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RELATO DE CASO
RELATO DE CASO
Mastocitose cutânea e tumor de células germinativas:
uma rara associação
Cutaneous mastocytosis and germ cell tumour: a rare association
Unitermos: mastocitose, célula germinativa, neoplasia, c-kit.
Uniterms: mastocytosis, germ cell, neoplasia, c-kit.
RESUMO
Mastocitose cutânea é uma rara afecção em que há proliferação de mastócitos na
derme. Ocorre com maior freqüência em crianças, de forma benigna, nas quais involui
espontaneamente até a puberdade. Quando surge em adultos, sua evolução é mais agressiva devido à infiltração de órgãos internos (mastocitose sistêmica) ou ocorrência de
neoplasias hematológicas (leucemias, linfomas, doenças mielodisplásicas). A associação com outros tumores é extremamente infreqüente. Na literatura encontramos seis
casos de mastocitose concomitante à ocorrência de tumor de células germinativas. Aqui
descrevemos o primeiro caso brasileiro. Realizamos também uma revisão bibliográfica
com a finalidade de analisar a fisiopatogenia desta associação.
INTRODUÇÃO
Mastocitose é uma patologia rara. Estudos do Reino Unido estimam uma incidência anual aproximada de 0,6 caso para
cada 1.000.000 habitantes. Não há preferência de sexo, porém é mais freqüentemente relatada em caucasianos(1). A maioria dos pacientes (65%) são crianças. Um
segundo pico de incidência ocorre entre 20
e 40 anos(2).
Trata-se de uma desordem na proliferação dos mastócitos que pode surgir tanto
na pele quanto em outros órgãos. A apresentação cutânea ocorre de formas diversas: generalizada (como na variedade difusa/eritrodérmica), em coleções de células
em múltiplos focos (urticária pigmentosa e
teleangectasia macular eruptiva perstans)
ou como coleção solitária (mastocitoma)(3).
Estas apresentações, com exceção da teleangectasia macular, possuem um sinal
característico, o sinal de Darier(2-3), que é
constituído por uma lesão urticada em local de fricção da pele. Ele se deve à liberação de histamina pelos mastócitos estimulados pelo trauma físico. Estes pacientes
portanto devem ser orientados quanto à
possibilidade da liberação maciça de histaRBM - REV. BRAS. MED. - VOL. 60 - Nº 8 - AGOSTO DE 2003
mina por estímulos físicos e/ou medicamentosos, produzindo sintomas como ruborização, taquicardia, hipotensão e até mesmo
choque. Apesar disso a evolução da doença habitualmente é benigna, com remissão
espontânea após alguns anos. O tratamento consiste de sintomáticos anti-histamínicos/estabilizadores de membrana de mastócitos, corticóides, PUVA ou exérese das
lesões quando viável(4).
Quando as lesões cutâneas são persistentes ou se iniciam em adultos, seu
curso é crônico e mais agressivo devido à
evolução para a forma sistêmica (infiltração de mastócitos em medula óssea, trato
gastrointestinal, linfonodos, fígado, baço) ou
surgimento de neoplasias hematológicas
(leucemias, linfomas, doenças mielodisplásicas). Portanto, é importante o acompanhamento adequado para identificação
precoce dos sinais de sistematização da
doença. Alguns trabalhos têm proposto
dosagens de triptase, um mediador liberado pelo mastócito, como melhor parâmetro para seguimento. Quando os níveis séricos forem maiores que 20 ng/ml, a chance de evolução para mastocitose sistêmica é grande. Outros testes como a dosagem de metabólitos da histamina em uri-
Telma Kanagusuko
Roberto Massao Miyasaki
Maria Cristina Silva Valêncio
Patrícia Nakahodo
Daniela Carola Graff
Médicos estagiários de Dermatologia do Hospital
Infantil Darcy Vargas.
Sidney de Souza Lima
Dermatologista
Hansenologista pela Sociedade Brasileira de
Hanseníase. Coordenador do Estágio de
Dermatologia do Hospital Infantil Darcy Vargas.
Maria Lydia Melo de Andrea
Oncologista pediátrica. Chefe do Serviço de
Oncologia do Hospital Infantil Darcy Vargas.
Endereço para correspondência:
Telma Kanagusuko
Ambulatório de Dermatologia do Hospital Infantil
Darcy Vargas.
Rua Seraphico de Assis Carvalho, 34
CEP 05614-040 - Morumbi - São Paulo - SP
Tel.: (11) 3723-3759
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na de 24 horas, dosagem de marcadores
de membrana CD25 e CD112 têm sido
sugeridos como forma de triagem, porém
se mostraram menos sensíveis que a triptase(5). Devemos lembrar que em nosso
meio, o acesso a tais exames é difícil, impossibilitando seu uso de modo rotineiro.
Na maioria dos casos o acompanhamento
se faz de maneira mais simples com exame físico minucioso (para identificação de
visceromegalias, adenomegalias, icterícia,
palidez etc.), exames de imagens (raios x
de tórax/ossos, ultra-som abdominal), hemograma. Se algum destes parâmetros
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estiver alterado, convém realizar-se também punção de medula óssea, já que este
é o local mais freqüentemente acometido
pela mastocitose sistêmica. Na confirmação de acometimento de órgãos internos,
avaliação de oncologista e quimioterapia
se fazem necessários.
A associação da mastocitose com tumor de células germinativas foi primeiramente descrita em 1991(6) e desde então
cinco casos adicionais foram relatados(7-11).
A seguir descreveremos o primeiro caso
brasileiro dessa associação.
Figura 1 - Neoplasia maligna de ovário, teratoma
com células maturas esboçando tecido tireoideano.
Figura 3 - Massa (1 e 2) em pólo inferior de rim
esquerdo.
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Em março de 2000, a menor A.S.S.,
sexo feminino, parda, natural de Itajuipe
(Bahia), na época com oito anos de idade,
foi internada no Hospital Infantil Darcy
Vargas com queixa de dor abdominal. Negava patologias prévias. Exame ultra-sonográfico constatou uma massa sólida em
região pélvica. Realizado laparotomia com
retirada de grande tumoração ovariana esquerda. A histopatologia mostrou tratarse de neoplasia maligna ovariana de células germinativas: teratoma com áreas
maturas e imaturas, associada a tumor de
seio endodérmico (Figura 1). Dosagens
de alfa-fetoproteína e beta-HCG estavam
aumentadas (3448 U/l e 8,8 mUI/ml, respectivamente). Iniciou quimioterapia em
abril de 2000. Uma segunda laparotomia
foi necessária em agosto de 2000 para
biópsia de cisto hepático em lobo direito
e exérese de massa em pólo inferior de
rim esquerdo (Figuras 2 e 3) que se revelaram, respectivamente, um pseudotumor
inflamatório hepático e um teratoma imaturo metastático. Manteve-se em quimioterapia até outubro de 2000. Novos exames de ultra-som abdominal, tomografia
de tórax mostraram regressão da imagem
cística hepática e ausência de novas massas. Controles posteriores de hemograma, alfa-fetoproteína, beta-HCG, transaminases, uréia, creatinina foram normais.
Raios x de tórax, ossos longos sem alterações. Atualmente continua em acompanhamento na Oncologia do Hospital Infantil Darcy Vargas, sem novas metástases ou recidivas da neoplasia.
Procurou nosso serviço de Dermato630
Figura 2 - Tomografia de abdome com cisto (1)
em lobo direito de fígado (2).
logia em janeiro de 2002 devido à queixa
de pápulas e prurido intenso em todo o corpo. Negava uso de qualquer medicamento
na ocasião. Afirmava que as lesões apareceram cerca de dois meses após o início
da quimioterapia, persistindo e piorando
mesmo após a suspensão desta. Ao exame dermatológico apresentava máculas
hipercrômicas entremeadas por pápulas
confluentes, dando aspecto infiltrado à
pele, acentuando dobras naturais (Figura
4 e 5). Praticamente toda a cútis estava
acometida, poupando apenas regiões palmoplantares e mucosas. O sinal de Darier
era positivo. Optado pela retirada de dois
fragmentos de pele do braço esquerdo e
enviados para exame histopatológico. A
análise revelou intenso infiltrado mononuclear, ocupando derme papilar e reticular
alta (Figura 6) constituída por mastócitos
e alguns eosinófilos. Coloração com azul
de toluidina foi usada para evidenciar a
proliferação mastocitária. Confirmado então o diagnóstico de mastocitose cutânea
difusa. Iniciada terapêutica com estabilizador de membrana (cetotifeno) e os familiares foram orientados para que a criança
evitasse fatores que estimulam a liberação
de histamina. A paciente permanece em
acompanhamento conosco, apresentando
redução lenta, mas progressiva do prurido
Figura 4 - Tórax e ombro com pápulas confluentes e infiltração da pele apresentando acentuação
das dobras da axila.
Figura 5 - Pápulas confluentes formando placa
em mão esquerda.
Figura 6 - Infiltrado de mastócitos na derme.
e das pápulas, sem nenhum sinal de sistematização da doença.
DISCUSSÃO
Os mastócitos estão distribuídos por
todo o organismo. Derivam de progenitores hematopoiéticos da medula óssea, que
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Tabela 1 - Casos relatados em literatura de mastocitose associada a tumor de células germinativas (tabela adaptada da referência 11)
Paciente
Idade
(anos)
Sexo
Intervalo entre diagnóstico
do tumor e da mastocitose
Local do tumor de
células germinativas
Tipo de mastocitose
Referência
1
9
F
2
30
F
Simultâneo
Ovário
Cutânea
8
3 anos
Ovário
Sistêmica
9
3
12
4
10
F
6 meses
Ovário
Cutânea e sistêmica
10
F
9 meses
Ovário
Cutânea
5
11
8
F
3 meses
Ovário
Cutânea
Presente caso
6
34
M
2 anos
Mediastino
Sistêmica
6
7
24
M
2 anos
Mediastino
Sistêmica
7
inicialmente circulam no sangue periférico
e migram para os tecidos, nos quais sofrem maturação final sobre a influência de
fatores ambientais locais(12).
A associação de mastocitose com neoplasias hematológicas não é incomum.
Várias teorias foram aventadas para explicar este fato. A mais tradicional afirma que
mastócitos e células sangüíneas têm origem em uma mesma célula tronco precursora. Alterações nesta “célula-mãe” resultariam então em neoplasias destes dois tipos celulares. Outra teoria como uma instabilidade genética não conhecida levando a indução da proliferação de dois tipos
clonais diferentes está ainda em estudo (13).
A ocorrência concomitante de neoplasia não hematológica e mastocitose é esporádica e pouco descrita, porém em literatura encontramos outros seis casos de
mastocitose associada a tumor de células
germinativas(6-11) (Tabela 1).
Poder-se-ia indagar se a quimioterapia
realizada como terapêutica para a neoplasia inicial não teria induzido a proliferação
de mastócitos, porém não foi encontrado
relato em literatura de mastocitose, sendo
induzido por quimioterápicos(11). Isto é corroborado pelo fato de que em um dos casos de tumor de ovário, a mastocitose,
ocorreu antes do início da quimioterapia(8).
Análises mais recentes dão ênfase a
mecanismos baseados em receptores de
membrana – tirosino quinase (c-kit) – que
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ao serem ativados favoreceriam a proliferação celular. Estes receptores são expressos em uma grande variedade de tipos
celulares, dentre eles, mastócitos, células
germinativas e células tronco hematopoiéticas. Então um distúrbio cromossômico,
levando a alterações destes receptores,
passaria a provocar uma proliferação celular descontrolada (mastocitose, neoplasias de células germinativas e hematológicas)(14-15). Pesquisas atuais têm como finalidade buscar um meio de bloqueio deste
mecanismo, a fim de inibir a proliferação
anormal(16). Hoje a terapêutica medicamentosa da mastocitose cutânea se resume
apenas a inibidores da degranulação dos
mastócitos, mas que não possuem ação
sobre a proliferação destes. Então enquanto aguardamos os resultados de novos estudos, a terapêutica fica limitada a estes
sintomáticos e orientações gerais para evitar-se fatores físicos e químicos que levam
a degranulação mastocitária: fricção da
pele, variações de temperatura, estresse,
uso de morfina, AAS, anestésicos, bloqueadores beta-adrenérgicos etc.(17).
provavelmente de um receptor de membrana comum a estes dois tipos celulares, levaria à proliferação descontrolada. Aguardamos novos estudos que elucidem este
fato e esperamos que a partir deles possam surgir terapêuticas mais eficazes para
estas patologias.
SUMMARY
Cutaneous mastocytosis is a rare disease in which there is a proliferation of mast
cells in the derm. It occurs more often in
children, in a benign way, and involutes
naturally until the puberty. When it occurs
in adults, its evolution is more aggressive
because of the infiltration of organs (systemic mastocytosis) or the occurrence of
hematologic neoplasias (leukemias, lymphomas, myelodysplastic diseases). In literature we found six cases of mastocytosis together with the occurrence of germ
cells tumour. We describe here the first
case in Brazil. We also made a bibliographical review in order to analyse the physiopathogeny of this association.
CONCLUSÕES
Através da análise dos casos relatados
de mastocitose acompanhados por tumor
de células germinativas, sugerimos que
esta associação pode fazer parte de uma
síndrome em que um distúrbio específico,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
As referências bibliográficas deste artigo se encontram à disposição dos leitores na Editora
ou em nosso site: www.moreirajr.com.br
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