GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 As folias fesceninas1 do

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GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 As folias fesceninas1 do
As folias fesceninas1 do ‗vampiro de Curitiba‘. Sobre as
―ministórias‖ de Dalton Trevisan
Sérgio Guimarães de SOUSA2
RESUMO: Cada vez mais reconhecido como um dos expoentes máximos da
literatura em língua portuguesa, Dalton Trevisan, recentemente galardoado
com o Prémio camões, é, como sabemos, um autor absolutamente
incontornável na arte do contos breves. Socorrendo-nos de vários Foi nosso
intuito neste texto, oferecer uma leitura panorâmica de boa porção das
―ministñrias‖ do escritor de Curitiba, enfatizando, por uma parte, os
principais eixos-temáticos por que se caracterizam as suas micronarrativas; e,
por outra, parte chamando a atenção para os processos técnico-retóricos a que
o escritor recorre, no sentido de assegurar uma narrativa tão minimalista
quanto possível das histórias e dos cenários que põe em cena através do
género micro-ficcional. Deste modo, foi-nos possível o quanto e de que
modo, Dalton Trevisan se compraz em representar existências alienadas pelo
crime ou, no melhor dos casos (e isso no quadro familiar), por relações
sentimentais onde a felicidade conjugal e o amor idealizado, se alguma vez
existiram segundo o cânone da mitologia romântica e tardo-romântica,
cederam rapidamente lugar à danação antropofágica.
PALAVRAS-CHAVE: microficção; violência; crime; sexualidade.
I
Triângulos amorosos, adultérios,
seduções,
assassinatos,
espancamentos, estupros. Amor e
ódio. O mundo de Dalton. [...]. Com
seu estilo guerrilheiro de diálogos
certeiros, de elipses alucinantes, de
imagens inesperadas que visam à
1
Tomo de empréstimo a expressão ―folias fesceninas‖, referidas a Dalton Trevisan, a
Berta Waldman (2007).
2
UM – Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas,
Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Braga, Minho, Portugal,
[email protected].
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razão e à emoção dos leitores, esses
pobres fantoches manipulados pelo
mefistofélico e mirabolante autor.
Com tais artes e mágicas, para que
Dalton precisa ainda de um velho
vampiro?
Geraldo Galvão Ferraz
Assaz conhecido pela muito sugestiva e indisputável alcunha de
‗vampiro de Curitiba‘, Dalton Jérson Trevisan constitui indubitavelmente um
caso bem atípico no panorama literário brasileiro. Um resumo suficiente da
discrepância do escritor com os seus colegas de ofício (mesmo sabendo-se
que cada autor se define por crenças, gostos, manias, enfim, por todo um
conjunto específico de idiossincrasias) seria este: Trevisan é um escritor
votado privilegiadamente à expressão, com intransigência e coerência
inabaláveis, de um imaginário tenebroso. Imaginário cuja singularidade
provém de enfatizar existências alienadas, grotescas, libertinas e macabras,
violências gratuitas, brutalidades sexuais, contextualizadas em geral por uma
atmosfera lasciva e libidinosa, assentes no gozo instintivo, sadomasoquista e
animalesco. Por essa razão, os textos do autor não carecem de relações
sentimentais onde a felicidade conjugal e o amor idealizado, se alguma vez
existiram segundo o cânone da mitologia romântica e tardo-romântica, deram
lugar à devastadora espiral de um círculo infernal de desentendimentos
crónicos e de brutalidades inclementes. Círculo esse circunscrito
essencialmente à representação de personagens – anti-heróis –, entre as quais
abunda a perversão e todo o tipo de distúrbios provocados pela frustração e
pelo ódio insanável, pautadas pela irrelevância social (embora não faltem
protagonistas oriundos da classe média, note-se; uns e outros, refira-se, não
desafinam do estereótipo que os circunscreve). Portanto, Trevisan vem darnos conta de um estado de coisas sociológico: aquele que, em nome do pudor
literário (ou de um certo pudor literário, cultivado nos bancos das escolas em
textos apetrechados com essa marca maior da compostura estética que é a
linguagem cuidada), suporíamos acantonado em lugares onde mesmo a
literatura não se atreveria a penetrar. Com a ressalva de que esses são, muito
provavelmente, os lugares da literatura enquanto tal.
Mas o merecimento estético-literário de Trevisan, aquilo que fará
dele porventura um escritor imprescritível, é sobretudo tributário da sua
admirável capacidade de dar corpo a este universo assombroso manuseando-o
em prol da máxima contenção, a tal ponto que não é abusivo dizer, com
Maria Leonor Nunes, que «a arte de Trevisan cruza o limiar do
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expressionismo» (NUNES, p. 2012: 6). O autor compraz-se, pois, em
expressar, sem hipóteses de redenção, toda esta danação antropofágica, em
que as personagens «passionately clash with each other, revealing
excessively erotic and violent natures that in turn pit them against the allconsuming powers of Sex and Death» (VIEIRA, p. 1986: 45), pelo viés de
esmeradas narrativas breves (ou brevíssimas).3 Se a narrativa, por maioria de
razão enquanto prosa, é o modo ideal de encenar todo esse mundo violento e
as suas gentes, diga-se, todavia, que a forma breve extrai toda a sua eficácia,
por força das elipses de que se nutre, de ser menos do que aquilo que
representa. Isto é, o que está em causa nesta prosa é, não sofre dúvida, o
poder evocativo alcançado espartanamente com o mínimo possível. A
suficiência da forma breve não impede, com as remoções acarretadas, a
expressão da nitidez do real, em pequenas histórias, por assim dizer,
(des)dobradas num contínuo reenvio, na medida em que «Trevisan é um
escritor programático e obsessivo que traça o itinerário de uma busca
incessante, manifestada na repetição de situações, de personagens, de um
tema que se multiplica em voltas infindáveis» (WALDMAN, 2007, p. 255)4.
3
A opção, note-se, pelo culto de uma linguagem radicalmente diminuta dá-se por
volta de 1974, isto é, a partir de O Pássaro de Cinco Asas onde, afora os contos ou
pequenos contos, surgem claramente micronarrativas agrupadas sob a tutela de um
título unificador (é o caso de «O defunto bonito» e de «O gatinho perneta», cf.
TREVISAN, 1996, p. 24-27 e 42-47), processo presente, com facilidade, noutros
livros, como em Meu Querido Assassino ou em Essas Malditas Mulheres. Note-se,
a propósito, que a prosa longa do autor não é sem afinidade com a microficção.
Porque nessa prosa extensa, como muito bem mostrou Edner Morelli (cf. 2007, p.
80-81), em O vampiro de Curitiba, cada parágrafo tende a dispor de autonomia
radicada num fôlego narrativo próprio. Deste modo, os parágrafos não entram
forçosamente em diálogo uns com os outros, consubstanciam-se antes como miniepisódios em cadeia; e em cada um é visível a saliência de uma espécie de miniclímax. Ou seja, dir-se-ia que nos textos mais alongados, Dalton Trevisan já, em
bom rigor, praticava a arte da microficção, só que aferível numa dimensão de maior
fôlego.
4
Com efeito, de microficção para microficção repetem-se, por exemplo, nomes,
repetição destinada a des-individualizar protagonistas, universalizando-os enquanto
indivíduos; deste modo, o nome vem, muito tipicamente, suplementar a condição
dos protagonistas, reforçando-lhes socialmente a pertença e, nessa medida, ganha a
tonalidade de um estigma social. Por vezes, é usado no sentido da caricatura
arquetípica. Sobre este assunto da retoma dos nomes, assinala Nelson H. Vieira o
seguinte: «The penchant for regulary identifying his later heroes as João and Maria
undoubtedly contributes to Dalton Trevisan‘s creation of short stories that telegraph
a compelling sense of ―everyman‖. In so doing, he repeatedly inflicts upon the
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Uma nitidez, refira-se, brutal e, por isso, sem nenhum tipo de
condescendências. Dalton Trevisan revela, com efeito, como muito bem nota
um dos seus críticos, «to the reader the grotesque, horrific underside of the
daily existence within modern Brazilian society» (GORDUS, 1998, p. 13).
Tudo isto que estabelece a originalidade do escritor assenta,
dissemos, na forma breve. Cabe perguntar: com que traços se define essa
forma breve? Afora o que permite eliminar o supérfluo (e o menos supérfluo)
da linguagem (como sejam: verbos, conjunções, articulações hipotáticas,
pronomes, adjetivos) e descarná-la o mais possível (orações nominais), com
os traços de uma irredutível especificidade compositiva. Especificidade
presente nas microficções mas não menos exemplarmente evidente em
narrativas de maior fôlego, e que passa (i) pelo uso sem parcimónia de uma
linguagem oralizante e não raramente vulgar, isto é, estilisticamente não
tratada, descambando, por vezes, sem concessões para o obsceno5; (ii) pelo
reader an uncomfortable sense of familarity vis-à-vis the clandestine minds and
hearts of the depraved Brazilian souls depicted in his fictions. For the comitted
Trevisan reader the deliberate and magnified use of these names in recente stories
becomes cumulative and thus enhances this familiarity, but above all, suggests
more than just a stereotypical portrayal of Brazil‘s middle and lower class mores,
passions and depravities. By presenting a gallery of Joões and Marias, Trevisan
appears to be building his narrations ―upon names‖ or ―eponyms‖ that become
related to a continuous pedigree of behavior or ethology. With each new narrative
Trevisan approaches with keener observation a corpus of similar acts and situations
wherein he slowly unfolds and incisively dissects one more facet, or version of a
complex and often social and psychological human paradigma» (VIEIRA, 1986, p.
45).
5
Se, na sua dimensão estética, as microficções de Trevisan são a expressão de uma
visão que se nutre assaz do que de repugnante a sociedade, ou parte dela, a que vive
lado a lado com a violência, comporta, não é surpreendente que a prosa dessas
microficções não recue perante a representação das múltiplas faces, incluindo as
mais abjetas, dessa violência e, como tal, seja uma prosa passível de desassossegar
um certo tipo de leitor. Especialmente aquele que, sensível à chamada função
poética da linguagem, entende a literatura, mesmo sendo, como neste caso é, uma
literatura em formato mínimo, como a ocasião de sofisticados jogos estilísticos a
bem de uma excelência fraseológica. Ora, Dalton Trevisan acha-se a léguas do
esplendor retórico-estilístico herdado do Formalismo Russo e segundo o qual a
linguagem literária seria muito caracteristicamente a que fosse capaz de merecer
contemplação em virtude do seu valor desfamiliarizante. A tais leitores, cumpriria
responder que a literatura dispõe, e ainda bem, de variadíssimos modos e graus de
realização; e que se há coisa que nela é uma evidência, essa coisa é a de que o
―estilístico‖ surge inseparável do ―temático‖. Nessa medida, forçoso é concluir que
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predomínio de diálogos6 que solicitam ao leitor uma ativa cooperação
interpretativa no sentido de completar o pouco que neles se diz; (iii) por
descrições, no caso de existirem, curtas e incisivas; (iv) pelo predomínio, em
consequência, da ação sobre a descrição (e sobre experiências, sentidos,
explicações); (v) pelo recurso não a personagens singularizadas antes a
personagens prototípicas ou caricaturais, o que, em termos de economia
textual, se revela útil por dispensar descrições psicológicas; (vi) por histórias
(já que falamos em economia textual) confinadas em certos casos a pouco
mais do que duas ou três palavras; (vii) por uma narração de tipo omnisciente
e que não hesita em lançar mão de monólogos interiores; (viii) pela dispensa
de introduções descritivo-explicativas (isto é, narração in media res); (ix) por
finais trágicos ou então patéticos; (x) pela notória ironia; (xi) por algum
cinismo; (xii) por uma boa dose de humor negro (e paródico, sem esquecer a
ênfase no grotesco da realidade), que não destoa das vicissitudes escabrosas
que a prosa de Trevisan, com as suas frases «como que a explodir de tensão»
(CARVALHO, 2012, p. 7), exibe sem pudor7; (xiii) pela minudência do
detalhe, de tal maneira que «há [nos seus micro-contos] uma
monumentalidade derivada da concisão e do registo dos detalhes»
(COELHO, 2012, p. 20); e ainda, o que tipifica os dispositivos ficcionais da
sua escrita, (xiv) por uma contaminação cinematográfica não raro ostensiva
(o chamado ―camera eye style‖). Veja-se o que nota, com inteira justeza, um
dos mais sagazes críticos do escritor:
Dalton Trevisan constructs narratives that are
designed to pull the reader intimately into the
a legibilidade que nos propõe Dalton Trevisan é outra: a de uma prosa que se
modela, como nenhuma, às convenções semântico-pragmáticas dos contextos
representados, ao incorporar a linguagem corrente mais banal, sem a qual
impossível lhe seria representar as personagens que representa: «characters [who]
are trapped in an immutable human condition of vice and sin where the common
denominator is man‘s incorrigibility» (VIEIRA, 1986, p. 46). Assim sendo, a
linguagem vulgar de Trevisan é, pode dizer-se, a topografia de um espaço: aquele,
localizado em Curitiba, que (sócio-esteticamente) sobrepõe o submundo (e algum
mundo médio) aos ambientes requintados das classes altas.
6
Diálogos cujas «falas são dessubjetivadas, não se ligam a um corpo, correm as na
boca» (WALDMAN, 2007, p. 258) de arquétipos (falas e pensamentos soltos, digase).
7
Se a sua «linguagem é incisiva, licenciosa, compacta, [ela] tem a precisão» – como
observa Berta Waldman (2007, p. 258) – «de um tiro à queima-roupa, que não
prescinde de boa dose de humor».
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experience with a close-up angle that can swiftly
shift to the neat long-short, so necessary for the
desired double perspective. This cinematographic
approach is not only efficient in a nonsustained
genre as the short story, but is most effective in the
portrayel of dramatized action and thought, the
essential elements of a Trevisan story. (VIEIRA,
1984, p. 11.)
Não se faria justiça à qualidade das microficções de Trevisan se não
se enfatizasse o lugar que neles ocupa a lição do cinema 8. É, de resto, pela
força de efeitos de visualidade afins da sétima arte, e que apresentam o
mérito nada despiciendo de subtrair a narrativa à tentação da explícita
aferição moral do que nela é representado9, que o autor persegue sem tréguas
8
«As fragmented instances of life quickly or unexpectely snapped by some unknow
photographer, these narratives are not unlike the many covers or jackets of a
Trevisan publication where old photos or daguerreotypes are used to stimulate our
experience of perussing our old family albums. In the short stories themselves this
close up, instamatic effect is achieved by the extensive use of dialogue, interspesed
with brief interior monologues, and a ocasional monologue – all against a very
sparce backround of omnisciente narration sometimes in the form of a character‘s
alter ego, thus providing the illusion of an objective, impersonal narrative. The
result is a camera-eye view of life, a Human Comedy of conflicts, sins and passions
depicted in short stories [...].» (VIEIRA, 1986, p. 46.)
9
«In the creation and tecnical shaping of this perverted world, Dalton Trevisan
reveals, as mentioned earlier, no overt moral tone in his stories. In fact, one as the
feeling that his stories exist in spite of the author, particularly so with the later
collections. This mock absence is a reflection of Trevisan‘s craft, which relies upon
minimal description and the use of self-sufficient scenes and characters to
dramatize the action. As a result, the reader has the sense of watching rather than
Reading about the characters. The proverbial verisimilitud thus becomes even
sharper with the unobstrusive narrator or author. This visual effect is maintained by
a steady focus upon the point of view, either within interior monologue, dialogue or
first-person, often depends upon direct flow to, or contact with, the character. In
other words, how close we can get to the voice or voices without being interrupted?
As if peeping throught a key hole, these narratives resemble the position of an
invisible observer, or better still, the camera eye which is directed and mainly
concerned with point of view. The illusion of an absent narrative voice is further
perfected by the complex and ingenious use of shifting points of view or
perspectives» (VIEIRA, 1984, p. 15-16.)
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o intuito de pôr a nu o abismo da condição humana, no que dela sobressai de
mais miserável, através das pulsões primitivas de que se sustenta. Ou, como
diria, a propósito de Abismo de rosas, um dos seus leitores, «to strip away
society‘s bourgeois [e a dos de baixa extração social, acrescente-se] trappings
and expose man and women in their most primitive, vulnerable and
unflattering condition» (SILVERMAN, 1977, p. 604)10. O que confere
eventualmente à prosa de Trevisan uma esteticização filiável no chamado
realismo sujo (cultivado, entre outros, pelo cubano Pedro Juan Gutiérrez) ou
bruto. Seja como for, e no tocante ao espaço do escritor de Curitiba na
literatura do Brasil,
[...] fica evidente que a grande contribuição de
Dalton Trevisan, para a evolução da literatura
brasileira, reside no desnudamento de um mundo
descaracterizado e amorfo, cujos seres se alienam,
conduzidos por clichês que lhe são imputados por
toda uma estrutura, voltada apenas para o
consumismo e para o imediatismo existencial,
embora lhes acene exatamente com o contrário: o
amor idealizado, a felicidade conjugal, etc. Acresce
que Dalton não se compraz com a linguagem
enganadora de uma certa literatura, que faz do
sentimental o instrumento que aliena o leitor, sob o
pretexto de defender justas causas sociais. Nele,
tudo é contundente: as meias-tintas são abolidas, a
piedade é sempre filtrada pela ironia e a concisão
estrangula a grandiloquência. (GOMES & VECHI
in TREVISAN, 1981, p. 101.)
Acresce o facto de pouco se saber sobre Dalton Trevisan, exceto uns
escassos dados biográficos de fundo11, o que não é sem despoletar uma
10
A propósito da técnica compositiva de Dalton Trevisan, vide também Karen
Burrell, «Social Prejudice Examined in Dalton Trevisan‘s ―O ciclista‖» (BURELL,
1982, p. 111-118).
11
Se Trevisan tem habilmente sabido, à conta desta estratégia de ocultação total, ou
quase, da sua pessoa, preservar-se da vampirização do que lhe é privado, ainda que
à custa do que suporíamos devesse nele ser público (a concessão de entrevistas, por
exemplo), o certo é que à brevidade dos textos, é caso para dizer, parece
corresponder uma existência empírica minimalista. Tanto mais que o que sabemos
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intrigante aura de mistério em torno do autor; e esta predileção pelo
anonimato, ou melhor, pelo enigmático, há de notar-se, também não é, nesta
época de marketing literário-cultural e de indústria livreira, de molde a
emparelhá-lo com outros escritores, contribuindo, contudo, creio,
decisivamente para o seu estatuto de autor de culto. Significa isto que se
Trevisan existe à margem das estratégias de promoção editorial, a indiferença
pelos mecanismos mais elementares de difusão, e que corresponde desde logo
a uma manifesta resistência do escritor em ceder a sua prosa a uma definição
de obra enquanto valor de mercado por intermédio da sua presença na
condição de promotor dessa obra, a indiferença pelos mecanismos mais
do trajeto do autor remonta, em boa verdade, aos tempos em que ainda não
enveredara pela microficção. E o que se sabe de Trevisan não anda muito afastado
do seguinte: nasceu em Curitiba no ano de 1925, trabalhou, ainda jovem, numa
fábrica de vidros e, mais tarde, forma-se em advocacia (Faculdade de Direito do
Paraná). Entre 46 e 48, é a figura de proa de um grupo literário cujo órgão de
expressão foi, em homenagem a todos os joaquins do Brasil, a revista modernista
curitibana Joaquim, revista de assinalável notoriedade, se tivermos presente o
elenco sonante de colaboradores: António Cândido, Mario de Andrade ou ainda
Carlos Drummond de Andrade; mas também se considerarmos a ênfase que a
revista concedeu a traduções de nomes canónicos como Joyce, Proust, Kafka,
Sartre ou Gide. Em 1959, surge a público Novelas nada exemplares, título de
referencia na obra do Vampiro de Curitiba e que mereceu na altura dois prémios de
prestígio: o do Instituto Nacional do Livro e o Jabuti. Novelas Exemplares é ainda
relevante por ter sido o primeiro texto traduzido para outras línguas, o que permitiu,
a partir daí, internacionalizar a sua restante obra (eis alguns exemplos: De Koning
der Aarde [O Rei da Terra], trad. de August Willemsen, Amsterdão, 1975; The
Vampire of Curitiba and Others Stories, trad. de Gregory Rabassa, Nova Iorque:
Alfred A. Knopf, 1972; El Vampiro de Curitiba, trad. de Haydée M. J. Barroso,
Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1976; De Vijvfvleugelige Vogel [O Pássaro de
Cinco Asas], trad. de August Willemsen, Amsterdão, 1977; etc.). Afora as
traduções, a proporção do prestígio crescente do escritor pode aferir-se, igualmente,
pelo facto de o seu nome começar a surgir recorrentemente em antologias de
diversos países. Outros títulos emblemáticos maiores vieram consolidar o autor
como um dos nomes cimeiros da literatura brasileira, como é o caso de Cemitério
de Elefantes (1964) e O Vampiro de Curitiba (1965). Em 1969, refira-se ainda, A
Guerra Conjugal é transposta para o cinema pela câmara de Joaquim Pedro de
Andrade (com diálogos de Dalton). Finalmente, é de referir que Trevisan obteve
este ano o Prémio Camões, o que significa uma consagração ímpar da sua obra,
como é evidente. Antes disso, em 2003, o seu merecimento estético-literário tinha
sido reconhecido com o Prémio Portugal Telecom (ex aequo com esse outro grande
escritor brasileiro que dá pelo nome de Bernardo Carvalho).
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elementares de difusão, dizíamos, está longe de o condenar à despromoção,
antes pelo contrário. De outro modo: o anonimato, ao fim e ao resto, pela
curiosidade que instiga, constitui uma das razões pelas quais certamente se lê
(ou se deseja ler) Trevisan; e, mais, pelas quais se tende a convertê-lo num
mito. O que, aliás, condiz com a literatura enquanto dispositivo mitológico.
Não por acaso, a alcunha do escritor provém de um dos seus mais
emblemáticos títulos, o que diz bem da ficcionalização da sua figura; ou seja:
à falta de elementos do foro biográfico, a caracterização do autor faz-se pelo
que dele existe, a obra, que se torna assim como que indispensável para
qualificar um autor propenso à rasura da sua condição empírica. Por
conseguinte, se a invisibilidade do escritor é de molde a resistir ao
alinhamento dos seus textos em termos comerciais (ou puramente
comerciais), não é menos certo que é justamente a ocultação da figura do
autor, pela primazia que concede à obra, a começar pela dimensão intrigante
que lhe confere (que obra é essa, a de um autor que persiste em não
aparecer?), que lhe outorga, no fim de contas, também visibilidade e uma
devoção apreciável. Quanto mais, dir-se-ia, o autor se esconde, menos escapa
a tornar-se numa figura incontornável, a do Autor. Eis o que dele diz um
crítico: «Ninguém sabe onde ele mora, ninguém o vê. Sabemos que ele existe
porque publicou alguns livros e porque – eis o principal – de tempos a
tempos alguns privilegiados recebem pelo correio um folheto rústico, onde se
contém a melhor literatura escrita no Brasil» (CUNHA in TREVISAN,
1994b, p. 3).
Descontando o juízo crítico por certo um tanto hiperbólico, sem,
como é lógico, com isso desconsiderar o merecimento estético do autor, tanto
parece singular a sua invisibilidade como o cuidado que põe em enviar por
via tradicional «um folheto rústico» a um conjunto restrito de eleitos. De
resto, Trevisan, sabe-se, começou, na década de 50, a publicar os primeiros
contos justamente em cadernos de papel-jornal; e, depois, enviava-os
precisamente a amigos. Enquanto arte, se a prosa do escritor não escapará
neste circuito de difusão esporádico a ser valor de mercado (é de crer que os
«folhetos rústicos», pela sua raridade, alcancem, pois, a invejável condição
de peças de coleção e, com tal, um valor de mercado considerável), não é
ocioso sublinhar um certo apreço de Trevisan por folhas volantes, que é como
quem diz: a literatura de cordel. O apreço é condizente com o nítido pendor
folhetinesco que especifica muito do que escreve o autor. O que lemos nas
narrativas breves (e em especial nas menos breves) são melodramas que não
destoam com os que acharíamos sem dificuldade de maior em trechos
folhetinescos (de faca e alguidar, apetece acrescentar). Esta consideração não
é despicienda, na medida em que explica o porquê de a obra de Trevisan não
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recuar perante o que noutros micro-ficcionistas se afiguraria decerto
improvável ou então seria quiçá usado com extrema parcimónia (pelo
menos): linguagem popular e coloquialidade, sem o mínimo receio da
obscenidade, Kitsch, clichés, abundância (ou mesmo exclusividade) do
diálogo. Mas também não é despiciendo, refira-se, correlacionar as folhas
volantes que Trevisan fazia chegar a certos privilegiados como um sintoma
decerto inequívoco da invisibilidade do autor atrás assinalada, e isso
essencialmente a dois níveis.
A) Em primeiro lugar, a escassez de folhas volantes endereçadas a
um grupo restrito de amigos e conhecidos, a sinalizarem uma fuga ao circuito
das editoras e de um entendimento da criação como trabalho oficinal, não
alcançam o estatuto de um volume composto, como se sabe; isto é, parece ter
havido, pelo menos a certo ponto da carreira do escritor, a renitência à
constituição de uma obra enquanto tal, correspondendo, assim, a
invisibilidade da figura do autor à quase invisibilidade da sua produção:
textos avulsos escassa e clandestinamente distribuídos e que, em
consequência, dificilmente circunscrevem o espaço de uma obra. Deste
modo, se o autor ao refugiar-se nas trevas, digamo-lo assim, não ganha vida
além da obra, o mesmo dizer, não ganha vida senão através da obra, não é
impertinente dizer que, semelhantemente, pelo menos antes de se constituir
em volumes compostos, esta tendia a não ganhar forma, ou se quisermos,
autonomia além do autor.
B) Em segundo lugar, ao fazer uso de uma linguagem que, sem
dificuldade, ouviríamos perfeitamente em qualquer zona pobre de Curitiba (e
do Brasil), o Autor desaparece naquilo que, em literatura, mais enfatiza a
singularidade de um escritor: a linguagem. Trevisan como que perde voz (o
seu idioleto, se preferirmos) ao mimetizar as vozes perdidas das favelas de
Curitiba (socioleto), já que a fidelidade ao linguajar das suas personagens
obsta à individuação autoral. Dito de outro modo: a individuação de Trevisan
enquanto autor tende a desaparecer em proveito de uma linguagem que, por
tão empenhada e ostensivamente espelhar as camadas desfavorecidas e
subalternizadas da população12, é da ordem do comum e do trivial.
Acantonada nos ambientes que põe em cena, abdicou dos artifícios do estilo a
bem de uma fidelidade sociológica: a que lhe faculta representar com
12
Um tanto como Georges Simenon se esforçava por cultivar o que chamava o estilo
il pleut nos seus policiais, isto é, um estilo desprovido de estilo, suficientemente
cinzento para ser capaz de representar a realidade corriqueira na sua mais pura
banalidade (e, desde logo, com a figura banalíssima, a não ser talvez no instinto, de
Maîgret).
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verosimilhança (etnológica) a dicção dos desfavorecidos (e alguns quadros
pequeno burgueses) de Curitiba. Uma dicção empobrecida, sobretudo se
aferida pela aura esplendorosa de registos estético-verbais acalentados pelo
desejo de sublime (e também se avaliada pela inclinação notória pelo kitsch e
pela chanchada), por força da baixa ou média condição social das
personagens que dela fazem uso; dicção empobrecida assaz condizente, digase, com a dimensão mínima dos textos, na medida em que dispensa
exercícios vácuos de retórica, não sendo nela rastreáveis floreados a
prolongarem frases e parágrafos. A bem da concisão, tudo acontece, ou
parecer acontecer, com o mínimo possível e na base da frase curta, do
enquadramento circunstancial das situações bem sumário e do léxico
básico13.
13
Se a ausência pública do escritor, confinado, como dissemos, à enigmática
condição de escritor-fantasma é significativa, não menos significativa é talvez o
que parece ser a insinuação dessa ausência no interior do corpo dos textos. Como?
Pelo apego a uma tradição orgânica de narrar, que é como quem diz: dificilmente se
achará nas narrativas de Trevisan tudo o que pode melindrar a coesão da
forma/conteúdo enquanto dialética expressiva que afasta de si tudo o que possa dar
a entender o modo como funciona a representação narrativo-discursiva. Daí a
inexistência de improvisos, de hesitações, de interpelações ao leitor, de fissuras ou
então de momentos desconjuntados, daí, em suma, que tudo seja impecavelmente
construído. Quer dizer, sem a menor amostra daquela metaficção correspondente à
autorreflexão crítica sobre a arte de narrar. Noutros termos, se Trevisan, apostado
no desvanecimento da orgânica textual, enveredasse pela emancipação estética dos
procedimentos técnicos de que se nutre a sua prosa e não se confinasse a preservar
em estado de latência os expedientes narrativo-discursivos de que se serve –
espécie de força invisível imprescindível à mistificação ficcional – para alcançar a
impressão de autenticidade, esse impulso criativo através do impulso crítico
equivaleria a torná-lo num escritor capaz de abdicar da privacidade da sua criação.
E tanto ficariam à mostra a criação como o criador, com tudo o que isso implica de
dessacralização do ato criador. Ora, como ficou já claramente dito, se há coisa que
Trevisan cultiva é a privacidade; e os textos de Trevisan, pode dizer-se, alinham
por esse princípio de base ao definirem-se em função de dispositivos graças aos
quais se dá, com notável proficiência, corpo ao aparecimento do escritor apenas
como entidade externa e razoavelmente ausente do que narra. Pelo menos no
sentido em que não interfere para chamar a atenção para o modo como entretece as
pequenas histórias que narra. Numa palavra, com Trevisan, estamos perante uma
narração (que não destoa, a não ser pela crueza do que é narrado e pela linguagem
rasteira empregue, de um qualquer folhetim realista-naturalista oitocentista)
nitidamente propensa, como é claro, para uma opção estética de fundo: a
apropriação do real pela narrativa breve e não a representação dessa apropriação.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
348
II
Sua danação por Maria permitiu-lhe
entender Lucrécia Bórgia, Madame Bovary,
Ana Karenina. Ah, pudesse apagar o sol,
presenteá-la com a noite sempiterna.
(TREVISAN, 1994, p. 11.)
A concisão dos textos de Trevisan, à custa de uma prosa enxuta e
«impercetivelmente burilada» (NUNES, 2012, p. 7), supõe-se, de uma
vigilância sem tréguas sobre a forma, não os torna meramente representativos
da comédia humana que o autor põe magistralmente em cena nos seus textos
breves. Assim, as pequenas intrigas merecedoras da atenção estrutural de
uma prosa mínima não colocam o escritor fora dos liames da tradição
literária. Com efeito, não é preciso especial clarividência crítica para detetar
que não estamos longe de um investimento notório em processos de criação
assentes na ironia e na contaminação por via da reescrita paródica, como
ficou já assinalado. A condição de autor marginal a que não escapa Trevisan
não o arreda, por outras palavras, da grande literatura. Veja-se que diversos
títulos exibem ressonâncias intertextuais óbvias: «Educação Sentimental do
Vampiro», «O Fantasma da Ópera», «Carta a um Jovem Poeta», «Paz e
Guerra», «Em Busca de Curitiba Perdida»; e a intertextualidade não se fica
pela paródia de Proust, Flaubert, Tolstoi, Leroux ou Rilke. Afora estas
invocações, a atenção do microficcionista incide igualmente sobre textos
canónicos e fundacionais, que, a seu modo bem peculiar, reescreve e/ou
comenta. É o caso da Bíblia, por mais de uma vez no cerne da modulação dos
textos de Trevisan, sendo as variações norteadas por um intuito de
dessacralização: «Ai Sansão, fosse bom amante não trocaria Dalila por um
filisteu qualquer» (TREVISAN, 1994, p. 116); «O escritor é irmão de Caim e
primo distante de Abel» (TREVISAN, 1994, p. 136); «Em toda a casa de
Curitiba, João e Maria se crucificam aos beijos na mesma cruz»
(TREVISAN, 1994, p. 136); ou ainda este micro-conto, intitulado «A
Primeira Pedra», e onde se nos dá a ver um final alternativo – versão profana
– da emblemática cena bíblica da lapidação da mulher adúltera:
Depois de escrever com o dedo na terra, Jesus fala
aos acusadores da mulher adúltera. Ali no meio do
povinho, Ester, Safira e Jezabel, famosas puritanas,
cada uma com dois seixos na mão.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
349
Mal Jesus remata com quem for sem
pecado, atire a primeira pedra, João acode:
– Falou e disse, ai, Jesus.
E a puxá-lo firme pela manga:
– Se abaixe, Mestre, lá vem pedra.
(TREVISAN, 1994a, p. 27.)
Como se nota sem custo, a variação serve o propósito, se assim se
pode dizer, de um desinvestimento teológico, que resulta aqui de uma versão
que considera o impensável: por entre a multidão sedenta de apedrejar a
adúltera há quem não hesite em lançar o cascalho à pobre e indefesa
pecadora. Mais: é o próprio Jesus, caso não se esquive, que – suprema heresia
que antecipa a da crucificação – pode receber a pedra furiosamente lançada
pela mão do exacerbado puritanismo. E não é ocioso observar que quem é
posto em destaque na linha da frente da punição são mulheres e não homens,
ao inverso do que acontece na versão primeira do episódio. Se o adultério não
parece aqui melindrar por aí e além os homens, pelo que dele usufruem
(supõe-se), já o mesmo não sucede com as mulheres puritanamente ao
serviço da manutenção da boa ordem patriarcal. E não parece haver nenhuma
solidariedade feminina, assente na subalternização do feminino que essa
ordem presume, capaz de travar a fúria justiceira de Ester, Safira, Jezabel...
De resto, heresia das heresias, nem o Messias, repita-se, escapa de poder ser
atingido, o que diz bem do pouco sensível que é o povo à sua mensagem de
perdão incondicional. A ferocidade moral sobrepõe-se à comiseração.14
14
Notemos que a revisão da Bíblia anda a par com uma crítica mordaz de Trevisan às
manifestações místico-religiosas e a tudo o que tenha a ver com ambientes de seita,
cujo triunfo, como se sabe, é especialmente esmagador em meios depauperados.
Leia-se: «Entra o maioral de capacete dourado e espada em punho. Colares
coloridos representam os orixás. As moças, nos vestidos branco ou preto, sem sutiã
nem calcinha, atiram pétalas de rosa vermelha aos seus pés. O mundo carece de
paz, anuncia ele, os filhos da casa guerreando. Pita o cachimbo com fumo. Todos
servem-se de bebida forte. Da galinha preta ele quebra as pernas. Rebenta as asas.
E, ainda viva, lhe arranca o pescoço: que os iniciados provem e bebam o sangue.»
(TREVISAN, 1997, p. 71); ou ainda este microtexto, onde fica evidente o valor de
mercado da religião, sujeita a estratégias de cativação que em nada desmerecem o
marketing empolgado de campanhas comerciais (ou políticas) agressivas; e aqui a
estratégia de engodo está habilmente montada em torno da denúncia de um bode
expiatório, culpado por tudo o que de mau (melhor seria dizer: maléfico) acontece
(Satanás) e, expediente não menos convincente, em torno do pavor que esse
―culpado‖ possa suscitar (e, já agora, repare-se no poder desmistificador da ironia,
sobretudo pelo exagero que é converter algo de tão raro como um «milagre» em
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
350
E este aspecto, se bem considerado, não é menor. Porque, além de ser
essencial para reescrever este célebre episódio bíblico em versão, digamos,
obscena (dir-se-ia o reverso obsceno desse episódio), é especialmente
revelador no tocante à centralidade do adultério na obra do escritor. Ou seja,
se o despudor da multidão que não acata as palavras de Jesus ocorre, é bom
sublinhar, em nome de um pudor maior, o da defesa intransigente e
pundonorosa de valores onde não cabe o adultério, este, se assim é
perspetivado num contexto altamente sagrado que é o da palavra de Cristo,
nunca menos o seria fora do âmbito bíblico, por muitos relicários domésticos
que se possam achar na prosa de Trevisan. Noutros termos, esta tradução
trevisaniana da passagem bíblica é consentânea e (se a quisermos ler como
tal) anunciadora de uma intransigência em relação ao adultério que é um
tema, como sabe todo o frequentador das microficções (e não sñ) do ‗vampiro
de Curitiba‘, pouco menos do que omnipresente.
III
Guerra conjugal: as mil e umas batalhas
sujas de trincheira, entre baratas e ratões, os
pés na lama, tossica a metralhadora, gás
mostarda no pulmão, carga suicida de
algo de perfeitamente quotidiano/banal e ao alcance de todos, conquanto se
professe a fé proposta): «– Em casa, você aí, olha o que está perdendo. Você que
tem visões. Ou escuta vozes. Espuma e sofre de ataque. Tem caroço no seio.
Catarata nos dois olhos. Gosto de sangue na boca. Batedeira no coração. Luta com
bichos na parede. Sente a casa caindo sobre a tua cabeça. Ou está desempregado.
Sem dinheiro e com dívida. Saiba que tudo é obra de Satanás. Ao entrar em nossa
igreja, o teu mal desaparece. Aqui o milagre é todo o dia.» (TREVISAN, 1997, p.
102). E leia-se esta outra microficção em que o culto de um vidente (ou alguém que
o valha), ao jeito do que acontece em regime de seitas, por parte de moças
espiritualmente ávidas dos bons cuidados protetores dessa personagem degenera
sem dificuldade numa submissão afetivo-sexual, que é como quem diz: a crença
fanatizada não é sem degenerar em corpos sexualizados e possuídos. Leia-se:
«Incorporando as entidades, não responde por seus atos. Em transe durante os
trabalhos, nada vê, de nada se lembra. Todas as moças o querem como protetor. Ali
a seus pés, sempre à disposição. Vestidas de preto, sem calcinha nem sutiã.
Carentes de sexo e família. Já não precisam de procurar na rua. Cada qual concorre
a rainha sacerdotisa. Nele acham o pai, guia, irmão, amante, grande príncipe.»
(TREVISAN, 1997, p. 67).
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351
baioneta, a boca no arame farpado, mina
explode a tua virilha, o que mais?
(TREVISAN, 1994, p. 110.)
– Por que não me enterra a faca no coração?
É mais perversa. Corta uma lasquinha, mal
sai sangue. Outro tantinho, rasga
gentilmente. Cada dia, na pinça de
relojoeiro, arranca um fio de pele. Olhe para
mim, assassina. Todo em carne viva. O
corpo inteiro esfolado. E você, lambendo as
unhas, impune. É o crime perfeito.
(TREVISAN, 1994, p. 39.)
«Do meu coração ela fez almofada furadinha de alfinetes»
(TREVISAN, 1994, p. 60), «Basta você beijar o pé da mulher, ela te
espezinha.» (TREVISAN, 1994, p. 56), «– Maria, vamos juntos no enterro.
De carro com chofer. Comendo broinha de fubá mimoso.» (TREVISAN,
1994, p. 68), «– Desde que vi meu pai aos beijos com a pretinha, jurei que
com brasileiro não casava. Casei, sim, com um gringo, de nome Amparo. Ai,
o que ele me fez nem queira saber.» (TREVISAN, 1994, p. 68), «– Na cama
o João vem para cima de mim. Uma transa lá entre ele e a minha perna, não
estou nem aí.» (TREVISAN, 1994, p. 16), «Falar com você, querida, é
discutir para sempre.» (TREVISAN, 1997, p. 110), «O marido com dores e a
mulher liga o rádio a todo o volume./ – Quero ver quem grita mais alto.»
(TREVISAN, 1997, p. 3), e poderíamos citar às dezenas microficções deste
tipo que definem o matrimónio na proporção de um lugar pouco salutar, para
dizer o mínimo.
Na melhor das hipóteses, homem e mulher enfrentam-se, sem
disfarce e sem tréguas, como dois carrascos numa guerra dos sexos
infindável. Melhor dizendo, numa espécie de guerra fria, onde os lances
românticos de outrora e toda a idealização supostamente engendrada nessa
altura (pré-matrimonial, certamente) mirífica em que o coração expandia
sacrifícios em nome do afeto, irremediavelmente deixados para trás, cederam
espaço a um ódio insanável que leva a detestar o outro até nos mais irrisórios
pormenores. Eis um exemplo suficiente disso:
Dois malditos carrascos a torturar um ao outro.
Nela tudo lhe desagrada: a boca pintada, o sestro de
beber água e deixar um resto no copo, a maneira de
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
352
cortar um bife. Assim a ela aborrece o seu cabelo
comprido, o passo truculento que abala os cálices
na prateleira, o pigarro de fumante. Por amor dela,
contraiu bronquite, gemeu dores de estômago,
padeceu vágados de cabeça e – ainda era pouco –
três furúnculos no pescoço. Mas não hoje. Que ela
surrupie do seu prato uma batatinha frita, capaz de
lhe morder a mão: Te odeio, bruxa velha.
(TREVISAN, 2002, p. 11.)
O ódio crescente torna-se tão insuportável que pode, inclusive,
engendrar um desespero de tal ordem que leve ao suicídio, muito embora se
possa igualmente ler esse suicídio, dado o pré-aviso de que se reveste, como
mais uma (a derradeira) forma de atingir o outro, como serve
reveladoramente de exemplo esta microficção: «O marido ao telefone: –
Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto – eu estou
enforcado.» (TREVISAN, 1994a, p. 88).
Na pior das situações, muito frequente em Trevisan, os ódios
resvalam sem dificuldade para violências de vários tipos. E, numa pura lógica
patriarcal, a mulher, excetuando a figura da mãe (sacralizada), padece sem
cessar. Daí a abundância de relacionamentos sadomasoquistas, onde, regra
geral, o homem sujeita sem mercê a mulher a todo o género de humilhações e
baixezas. E a violência chega a extremos de crueldade, como se verifica
nestes dois textos, particularmente representativos de uma ferocidade insana:
– Você não é homem, cara.
Fico de pé, saco do punhal. Um golpe,
outro, mais outro. Sem um grito, ela cai, derruba na
mesinha copos e garrafas. Pronto se calam as vozes.
– Me acuda, João.
Consegue ainda se levantar. Cambaleia
dois passos no salão. De frente, enfio o punhal.
Mais fundo e de mais baixo para cima. Ela me
abraça:
– Não me mate que eu volto.
Molhado de sangue o peitinho branco.
Estende a mão esquerda, as bijuterias bolem no
pulso:
– Me leva para casa.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
353
Arrasta-se ali a meus pés. Cai do lado numa
poça de sangue.
– Tua casa é o inferno, querida.
(TREVISAN, 1994, p. 125).
Mal a pobre se queixa:
– Ai, que vida infeliz.
Ele a cobre de soco e pontapé:
– E agora? Está se divertindo?
Apanha ela (grávida de três meses) e
apanham as cinco pestinhas. Uma das menores fica
de joelho e mão posta:
– Sai sangue, pai. Não com o facão,
paizinho. Com o facão, dói. (TREVISAN, 1994, p.
23.)
E não raro a violência atinge o cúmulo, o que a torna ainda mais
repelente, por acontecer a troco de (quase) nada:
– Monstro. Igual ao pai. Coragem de me
bater!
– Por que provocou?
– Motivo tão fútil...
– É o mais grave. Todo grande crime é por
motivo fútil. (TREVISAN, 1994, p. 107.)
Note-se um pormenor: a presença da linhagem («Igual ao pai»)
patriarcal. Se a consciência masculina não produz moralidade aceitável ou,
para dizer com outros termos, se nos homens dados à violência doméstica a
consciência parece dispensada, é (também) porque o parentesco a não
reproduz nessa matéria que é a do respeito mútuo entre sexos. Neste sentido,
a microficção de Trevisan assemelha-se um tanto a uma psico-genealogia: os
protagonistas, como se carregassem o peso inapagável de um inconsciente
familiar, feito de episódios trágicos ou próximos disso, tendem a reproduzir
histórias (dramáticas) e flagelos familiares num contexto social que os
propicia. Algo, em todo o caso, parece indubitável: a violência sob as mais
diversas e (sobretudo) execráveis formas é, com ou sem antecedentes
familiares, uma presença imperativa na esmagadora maioria dos
protagonistas, o que diz bem de uma ideologia conservadora descrente da
bondade do indivíduo, posto tratar-se de um indivíduo em sociedade.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
354
Um parêntesis também para comentar a moral do texto, insinuada
através de uma constatação formulada na última frase: o grave parece não ser
tanto o crime, cuja existência se supõe assim inevitável, uma vez que pior do
que o crime é a pouca ou nenhuma justificação que esse crime possa
apresentar na sua origem. É, pois, a ausência de justificação mínima que o
torna socialmente injustificável. Portanto, o pior que um crime pode cometer
é não dispor de uma razão suficientemente apta a justificá-lo. Neste sentido, a
moral das microficções do ‗vampiro de Curitiba‘, ou melhor, a moral que as
suas personagens apregoam e que é a que o escritor, através delas, denuncia,
essa moral, anote-se, é congruente com a mentalidade que propala a justeza
dos crimes de honra.
Convirá, finalmente, ainda sublinhar que esta microficção, à
semelhança de muitas outras, perfaz-se somente pelo uso do discurso direto.
Não sabemos ao certo se se trata de um diálogo com duas ou mais pessoas;
nem sequer nos é dado a conhecer o género ou a condição dessas pessoas.
Nada disso, em bom rigor, é indispensável. O que salta à vista é uma técnica
de representação assente na distância, por ocultação, do narrador. E esta
distância não visa colocar o assunto em causa – a violência conducente ao
crime engendrada por uma qualquer futilidade – à distância, antes o oposto:
torná-lo tão flagrante que entre protagonistas e leitor não se intromete a
presença (distanciadora) de um narrador a comentar o que, em si mesmo, é
tão explícito que dispensa a mediação de quem quer que seja excetuando os
interlocutores do diálogo. Muitas das microficções de Trevisan assentam
nesta técnica do cancelamento da voz do narrador. Consequentemente, as
personagens, em tais micronarrativas, não vivem senão em função do que
dizem.
A bem de um certo equilíbrio de forças, a mulher nem sempre é
vítima indefesa dos maus tratos infligidos ou, pior, de uma morte certa.
Numa reviravolta surpreendente, acontece volver-se em carrasco. E aí não
resta ao homem senão sofrer as consequências do seu ignóbil
comportamento, recebendo em igual proporção o que se propunha fazer à
mulher. Ou seja, não existe sequer a possibilidade remota de uma inversão da
dominação desembocar numa conciliação. A vítima metamorfoseada em
carrasco não foi tão vítima (ou tão pouco vítima) que abdicasse de aproveitar
a inesperada reviravolta para um eventual comiseração apaziguadora. De toda
a maneira, mesmo subalterno, é o homem quem continua a ditar o desenlace
do conflito e fá-lo em função da sua honra conspurcada à conta de se achar
em situação de humilhação irreparável, a não ser matando a mulher («Me
mate, mulher. Senão você morre»):
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
355
– Peça perdão, assassina da minha alma.
– Tudo, João. Só não me mate.
Vi a morte nos olhos, achei força de
empurrá-lo. João cambaleou, alcancei uma acha de
lenha. Bati duas vezes na cabeça dele, que derrubou
a faca. Tonto e fraco, caiu de joelho.
– Me mate, mulher. Senão você morre.
Saía sangue pelo nariz e a boca. Meio que se
aprumou:
– Se me levanto, diaba, é o teu fim.
Suspendi a acha, fechei o olho, dei o terceiro golpe.
– Morre, desgraçado.
A força de mãe foi que me valeu.
(TREVISAN, 1994, p. 15.)
Na origem da violência encontram-se diversos motivos. Um deles,
decerto o mais óbvio, consiste na franca misoginia exibida por diversas
personagens e que é co-extensiva às várias condições sociais. Tanto é
misógino o habitante da favela como pode sê-lo o médico que o trata. Alguns
exemplos merecem transcrição:
– Cadê a Maria?
– Lá na cama. Depois de cada discussão corre se
deitar. ―Apague a luz que vou morrer‖ – e cobre a
cabeça com o lençol.
– Tadinha.
– Que nada. Só de fiteira. (TREVISAN, 1994, p.
44.)
O coração da bem-querida: oco de pau podre, aqui
floresce aranha, serpente, lacraia de fogo.
(TREVISAN, 1994, p. 21.)
Ele encerra mais uma discussão:
– Ó grandíssima cadela!
– É você, carniça.
Enfia o chapéu e, quando abre a porta, dois
tiros pelas costas, um na coxa esquerda, outro de
raspão na virilha. Volta-se, agarra-lhe o pulso,
recebe terceiro tiro no pé direito.
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– Me acuda, que vou morrer.
Maria muito arrependida, de joelho e mão
posta.
– Não sei onde a cabeça.
E correndo pela rua aos gritos:
– Eu matei o bichão.
Sentado no tapete xadrez, encharcado de
sangue, bem quietinho. Sete dias no hospital, sorte
não ficar imprestável como homem. O jovem
médico, na despedida:
– Toda mulher é assassina. Cuidadinho, seu
João. (TREVISAN, 1994, p. 79-80.)
Ora, deste desprezo pela condição feminina à sua subalternização vai
um passo mínimo. Por outras palavras: a tirania no lar somatiza o machismo
reinante, elevado à condição de um domínio absoluto, ou perto disso, sobre a
mulher e os filhos (o outro elo fraco), conforme sucede neste micro-conto e
que é mais uma das muitas declinações que a obra micro-ficcional de
Trevisan oferece neste âmbito: «Com a mulher e os filhos no barraco de duas
peças você não é menos que o César Tibério na ilha de Capri.» (TREVISAN,
1994, p. 71). É impossível dizer melhor a condição déspota do Pai talhado na
superfície de uma tirania que não poupa sequer os filhos.
Entre diversos outros motivos, através dos quais os diferentes pais
tiranos tematizados por Trevisan se ligam entre si com alguma variação,
como é o acentuado gosto dos homens pela bebida15, que descamba para a
violência familiar, ou, do mal ao menos, pela boémia16, destaca-se esse
motivo maior, porque preponderante na ficção Trevisaniana que é o adultério.
Adultério que atravessa, dir-se-ia, toda a obra do escritor de Curitiba,
tamanha é a centralidade que lhe é concedida. Fiquemo-nos por alguns
exemplos. Comecemos por este, talvez um dos mais graciosos:
Domingo, de volta do futebol, ele serve-se de uma
cachacinha, liga o rádio.
15
«– Que loucura, João, beber tanto./ – Mais loucura não é, depois de bêbado, voltar
para casa?» (TREVISAN, 1994, p. 97.)
16
«A noivinha em pranto:/ – São horas? Um homem casado? De chegar?/ O boêmio
fazendo meia volta, no passinho do samba de breque:/ – Não cheguei, minha flor.
Só vim buscar o violão.» (TREVISAN, 2002, p. 64.)
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357
– Sabe, paizinho?
É o menino de seis anos, todo prosa.
– O quê, meu filho?
– Essa é a música que a mãe dança com o tio
Lilo. (TREVISAN, 2002, p. 37.)
Por termos aqui um certo decoro social (foram ao futebol, dispõem
de um rádio, enfim, há um certo bem-estar inacessível à classe socialmente
destituída) e talvez sobretudo por a denúncia se ficar a dever à inocente
impertinência de uma criança, e, como é óbvio, ainda pelo facto de o texto
findar sem antes nos fornecer a reação do marido enganado (e a traição, por
envolver o «tio Lilo» confina-se ao meio familiar, o que é de molde a
complicar tudo17), o adultério aqui não chega a funcionar como combustível
de violência. Fica-se pelo estatuto, digamos, de embaraço. A revelação da
criança é, pois, embaraçosa pelo que põe inadvertidamente a descoberto,
mesmo sabendo-se que dela advirão consequências bem mais sérias do que
um simples embaraço. Efetivamente, a verdade é que, em Trevisan, a
proliferação de traições matrimoniais, quando descoberta18, não é pensável
sem a vinculação à brutalidade, quando não atrocidade, que provoca, como
de resto é muito típico das mentalidades patriarcais mais radicais, onde
infidelidade e crime são co-extensivos. Assim, numa das microficções, um
guarda regozija-se pelo seu primeiro preso, cujo encarceramento se deve a
17
Assim se percebe que certos ódios acontecem entre irmãos. Mesmo nessa hora
fatídica e de profunda comoção que é o funeral de uma mãe: «– Os dois irmãos
eram os piores inimigos. Bem me lembro no enterro da velhinha. Eles seguravam a
alça do caixão – e não se olhavam. Pálidos, mas de fúria. Nem a cruz das almas
comoveu os dois. Se odiavam tanto que a finadinha bulia sem parar entre as
flores.» (TREVISAN, 1997, p. 34). Repare-se como Trevisan dá conta
magistralmente da tremenda tensão entre os irmãos: o cadáver da finadinha,
bulindo sem parar entre as flores, parece ganhar vida.
18
O que, por um triz, não é manifestamente o caso deste micro-conto: «Ao chegar
em casa, do programa no motel, o marido é saudado com um grito pela mulher: –
Eu soube de uma coisa terrível!/ Pronto, ele pensa, estou perdido. Ela descobriu
tudo./ – Pô, o quê... Mas o quê... O que aconteceu?/ – Mataram o filho do seu
João!/ – Urr... Orra. É mesmo? Pobre do seu João./ Te devo essa, Deus.»
(TREVISAN, 2002, p. 68). É de notar que se não temos aqui nenhuma violência
(verbal ou física) desencadeada pela infidelidade, uma vez que a traição manteve-se
clandestina, a preservação desta violência ocorre, um tanto ironicamente, à custa de
uma outra violência (e mortífera): a liquidação do filho do seu João.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
358
um crime passional: «O guarda Bruno chega: ―Tá preso.‖ O rapaz deixa cair
o punhal: ―Ela vivia fazendo desfeita pra mim.‖ Vaidoso, o guardinha conta
que é o seu primeiro preso.» (TREVISAN, 1997, p. 75).
Convirá chamar a atenção para o seguinte: em situação de adultério,
a morte não atinge somente a mulher. Pode também ocorrer o caso de o
amante morrer às mãos do marido enganado ou então, surpreendentemente,
de ser este a sucumbir àquele, como parece acontecer aqui:
―Epa, diabo. Não me conhece?‖ De costas, sai para
o terreiro. João segue atrás. Investe com um golpe
traiçoeiro. Tito rebate e acerta de raspão o braço.
Cai a faca. João avança furioso, aos berros. Recebe
dois, três cortes. Tropeça e vai ao chão. Bem
quieto. O outro limpa o facão na cerca. Enrola um
cigarro, a sombra do chapéu no rosto. Pronto a
chamar o sargento. Antes de sair a mulher ao lado
do fogão, cercada de filhos: ―Vá lá ver teu homem
que eu matei.‖ (TREVISAN, 1997, p. 40.)19
19
Ou então, a eliminação do amante se ficar a dever a um impulso momentâneo,
como acontece neste quadro composto por uma sequência de duas microficções:
1.
Ela diz que tem naquela noite uma reunião de trabalho. Desconfiado, vou até lá. Do
meu carro quem vejo ali com o chefão, rindo e de mão dada? Os dois sobem no
carro dele. Entro no bar da esquina e bebo alguns chopes. Só penso no meu bem.
Em vinte anos, ai não, o único amor.
Três horas depois eles voltam. Vou ao seu encontro. Quero falar só com ela e pego
pelo braço. Não chamo pelo nome, sñ de bem. ―Agora, bem, me diz o que há.‖ Ele
se põe na minha frente. Ah, nunca vou esquecer: ―Cala a boca, certo? Não faz
escândalo‖.
2.
Me viro para ele: ―Com você, não falo. Se fez de meu amigo. Foi ao aniversário de
minhas filhas. Não passa de um canalha‖. Daí sacode no meu rosto o anelão
vermelho do dedo: ―Você tem sido um bacaca, certo? Um grande cornudo. A tua
mulher, sacou? É muito minha‖.
Um empurrão no peito quase me derruba. Daí eu atiro, certo? Duas vezes ele roda no
mesmo lugar. Continuo atirando, sacou? E vai de cara no chão molhado. Jogo fora
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
359
O adultério, se calhar compreensível à luz dos tratos violentos de que
padece a mulher trevisaniana, parece, em contrapartida, conter em si como
que a condição de mais uma violência: aquela pela qual se pune
exemplarmente. Mas o excerto acima citado, na verdade, revela um sentido
assaz difícil de circunscrever com cabal exatidão. Afinal, quem morreu e às
mãos de quem? «‖Vá lá ver teu homem que eu matei‖», é frase proferida pelo
marido enganado? Ou é o amante que não se inibe de a dizer perante os filhos
menores da mulher? Ou, hipótese igualmente a não descartar, será que Tito
não é um inimigo, seja por que razão for, que João tentou liquidar com um
golpe pelas costas. A ser assim, restam o crime e a incerteza de ter havido
adultério, ficando indeterminada a razão que levou João a querer apunhalar
Tito. O que fica claro é a morte daquele e a (neste caso, desconcertante)
declaração final. Mas não custa suspender as leituras e resumi-las numa só: a
que envereda pelo adultério e por um marido enganado que fracassou, à custa
da própria vida, na tentativa de matar o rival. A ser assim, esse marido traído
foi por duas vezes vítima. E mais se pode dizer: se foi vítima de traição,
vítima igualmente foi na hora em que procurou desferir um golpe traiçoeiro.
Um pouco como se se dissesse: traição não se vinga com mais traição. Ou,
então, como se se propusesse esta bem duvidosa moral: infidelidade resolvese matando a mulher e não tanto o amante desta.
Outras vezes, a vítima é apenas, e sem ambiguidade, o marido traído,
que fica sem a mulher, que decide partir, e com o cuidado dos filhos,
desapossado assim do matrimónio sem que contasse. Em vez de sangue
derramado, surge a explicação possível. Tudo se resume a uma carta, melhor
dizendo, a pouco mais que um bilhete de despedida:
―João, eu parti para sempre, cuide bem das
crianças, são um pedaço do meu coração, não
esqueço tudo o que fez por mim, você me deu até o
que não tinha e eu? não passo de uma perdida, sei
que não mereço o teu perdão, fugindo na minha
idade, já pensou? caso me veja com o outro finja
que não me conhece, louca! o que eu estou
fazendo? aqui o último beijo da que foi sempre tua
– Maria.‖ (TREVISAN, 2002, p. 75.)
a arma e lhe dou as costas. O bem atrás de mim, aos gritos: ―Louco, louco. Que vai
ser de tuas filhas?‖ (TREVISAN, 2002, p. 48-49).
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
360
Não deixa de ser interessante a retórica final da fórmula empregue
para a despedida, logo antes da assinatura: «da que foi sempre tua». Em rigor,
a carta vem justamente ratificar o inverso dessa fórmula. Mas o que cumpre
notar é que parece pairar aqui uma continuidade elidida, mas, afinal, central,
já que é disso que trata a missiva: informar o marido traído que, embora a
esposa fosse dele, já o não é mais. Ou seja, a despedida não é somente um
mero exercício de pragmática comunicacional, na medida em que, a despeito
do encanto que lhe confere a sentimentalidade das palavras escolhidas,
contém a ênfase desse corte com o qual as coisas mudaram de rumo e
deixaram de ser o que eram. O «beijo» final é menos da que «foi sempre tua»
e mais da que «já não é mais tua».
Outro aspecto a considerar é o facto de a despedida insistir um tanto
no que diríamos ser um catecismo da culpa assumida. Trata-se, tudo bem
visto, de mais uma versão negativa da mulher: não só esta foge com outro,
largando inclusive os filhos ao cuidado do marido traído, como não justifica a
fuga, vale dizer, justifica-a com o injustificável: «não esqueço tudo o que fez
por mim, você me deu até o que não tinha e eu? não passo de uma perdida,
sei que não mereço o teu perdão, fugindo na minha idade, já pensou?»,
«louca! o que eu estou fazendo?». Estamos perante a autoexpressão de uma
volubilidade extrema. A da mulher que sem razões para tanto cede, a despeito
da boa vida familiar de que beneficiava (ao contrário de muitas), ao desejo.
Nesta perspetiva, e num autor (d)enunciador de realidades intrinsecamente
patriarcais, a carta tanto é uma despedida como uma flagelação que converte
a mulher numa impenitente adúltera. A ausência aqui de um grão sequer de
violência por parte do marido, que não é daqueles (quer dizer, não se presume
que o seja) dominadores que pululam em Trevisan, é, como se percebe, de
molde a aumentar a culpa da fuga. Porque parece tratar-se de uma fuga sem
motivo aparente, a não ser o desconcerto de um coração volúvel. Eis o que é
suficiente para perturbar a condição masculina (e, faço notar, a obra de
Trevisan pode ler-se como crítica impiedosa a essa condição). Outra leitura
possível, e decerto a não descurar, é a que traduz a carta segundo o amorpaixão romântico. O único senão reside no facto de em Trevisan o amor,
mesmo se convenientemente traduzido em retórica afetivo-sentimental, não
andar a compasso com idealizações românticas e provir mais de sensações
carnais. Mais do que amor, convirá, pois, falar em desejo (carnal, entendase).
Noutras circunstâncias, e ainda a propósito do adultério, é bom de ver
que uma tentativa lograda de fazer justiça pelas próprias mãos é passível de
desembocar num polo oposto ao do crime por razão de honra: o da conversão
mística. Deste modo, e passada a meia idade, ressentimento e ódio
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
361
desvanecem-se em prol de uma fé ardente que não consente em tudo que não
seja bem e espiritualidade:
– Inteirei cinqüenta anos. Enganado pela mulher
mais moça. Nesse loiro que ronda a casa dou uns
tiros, mas não acerto. De católico mudo para crente.
Minha defesa antes era uma faca. Hoje do céu o
meu amparo. Se você é crente, adulterar não pode.
―Nada te faço‖, eu digo. ―Por bem casamos, por
bem nos apartamos.‖ Ela se vai com o loiro, guardo
os três filhos. Esses eu conheço que são meus. Daí
ela se junta com outro, biscateiro de galinha. Agora
acabou, não sei de mulher, para o crente é mais
fácil. A palavra cala no teu coração. A luz vem de
cima. (TREVISAN, 1997, p. 44-45.)
IV
Ele manda e desmanda no vento.
Ralha com a chuva. Castiga o raio.
Silencia o protesto do trovão. Só
pela velha não é obedecido.
(TREVISAN, 1994, p. 41.)
Como se viu, o matrimónio oferece palco a um extremado
sadomasoquismo. Adultérios e crimes são enfatizados pelas microficções de
Dalton Trevisan; e mais do que isso: a danação, nessas microficções, é tanta
que o tempo nem sequer atenua o que quer que seja, a avaliar pela
proliferação de velhos desamparados e humilhados. Dir-se-ia que com o
avançar dos anos a violência recrudesce, o que torna incessante a guerra
conjugal e não apenas. Exemplo flagrante de uma situação de desamparo é,
em «Clínica de Repouso» (O Pássaro de Cinco Asas), o de uma idosa largada
pela filha num hospício infecto, muito ironicamente chamado ―Nossa
Senhora da Luz‖, e onde, ao invés de um merecido repouso, a anciã acha,
entre outras sevícias, o cruel escárnio das freiras.
Se quisermos saber se e de que modo esta situação decrépita dos
idosos, sujeitos a maus-tratos e a um resto de vida atormentado, se reproduz
nas microficções do autor, basta ler algumas como esta, em que um casal não
se abstém de brigar: «Casal brigado, de costas. Longo silêncio. De repente o
velho:/ – Sua diaba. Para de ficar ouvindo o meu pensamento!» (TREVISAN,
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
362
2002, p. 90); ou ainda estas duas, particularmente exemplificativas do ódio
que sustenta a (má) relação entre dois velhos, que já dificilmente (isto é, só
mesmo por necessidade) se aturam: «A velhinha geme e o velho liga o rádio
bem alto./ – Se é o fim, desgracida, rebenta duma vez.» (TREVISAN, 1997,
p. 7),
O velho compra um naco de queijo e avisa:
– Se você pega eu te corto em pedacinho.
A velha tem de pegar quando limpa o armário.
Daí recebe um tapa na orelha, dois empurrões e cai
sentada.
– Gostou, sua diaba? (TREVISAN, 1992, p. 83-84.)
Noutro micro-conto, a degenerescência física – a falta de visão –
acarreta uma vantagem apreciável: «Seu João, perdido de catarata negra dos
dois olhos:/ – Meu consolo que, em vez de nhá Biela, vejo uma nuvem.»
(TREVISAN, 1994, p. 127). Não admira, pois, que a morte de um deles dê
azo a uma libertação anteriormente acalentada – «A velhinha meio cega,
trêmula e desdentada:/ – Assim que ele morra eu começo a viver.»
(TREVISAN, 1992, p. 84) –, que pode assumir diversas formas, conforme se
conclui destes dois microtextos, ambos uma boa exemplificação deste estado
de coisas (e um deles um tanto singular e que diz muito sobre o passado de
sujeição do viúvo, especialmente se considerarmos esse apêndice capilar
superior que é o bigode como um símbolo de masculinidade):
A velha morre do medo de morrer. Cinqüenta
quilos reduzidos a trinta e cinco, quase cega.
Pragueja o companheiro, ameaçando com a
bengalinha trêmula. No último dia, a cisma de que
se espirrasse não morria. Espreme-se toda numa
visagem:
– Pronto, espirrei. Hoje não...
Resfriada, espirra e espirra. João prepara o
chá de sete folhas – da janela atira um beijo e dirige
galanteio obsceno, quem pode ser? Lá na cama, ao
terceiro espirro, a sua velha é finadinha.
Primeiros dias o pobre chora muito – as
filhas até escondem o revólver. Suspira, ai, sem
sossego, ai. Ele, que nunca foi de igreja, três missas
manda rezar. Aflita, uma das filhas vai bem cedo
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
363
visitá-lo. Não é que surpreendido, atrás da porta,
fazendo arte com a criadinha? (TREVISAN, 1994,
p. 73.)
Durante quarenta anos, a cada sua tentativa
dissimulada:
– Seja ridículo, velho – era a mulher
contenciosa e iracunda. – Bigode? Não tem o que
fazer?
Até que ela morreu. Contrariada de ir
primeiro. Dias depois, os amigos dele já reparavam
no bigodão em flor. Grisalho porém viçoso. Tudo o
que fazer. (TREVISAN, 1997, p. 109.)
Com ou sem libertação, com ou sem o tormento inescapável de um
parceiro insuportável, o certo é que a velhice é também fatalmente uma
deterioração, que fica, muito nitidamente, clara quando acontece a perda de
um sentido de identidade. Nomeadamente a não recordação do básico que
sustenta qualquer identidade, a começar pelo saber quem somos: «Na hora de
assinar, todo soberbo o velhote, no seu oclinho torto:/ – O meu nome, qual é?
Quem mesmo sou eu?» (TREVISAN, 1996, p. 70). E o drama dessa
desintegração é tanto mais acentuado quando se nota o desespero de um
amparo que não virá porque nem tão pouco se é já capaz de estabelecer o
mínimo contacto (neste caso, telefónico) com quem quer que seja. Isto é, a
clausura e o sofrimento inerente atingem o patamar irreversível de uma total
impossibilidade de reverter a situação. É o desespero em toda a sua força que
se nos dá a ver. Leia-se: «Chorando baixinho, o velho disca todas as
combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa.»
(TREVISAN, 1994, p. 124).
V
– Ai, amor.
Ai, não
pare.
Irritada com a medalhinha que salta
entre o seios,
atira-a para as costas. E você merece de
relance o triste olhar de Nossa Senhora. (TREVISAN, 1997, p. 26.)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
364
Ela cai-lhe nos braços, toda
trêmula. Nem falar pode,
assustada. Desabotoa o
casaquinho – ―cuidado,
querido, o pregador!‖ Ele se
desfaz da gravata.
Aos beijos, de pé. Aos
beijos, sentados. Deitados no tapete, rolando.
– Quer que morda ou beije?
– Sim.
– Beije ou morda?
– Sim. Ai, sim.
Essa aí a grande tarada do sim, sim.
(TREVISAN, 1997, p. 75.)
Para terminar, resta falar da sexualidade – leia-se: o lado instintivo, e
sadomasoquista, da sexualidade (a satisfação obtida) – e, correlativamente,
do desejo (a satisfação esperada). Ambos, com o leque de fantasias que os
sustentam, são, não se duvide, o tema maior das microficções de Dalton
Trevisan. A grande porção dos crimes por honra devem-se, como se disse, ao
adultério; outros crimes são-no em função de um combustível sexual
incontrolável que se satisfaz através de violações; enfim, não se pode deixar
de reconhecer que a sexualidade é como que a mola sobre a qual assenta
consideravelmente a interação (consentida ou não) entre personagens. Os
exemplos são muitos e variados, limitar-nos-emos a alguns.
Desde logo, a sexualidade coincide em não poucos textos, até onde
pode, com uma fantasia à solta. No seu confinamento mental, a sexualidade
é, numa palavra, antes de mais desejo por cumprir. Neste aspecto, é algo de
inalcançável e de indefinível que suscita o desejo (um não sei quê, espécie de
objeto petit a lacaniano); e que, tratando-se da microficção transcrita a seguir
(notável modulação do motivo donjuanesco), toma a forma de uma
insuperável insatisfação erótico-sexual e da qual dificilmente se imagina
algum resgate satisfatório (não é de prever que o «coroa» quinquagenário seja
solução para acalmar o capital sexual, digamos assim, da personagem, que
vem distorcer por completo a imagem patriarcal da menina bem comportada,
porque contida nos seus desejos; o desejo sexual fora dos parceiros, apetece
dizer, é como que a descoberta de um reencantamento): «– Apaixonada por
um, transo com outro e gozo pensando no coroa de cinqüenta anos – o único
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
365
que me faz sonhar. Meu Deus, como sou dividida. Acha que isso é normal?»
(TREVISAN, 1994, p. 41.)
Veja-se ainda esta outra situação curiosa, em que uma solteira virgem
não aguenta mais a carência de sexualidade e implora por ser desflorada (e é
de supor agora que o desejo, ao arrepio de preliminares e de outras carícias
expressivas do amor, se pretenda conotadamente selvagem) como quem
suplica o direito a uma condição minimamente digna de vida. E se culpa
imensa há na personagem, é a de ainda ser virgem, daí que haja algo de
clemência na penetração pela qual tanto anseia: «A solteirona virgem, depois
de umas doses de uísque, ao antigo namorado:/ – Por favor, me salva. Livra o
meu corpo desse maldito limbo. Dessa terra de ninguém!» (TREVISAN,
1997, p. 39.)
Ainda no domínio da fantasia, é possível desejar e ver a nudez
desejada numa mulher que se desfaz dos seus óculos (e não há como não ver
aqui os óculos em termos de autoridade intelectual semelhante à de uma
professora na sala de aula, sucedâneo fetichista da mãe tirana; neste sentido,
retirar os óculos equivale a entregar-se e, mais, corresponde à presença, em
registo lacaniano, do falo materno circunscrito à nudez de um rosto; e, nesta
ótica, os óculos são, igualmente, o signo de uma identidade racional, sem a
qual se acede à fantasia irrestrita): «Excitação maior que despi-la? É livrá-la
do óculo. Mais nua de estar sem óculo que sem roupa.». (TREVISAN, 1994,
p. 18).
E não falta sequer um ejaculação precoce motivada somente pela
simples contemplação de uma mulher, consequência empírica bastante
reveladora do poder psicossomático da fantasia, sobretudo em situação de
retenção, como parece ser o caso, de desejo até ao instante que é o da visão (o
olhar como catalisador de desejos): «No gesto mágico, duas vezes nua. João
se contém para, de mão posta, não cair de joelho. Quem vê uma mulher nua
já viu todas? Aí se engana, cada uma é todinha diferente. Ah, que bom,
aprender tudo outra vez.» (TREVISAN, 1994, p. 38.)
Mas, em geral, o desejo em Trevisan não abdica de atributos físicos.
E os contextos são múltiplos: o velho que se aquece e reconforta dormindo
com uma moça de 18 anos – «– Na nossa idade, ai, com esse frio, só peço
uma boa canja, um copo de vinho, uma bolsa de água quente – e cama que te
quero./ – Pois a tua bolsa quente, o teu copo de vinho, essa boa canja eu
tenho lá na minha cama de dezoito aninhos.» (TREVISAN, 2002, p. 74), o
homem que se queixa da falta de peito da sua Maria – «– E qual o problema
com a Maria?/ – Ah, ela é boa, é carinhosa, é trabalhadeira./ – .../ – Mas pô!
Nadinha de peito.» (TREVISAN, 2002, p. 72) –, a moça que, a caminho do
gozo, suspira com prazer intenso perante a dureza do órgão genital masculino
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
366
do parceiro (prazer cujo alongamento orgásmico é expresso
grafematicamente, repare-se, pela distensão da palavra «duro»): «Qual
epopeia de altíssimo poeta se compara ao único versinho da primeira
namorada:/ – Que duuro, João!» (TREVISAN, 1994a, p. 90; 1997: 43); ou
ainda a moça que, com indisfarçável orgulho, ostenta o seu poder corporal de
atração: «– Esse aí me adora, sim: daqui pra baixo.» (TREVISAN, 1994a, p.
91).
Finalmente, convirá ainda referir que a sexualidade, em Dalton
Trevisan, está longe de se reduzir a uma troca carnal consentida. Não
rareiam, assim, violações. Desta sexualidade transgressiva e criminosa, não
minguam exemplos. Eis alguns (as duas últimas microficções perfazem uma
sequência narrativa, conforme se depreende do conteúdo):
Sozinha, na rua escura. Lá vem o negrão. Dou três
passos, agarrada por trás. ―É um assalto‖, ele diz.
―Um grito. E já te corto‖.
Me arrasta para longe. Arranca toda a
roupa, inteirinha nua. Mão junta, gemendo e
chorando: ―Meu Jesus Cristinho. Leve tudo. Pode
levar. Só me deixe em paz. Por favor, não faça mal.
Uma pobre mulher doente.‖
Com ele não tem Jesus Cristinho. Ali no
matinho o palco das minhas sete mortes. Sem
pressa ele me desfruta. De todas as maneiras. O que
nunca pensei na vida o negrão fez. Ai de mim, não
me sujeito, esganada por ele, não está de
brincadeira. Me trata o tempo todo de vagabunda e
nomes contra a moral. Ainda resisto, me cobre de
socos, acerta o ouvido e sangra o nariz.
Serve-se à vontade, mais de uma vez se
regala. De joelho peço que tenha pena. Tudo o que
fez já não basta? Quatro da manhã, me deixa na
esquina. Larga o meu braço, some na escuridão, ele
e sua cantiga.
Agora, o pior: abro a porta, meu Deus. E
olha para mim, o pobre João. (TREVISAN, 1997,
p. 113.)
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
367
Fundo da noite acordo, uma faca no pescoço.
―Grite... E está morta!‖ A boca molhada na máscara
de meia. São dois. Cantigas de suor, bebida, droga.
Eles reviram o quarto, querem dinheiro e joia.
―Pelo amor de Deus, levem tudo‖, eu imploro, ―sñ
não façam mal.‖ Não acham quase nada. Já estão de
saída, um deles muda de ideia. Me pega pelo braço:
―Vai ser minha mulher.‖ E para o outro: ―O
segundo é você.‖ (TREVISAN, 1997, p. 8.)
1.
Daí fecha a porta, se livra da meia na cabeça. Loiro,
uns trinta anos. ―Não olha minha cara‖. Faca na
mão, me força ao que bem quer. ―Pôs, três meses
sem mulher.‖ Me agarro à vida, acabar logo com
aquilo. Mas ele não gostou. ―Uma droga de puta.‖
Chama o parceiro: ―Sirva-se.‖ Vão embora quando
clareia o dia. Então choro, choro. Camisola e roupa
de cama enfio na máquina de lavar. Tomo banho
demorado – um grande sapo branco mordendo a tua
nuca. (TREVISAN, 1997, p. 9.)
2.
Choro todas as lágrimas. Não posso deixar que um
bandido estrague minha vida. Meus pais não sabem
até hoje. Outro banho. Pro namorado eu conto, só
que ele some. Dez dias faz que aconteceu. Vou ao
médico, pede exame. Deus meu, grávida, doente,
pesteada? Mais um banho. Já não me lembro da
história inteira, apaguei alguns pedaços. Só não
esqueço o meu ódio daquele maldito. Banho.
(TREVISAN, 1997, p. 10.)
Repare-se agora na singularidade desta outra microficção, ainda
sobre o tema da violação, que dá voz não à vítima mas ao violador. O que
lemos é a perspetiva de quem viola e para quem o ato nada, pelos vistos,
apresenta de moralmente reprovável e assume até a dignidade de (mais) um
trabalho bem feito; quase uma prestação de serviços (a do comércio carnal, a
despeito de não ocorrer transação financeira):
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
368
Na rua escura, sozinha, lá vem a coroa. Garro por
trás e afogo o pescoço. ―Quietinha‖, eu digo. ―Ou já
te apago.‖
Levo pro matinho, a par da linha de trem.
―Todo mundo nu‖, eu digo. Ela mais que depressa.
Então me sirvo.
A tia bem legal. Faz direitinho. Aceita
numa boa o que você quer. Não dou soco nem digo
nome feio. Podes crer, amizade.
Ela não reclama da brincadeira. Até sorri,
quem está gostando. Não acho que tem motivo de
queixa. A história dela é bobeira. Isso aí, bicho.
Sem complicar. Tudo dentro dos conformes.
(TREVISAN, 1994, p. 114-116; 2002, p. 20.)
Esta microficção é particularmente merecedora de interesse pelo que
esclarece sem dificuldade sobre as restantes (ou muitas das restantes). Nela
sobressai de modo bem evidente a presunção que sustenta muitas das
microficções do escritor: o que horroriza o leitor não é tanto tratar-se de uma
violação. O que torna a situação verdadeiramente repugnante é a manifesta
ausência de emoção no criminoso, que pratica o crime com um escrúpulo de
perfeição digno de um artesão minudente no exercício do seu mester,
cuidando, até, que a vítima alinha de bom grado. Enfim, «Tudo dentro dos
conformes». É, dito de outra maneira, a banalização extrema do mal, que
integra o quotidiano e, mais do que isso, dele parece indiscernível. Como
escreve Andrew M. Gordus:
It is not the supernatural nature of the protagonits
and the situation that make them so horrifying but
rather the exact opposite: it is the naturalness of
their occurence and the readiness by which each of
the protagonists preys on those around him. The
horrific is thus not what is repressed but what is
shown to be not repressed at all, or rather as a part
of everyday existence. (GORDUS, 1998, p. 24.)
Cumpre também dizer, a propósito, e ainda com Andrew M. Gordus
(a partir de de Rubio Ramón Fernández20), que a componente sexual das
20
Rubio Ramón Fernández, «Moral Erotica in Contemporary Brazilian Prose:
Women in a Macho Society», Selected Proceedings of the 35 th Annual Mountain
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
369
microficções (e da restante obra) de Trevisan, onde é visível, como ficou já
claramente assinalado, a implacável dominação masculina (capaz de tudo no
sentido de possuir animalescamente a mulher, o que evidencia o expurgo do
«sentimental»), a componente sexual das microficções, dizíamos, não se
restringe a uma pura questão de género (o homem/senhor e a
mulher/subalterna), mas constitui, metaforicamente, um desdobramento ou
reflexo das relações sociais de dominação com que se defronta a sociedade
brasileira: «Not only are they [relações de dominação sexual do homem sobre
a mulher] indicative of the exploitative nature of sexual relations in Brazilian
society but also wider experiences of the exploitation at the political,
economic, social level» (GORDUS, 1998, p. 22). Mais: «What this has meant
for Brasil is a tradition of representing the broader social relations of the
sexual at either a conscious or incounscious level» (GORDUS, 1998, p. 22).
Conclua-se dizendo que Dalton Trevisan, que pertence ao escalão
literário dos grandes autores, como muito bem reforçou o Prémio Camões,
Dalton Trevisan, livro após livro, detém-se sem descanso a burilar uma prosa
que não é concebível fora dessa intenção primordial de representar, em jeito
de tragicomédia humana, as patologias das gentes de Curitiba; e fá-lo,
escolhendo para tanto sobretudo o espaço literário da micro e nano-ficção,
absolutamente sem contemplações, como se enfiasse as mãos na carne viva.
Munido de frases enxutas, rigorosamente com o mínimo possível de palavras,
como convém à caução do micro-conto, e com um «estilo cortante»,
conforme diria Eduardo Coelho (COELHO, 2012, p. 20), Trevisan é, enfim,
o criador de uma literatura que, por certo como nenhuma outra, pôs, e sem
tonalidades soturnas (diga-se de passagem), em cena – e com as palavras de
Fernando Assis Pacheco terminamos –,
machos em tirocínio de amantes, homens de
madureza desiludida, velhos para quem o desejo cai
como baba pelo queixo. Negrinhas assaltadas em
grupo, empregadinhas indefesas, quarentonas
maquilhadas até ao excesso, avós cegas [...]
tentando surpreender os desmaios amorosos das
netas. Gentes de solidão e mágoa, palavrosa por
necessidade ou finalmente sábia nos meios
silêncios. Outra que tem a vida a prazo, a morte na
Interstate Foreign Language Conference, Greenville, SC: Furmon University,
1987, 387.
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012
370
praça emboscada. Por safadezas, desonras, razões
obscuras (PACHECO, 2012, p. 6.)
ABSTRACT: Considered as one of the most preeminent writers in
Portuguese, Dalton Trevisan has recently been awarded the Camões Prize.
Trevisan is a master in the art of the short story. It is our purpose to provide a
panoramic view of a good portion of this ―mini-stories.‖ We will emphasize
both the main thematic axis of his micronarratives and we will draw attention
on the technical-rhetorical processes that are often used by this writer with
the aim of producing minimalist narratives and scenes. In this way, Trevisan
introduces his typical characters alienated by crime or, in the best cases, by
love relationships where marital happiness and idealized love, if they ever
existed in the canon of romantic and late-romantic mythology, speedily give
way to anthropophagic wrath.
KEYWORDS: micro-fiction; violence; crime; sexuality
REFERÊNCIAS
BURRELL, Karen. Social Prejudice Examined in Dalton Trevisan‘s
―O ciclista‖. Rocky Mountain Language and Literature, Vol. 36,
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