analítico antropológico coerente com a realidade dos Krahô-Kanela. Ao contrário dos primeiros laudos/relatórios antropológicos, Vieira (2003) não se perde na armadilha de traçar uma “etnologia das perdas e das ausências culturais” (OLIVEIRA, 1998: 62). Ela analisa constituição deste grupo a partir de seu processo histórico - ao invés de tentar fixar sua descendência em alguma etnia determinada (já legitimada pela etnologia), ressalta que “o grupo se 84 Como eu já havia analisado anteriormente (capítulo 2), o recebimento da indenização pelos KrahôKanela quando da sua retirada da Ilha do Bananal será usado como argumento, por servidores da FUNAI, para questionar a etnicidade do grupo. 128 autodenomina Krahô-Kanela em virtude da descendência materna Kanela e paterna Krahô” - e aponta um fator determinante até então desconsiderado: o vínculo afetivo que o grupo mantém com o território Observamos que apesar de terem passado 25 anos longe do referido local, esses indígenas guardam na memória vários locais de acampamento, caça, pesca e coleta, além e moradias isoladas, cemitérios, bem como árvores frutíferas que seus pais e/ou tios plantaram. Demonstraram também muita revolta ao constatar que diversas áreas de mata haviam sido desmatadas e transformadas em pasto. Neste momento da pesquisa foi percebido os vínculos afetivos que os indígenas mantêm com o território reivindicado e a ocupação tradicional da área guardada na memória coletiva do grupo (VIEIRA, 2003: s/p). A antropóloga, recorrendo a fundamentos de Barth, ainda reflete que, a despeito da “fragilidade simbólica do grupo em função de serem índios ‘misturados’”, eles “sempre foram reconhecidos como índios e/ou caboclos pela população regional”; e conclui que “a reivindicação do grupo indígena Krahô-Kanela é legítima, tendo sido constatado que se trata de terra tradicionalmente ocupada pelos mesmos, com características históricas de esbulho” (Idem). O reconhecimento étnico dos Krahô-Kanela por parte da FUNAI e sua decisão em dar continuidade ao procedimento de identificação da terra por eles reivindicada repercute localmente por conta da presença da antropóloga na região e da realização do levantamento prévio. O então proprietário de parte da área em análise, por meio de seu advogado, requer, da Administração Regional de Gurupi, o fornecimento de toda a documentação do Processo referente à demanda dos Krahô-Kanela, bem como a relação dos beneficiados com o pagamento das indenizações efetuadas para os ocupantes não índios em virtude da desocupação da Ilha do Bananal/ terra indígena Parque do Araguaia. Preocupado com a possibilidade da propriedade vir a ser caracterizada como terra indígena, questiona o órgão indigenista argumentando que “anteriormente, a própria Funai já realizou estudos e levantamentos fundiários e antropológicos sobre a referida área de sua propriedade, os quais concluíram não se tratar a mesma de terra indígena” (Plínio Pinto Teixeira – Advogado do Sr. Marcus Vinícius Santana Lopes, proprietário da Fazenda Capiabassu/ faz. Brahama, 27/12/2002)85. 85 Será este proprietário quem, futuramente, negociará a venda de duas fazendas para criação da TI Krahô-Kanela. 129 Os estudos a que o advogado se refere (Toral, 1985 e Pechincha e Silveira, 1987) não tinham por objetivo a qualificação da área reivindicada como terra indígena, pois consistiam em estudos para o reconhecimento do grupo como indígena. Acontece que, como ambos preteriram o reconhecimento étnico (seguindo-se ofícios e pareceres que reforçavam o mesmo entendimento), por conseguinte o órgão indigenista entendeu que não seria de sua responsabilidade a demarcação do território. Ao contrário, sempre propunha encaminhamentos no sentido de delegar ao INCRA a responsabilidade de assentar os Krahô-Kanela como posseiros. No entanto, um importante dispositivo jurídico internacional veio fortalecer a luta dos Krahô-Kanela e dos diversos grupos étnicos que reivindicam o reconhecimento oficial e a assistência via políticas diferenciadas: trata-se da Convenção 169, elaborada pela Organização Internacional do Trabalho/OIT em 1989 e ratificada no Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 143 de 20 de julho de 200286. A partir da sua ratificação no Brasil, as normas da Convenção passam a ter valor de lei ordinária. Dentre os termos da Convenção, o que mais nos interessa nesta reflexão é o critério da autoidentificação dos “povos tribais” (artigo 1º, parágrafo 2). O critério subjetivo da autoidentificação, ou seja, a consciência da própria identidade, é que passa a categorizar os povos objeto da Convenção87. Isso significa que não cabe aos aparelhos do Estado, no caso em questão, à FUNAI, definir “quem é” ou “quem não é” índio, razão pela qual é abandonada a prática de elaboração de laudos antropológicos com vistas ao reconhecimento étnico. 86 O texto da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais foi adotado em Genebra, em 27 de junho de 1989, entrando em vigor internacional, em 5 de setembro de 1991. No Brasil, foi promulgada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva através do Decreto Nº 5.051 de 19 de abril de 2004. Ver http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/legislacao/legislacao-docs/convencoes-internacionais/convecao169.pdf. 87 Artigo 1º - 1. A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção (Convenção nº 169). 130 Em relação aos Krahô-Kanela, o órgão indigenista, em tese, reconhece este instrumento e esclarece, em resposta ao procurador Mário Lúcio de Avelar que, a partir de 29.05.03, a Funai passou a adotar a Convenção 169 da OIT, a qual estabelece que o critério fundamental para o reconhecimento da identidade étnica de um grupo é a auto-identificação. Assim, o processo de reconhecimento étnico do grupo Krahô-Kanela, baseado na elaboração de laudo antropológico, não chegou a ser instituído. (PEREIRA NETO, Diretor de Assuntos Fundiários. Ofício nº 642 / DAF, 29/08/ 2003) Juntas, a Convenção 169 e a Constituição Federal de 1988 lançam as bases para uma nova conceituação legal do que seja o indígena. Consoante este quadro normativo, considero exemplar a formulação de sociedade indígena proposta por Oliveira (1994: 126): “Sociedade indígena é toda coletividade que por suas categorias e circuitos de interação distingue-se da sociedade nacional, e reivindica-se como ‘indígena’. Ou seja, concebe-se como descendente de população de origem pré-colombiana”. Não obstante, alguns dispositivos do atual quadro jurídico-constitucional ainda precisam ser disciplinados, pois ainda encontra-se em vigor o Estatuto do Índio de 1973 que, apesar de algumas revogações por força constitucional, ainda orienta a ação do órgão indigenista sob a ótica assimilacionista. Através da Portaria 613/ Pres, de 26.06.03, a FUNAI instituiu GT de identificação e delimitação da terra indígena Krahô-Kanela, coordenado pela antropóloga Graziela Rodrigues de Almeida. Os trabalhos de campo do referido GT foram realizados no período de 07 de julho a 08 de agosto de 2003, sendo que o levantamento fundiário foi reiniciado em outubro do mesmo ano (ALMEIDA, G., 2004:1). A presença da antropóloga na região e a realização de novos estudos provocaram uma reação violenta por parte dos assentados do P.A. Loroti, pois se constatou que nove lotes incidiam sobre a área reivindicada como território tradicional Krahô-Kanela88: “(...) 88 Digo que são os lotes que incidem sobre a terra indígena e não ao contrário, tendo em vista o direto originário dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam (CF/88, art. 231). Isso significa o direito à posse e usufruto não depende da demarcação ou de qualquer documentação. A demarcação é tão somente um processo que tem como objetivo delimitar as terras indígenas, ou seja, mesmo que uma terra não esteja demarcada ela já pertence, por direito originário, ao povo que a ocupa. De modo que se tornam nulos quaisquer “atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras (...)” (idem, § 6º) – no caso em questão, o assentamento. 131 no dia 02/12/2003 os assentados prenderam o grupo técnico na sede do assentamento, juntamente com todo o grupo indígena impondo como condição para soltá-los a retirada imediata do GT e a retirada, em 48 horas, dos indígenas” (ALMEIDA, G., 2004: 30). Recordo que, nesta ocasião, os Krahô-Kanela residiam neste mesmo assentamento (ver capítulo 2). Para pôr fim a este conflito, foi necessária a intervenção de representantes da FUNAI e do INCRA (de Brasília), do Ministério Público Federal, do Centro de Direitos Humanos de Palmas, da Igreja Católica (através do CIMI e do bispo de Cristalândia) e da Polícia Federal. Este tipo de situação, referente às implicâncias locais dos GTs já foi cuidadosamente analisada por Oliveira e Almeida, A. W. (2006). Também Silva (2005), a partir de sua própria experiência como antropólogo-coordenador de um GT, reflete o quanto esses estudos de reconhecimento territorial podem dar “nova forma ao campo de forças vivido por índios e regionais (...)” (SILVA, 2005: 254). Segundo ele, estes agentes (índios e regionais) conferem autoridade a um GT – principalmente ao antropólogocoordenador – por reconhecê-lo como representação do poder estatal; essa ideia de “poder e força” do GT perturba as relações sociais porque maximiza o capital simbólico do grupo indígena ao reconhecê-lo como uma coletividade com direitos diferenciados e exclusivos (Idem: 255). Diante da reação dos assentados frente aos estudos do GT e à constatação de que nove lotes do P.A. Loroti incidiam dentro dos limites da área tradicional dos KrahôKanela, José Cardoso, Superintendente Regional do INCRA/TO, encaminha ao Procurador Chefe da PRTO, Dr. Álvaro Lotufo Manzano, o Ofício/Incra/SR-26/G/Nº 1312 (01 de dezembro de 2003) , através do qual propõe duas alternativas: Considerando que a decisão da Funai em identificar as terras dos índios da etnia Krahô-Kanela poderá criar conflitos ao invés de solucioná-los; (...) Considerando ainda, que há informações de que os assentados de outros PA’s da região estão solidários aos parceleiros do P.A. Loroty, no sentido de não permitir a entrada dos Krahô-Kanela em parcelas do citado P. A, podendo agravar o conflito. Produzimos depois de analisarmos o problema, duas sugestões: Primeira: Já que os Krahô-Kanela foram retirados da Ilha do Bananal por não serem considerados índios e que agora os são, sugerimos recolocá-los lá, após negociação com os índios que lá residem; Segunda: desapropriar fazendas vizinhas ao P.A. Loroty (Brahma e outras) e após negociação com os Krahô-Kanela, convencê-los em estabelecerem lá, sem qualquer alteração na conformação atual do P.A. Loroty. 132 Embora as sugestões apresentadas sejam passíveis de crítica, o contexto implicou em um maior envolvimento de agentes no processo, dentre os quais podemos destacar o CIMI, O INCRA e o MPF, o que, por sua vez, refletiu em novas pressões que levaram a FUNAI assumir, ao menos em parte, seu papel junto ao grupo Krahô-Kanela. Transcorridos quase dez meses após a realização do estudo do GT, “o Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Krahô-Kanela” foi protocolado na FUNAI em 15 de setembro de 2004. Nele, a antropóloga-coordenadora, Graziela R. Almeida, aponta elementos que caracterizam Mata Alagada como terra tradicional dos Krahô-Kanela e propõe sua delimitação em 31.925 ha (ALMEIDA, G., 2004: 93). De posse do Relatório, o órgão indigenista não se manifesta. É necessário que o MPF, com base no “artigo 2º parágrafo 7º do Decreto nº 1.775/96, que estabelece prazo de 15 (quinze) dias para o presidente da FUNAI decidir sobre a publicação do relatório” solicite, oficialmente, ao presidente do órgão, informações referentes à publicação do mesmo, já que “decorridos mais de sessenta dias da entrega, não houve qualquer pronunciamento a respeito” (Álvaro Lotufo Manzano, Procurador da República, Ofício PR/TO nº 891/2004, 19 de novembro de 2004). 3.1.3 - Parecer nº 194/CGID/ 2004: “o contraditório foi antecipado pelo próprio órgão indigenista que, ao invés de validar o direito indígena o questionou” 89 Se, por um lado Oliveira e Almeida, A. W. (2006) reconhecem a importância do GT nos processos de identificação das terras indígenas, cuja força no processo decisório residiria no fato “de los datos sobre los quales los otros discuten, deciden o rectifican las propuestas presentadas por los GTs se originan em gran parte (o em su totalidad) del trabajo de campo desarollado por esse mismo grupo” (OLIVEIRA e ALMEIDA, A. W., 2006: 56); por outro, problematizam que, institucionalmente, o GT é subordinado 89 Entendimento do Analista Pericial em Antropologia da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Revisão do Ministério Público Federal ao analisar a argumentação adotada no Parecer nº 194/CGID para justificar o não reconhecimento da terra Mata Alagada como “tradicionalmente ocupada” e, por conseguinte, do direito a sua demarcação. Retomarei esta análise mais adiante. 133 hierarquicamente a outras instâncias de maior peso (Idem, 56). De modo que, compete à Coordenadoria Geral de Identificação e Delimitação – CGID, dentre outras atribuições, analisar os relatórios circunstanciados referentes aos estudos de identificação, indicá-los para publicação no Diário Oficial da União e no Diário Oficial dos estados em que se situam as terras, além de defendê-los diante de eventuais contestações (http://www.funai.gov.br/quem/endereco/fone/cgid2.htm). Pois bem, após a análise do “Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Krahô-Kanela”, a CGID emitiu o Parecer nº 194/CGID/ 2004, cuja autora Nadja Havt Bindá, à época, antropóloga Coordenadora Geral de Identificação e Delimitação, sentencia não ser possível ao órgão indigenista reconhecer a tradicionalidade do território em questão, pois, segundo ela, o relatório teria apresentado: pelo menos, dois elementos que tornam frágil todo o processo e comprometem a plena validade das conclusões do Relatório: o primeiro elemento diz respeito aos limites propostos, cujas justificativas mostramse insuficientes; o segundo elemento diz respeito à caracterização da área reivindicada como terra tradicionalmente ocupada (BINDÁ, 2004: 1). Segundo a antropóloga-parecerista a falta de vínculo original com a área reivindicada, o caráter recente da presença no Atolado [Atoleiro] e na Mata Alagada, bem como a comprovada história de deslocamentos e períodos de fixação em outros lugares faz emergir a seguinte questão: qual área deve ser definida como ‘terra tradicionalmente ocupada’ e que critérios permitem sua caracterização enquanto tal? (...) haveria, do ponto de vista histórico, diversas áreas passíveis de serem reconhecidas como de ocupação do grupo, (...). (Idem : 3. Grifos meus) Ora, conforme descrevi no primeiro capítulo, os lugares habitados pelos KrahôKanela, aos quais Bindá faz referência, são por eles próprios chamados de locais de temporada (são eles: São Luiz, à beira do rio Urubu; Poço Danta; Salina; Mineiro; Pedra; Onça e Atoleiro), sobre os quais “o grupo não constituiu território ou, em outras palavras, não se territorializou” (SCHETTINO e BAPTISTA, 2005: 08), e não reivindicou o retorno, posto a inexistência de vínculos com os mesmos. Já a terra Mata Alagada, ao contrário, é sempre referida pelo grupo, como seu local de pertencimento, razão pela qual a reivindicam como terra tradicional. Graziela Almeida (2005), buscando dirimir as dúvidas 134 levantadas pelo Parecer, mais uma vez reforça o que ela já havia apontado em seu relatório a partir da memória social e coletiva do grupo (memória esta totalmente desconsiderada pela coordenadora da CGID) (...) apesar do grupo ter habitado outros locais, entre eles o Atoleiro, a sua concepção, enquanto coletividade, de sua terra, seu local de pertencimento, é referente à Mata Alagada. É essa terra que reúne todas as condições para a reprodução física e cultural dos Krahô-Kanela (....). (ALMEIDA, G., 2005: 03). Sobre a inadequação de se buscar “o vínculo original” e o “ponto de vista histórico”, conforme sugerido pelo Parecer/CGID, Oliveira (1999: 108) adverte o quanto é difícil ao antropólogo e ao historiador “apresentar evidências históricas sobre a antiguidade do território indígena”, exemplificando este fato com o caso do Nordeste, uma das áreas de colonização mais antigas que, ao sofrer impactos econômicos e socioculturais com a expansão territorial dos domínios portugueses, das missões, das fazendas e povoações não seria possível atestar que a um determinado território coubesse a posse exclusivamente indígena. Para o autor: O procedimento de buscar legitimar a posse dos grupos indígenas sobre determinados territórios apelando para a antiguidade dessa ocupação não é de forma alguma coerente com os termos da atual Carta Constitucional, que conceitua ‘terra indígena’ a partir da noção de ‘ocupação tradicional’, e não da ideia de imemorialidade. Laudos ou quesitos que insistam demasiadamente na apresentação de provas arqueológicas como evidência de antiguidade da ocupação territorial podem ser considerados irrelevantes ou mesmo inconstitucionais, pois estão baseados em uma argumentação inválida e inadequada (OLIVEIRA: 2003: 158). Ou seja, a “ocupação tradicional”, referida pela Constituição Federal de 1988, não se pauta na historicidade, mas, sim, na contemporaneidade do valor simbólico atribuído ao território e aos usos que se fazem do mesmo. A parecerista, ao questionar “qual área deve ser definida como ‘terra tradicionalmente ocupada’ e que critérios permitem sua caracterização enquanto tal?” (BINDÁ, 2004: 3), parece, por um momento, ignorar que “terra indígena” é uma categoria 135 jurídica, definida pela Lei 6.001/73 enquanto o conceito “tradicionalmente ocupada” nos é dado pela Constituição Federal de 198890. Posicionamento diferente adotou a antropóloga responsável pelos estudos, e autora do relatório ao se pautar nos critérios estabelecidos pelo quadro jurídico-normativo, como convém a qualquer estudo de identificação e delimitação. Segundo ela, A terra proposta pelo GT é a representação coletiva do território KrahôKanela no momento atual. Ou seja, a Mata Alagada é a terra de ocupação tradicional Krahô-Kanela, onde se encontram reunidos os quatro critérios definidos pela constituição para que a mesma seja considerada como tal (ALMEIDA, G., 2005:6). De acordo com a Constituição Federal, são terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aquelas que seguem os seguintes critérios: i) as que são habitadas em caráter permanente, ii) as utilizadas para suas atividades produtivas, iii) as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e, iv) as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (CF/88, artigo 231). Ademais, não é de competência do antropólogo a definição arbitrária dos limites territoriais correspondentes a um grupo indígena. Este papel cabe ao próprio grupo indígena com o qual o antropólogo irá se relacionar durante seu trabalho de campo, porquanto a definição dos limites é fruto da construção dos dados decorrentes da interação entre o pesquisador e seus interlocutores. Ao analisar os argumentos contidos no Parecer nº 194/CGID (e posteriormente defendidos em audiência pública), nos quais a FUNAI se fundamenta para negar aos Krahô-Kanela o direito à demarcação de sua terra tradicional, o corpo técnico do MPF esclarece: Terra indígena é antes de tudo um conceito jurídico expresso na constituição. T. I. não é um conceito antropológico em discussão. A contribuição da antropologia foi auxiliar o constituinte a definir o conceito constitucional. São vários os conceitos antropológicos de território, e não pode o reconhecimento das terras indígenas estar sujeito aos critérios definidos segundo a afiliação teórica/metodológica dos administradores públicos de plantão. Os critérios e parâmetros 90 A categoria jurídica “território indígena”, presente na legislação, foi elaborada na década de 50 por ocasião da criação do Parque do Xingu. Apresentada pelo SPI – acatando-se sugestões de antropólogos como Roberto Cardoso de Oliveira – a definição dos limites de uma área indígena passou a ser baseado na necessidade dos recursos naturais ali existentes para a reprodução cultural e garantia do modo de vida dos indígenas. Esta definição compôs a Emenda Constitucional de 1969 e, posteriormente, a Constituição Federal de 1998 e, ainda hoje, fundamenta os processos de reconhecimento territorial (OLIVEIRA, 1999: 108, 109) 136 apresentados pela representante da Funai na audiência pública no Senado, no dia de ontem – 12/12/2005, são datados e conjunturais. (...) Não se pode aceitar que essa compreensão pretenda ser uma espécie de emenda constitucional fabricada para casos específicos ou a cada relatório antropológico (...). O conceito de terra indígena é constitucional, não se reduz a proposições teóricas e/ou metodológicas. Além do que, não existe qualquer teoria antropológica que tenha legitimidade para substituir a vontade dos índios e dizer por eles ou para eles quais sejam os seus territórios. (...) É inaceitável que demandas indígenas por terra ao invés de serem qualificadas sofram no próprio órgão indigenista processos de desqualificação. (...) O caso Krahô-Kanela explicita uma situação muito preocupante. Na prática esse procedimento sofreu uma contestação interna ainda no momento da instrução. Segundo o Dec. 1775/96 isso só deve ocorrer nos 90 dias posteriores à publicação do relatório. O contraditório foi antecipado pelo próprio órgão indigenista que, ao invés de validar o direito indígena o questionou (SCHETTINO, 2005a). A antropóloga parecerista ainda procura descaracterizar a terra indígena com base em um dos elementos que, de acordo com o entendimento de outros antropólogos (e meu próprio), é essencial para a construção da territorialidade, qual seja, a o vínculo afetivo. É possível, para este caso, supor a hipótese de que o trauma da remoção forçada da Mata Alagada, aliado à memória recente de um período de vida plenamente satisfatório vivido naquela região, tenha levado o grupo a projetar sobre a área em questão não apenas seus esforços para manter a coesão interna mas também a expectativa de uma terra para viver em unidade e segundo seus próprio padrões. É normal que essa projeção tenha alcançado também o status de reivindicação por uma terra específica (no caso a Mata Alagada), anda mais considerando que todos os relatos apontam para uma vida socialmente rica, sem confrontos e materialmente satisfatória em período muito mais recente que os anteriores à chegada do Atolado (BINDÁ, 2004:4). Respondendo a este argumento, a autora do relatório, Graziela Almeida, esclarece: (...) certamente, a expulsão da Mata Alagada em 1977 foi um episódio extremamente marcante para o grupo Krahô-Kanela. Mas acredito que o fato do episódio ter sido ‘traumático’ não tira a legitimidade da reivindicação do referido grupo indígena. Pelo contrário, o ‘trauma’ e o sofrimento advindos do fato de estarem fora de suas terras há mais de vinte e cinco anos, devem ser considerados como mais um elemento legitimador da reivindicação do grupo pelo retorno à sua terra tradicional, pois é um demonstrativo do vínculo afetivo que o grupo possui com a terra reivindicada. Ou seja, se a expulsão pode ter gerado um ‘trauma’ para o grupo, este deve ser mais um elemento que fortalece as evidências de seu vínculo com a terra indígena. (ALMEIDA, G., 2005: 6,7) 137 Ainda que tenha restado dúvidas na proposta de limites e na caracterização da tradicionalidade da terra indígena apresentadas pelo “Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Krahô-Kanela”, uma postura coerente com as atribuições do órgão indigenista seria, ao menos, cogitar a possibilidade de sua autora retornar a campo para uma nova etapa de estudos com vistas à complementação do mesmo. Ou, em última hipótese, responsabilizar-se pela demarcação da Mata Alagada como terra reservada, conforme faculta o art. 26 do Estatuto do Índio e determinam os artigos 13 e 14 da Convenção 169 da OIT. No entanto, o encaminhamento apresentado pela coordenadora da CGID foi o mesmo – e único – proposto ao longo de todos esses anos de luta dos Krahô-Kanela pelo reconhecimento étnico e territorial: delegar ao INCRA a responsabilidade de assentá-los. (...) recomendamos que sejam enviados esforços no sentido de viabilizar seu estabelecimento na área proposta pelo INCRA. Tal medida permitiria, num intervalo de tempo relativamente curto, viabilizar o estabelecimento das famílias que compõe o grupo, em área propícia e compatível com seu modo de vida baseado na terra – ao contrário do que seria possível para o reconhecimento de terra indígena tradicionalmente ocupada, com base no Relatório de Identificação e Delimitação. (BINDÁ, 2004: 4, 5) Por, “em área propícia e compatível com seu modo de vida baseado na terra”, podemos supor que a coordenadora toma os Krahô-Kanela como agricultores não indígenas, posicionamento reiterado pela mesma durante conversa informal, quando repetiu diversas vezes que, na verdade, o que conta é a organização social fundada na propriedade rural – eles seriam agricultores – então, o importante seria garantir a terra, não importando se fosse via demarcação de terra tradicional, ou reserva, ou assentamento. Pelo exposto, fica claro que, com base na teoria antropológica e no quadro jurídico-normativo, se há alguma fragilidade no processo de identificação e demarcação da terra indígena Krahô-Kanela, esta se refere mais aos argumentos apresentados no Parecer/CGID do que ao Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Krahô-Kanela. De modo que, cabe aqui o seguinte questionamento: se ambos – Parecer/CGID e Relatório – foram escritos por antropólogas que, em tese, possuem formações teóricas e metodológicas semelhantes, por qual razão são tão divergentes em suas conclusões no que se refere à utilização de conceitos tão caros à antropologia e tão 138 determinantes para o futuro deste grupo étnico? Acredito que a reflexão que faremos a seguir contribuirá para a elucidação deste questionamento. 3.1.4 – As tênues fronteiras entre a antropologia e o indigenismo Retomando a análise de Oliveira e Almeida, A. W., (2006): i) a importância do GT nos processos de identificação das terras indígenas consiste, principalmente, por respaldarse em uma investigação estabelecida a partir do contato direto com os próprios interessados – os grupos indígenas. De acordo com os autores, “(...) la importancia del GT no debe subestimarse em momento alguno, porque corresponde a la primeira iniciativa ordenada del órgano em el proceso, constituyendo una investigación directa de la situación, un contacto específico y orientado com los próprios interesados” (OLIVEIRA e ALMEIDA, A. W., 2005: 56); ii) todavia, os GTs estão subordinados a outras esferas de decisão do órgão indigenista91. O poder de decisão no que tange à criação de terras indígenas, por sua vez, não se encontra distribuído uniformemente, estando concentrado em determinados setores e funções do órgão, pouco visíveis por estarem distantes tanto dos trabalhos técnicos de identificação, quanto de sua representação política, expressa pelos atos da presidência (OLIVEIRA, 2006: 35). O procedimento administrativo de reconhecimento oficial das terras indígenas transcorre sob a orientação da Diretoria de Assuntos Fundiários, sendo que o início do processo de regularização fundiária92 compete à Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGID), que, conforme já exposto, é responsável pela realização dos estudos antropológicos e pela análise dos relatórios circunstanciados. Temse que um quadro jurídico-normativo prescreve as práticas administrativas do órgão indigenista. A CGID precisa pautar-se nas disposições legais para cumprir suas atribuições, 91 No que se refere à política indigenista e à demarcação de terras indígenas, existem quatro esferas de decisão: a esfera legislativa, a esfera indigenista, a esfera ministerial e a esfera presidencial (OLIVEIRA: 2006: 34,35). Por ora nos interessa a esfera indigenista. No decorrer deste trabalho se evidenciará o envolvimento das demais esferas para a conclusão da demarcação da terra Krahô-Kanela 92 Resumidamente, as etapas para a regularização fundiária das terras indígenas são as seguintes: a constituição de um GT para realizar os estudos de identificação e delimitação territorial; após a publicação do relatório de identificação e decorrido o período para contestações (conforme disposto no Decreto 1.775/96, analisado a seguir), a demarcação física; a homologação, o registro no Cartório Imobiliário da Comarca onde se localiza a terra e na Secretaria de Patrimônio da União do Ministério da Fazenda. 139 ou seja, no que se refere à formação dos GTs e à analise de um relatório circunstanciado, observar-se-á sua conformidade ao disposto no artigo 231 da Constituição Federal, na lei nº 6.001/73 (Estatuto do Índio), no Decreto 1775/96 e na Portaria MJ nº 14/96. Deter-nosemos na análise destes dois últimos, pelo fato de ambos se complementarem e se inserirem num quadro de medidas normativas que exercem uma série de controles sobre o procedimento de demarcação já nas suas primeiras etapas (BARRETO FILHO, 2005), sobretudo, por meio do controle sobre o próprio trabalho do antropólogo-coordenador de Grupos de Trabalho, que deve adequar seu estudo aos parâmetros do Decreto e da Portaria (PERES, 2005). O Decreto 1.775, de 08 de janeiro de 1996, disciplina o processo administrativo de demarcação das terras indígenas. Através dele, fica estabelecido que: após a conclusão dos estudos de identificação e delimitação realizados pelo GT, o relatório circunstanciado, caracterizando a terra indígena a ser demarcada, deve ser apresentado à FUNAI (artigo 2º § 6º); sendo este aprovado cabe à mesma publicar seu resumo, no prazo de quinze dias contados da data de seu recebimento, “no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel” (idem § 7º). Estados, municípios e demais interessados têm noventa dias após a publicação do resumo do relatório para manifestarem-se contrários à demarcação, pleitearem indenização ou demonstrarem irregularidades no relatório (idem § 8º). Decorridos esses noventa dias, a Funai tem sessenta dias para encaminhar o “o respectivo procedimento ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas apresentadas” (idem § 9º). Finalmente, em trinta dias o Ministro da Justiça decidirá se a terra indígena será demarcada ou não (idem § 10º). A Portaria 14 de 09 de janeiro de 1996 estabelece regras sobre a elaboração do Relatório circunstanciado de identificação e delimitação. Na verdade, ela compreende um roteiro que estabelece o que deve se investigado pelo GT durante a realização dos estudos de identificação. De acordo com a Portaria 14, o referido relatório precisa ser “devidamente fundamentado em elementos objetivos”, abrangendo sete partes que, obrigatoriamente, deverão conter, respectivamente, “dados gerais”, dados sobre “habitação permanente”, “atividades produtivas”, “meio ambiente”, “reprodução física e cultural”, “levantamento fundiário” e, finalmente, a conclusão e proposta de limites da área a ser 140 demarcada (JOBIM, Of. Nº 7/96, Portaria 14). Segundo este instrumento, o relatório deve ainda precisar, com clareza e nitidez, as quatro situações previstas no parágrafo 1º do art. 231 da Constituição, que consubstanciam, em conjunto e sem exclusão, o conceito de “terras tradicionalmente habitadas pelos índios”, a saber: (a) as áreas “por eles habitadas em caráter permanente”, (b) as áreas “utilizadas para suas atividades produtivas”, (c) as áreas “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem estar”, e (d) as áreas “necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (idem). Barreto Filho (2005: 123) contextualiza o modo como esta portaria foi baixada: A Portaria veio substituir um questionário que o Ministro pretendia editar como anexo do Decreto [Decreto 1775/96] (...) Atendendo à solicitação do então presidente da Funai, Márcio Santilli, o Ministro havia, em princípio, concordado em substituir o questionário por uma portaria a ser editada, posteriormente, como de costume, pelo próprio Presidente da Funai. Este o faria após consultas a técnicos, antropólogos e funcionários da Funai envolvidos com identificação de TIs. O Ministro houve por bem, contudo, contrariando o acordado com o presidente da Funai, editar norma de sua própria lavra, um dia após a edição do Decreto. Barreto Filho (2005) e Peres (2005), ao refletirem sobre a interpretação do dispositivo constitucional “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” (art. 231, § 1º) expressa no Decreto 1775/96 e na Portaria nº 14, nos dão valiosas pistas para compreender o posicionamento da CGID em relação à (não) identificação da Terra Mata Alagada. Os autores avaliam que o conceito de “terra tradicionalmente ocupada” é usado pela Portaria 14 como armadilha prática e conceitual, pois é imposto ao antropólogo o exercício de dissecar as quatro situações referidas pelo artigo 231 da Constituição Federal. Caso não sejam fundamentadas objetivamente estas quatro situações, o relatório circunstanciado estará fadado à rejeição (BARRETO FILHO, 2005: 129). De modo que, muito mais do que um roteiro para a identificação de uma terra indígena, a Portaria estabelece uma série de quesitos que devem, necessariamente, ser precisados “com clareza e nitidez”, sob o risco de colocar o “resultado do estudo de identificação sempre na situação de poder ser contestado” (Idem). Afora os riscos de interpretação ambígua do termo “tradicionalmente ocupada” que, segundo Barreto Filho (2005), transitaria “entre o tempo e o modo, fazendo ecoar ao mesmo tempo a ideia de imemorialidade e a noção de modo de ocupação – paradigmas 141 contrastantes no que se refere à identificação de TIs (...)” (Idem: 121. Grifos do autor). Da possibilidade desta interpretação ambígua, aproveitam-se pessoas interessadas em contestar a demarcação de terras indígenas93, apoiando-se no entendimento de “tradição” enquanto um conjunto fixo, imutável e fossilizado no tempo de regras, condutas e crenças coletivas de determinado grupo, impermeáveis à história e à dinâmica características dos processos socioculturais e ecológicoadaptativos” (Idem: 122). Neste entendimento de modo tradicional, não caberia casos como “a pecuária exercida pelos macuxi, o garimpo de ouro aluvionar praticado pelos uaiãpi, entre outras atividades (Idem: 121, 122). Somemos as reflexões acima à observação de Oliveira e Almeida, A. W. (2006) no que se refere ao fato de certas deficiências no exercício antropológico dentro dos GTs acarretarem em aplicações distorcidas e até etnocêntricas dos critérios pertinentes à caracterização de uma terra enquanto “tradicionalmente ocupada” (Idem: 68). O que quero ressaltar, no entanto, é que no caso aqui descrito, as análises dos autores aplicam-se não ao GT, mas ao exercício antropológico dentro da CGID. Como afirmou, em outra ocasião, a então coordenadora da CGID, a antropóloga Nadja Bindá, o relatório circunstanciado de identificação e demarcação, tem que estar bem fundamentado para que não seja contestado. (...) Os juízes estão decidindo cada vez mais a favor das contestações. Por isso precisamos ter mais cuidado ao apresentar os estudos. (...) de fato, poucos estudos de identificação de terras têm tido seus resultados publicados (Por Verena Glass, 17/08/2005 http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=407). Esta “obsessão tecnicista”94 da Funai em se fazer responder, “com clareza e nitidez” a todos os quesitos do quadro normativo-jurídico, através de relatórios tecnicamente perfeitos ainda que antropologicamente empobrecidos (PERES, 2005: 296), ilustra a conclusão de que “existen antropólogos dentro de la institución que se tranformaron en indigenistas, forzados por el tipo de intervención econômica y política del órgano (OLIVEIRA e ALMEIDA, A.W.; 2006: 67). 93 O autor cita o exemplo do então Ministro da Justiça, Nelson Jobim (quem baixou os referidos Decreto e Portaria) que, quando em exercício parlamentar como deputado federal contestou a demarcação das TIs Kayapó ( sul do PA). 94 Expressão de Peres (2005: 288) ao analisar os entraves burocráticos postos pelo Decreto e Portaria à identificação da TI Potiguara de Monte-Mor. 142 Decorrem daí os entendimentos e posicionamentos divergentes quanto ao conceito de “terras tradicionalmente ocupadas” e à legitimidade do direito à demarcação da Mata Alagada como terra tradicional entre a antropóloga-coordenadora do GT e a antropólogacoordenadora da CGDI. Enquanto a primeira, apesar de também orientar-se nos mesmos instrumentos jurídicos, embasou seu estudo e relatório em pressupostos teórico/metodológico da Antropologia; a segunda, por sua função e cargo age “como parte integrante da máquina administrativa, instrumento direto de ação indigenista” (OLIVEIRA, 2003:145). Certamente seria ingenuidade supor que esta diferença se deva somente a uma obediência aos “aspectos legais”. Há também o fator político-ideológico que orienta a atuação da FUNAI em relação à aplicação da política indigenista (e, por conseguinte, orienta também a atuação de seus funcionários-indigenistas, antropólogos ou não). Refirome à análise de Oliveira (1999), no que se refere existência de “um complexo ideológico de difícil desmontagem”, construído a partir da adequação da concepção naturalizada de cultura [no singular e enquanto sistemas fechados e coerentes] à representação do indígena enquanto um ser primitivo e que “conforma os mecanismos oficiais de proteção e assistência” (OLIVEIRA, 1999: 115). Por esta via institui-se uma polaridade entre as culturas indígenas (quase) intocadas (seriam as autênticas) e aquelas afetadas por processos de aculturação (seriam inautênticas, pois conteriam elementos exógenos e espúrios). Com isso fica aberto um perigoso precedente para que o Estado ceda à pressão de interesses particulares, passando a normatizar de forma diferenciada os direitos indígenas, e, sem qualquer rigor científico, legitime uma classificação fundamentada exclusivamente no preconceito (Idem: 116). As reiteradas tentativas do órgão indigenista em delegar ao INCRA a responsabilidade pelo atendimento à demanda territorial dos Krahô-Kanela pode ser considerada uma dessas formas diferenciadas de (não) reconhecimento dos direitos indígenas de que nos fala o autor. 143 3.1.5 – Negociações e desapropriações para criação da Terra Indígena KrahôKanela Diante do posicionamento da FUNAI – que além de não reconhecer a tradicionalidade da terra Krahô-Kanela, se isenta da responsabilidade em demarcá-la como terra reservada, iniciam-se as discussões no sentido de delegar ao INCRA o atendimento a demanda territorial do grupo indígena. Em maio de 2005, o procurador da República responsável pelo acompanhamento do caso encaminhou ofício ao Superintendente do INCRA/TO, esclarecendo ter tomado conhecimento da disposição do Incra em buscar uma alternativa para resolver o problema dos Krahô-Canela (...) e de que duas propriedades rurais localizadas no interior da área reivindicada pelos Krahô-Canela foram objeto de vistoria95 com vista à desapropriação para reforma agrária (MANZANO, 2005). Com base nos artigos 2º e 19 da Convenção 169, o procurador recomenda que, caso seja efetivada a desapropriação de tais propriedades, estas sejam destinadas ao assentamento do grupo Krahô-Kanela, esclarecendo que, nos termos da legislação brasileira, este procedimento não implicará em que os componentes da comunidade Krahô-Canela deixem sua condição de índios, mantendo-se íntegros todos os seus direitos assegurados pela Constituição Federal como tais, razão pela qual, no processo de assentamento deverão ser respeitadas sua organização social, costumes e tradições (Idem, grifo do autor). Em 03 de agosto do mesmo ano, reuniram-se, na Superintendência do INCRA em Palmas, servidores deste órgão (tanto da Superintendência no TO quando da sede, em Brasília), o procurador da República Adrian Pereira Ziemba, representante do CIMI e Dom Heriberto Hermes, bispo de Cristalândia (note-se a ausência da FUNAI. Representantes indígenas não estiveram presentes por estarem em viagem a Brasília para reunião com a 95 Os imóveis rurais, de propriedade de Marcus Vinicius Santana Lopes, são as Fazendas Lago do Jacaré e Retiro do Cocal que, futuramente, viriam a ser desapropriadas para a constituição da TI KrahôKanela. 144 presidência do INCRA). Na ocasião, foi encaminhado que a Procuradoria Jurídica do INCRA/TO enviaria proposta de desapropriação dos imóveis rurais para assentamento do grupo indígena à Procuradoria da República no Tocantins para manifestação do Ministério Público Federal e posterior envio à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, em Brasília/DF, enquanto o Procurador-Chefe (INCRA/DF), José Bruno Lemes, submeteria o caso à Consultoria Jurídica (CONJUR) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em Brasília (Ata nº 11/05, Incra, Superintendência Regional no Estado do Tocantins – SR 26). Logo em seguida, no dia 08 de agosto, lideranças Krahô-Kanela e representantes do CIMI, dentre os quais me incluo, reuniram-se, em Brasília, com Rolf Hackbart, Presidente do INCRA. Foi esclarecido pelo Procurador Geral deste órgão, José Bruno Lemes, que o fato do Incra desapropriar aquela área não impede que num momento futuro a Funai reconheça, através de um procedimento administrativo, que aquela área se insira nos limites da terra indígena. Caso isso ocorra essa área já incorporada ao patrimônio da União será considerada terra indígena (tradicional ou reserva) sem maiores empecilhos burocráticos (CIMI, 2005). Ao término da reunião definiu-se por aguardar o parecer do Ministério Público Federal quanto ao procedimento de desapropriação das fazendas pelo INCRA para assentar os Krahô-Kanela e agendou-se nova reunião em Palmas para discutir os próximos passos (Idem). É importante mencionar que a medida de desapropriação de áreas para a criação da TI Krahô-Kanela gerou muito discussão entre os agentes e agências envolvidos. Divergências quanto a legalidade e eficácia da proposta, bem como possíveis desdobramentos no âmbito da política indigenista, perpassaram os debates intra e inter institucionais, sem que se chegasse a um consenso sobre a questão. O depoimento do procurador, ilustra o teor destas ponderações; Houve muita discussão, inclusive nossa [PRTO] com a 6ª Câmara que, a princípio foi contra, não concordava com essa solução principalmente porque a área comprada é dentro da área reivindicada [como terra tradicional]. O INCRA estaria pagando por uma área que, teoricamente, poderia vir a ser da União. Só que aí o presidente do INCRA assumiu a responsabilidade e falou que o mais importante era garantir o direito à vida das pessoas. Então, foi uma saída muito mais política do que jurídica e legal. (Álvaro Manzano, PRTO-MPF, 04/02/ 2010) 145 Figura 11: Audiência Pública para se discutir o direito de posse dos Krahô-Kanela sobre seu território tradicional. Fonte: Wellignton Antenor Indígenas Krahô-Kanela, Karajá-Xambioá e Guarani não permitem que o Administrador Regional da Funai em Gurupi componha a mesa de debates. Segundo eles, somente o presidente do órgão, Mércio Pereira Gomes, que foi convidado e não compareceu, teria poder de decisão acerca do assunto abordado. O lugar à mesa destinado ao Presidente da Funai foi ocupado por um cartaz com o seu nome, e a ele foram encaminhadas as perguntas do público, seguidas por um silêncio constrangedor.... que reproduziu, fielmente, o silêncio do órgão frente ao direito reivindicado, por mais de duas décadas, pelos Krahô-Kanela. Como diria Ramos (1998: 7) “(...) Para que certos atos tenham efeito político publicamente reconhecido eles devem ser exercidos como performances. É preciso que ele fique registrado de modo irrefutável”. 146 Enquanto a discussão prosseguia lentamente, a FUNAI não se manifestava a respeito, tampouco sinalizava para a publicação do Relatório Circunstanciado. Realizou-se, então, de 26 a 28 de outubro de 2005, na cidade de Palmas, uma mobilização organizada pelo CIMI – Regional GO/TO, com desdobramentos importantes para os Krahô-Kanela. A mobilização, que contou com o apoio e participação do movimento indígena do estado, constou de acampamento dos indígenas ao lado do prédio da Procuradoria da República; realização de uma Audiência Pública para se discutir o direito de posse dos Krahô-Kanela sobre seu território tradicional; uma passeata na principal avenida da cidade (av. JK); lançamento da Campanha pela Demarcação da Terra Indígena Krahô-Kanela e do Comitê pala Demarcação da Terra Indígena Mata Alagada. É possível citar, como resultados e desdobramentos desta mobilização: uma Ação Civil Pública e um Mandado de Segurança, ambos contra a União e a FUNAI, foram protocolados na Justiça Federal, pelo MPF e pelos Krahô-Kanela respectivamente; e, posteriormente, a realização de uma audiência em Brasília convocada pela Comissão de Direitos Humanos do Senado. Pela Ação Civil Pública, impetrada no dia 7 de novembro, o MPF solicita a antecipação da tutela, visando garantir aos Krahô-Kanela o direito à posse e o retorno imediato à terra tradicional; uma indenização ao grupo pelo danos morais sofridos; a avaliação das benfeitorias existentes sobre a terra reivindicada para futura indenização e desapropriação; a paralisação de todas as atividades predatórias na área, e muitas vezes denunciadas pelos indígenas; e a publicação do Relatório Circunstanciado para que o processo demarcatório da terra Mata Alagada possa transcorrer de acordo com dispositivos do Decreto 1775/96 (Álvaro Lotufo Manzano, Procurador da República, MPF/PRTO, Proc.Adm. PR/TO nº 08127.000145/97-29, 04 de novembro de 2005). O Mandado de Segurança, apresentado pelo próprio grupo indígena96, representado por Mariano Krahô-Kanela, cobra que a FUNAI dê encaminhamento ao processo administrativo de demarcação do seu território a partir da publicação do Relatório Circunstanciado. No entendimento do grupo indígena e de seus advogados, o presidente do órgão indigenista mantém-se omisso quanto à decisão de aprovar ou reprovar o relatório, razão pela qual, a argumentação do Mandado “se baseia, entre outros argumentos, no Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União, que determina que ‘o agente que silencia 96 “Esta é a primeira vez que uma comunidade indígena entra com um Mandado de Segurança para garantir que a Funai dê encaminhamento ao processo administrativo de demarcação de uma terra” (CARVALHO, 2005: 14). 147 indevidamente comporta-se com negligência, viola o dever funcional de exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo” (CARVALHO, 2005: 14) Após articulação entre indígenas, CIMI e senador Paulo Paim (PT-RS), então vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, este convocou uma audiência pública com o intuito de esclarecer as medidas e posicionamentos do órgão indigenista em relação à demarcação do território Krahô-Kanela e de buscar uma solução definitiva para esta demanda. Na audiência, que foi realizada no auditório da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, em Brasília, no dia 12 de dezembro de 2005, estiveram presentes: o grupo Krahô-Kanela; lideranças indígenas Apinajé, Karajá, Karajá-Xambioá, Guarani; representantes do CIMI; a Sub-Procuradora Geral da República, Dra. Deborah Duprat (coordenadora da 6ª Câmara do MPF); o antropólogo da MPF, Marco Paulo Froes e a representante da FUNAI, Nádja Havat Bindá97. Durante a audiência, o debate transcorreu em torno da tradicionalidade da terra Mata Alagada, explicitando as divergentes visões entre os presentes, sobretudo entre o órgão responsável pela aplicação da política indigenista – A FUNAI, e o responsável pela defesa e garantia dos direitos indígenas – o MPF. Enquanto a representante do órgão indigenista reafirmava a dificuldade em caracterizar a terra em questão como “tradicionalmente ocupada”, os demais participantes apontavam elementos no sentido inverso. O antropólogo da 6ª Câmara do MPF, Marco Paulo, recordou os dois estudos antropológicos realizados – Vieira (2003) e Almeida, G. (2004) – que, orientados pelos preceitos constitucionais e fundamentados antropologicamente, ao contrário, concluíram pela tradicionalidade do território Krahô-Kanela. Para o antropólogo a argumentação contrária à demarcação desta terra se baseia no conceito de imemorialidade, de que a terra teria que ter um vínculo anterior à formação do Estado brasileiro, que foi superado pela Constituição de 1988. Ela traz o conceito de tradicionalidade. Então, a forma como foi analisado o relatório é equivocada (12/12/2005, http://www.cimi.org.br/?action=read&eid=356&id=1612&system=news) 97 O presidente do órgão, Mércio Pereira Gomes, encontrava-se em viagem a Genebra “para tratar de questões indígenas” (Agência Senado, 12/12/2005). 148 Figura 12: Audiência no auditório da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Fonte: Cimi - Arquivo Da esquerda para a direita: Francisco Avelino, representante do Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas; Nadja Ravt Bindá, representante da FUNAI; Déborah Duprat, Sub-Procuradora Geral da República; Senador Paulo Paim, Vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos; cacique Mariano Krahô-Kanela; Paulo Machado, Assessor Jurídico do CIMI. A expectativa era que a FUNAI se posicionasse quanto à publicação do Relatório Circunstanciado, no entanto Nadja Bindá esclareceu que a presidência do órgão, através da assinatura do despacho nº 107/PRES/Funai/2005, já havia se manifestado contrária à demarcação da terra Krahô-Kanela por não considerá-la “terra indígena tradicionalmente ocupada” e dado por arquivado o processo administrativo de demarcação correspondente. A Sub-Procuradora Geral da República e Coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão Deborah Duprat reagiu imediatamente, afirmando que a identificação do grupo com o território, caracterizada pela luta em torno do seu reconhecimento e regularização, já justificaria o direito à sua demarcação. Ela ainda esclareceu que, não sendo possível demarcar a área, “o Estatuto do Índio confere à Funai outras possibilidades, como a de 149 criação de reserva” (Idem), proposta também defendida pelo assessor jurídico do CIMI, Paulo Machado Guimarães, que recordou a criação de reservas em governos anteriores. Porém, Nadja Bindá, representante da FUNAI, justificou que a possibilidade do órgão indigenista vir a demarcar a terra reivindicada como “reserva indígena” foi considerada inviável, pois o mesmo não disporia de recursos orçamentários para viabilizar a desapropriação e o pagamento das indenizações e demais custos. Após os depoimentos da Coordenadora do CIMI-Regional Goiás/Tocantins, Laudovina Pereira, e dos indígenas, que não escondiam a indignação com o posicionamento do órgão indigenista, o senador Paulo Paim, diante da clara intenção do deste órgão em “lavar as mãos”, agendou para o dia seguinte, uma reunião com o presidente substituto, Roberto Lustosa Costa, para a definição de encaminhamentos em relação ao processo administrativo de demarcação Krahô-Kanela. Por considerá-la ilustrativa acerca dos papéis e da interação entre os agentes e agências que se relacionaram neste campo de lutas ao longo do processo de reconhecimento dos direitos étnicos e territoriais do grupo Krahô-Kanela, transcrevo, na íntegra, a ata da citada reunião: Aos treze dias de dezembro de 2005, estiveram reunidos na Presidência da Fundação Nacional do Índio – Funai, Roberto Aurélio Lustosa Costa, presidente em exercício da Funai; cacique Mariano Krahô-Kanela; cacique Antônio Marcos Karajá; Adão dos Santos Apinajé; Luiz Karajá; Antônio Veríssimo Apinajé; Anoar Krahô-Kanela; Maria Aldereis Krahô-Kanela; Pexereca Krahô-Kanela; Ivan Guarany, presidente da Organização Indígena do Tocantins; Laudovina Pereira Aparecida [CimiRegional GO/TO]; Abrão Costa Krahô-Kanela;Rolf Hackbart, presidente do Incra; Senador Paulo Paim, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal; Deborah Duprat, sub-procuradora geral da República; José Aparecido Briner, coordenadorgeral de Assuntos Fundiários; Hernani Antunes Buciolotti, antropólogo da Coordenação Geral de Identificação e Delimitação-Funai; Luiz Fernando Villares e Silva, procurador-geral da Funai; Michel Blanco Maia e Souza, coordenador-geral de Assuntos Externos-Funai; José Cardoso, superintendente do Incra em Tocantins; Marco Paulo Fróes Schettino, antropólogo do Ministério Público Federal; Paulo Couto Teixeira, representante do Conic; bispo Maurício de Andrade, representante da Igreja Anglicana; Paulo Machado Guimarães, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário. Durante a reunião, foram adotadas, com aceitação do povo KrahôKanela, as seguintes resoluções sobre a regularização da área reivindicada pelos índios: 2 A Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio do despacho nº 107/PRES/Funai/2005, subscrito pelo seu presidente, Mércio Pereira 150 Gomes, delibera que a área reivindicada não é considerada Terra Indígena tradicionalmente ocupada. 3 Contudo, em cumprimento às determinações da legislação em vigor, a Funai proporá a constituição de uma Reserva Indígena na área pleiteada pelos índios, encaminhando as providências cabíveis junto ao Ministério da Justiça. 4 A constituição da reserva indígena deverá ser feita em duas etapas: 3 O Incra, por meio de seu presidente, Rolf Hackbart, se dispõe a repassar, ainda neste ano, ou até 31 de janeiro de 2006, recursos orçamentários para a aquisição, por parte da Funai e em caráter emergencial, de 2 (duas) fazendas, sendo Retiro do Cocal e Lago do Jacaré, com áreas de 3.103,0982 há e 4.040,8417 ha, respectivamente, localizadas no município de Lagoa da Confusão (TO), de propriedade do Senhor Marcus Vinicius Santana Lopes, dentro do território pretendido pelos Krahô-Kanela. A superfície total das duas fazendas é de 7.153,9399 ha. 4 O restante da área pleiteada pelos índios deverá ser implementado mediante dotação orçamentária extraordinária à Funai. Para tanto, esse pleito será encaminhado ao Ministério da Justiça. Para este fim, o senador Paulo Paim, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, compromete-se a interceder junto ao Governo Federal, apresentando emendas ao Orçamento de 2006, para que sejam disponibilizados os recursos necessários para a constituição da Reserva Indígena. 5 Tal proposta foi aceita pelos índios, com a condição de que, posteriormente, também seja regularizado como Reserva Indígena o restante da área total por eles reivindicada. 6 A Funai, por sua vez, aceita os termos ora negociados, desde que sejam disponibilizados recursos em seu orçamento de 2006, para a regularização da área restante não contemplada no acordo com o Incra” (FUNAI, Ata de reunião sobre regularização fundiária da área dos KrahôKanela, 13/12/2005. Grifos originais) 3.1.6 – Articulando redes sociais em Brasília Os encaminhamentos da reunião foram comemorados pelos indígenas como uma vitória. Todavia eles teriam que esperar ainda um bom tempo até a demarcação definitiva da terra. Iniciaram o ano de 2006 com nova mobilização: no mês de março, ficaram três dias acampados na sede da FUNAI em Gurupi, porque, até então, nenhuma medida havia sido adotada. Segundo o órgão indigenista, o orçamento da união, do qual sairia o recurso destinado ao pagamento das propriedades desapropriadas, ainda não havia sido votado. No dia 25 de abril, foi realizada uma reunião, da qual participaram as agências e agentes envolvidos no processo, e onde o INCRA comunicou que disponibilizaria pouco mais de oito milhões de reais – valor estipulado após vistoria e avaliação dos imóveis rurais pelo órgão em janeiro do ano em questão - para a compra das fazendas Lago do Jacaré e Retiro 151 do Cocal (terras destinadas à criação da reserva), e mais cerca de dois milhões para projetos de sustentabilidade a serem desenvolvidos pelos Krahô-Kanela. Figura 13: Mobilização em frente a Administração Executiva Regional da FUNAI de Gurupi Fonte: Wellington Antenor A negociação de compra da terra, contudo, permaneceu estagnada. Caberia à FUNAI solicitar oficialmente o recurso ao INCRA, para que este, então, efetuasse o repasse do montante já estabelecido. Como a solicitação por parte da FUNAI não aconteceu, em 28 de julho os indígenas decidiram ocupar parte de uma área da Mata Alagada, montando acampamento às margens do rio Formoso, como uma forma de pressionar pela conclusão do processo. Somente em 1º de agosto, o órgão indigenista encaminha ofício ao presidente do INCRA solicitando o destaque orçamentário para a aquisição das terras e a demarcação da Terra Indígena Krahô-Kanela. (...) Dirijo-me a V. Exa. com o fito de solicitar, neta etapa final, a continuidade da parceria travada entre a FUNAI e o INCRA, com celebração de ato conjunto, para prosseguimento dos encaminhamentos de aquisição das Fazendas Lago do Jacaré e Retiro do Cocal e sua destinação à posse e ocupaçãp daquela comunidade para seu usufruto exclusivo, o que importará repasse de valor correspondente à R$ 8.052.634,37 (oito milhões, cinqüenta e dois mil, seiscentos e trinta e quatro reais e trinta e sete centavos) a esta Fundação, conforme laudos de 152 avaliação constantes nos Processos nºs 54.400.001117/04-69 e 54.400.001118/04-11. (...) (GOMES, Ofício nº 386/PRES, 01/08/ 2006). A Portaria conjunta autorizando a obtenção das fazendas – um total de 7.153 hectares – para a constituição da TI Krahô-Kanela foi assinada pelos presidentes do INCRA, Rolf Hackbart, e da FUNAI, Mércio Pereira Gomes, no dia 17 de agosto de 2006 e publicada no Diário Oficial da União no dia 30 de agosto98. Ambos os órgãos teriam se comprometido que até o final do ano as propriedades seriam repassadas legalmente aos indígenas (MACEDO, 2006). Desde a assinatura da Portaria conjunta, a presidência da FUNAI tinha conhecimento de que o próximo passo com vistas à continuidade dos trâmites legais do acordo que estava sendo firmado caberia à Procuradoria Jurídica desta Fundação, conforme notícia postada no próprio site: “a Funai fica encarregada de elaborar e encaminhar ao Ministério da Justiça a minuta dos decretos para desapropriação dos dois imóveis(...)” (www.funai.gov.br/ultimas/noticias/2_semestre_2006/Agosto/un0818_002.htm). Tal “minuta” consistia no documento que, posteriormente, deveria ser publicado no Diário Oficial da União como Decreto do Presidente da República, declarando de interesse social, para fins de desapropriação, a área das duas fazendas para posse e usufruto dos Krahô-Kanela. Contudo, passaram-se três meses sem que o órgão indigenista encaminhasse a referida minuta. Considerando-se que esta ainda deveria ser analisada pelo Ministério da Justiça e pela Casa Civil para que então, finalmente, pudesse ser assinada pelo Presidente Lula e publicada em forma de decreto, havia um risco real do recurso destinado à compra dos imóveis para a criação da TI voltar para os cofres da União. Isto porque o decreto de desapropriação da área deveria ser publicado ainda em 2006, caso contrário, o dinheiro não poderia “nem mesmo ser empenhado pela Funai para pagamento no início do próximo ano fiscal” (CIMI, 2006a). Tal inércia institucional pode ser explicada pela leitura crítica de Alcida Rita Ramos, para quem o indigenismo brasileiro “(...) também se faz à base de acessos de distração. Distração (para adocicar o crime de omissão) é o que não tem faltado ao Estado brasileiro no que toca a proteção dos direitos indígenas pela vida e pela terra” (RAMOS, 1998: 2). 98 Ver anexo 3: Portaria Conjunta nº 5, de 17 de agosto de 2006. 153 Este “descuido” por parte da FUNAI representou para o grupo Krahô-Kanela, que já estava acampado em uma área da terra, o risco de nova expulsão. Os proprietários atuais das fazendas haviam concordado com a desapropriação e os indígenas puderam, após a assinatura do acordo, voltar a viver em um trecho da terra. Com a demora da Funai para o encaminhamento das medidas para a desapropriação, os fazendeiros comunicaram aos indígenas, na semana passada, que pretendem entrar com uma ação de reintegração de posse, solicitando a retirada dos KrahôKanela da terra (Cimi, 2006b) Foi necessário, então, que lideranças Krahô-Kanela, acompanhadas por mim, na ocasião representante do CIMI-Regional GO/TO, viajassem para Brasília, no dia 19 de novembro, para uma nova articulação, que contou também com a participação efetiva do Secretariado Nacional do CIMI. Esta tinha por objetivo retomar contatos com parlamentares solidários com a reivindicação dos Krahô-Kanela para que eles pudessem intervir gestionando junto às instancias federais competentes – Ministério da Justiça e Casa Civil, agilidade na análise e tramitação da minuta. A articulação em Brasília consistiu na participação em audiências, reuniões e, também, em conversas rápidas e informais com diversos agentes/interlocutores. Considerando que os agentes sociais compõem redes que atuam por intermédio das instituições às quais são vinculados99, dentre os agentes mobilizados e que se comprometeram em acionar suas redes – seja através de conversa pessoal, telefonema ou envio de ofício – influindo assim para um desfecho favorável aos Krahô-Kanela, podemos citar: o senador Paulo Paim e seu assessor Paulo André; Paulo Valle, Chefe de Gabinete do Secretário Especial de Direitos Humanos; deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP); os senadores Eduardo Suplicy (PT-SP), Ideli Salvatti (PT-SC), Sibá Machado (PT-AC); a assessora do senador Tião Viana (PT-AC), Adriana Mariz; deputada Iriny Lopes (PT-ES) e sua assessora Sonia Hipolitto; os deputados Carlos Abicalil (PT-MT), Edson Duarte (PVBA), Eduardo Valverde (PT-RO) Perpétua Almeida (PcdoB-AC) e Maria do Rosário (PT/RS); além dos membros da Comissão de Justiça e Paz da CNBB, Carlos Moura, Gilberto e Daniel Seibel. 99 Esta análise se deve à seguinte proposição Faleiro (2005): “Os atores também operam como rede, em função desta não apresentar limites, sejam eles hierárquicos, institucionais, e de atuar diretamente no fluxo que findará na decisão apresentada em nome da instituição” (FALEIRO, 2005: 310). 154 Figura 14: Lideranças Krahô-Kanela e representantes do CIMI reunidos com o Senador Paulo Paim Fonte: Cimi - Arquivo Em síntese, após audiência com Senador Paulo Paim, no dia 20 de novembro, este contatou o presidente da FUNAI que, pressionado, informou que a situação estava sendo resolvida, comunicando que encaminharia ao Ministério da Justiça, naquele mesmo dia, a minuta do Decreto de desapropriação dos imóveis rurais para a criação da TI, o que foi efetivamente feito. No dia 28, por intermédio da deputada Iriny Lopes (PT-ES), o Ministro da Justiça, Márcio Thomas Bastos, recebeu, em audiência as lideranças Krahô-Kanela, a deputada e assessores do senador Paulo Paim (Paulo André) e Tião Viana (Adriana Mariz) para tratar da urgência do caso. Na ocasião, o Ministro afirmou estar atento ao prazo, informando ainda sua intenção em manter o fundamento jurídico apresentado pela Funai. A documentação permaneceu sob análise da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça até o dia 05 de dezembro, quando foi assinada pelo Ministro e enviada para a Presidência da República. 155 Finalmente, em 8 de dezembro de 2006, foi publicado, no Diário Oficial da União, o Decreto assinado pelo Presidente Lula, o qual “declara de interesse social, para fins de desapropriação, os imóveis rurais destinados a assentar o Grupo Indígena Krahô-Kanela, no município de Lagoa da Confusão, no Estado do Tocantins” (Decreto de 7 de dezembro de 2006)100. 3.2 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO RECONHECIMENTO E “CRIAÇÃO” DA TI KRAHÔ-KANELA DE Aqui se fazem necessárias algumas considerações acerca do processo de criação da terra Krahô-Kanela e da atuação ambígua do órgão indigenista tendo em vista os direitos garantidos aos indígenas pela Constituição Brasileira e pela Convenção 169. Primeiramente, como a FUNAI não reconheceu a tradicionalidade da Terra Mata Alagada – porque se baseou no conceito de “imemorialidade” e “vínculo original”, já superados pela Constituição de 1988, em detrimento ao de “tradicionalidade” – apenas uma pequena parte desta pôde ser demarcada através de compra e desapropriação (7.153 dos 31.925 hectares propostos pelo Relatório Circunstanciado). A decisão da FUNAI em não reconhecer a referida terra como “tradicionalmente ocupada” decorre, antes de mais nada, do fato de este órgão sempre ter questionado a identidade étnica dos Krahô-Kanela, conforme Schettino e Amorim (2005) já haviam avaliado e como bem demonstram os documentos aqui analisados. O depoimento de um dos meus interlocutores, cuja participação ao longo do processo descrito foi direta e efetiva, ilustra esta conclusão: Até bem pouco tempo atrás o próprio Mércio falava: ‘que Krahô-Kanela, que nada!’. Nessa época do Mércio, a FUNAI não mexia uma palha pra ajudar o grupo. Se não fosse o INCRA ter intercedido pra buscar essa solução de comprar uma parte da terra, eles [os Krahô-Kanela] estariam até hoje na casa do índio em Gurupi. (...) Mesmo depois de tudo assegurado, todo o dinheiro empenhado, a FUNAI não tava se mexendo. Ia virar o ano e o dinheiro seria devolvido. Aí o pessoal do CIMI foi lá, praticamente pegou o processo pras coisas saírem (Álvaro Manzano, PRTO, 04/02/ 2010) O posicionamento do então presidente da FUNAI era conhecido por todos os agentes, à época, mobilizados pela demarcação territorial da terra Mata Alagada. Ele não 100 Ver anexo 4: Decreto de 7 de dezembro de 2006. 156 destoa do entendimento do órgão assumido nos documentos aqui analisados. A atitude da FUNAI, ao colocar em suspeição a identidade étnica Krahô-Kanela, nos remete a uma relação colonial: o órgão indigenista, como numa prática de dominação, atribui a si o poder legítimo de nomear e classificar, criando o estereótipo colonial do “índio”, de forma que o indigenismo, enquanto filosofia social do colonialismo, será marcado por essa dimensão negadora das identidades indígenas. Para Souza Lima (1995) o indigenismo pode ser entendido como um conjunto de idéias (e ideais, i.e., aquelas elevadas à qualidade de metas a serem atingidas em termos práticos) relativo à inserção de povos indígenas em sociedades subsumidas a Estados nacionais, com ênfase especial na formulação de métodos para o tratamento das populações nativas, operados, em especial, segundo uma definição do que seja índio” (SOUZA LIMA, 1995: 14,15. Grifos do autor). Em outras palavras, o indigenismo se sustenta na ideologia discursiva de um modelo previamente definido e relativamente rígido do que deva ser o “índio”. A este são destinados as políticas indigenistas e o poder tutelar enquanto prática de dominação. Por tomar o indigenismo como um conjunto de ideias e ideais, como um conjunto de saberes e práticas discursivas, alguns autores101 traçam um paralelo entre o “indigenismo” e o “Orientalismo” de Said (1990). Em “Orientalismo”, Said retoma a história dos povos orientais e a forma como suas imagens foram construídas. O autor revela que a representação "ocidental" do que é o "Oriente" tem pouco a ver com as culturas e os povos que de fato vivem nesse local, sendo mais uma busca de diferenciação e uma tentativa de justificação do poder colonial do Ocidente sobre o Oriente. O argumento central de Said é que o Oriente é uma invenção ocidental que foi sendo construída e reconstruída ao longo do tempo e que, de certa forma, também construiu e legitimou concomitantemente a própria identidade do Ocidente. As duas entidades geográficas - Oriente e Ocidente – apoiam e refletem uma a outra (SAID, 1990: 17). Segundo o autor, “o oriente foi orientalizado não só porque se descobriu que ele era ‘oriental’ (...) mas também porque podia ser – isto é, permitia ser – ‘feito’ oriental” (Idem). Said descreve o orientalismo como um discurso; uma rede de interesses a fixar uma fronteira separando o “nós”, ocidentais, dos “outros”, orientais; um estilo de pensamento que desqualifica este “outro”, criando estereótipos e preconceitos; enfim, como uma 101 Como Souza Lima (1995), Favre (1996), Ramos (1998), e Silva (2009a). 157 instituição organizada para negociar, dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente. Ele argumenta que (...) sem examinar o Orientalismo como um discurso, não se pode compreender a disciplina extremamente sistemática por meio da qual a cultura européia foi capaz de manejar – e até produzir – o Oriente política, sociológica, militar, ideológica, científica e imaginativamente durante o período do pós-iluminismo (SAID, 2007: 29. Grifo do autor). Segundo o autor, o conhecimento construído pelos orientalistas serviu como justificativa da dominação europeia principalmente durante o período em que franceses e ingleses empreenderam seus projetos coloniais tanto na Ásia quanto na África. Tal justificativa sustentava-se no discurso ideológico de que haveria “raças inferiores”, “povos servis ou subordinados” em territórios que precisavam se dominados e explorados. Inspirando-se em Said, Ramos (1998) sintetiza a metáfora do indigenismo como um “orientalismo à americana” a partir das representações em torno da construção do que seja o “índio”. O indigenismo é um fenômeno político no sentido mais amplo do termo. Ele não é limitado pela elaboração de políticas estatais ou por interesses privados ou pela implantação prática de políticas indigenistas [...]. O que a mídia escreve e divulga, romancistas criam, missionários revelam, ativistas de direitos humanos defendem, antropólogos analisam, e índios negam ou corroboram sobre o índio contribui para um edifício ideológico que toma a “questão indígena” como argamassa. Escondendo-se por detrás destas imagens do índio, resultante da combinação caleidoscópica de perspectivas, é sempre a semelhança – ou, mais apropriadamente, dessemelhança – do brasileiro. O índio como espelho, quase sempre invertido, é [...] uma metáfora recorrente do campo interétnico. Em outras palavras, o Indigenismo está para o Brasil como o Orientalismo está para o Ocidente. O paralelo entre Indigenismo e Orientalismo é fácil de notar: assim como “o Oriente é Orientalizado”, também o índio é indianizado (Ramos, 1998: 06 apud Silva 2009a: 15). Este “indigenismo brasileiro”, espécie de ideologia dominante nos quadros da FUNAI, baseia-se, portanto, na ideia de uma “indianidade”, como conceituou Oliveira (1998, 2003). Este termo se refere a um conjunto de normas e prescrições a respeito do que deve ser “o índio”, impostas no passado por meio da relação tutelar como forma de homogeneizar a diversidade étnica, e incorporadas – estrategicamente e com fins políticos – pelos grupos indígenas, por exemplo, através do aprendizado e reprodução de categorias 158 anteriormente desconhecidas, como “tribo”, “cacique”, “pajé” (OLIVEIRA, 2003: 174)102. Em outras palavras, é uma ideia construída – na interação entre Estado, via agência de contato, e grupos indígenas – dos atributos que caracterizariam a etnicidade de determinado grupo. Não obstante, Oliveira observou a impossibilidade de diversos grupos que não mantiveram essa relação tutelar com o Estado exibirem essa indianidade genérica (OLIVEIRA, 2003: 175), como é o caso dos Caxixó, analisado pelo autor e dos KrahôKanela, razão pela qual o órgão indigenista teria “dificuldades” em estabelecer relações junto aos mesmos. A construção dessa indianidade tem, como pano de fundo, a concepção naturalizada de cultura que alimenta “os debates sobre o grau de mudança que ainda seria razoável admitir naqueles que fossem reconhecidos como indígenas” (OLIVEIRA, 1999: 116). Quando estes fogem da imagem criada e não mais apresentam culturas autênticas “logo entram em cena suspeitas quanto a uma manipulação falseadora, seja elaborada pelo próprio interessado, seja por terceiros (funcionários do órgão indigenista, antropólogos, missionários, e organizações não governamentais)” (Idem). Tem-se, a partir daí, a explicação para o posicionamento discriminatório da FUNAI frente ao reconhecimento dos direitos étnicos e territoriais dos Krahô-Kanela. Tal posicionamento foi reforçado durante a conversa informal que tive com uma antropóloga do órgão, ocasião em que a mesma desqualificou os indígenas enquanto sujeitos e protagonistas das próprias ações, deixando claro sua opinião em relação a este grupo. Para ela, os Krahô-Kanela seriam agricultores, mas, o movimento indigenista (referindo-se ao CIMI) e o MPF estariam promovendo sua etnicidade e naturalizando sua relação com o território. Podemos inferir que sua opinião expressa a do órgão, tendo em vista o único encaminhamento proposto no decorrer do processo de reconhecimento territorial: transferir a responsabilidade para o INCRA. 102 Creio que outro exemplo dessa indianidade nos é dado através da apreensão do toré pelos índios do Nordeste como forma de afirmação identitária. Grunewald (2004) relata que quando os Atikum da Serra do Umã recorreram ao inspetor do SPI para pleitear o direito sobre suas terras, foi-lhes imposto a apresentação de um toré como forma de atestar a etnicidade do grupo. De acordo com o autor, o inspetor já tinha conhecimento de que naquela serra habitavam índios, mas era necessário comprová-lo através do toré, pois, este representaria “a conscientização de que eles eram índios” (Raimundo Dantas Carneiro, chefe da Inspetoria Regional do SPI apud GRUNEWALD, 2004: 152). E não bastava simplesmente a apresentação do toré, este seria ainda comparado com o dos índios Fulni-ô de Águas Belas, considerado “o primitivo”, “o verdadeiro toré” (idem). 159 Oliveira (2006: 48, tradução livre), no entanto, reflete que “a despeito do indígena paradigmático ser aquele que estabelece contato inicial com as frentes de atração da Funai, o chamado ‘índio puro’, no Brasil contemporâneo, existem outras formas de ser indígena”. O autor esclarece que: Las tierras indígenas no son resultado de frentes de atracción que se transforaron, progresivamente, em puestos fijos cuyo entorno fue demarcado. Los indígenas que a lo largo de las últimas tres décadas exigen tierra a la Funai son indígenas que provienen de las haciendas, seringales y periferias urbanas, que ya tuvieram experiências negativas com los patrones blancos y que tratan de iniciar um ‘viaje de vuelta’ com respecto a sus raíces familiares y colectividades de origem. Estos indígenas no descienden em línea directa de los ‘indígenas bravos’ (de la época colonial), que darian origen a los ‘indios aislados’ (del siglo XX). Muy por el contrario, fueron múltiples las formas de territorialización sufridas por los pueblos indígenas, incluyendo las aldeas misioneras, el establecimiento em haciendas com formas diversificadas de relación laboral y una forma de existência horizontalizada en el seno de un campesinato marginal de alguma forma articulado com La economia dominante a través de los mercados locales. Hoy en dia, la gran mayoría de los indígenas ya nació em aldeas y Puestos Indígenas, por lo tanto directamente subordinados a la administración tutelar. Aún aquellos que no nacieron dentro de estas unidades político-administrativas han tenido comúnmente la experiência de haber vivido como campesinos, agregados o trabajadores volantes relacionados com las haciendas y los mercados en las ciudades del interior (OLIVEIRA, 2006: 48,49). A demarcação de parte do território Krahô-Kanela só foi possível devido à iniciativa e boa vontade do presidente do INCRA, Rolf Hackbart. Segundo Hackbart, o apoio do INCRA para a demarcação desta terra indígena foi um gesto simbólico, “importante no contexto de ação do governo para o ordenamento do país, buscando resolver problemas concretos” (CIMI, 2006: 10). Em outro momento, ele explica que a parceria entre os órgãos para a demarcação da Terra Krahô-Kanela foi uma “medida de governo” inserida no contexto de ordenamento territorial. Com o ordenamento territorial, a gente estabelece o que é área indígena, reserva ambiental, o que serve para assentamento da reforma agrária. Esse é mais um passo dessa medida. Se é terra pública e está ocupada, o próximo passo é destinar essa terra. E essas terras precisam ser destinadas àqueles que precisam para produzir e ter uma vida digna (http://www.funai.gov.br/ultimas/noticias/2_semestre_2006/Agosto/un08 18_002.htm). 160 O depoimento do Superintendente Regional do INCRA no estado do Tocantins não destoa do então presidente deste órgão: Eu acho que o INCRA entrou no olho do furacão. Não foi escolha nossa... eu acho que também foi forçado um pouco pelo próprio movimento dos trabalhadores, da comunidade indígena com os trabalhadores; e, como envolvia nossa comunidade dos assentamentos, eles recorriam a gente pra se proteger também. E, a partir disso a gente começou a conversar e ter mais proximidade com a FUNAI. Mas, eu penso que foi uma saída a nível de governo. Eu acho que naquele período o INCRA tinha condições de contribuir. (...) A FUNAI, naquela época, pelo que a gente pôde perceber, não tinha nem capacidade operacional, nem recurso pra atender aquela demanda (José Roberto R. Forzani, Superintendente Regional do INCRA, 04/02/2010). Consideremos que o apoio do INCRA para a demarcação de parte do território reivindicado pelos Krahô-Kanela se deve, em grande parte, à pressão exercida pelos assentados que já não mais aceitavam a presença dos indígenas no P. A. Loroti, e cobravam do órgão uma medida que solucionasse o conflito. Tal conflito, que envolveu diretamente as duas instituições – e foi crucial para a demarcação da TI Mata Alagada – se deve ao posicionamento da FUNAI em negar os direitos étnicos e territoriais pleiteados pelos Krahô-Kanela. Ainda que se argumente que foi uma “decisão de governo”, e que o desdobramento do conflito tenha conferido uma aparente coesão ao Estado e uma eficácia simbólica ao acordo103, soluções dessa natureza não deveriam, ao menos em tese, se tornar uma prática, já que INCRA e FUNAI são dois órgãos da administração pública, cada qual com um universo simbólico institucional, e, principalmente, que operam com categorias de gestão territorial diferentes – terra indígena e assentamento – e, por conseguinte, com grupos sociais distintos. Ademais, o problema não foi resolvido por essa solução emergencial; recordemos que a eclosão recente do faccionalismo (descrito no segundo capítulo) foi 103 Ver Faleiro, 2005. O autor analisa as percepções da FUNAI e do IBAMA a respeito da ocupação do Monte Pascoal pelos índios Pataxó e de que forma este fato gerou uma aparência de coesão ao Estado. Faleiro explica que, no primeiro momento, a retomada do Monte Pascoal pelos indígenas gerou um conflito entre duas as instituições. Posteriormente, em um contexto histórico bem específico - as celebrações dos 500 anos -, este conflito foi mediado pelo MPF, de modo que “a sociedade percebeu o conflito intra-Estado como algo ‘em fase de resolução’, ‘um desvio inusitado que aconteceu, mas que volta à sua normalidade’ (...)” (FALEIRO, 2005: 318). É o entendimento de que o conflito está sendo tratado e encaminhado para uma solução satisfatória “que garante tanto a eficácia da administração pública, quanto a coesão do Estado, sem com isso prejudicar as forças políticas que atuam em prol desta ou daquela política” (Idem: 319). Faleiro concluirá: “a eficácia está na representação da política pública para a sociedade, ou seja, o Estado é coeso se a sociedade o percebe assim” (Idem). 161 analisada por Schettino e Santos (2009) como tendo sua raiz “nas vicissitudes da longa e penosa luta do povo Krahô-Kanela pelo acesso à terra” e que este não foi totalmente assegurado, já que a maior parte do território tradicional teve seus limites excluídos pelo acordo de criação da TI. Importa destacar, portanto, como a omissão histórica do órgão indigenista em relação aos Krahô-Kanela somente foi superada a partir da atuação conjunta e interrelacionada de movimentos sociais, operadores do Direito e administradores de outros órgãos públicos. Neste contexto, por mais que o aparato jurídico-normativo tenha sua importância, é possível afirmarmos que a atuação política – em sentido amplo – desses agentes teve maior relevância, propiciando a busca de soluções a partir de uma cuidadosa “manipulação” dos meandros da legislação e da burocracia estatal. 162 CONSIDERAÇÕES FINAIS As etnografias são as construções analíticas de acadêmicos; os povos que eles estudam não o são. É parte do exercício antropológico reconhecer quanto a criatividade desses povos é maior do que aquilo que pode ser compreendido por qualquer análise singular (STRATHERN, 2007:23). A partir desta epígrafe, sinto-me encorajada a confessar não ter sido possível esgotar as questões propostas por este trabalho etnográfico. Por um lado, a dificuldade em recortar o objeto e, a partir dele, aprofundar a análise - reflexo da ausência de estudos etnográficos sobre os Krahô-Kanela, o que me fez sentir a necessidade de enfocar aspectos que não estavam previstos como centrais para a reflexão inicialmente proposta. Por outro lado, a própria natureza dos fenômenos selecionados para análise – construção social da identidade, constituição de fronteiras étnicas, atuação do Estado – por serem processuais, porquanto, tão dinâmicos que, se durante a realização do meu trabalho de campo lidei com uma determinada configuração do campo político, pouco tempo depois, no período da escrita etnográfica, tive notícias de uma nova (re) configuração. Neste contexto, pretendo agora sintetizar o que foi abordado, sinalizando, ao mesmo tempo, questões relevantes que, conforme meu entendimento, o processo vivido pelos Krahô-Kanela, traz à discussão antropológica. Procurei demonstrar neste trabalho que a identidade étnica Krahô-Kanela, constantemente questionada por não ser uma identidade primordial, é uma identidade legitimamente construída. Legítima pela crença subjetiva em uma origem comum (WEBER, 1991), o que os leva ao ato contínuo de demarcar fronteiras no decorrer das interações socioculturais (BARTH, 2000). Isso porque, a seu modo, vêm ressignificando símbolos e atualizando suas ações sociais (BOURDIEU, 1989), permitindo a configuração de um horizonte político comum e, por conseguinte, de um sentimento de unidade e pertencimento. Mas, sobretudo, porque, a partir de leituras que fazem de si próprios, se autoidentificam como Krahô-Kanela. Então, por que a contínua violação dos direitos do grupo Krahô-Kanela à autoidentificação étnica – ou seja, do direito de ser o que são - e à demarcação de sua terra tradicional? O depoimento da Sub-Procuradora Geral da República Deborah Duprat, 163 durante a audiência pública realizada no Senado em 12/12/2005, sintetiza parte da trajetória deste grupo e nos dá pistas para responder a este questionamento: Foi um dos maiores dramas que eu já vi na história dos povos indígenas deste país. Tinham sido expulsos de suas terras, e os funcionários da Funai os colocaram na Ilha do Bananal. No processo de desocupação, foram considerados não-indios e clientes da Reforma Agrária. No assentamento para onde foram, eram discriminados porque eram índios. Ou seja, ora eram descriminados porque não eram índios, ora porque eram índios . É preciso considerar a violação de direitos expressa nos posicionamentos e na atuação da FUNAI com relação aos Krahô-Kanela como fazendo parte do jogo político presente no aparelho do Estado, que faz o órgão indigenista estatal agir de modo subserviente aos interesses dos agentes sociais com maior poder de comando sobre as decisões da administração pública. Pode-se asseverar que a medida arbitrária adotada pela FUNAI reflete o atual momento de recrudescimento das contestações e “pressões sobre os direitos étnicos e territoriais” (ALMEIDA, A.W. 2007: 35) no contexto nacional. De acordo com o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, estaria em curso uma “campanha de desterritorialização”, com vistas à anulação de direitos territoriais já conquistados e à liberação das terras dos povos tradicionais para grandes empreendimentos (Idem: 36). A estratégia utilizada pelo Estado para promover e justificar tal “campanha” seria, justamente, negar o reconhecimento oficial das identidades coletivas (Ibidem). Lembremos que o grupo foi expulso de sua terra por uma poderosa empresa e que parte do território foi posteriormente readquirido através da compra de uma área que estava nas mãos de um grande pecuarista. Ressalto que o Tocantins é um estado onde predomina o latifúndio e o agronegócio, sobretudo destinado à monocultura do arroz e soja, além da pecuária, com consequências diretas sobre os indígenas e outros povos tradicionais. Emblemático, neste sentido, é o fato de a senadora Kátia Abreu (ex-DEM, atual PSD), tida como uma das maiores representantes do agronegócio no Congresso Nacional, ter sido eleita pela população do estado. A análise de Almeida, A. W. (2007), em parte, é convergente à reflexão feita pelos antropólogos do MPF em relação aos Krahô-Kanela: (...) a tentativa de delegar ao Incra a competência pela garantia da Terra Krahô-Kanela, reedita o pano de fundo que perpassou, e ainda perpassa, a 164 relação do órgão indigenista com esse povo indígena, qual seja, negarlhes o reconhecimento da identidade étnica mesmo que a um preço altíssimo para os Krahô-Kanela que, há anos, sofrem as consequências dessa esquiva institucional (SCHETTINO e BAPTISTA, 2005: 9). Entretanto, o povo Krahô-Kanela, assim como outros grupos autoinvestidos de uma identidade específica - e aqui me refiro a indígenas, quilombolas, quebradeiras de cocobabaçu, ribeirinhos, caboclos, piaçabeiros, peconheiros, dentre outros - estão na contramão deste projeto nacionalista, dando visibilidade a suas formas próprias de organização e reivindicando direitos a elas correspondentes (ALMEIDA, A.W., 2006) . Esta conjuntura vem impondo a necessidade de uma renovação das abordagens teóricas e dos instrumentos de investigação antropológica e, principalmente, a necessidade do antropólogo repensar sua própria prática e “autoridade etnográfica” (tendência esta em curso desde os anos oitenta, com o advento da antropologia crítica ou pós-moderna, mas ainda insuficiente em fornecer respostas às contradições sociais e políticas que atravessam o país). O foco nas pesquisas antropológicas sobre os indígenas que apresentam maior “distintividade sociocultural” (geralmente grupos da Amazônia) em relação à nossa sociedade, muitas vezes se dá em detrimento aos estudos de grupos com baixo grau de “distintividade”, como é o caso dos índios do Nordeste e tantos outros que lutam pelo reconhecimento étnico e territorial, a exemplo dos Krahô-Kanela. Enquanto os primeiros são legitimados por reconhecidas descrições etnográficas, os poucos estudos referentes aos segundos são considerados “secundários” e “marginais”. Segundo Oliveira (1999: 99), esse fato seria reflexo de um certo desconforto quanto a populações indígenas com baixo grau de distintividade cultural, preconceito enraizado na construção de objetos teóricos e no estabelecimento de normatividades científicas. Para a perspectiva dos estudos americanistas, no entanto, frequentemente a pesquisa e a reflexão sobre sociedades marcadas por processos históricos de mudança e por mecanismos de transferência, dominação e integração sociocultural não oferecem, em geral, muito interesse ou rentabilidade teórica. Para o autor, por conta deste preconceito, alguns pressupostos teóricos foram cristalizados e passaram a operar como “verdadeiros obstáculos à consecução das pesquisas com populações indígenas fortemente integradas em contextos regionais” (OLIVEIRA, 1999: 102, 103). Razão pela qual ele problematiza os limites dos estudos 165 americanistas e propõe que lancemos mão de uma “antropologia histórica” enquanto estratégia metodológica capaz de apreender situações e processos relacionados aos mais diversos fenômenos sociais (OLIVEIRA, 1999), como, no caso aqui analisado, o fenômeno da etnicidade. Como um desses obstáculos, Oliveira aponta o fato do senso comum e erudito vide os entendimentos de certos antropólogos em relação aos Krahô-Kanela, problematizado ao longo deste trabalho - “supor que os índios (tal como falamos deles hoje) sempre existiram” (OLIVEIRA, 1999: 105). (...) não podemos supor – muito menos instilar ou reforçar em outros (juízes, legisladores, indigenistas, nos próprios índios ou no público em geral) uma tal crença – de que aqueles índios com que estamos lidando concretamente, em nossas pesquisas ou nas ações cotidianas sempre existiram e que são, portanto, anteriores à constituição da nação brasileira, e nem de que, se dispuséssemos de lunetas mais possantes, ou ainda se encontrássemos algum registro esquecido de um cronista colonial, poderíamos localizá-los perfeitamente no passado, há séculos de distância, bastante modificados, é verdade, mas ainda reconhecivelmente neles. (...) Algumas identidades indígenas já estão registradas em crônicas do século XVI e XVII, nos primeiros contatos com as feitorias, com as missões religiosas ou com a frente de expansão da pecuária; outras são de elaboração recente, resultando de processos históricos igualmente conhecidos e estudados, que remontam alguns à década de 1940 e outros aos anos 70/80 (Idem: 105, 106). É por isso que, ao refletir sobre as atribuições do antropólogo no âmbito da realização de laudos periciais, Oliveira (1999) alerta sobre as dificuldades e implicações acerca da definição de um grupo étnico. Espera-se que o antropólogo seja capaz de identificar e classificar um grupo, “tal qual como os estudiosos da natureza são capazes de produzir, pela morfologia de animais e plantas, a identificação e a classificação de um exemplar do mundo natural (...)” (Idem: 169), mas, adverte o autor, (...) as unidades culturais não são claramente recortadas, descontínuas e permanentes como os gêneros e espécies naturais. Sobretudo, as unidades sociais mudam com uma velocidade e com uma radicalidade sem precedentes no âmbito do processo de evolução natural. As unidades sociais abandonam velhas formas culturais, recebem (e reelaboram) algumas de outras sociedades e ainda criam formas novas e distintas. Neste quadro de mutabilidade e instabilidade, como seria então possível assegurar que as unidades de que se fala são ainda as mesmas? (Idem) Nos termos de Gallois (2000: 8), as unidades étnicas e territoriais, tais quais as conhecemos hoje, devem ser consideradas como sendo de constituição recente e como 166 resultado de interações das mais diversas (quer seja com outros grupos étnicos, quer seja com segmentos da sociedade nacional). A autora esclarece, Os Xikrin no rio Bacajá, os Waiãpi na bacia do rio Amapari, os Tiriyó do Parque Tumucumaque, etc.... não se constituem como uma continuidade de sociedades ou culturas que se mantêm ou reproduzem desde um passado imemorial. Ao contrário, nesses casos como em inúmeros outros, essas unidades étnicas foram ou estão sendo construídas há poucas décadas, no decorrer do processo de encapsulamento dos grupos formadores dessas etnias em áreas que passam a ser reconhecidas pelo estado como ‘áreas indígenas’, ou ‘zonas tribais’ (Idem) De modo que não cabe às Ciências Sociais, tampouco ao antropólogo, a definição irrefutável de um grupo ou uma identidade social. Os critérios definidores deste nos são dados pelos próprios agentes sociais. O papel do antropólogo, neste caso, não é fazer “controles de identidades” (CUCHE, 2002: 188), mas, “(...) elucidar as lógicas que levam os indivíduos e os grupos a identificar, a rotular, a categorizar, a classificar e a fazê-lo de uma certa maneira ao invés de outra” (Idem). De modo que procurei demonstrar que os Krahô-Kanela assim se autoidentificam por serem descendentes diretos de Alfredo Krahô e Inês Kanela e que a forma com que se investiram dessa identidade foi concomitante a um processo de territorialização e mobilização com vistas ao reconhecimento e demarcação de sua terra tradicional. Ou seja, além do respeito e da adesão a prescrições morais e religiosas, foi o fato de identificarem-se com um objetivo comum – reconquistar a terra Mata Alagada – que ações e estratégias foram sendo desenvolvidas, fortalecendo o vínculo e a coesão entre eles e a afirmação dessa identidade étnica. Esta reflexão é fundamental, pois demonstra a “dimensão utópica e projetiva (e não apenas política) presente na construção do fenômeno da etnicidade” (OLIVEIRA, 1999: 118). Ainda, ao se pensar na definição de um grupo étnico é preciso ter em mente, como nos propõem Barth (2000), Oliveira (1999) e Gallois (2000), que este se conforma em um contexto de interação como uma forma de organização social das diferenças, e que as fronteiras que o separam não são fixas, ao contrário, podem ser modificadas de acordo com a situação. Este caráter circunstancial é uma das características da constituição das identidades sociais e, por conseguinte, dos grupos étnicos, motivo pelo qual não se pode determinar com exatidão as fronteiras étnicas do grupo Krahô-Kanela, pois estas se encontram estreitamente relacionadas a um contexto político em curso com vistas à rearticulação para a demarcação total do território. 167 Para Bourdieu (1989), as formas de identidade coletiva seriam produtos de uma longa e lenta elaboração coletiva. Embora o etnônimo Krahô-Kanela seja uma construção recente, a constituição desta identidade étnica fundamenta-se numa construção histórica e coletiva que se deve ao seu processo de territorialização e deslocamentos e, principalmente, à luta para retornar ao seu território tradicional, o que nos remete à imagem do que Oliveira (2004) denominou de “viagem da volta”104. Através dessa imagem, percebe-se, segundo o autor, a relação entre etnicidade e território, a relação entre a pessoa e o grupo étnico mediada pelo território: O que a figura poética sugere é uma poderosa conexão entre o sentimento de pertencimento étnico e um lugar de origem específico, onde os indivíduos e seus componentes mágicos se unem e se identificam com a própria terra, passando a integrar um destino comum (OLIVEIRA, 2004: 33). Para além do sentimento de pertença ao território denominado Mata Alagada, a crença de que um dia retornariam ao mesmo e a luta pela sua demarcação, que relacionei a um rito, por meio do qual se legitimaria o pertencimento ao grupo, conduziram os KrahôKanela na “viagem da volta”. Este vínculo entre um povo indígena e seu território implicou na análise de outro “papel do antropólogo”. Este se refere a sua participação no processo de regularização fundiária de terras indígenas, seja compondo o próprio GT, seja como funcionário da FUNAI ou de outros órgãos públicos, analisando laudos, relatórios e emitindo pareceres. Problematizei que, apesar de posicionamentos divergentes em relação à tradicionalidade da TI Mata Alagada, não é a suposta imemorialidade que define os limites geográficos de um dado território, mas sua ocupação (histórica ou recente), os usos dos recursos naturais nele existentes e a valoração simbólica, cultural e política a ele atribuída pelos próprios indígenas. 104 Oliveira se inspira nos versos petiços de Torquato Neto: “desde que saí de casa, trouxe a viagem da volta gravada na minha mão, enterrada no umbigo, dentro e fora assim comigo, minha própria condução” (apud OLIVEIRA, 2004: 32) 168 Caso os funcionários do órgão indigenista insistam em cumprir uma suposta “letra fria da lei” (refiro-me ao Decreto 1.775/96 e à Portaria 14), que propiciam leituras de cunho ideológico e a tendência em insistir no caráter “imemorial” como critério para a definição de um território indígena, como atender às demandas étnicas atuais de grupos cuja trajetória é marcada por espoliações, deslocamentos compulsórios e movimentos de (re) territorialização? Conforme, explica Gallois (2000:1), Salvo raras exceções, essas terras não correspondem aos territórios historicamente ocupados por esses grupos, mas fragmentos de espaços percorridos em histórias com mais de 500 anos, ou muito menos, levando-se em conta que muitas terras foram alcançadas e apropriadas recentemente, em processos de fuga ou de transferência forçada. Em outras palavras, territórios não são apenas espaços geográficos fixos: são, sobretudo, construções sociais e políticas, e, assim como as unidades étnicas, as unidades territoriais também “apresentam configurações variáveis e em permanente reformulação (...)” (GALLOIS, 2000: 2). Podemos apreender, portanto, a partir deste trabalho etnográfico sobre os KrahôKanela, que identidades coletivas e unidades territoriais jamais devem ser percebidos sob um viés essencialista, como algo imutável e estático, mas sim como resultados de complexos processos de interações, tensões, construções e reconstruções. 169 REFERÊNCIAS Referências teóricas ALBERTI, V. Ouvir contar: textos em historia oral. Rio de Janeiro : Editora FGV, 2004. ALENCAR, Edna F. Paisagens da memória: narrativa oral, paisagem e memória social no processo de construção da identidade. Teoria & Pesquisa, Vol. XVI - nº 02 - JUL/DEZ DE 2007, pp 95-110. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. “‘Refugiados do desenvolvimento’: Os deslocamentos compulsórios de índios e camponeses e a ideologia da modernização”. In: Travessia, Ano IX, n º 25. 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Inês 2 – Gentileza 3 – Sebastião 4 – Argemiro 5 – Evilácio 6 – João Felipe 12 11 7 – Osmar 8 – Felicíssimo 9 – Wagner 10 – Joãozinho 11 – Aldereis 12 – Régis D 10 9 8 1 2 3 13 – Tonico 14 – Albertina 15 – Valdilene 16 – Letícia / Almir 17 – Rejane A – Casa de farinha B – Casa de cultura 4 5 C – Curral D – Posto de Saúde 6 7 População Krahô-Kanela – Aldeia Lankraré (janeiro/fevereiro 2010) CASA 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 Nº 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 NOME Inês Mariano Defé (Estevão) Mocinha (Ivonete) Samuel Emanoel Gentileza Anoá Agaús Magdiel Sebastião Francina* Amaré Raabe Elias Argemiro Damiana* Evilácio* Auricélia* Jhennes Gabriel Eduardo João Felipe* Osmar Mariquinha* Raiane Pechereca (Felicíssimo) Carlane* Raru Baioque Iriú Aréu (Alfredo) Patrícia Rodolfo Oneide Abraão* Wagner Olga Leiza Raquel Glênio Joãozinho* Alderez João Batista* Noé Hosana SEXO F M M F M M F M M M M F M F M M F M F F M M M M F F M F F M F M F M F M M F F F M M F M M F NASC. 1928 1953 1968 1970 1993 1999 1964 1969 1987 1998 1992 1960 1943 1962 1971 1990 1991 1993 1994 1966 1966 1985 1989 1990 1993 2002 1958 1948 1989 1995 IDADE 82 55 41 39 16 10 61 42 20 17 43 40 22 21 17 49 62 36 31 10 07 04 70 60 ? 13 44 39 20 18 15 14 03 02 42 43 24 21 18 16 07 ? 52 67 20 14 12 47 48 49 Régis (Regimare) Gildete* Raila M F F 1983 13 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 Tonico (Raimundo) Irene* Reginaldo Geane Jeciane Daniel João Paulo Lorrane Albertina Valdir* Joel Valdicléia Josiel Valdiléia Exequiel Valdilene Jurandir* Mateus Maiqueli Cauã Taís Almir Letícia Karajá Letiele Xanariru Krahô-Kanela Rejane Ediglei* Jhones Elielton Maria Eduarda M F M F F M M F F M M F M F M F M M F M F M F F F M M M F 1952 1961 1986 1991 1993 14 15 16 17 26 27 10 meses 57 48 23 17 15 13 11 09 43 45 21 19 18 16 13 24 32 08 07 05 02 23 23 03 23 24 05 04 01 OBS: * Cônjuges não-indígenas que foram destacados em virtude de ter sido exposto por Sebastião Krahô-Kanela que, embora tenham os mesmos direitos, não seriam KrahôKanela. - F = 36 mulheres - M = 42 homens