Falo ou não falo - Prof. Max Grinberg

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Falo ou não falo - Prof. Max Grinberg
FALO OU NÃO FALO ?
Max Grinberg
“...que o desejo de relações pessoais mais íntimas entre
médico e doente está em via de crescer no nosso povo,
mostra o alcance cada vez maior do apelo dos últimos
tempos de se restabelecer o hábito quase extinto do
médico e amigo de família...” Erwin Risak, O Olho
Clínico, Áustria, 1936.
PRIMEIRAS PALAVRAS
A aplicação dos princípios da bioética
facilita o médico tornar-se comunicativo com o
paciente.
Ela
promove
a
confiança
estimulando
apresentação de objetivos
claros, disposição para escutar, respeito a
outras opiniões e tomada de decisões
assumindo a responsabilidade.
A bioética não é exatamente um
dicionário de esperanto, mas contribui para
aproximar médico e paciente pela linguagem,
abrevia o caminho entre o conhecimento e a
comunicação, ensina que só se fala sobre o
que se sabe e provoca a correspondência
entre atos e palavras.
A bioética não é a última palavra, mas
presta-se a perscrutar o que possa estar
depreciando a comunicação médico-paciente;
em rápidas palavras, ressalta fatores
negativos como a exigüidade de tempo
disponibilizado para a consulta ambulatorial
ou à beira do leito, o caráter fortuito da relação
médico-paciente sem a desejada seqüência
que traz laços de confiança, a perda da
postura de “ser médico” que por mais que se
desvalorize, o paciente
espera pela
autoridade, a educação humanística em
segundo plano (autômato profissional).
Na beira do leito, ditados como para
um bom entendedor meia palavra basta ou
falar vale prata, calar vale ouro têm aplicações
distintas ao uso comum, o que por si dá uma
medida da complexidade da comunicação
médico-paciente.
A beira do leito necessita preservar-se
de armadilhas, como a curiosa confusão que a
língua portuguesa provoca em quem deseja
aprendê-la, representada por pois sim/ pois
não. As entonações costumam acentuar que
pois sim é não e pois não é sim.
Se médico fala com o cérebro pelo
conhecimento e
com o coração pela
solidariedade, o paciente ouve com a pele, que
sente o pedido de socorro que vem de dentro
e percebe os recursos de ajuda que vêm de
fora.
Palavra não é sopa, mas a muito fria
ou a exagerada quente desagradam, o que na
linguagem bioética está ligado ao princípio da
não maleficência. A temperatura ideal é a que
possibilita ser degustada, esfriar a cabeça e
aquecer o coração. Por isso, a palavra
qualifica a comunicação não quando ela é
transmitida, mas como ela é recebida.
DUAS PALAVRAS: NÃO MALEFICÊNCIA
O útil e eficaz pode ser inoportuno na
óptica do momento. A técnica para corrigir
uma hérnia inguinal promove beneficência,
mas como o paciente está com pneumonia, a
não maleficência fala mais alto. Penicilina
benzatina promove beneficência ao prevenir
atividade reumática até quando uma reação de
hipersensibilidade
hierarquiza
a
não
maleficência.
AAS
é
droga
reconhecidamente beneficente cardiovascular,
mas um episódio recente de sangramento
gastroduodenal exige uma contra-indicação
não maleficente- a realidade hemorrágica
supera a potencialidade anti-isquêmica.
A aplicação do princípio bioético da
Não
maleficência
representou
antiimprudência, nestes exemplos, na medida em
que
houve zelo de não causar danos
desnecessários.
A Não maleficência catalisa o quanto
do ideal deve ser aplicado frente à realidade
da situação clínica. Ela é um filtro da beira do
leito, por onde nos cabe passar as conclusões
de beneficência incorporadas como classes I e
IIA em diretrizes.
Vinte e cinco séculos depois, o
“primum non nocere” hipocrático continua
fundamentando atitudes de humanização no
exercício da Medicina.
Num
cenário
multifatorial, o personagem médico e o
personagem paciente vivenciam adversidades
1
que o conhecimento científico as pretende
cada vez menos iatrogênicas.
Um
dos
instrumentos
para
harmonizar os interesses da beira do leito é a
comunicação verbal que se preocupa com a
Não maleficência- medir e pesar as palavras
ditas e ouvidas.
NÃO MALEFICÊNCIA,
MÉDICO
PALAVRA
DE
Não maleficência na comunicação
médico-paciente é a ponte entre os
procedimentos e as explicações evitando
acrescentar ainda mais danos ao bem –estar
físico, psíquico ou social, assim nos valendo
da conceituação de saúde pela OMS. A
extensão da ponte é variável de acordo com a
especialidade médica e a valorização do órgão
por parte do paciente.
O médico gera um estímulo embutido
na comunicação sobre conduta e prognóstico
e o paciente reage de acordo com o seu modo
de ver.
A Não maleficência na comunicação
lida com as ambigüidades geradas pelos
avanços e limitações da Medicina. Inclui a
palavra que melhor se adapta à idéia que o
médico vai se comprometer com o método e
ao mesmo tempo pode estar equivocado
quanto ao resultado.
O aspecto referente ao bem-estar
físico tem a ver com a decodificação da
palavra do médico em expectativa boa ou má.
O poder da sugestão que alivia ou acentua
certos sofrimentos como a dor não pode ser
negado por mais que seja difícil obter
comprovações rigorosamente
científicas.
Neste particular, palavra não maleficente é
aquela que não contribui para provocar ou
acentuar sintomas. Contudo, não pode ser
ignorada a situação onde a palavra do médico
desgosta justamente por significar “ameaça de
cura” a uma moléstia crônica que representa
papel essencial na vida do paciente que gira
ao redor do órgão doente.
O aspecto do bem-estar psíquico é
mais complexo, pois há muitas superposições
concorrendo para que o paciente se sinta
angustiado ou infeliz. Angústia e infelicidade
fazem parte da condição de doente e assim, a
palavra realista do médico não pode ser
responsabilizada isoladamente pelos pesares.
Falar pode representar tão somente o reforço
do sentimento negativo determinado pela
circunstância clínica e assim não terá sido
uma palavra maleficente; não falar pode privar
o paciente de certas reflexões aliviadoras, cuja
consecução seria não maleficente. A
autenticidade da verdade, a caridade da
suavização ou a compaixão do silêncio são
mescladas na intenção sincera do médico de
não ser indiferente e desejar promover a Não
maleficência;
mas
elas
resultam
individualizadas nas eventuais conseqüências
involuntariamente maleficentes para o
paciente.
A interpretação do comportamento do
paciente com base em raciocínio lógico nem
sempre cabe por ocasião de manifestações
clínicas angustiantes. Matéria-prima é o
quanto existe de expressão ansiosa ou
agressiva em sua postura, fruto das
experiências de vida acumuladas muito antes
da palavra atual do médico. Esta passa a ser a
“bola da vez”
por uma questão de
deslocamento de sentimentos. Padrões de
comportamento
frente às adversidades
explicam, por exemplo, a peregrinação a
muitos consultórios ouvindo sempre as
mesmas palavras, tão beneficentes na boca
dos vários médicos e tão maleficentes nos
ouvidos daquele paciente; quanta raiva pela
doença é deslocada para a palavra do médico,
quanto sentir-se culpado pela negligência com
a própria saúde provoca uma centelha já ao
início do diálogo médico-paciente, quanto
protesto contra o sistema de saúde que
ambienta a palavra do médico é repassado
para esta comunicação. Ressalte-se a surdez
do “nocaute” que pode ocorrer pelo impacto
da notícia desagradável; a contagem do tempo
costuma se encarregar de fazer as
comunicações internas necessárias para a
aceitação; neste aspecto, a impressão inicial
de maleficência é revertida, muitas vezes, por
uma segunda opinião.
O aspecto do bem-estar social inclui o
efeito da palavra sobre a rotina pessoal e
profissional do paciente. Não maleficência
corresponde a comunicar o estritamente
obrigatório quanto a restrições à capacidade
2
de realização de objetivos de vida. Quanto
mais avança o conhecimento e a capacitação,
menos a Medicina recomenda proibições no
campo social.
O conjunto famoso de frases do
aforismo de Peter existiu como atitude não
maleficente porque não havia recursos para
mudar o mau prognóstico da gestação em
portadora de cardiopatia. A farmacologia e a
cirurgia orientadas pelo bom diagnóstico
liberam cada vez mais a comunicação da
palavra não maleficente que existe no bom
prognóstico.
ACENTUANDO AS PALAVRAS
Qualidade na comunicação é um
continuum ao longo da relação médicopaciente/família. A sintonia permanente é lápis
e borracha sobre um papel
onde os
acontecimentos são desenhados a mão livre; o
que foi dito poderá ser redito e o que faltou
poderá ser acrescentado em nome da Não
maleficência. Assim como o paciente que
exerce o direito de renovar ou revogar o
consentimento pós-informação, o médico
pode reconsiderar a informação original à
medida que se apercebe dos rumos, como faz
quando reajusta doses ou muda a prescrição.
No caso do diagnóstico, à medida que
o leque das hipóteses vai se fechando, cada
eliminação terá justificado palavras que até
possam ter trazido apreensões exageradas;
contudo, elas não representavam maleficência,
vinculadas que estavam à boa-fé de evitar
riscos desnecessários baseados apenas na
presunção.
Quando se trata de conhecimento
científico, sentimo-nos em terra firme para
transitar com argumentos técnicos; uma
diretriz pode nos facilitar a decisão sobre
prescrevo ou não prescrevo, indico ou não
indico. Ela deverá ser tanto mais eficaz quanto
mais respeitada a assertiva do famoso Harvey
Cushing (1869-1939). Este epônimo da
Endocrinologia escreveu que 60% da prática
médica
é
bom
senso-dependente;
acrescentaríamos, em grande parte bom
senso “não maleficente”.
Mas quando se trata de comunicação,
a seleção das informações por iniciativa do
médico ou em resposta ao paciente/família nos
coloca em muitos terrenos movediços.
Espelhar-se no que gostaríamos de ouvir se
fossemos o paciente não é regra infalível. O
paciente aceita, modifica ou rejeita a
informação de acordo com vivências
esquematizadas, propósitos, subitaneidade
ou cronicidade
da situação clínica e
confiança no médico. O médico, por outro
lado, não consegue conversar isento de suas
próprias emoções, o que podem fazer
descarregar uma carga de ansiedade sobre o
paciente ainda mais despreparado para lidar
com ela.
Em outras palavras, o médico produz
a informação com um design e o paciente
consome a mensagem por meio de um
processo de decomposição e reorganização.
O diálogo é instrumento essencial para dar
bons alicerces à reconstrução e a bioética
proporciona as plataformas.
A comunicação não maleficente
pressupõe resguardar a beira do leito de se
transformar em uma torre de Babel. É
importante que haja a máxima uniformidade
nas informações e que cada membro da
equipe de saúde não exagere no seu dialeto
profissional. Da mesma maneira, a figura de
um porta-voz da família é não maleficente em
situações de pluralidade de interlocutores.
DIÁLOGO É FEEDBACK
O intuitivo faz parte da seleção de
palavras não maleficentes, tanto quanto
possível simples, solidárias e compreensivas.
Todavia, o que parece cristalino para alguém
tecnicamente familiarizado pode ser uma
grande opacidade para quem é leigo e o
alarme da confusão soa.
O médico deve fazer saber o que
aconteceu e o que de fato acontecerá, dentro
do rigor da ciência; sobre o que pode ou não
acontecer, enquadra-se nas sutilezas da arte
da comunicação, especialmente se as notícias
tendem a ser más.
3
Por mais estruturada que se almeje a
comunicação, sempre estaremos diante do
imponderável. Falar sobre morte pode ser
dramático, quem lida com os meandros da
morte súbita pondera caso a caso a sua
verbalização ao paciente sob risco. Frente ao
portador assintomático de estenose aórtica,
nos valemos de estatísticas, apelamos para o
paternalismo e não a mencionamos em nome
da Não maleficência. Contudo, como não
praticamos monólogo, muito conscientes de
que não devemos tocar no assunto, somos
surpreendidos, ocasionalmente, com uma
pergunta explícita do paciente ou do familiar
sobre morte súbita. Assim aprendemos que
Não maleficência em comunicação dificilmente
pode ser generalizada. Não há exatamente o
maniqueísmo do certo ou errado, há o que dá
certo e o que dá errado.
É simplista conceituar que o paciente
tem direito a “todas as informações” ou que o
médico não deve ser nem reticente nem
verborrágico. Há modos de se expressar, há
momentos para se dizer, há a hora de ouvir e a
ocasião de calar. A relação médicopaciente/família é antes de tudo uma relação
humana.
Há mais do que a anamnese ou 33
para ser dito pelo paciente, cada um a seu
estilo. Há os que pouco dialogam, até por
inibição frente ao médico, e podemos entender
que ele esteja satisfeito com as informaçõesinclui o que não se interessa por outros
ângulos de visão porque tem confiança cega.
Há aqueles que consultam a internet, buscam
segunda opinião e correm atrás da explicação
a cada acontecimento -são aqueles que dão o
que falar.
Subdoses
ou
overdoses
de
informação são prejudiciais, o quantum satis
deve prevalecer intuído a cada caso,
idealmente pelo feedback do diálogo.
Combinações do quis dizer e o que de fato
disse e do que o que queria ouvir e o que de
fato ouviu modulam o quantum satis.
Quando a informação do médico
chega inacabada,
o paciente tende a
completar por si mesmo, só pode usar o que
conhece e há uma tendência natural ao
pensamento negativo; a soma do que foi
informado pelo médico com o que o paciente
acrescentou por si compõe uma realidade
única; a distorção é a conseqüência.
Por vezes é o médico que não se ouve
falar e, de repente, surpreende-se “dando uma
aula” sem se policiar quanto à Não
maleficência.
Outras vezes é o paciente que não se
ouve ouvir, pois está com o pensamento
distante do que
estamos lhe dizendo,
escutando o seu “ouvido interior” e
pretendendo saber até o que evitávamos sob o
pretexto da Não maleficência. É como se
houvesse um “monólogo a dois”.
A decodificação é que o foco e o
entorno do diálogo podem não ser idênticos
para cada um; a compreensão do que se
passa, o entusiasmo com a técnica que
permite maravilhas, os influenciadores de
prognóstico (foco do médico) não é suficiente
para a necessidade do paciente; o que ele
deseja (foco do paciente) é saber como irá
funcionar, o que vai acontecer com ele.
Harmonizar as freqüências de comunicação é
promover a não maleficência.
Um aspecto da não maleficência da
comunicação médico-paciente é o quanto das
percepções do que existe no ambiente do
diálogo são subtraídas. Conversas paralelas
de acompanhantes, imagens e sons de
televisão e telefonemas são exemplos de
estímulos que precisam ter a interação
bloqueada em prol da concentração nas
necessidades.
Para
cada
relação
médicopaciente/família há um comportamento verbal
incluindo um universo de informações
comunicadas e um universo de informações
omitidas- bilateralmente.
A família ajuda a construir a ponte da
não maleficência entre o modo de falar e o
modo ouvir. É um verdadeiro processo de
terceirização, onde há muitos exemplos: o
familiar que faz “tradução simultânea” de tudo
que se fala ao paciente e o médico fica sem
saber se passa a se dirigir para ele ou lhe pede
silêncio; o médico que prefere aprofundar as
explicações à família e deixar que ela edite a
fita para o paciente; é o familiar que reinvidica
em nome do paciente, até porque pela
pluralidade, habitualmente,
não faltam
membros para que cada um assuma a
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condução de determinado assunto.
Um
símbolo clássico é a comunicação tradicional
do resultado cirúrgico, tão logo acabe o ato
operatório. Há a equipe médica e a equipe
família, ajustando o que foi consumado ao
comunicado no pré-operatório.
Aspecto curioso da beira do leito
refere-se ao armazenamento da comunicação
na memória do paciente/família. O que é
inicialmente não maleficente sofre um efeito
bumerangue quando surge uma intercorrência
e as palavras retornam
altamente
maleficentes. É o caso de uma piadinha
quebra-gelo do tipo “ o seu caso opero com
uma mão só” que perde a graça porque
passou a ser interpretada ao pé da letra ou da
certeza categórica agora altamente incerta do
“em dois dias você estará em casa”. É como
houvesse uma série de câmeras que gravam
vários ângulos da conversa e quando
acontecem as frustrações, cenas de “tirateima” são imediatamente editadas.
NÃO FUI INFORMADO
Querer antecipar-se a todas as
evoluções possíveis pode incluir palavras que
serão entendidas como
imprudência na
comunicação por parte do paciente/família.
Este item tem interfaces bioéticas com o
consentimento pós-informação assistencial
por escrito, onde tudo é relacionado sem levar
em conta as individualidades.
No oitavo dos dez mandamentos para
o jovem clínico, Joseph S. Alpert ensina que o
processo de informação visando inserir o
paciente/família no contexto do exercício da
Medicina pode ser prejudicial quando
aterroriza; ele faz uma provocação: como
reagiríamos se o vendedor do automóvel que
pretendemos comprar
nos relatar que
ficaremos sujeitos a acidentes de trânsito
incluindo morte, paraplegia e tetraplegia? A
verdade nua e crua com o objetivo de evitar
futuro “não fui informado” pode soar
“terrorista” para a ocasião.
O ponto crítico é o quanto a
informação sobre riscos contribuiria para
provocar a desistência- da compra ou do
tratamento. Há que se admitir que ninguém é
tão ingênuo a ponto de achar que para se
usufruir de um determinado benefício
(conforto) não se corre nenhum risco de
malefício (acidente). O princípio da autonomia
lida com este aspecto.
A habilidade em se comunicar com
espírito positivo- boa mecânica facilita a
condução
habilitada e reduz riscos/
conhecimento e capacitação do médico
promovem o bom resultado-pode contribuir
para que o “fui informado” seja arquivado de
modo equilibrado nos assuntos gerais e não
se torne uma angústia na ordem do diaesperar um acidente a cada Km rodado ou
uma reação clínica a cada comprimido
ingerido.
Muitas vezes nos apercebemos que
certas explicações poderiam mais confundir
do que ajudar. Um paciente com ICC recebe
prescrição que inclui droga inibidora da
enzima de conversão da angiotensina; no
retorno declara melhoras, inclusive que
desapareceu aquela tosse que tanto o
incomodava. Falo ou não falo que há a
possibilidade de voltar a tosse, agora drogadependente?
Podemos classificar esta dúvida em
grau baixo de potencial de futuro
questionamento do tipo “não fui informado”.
O dia-a-dia, contudo, faz coleção de incertezas
mais preocupantes sobre o quantum satis; as
combinações são caleidoscópicas e por mais
que o bom senso as reúna em imagens
semelhantes, o álbum de figurinhas está longe
de ter um número pré-determinado.
Não existe sempre ou nunca em
Medicina é aforismo que nos lembra que
decisões sobre falo ou não falo sobre reações
adversas “de bula” e outras tantas isoladas só
poderão ser classificadas exatamente como
atitudes de Não maleficência da comunicação
depois da evolução acontecida. O grande
complicador é o fato negativo que só fica
sendo conhecido pelo paciente/família no
acontecimento e passa a ser interpretado
como negligência na comunicação (o terrível
“não fui informado”), quando pretendendo-se
Não maleficência,
informações foram
omitidas. Assim, a palavra não dita por boa–fé
5
pode ter um preço a ser pago quando vier a
ser
cobrada
em
situações
de
questionamentos,
habitualmente
potencializadas pela frustração de um risco
distante ter se tornado realidade. Aceitam-se
melhor
maus resultados atribuindo-os a
causas que vem de fora, incluindo reagir com
hostilidade contra o médico “bode
expiratório”.
Exceção é quando o paciente capaz
toma a iniciativa de solicitar não ser
informado, um direito constante do princípio
da autonomia. O médico pode concordar em
se calar quando entende que a solicitação não
prejudica a sua responsabilidade profissional,
mas deve ponderar sobre a conveniência do
mesmo comportamento na escrita. Assim
como existe a autonomia também para o
médico, é preciso imaginar-lhe a figura da não
maleficência.
LIMIAR DE COMUNICAÇÃO
Seria útil estruturar um limiar de
comunicação, além do qual falamos e aquém
do qual não falamos. A sua relação custobenefício em relação à não maleficência deve
considerar responsabilidades na conduta,
percepção do impacto e defesa de
questionamentos.
O limiar de comunicação precisa ser
baixo quando se trata de negociar
compromissos dentro do princípio da
autonomia e do dever de se obter
consentimento pós-informação. Entender,
aceitar e fazer conforme a orientação médica é
contribuir para que não ocorra danos por
desinformação. O quantum satis terá pontos
de referência menos subjetivos.
Pode caber o conceito da Não
maleficência relativa, pelo qual seria
absolutamente impossível eliminar um
admitido dano da comunicação em busca da
beneficência. No citado exemplo da estenose
aórtica, comunicar ao paciente sintomático
que ele está sujeito à morte súbita a qualquer
momento é mal menor diante da sua hesitação
em concordar com a correção cirúrgica, única
forma de beneficiar o prognóstico.
O limiar é mais flexível em relação à
percepção do impacto e à defesa de
questionamentos. Influências multifatoriais
dificultam ter certeza que conhecer as reações
do interlocutor numa situação de esperança de
sucesso permite intuir sobre o seu
comportamento caso ocorra frustração da
expectativa. A palavra que agrada pelo 99% de
chance de sucesso é a
mesma que
desagradará se ocorrer o 1% de insucesso.
Ademais, a surdez do nocaute do primeiro
impacto à notícia que desagrada tem grande
chance de reverter à medida que o tempo se
encarrega de fazer as comunicações internas,
muitas vezes facilitadas por uma segunda
opinião.
EFEITO PLACEBO/ NOCEBO
Na busca de algo mais concreto sobre
a Não Maleficência do falo ou não falo,
podemos nos valer de estudos sobre efeitos
adversos não específicos. Benedetti et al
observaram que o efeito placebo pode ser
aprendido consciente ou inconscientemente,
fenômeno que estaria ligado a associações
repetidas de causa e efeito; no primeiro caso,
envolve expectativas e no segundo caso o
imediatismo do efeito (pavloviano).
Isto
significa que reações a medicamentos podem
não ser causadas diretamente pela ação
farmacológica, mas por processo de
condicionamento em que expectativas são
criadas a partir de vivências e os mesmos
sintomas acabam acontecendo.
Barsky et al enfatizaram recentemente
que pacientes com este tipo de
comportamento precisam ser previamente
identificados para reduzir maus resultados.
Numa visão bioética, caracterizá-los seria uma
forma de ajustar ações de Não maleficência
para situações menos lógicas do riscobenefício.
Se um comprimido quimicamente
inerte gera efeitos, é de se conjecturar que
uma palavra também possa. Aspectos
culturais, experiência acumulada, gravidade da
situação clínica e outros mais são fatores de
influência.
A palavra que transmite respeito,
honestidade,
experiência,
interesse
e
6
confiança traz uma força psico-social que
contribui para
elevar a adesão às
recomendações e dar ânimo à integração com
tudo que possa representar redução do
desconforto. É o efeito placebo da palavra útil
e eficaz catalisando uma real prevenção ou
reparação terapêutica de danos (Beneficência).
E quando a palavra associa-se a
efeito adverso? Há 40 anos, Kennedy criou o
termo Nocebo (nocere= prejudicar) para se
referir aos efeitos indesejados do placebo. O
conceito evoluiu para além das reações
secundárias, na direção da expectativa; assim
efeito adverso do placebo é quando a
expectativa do paciente é de melhora e o
sintoma é um acidente de percurso; efeito
Nocebo é quando predomina a expectativa do
paciente por um resultado mal sucedido e o
sintoma passa a fazer parte do seu objetivo.
Analogamente, a palavra do médico
pode
contribuir para desfavorecer o
prognóstico, quando for recebida pelo
paciente conforme um efeito nocebo. Este
comportamento pode ser conseqüência de
expectativas, sugestão, condicionamentos,
ansiedade, depressão, somatização ou
situações próprias de momentos de um ser
humano reagindo biopsicossocialmente à
adversidade nosológica. Por isso, a
comunicação exige um equilíbrio entre a
desnecessidade da informação e a
potencialidade do efeito Nocebo.
É oportuno frisar que o ganho
secundário é um dos estímulos para ativação
do efeito Nocebo. Nesta modalidade, a
perspectiva de manter vantagens sociais,
familiares ou econômicas, ou mesmo
desembaraçar-se de responsabilidades, como
resultado de estar doente, pode associar-se a
posturas de vitimização e invalidez.
Características psicológicas ligadas ao efeito
Nocebo devem ser analisadas para
dar
sentido de justiça a eventuais situações de
conflito. Neste aspecto, não é incomum
deparamos com dificuldades para dar alta
hospitalar; pois há queixas dissociadas dos
exames físico e complementares; o paciente
não parece estar preocupado em não atingir a
melhora-alvo e ir para casa; uma atuação
multiprofissional costuma concluir que a
permanência representa uma verdadeira
salvação de circunstâncias que não deseja
enfrentar na sua rotina de vida.
Do ponto de vista bioético, o efeito
Nocebo prejudica a efetiva consecução do
princípio de não causar danos (Não
maleficência) pela palavra dita.
PONTO FINAL
Se pesquisar etiopatogenias pode ser
um desafio, a de uma insatisfação do paciente
é muitas vezes um enigma. Idiopatico é um
providencial rótulo para conflitos da beira do
leito atribuídos à comunicação.
Seis anos de graduação e outros
tantos de especialização não formam o médico
em comunicação profissional não maleficente.
O diploma está sempre um passo adiante
porque todos querem a palavra do médico,
mas nem todo paciente aceita estar do lado
dela. Conforme a comunicação, a solução
clínica torna-se um problema ético. A beira do
leito testemunha desde conversações em mar
de rosas a terremotos em escalas altas de
Richter...
Dizem que as palavras que não nos
infernam são as que saem do céu da boca. O
ato de bem dialogar acompanha-se da
retroalimentação sensorial. É da sabedoria
popular que a comunicação médico-paciente
requer órgãos dos sentidos aguçados, literal
ou metaforicamente. Olho clínico, visão de
profeta, gosto pela profissão, tato no cuidar,
cheiro de diagnóstico e ser todo ouvidos são
atributos indispensáveis. O sexto sentido não
pode ser desprezado. O “terceiro ouvido”
resgata palavras que embora mal ouvidas
foram armazenadas e cujo valor é percebido
algum tempo depois (quando “cai a ficha”). A
linguagem corporal, uma palavra-chave ou
uma afirmação em alto e bom som funcionam
como bússolas para nortear o bom termo da
conversação.
Nos casos em que justificamos o
quantum satis, a análise de insatisfações
comunicação-dependentes deve incluir a
influência dos fatores acima referidos a cada
momento representativo da relação médicopaciente/família; quando da negociação/
compromisso
pré-intervenção,
na
7
comunicação de uma intercorrência,
na
insatisfação de uma seqüela.
O emprego da palavra exige decisões
e cada um de nós tem o seu estilo de
comunicação. A palavra será tanto mais útil e
eficaz quanto mais o médico empregá-la na
relação médico-paciente preocupando-se com
a Não maleficência e quanto menos o paciente
manifestar o efeito Nocebo.
Referências
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