1 IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII
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1 IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII
1 IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE. GT Diálogos transversos: Pesquisas em Etnologia Indígena na Amazônia e no Nordeste. Título do Trabalho: Os Buracos da Terra de Juacema e os dilemas da socialidade entre os Pataxó(MG). Fabiano José Alves de Souza, [email protected]. Doutorando da Universidade Federal de São Carlos. 2 Os Buracos da Terra de Juacema e os dilemas da socialidade entre os Pataxó(MG). Eu fico assim pensando... Como pode ser isso? Mentira não é porque o buraco tá lá a prova. E a gente passava lá na beirinha dele. Não tinha outro lugar para passar. A gente passava com medo, porque tem muitas coisas que é coisa encantosa dos índios, muitas coisas encantosas dos índios. (Domingos, Cinta Vermelha-Jundiba). Esta citação foi extraída de uma conversação com Domingos Braz, em maio de 2012, na aldeia Cinta Vermelha-Jundiba em Araçuai (MG), sobre os buracos da Terra de Juacema considerada pelos Pataxó uma Morada de Encantados, donde, segundo ele, saíram “as coisas encantosas dos índios”. Sua fala evoca as reflexões que tais buracos oportunizam aos Pataxó, tema que me interessa de perto nesta comunicação. A história de Juacema, sem dúvida, não é desconhecida pelos estudiosos do povo Pataxó. Encontra-se referências sobre ela nos trabalhos de Carvalho (1977), Guimarães (2003), Kohler (2004), Bierbaum (2008), dentre outras, mas talvez a mais antiga menção esteja na obra “Viagem ao Brasil” de Maximiliano Wied-Neuwied. Uma vez alcançada a margem norte com toda a “tropa”, avançamos ao longo da costa, pela planície coberta de densos cerrados, limitados à distância por colinas, mas logo encontramos novamente altas e íngremes ribanceiras de argila e arenito, que foi preciso escalar, pois as vagas impetuosas tornavam a costa inacessível. Segue-se por uma trilha escarpada até o cimo dessas barreiras, e entra-se numa planície seca de campos, denominada Jauacema ou Juacema. Nesse local, de acordo com a tradição dos moradores, houve outrora, nos primórdios da colonização portuguesa, a grande e populosa vila do mesmo, ou Insuacome, mas que, à maneira de Sto. Amaro, Pôrto Seguro e outros estabelecimentos, foi destruída pela guerra com uma bárbara e antropófaga nação dos Abaquirás, ou Abatirás. Essa tradição se baseia, sem dúvida, nas devastações que os Aimorés, ora Botocudos, levaram à capitania de Porto Seguro, quando a invadiram em 1560, conforme vemos relatado na History of Brazil de Southey e na Corografia Brasílica. Também assolaram, então, os estabelecimentos à margem do rio Ilhéus, ou S. Jorge, até que o governador, Mem de Sá, os rechaçou. Dizem que ainda se acham, em Juacema, pedaços de tijolos, metais e objetos análogos; são os mais antigos testemunhos da história do Brasil, porquanto não há, no litoral, monumentos mais antigos que os dos tempos da primeira colonização dos europeus. Os primitivos habitantes não deixaram, como as nações Tulteca e Asteca, monumentos que prendessem a atenção dos pósteros após milhares de anos: pois a memória dos rudes tapuias desaparecerá da terra com o seu corpo 3 desnudo, que seus irmãos confiam à cova, pois é indiferente, para as futuras gerações, se um botocudo ou uma fera tenham vivido, outrora, nesse ou naquele lugar. Achei em Jaucema uma espécie particular de palmeira, a piaçaba... (Wied-Neuwied, 1958 : 220-221). Essa história vem sendo atualizada, de forma singular, pelos Pataxó que para além de “pedaços de tijolos, metais e objetos análogos”, tem “achado” e relacionado com muitas outras coisas não apontadas pelo Príncipe. Passado mais de um século após a descrição realizada por Maximiliano, Juacema reaparece na etnografia de Carvalho (1977), sob a perspectiva dos Pataxó, ativando a “bárbara e antropófaga nação dos Abaquirás” como parentes subterrâneos engajados na luta contra os brancos. Além disto, a citação, abaixo, demonstra uma curiosa capacidade de resistir a profundas transformações históricas1 da colonização e dos tempos modernos: Em Juacema, o filho do caboclo, do índio, pegou um bem-te-vi (índio da beira da costa mesmo, Pataxó) e esse bem-te-vi fez uma guerra com eles. O filho do civilizado bateu no filho do caboclo e tomou o bem-te-vi. Foram prá mata chamar os outros e quando vieram fizeram uma guerra. E os outros, os Baquirá, saíram de baixo do terreno, fizeram guerra e acabou com a Juacema. Saíram de baixo do chão, tem dois buraco de onde eles saíram, os Baquirá. E os outro índio era daí de cima. Chegou os índio por terra, por cima do terreno com arco e os Baquirá por baixo, do chão... Baquirá é índio brabo, brabo mesmo. Acho que eles mora debaixo do chão que inda não descobriram essa aldeia de índio, chamam baquirá. Os antigo contava isso e prova que ainda tem lá os buraco.(Carvalho,1977: 97) Os desdobramentos desta narrativa Pataxó serão retomados mais a frente, dado seu rendimento para os argumentos que busco alinhavar nesta comunicação. No entanto, não poderia deixar de chamar a atenção para o fato de que a Terra de Juacema, próxima à aldeia Barra Velha (Porto Seguro/BA), gastando-se aproximadamente de 6 a 8 horas a pé pela praia, no sentido de Caraíva, não se encontra sob o poder dos Pataxó. Relata Kohler (2004:11) que nos anos 1960 o local foi terraplanado e colocado à venda, não se encontrando atualmente nenhum indício material deste passado distante. Recordo-me que os velhos com quem eu conversei sempre afirmavam com indignação que a Terra de Juacema, enquanto um “território sagrado” 1 Os Pataxó possuem uma longa experiência coletiva com fortes turbulências históricas tais como aldeamento, catequese, territórios invadidos e desapropriados, empreendimentos turísticos, migrações forçadas para reformatório indígena etc. Esta comunicação busca evidenciar que a despeito deste “projeto secular de desindianização” (Viveiros de Castro, 2006a:3), os Pataxó não renunciaram à luta contra o eclipsamento da sua história. 4 deveria estar sob o “poder” dos índios e jamais nas mãos dos brancos pois estes, inscritos na chave do mito do gavião e do caburé 2 são uma “gente gavião”, isto é, uma gente perigosa e gananciosa, não merecedora de muita confiança. Em uma correspondência enviada ao então presidente da FUNAI, em 26 de maio de 2008, as lideranças Pataxó, contestando3 um relatório de identificação da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, que deixava de fora a Terra de Juacema, assim se posicionavam: Não abrimos mão do território sagrado da Juacema! Imediatamente a Norte da nossa aldeia mãe de Barra Velha, na margem oposta do rio Caraíva, estão situados, Senhor Presidente, no alto de belas falésias junto ao mar, os buracos da Juacema. Foi por estes buracos que, no passado, nossos parentes Bakirá, que vivem debaixo do chão, saíram para nos defender. Os Bakirá são nossos aliados e protetores e nos visitam em nossos rituais para nos estimular a continuar na luta por nossa Terra que é também, por debaixo do chão, a Terra deles. Se preciso for, os Bakirá sairão novamente, como já fizeram, pelos buracos da Juacema, para lutar ao nosso lado. Por isto, o território da Juacema é sagrado para nós e nós não podemos admitir que ele fique de fora da nossa Terra!(pag. 3 da correspondência citada acima). Juntamente com os Pataxó em Minas Gerais, foi possível compreender mais densamente as motivações para a retomada desta Terra. Em suas rememorações, afirmavam-me trazer das suas visitações4 às aldeias da Bahia 2 Encontra-se na reflexão Pataxó, em particular, no mito que versa sobre a relação entre o caburé e o gavião, uma equivalência da relação entre o índio e o branco. Os Pataxó, na chave da gente caburé são compreendidos como um povo “cismado”, sempre acordado, possuidor de quatro olhos, dois de verdade, dois de pena, à semelhança do pássaro caburé que quando arrepia suas penas, apresenta na parte de trás da cabeça, um desenho em forma de uma falsa face, mais vistosa que a verdadeira, visível somente quando arrepia as penas, o que permite enganar seus predadores. O branco, na chave da gente da parte do gavião é visto a partir do seu bico duro da ganância e da ambição, sempre atrás de suas presas, cuja índole predadora é revelada pelo mito, daí que é uma gente não merecedora de consideração e confiança. 3 De acordo com as Lideranças Pataxó, “o motivo da presente contestação é o fato de que os limites territoriais ali estabelecidos não correspondem integralmente aos da Terra tradicionalmente ocupada pelo povo Pataxó, habitante da aldeia de Barra Velha...”(Correspondência enviada ao presidente da FUNAI assinada pelos índios Pataxó representantes do povo e da Frente de Resistência e Luta Pataxó,em 26.05.2008). 4 Para uma leitura da importância das práticas de visitação (ou “formas de ligação trilhada”) na compreensão dos modos de pertença territorial entre os índios do sul da Bahia, ver Viegas (2001). Para a autora “visitar (ou estabelecer linhas de contacto, ou trilhas) é o modo de transcender o possível encerramento em que essa forma de pertencer a uma aldeia poderia incorrer” (2001:19). Em agosto de 2012, em campo na aldeia Retirinho, acompanhei os Pataxó em visitação à aldeia Barra Velha (BA). Foi uma viagem “inesquecível”, cujo percurso foi realizado em um ônibus escolar, com poltronas de plástico, superlotado, cuja duração não foi nada menos do que aproximadamente 19 horas. Se na ida o ônibus já estava superlotado, na volta a situação ficou mais difícil ainda. A despeito destas difíceis condições de viagem, tive uma percepção da importância dessas visitações, não somente para os idos dos anos 80, como também para os dias atuais. Vale salientar que uma das demandas das lideranças 5 (Barra Velha, Boca da Mata, Mata Medonha), a partir dos anos 80, além de muitas coisas outras5, traziam também as pequenas pedras amareladas da Terra de Juacema. Certa feita, Macari (Aldeia Retirinho/MG) me presenteou sua pequena amostra que ele guardava em casa. Não foi despropositadamente que ele me respondeu, após ser indagado sobre a Terra de Juacema, que a aldeia Retirinho, atualmente, também tinha uma Juacema pois ele havia nomeado a sua filha mais nova pelo nome deste antigo local. Buscando alinhavar os interesses desta comunicação vale notar primeiramente que os buracos de Juacema, dentre outros fundos mais (pacuios, sumidouros...) ainda continuam abertos, rugindo “muitas coisas encantosas dos índios”, não apenas a favor, mas também contra a luta dos Pataxó, o que demonstra que a vida social é desafiadora, exigindo um conjunto de práticas quotidianas para se garantirem, bem como para lidar com as contínuas emergências destes buracos. Em segundo lugar, que os encantados que emergiram (e ainda emergem), além de outros seres de origem indeterminada como os Bichos Brutos6, detêm poder pois mesmo aqueles que estão a favor dos Pataxó, em troca da proteção eles exigem o domínio e a posse de determinados espaços humanos (lugares, paisagens, matas, casas, por vezes, corpos). Por fim, não saberia dizer se posso afirmar que haja uma centralidade destes outros na constituição da socialidade Pataxó, mas certo é que uma leitura que viesse a omitir a presença (ainda que invisível) destas coisas encantosas, como inúmeros Encantados, Santos, Caboclos e Bichos, através de uma pesquisa eminentemente sociológica, focando apenas os grupos de família produziria uma imagem muito empobrecida da vida social Pataxó. Invisíveis mas não ausentes, todos estes citados constituem a vida Pataxó alargando o universo de relações que não se resume a uma rede somente humana, tal como muitos de nós a concebemos. Estas ideias resumem o foco desta comunicação. indígenas à FUNAI é o apoio para realizar, pelo menos uma vez por ano, visitações às aldeias dos parentes na Bahia e em Minas Gerais. 5 Na viagem da volta, após as visitações, os Pataxó traziam (e ainda trazem) parentes (irmãos, pais, primos, genros, tias), além de coco, peixe seco, farinha de puba, mariscos diversos, mas também mudas de árvores, mudas de capim de aruanda, resina de amesca, sementes diversas para plantio e confecção de artesanatos, areia da praia, além de cachorros, galinhas, galos de raça, pássaros, óleo de copaíba, cocares, colares, etc. 6 Esta conceitualização também aparece no trabalho de Bandeira (1972) sobre os índios de Mirandela. 6 Atualizando narrativas sobre a Terra de Juacema As reflexões sobre os buracos de Juacema oferecem boas pistas para aproximar das instigantes hesitações que moram nas íntimas indagações dos Pataxó que os acompanham em sua vida cotidiana que, de ordinário, são muito pouco visitadas pelos vizinhos brancos que vivem fora das aldeias, muito embora tais hesitações sejam conspícuas. Antes de aproximar destes buracos, vistos aqui como um “fundo de socialidade virtual” (Viveiros de Castro, 2000), buscando ser prudente, é conveniente esboçar ainda que sucintamente a agencialidade humana Pataxó na construção da sua socialidade. Os Pataxó consideram a si mesmos como um povo “cismado” 7 e desconfiado, à feição do pássaro caburé, mesmo ante as práticas mais comuns da vida cotidiana. Há entre os Pataxó uma forte economia de palavras, de gestos inusitados, de sentimentos expansivos, pelo contrário, se observa uma vida contida, reservada, constituída de uma moralidade interessada em uma vida interior entre parentes. No entanto, isso não significa que eles sejam indiferentes ao mundo exterior. Um sentimento de cisma, desconfiança e segredo marca a atmosfera das aldeias Pataxó que eu visitei em MG. Galos cantando fora de hora, cachorros uivando a qualquer hora do dia, parentes gargalhando demais ao dizer alguma coisa, ou uma ofensa recebida tanto quanto sonhos durante a noite, contribuem para elevar os graus deste sentimento de cisma. Quase sempre ocorrências consideradas estranhas são concebidas como motivadas pela ação invisível maléfica dos seres não humanos. Como a extração da alteridade é uma prática muito intensa entre os Pataxó, muito facilmente eles chegam a equação de que o eu é uma figura do outro, sem dúvida, com muito desconforto, afinal, não é fácil ver parentes (a si mesmos), “puxando a rama” para outro lugar. Determinados seres não humanos que co-habitam os espaços da aldeia são responsáveis, em parte, pelo sentimento de cisma, segredo, aversão e agressividade que se observa entre os Pataxó. Talvez em função disto, a vida cotidiana Pataxó é feita de consideração (mas de dilemas também). Os Pataxó 7 Para um leitura convergente sobre “povo cismado” merece nota o trabalho de Viegas (2003). 7 falam de vários tipos de consideração8, ou seja, a consideração de cozinha, de “irmão de leite”, de cabana (de ritual), de festa, de fogueira, “lá de fora” etc. Sua intensidade decresce em um contínuo até chegar à consideração ao grau zero, que comumente se recaí sobre os bichos (gavião por exemplo), vistos como “coisas encantosas” que destemperam e desagradam a vida Pataxó produzindo, arrisco-me a dizer, uma anti-socialidade. Vale relembrar que também os índios não escapam às possibilidades de se tornarem bichos, pois mesmo as considerações em suas construções mais elaboradas (de cozinha, de ritual) não conseguem escapar destes outros que se encontram incluídos na sociedade. A consideração de cozinha é aquela marcada pela comensalidade, pelos afetos e pela persistência da vida cotidiana que dá conta da produção do parentesco e/ou de um lugar onde se forja a humanidade cotidianamente 9. Merece notar que parceiros brancos que alcançam essa consideração são imantados pela força das relações de amizade, quase que “consanguinizando”o no plano das atitudes, relação que fica evidenciada, não só pela comensalidade, mas também pelo convite para batizar as crianças, constituindo daí em diante uma relação entre compadres. Esta consanguinização o sujeita a toda sorte de deveres pertinentes aos parentes que, uma vez não seguida, a relação é rompida facilmente. Certa feita os Pataxó me revelaram que a melhor maneira de manifestar insatisfação ou desprezo por alguém é sujeitá-lo a pernoitar na escola, longe do ambiente familiar. Em suma, seria impossível uma vida sem consideração, isto é, sem generosidade, entre os Pataxó. Feito este breve esboço, aproximo então dos buracos de Juacema. Os eventos intensamente profícuos ocorridos em Juacema reverberam até os dias atuais em múltiplas versões10. Descrevo, a seguir, algumas que recorrentemente apareciam na minha etnografia, que em hipótese alguma esgotam nem resumem a nebulosa de ideias e reflexões que presenciei em campo. Ao longo deste, ao mostrar-me interessado pelas narrativas sobre a 8 Não desenvolvo aqui a reflexão que tais considerações suscitam pois afastaria-me muito do foco desta comunicação. 9 Inspiro-me aqui no texto de Mccallum (1998). 10 Guimarães (2003) apresenta uma versão sobre os episódios ocorridos em Juacema em forma de poesia, cuja autoria pertence a um dos seus informantes Pataxó. 8 Terra de Juacema, percebi que o meu trabalho aguçava a memória dos velhos, e ingenuamente me vi como se eu estivesse a soprar as brasas de um fogo não apagado. Assim, na medida em que se intensificava a conversação sobre Juacema, não era difícil perceber o quanto estes diálogos potencializavam os fundos dos buracos, com toda a sua força estruturante, ao mesmo tempo em que era possível notar que a Terra de Juacema ainda faz parte do mundo Pataxó, constituindo sua geografia e sua história. Ao descrever, com mais minúcias, as narrativas associadas a essa terra, devo antecipar, no entanto, que em inúmeras narrativas é notável a centralidade dos dois grandes buracos redondos, um ao lado do outro, de aproximadamente 3 a 5 metros de profundidade, que, com a ação do tempo e da própria natureza, vêm sendo aos poucos soterrados, ficando cada vez menos profundos. Afirmavam os velhos que tais buracos eram bem mais profundos antes. Juacema no passado era uma aldeia que desde seu início possuía índio e não índio, “que nem nós em Coroa [Vermelha] hoje, que está cheio de gente que não é índio dentro”. Havia casas, pousadas, carros, aviões e máquinas trabalhando dia e noite11. Certo dia o filho de um índio descobriu um ninho com um filhote de bem-te-vi12 na mata e ao desaninhá-lo trouxe para sua casa. Outro garoto, filho de um casal de brancos começou a brigar com o índio querendo o bem-te-vi. O índio que havia desaninhado o filhote não quis entregá-lo e assim começou uma briga entre índio e não índio13. Uma nação de 11 Em outra versão Juacema também se apresenta bastante povoada, por índio e não índio, embora assegure que lá “toda vida foi terra de índio”, contudo, estava se transformando em uma cidade. Acontece que quando Juacema já estava começando a virar uma grande cidade, isto é, a cidade de Salvador, com ruas, casas, pousadas, carros e máquinas trabalhando dia e noite, um indiozinho saiu para pelotar (caçar com estilingue) na mata. 12 O pássaro bem-te-vi é considerado na reflexão Pataxó um “bicho de concentração maior, defesa, alerta e aviso”. Segundo Baiara (Aldeia Jeru Tucunã) o pássaro bem-te-vi também pode ser concebido como uma roupagem, uma forma ou uma parte exterior de uma linda moça que possuía a capacidade de se transformar em pássaro. 13 Em uma outra versão, narra Dona Nete que a mãe do menino rico, pretendendo tomar o bem-te-vi, enfiou um alfinete na cabeça do indiozinho, “quando pensa que não, a cidade desapareceu”. No outro dia, ao amanhecer, toda a riqueza e todas as coisas que estavam configurando a cidade, ficou encantada, invisível. O “dom” do menino encantou a cidade, pois se Juacema houvesse se transformado na cidade de Salvador, os Pataxó seriam exterminados de verdade, daí que o menino ou o seu poder de encantamento fez desaparecer a cidade. Assim arremata Dona Nete: “mas foi isso, então esse indiozinho tinha o dom de não deixar (virar uma cidade), fez isso mesmo para ali (Juacema) não ser cidade”. 9 índio subterrânea que vivia por ali emergiu, abrindo dois grandes buracos 14 na terra de Juacema, destruindo-a completamente. Depois, retornou para debaixo da terra, através dos buracos, “e aí lá não foi nem aldeia, nem cidade”, virou morada de encantados. Os primeiros índios desta nação subterrânea entraram nos buracos e foram parar na Amazônia. Dizem os mais velhos que esta nação tinha a ciência de cavar esses buracos com muita prudência, sem deixar que a água vazasse pelos caminhos subterrâneos, pois em baixo da Terra de Juacema há vários lençóis de água. Os últimos a entrar nos buracos, vendo que tudo que estava para fora dos buracos estava encantando-se, seguiram os primeiros com receio de ficarem invisíveis e também foram parar na Amazônia. Lá eles formaram suas aldeias subterrâneas. Sumiram todas as pessoas que moravam em Juacema, apenas os Pataxó não se encantaram, pois eles já estavam lá a mais tempo 15. Também não ficou nenhuma marca visível da cidade, exceto seu arruamento que é possível identificar através da disposição em que se encontram os pés de caju bravo. Todos eles miudinhos e enfileirados como se organizassem um “ruado” semelhante ao formato da cidade que estava sendo construído. Na manhã seguinte ao encantamento, nada mais foi possível perceber na cidade, exceto eles, a “nação” dos cajueiros bravos. Apenas ficou visível a natureza do lugar (mata, rio, lagoa, animais, etc.), no entanto, com algumas curiosas alterações que os Pataxó não deixam de enfatizar16. O rio passou a correr em sentido contrário, isto é, em vez de desaguar no mar, ele segue em direção ao interior da mata. Nessa inversão, o mar virou a nascente e a mata virou a foz do rio. Além disso, a lagoa 14 Há uma outra versão que faz referência aos buracos de Juacema como um “fojo”, um caminho subterrâneo que liga, ainda que perigosamente, o mundo dos Pataxó a outro mundo, o mundo de baixo, onde vivem os Tapuios Velhos acompanhados de outras nações, umas a favor, outras contra a luta dos Pataxó. O mito do machado que caiu no rio é uma boa leitura para esta versão sobre os buracos de Juacema. 15 Há versões que sugerem que a nação de índio que saiu dos buracos para lutar contra os não índios também se encantou, juntamente com a cidade. Vale ressaltar também que não é incomum os narradores desse evento afirmarem com ênfase que os Pataxó não encantaram, pois se assim fosse, ninguém de carne e osso teria restado para relatar o acontecido. 16 Nos trabalhos de Kohler (2004) e Bierbaum (2008) é possível constatar inúmeras descrições que convergem com minhas notas obtidas em campo sobre as transformações ocorridas em Juacema após o seu encantamento. 10 abastecida pelas águas desse “rio torto” 17 passou a guardar todas as riquezas da cidade debaixo de suas águas. Dentre elas sobressai a existência de um tacho de ouro, em cujas alças estão conectadas grandes correntes. Dizem os mais velhos que as águas da lagoa eram claras e brilhantes, mas depois que um viajante branco tentou retirar o tacho, elas empreteceram. Esse viajante reuniu várias juntas de boi para retirar o tacho. Quando o tacho já estava despontando, um boi deitou e o tacho afundou novamente. Tamanha era a ganância do viajante que ao falar mal dos bois, num pronto, a lagoa empreteceu. Depois desse fato, ninguém mais ousou explorar a lagoa, mesmo sabendo das riquezas encantadas que ela guarda. E, diferentemente dos locais adjacentes, o lugar ficou sem praia, isto é, a maré não mais secou, ao invés, observa-se uma enorme parede de pedra onde batem as ondas do mar, impedindo o acesso à Juacema pelo mar, tendo que passar somente pela mata, pelo campo. Além disso, a terra de Juacema tornou-se seca com pedras e cascalhos. Após todas essas transformações, Juacema não foi mais habitada por “ninguém” em função das “pantomias” do lugar18. A terra de Juacema virou uma Morada de Encantados: gente, galos, telhas, túnel de óleo, jacarés, pousadas, máquinas trabalhando, tudo permanece, porém, de forma encantada, invisível, o que revela o “expressivo” poder dos encantados. Refletindo sobre uma estranha ameaça oriunda dos buracos de Juacema Na verdade, os dois buracos escavados pela nação subterrânea, após a guerra entre índios e brancos, além de abertos, ficaram sob o poder dos encantados, tornando um lugar fundamental de encantamento, pois tudo o que saia deles tornava-se encantado. Afirmavam-me os velhos que além de Juacema permanecer encantada, ninguém jamais conseguiria desencantá-la, pois faltaria poder, dom e coragem 17 Rio que corre em sentido contrário, movimentando-se em direção à nascente e não à foz, conforme me explicou o senhor Adalício (Barra Velha). Kohler refere-se a este rio como “rivière folle”(2004:11). 18 Pantomias são coisas (manifestações) de encantados. Logo fui informado que “ninguém” vive na Terra de Juacema, pois conforme observou Soin (Aldeia Imbiruçu/MG), “lá não mora um pé de gente, lá é só cajueiro bravo”. Na percepção de muitos Pataxó Juacema guarda um segredo ou “um verdadeiro mistério” como aponta Kohler (2004:11). Trata-se de uma complexa relação com os encantados. 11 por parte dos humanos para tal fim. Ao indagar um velho sobre uma vã tentativa de desencantá-la, a resposta que obtive foi que o máximo que poderia acontecer seria o improvável autor da tentativa tornar-se encantado, pois o poder dos encantados é quase que incomparável face ao franzino poder dos humanos. Além de seu povoamento ter se tornado impraticável, o lugar ficou estranho. Diversos relatos revelam esse estranhamento. Geralmente, quando ocorriam festas no Arraial D’ajuda, a passagem por Juacema era incontornável, entretanto, após seu encantamento, tornou-se necessário evitar o seu trajeto durante a noite, pois muitos que passavam por lá viam e ouviam um movimento de gente, máquinas trabalhando, além de muita iluminação como se fosse uma cidade. Segundo Adalício, Juacema “cansou de fazer de boba muita gente”, até mesmo os Pataxó, no entanto, hoje isso só acontece com quem não a conhece. Ainda de acordo com Adalicio, certa vez, um grupo de pessoas que passava por lá, já bem tarde da noite, viu casas, ruas iluminadas e acabou parando para pedir abrigo. Sendo assim, estas pessoas pousaram, comeram e dormiram como se estivessem numa casa. Ao amanhecer do dia seguinte, estavam todas debaixo de um pé de cajueiro bravo. Essas e outras histórias do mesmo gênero abundam pelas aldeias Pataxó em que estive. Narraram-me os índios que após o retorno da nação subterrânea para dentro dos buracos de Juacema uma estranha ameaça desejou emergir dos buracos. Os velhos que viviam próximo de Juacema se viram defrontados com enormes desafios, pois eles não sabiam o que era esta estranha ameaça. Embora não tivesse faltado imaginação para conjeturar ou compreender o que desejava sair do buraco, o enigma permanece até os dias atuais. No entanto, todos estão certos quanto ao potencial destrutivo que portava essa tal “coisa agreste19”, absolutamente ofensiva à humanidade, mas graças aos Pataxó nada se consumou. Quando os mais velhos observaram as unhas grandes, os dentes compridos demais, eles não tiveram mais dúvidas de que, caso eles permitissem a saída, os Pataxó seriam massacrados e exterminados com a humanidade inteira, pois já não era mais “um tipo para ser humano”. Os velhos “achava(m) que não era mais gente, não era pessoa que podia domar como 19 Alguns índios apontavam que essa coisa agreste era acompanhada por guaiamus gigantes. 12 gente, já era bicho”. Foi por isso que os mais velhos não deixaram a “coisa agreste” sair, jogando melado de cana sobre eles, impedindo-os de sair dos buracos de Juacema. Muitas indagações vêm sendo realizadas, buscam sondar a natureza dessa coisa agreste que ainda amedronta aqueles que pensam sobre o tema. Há uma interpretação, associada a muito receio, de que essa coisa agreste poderia ser os próprios “Pataxó Velho” que, acidentalmente, quando estavam brigando com os brancos por conta do filhote de bem-te-vi, teriam caído no buraco e virado algo estranho. Essa seria uma primeira e fraca versão. Alguns índios me diziam não acreditar na versão acima, afirmando antes que se tratava da nação dos índios Toleteros, isto é, índios bravos que vivem nus debaixo da terra, com uma “forma de índio” semelhante aos Tapuios Bravos, mas não sabiam explicar porque eles desejavam destruir a humanidade inteira. Uma terceira versão aponta que a coisa agreste era parente de uma nação de índios que come carne humana, “são tudo anãozinho, tudo velho também” e veem os Pataxó como caça e não como gente. Foi justa essa nação guerreira que ao atravessar o buraco de Juacema arrasou a cidade, tendo faltado pouca coisa para devorar os Pataxó. Outros afirmavam ser os inimigos dos Baquirá, e por consequência, inimigos dos Pataxó, pois é sabido que os Baquirá, quando chegar o tempo de uma grande guerra, eles vencerão a favor dos Pataxó. Isso acontecerá porque, atualmente, poucos são os Pataxó, exceto “uma aldeiazinha aqui outra acolá”, que estão vencendo a guerra, mas a maioria das aldeias está virando “vorosseiro20”, isto é, uma “confusãoseira danada provocada pelos brancos”, inserindo bebida, carro e droga nas aldeias. Então, os Baquirá que não gosta desse “vorosseiro” tem plantado aldeias, aqui e acolá, como algumas que estão em Minas Gerais. Nesse tempo de guerra, somente as aldeias que estiverem aliadas com os Baquirá vão vencer, as outras sucumbirão. Há um pressuposto aqui de que as aldeias em Minas Gerais estão relacionadas com essa gente subterrânea, pois de certa forma estão “levantando aldeias” em busca de A glosa que eu faço de “vorrosseiro” é um estado de coisas que provoca confusão, tumulto e desordem, pois neste estado as pessoas ficam perdidas dentro do próprio espaço, dentro da própria terra. 20 13 diversas conexões com a socialidade dos antigos, com as “poderosidades” e “força de vida” da Jundiba, bem como negociando com outros seres que, não impedidos, emergiram dos buracos de Juacema à revelia dos índios. De certa forma, esta narrativa explica a migração das aldeias da Bahia para Minas Gerais. Os buracos da Terra de Juacema como um “fundo de socialidade virtual” Considero pertinente pensar os buracos de Juacema, os sumidouros, os pacuios como um “fundo de socialidade virtual” (Viveiros de Castro, 2006:40), donde emergem, conforme já mencionado, infindáveis “coisas encantosas dos índios”, constituindo-se em um universo de afinidade virtual. Delineio em traços gerais as “coisas encantosas” que é possível entrever. Primeiramente os encantados propriamente ditos como o Pai da Mata, Hãmay (ou Caipora), Lombeta, Caboclo Gibura dentre outros. Em segundo lugar, os encantos ou caboclos (espíritos) dos “Pataxó Antigo” ou os “Troncos Velhos” que sempre que necessário “chegam” ou “encostam” para ajudar na luta do povo. Em seguida têm-se os encantos que são efeitos maléficos (ou benéficos) oriundos do poder (da força) dos encantados, dos caboclos ou mesmo de gente humana que faz “porqueira”, isto é, feitiço. E por fim, os inúmeros bichos, como o Caveira, o Fincudo, o Caifai, seres não humanos perigosos, maldosos, certamente, os mais temidos pelos Pataxó. Alguns destes são efeitos de transformações oriundos de antigos parentes que viraram inimigos ou que ao não mais merecerem consideração tornaram-se não humanos. Quanto aos encantados propriamente ditos, na medida em que emergem desse fundo virtual alcançam especiação, compondo mais “ostensivamente” a socialidade Pataxó, estabelecendo relações “sociais” e portando diversas faculdades, pois possuem as mesmas capacidades cognitivas, volitivas e afetivas, constituindo distintos modos de existência e manifestações. São marcadamente agentivos, são autores, muitos vêm à tona de forma abrupta no contexto das relações da vida cotidiana. No entanto, esses seres que borboleteiam aqui e ali, embora gostem de comer, beber, fumar, feito os humanos, são ambíguos, ariscos e exigentes demais, mais ainda assim, eles colaboram na produção da socialidade, pois também dispensam cuidados, proteção, ainda que sob a condição de ser dono disto ou daquilo. 14 Quanto aos bichos, estes não colaboram para a produção da socialidade, antes efetuam transformações indesejáveis. É contra essa condição virtual que os Pataxó buscam trabalhar para construir seus parentes, a fim de que não deslizem para esta condição, pois em função da bramura21 “por pouca coisa a gente vira um bicho desses”. Os encantados e os bichos exigem uma “diplomacia cósmica” dos Pataxó, sob pena de se ver refém de um conjunto de adversidades tanto individuais quanto coletivas. É possível dizer, a partir da conceitualização Pataxó, que eles detêm poder, pois através de suas capacidades eles ocupam e tomam posse de determinados lugares, constituindo verdadeiros domínios não-humanos. Assim, os buracos de Juacema, dentre outros, tornaram-se, na reflexão Pataxó, a ponte de passagem não somente dos encantados mas de uma nebulosa de seres não humanos que passou a emergir dos buracos à revelia dos índios (na verdade, nem todos), povoando intensamente os espaços, uns contra, outros a favor da luta do povo Pataxó. Importante reter que aqueles citados nominalmente são os que “conhecemos” através dos livros didáticos. Há, na verdade, um coletivo de seres que foi “capturado” pelos livros que dormitam pela escola, que, infelizmente ou não, vêm alterando a maneira pela qual esses seres circulavam (e ainda circulam) na coletividade Pataxó, distante dos livros didáticos. Sugiro que nesses livros, possivelmente, esses seres ganhem contornos mais fixos e rígidos do que como eles realmente se apresentam, pois a ambiguidade é uma marca forte desses seres. É pertinente indagar, no entanto, pelos seres que já foram atualizados desse fundo virtual e ainda não foram dados a conhecer, pois nem todos foram capturados (não amansados ou não dispostos a entrar na luta a favor dos Pataxó). Geralmente estes recebem a denominação genérica de bicho bruto. Estes vêm se complexificando a cada dia, constituindo-se, as vezes, em sérias ameaças, oferecendo inúmeros desafios para a agencialidade humana Pataxó. Para além destes, existem ainda aqueles que dormitam nos fundos dos buracos, pois “nem todas as virtualidades foram atualizadas e que o turbulento 21 Toda ação que fere, de rijo, a consideração entre os Pataxó, como exemplo, bater nos próprios pais ou abandonar crianças recém-nascidas na mata. 15 fluxo mítico continua a rugir surdamente por debaixo das descontinuidades aparentes entre os tipos e espécies” (Viveiros de Castro, 2006b, p. 324). Acompanhando a própria perquirição entre os Pataxó, estes permitem apenas algumas aproximações, sendo possível abordá-los de forma muito intuitiva. Quando eu desejava esmiuçá-los com minhas insistentes perguntas, os Pataxó me lançavam uma fria esquiva, tornando-os ainda mais inconcebíveis. Pouco pude apreender senão que sua conceitualização desliza para os profundos buracos da Terra de Juacema, passando pelas nações subterrâneas dos Tapuios Bravos, dos Baquira, dos Toletero, até chegar nos “purinhos”22 pelo avesso, isto é, em uma afinidade potencial, que são concebidos como as “coisas agrestes” que vivem acompanhadas de guaiamus gigantes. Dilemas da socialidade entre os Pataxó Os buracos de Juacema, de certa maneira, orientam-nos a pensar que todos estes seres (encantados e bichos brutos) fazem parte da existência Pataxó, constituindo uma socialidade23 que não é somente humana, mas composta por uma nebulosa de seres, com intencionalidades, afetos e desejos. O dilema está em lidar com todos estes sem deixar de ser Pataxó, isto é, conservando-se em uma humanidade. Não querendo ser injusto, sobretudo com os encantados, pois eles também produzem considerações (generosidade) em função dos avisos, da proteção, a favor da luta, é preciso, no entanto, considerar que existem aqueles que produzem sérios dilemas. Estes são inúmeros mas a força de ser pataxó superam-nos. Considero aqui três dilemas24 que apareceram na minha etnografia, um relacionado à bebida da mandioca (cauim), outro ao corpo e o último aos lugares/paisagens. O primeiro dilema refere-se à preparação da bebida da mandioca (cauim). Os Pataxó adoram realizar suas festas com esta bebida. Não se “Purinho” é uma forma jocosa de dizer que um parente é “pataxó verdadeiro”, “sem mistura”, e “sem nenhuma ondinha no cabelo”. 23 Em outros trabalhos sobre os Pataxó é possível verificar como estes seres são presentes e abundantes, conforme aponta Kohler (2004) e Bierbaum (2008). 24 Há outros não menos interessantes como é o caso do dilema de Amesca que ante a proibição de gestar seus filhos (visto que seriam gêmeos), tornou-se uma mãe-árvore para parilos ainda que em forma de frutos. A má escolha de ter impedido Amesca de gerar seus filhos, certamente acarretou algo para os Pataxó, pois não é trivial, assim penso, que ainda hoje são as próprias lágrimas de Amesca (a resina resultante de cortes sucessivos em seu tronco) que são utilizadas para os rituais do Awê entre os Pataxó. 22 16 observa com frequência a sua preparação na vida cotidiana, mas somente em ocasiões especiais. Apenas um grupo muito reduzido possui a ciência de prepará-la, pois sua realização exige um conjunto de práticas, tanto para alcançar um ponto ideal de fermentação, como para afastar um encantado, que atualmente estabelece relações de inimizades com os Pataxó. O Lombeta é um encantado viciado em cauim desde tempos imemoriais. Não se sabe exatamente se ele era o dono do cauim ou se ele apenas possuía as substâncias que, através de sua comprida língua, ajudavam a fermentá-lo (azedar, espumar, escumar o cauim). Certo é que ele gosta muito de beber o cauim e já o bebia desde o tempo dos antigos, dos velhos Pataxó. O dilema é que os Pataxó depois de certo tempo, “percebendo que bebida demais não presta” resolveram não beber mais com o Lombeta. Este em represália passou a “fazer malvadeza com a bebida da mandioca”, bebendo o cauim às escuras e depois o vomitando para dentro da panela. Segundo Dona Nete (aldeia Retirinho /MG) atualmente basta a presença de Lombeta próximo do local em que esteja preparando a bebida para que ela fique ruim, pois “o tipo de espiritual dele” não deixa o cauim chegar no ponto ideal. Depois destas relações de inimizade com Lombeta é raro preparar um cauim que fique gostoso, antes, fica com baba (“goguento”) e sem espuma. Daí que a sua preparação tornou-se uma ação para especialista, estando a cargo de um grupo muito reduzido de pessoas nas aldeias. Na maioria são as mulheres que o fazem. Conversando com Dona Nete sobre essa relação de inimizade, ela explicou-me que Lombeta faz essa malvadeza por ter sido desprezado, visto como alguém não merecedor de consideração. Caso mudasse a relação ele provavelmente não incomodaria mais, muito embora ele já tenha se transformado em outro tipo de espiritualidade. O segundo dilema está relacionado ao corpo. Os Pataxó atribuem aos encantados (incluo aqui os bichos brutos) as ações de encostar, cuidar, curar, desejar, mas também enfeitiçar, surrar, cegar as vistas, tontear, invadir os corpos dos índios. Explicam também que dada a “suscetibilidade” do corpo (das formas corporais) é preciso muito cuidado com ele, pois “por pouca coisa a gente vira um bicho desses”. Nas aldeias, sempre que necessário, é comum os índios “tratar o corpo” com amesca e o capim de aruanda, através de banhos defumados. 17 Em função destas “suscetibilidades” os Pataxó cuidam dos seus parentes, mas não descartam as possibilidades de transformação, como revela o mito dos dois cunhados25, pois sabem que podem deslizar, por quase nada, para uma condição indesejável. Neste sentido, os Pataxó me apresentaram um mundo sutil, de fácil multiplicação e variação. Não era incomum ouvir expressões do tipo “fulano é quase um sapo”, “fulano é quase uma cobra”, “nós vamos tudo virar jabuti, ninguém trouxe água”. Os bichos (e/ou certos encantos) produzem afastamentos, desvios, desregramentos, bastante temíveis entre os Pataxó. Daí a importância das formas fixas, duras e estáveis que devem balizar a construção da corporalidade. É pertinente dizer que os Pataxó buscam construir os seus corpos a semelhança da “lenha boa”, isto é, a lenha dos angicos resistentes, diferentemente de pau podre, fraco, “que não dura nada, só faz fumaça”. Diziam-me as mulheres, que marido bom, marido que cuida da família, é aquele “índio que quando casa vira um pau da Jundiba”. É preciso dizer que sem “consideração de cozinha”, isto é, sem os ininterruptos cuidados cotidianos dos pais e sem farinha de puba os “bichos tomam conta”. No caso das crianças recém-nascidas, é preciso muito cuidado com o cordão umbilical. Dizem os Pataxó que é através dele que os bichos costumam invadir os corpos das crianças, provocando a morte destas, daí que deve ser bem enterrado os umbigos quando caem. Também merecem cuidados especiais, às mulheres, no resguardo, pois nessa fase elas ficam com um corpo aberto, apresentando maior suscetibilidade às influências dos bichos. Em suma, é preciso tratar o corpo, cuidar dos parentes, em função de infindáveis seres que incidem sobre os corpos. Caso contrário, corre-se o risco de “virar” e não mais alcançar a “forma do tipo gente”. O terceiro dilema esta relacionado aos lugares/paisagens. Em função dos encantados e dos bichos observa-se, em certos casos, uma transferência do domínio e da posse de determinados lugares/paisagens/matas para outro plano, isto é, um plano não humano, um plano encantado propriamente dito, formando uma espécie de “enclave”, tornando muitas vezes inabitável ou indesejável aos humanos. Juacema pode servir como um bom exemplo, pois 25 Trata-se de um longo mito que versa sobre dois cunhados que saíram para caçar e que durante a incursão, dada a ganância e a ambição, um vira bicho Caveira. 18 na visão dos índios lá é um lugar, uma morada dos encantados, à favor dos Pataxó. Merece mencionar aqui a existência de Hãmay (Caipora), um encantado que vive na mata, pois ainda que não seja concebida como a dona da mata, no entanto ela possui seus grandes chiqueiros (enfermarias) que são utilizados para cuidar e guardar os animais, mas também para subjugar aqueles que maltratam suas caças. Se ela não detém o poder sobre a mata, ela exerce encanto sobre a vida e a circulação dos animais de caça, pois de acordo com os Pataxó, caso ela os mantenha presos não adianta sair de casa para “botar mundéu” pois seria perda de tempo. De certa forma Hãmay exerce um domínio sobre a mata. Quando esses enclaves se constituem a favor da luta Pataxó não há que se falar em objeções, no entanto, o dilema surge quando estes enclaves encantados são mantidos em oposição aos índios sem possibilidades de negociação, neste caso a única solução é realizar deslocamentos. A partir desta perspectiva Pataxó, segundo a qual a agência de seres não humanos ocupa e domina espaços humanos, venho desenvolvendo um argumento, com base na reflexão dos próprios índios em MG, de que a antiga Fazenda Guarani (Carmésia/MG), que sediou um antigo reformatório indígena, para onde migraram alguns índios Pataxó, vem se tornando a cada dia um espaço sob um domínio não humano, sob a operação de Magalhães (antigo dono da Fazenda que se encantou e tornou-se o dono de estranhos bichos que ele alimentava na Mata da Cotia), à semelhança do ocorrido com a Terra de Juacema, porém de forma simetricamente inversa. Em outros termos, se Juacema tornou-se um enclave encantado sob a agência da nação subterrânea, a favor dos índios, visando afastar os moradores brancos para não realizar a cidade de Salvador no local, inversamente, a velha sede da Fazenda Guarani, vem se tornando uma Juacema pelo avesso, um enclave encantado sob a maestria de Magalhães e seus bichos, contra os índios, visando afastá-los da sede de sua fazenda. Comparativamente são dois espaços, ambos sob o domínio não humano, no entanto, simetricamente opostos do ponto de vista da socialidade. Ante o exposto, é desnecessário dizer que, considerando a intencionalidade, os afetos e os desejos dos seres não humanos que operam tais enclaves, os coletivos pataxó são obrigados a “puxar a rama”. Foi pensando neste dilema 19 que compreendi uma fala de Kanatyo (Aldeia Muã Mimatxi/MG) de “que a gente está sem mundo para viver, os mundos estão acabando”, pois, conforme se pode depreender, não apenas os brancos, “gente” da parte do gavião são “gulosos” com terra, os encantados também são. Referências Bibliográficas BANDEIRA, Maria de Lourdes. Os kariris de Mirandela: Um grupo Indígena Integrado. Estudos Baianos. Universidade Federal da Bahia, n. 6, 1972. BIERBAUM, Bernhard F. “O antigamente e o Hoje em Dia. (Nota inédita de 1998/89)”. In. AGOSTINHO DA SILVA, Pedro Manuel, et alli. Tradições étnicas entre os Pataxó no Monte Pascoal: subsídios para uma educação diferenciada e práticas sustentáveis. Vitória da Conquista: Núcleo de Estudos em Comunicação, Culturas e Sociedades. NECCSos - Edições UESB. 2008, pp. 367-374. CARVALHO, Maria Rosário Gonçalves. Os Pataxó de Barra Velha: seu subsistema econômico. Dissertação de mestrado. UFBA. 1977. DESCOLA, Philippe. 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