GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 As folias fesceninas1 do
Transcrição
GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 As folias fesceninas1 do
As folias fesceninas1 do ‗vampiro de Curitiba‘. Sobre as ―ministórias‖ de Dalton Trevisan Sérgio Guimarães de SOUSA2 RESUMO: Cada vez mais reconhecido como um dos expoentes máximos da literatura em língua portuguesa, Dalton Trevisan, recentemente galardoado com o Prémio camões, é, como sabemos, um autor absolutamente incontornável na arte do contos breves. Socorrendo-nos de vários Foi nosso intuito neste texto, oferecer uma leitura panorâmica de boa porção das ―ministñrias‖ do escritor de Curitiba, enfatizando, por uma parte, os principais eixos-temáticos por que se caracterizam as suas micronarrativas; e, por outra, parte chamando a atenção para os processos técnico-retóricos a que o escritor recorre, no sentido de assegurar uma narrativa tão minimalista quanto possível das histórias e dos cenários que põe em cena através do género micro-ficcional. Deste modo, foi-nos possível o quanto e de que modo, Dalton Trevisan se compraz em representar existências alienadas pelo crime ou, no melhor dos casos (e isso no quadro familiar), por relações sentimentais onde a felicidade conjugal e o amor idealizado, se alguma vez existiram segundo o cânone da mitologia romântica e tardo-romântica, cederam rapidamente lugar à danação antropofágica. PALAVRAS-CHAVE: microficção; violência; crime; sexualidade. I Triângulos amorosos, adultérios, seduções, assassinatos, espancamentos, estupros. Amor e ódio. O mundo de Dalton. [...]. Com seu estilo guerrilheiro de diálogos certeiros, de elipses alucinantes, de imagens inesperadas que visam à 1 Tomo de empréstimo a expressão ―folias fesceninas‖, referidas a Dalton Trevisan, a Berta Waldman (2007). 2 UM – Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos, Braga, Minho, Portugal, [email protected]. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 338 razão e à emoção dos leitores, esses pobres fantoches manipulados pelo mefistofélico e mirabolante autor. Com tais artes e mágicas, para que Dalton precisa ainda de um velho vampiro? Geraldo Galvão Ferraz Assaz conhecido pela muito sugestiva e indisputável alcunha de ‗vampiro de Curitiba‘, Dalton Jérson Trevisan constitui indubitavelmente um caso bem atípico no panorama literário brasileiro. Um resumo suficiente da discrepância do escritor com os seus colegas de ofício (mesmo sabendo-se que cada autor se define por crenças, gostos, manias, enfim, por todo um conjunto específico de idiossincrasias) seria este: Trevisan é um escritor votado privilegiadamente à expressão, com intransigência e coerência inabaláveis, de um imaginário tenebroso. Imaginário cuja singularidade provém de enfatizar existências alienadas, grotescas, libertinas e macabras, violências gratuitas, brutalidades sexuais, contextualizadas em geral por uma atmosfera lasciva e libidinosa, assentes no gozo instintivo, sadomasoquista e animalesco. Por essa razão, os textos do autor não carecem de relações sentimentais onde a felicidade conjugal e o amor idealizado, se alguma vez existiram segundo o cânone da mitologia romântica e tardo-romântica, deram lugar à devastadora espiral de um círculo infernal de desentendimentos crónicos e de brutalidades inclementes. Círculo esse circunscrito essencialmente à representação de personagens – anti-heróis –, entre as quais abunda a perversão e todo o tipo de distúrbios provocados pela frustração e pelo ódio insanável, pautadas pela irrelevância social (embora não faltem protagonistas oriundos da classe média, note-se; uns e outros, refira-se, não desafinam do estereótipo que os circunscreve). Portanto, Trevisan vem darnos conta de um estado de coisas sociológico: aquele que, em nome do pudor literário (ou de um certo pudor literário, cultivado nos bancos das escolas em textos apetrechados com essa marca maior da compostura estética que é a linguagem cuidada), suporíamos acantonado em lugares onde mesmo a literatura não se atreveria a penetrar. Com a ressalva de que esses são, muito provavelmente, os lugares da literatura enquanto tal. Mas o merecimento estético-literário de Trevisan, aquilo que fará dele porventura um escritor imprescritível, é sobretudo tributário da sua admirável capacidade de dar corpo a este universo assombroso manuseando-o em prol da máxima contenção, a tal ponto que não é abusivo dizer, com Maria Leonor Nunes, que «a arte de Trevisan cruza o limiar do GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 339 expressionismo» (NUNES, p. 2012: 6). O autor compraz-se, pois, em expressar, sem hipóteses de redenção, toda esta danação antropofágica, em que as personagens «passionately clash with each other, revealing excessively erotic and violent natures that in turn pit them against the allconsuming powers of Sex and Death» (VIEIRA, p. 1986: 45), pelo viés de esmeradas narrativas breves (ou brevíssimas).3 Se a narrativa, por maioria de razão enquanto prosa, é o modo ideal de encenar todo esse mundo violento e as suas gentes, diga-se, todavia, que a forma breve extrai toda a sua eficácia, por força das elipses de que se nutre, de ser menos do que aquilo que representa. Isto é, o que está em causa nesta prosa é, não sofre dúvida, o poder evocativo alcançado espartanamente com o mínimo possível. A suficiência da forma breve não impede, com as remoções acarretadas, a expressão da nitidez do real, em pequenas histórias, por assim dizer, (des)dobradas num contínuo reenvio, na medida em que «Trevisan é um escritor programático e obsessivo que traça o itinerário de uma busca incessante, manifestada na repetição de situações, de personagens, de um tema que se multiplica em voltas infindáveis» (WALDMAN, 2007, p. 255)4. 3 A opção, note-se, pelo culto de uma linguagem radicalmente diminuta dá-se por volta de 1974, isto é, a partir de O Pássaro de Cinco Asas onde, afora os contos ou pequenos contos, surgem claramente micronarrativas agrupadas sob a tutela de um título unificador (é o caso de «O defunto bonito» e de «O gatinho perneta», cf. TREVISAN, 1996, p. 24-27 e 42-47), processo presente, com facilidade, noutros livros, como em Meu Querido Assassino ou em Essas Malditas Mulheres. Note-se, a propósito, que a prosa longa do autor não é sem afinidade com a microficção. Porque nessa prosa extensa, como muito bem mostrou Edner Morelli (cf. 2007, p. 80-81), em O vampiro de Curitiba, cada parágrafo tende a dispor de autonomia radicada num fôlego narrativo próprio. Deste modo, os parágrafos não entram forçosamente em diálogo uns com os outros, consubstanciam-se antes como miniepisódios em cadeia; e em cada um é visível a saliência de uma espécie de miniclímax. Ou seja, dir-se-ia que nos textos mais alongados, Dalton Trevisan já, em bom rigor, praticava a arte da microficção, só que aferível numa dimensão de maior fôlego. 4 Com efeito, de microficção para microficção repetem-se, por exemplo, nomes, repetição destinada a des-individualizar protagonistas, universalizando-os enquanto indivíduos; deste modo, o nome vem, muito tipicamente, suplementar a condição dos protagonistas, reforçando-lhes socialmente a pertença e, nessa medida, ganha a tonalidade de um estigma social. Por vezes, é usado no sentido da caricatura arquetípica. Sobre este assunto da retoma dos nomes, assinala Nelson H. Vieira o seguinte: «The penchant for regulary identifying his later heroes as João and Maria undoubtedly contributes to Dalton Trevisan‘s creation of short stories that telegraph a compelling sense of ―everyman‖. In so doing, he repeatedly inflicts upon the GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 340 Uma nitidez, refira-se, brutal e, por isso, sem nenhum tipo de condescendências. Dalton Trevisan revela, com efeito, como muito bem nota um dos seus críticos, «to the reader the grotesque, horrific underside of the daily existence within modern Brazilian society» (GORDUS, 1998, p. 13). Tudo isto que estabelece a originalidade do escritor assenta, dissemos, na forma breve. Cabe perguntar: com que traços se define essa forma breve? Afora o que permite eliminar o supérfluo (e o menos supérfluo) da linguagem (como sejam: verbos, conjunções, articulações hipotáticas, pronomes, adjetivos) e descarná-la o mais possível (orações nominais), com os traços de uma irredutível especificidade compositiva. Especificidade presente nas microficções mas não menos exemplarmente evidente em narrativas de maior fôlego, e que passa (i) pelo uso sem parcimónia de uma linguagem oralizante e não raramente vulgar, isto é, estilisticamente não tratada, descambando, por vezes, sem concessões para o obsceno5; (ii) pelo reader an uncomfortable sense of familarity vis-à-vis the clandestine minds and hearts of the depraved Brazilian souls depicted in his fictions. For the comitted Trevisan reader the deliberate and magnified use of these names in recente stories becomes cumulative and thus enhances this familiarity, but above all, suggests more than just a stereotypical portrayal of Brazil‘s middle and lower class mores, passions and depravities. By presenting a gallery of Joões and Marias, Trevisan appears to be building his narrations ―upon names‖ or ―eponyms‖ that become related to a continuous pedigree of behavior or ethology. With each new narrative Trevisan approaches with keener observation a corpus of similar acts and situations wherein he slowly unfolds and incisively dissects one more facet, or version of a complex and often social and psychological human paradigma» (VIEIRA, 1986, p. 45). 5 Se, na sua dimensão estética, as microficções de Trevisan são a expressão de uma visão que se nutre assaz do que de repugnante a sociedade, ou parte dela, a que vive lado a lado com a violência, comporta, não é surpreendente que a prosa dessas microficções não recue perante a representação das múltiplas faces, incluindo as mais abjetas, dessa violência e, como tal, seja uma prosa passível de desassossegar um certo tipo de leitor. Especialmente aquele que, sensível à chamada função poética da linguagem, entende a literatura, mesmo sendo, como neste caso é, uma literatura em formato mínimo, como a ocasião de sofisticados jogos estilísticos a bem de uma excelência fraseológica. Ora, Dalton Trevisan acha-se a léguas do esplendor retórico-estilístico herdado do Formalismo Russo e segundo o qual a linguagem literária seria muito caracteristicamente a que fosse capaz de merecer contemplação em virtude do seu valor desfamiliarizante. A tais leitores, cumpriria responder que a literatura dispõe, e ainda bem, de variadíssimos modos e graus de realização; e que se há coisa que nela é uma evidência, essa coisa é a de que o ―estilístico‖ surge inseparável do ―temático‖. Nessa medida, forçoso é concluir que GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 341 predomínio de diálogos6 que solicitam ao leitor uma ativa cooperação interpretativa no sentido de completar o pouco que neles se diz; (iii) por descrições, no caso de existirem, curtas e incisivas; (iv) pelo predomínio, em consequência, da ação sobre a descrição (e sobre experiências, sentidos, explicações); (v) pelo recurso não a personagens singularizadas antes a personagens prototípicas ou caricaturais, o que, em termos de economia textual, se revela útil por dispensar descrições psicológicas; (vi) por histórias (já que falamos em economia textual) confinadas em certos casos a pouco mais do que duas ou três palavras; (vii) por uma narração de tipo omnisciente e que não hesita em lançar mão de monólogos interiores; (viii) pela dispensa de introduções descritivo-explicativas (isto é, narração in media res); (ix) por finais trágicos ou então patéticos; (x) pela notória ironia; (xi) por algum cinismo; (xii) por uma boa dose de humor negro (e paródico, sem esquecer a ênfase no grotesco da realidade), que não destoa das vicissitudes escabrosas que a prosa de Trevisan, com as suas frases «como que a explodir de tensão» (CARVALHO, 2012, p. 7), exibe sem pudor7; (xiii) pela minudência do detalhe, de tal maneira que «há [nos seus micro-contos] uma monumentalidade derivada da concisão e do registo dos detalhes» (COELHO, 2012, p. 20); e ainda, o que tipifica os dispositivos ficcionais da sua escrita, (xiv) por uma contaminação cinematográfica não raro ostensiva (o chamado ―camera eye style‖). Veja-se o que nota, com inteira justeza, um dos mais sagazes críticos do escritor: Dalton Trevisan constructs narratives that are designed to pull the reader intimately into the a legibilidade que nos propõe Dalton Trevisan é outra: a de uma prosa que se modela, como nenhuma, às convenções semântico-pragmáticas dos contextos representados, ao incorporar a linguagem corrente mais banal, sem a qual impossível lhe seria representar as personagens que representa: «characters [who] are trapped in an immutable human condition of vice and sin where the common denominator is man‘s incorrigibility» (VIEIRA, 1986, p. 46). Assim sendo, a linguagem vulgar de Trevisan é, pode dizer-se, a topografia de um espaço: aquele, localizado em Curitiba, que (sócio-esteticamente) sobrepõe o submundo (e algum mundo médio) aos ambientes requintados das classes altas. 6 Diálogos cujas «falas são dessubjetivadas, não se ligam a um corpo, correm as na boca» (WALDMAN, 2007, p. 258) de arquétipos (falas e pensamentos soltos, digase). 7 Se a sua «linguagem é incisiva, licenciosa, compacta, [ela] tem a precisão» – como observa Berta Waldman (2007, p. 258) – «de um tiro à queima-roupa, que não prescinde de boa dose de humor». GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 342 experience with a close-up angle that can swiftly shift to the neat long-short, so necessary for the desired double perspective. This cinematographic approach is not only efficient in a nonsustained genre as the short story, but is most effective in the portrayel of dramatized action and thought, the essential elements of a Trevisan story. (VIEIRA, 1984, p. 11.) Não se faria justiça à qualidade das microficções de Trevisan se não se enfatizasse o lugar que neles ocupa a lição do cinema 8. É, de resto, pela força de efeitos de visualidade afins da sétima arte, e que apresentam o mérito nada despiciendo de subtrair a narrativa à tentação da explícita aferição moral do que nela é representado9, que o autor persegue sem tréguas 8 «As fragmented instances of life quickly or unexpectely snapped by some unknow photographer, these narratives are not unlike the many covers or jackets of a Trevisan publication where old photos or daguerreotypes are used to stimulate our experience of perussing our old family albums. In the short stories themselves this close up, instamatic effect is achieved by the extensive use of dialogue, interspesed with brief interior monologues, and a ocasional monologue – all against a very sparce backround of omnisciente narration sometimes in the form of a character‘s alter ego, thus providing the illusion of an objective, impersonal narrative. The result is a camera-eye view of life, a Human Comedy of conflicts, sins and passions depicted in short stories [...].» (VIEIRA, 1986, p. 46.) 9 «In the creation and tecnical shaping of this perverted world, Dalton Trevisan reveals, as mentioned earlier, no overt moral tone in his stories. In fact, one as the feeling that his stories exist in spite of the author, particularly so with the later collections. This mock absence is a reflection of Trevisan‘s craft, which relies upon minimal description and the use of self-sufficient scenes and characters to dramatize the action. As a result, the reader has the sense of watching rather than Reading about the characters. The proverbial verisimilitud thus becomes even sharper with the unobstrusive narrator or author. This visual effect is maintained by a steady focus upon the point of view, either within interior monologue, dialogue or first-person, often depends upon direct flow to, or contact with, the character. In other words, how close we can get to the voice or voices without being interrupted? As if peeping throught a key hole, these narratives resemble the position of an invisible observer, or better still, the camera eye which is directed and mainly concerned with point of view. The illusion of an absent narrative voice is further perfected by the complex and ingenious use of shifting points of view or perspectives» (VIEIRA, 1984, p. 15-16.) GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 343 o intuito de pôr a nu o abismo da condição humana, no que dela sobressai de mais miserável, através das pulsões primitivas de que se sustenta. Ou, como diria, a propósito de Abismo de rosas, um dos seus leitores, «to strip away society‘s bourgeois [e a dos de baixa extração social, acrescente-se] trappings and expose man and women in their most primitive, vulnerable and unflattering condition» (SILVERMAN, 1977, p. 604)10. O que confere eventualmente à prosa de Trevisan uma esteticização filiável no chamado realismo sujo (cultivado, entre outros, pelo cubano Pedro Juan Gutiérrez) ou bruto. Seja como for, e no tocante ao espaço do escritor de Curitiba na literatura do Brasil, [...] fica evidente que a grande contribuição de Dalton Trevisan, para a evolução da literatura brasileira, reside no desnudamento de um mundo descaracterizado e amorfo, cujos seres se alienam, conduzidos por clichês que lhe são imputados por toda uma estrutura, voltada apenas para o consumismo e para o imediatismo existencial, embora lhes acene exatamente com o contrário: o amor idealizado, a felicidade conjugal, etc. Acresce que Dalton não se compraz com a linguagem enganadora de uma certa literatura, que faz do sentimental o instrumento que aliena o leitor, sob o pretexto de defender justas causas sociais. Nele, tudo é contundente: as meias-tintas são abolidas, a piedade é sempre filtrada pela ironia e a concisão estrangula a grandiloquência. (GOMES & VECHI in TREVISAN, 1981, p. 101.) Acresce o facto de pouco se saber sobre Dalton Trevisan, exceto uns escassos dados biográficos de fundo11, o que não é sem despoletar uma 10 A propósito da técnica compositiva de Dalton Trevisan, vide também Karen Burrell, «Social Prejudice Examined in Dalton Trevisan‘s ―O ciclista‖» (BURELL, 1982, p. 111-118). 11 Se Trevisan tem habilmente sabido, à conta desta estratégia de ocultação total, ou quase, da sua pessoa, preservar-se da vampirização do que lhe é privado, ainda que à custa do que suporíamos devesse nele ser público (a concessão de entrevistas, por exemplo), o certo é que à brevidade dos textos, é caso para dizer, parece corresponder uma existência empírica minimalista. Tanto mais que o que sabemos GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 344 intrigante aura de mistério em torno do autor; e esta predileção pelo anonimato, ou melhor, pelo enigmático, há de notar-se, também não é, nesta época de marketing literário-cultural e de indústria livreira, de molde a emparelhá-lo com outros escritores, contribuindo, contudo, creio, decisivamente para o seu estatuto de autor de culto. Significa isto que se Trevisan existe à margem das estratégias de promoção editorial, a indiferença pelos mecanismos mais elementares de difusão, e que corresponde desde logo a uma manifesta resistência do escritor em ceder a sua prosa a uma definição de obra enquanto valor de mercado por intermédio da sua presença na condição de promotor dessa obra, a indiferença pelos mecanismos mais do trajeto do autor remonta, em boa verdade, aos tempos em que ainda não enveredara pela microficção. E o que se sabe de Trevisan não anda muito afastado do seguinte: nasceu em Curitiba no ano de 1925, trabalhou, ainda jovem, numa fábrica de vidros e, mais tarde, forma-se em advocacia (Faculdade de Direito do Paraná). Entre 46 e 48, é a figura de proa de um grupo literário cujo órgão de expressão foi, em homenagem a todos os joaquins do Brasil, a revista modernista curitibana Joaquim, revista de assinalável notoriedade, se tivermos presente o elenco sonante de colaboradores: António Cândido, Mario de Andrade ou ainda Carlos Drummond de Andrade; mas também se considerarmos a ênfase que a revista concedeu a traduções de nomes canónicos como Joyce, Proust, Kafka, Sartre ou Gide. Em 1959, surge a público Novelas nada exemplares, título de referencia na obra do Vampiro de Curitiba e que mereceu na altura dois prémios de prestígio: o do Instituto Nacional do Livro e o Jabuti. Novelas Exemplares é ainda relevante por ter sido o primeiro texto traduzido para outras línguas, o que permitiu, a partir daí, internacionalizar a sua restante obra (eis alguns exemplos: De Koning der Aarde [O Rei da Terra], trad. de August Willemsen, Amsterdão, 1975; The Vampire of Curitiba and Others Stories, trad. de Gregory Rabassa, Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1972; El Vampiro de Curitiba, trad. de Haydée M. J. Barroso, Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1976; De Vijvfvleugelige Vogel [O Pássaro de Cinco Asas], trad. de August Willemsen, Amsterdão, 1977; etc.). Afora as traduções, a proporção do prestígio crescente do escritor pode aferir-se, igualmente, pelo facto de o seu nome começar a surgir recorrentemente em antologias de diversos países. Outros títulos emblemáticos maiores vieram consolidar o autor como um dos nomes cimeiros da literatura brasileira, como é o caso de Cemitério de Elefantes (1964) e O Vampiro de Curitiba (1965). Em 1969, refira-se ainda, A Guerra Conjugal é transposta para o cinema pela câmara de Joaquim Pedro de Andrade (com diálogos de Dalton). Finalmente, é de referir que Trevisan obteve este ano o Prémio Camões, o que significa uma consagração ímpar da sua obra, como é evidente. Antes disso, em 2003, o seu merecimento estético-literário tinha sido reconhecido com o Prémio Portugal Telecom (ex aequo com esse outro grande escritor brasileiro que dá pelo nome de Bernardo Carvalho). GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 345 elementares de difusão, dizíamos, está longe de o condenar à despromoção, antes pelo contrário. De outro modo: o anonimato, ao fim e ao resto, pela curiosidade que instiga, constitui uma das razões pelas quais certamente se lê (ou se deseja ler) Trevisan; e, mais, pelas quais se tende a convertê-lo num mito. O que, aliás, condiz com a literatura enquanto dispositivo mitológico. Não por acaso, a alcunha do escritor provém de um dos seus mais emblemáticos títulos, o que diz bem da ficcionalização da sua figura; ou seja: à falta de elementos do foro biográfico, a caracterização do autor faz-se pelo que dele existe, a obra, que se torna assim como que indispensável para qualificar um autor propenso à rasura da sua condição empírica. Por conseguinte, se a invisibilidade do escritor é de molde a resistir ao alinhamento dos seus textos em termos comerciais (ou puramente comerciais), não é menos certo que é justamente a ocultação da figura do autor, pela primazia que concede à obra, a começar pela dimensão intrigante que lhe confere (que obra é essa, a de um autor que persiste em não aparecer?), que lhe outorga, no fim de contas, também visibilidade e uma devoção apreciável. Quanto mais, dir-se-ia, o autor se esconde, menos escapa a tornar-se numa figura incontornável, a do Autor. Eis o que dele diz um crítico: «Ninguém sabe onde ele mora, ninguém o vê. Sabemos que ele existe porque publicou alguns livros e porque – eis o principal – de tempos a tempos alguns privilegiados recebem pelo correio um folheto rústico, onde se contém a melhor literatura escrita no Brasil» (CUNHA in TREVISAN, 1994b, p. 3). Descontando o juízo crítico por certo um tanto hiperbólico, sem, como é lógico, com isso desconsiderar o merecimento estético do autor, tanto parece singular a sua invisibilidade como o cuidado que põe em enviar por via tradicional «um folheto rústico» a um conjunto restrito de eleitos. De resto, Trevisan, sabe-se, começou, na década de 50, a publicar os primeiros contos justamente em cadernos de papel-jornal; e, depois, enviava-os precisamente a amigos. Enquanto arte, se a prosa do escritor não escapará neste circuito de difusão esporádico a ser valor de mercado (é de crer que os «folhetos rústicos», pela sua raridade, alcancem, pois, a invejável condição de peças de coleção e, com tal, um valor de mercado considerável), não é ocioso sublinhar um certo apreço de Trevisan por folhas volantes, que é como quem diz: a literatura de cordel. O apreço é condizente com o nítido pendor folhetinesco que especifica muito do que escreve o autor. O que lemos nas narrativas breves (e em especial nas menos breves) são melodramas que não destoam com os que acharíamos sem dificuldade de maior em trechos folhetinescos (de faca e alguidar, apetece acrescentar). Esta consideração não é despicienda, na medida em que explica o porquê de a obra de Trevisan não GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 346 recuar perante o que noutros micro-ficcionistas se afiguraria decerto improvável ou então seria quiçá usado com extrema parcimónia (pelo menos): linguagem popular e coloquialidade, sem o mínimo receio da obscenidade, Kitsch, clichés, abundância (ou mesmo exclusividade) do diálogo. Mas também não é despiciendo, refira-se, correlacionar as folhas volantes que Trevisan fazia chegar a certos privilegiados como um sintoma decerto inequívoco da invisibilidade do autor atrás assinalada, e isso essencialmente a dois níveis. A) Em primeiro lugar, a escassez de folhas volantes endereçadas a um grupo restrito de amigos e conhecidos, a sinalizarem uma fuga ao circuito das editoras e de um entendimento da criação como trabalho oficinal, não alcançam o estatuto de um volume composto, como se sabe; isto é, parece ter havido, pelo menos a certo ponto da carreira do escritor, a renitência à constituição de uma obra enquanto tal, correspondendo, assim, a invisibilidade da figura do autor à quase invisibilidade da sua produção: textos avulsos escassa e clandestinamente distribuídos e que, em consequência, dificilmente circunscrevem o espaço de uma obra. Deste modo, se o autor ao refugiar-se nas trevas, digamo-lo assim, não ganha vida além da obra, o mesmo dizer, não ganha vida senão através da obra, não é impertinente dizer que, semelhantemente, pelo menos antes de se constituir em volumes compostos, esta tendia a não ganhar forma, ou se quisermos, autonomia além do autor. B) Em segundo lugar, ao fazer uso de uma linguagem que, sem dificuldade, ouviríamos perfeitamente em qualquer zona pobre de Curitiba (e do Brasil), o Autor desaparece naquilo que, em literatura, mais enfatiza a singularidade de um escritor: a linguagem. Trevisan como que perde voz (o seu idioleto, se preferirmos) ao mimetizar as vozes perdidas das favelas de Curitiba (socioleto), já que a fidelidade ao linguajar das suas personagens obsta à individuação autoral. Dito de outro modo: a individuação de Trevisan enquanto autor tende a desaparecer em proveito de uma linguagem que, por tão empenhada e ostensivamente espelhar as camadas desfavorecidas e subalternizadas da população12, é da ordem do comum e do trivial. Acantonada nos ambientes que põe em cena, abdicou dos artifícios do estilo a bem de uma fidelidade sociológica: a que lhe faculta representar com 12 Um tanto como Georges Simenon se esforçava por cultivar o que chamava o estilo il pleut nos seus policiais, isto é, um estilo desprovido de estilo, suficientemente cinzento para ser capaz de representar a realidade corriqueira na sua mais pura banalidade (e, desde logo, com a figura banalíssima, a não ser talvez no instinto, de Maîgret). GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 347 verosimilhança (etnológica) a dicção dos desfavorecidos (e alguns quadros pequeno burgueses) de Curitiba. Uma dicção empobrecida, sobretudo se aferida pela aura esplendorosa de registos estético-verbais acalentados pelo desejo de sublime (e também se avaliada pela inclinação notória pelo kitsch e pela chanchada), por força da baixa ou média condição social das personagens que dela fazem uso; dicção empobrecida assaz condizente, digase, com a dimensão mínima dos textos, na medida em que dispensa exercícios vácuos de retórica, não sendo nela rastreáveis floreados a prolongarem frases e parágrafos. A bem da concisão, tudo acontece, ou parecer acontecer, com o mínimo possível e na base da frase curta, do enquadramento circunstancial das situações bem sumário e do léxico básico13. 13 Se a ausência pública do escritor, confinado, como dissemos, à enigmática condição de escritor-fantasma é significativa, não menos significativa é talvez o que parece ser a insinuação dessa ausência no interior do corpo dos textos. Como? Pelo apego a uma tradição orgânica de narrar, que é como quem diz: dificilmente se achará nas narrativas de Trevisan tudo o que pode melindrar a coesão da forma/conteúdo enquanto dialética expressiva que afasta de si tudo o que possa dar a entender o modo como funciona a representação narrativo-discursiva. Daí a inexistência de improvisos, de hesitações, de interpelações ao leitor, de fissuras ou então de momentos desconjuntados, daí, em suma, que tudo seja impecavelmente construído. Quer dizer, sem a menor amostra daquela metaficção correspondente à autorreflexão crítica sobre a arte de narrar. Noutros termos, se Trevisan, apostado no desvanecimento da orgânica textual, enveredasse pela emancipação estética dos procedimentos técnicos de que se nutre a sua prosa e não se confinasse a preservar em estado de latência os expedientes narrativo-discursivos de que se serve – espécie de força invisível imprescindível à mistificação ficcional – para alcançar a impressão de autenticidade, esse impulso criativo através do impulso crítico equivaleria a torná-lo num escritor capaz de abdicar da privacidade da sua criação. E tanto ficariam à mostra a criação como o criador, com tudo o que isso implica de dessacralização do ato criador. Ora, como ficou já claramente dito, se há coisa que Trevisan cultiva é a privacidade; e os textos de Trevisan, pode dizer-se, alinham por esse princípio de base ao definirem-se em função de dispositivos graças aos quais se dá, com notável proficiência, corpo ao aparecimento do escritor apenas como entidade externa e razoavelmente ausente do que narra. Pelo menos no sentido em que não interfere para chamar a atenção para o modo como entretece as pequenas histórias que narra. Numa palavra, com Trevisan, estamos perante uma narração (que não destoa, a não ser pela crueza do que é narrado e pela linguagem rasteira empregue, de um qualquer folhetim realista-naturalista oitocentista) nitidamente propensa, como é claro, para uma opção estética de fundo: a apropriação do real pela narrativa breve e não a representação dessa apropriação. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 348 II Sua danação por Maria permitiu-lhe entender Lucrécia Bórgia, Madame Bovary, Ana Karenina. Ah, pudesse apagar o sol, presenteá-la com a noite sempiterna. (TREVISAN, 1994, p. 11.) A concisão dos textos de Trevisan, à custa de uma prosa enxuta e «impercetivelmente burilada» (NUNES, 2012, p. 7), supõe-se, de uma vigilância sem tréguas sobre a forma, não os torna meramente representativos da comédia humana que o autor põe magistralmente em cena nos seus textos breves. Assim, as pequenas intrigas merecedoras da atenção estrutural de uma prosa mínima não colocam o escritor fora dos liames da tradição literária. Com efeito, não é preciso especial clarividência crítica para detetar que não estamos longe de um investimento notório em processos de criação assentes na ironia e na contaminação por via da reescrita paródica, como ficou já assinalado. A condição de autor marginal a que não escapa Trevisan não o arreda, por outras palavras, da grande literatura. Veja-se que diversos títulos exibem ressonâncias intertextuais óbvias: «Educação Sentimental do Vampiro», «O Fantasma da Ópera», «Carta a um Jovem Poeta», «Paz e Guerra», «Em Busca de Curitiba Perdida»; e a intertextualidade não se fica pela paródia de Proust, Flaubert, Tolstoi, Leroux ou Rilke. Afora estas invocações, a atenção do microficcionista incide igualmente sobre textos canónicos e fundacionais, que, a seu modo bem peculiar, reescreve e/ou comenta. É o caso da Bíblia, por mais de uma vez no cerne da modulação dos textos de Trevisan, sendo as variações norteadas por um intuito de dessacralização: «Ai Sansão, fosse bom amante não trocaria Dalila por um filisteu qualquer» (TREVISAN, 1994, p. 116); «O escritor é irmão de Caim e primo distante de Abel» (TREVISAN, 1994, p. 136); «Em toda a casa de Curitiba, João e Maria se crucificam aos beijos na mesma cruz» (TREVISAN, 1994, p. 136); ou ainda este micro-conto, intitulado «A Primeira Pedra», e onde se nos dá a ver um final alternativo – versão profana – da emblemática cena bíblica da lapidação da mulher adúltera: Depois de escrever com o dedo na terra, Jesus fala aos acusadores da mulher adúltera. Ali no meio do povinho, Ester, Safira e Jezabel, famosas puritanas, cada uma com dois seixos na mão. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 349 Mal Jesus remata com quem for sem pecado, atire a primeira pedra, João acode: – Falou e disse, ai, Jesus. E a puxá-lo firme pela manga: – Se abaixe, Mestre, lá vem pedra. (TREVISAN, 1994a, p. 27.) Como se nota sem custo, a variação serve o propósito, se assim se pode dizer, de um desinvestimento teológico, que resulta aqui de uma versão que considera o impensável: por entre a multidão sedenta de apedrejar a adúltera há quem não hesite em lançar o cascalho à pobre e indefesa pecadora. Mais: é o próprio Jesus, caso não se esquive, que – suprema heresia que antecipa a da crucificação – pode receber a pedra furiosamente lançada pela mão do exacerbado puritanismo. E não é ocioso observar que quem é posto em destaque na linha da frente da punição são mulheres e não homens, ao inverso do que acontece na versão primeira do episódio. Se o adultério não parece aqui melindrar por aí e além os homens, pelo que dele usufruem (supõe-se), já o mesmo não sucede com as mulheres puritanamente ao serviço da manutenção da boa ordem patriarcal. E não parece haver nenhuma solidariedade feminina, assente na subalternização do feminino que essa ordem presume, capaz de travar a fúria justiceira de Ester, Safira, Jezabel... De resto, heresia das heresias, nem o Messias, repita-se, escapa de poder ser atingido, o que diz bem do pouco sensível que é o povo à sua mensagem de perdão incondicional. A ferocidade moral sobrepõe-se à comiseração.14 14 Notemos que a revisão da Bíblia anda a par com uma crítica mordaz de Trevisan às manifestações místico-religiosas e a tudo o que tenha a ver com ambientes de seita, cujo triunfo, como se sabe, é especialmente esmagador em meios depauperados. Leia-se: «Entra o maioral de capacete dourado e espada em punho. Colares coloridos representam os orixás. As moças, nos vestidos branco ou preto, sem sutiã nem calcinha, atiram pétalas de rosa vermelha aos seus pés. O mundo carece de paz, anuncia ele, os filhos da casa guerreando. Pita o cachimbo com fumo. Todos servem-se de bebida forte. Da galinha preta ele quebra as pernas. Rebenta as asas. E, ainda viva, lhe arranca o pescoço: que os iniciados provem e bebam o sangue.» (TREVISAN, 1997, p. 71); ou ainda este microtexto, onde fica evidente o valor de mercado da religião, sujeita a estratégias de cativação que em nada desmerecem o marketing empolgado de campanhas comerciais (ou políticas) agressivas; e aqui a estratégia de engodo está habilmente montada em torno da denúncia de um bode expiatório, culpado por tudo o que de mau (melhor seria dizer: maléfico) acontece (Satanás) e, expediente não menos convincente, em torno do pavor que esse ―culpado‖ possa suscitar (e, já agora, repare-se no poder desmistificador da ironia, sobretudo pelo exagero que é converter algo de tão raro como um «milagre» em GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 350 E este aspecto, se bem considerado, não é menor. Porque, além de ser essencial para reescrever este célebre episódio bíblico em versão, digamos, obscena (dir-se-ia o reverso obsceno desse episódio), é especialmente revelador no tocante à centralidade do adultério na obra do escritor. Ou seja, se o despudor da multidão que não acata as palavras de Jesus ocorre, é bom sublinhar, em nome de um pudor maior, o da defesa intransigente e pundonorosa de valores onde não cabe o adultério, este, se assim é perspetivado num contexto altamente sagrado que é o da palavra de Cristo, nunca menos o seria fora do âmbito bíblico, por muitos relicários domésticos que se possam achar na prosa de Trevisan. Noutros termos, esta tradução trevisaniana da passagem bíblica é consentânea e (se a quisermos ler como tal) anunciadora de uma intransigência em relação ao adultério que é um tema, como sabe todo o frequentador das microficções (e não sñ) do ‗vampiro de Curitiba‘, pouco menos do que omnipresente. III Guerra conjugal: as mil e umas batalhas sujas de trincheira, entre baratas e ratões, os pés na lama, tossica a metralhadora, gás mostarda no pulmão, carga suicida de algo de perfeitamente quotidiano/banal e ao alcance de todos, conquanto se professe a fé proposta): «– Em casa, você aí, olha o que está perdendo. Você que tem visões. Ou escuta vozes. Espuma e sofre de ataque. Tem caroço no seio. Catarata nos dois olhos. Gosto de sangue na boca. Batedeira no coração. Luta com bichos na parede. Sente a casa caindo sobre a tua cabeça. Ou está desempregado. Sem dinheiro e com dívida. Saiba que tudo é obra de Satanás. Ao entrar em nossa igreja, o teu mal desaparece. Aqui o milagre é todo o dia.» (TREVISAN, 1997, p. 102). E leia-se esta outra microficção em que o culto de um vidente (ou alguém que o valha), ao jeito do que acontece em regime de seitas, por parte de moças espiritualmente ávidas dos bons cuidados protetores dessa personagem degenera sem dificuldade numa submissão afetivo-sexual, que é como quem diz: a crença fanatizada não é sem degenerar em corpos sexualizados e possuídos. Leia-se: «Incorporando as entidades, não responde por seus atos. Em transe durante os trabalhos, nada vê, de nada se lembra. Todas as moças o querem como protetor. Ali a seus pés, sempre à disposição. Vestidas de preto, sem calcinha nem sutiã. Carentes de sexo e família. Já não precisam de procurar na rua. Cada qual concorre a rainha sacerdotisa. Nele acham o pai, guia, irmão, amante, grande príncipe.» (TREVISAN, 1997, p. 67). GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 351 baioneta, a boca no arame farpado, mina explode a tua virilha, o que mais? (TREVISAN, 1994, p. 110.) – Por que não me enterra a faca no coração? É mais perversa. Corta uma lasquinha, mal sai sangue. Outro tantinho, rasga gentilmente. Cada dia, na pinça de relojoeiro, arranca um fio de pele. Olhe para mim, assassina. Todo em carne viva. O corpo inteiro esfolado. E você, lambendo as unhas, impune. É o crime perfeito. (TREVISAN, 1994, p. 39.) «Do meu coração ela fez almofada furadinha de alfinetes» (TREVISAN, 1994, p. 60), «Basta você beijar o pé da mulher, ela te espezinha.» (TREVISAN, 1994, p. 56), «– Maria, vamos juntos no enterro. De carro com chofer. Comendo broinha de fubá mimoso.» (TREVISAN, 1994, p. 68), «– Desde que vi meu pai aos beijos com a pretinha, jurei que com brasileiro não casava. Casei, sim, com um gringo, de nome Amparo. Ai, o que ele me fez nem queira saber.» (TREVISAN, 1994, p. 68), «– Na cama o João vem para cima de mim. Uma transa lá entre ele e a minha perna, não estou nem aí.» (TREVISAN, 1994, p. 16), «Falar com você, querida, é discutir para sempre.» (TREVISAN, 1997, p. 110), «O marido com dores e a mulher liga o rádio a todo o volume./ – Quero ver quem grita mais alto.» (TREVISAN, 1997, p. 3), e poderíamos citar às dezenas microficções deste tipo que definem o matrimónio na proporção de um lugar pouco salutar, para dizer o mínimo. Na melhor das hipóteses, homem e mulher enfrentam-se, sem disfarce e sem tréguas, como dois carrascos numa guerra dos sexos infindável. Melhor dizendo, numa espécie de guerra fria, onde os lances românticos de outrora e toda a idealização supostamente engendrada nessa altura (pré-matrimonial, certamente) mirífica em que o coração expandia sacrifícios em nome do afeto, irremediavelmente deixados para trás, cederam espaço a um ódio insanável que leva a detestar o outro até nos mais irrisórios pormenores. Eis um exemplo suficiente disso: Dois malditos carrascos a torturar um ao outro. Nela tudo lhe desagrada: a boca pintada, o sestro de beber água e deixar um resto no copo, a maneira de GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 352 cortar um bife. Assim a ela aborrece o seu cabelo comprido, o passo truculento que abala os cálices na prateleira, o pigarro de fumante. Por amor dela, contraiu bronquite, gemeu dores de estômago, padeceu vágados de cabeça e – ainda era pouco – três furúnculos no pescoço. Mas não hoje. Que ela surrupie do seu prato uma batatinha frita, capaz de lhe morder a mão: Te odeio, bruxa velha. (TREVISAN, 2002, p. 11.) O ódio crescente torna-se tão insuportável que pode, inclusive, engendrar um desespero de tal ordem que leve ao suicídio, muito embora se possa igualmente ler esse suicídio, dado o pré-aviso de que se reveste, como mais uma (a derradeira) forma de atingir o outro, como serve reveladoramente de exemplo esta microficção: «O marido ao telefone: – Quando você vier para casa, não deixe a menina entrar no quarto – eu estou enforcado.» (TREVISAN, 1994a, p. 88). Na pior das situações, muito frequente em Trevisan, os ódios resvalam sem dificuldade para violências de vários tipos. E, numa pura lógica patriarcal, a mulher, excetuando a figura da mãe (sacralizada), padece sem cessar. Daí a abundância de relacionamentos sadomasoquistas, onde, regra geral, o homem sujeita sem mercê a mulher a todo o género de humilhações e baixezas. E a violência chega a extremos de crueldade, como se verifica nestes dois textos, particularmente representativos de uma ferocidade insana: – Você não é homem, cara. Fico de pé, saco do punhal. Um golpe, outro, mais outro. Sem um grito, ela cai, derruba na mesinha copos e garrafas. Pronto se calam as vozes. – Me acuda, João. Consegue ainda se levantar. Cambaleia dois passos no salão. De frente, enfio o punhal. Mais fundo e de mais baixo para cima. Ela me abraça: – Não me mate que eu volto. Molhado de sangue o peitinho branco. Estende a mão esquerda, as bijuterias bolem no pulso: – Me leva para casa. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 353 Arrasta-se ali a meus pés. Cai do lado numa poça de sangue. – Tua casa é o inferno, querida. (TREVISAN, 1994, p. 125). Mal a pobre se queixa: – Ai, que vida infeliz. Ele a cobre de soco e pontapé: – E agora? Está se divertindo? Apanha ela (grávida de três meses) e apanham as cinco pestinhas. Uma das menores fica de joelho e mão posta: – Sai sangue, pai. Não com o facão, paizinho. Com o facão, dói. (TREVISAN, 1994, p. 23.) E não raro a violência atinge o cúmulo, o que a torna ainda mais repelente, por acontecer a troco de (quase) nada: – Monstro. Igual ao pai. Coragem de me bater! – Por que provocou? – Motivo tão fútil... – É o mais grave. Todo grande crime é por motivo fútil. (TREVISAN, 1994, p. 107.) Note-se um pormenor: a presença da linhagem («Igual ao pai») patriarcal. Se a consciência masculina não produz moralidade aceitável ou, para dizer com outros termos, se nos homens dados à violência doméstica a consciência parece dispensada, é (também) porque o parentesco a não reproduz nessa matéria que é a do respeito mútuo entre sexos. Neste sentido, a microficção de Trevisan assemelha-se um tanto a uma psico-genealogia: os protagonistas, como se carregassem o peso inapagável de um inconsciente familiar, feito de episódios trágicos ou próximos disso, tendem a reproduzir histórias (dramáticas) e flagelos familiares num contexto social que os propicia. Algo, em todo o caso, parece indubitável: a violência sob as mais diversas e (sobretudo) execráveis formas é, com ou sem antecedentes familiares, uma presença imperativa na esmagadora maioria dos protagonistas, o que diz bem de uma ideologia conservadora descrente da bondade do indivíduo, posto tratar-se de um indivíduo em sociedade. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 354 Um parêntesis também para comentar a moral do texto, insinuada através de uma constatação formulada na última frase: o grave parece não ser tanto o crime, cuja existência se supõe assim inevitável, uma vez que pior do que o crime é a pouca ou nenhuma justificação que esse crime possa apresentar na sua origem. É, pois, a ausência de justificação mínima que o torna socialmente injustificável. Portanto, o pior que um crime pode cometer é não dispor de uma razão suficientemente apta a justificá-lo. Neste sentido, a moral das microficções do ‗vampiro de Curitiba‘, ou melhor, a moral que as suas personagens apregoam e que é a que o escritor, através delas, denuncia, essa moral, anote-se, é congruente com a mentalidade que propala a justeza dos crimes de honra. Convirá, finalmente, ainda sublinhar que esta microficção, à semelhança de muitas outras, perfaz-se somente pelo uso do discurso direto. Não sabemos ao certo se se trata de um diálogo com duas ou mais pessoas; nem sequer nos é dado a conhecer o género ou a condição dessas pessoas. Nada disso, em bom rigor, é indispensável. O que salta à vista é uma técnica de representação assente na distância, por ocultação, do narrador. E esta distância não visa colocar o assunto em causa – a violência conducente ao crime engendrada por uma qualquer futilidade – à distância, antes o oposto: torná-lo tão flagrante que entre protagonistas e leitor não se intromete a presença (distanciadora) de um narrador a comentar o que, em si mesmo, é tão explícito que dispensa a mediação de quem quer que seja excetuando os interlocutores do diálogo. Muitas das microficções de Trevisan assentam nesta técnica do cancelamento da voz do narrador. Consequentemente, as personagens, em tais micronarrativas, não vivem senão em função do que dizem. A bem de um certo equilíbrio de forças, a mulher nem sempre é vítima indefesa dos maus tratos infligidos ou, pior, de uma morte certa. Numa reviravolta surpreendente, acontece volver-se em carrasco. E aí não resta ao homem senão sofrer as consequências do seu ignóbil comportamento, recebendo em igual proporção o que se propunha fazer à mulher. Ou seja, não existe sequer a possibilidade remota de uma inversão da dominação desembocar numa conciliação. A vítima metamorfoseada em carrasco não foi tão vítima (ou tão pouco vítima) que abdicasse de aproveitar a inesperada reviravolta para um eventual comiseração apaziguadora. De toda a maneira, mesmo subalterno, é o homem quem continua a ditar o desenlace do conflito e fá-lo em função da sua honra conspurcada à conta de se achar em situação de humilhação irreparável, a não ser matando a mulher («Me mate, mulher. Senão você morre»): GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 355 – Peça perdão, assassina da minha alma. – Tudo, João. Só não me mate. Vi a morte nos olhos, achei força de empurrá-lo. João cambaleou, alcancei uma acha de lenha. Bati duas vezes na cabeça dele, que derrubou a faca. Tonto e fraco, caiu de joelho. – Me mate, mulher. Senão você morre. Saía sangue pelo nariz e a boca. Meio que se aprumou: – Se me levanto, diaba, é o teu fim. Suspendi a acha, fechei o olho, dei o terceiro golpe. – Morre, desgraçado. A força de mãe foi que me valeu. (TREVISAN, 1994, p. 15.) Na origem da violência encontram-se diversos motivos. Um deles, decerto o mais óbvio, consiste na franca misoginia exibida por diversas personagens e que é co-extensiva às várias condições sociais. Tanto é misógino o habitante da favela como pode sê-lo o médico que o trata. Alguns exemplos merecem transcrição: – Cadê a Maria? – Lá na cama. Depois de cada discussão corre se deitar. ―Apague a luz que vou morrer‖ – e cobre a cabeça com o lençol. – Tadinha. – Que nada. Só de fiteira. (TREVISAN, 1994, p. 44.) O coração da bem-querida: oco de pau podre, aqui floresce aranha, serpente, lacraia de fogo. (TREVISAN, 1994, p. 21.) Ele encerra mais uma discussão: – Ó grandíssima cadela! – É você, carniça. Enfia o chapéu e, quando abre a porta, dois tiros pelas costas, um na coxa esquerda, outro de raspão na virilha. Volta-se, agarra-lhe o pulso, recebe terceiro tiro no pé direito. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 356 – Me acuda, que vou morrer. Maria muito arrependida, de joelho e mão posta. – Não sei onde a cabeça. E correndo pela rua aos gritos: – Eu matei o bichão. Sentado no tapete xadrez, encharcado de sangue, bem quietinho. Sete dias no hospital, sorte não ficar imprestável como homem. O jovem médico, na despedida: – Toda mulher é assassina. Cuidadinho, seu João. (TREVISAN, 1994, p. 79-80.) Ora, deste desprezo pela condição feminina à sua subalternização vai um passo mínimo. Por outras palavras: a tirania no lar somatiza o machismo reinante, elevado à condição de um domínio absoluto, ou perto disso, sobre a mulher e os filhos (o outro elo fraco), conforme sucede neste micro-conto e que é mais uma das muitas declinações que a obra micro-ficcional de Trevisan oferece neste âmbito: «Com a mulher e os filhos no barraco de duas peças você não é menos que o César Tibério na ilha de Capri.» (TREVISAN, 1994, p. 71). É impossível dizer melhor a condição déspota do Pai talhado na superfície de uma tirania que não poupa sequer os filhos. Entre diversos outros motivos, através dos quais os diferentes pais tiranos tematizados por Trevisan se ligam entre si com alguma variação, como é o acentuado gosto dos homens pela bebida15, que descamba para a violência familiar, ou, do mal ao menos, pela boémia16, destaca-se esse motivo maior, porque preponderante na ficção Trevisaniana que é o adultério. Adultério que atravessa, dir-se-ia, toda a obra do escritor de Curitiba, tamanha é a centralidade que lhe é concedida. Fiquemo-nos por alguns exemplos. Comecemos por este, talvez um dos mais graciosos: Domingo, de volta do futebol, ele serve-se de uma cachacinha, liga o rádio. 15 «– Que loucura, João, beber tanto./ – Mais loucura não é, depois de bêbado, voltar para casa?» (TREVISAN, 1994, p. 97.) 16 «A noivinha em pranto:/ – São horas? Um homem casado? De chegar?/ O boêmio fazendo meia volta, no passinho do samba de breque:/ – Não cheguei, minha flor. Só vim buscar o violão.» (TREVISAN, 2002, p. 64.) GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 357 – Sabe, paizinho? É o menino de seis anos, todo prosa. – O quê, meu filho? – Essa é a música que a mãe dança com o tio Lilo. (TREVISAN, 2002, p. 37.) Por termos aqui um certo decoro social (foram ao futebol, dispõem de um rádio, enfim, há um certo bem-estar inacessível à classe socialmente destituída) e talvez sobretudo por a denúncia se ficar a dever à inocente impertinência de uma criança, e, como é óbvio, ainda pelo facto de o texto findar sem antes nos fornecer a reação do marido enganado (e a traição, por envolver o «tio Lilo» confina-se ao meio familiar, o que é de molde a complicar tudo17), o adultério aqui não chega a funcionar como combustível de violência. Fica-se pelo estatuto, digamos, de embaraço. A revelação da criança é, pois, embaraçosa pelo que põe inadvertidamente a descoberto, mesmo sabendo-se que dela advirão consequências bem mais sérias do que um simples embaraço. Efetivamente, a verdade é que, em Trevisan, a proliferação de traições matrimoniais, quando descoberta18, não é pensável sem a vinculação à brutalidade, quando não atrocidade, que provoca, como de resto é muito típico das mentalidades patriarcais mais radicais, onde infidelidade e crime são co-extensivos. Assim, numa das microficções, um guarda regozija-se pelo seu primeiro preso, cujo encarceramento se deve a 17 Assim se percebe que certos ódios acontecem entre irmãos. Mesmo nessa hora fatídica e de profunda comoção que é o funeral de uma mãe: «– Os dois irmãos eram os piores inimigos. Bem me lembro no enterro da velhinha. Eles seguravam a alça do caixão – e não se olhavam. Pálidos, mas de fúria. Nem a cruz das almas comoveu os dois. Se odiavam tanto que a finadinha bulia sem parar entre as flores.» (TREVISAN, 1997, p. 34). Repare-se como Trevisan dá conta magistralmente da tremenda tensão entre os irmãos: o cadáver da finadinha, bulindo sem parar entre as flores, parece ganhar vida. 18 O que, por um triz, não é manifestamente o caso deste micro-conto: «Ao chegar em casa, do programa no motel, o marido é saudado com um grito pela mulher: – Eu soube de uma coisa terrível!/ Pronto, ele pensa, estou perdido. Ela descobriu tudo./ – Pô, o quê... Mas o quê... O que aconteceu?/ – Mataram o filho do seu João!/ – Urr... Orra. É mesmo? Pobre do seu João./ Te devo essa, Deus.» (TREVISAN, 2002, p. 68). É de notar que se não temos aqui nenhuma violência (verbal ou física) desencadeada pela infidelidade, uma vez que a traição manteve-se clandestina, a preservação desta violência ocorre, um tanto ironicamente, à custa de uma outra violência (e mortífera): a liquidação do filho do seu João. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 358 um crime passional: «O guarda Bruno chega: ―Tá preso.‖ O rapaz deixa cair o punhal: ―Ela vivia fazendo desfeita pra mim.‖ Vaidoso, o guardinha conta que é o seu primeiro preso.» (TREVISAN, 1997, p. 75). Convirá chamar a atenção para o seguinte: em situação de adultério, a morte não atinge somente a mulher. Pode também ocorrer o caso de o amante morrer às mãos do marido enganado ou então, surpreendentemente, de ser este a sucumbir àquele, como parece acontecer aqui: ―Epa, diabo. Não me conhece?‖ De costas, sai para o terreiro. João segue atrás. Investe com um golpe traiçoeiro. Tito rebate e acerta de raspão o braço. Cai a faca. João avança furioso, aos berros. Recebe dois, três cortes. Tropeça e vai ao chão. Bem quieto. O outro limpa o facão na cerca. Enrola um cigarro, a sombra do chapéu no rosto. Pronto a chamar o sargento. Antes de sair a mulher ao lado do fogão, cercada de filhos: ―Vá lá ver teu homem que eu matei.‖ (TREVISAN, 1997, p. 40.)19 19 Ou então, a eliminação do amante se ficar a dever a um impulso momentâneo, como acontece neste quadro composto por uma sequência de duas microficções: 1. Ela diz que tem naquela noite uma reunião de trabalho. Desconfiado, vou até lá. Do meu carro quem vejo ali com o chefão, rindo e de mão dada? Os dois sobem no carro dele. Entro no bar da esquina e bebo alguns chopes. Só penso no meu bem. Em vinte anos, ai não, o único amor. Três horas depois eles voltam. Vou ao seu encontro. Quero falar só com ela e pego pelo braço. Não chamo pelo nome, sñ de bem. ―Agora, bem, me diz o que há.‖ Ele se põe na minha frente. Ah, nunca vou esquecer: ―Cala a boca, certo? Não faz escândalo‖. 2. Me viro para ele: ―Com você, não falo. Se fez de meu amigo. Foi ao aniversário de minhas filhas. Não passa de um canalha‖. Daí sacode no meu rosto o anelão vermelho do dedo: ―Você tem sido um bacaca, certo? Um grande cornudo. A tua mulher, sacou? É muito minha‖. Um empurrão no peito quase me derruba. Daí eu atiro, certo? Duas vezes ele roda no mesmo lugar. Continuo atirando, sacou? E vai de cara no chão molhado. Jogo fora GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 359 O adultério, se calhar compreensível à luz dos tratos violentos de que padece a mulher trevisaniana, parece, em contrapartida, conter em si como que a condição de mais uma violência: aquela pela qual se pune exemplarmente. Mas o excerto acima citado, na verdade, revela um sentido assaz difícil de circunscrever com cabal exatidão. Afinal, quem morreu e às mãos de quem? «‖Vá lá ver teu homem que eu matei‖», é frase proferida pelo marido enganado? Ou é o amante que não se inibe de a dizer perante os filhos menores da mulher? Ou, hipótese igualmente a não descartar, será que Tito não é um inimigo, seja por que razão for, que João tentou liquidar com um golpe pelas costas. A ser assim, restam o crime e a incerteza de ter havido adultério, ficando indeterminada a razão que levou João a querer apunhalar Tito. O que fica claro é a morte daquele e a (neste caso, desconcertante) declaração final. Mas não custa suspender as leituras e resumi-las numa só: a que envereda pelo adultério e por um marido enganado que fracassou, à custa da própria vida, na tentativa de matar o rival. A ser assim, esse marido traído foi por duas vezes vítima. E mais se pode dizer: se foi vítima de traição, vítima igualmente foi na hora em que procurou desferir um golpe traiçoeiro. Um pouco como se se dissesse: traição não se vinga com mais traição. Ou, então, como se se propusesse esta bem duvidosa moral: infidelidade resolvese matando a mulher e não tanto o amante desta. Outras vezes, a vítima é apenas, e sem ambiguidade, o marido traído, que fica sem a mulher, que decide partir, e com o cuidado dos filhos, desapossado assim do matrimónio sem que contasse. Em vez de sangue derramado, surge a explicação possível. Tudo se resume a uma carta, melhor dizendo, a pouco mais que um bilhete de despedida: ―João, eu parti para sempre, cuide bem das crianças, são um pedaço do meu coração, não esqueço tudo o que fez por mim, você me deu até o que não tinha e eu? não passo de uma perdida, sei que não mereço o teu perdão, fugindo na minha idade, já pensou? caso me veja com o outro finja que não me conhece, louca! o que eu estou fazendo? aqui o último beijo da que foi sempre tua – Maria.‖ (TREVISAN, 2002, p. 75.) a arma e lhe dou as costas. O bem atrás de mim, aos gritos: ―Louco, louco. Que vai ser de tuas filhas?‖ (TREVISAN, 2002, p. 48-49). GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 360 Não deixa de ser interessante a retórica final da fórmula empregue para a despedida, logo antes da assinatura: «da que foi sempre tua». Em rigor, a carta vem justamente ratificar o inverso dessa fórmula. Mas o que cumpre notar é que parece pairar aqui uma continuidade elidida, mas, afinal, central, já que é disso que trata a missiva: informar o marido traído que, embora a esposa fosse dele, já o não é mais. Ou seja, a despedida não é somente um mero exercício de pragmática comunicacional, na medida em que, a despeito do encanto que lhe confere a sentimentalidade das palavras escolhidas, contém a ênfase desse corte com o qual as coisas mudaram de rumo e deixaram de ser o que eram. O «beijo» final é menos da que «foi sempre tua» e mais da que «já não é mais tua». Outro aspecto a considerar é o facto de a despedida insistir um tanto no que diríamos ser um catecismo da culpa assumida. Trata-se, tudo bem visto, de mais uma versão negativa da mulher: não só esta foge com outro, largando inclusive os filhos ao cuidado do marido traído, como não justifica a fuga, vale dizer, justifica-a com o injustificável: «não esqueço tudo o que fez por mim, você me deu até o que não tinha e eu? não passo de uma perdida, sei que não mereço o teu perdão, fugindo na minha idade, já pensou?», «louca! o que eu estou fazendo?». Estamos perante a autoexpressão de uma volubilidade extrema. A da mulher que sem razões para tanto cede, a despeito da boa vida familiar de que beneficiava (ao contrário de muitas), ao desejo. Nesta perspetiva, e num autor (d)enunciador de realidades intrinsecamente patriarcais, a carta tanto é uma despedida como uma flagelação que converte a mulher numa impenitente adúltera. A ausência aqui de um grão sequer de violência por parte do marido, que não é daqueles (quer dizer, não se presume que o seja) dominadores que pululam em Trevisan, é, como se percebe, de molde a aumentar a culpa da fuga. Porque parece tratar-se de uma fuga sem motivo aparente, a não ser o desconcerto de um coração volúvel. Eis o que é suficiente para perturbar a condição masculina (e, faço notar, a obra de Trevisan pode ler-se como crítica impiedosa a essa condição). Outra leitura possível, e decerto a não descurar, é a que traduz a carta segundo o amorpaixão romântico. O único senão reside no facto de em Trevisan o amor, mesmo se convenientemente traduzido em retórica afetivo-sentimental, não andar a compasso com idealizações românticas e provir mais de sensações carnais. Mais do que amor, convirá, pois, falar em desejo (carnal, entendase). Noutras circunstâncias, e ainda a propósito do adultério, é bom de ver que uma tentativa lograda de fazer justiça pelas próprias mãos é passível de desembocar num polo oposto ao do crime por razão de honra: o da conversão mística. Deste modo, e passada a meia idade, ressentimento e ódio GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 361 desvanecem-se em prol de uma fé ardente que não consente em tudo que não seja bem e espiritualidade: – Inteirei cinqüenta anos. Enganado pela mulher mais moça. Nesse loiro que ronda a casa dou uns tiros, mas não acerto. De católico mudo para crente. Minha defesa antes era uma faca. Hoje do céu o meu amparo. Se você é crente, adulterar não pode. ―Nada te faço‖, eu digo. ―Por bem casamos, por bem nos apartamos.‖ Ela se vai com o loiro, guardo os três filhos. Esses eu conheço que são meus. Daí ela se junta com outro, biscateiro de galinha. Agora acabou, não sei de mulher, para o crente é mais fácil. A palavra cala no teu coração. A luz vem de cima. (TREVISAN, 1997, p. 44-45.) IV Ele manda e desmanda no vento. Ralha com a chuva. Castiga o raio. Silencia o protesto do trovão. Só pela velha não é obedecido. (TREVISAN, 1994, p. 41.) Como se viu, o matrimónio oferece palco a um extremado sadomasoquismo. Adultérios e crimes são enfatizados pelas microficções de Dalton Trevisan; e mais do que isso: a danação, nessas microficções, é tanta que o tempo nem sequer atenua o que quer que seja, a avaliar pela proliferação de velhos desamparados e humilhados. Dir-se-ia que com o avançar dos anos a violência recrudesce, o que torna incessante a guerra conjugal e não apenas. Exemplo flagrante de uma situação de desamparo é, em «Clínica de Repouso» (O Pássaro de Cinco Asas), o de uma idosa largada pela filha num hospício infecto, muito ironicamente chamado ―Nossa Senhora da Luz‖, e onde, ao invés de um merecido repouso, a anciã acha, entre outras sevícias, o cruel escárnio das freiras. Se quisermos saber se e de que modo esta situação decrépita dos idosos, sujeitos a maus-tratos e a um resto de vida atormentado, se reproduz nas microficções do autor, basta ler algumas como esta, em que um casal não se abstém de brigar: «Casal brigado, de costas. Longo silêncio. De repente o velho:/ – Sua diaba. Para de ficar ouvindo o meu pensamento!» (TREVISAN, GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 362 2002, p. 90); ou ainda estas duas, particularmente exemplificativas do ódio que sustenta a (má) relação entre dois velhos, que já dificilmente (isto é, só mesmo por necessidade) se aturam: «A velhinha geme e o velho liga o rádio bem alto./ – Se é o fim, desgracida, rebenta duma vez.» (TREVISAN, 1997, p. 7), O velho compra um naco de queijo e avisa: – Se você pega eu te corto em pedacinho. A velha tem de pegar quando limpa o armário. Daí recebe um tapa na orelha, dois empurrões e cai sentada. – Gostou, sua diaba? (TREVISAN, 1992, p. 83-84.) Noutro micro-conto, a degenerescência física – a falta de visão – acarreta uma vantagem apreciável: «Seu João, perdido de catarata negra dos dois olhos:/ – Meu consolo que, em vez de nhá Biela, vejo uma nuvem.» (TREVISAN, 1994, p. 127). Não admira, pois, que a morte de um deles dê azo a uma libertação anteriormente acalentada – «A velhinha meio cega, trêmula e desdentada:/ – Assim que ele morra eu começo a viver.» (TREVISAN, 1992, p. 84) –, que pode assumir diversas formas, conforme se conclui destes dois microtextos, ambos uma boa exemplificação deste estado de coisas (e um deles um tanto singular e que diz muito sobre o passado de sujeição do viúvo, especialmente se considerarmos esse apêndice capilar superior que é o bigode como um símbolo de masculinidade): A velha morre do medo de morrer. Cinqüenta quilos reduzidos a trinta e cinco, quase cega. Pragueja o companheiro, ameaçando com a bengalinha trêmula. No último dia, a cisma de que se espirrasse não morria. Espreme-se toda numa visagem: – Pronto, espirrei. Hoje não... Resfriada, espirra e espirra. João prepara o chá de sete folhas – da janela atira um beijo e dirige galanteio obsceno, quem pode ser? Lá na cama, ao terceiro espirro, a sua velha é finadinha. Primeiros dias o pobre chora muito – as filhas até escondem o revólver. Suspira, ai, sem sossego, ai. Ele, que nunca foi de igreja, três missas manda rezar. Aflita, uma das filhas vai bem cedo GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 363 visitá-lo. Não é que surpreendido, atrás da porta, fazendo arte com a criadinha? (TREVISAN, 1994, p. 73.) Durante quarenta anos, a cada sua tentativa dissimulada: – Seja ridículo, velho – era a mulher contenciosa e iracunda. – Bigode? Não tem o que fazer? Até que ela morreu. Contrariada de ir primeiro. Dias depois, os amigos dele já reparavam no bigodão em flor. Grisalho porém viçoso. Tudo o que fazer. (TREVISAN, 1997, p. 109.) Com ou sem libertação, com ou sem o tormento inescapável de um parceiro insuportável, o certo é que a velhice é também fatalmente uma deterioração, que fica, muito nitidamente, clara quando acontece a perda de um sentido de identidade. Nomeadamente a não recordação do básico que sustenta qualquer identidade, a começar pelo saber quem somos: «Na hora de assinar, todo soberbo o velhote, no seu oclinho torto:/ – O meu nome, qual é? Quem mesmo sou eu?» (TREVISAN, 1996, p. 70). E o drama dessa desintegração é tanto mais acentuado quando se nota o desespero de um amparo que não virá porque nem tão pouco se é já capaz de estabelecer o mínimo contacto (neste caso, telefónico) com quem quer que seja. Isto é, a clausura e o sofrimento inerente atingem o patamar irreversível de uma total impossibilidade de reverter a situação. É o desespero em toda a sua força que se nos dá a ver. Leia-se: «Chorando baixinho, o velho disca todas as combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa.» (TREVISAN, 1994, p. 124). V – Ai, amor. Ai, não pare. Irritada com a medalhinha que salta entre o seios, atira-a para as costas. E você merece de relance o triste olhar de Nossa Senhora. (TREVISAN, 1997, p. 26.) GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 364 Ela cai-lhe nos braços, toda trêmula. Nem falar pode, assustada. Desabotoa o casaquinho – ―cuidado, querido, o pregador!‖ Ele se desfaz da gravata. Aos beijos, de pé. Aos beijos, sentados. Deitados no tapete, rolando. – Quer que morda ou beije? – Sim. – Beije ou morda? – Sim. Ai, sim. Essa aí a grande tarada do sim, sim. (TREVISAN, 1997, p. 75.) Para terminar, resta falar da sexualidade – leia-se: o lado instintivo, e sadomasoquista, da sexualidade (a satisfação obtida) – e, correlativamente, do desejo (a satisfação esperada). Ambos, com o leque de fantasias que os sustentam, são, não se duvide, o tema maior das microficções de Dalton Trevisan. A grande porção dos crimes por honra devem-se, como se disse, ao adultério; outros crimes são-no em função de um combustível sexual incontrolável que se satisfaz através de violações; enfim, não se pode deixar de reconhecer que a sexualidade é como que a mola sobre a qual assenta consideravelmente a interação (consentida ou não) entre personagens. Os exemplos são muitos e variados, limitar-nos-emos a alguns. Desde logo, a sexualidade coincide em não poucos textos, até onde pode, com uma fantasia à solta. No seu confinamento mental, a sexualidade é, numa palavra, antes de mais desejo por cumprir. Neste aspecto, é algo de inalcançável e de indefinível que suscita o desejo (um não sei quê, espécie de objeto petit a lacaniano); e que, tratando-se da microficção transcrita a seguir (notável modulação do motivo donjuanesco), toma a forma de uma insuperável insatisfação erótico-sexual e da qual dificilmente se imagina algum resgate satisfatório (não é de prever que o «coroa» quinquagenário seja solução para acalmar o capital sexual, digamos assim, da personagem, que vem distorcer por completo a imagem patriarcal da menina bem comportada, porque contida nos seus desejos; o desejo sexual fora dos parceiros, apetece dizer, é como que a descoberta de um reencantamento): «– Apaixonada por um, transo com outro e gozo pensando no coroa de cinqüenta anos – o único GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 365 que me faz sonhar. Meu Deus, como sou dividida. Acha que isso é normal?» (TREVISAN, 1994, p. 41.) Veja-se ainda esta outra situação curiosa, em que uma solteira virgem não aguenta mais a carência de sexualidade e implora por ser desflorada (e é de supor agora que o desejo, ao arrepio de preliminares e de outras carícias expressivas do amor, se pretenda conotadamente selvagem) como quem suplica o direito a uma condição minimamente digna de vida. E se culpa imensa há na personagem, é a de ainda ser virgem, daí que haja algo de clemência na penetração pela qual tanto anseia: «A solteirona virgem, depois de umas doses de uísque, ao antigo namorado:/ – Por favor, me salva. Livra o meu corpo desse maldito limbo. Dessa terra de ninguém!» (TREVISAN, 1997, p. 39.) Ainda no domínio da fantasia, é possível desejar e ver a nudez desejada numa mulher que se desfaz dos seus óculos (e não há como não ver aqui os óculos em termos de autoridade intelectual semelhante à de uma professora na sala de aula, sucedâneo fetichista da mãe tirana; neste sentido, retirar os óculos equivale a entregar-se e, mais, corresponde à presença, em registo lacaniano, do falo materno circunscrito à nudez de um rosto; e, nesta ótica, os óculos são, igualmente, o signo de uma identidade racional, sem a qual se acede à fantasia irrestrita): «Excitação maior que despi-la? É livrá-la do óculo. Mais nua de estar sem óculo que sem roupa.». (TREVISAN, 1994, p. 18). E não falta sequer um ejaculação precoce motivada somente pela simples contemplação de uma mulher, consequência empírica bastante reveladora do poder psicossomático da fantasia, sobretudo em situação de retenção, como parece ser o caso, de desejo até ao instante que é o da visão (o olhar como catalisador de desejos): «No gesto mágico, duas vezes nua. João se contém para, de mão posta, não cair de joelho. Quem vê uma mulher nua já viu todas? Aí se engana, cada uma é todinha diferente. Ah, que bom, aprender tudo outra vez.» (TREVISAN, 1994, p. 38.) Mas, em geral, o desejo em Trevisan não abdica de atributos físicos. E os contextos são múltiplos: o velho que se aquece e reconforta dormindo com uma moça de 18 anos – «– Na nossa idade, ai, com esse frio, só peço uma boa canja, um copo de vinho, uma bolsa de água quente – e cama que te quero./ – Pois a tua bolsa quente, o teu copo de vinho, essa boa canja eu tenho lá na minha cama de dezoito aninhos.» (TREVISAN, 2002, p. 74), o homem que se queixa da falta de peito da sua Maria – «– E qual o problema com a Maria?/ – Ah, ela é boa, é carinhosa, é trabalhadeira./ – .../ – Mas pô! Nadinha de peito.» (TREVISAN, 2002, p. 72) –, a moça que, a caminho do gozo, suspira com prazer intenso perante a dureza do órgão genital masculino GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 366 do parceiro (prazer cujo alongamento orgásmico é expresso grafematicamente, repare-se, pela distensão da palavra «duro»): «Qual epopeia de altíssimo poeta se compara ao único versinho da primeira namorada:/ – Que duuro, João!» (TREVISAN, 1994a, p. 90; 1997: 43); ou ainda a moça que, com indisfarçável orgulho, ostenta o seu poder corporal de atração: «– Esse aí me adora, sim: daqui pra baixo.» (TREVISAN, 1994a, p. 91). Finalmente, convirá ainda referir que a sexualidade, em Dalton Trevisan, está longe de se reduzir a uma troca carnal consentida. Não rareiam, assim, violações. Desta sexualidade transgressiva e criminosa, não minguam exemplos. Eis alguns (as duas últimas microficções perfazem uma sequência narrativa, conforme se depreende do conteúdo): Sozinha, na rua escura. Lá vem o negrão. Dou três passos, agarrada por trás. ―É um assalto‖, ele diz. ―Um grito. E já te corto‖. Me arrasta para longe. Arranca toda a roupa, inteirinha nua. Mão junta, gemendo e chorando: ―Meu Jesus Cristinho. Leve tudo. Pode levar. Só me deixe em paz. Por favor, não faça mal. Uma pobre mulher doente.‖ Com ele não tem Jesus Cristinho. Ali no matinho o palco das minhas sete mortes. Sem pressa ele me desfruta. De todas as maneiras. O que nunca pensei na vida o negrão fez. Ai de mim, não me sujeito, esganada por ele, não está de brincadeira. Me trata o tempo todo de vagabunda e nomes contra a moral. Ainda resisto, me cobre de socos, acerta o ouvido e sangra o nariz. Serve-se à vontade, mais de uma vez se regala. De joelho peço que tenha pena. Tudo o que fez já não basta? Quatro da manhã, me deixa na esquina. Larga o meu braço, some na escuridão, ele e sua cantiga. Agora, o pior: abro a porta, meu Deus. E olha para mim, o pobre João. (TREVISAN, 1997, p. 113.) GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 367 Fundo da noite acordo, uma faca no pescoço. ―Grite... E está morta!‖ A boca molhada na máscara de meia. São dois. Cantigas de suor, bebida, droga. Eles reviram o quarto, querem dinheiro e joia. ―Pelo amor de Deus, levem tudo‖, eu imploro, ―sñ não façam mal.‖ Não acham quase nada. Já estão de saída, um deles muda de ideia. Me pega pelo braço: ―Vai ser minha mulher.‖ E para o outro: ―O segundo é você.‖ (TREVISAN, 1997, p. 8.) 1. Daí fecha a porta, se livra da meia na cabeça. Loiro, uns trinta anos. ―Não olha minha cara‖. Faca na mão, me força ao que bem quer. ―Pôs, três meses sem mulher.‖ Me agarro à vida, acabar logo com aquilo. Mas ele não gostou. ―Uma droga de puta.‖ Chama o parceiro: ―Sirva-se.‖ Vão embora quando clareia o dia. Então choro, choro. Camisola e roupa de cama enfio na máquina de lavar. Tomo banho demorado – um grande sapo branco mordendo a tua nuca. (TREVISAN, 1997, p. 9.) 2. Choro todas as lágrimas. Não posso deixar que um bandido estrague minha vida. Meus pais não sabem até hoje. Outro banho. Pro namorado eu conto, só que ele some. Dez dias faz que aconteceu. Vou ao médico, pede exame. Deus meu, grávida, doente, pesteada? Mais um banho. Já não me lembro da história inteira, apaguei alguns pedaços. Só não esqueço o meu ódio daquele maldito. Banho. (TREVISAN, 1997, p. 10.) Repare-se agora na singularidade desta outra microficção, ainda sobre o tema da violação, que dá voz não à vítima mas ao violador. O que lemos é a perspetiva de quem viola e para quem o ato nada, pelos vistos, apresenta de moralmente reprovável e assume até a dignidade de (mais) um trabalho bem feito; quase uma prestação de serviços (a do comércio carnal, a despeito de não ocorrer transação financeira): GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 368 Na rua escura, sozinha, lá vem a coroa. Garro por trás e afogo o pescoço. ―Quietinha‖, eu digo. ―Ou já te apago.‖ Levo pro matinho, a par da linha de trem. ―Todo mundo nu‖, eu digo. Ela mais que depressa. Então me sirvo. A tia bem legal. Faz direitinho. Aceita numa boa o que você quer. Não dou soco nem digo nome feio. Podes crer, amizade. Ela não reclama da brincadeira. Até sorri, quem está gostando. Não acho que tem motivo de queixa. A história dela é bobeira. Isso aí, bicho. Sem complicar. Tudo dentro dos conformes. (TREVISAN, 1994, p. 114-116; 2002, p. 20.) Esta microficção é particularmente merecedora de interesse pelo que esclarece sem dificuldade sobre as restantes (ou muitas das restantes). Nela sobressai de modo bem evidente a presunção que sustenta muitas das microficções do escritor: o que horroriza o leitor não é tanto tratar-se de uma violação. O que torna a situação verdadeiramente repugnante é a manifesta ausência de emoção no criminoso, que pratica o crime com um escrúpulo de perfeição digno de um artesão minudente no exercício do seu mester, cuidando, até, que a vítima alinha de bom grado. Enfim, «Tudo dentro dos conformes». É, dito de outra maneira, a banalização extrema do mal, que integra o quotidiano e, mais do que isso, dele parece indiscernível. Como escreve Andrew M. Gordus: It is not the supernatural nature of the protagonits and the situation that make them so horrifying but rather the exact opposite: it is the naturalness of their occurence and the readiness by which each of the protagonists preys on those around him. The horrific is thus not what is repressed but what is shown to be not repressed at all, or rather as a part of everyday existence. (GORDUS, 1998, p. 24.) Cumpre também dizer, a propósito, e ainda com Andrew M. Gordus (a partir de de Rubio Ramón Fernández20), que a componente sexual das 20 Rubio Ramón Fernández, «Moral Erotica in Contemporary Brazilian Prose: Women in a Macho Society», Selected Proceedings of the 35 th Annual Mountain GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 369 microficções (e da restante obra) de Trevisan, onde é visível, como ficou já claramente assinalado, a implacável dominação masculina (capaz de tudo no sentido de possuir animalescamente a mulher, o que evidencia o expurgo do «sentimental»), a componente sexual das microficções, dizíamos, não se restringe a uma pura questão de género (o homem/senhor e a mulher/subalterna), mas constitui, metaforicamente, um desdobramento ou reflexo das relações sociais de dominação com que se defronta a sociedade brasileira: «Not only are they [relações de dominação sexual do homem sobre a mulher] indicative of the exploitative nature of sexual relations in Brazilian society but also wider experiences of the exploitation at the political, economic, social level» (GORDUS, 1998, p. 22). Mais: «What this has meant for Brasil is a tradition of representing the broader social relations of the sexual at either a conscious or incounscious level» (GORDUS, 1998, p. 22). Conclua-se dizendo que Dalton Trevisan, que pertence ao escalão literário dos grandes autores, como muito bem reforçou o Prémio Camões, Dalton Trevisan, livro após livro, detém-se sem descanso a burilar uma prosa que não é concebível fora dessa intenção primordial de representar, em jeito de tragicomédia humana, as patologias das gentes de Curitiba; e fá-lo, escolhendo para tanto sobretudo o espaço literário da micro e nano-ficção, absolutamente sem contemplações, como se enfiasse as mãos na carne viva. Munido de frases enxutas, rigorosamente com o mínimo possível de palavras, como convém à caução do micro-conto, e com um «estilo cortante», conforme diria Eduardo Coelho (COELHO, 2012, p. 20), Trevisan é, enfim, o criador de uma literatura que, por certo como nenhuma outra, pôs, e sem tonalidades soturnas (diga-se de passagem), em cena – e com as palavras de Fernando Assis Pacheco terminamos –, machos em tirocínio de amantes, homens de madureza desiludida, velhos para quem o desejo cai como baba pelo queixo. Negrinhas assaltadas em grupo, empregadinhas indefesas, quarentonas maquilhadas até ao excesso, avós cegas [...] tentando surpreender os desmaios amorosos das netas. Gentes de solidão e mágoa, palavrosa por necessidade ou finalmente sábia nos meios silêncios. Outra que tem a vida a prazo, a morte na Interstate Foreign Language Conference, Greenville, SC: Furmon University, 1987, 387. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 370 praça emboscada. Por safadezas, desonras, razões obscuras (PACHECO, 2012, p. 6.) ABSTRACT: Considered as one of the most preeminent writers in Portuguese, Dalton Trevisan has recently been awarded the Camões Prize. Trevisan is a master in the art of the short story. It is our purpose to provide a panoramic view of a good portion of this ―mini-stories.‖ We will emphasize both the main thematic axis of his micronarratives and we will draw attention on the technical-rhetorical processes that are often used by this writer with the aim of producing minimalist narratives and scenes. In this way, Trevisan introduces his typical characters alienated by crime or, in the best cases, by love relationships where marital happiness and idealized love, if they ever existed in the canon of romantic and late-romantic mythology, speedily give way to anthropophagic wrath. KEYWORDS: micro-fiction; violence; crime; sexuality REFERÊNCIAS BURRELL, Karen. Social Prejudice Examined in Dalton Trevisan‘s ―O ciclista‖. Rocky Mountain Language and Literature, Vol. 36, N.º 2 (1982), p. 111-118. CARVALHO, J. Rentes de. Nunca foi de modas. JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1087, de 30 de maio a 12 de junho de 2012, p. 7. COELHO, Eduardo. O vampiro de Curitiba. Ler, n.º 114, junho de 2012, p. 20. CUNHA, Fausto. Quase Elefantes. In: Dalton Trevisan, Cemitério de Elefantes. 9.ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1994, p. 3-4. GORDUS, Andrew M. The Vampiric and the Urban Space in Dalton Trevisan‘s ―O Vampiro de Curitiba‖. Rocky Mountain Review of Language and Literature, Vol. 52, N.º 1 (1998), pp. 1326. MORELLI, Edner. Uma leitura de O vampiro de Curitiba, de Dalton Trevisan, à luz do pós--moderno. Dialogia, São Paulo, Vol. 6, 2007, p. 77-84. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 371 NUNES, Maria Leonor. Dalton Trevisan: Prémio Camões para mestre do conto. JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1087, de 30 de maio a 12 de junho de 2012, p. 6. PACHECO, Fernando Assis. Onde Deus volta a cara. JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1087, de 30 de maio a 12 de junho de 2012, p. 6. TREVISAN, Dalton. Novelas Nada Exemplares. 5.ª edição. Rio de Janeiro: Record, [1979]. TREVISAN, Dalton. Dalton Trevisan. Seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Álvaro Cardoso Gomes e Carlos Vechi. São Paulo: Abril Educação, 1981. TREVISAN, Dalton. Meu Querido Assassino. Rio de Janeiro: Record, 1983. TREVISAN, Dalton. Essas Malditas Mulheres. 2.ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1983a. TREVISAN, Dalton. Em Busca de Curitiba Perdida. Rio de Janeiro: Record, 1992. TREVISAN, Dalton. Ah, é?. Rio de Janeiro: Record, 1994. TREVISAN, Dalton. Dinorá: novos mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1994a. TREVISAN, Dalton. Cemitério de Elefantes. 9.ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1994b. TREVISAN, Dalton. O Pássaro de Cinco Asas. 5.ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1996. TREVISAN, Dalton. Pão e Sangue. 2.ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1996a. TREVISAN, Dalton. 234. Rio de Janeiro: Record, 1997. TREVISAN, Dalton. 99 corruíras nanicas. Porto Alegre: L&PM, 2002. SILVERMAN, Malcolm. Trevisan, Dalton. Abismo de rosas. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1976. Hispania, Vol. 60, N.º 3 (Sep., 1977), p. 604-605. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 372 VIEIRA, Nelson H. Narrative in Dalton Trevisan. Modern Language Studies, Vol. 14, N.º 1 (Winter, 1984), p. 11-21. VIEIRA, Nelson H. João e Maria: Dalton Trevisan‘s Eponymous heroes. Hispania, Vol. 69, N.º 1 (Mar., 1986), pp. 45-52. WALDMAN, Berta. Tiro à queima roupa (resenha da obra de Dalton Trevisan – Macho não ganha flor). Novos Estudos, CEBRAP, Vol. 77, 2007, pp. 255-259. GUAVIRA LETRAS, n. 15, ago.-dez. 2012 373
Documentos relacionados
Baixar este arquivo PDF
da esfera sócio-discursiva (o Simbólico, diria Lacan). E, como sabemos, em Dalton Trevisan as situações transgressivas não configuram casos isolados. São antes situações banais e dão conta de um un...
Leia mais