Dossiê Monlevade - Bazar Monlevade

Transcrição

Dossiê Monlevade - Bazar Monlevade
Dossiê Monlevade
O Processo do Bazar
Romance
Jairo Martins de Souza
2008
Dedicatória
Bê, você é a síntese de todos os heróis da
minha vida.
(Então, no reino do seu pai, os justos resplandescerão como o sol. Aquele que tem ouvidos, ouça - Mateus 13:43).
© Copyright by Jairo Martins de Souza, Vitória, 2008.
Projeto gráfico e editoração: Antônio Alves dos Santos
Capa: Antônio Alves dos Santos
Imagem da Capa: Pintura a óleo de Lívia L. F. de Souza
Digitação: Jairo Martins de Souza
Revisão Final: Olivia Alves Fagundes de Souza
Colaboração: Géa Raimundo de Souza / Rafael H. de M. Souza / Janaína Garcia /
Lúcia de Souza Barros / Ítalo Campos
Catalogação: Ana Maria de Matos Mariani - CRB: 12/ES 425
Impressão e fotolito: Grafer Editora Ltda
Souza, Jairo Martins de, 1948S729d
Dossiê Monlevade : o processo do bazar : romance / Jairo Martins de
Souza. – Vila Velha: Grafer, 2008.
270 p. : il., retr. ; 21 cm.
ISBN 978-85-86986-24-6
1. Romance brasileiro. I. Título. II. Título: O processo do bazar : romance.
CDD: B869.3
CDU: 821.134.3(81)-31
Esta obra foi impressa em papel reciclado. Portanto, mesmo sendo impresso em máquinas de
última geração, pode apresentar variações de textura e tonalidade em suas páginas.
Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta obra, por qualquer meio, sem a autorização
do autor, constitui violação da LDA 9.610/98.
Sumário
Introdução...............................................................................9
Capítulo 1 – Um descendente de Jean A. F. D. Monlevade quer
pesquisar sobre a vida do tio-bisavô nos trópicos.....................11
Capítulo 2 – Onde se diz de um tiro. Os negócios andam bem no
Bazar Monlevade......................................................................15
Capítulo 3 – O encontro com certo Gerente. O rapaz Monlevade
distrai-se e passa alguns dias a mais na Guanabara!.................21
Capítulo 4 – M tem interesses em Monlevade. Preciso de sócios
locais, diz!.................................................................................31
Capítulo 5 – M tem grande poder de persuasão. Monlevadê
finalmente chega a Monlevade.................................................37
Capítulo 6 – A mala perdida de Bernard. O reencontro com o
comerciante..............................................................................45
Capítulo 7 – Mulheres............................................................49
Capítulo 8 – Fica assim fundada a Verlon Fruit Shoe Ltda – a
primeira fábrica de calçados multi-frutados do mundo.............53
Capítulo 9 – Onde se diz da inauguração...............................57
Capítulo 10 – Há algo de estranho no reino da Dinamarca. M
engendra planos. Onde se diz do doc x....................................59
Capítulo 11 – Monlevade, cidade de sonhos.........................63
Capítulo 12 – Bern informa à irmã que pretende ficar um pouco
mais que o previsto no Brésil....................................................65
Capítulo 13 – M diz publicamente querer morar definitivamente
em Monlevade.........................................................................71
Capítulo 14 – Onde se diz muito em poucas linhas. Há segredos
entre escritor e leitor. Sombras da inauguração. Uma fantasia chamada Fruit. Fumaça de calote. M e seu castelo na Graal. ........75
Capítulo 15 – Barão de Cocais..............................................81
Capítulo 16 – A família de Marie é antiga na região. Bernard faz
palestra na Fruit Shoe..............................................................87
Capítulo 17 – Inquietações. O dragão bancário investe contra
M. Onde se diz que suas chamas atingem o comerciante..........93
Capítulo 18 – A carta da irmã................................................97
Capítulo 19 – Certa reunião em Luxemburgo. Os executivos de
La Nación................................................................................99
Capítulo 20 – Jaime Raimundo...........................................103
Capítulo 21 – O Brás...........................................................105
Capítulo 22 – Charlie Chan.................................................107
Capítulo 23 – Torquato, José Rego e O. Costa. Procura-se
advogado..........................................................................................115
Capítulo 24 – Bernard se encaixa na Tio Patinhas...............117
Capítulo 25 – No salão de embarque..................................119
Capítulo 26 – São Paulo......................................................123
Capítulo 27 – A verdade......................................................129
Capítulo 28 – Onde o escritor disseca o dossiê....................131
Capítulo 29 – A confissão. A garantia. O Fiador...................133
Capítulo 30 – Amor.............................................................141
Capítulo 31 – O pai de Marie convoca Bernard...................145
Capítulo 32 – Não se vive somente de problemas. O turfe monlevadense...............................................................................147
Capítulo 33 – Onde se diz de sinais da execução. Jaime Raimundo busca ajuda de Bern..................................................151
Capítulo 34 – Entenderás mais tarde!..................................155
Capítulo 35 – O oficial de justiça. Bern Monlevade assume defesa do Bazar..........................................................................159
Capítulo 36 – Bern dá algumas explicações à família...........165
Capítulo 37 – Por que La Paz?.............................................169
Capítulo 38 – Recesso.........................................................179
Capítulo 39 – O Presidente do de La Nación.......................181
Capítulo 40 – Invasão..........................................................187
Capítulo 41 – Amor e arte. Duas cartas!..............................197
Capítulo 42 – Bern invoca Têmis, a deusa que se faz cega às
coisas dos homens..................................................................201
Capítulo 43 – Onde se diz sobre o milenar jogo de braço de
ferro.......................................................................................203
Capítulo 44 – O tribunal de Apelação..................................209
Capítulo 45 – O Juiz............................................................211
Capítulo 46 – Bern segue conselho de ***..........................215
Capítulo 47 – O burro do Geo (capítulo especial)................219
Capítulo 48 – A fuga............................................................221
Capítulo 49 – Cinco anos depois.........................................227
Capítulo 50 – Filhos.............................................................231
Capítulo 51 – Monlevade e Guéret: cidades irmãs...............233
Capítulo 52 – Bern reflete sobre a instituição casamento.....235
Capítulo 53 – Preocupações de futuro marido e pai............243
Capítulo 54 – Divagações....................................................247
Capítulo 55 – O Casamento. Onde se diz de possível ideal do
velho Monlevade....................................................................249
Capítulo 56 – Aqui fica confirmado que o que não tem remédio,
remediado está!......................................................................253
Epílogo.................................................................................259
Post Scriptum......................................................................265
Dossiê Monlevade
9
Introdução
A
migo leitor, abro as páginas deste livro, esclarecendo que, ao longo de sua escrita, procurei espelhar com fidelidade (não sei se com êxito) tudo o que restou de
farta documentação encontrada em cofre construído de forma
incomum. Estranha. Como a escrita nele contida. A sua pesada
caixa de ferro tinha múltiplas camadas de parede; talvez similar
à urna funerária que Bonaparte teve como jazigo sepulcral: não
sei bem. No entanto, a tempo próprio, direi detalhes sobre como
foi encontrado. Peça aparentemente inviolável! A espessura de
suas partes internas era acima do normal – tinha, a mais, algumas divisões especiais reforçadas com travessões de aço inox e
barrotes de madeira de lei. Com um complicador que permanece
indecifrável para os pesquisadores até os dias de hoje. Algo bizarro. No interior do achado estavam também guardados a sua
chave mecânica e o seu segredo. Exemplares únicos e exclusivos,
conforme comprovado por análises e buscas posteriores. Não se
sabe como, mas foram lançados dentro do invólucro metálico
imediatamente após fechamento. Daí admite-se que a intenção
de quem por ele zelava era que seu conteúdo nunca viesse a ser
conhecido. Além disso, havia pontos de solda ao longo de todo o
perímetro da porta. Deu idéia de trabalho feito às pressas. Ainda
assim, foi mais um sinal que reforçou especulação de que o cofre
deveria ser mantido lacrado. Bem lacrado. Alguns, mais ousados,
afirmaram que, não tivesse sido encontrado, ficaria assim até o
final dos tempos!
10
Jairo Martins de Souza
Descoberta acidental: o que não é circunstância rara. Como
ela, recordo-me da penicilina, dos raios X e da fissão nuclear que
gerou a diabólica bomba atômica. Encontrava-se afundado, coberto por terra mole e arbustos, nas proximidades de moinho de
fubá. Daqueles antigos: ainda do tempo do Brasil Colônia e movido por água de córrego. A pista foi dada por uma de suas pontas
que sobressaiu da terra lavada pelas chuvas ao longo dos anos
em que esteve oculto. A cor era verde-musgo.
Nem digo do trabalho que deu para removê-lo, e abri-lo.
Cansaria ao leitor. Lá, abandonado por décadas, tinha segredo já
enferrujado e portas totalmente emperradas. Grudadas. O local
foi sítio de propriedade de certo senhor de família Raimundo de
Souza. Rio Piracicaba. Minas Gerais. O feito de recomposição de
cartas, folhas numeradas e catalogadas, algumas já deterioradas
pelos anos e cupins, foi, por mim, minuciosamente executado.
Mas não de forma completa. Também eventualmente fiz uso
de minhas próprias palavras e idéias de mundo.
Aí principalmente residem as falhas deste relato…
Dossiê Monlevade
11
Capítulo 1
Um descendente de Jean A. F. D. Monlevade quer pesquisar
sobre a vida do tio-bisavô nos trópicos
P
aris, novembro de 50. A tarde cai. A noite avança.
Um jovem bem apessoado e uma simpática
senhora caminham, lado a lado, na bela Avenida dos ChampsÉlisées. Ambos vestem capotes pesados e, esquecidos do mundo,
conversam animadamente. Mãe e filho. Não se vê estrela nos céus
da cidade luz, nem mesmo a Polar da Ursa Menor. É o frio do
inverno europeu que chega firme, enfim, já passa da hora, e dá
mostras de sua força.
– Mas mamãe, além de tudo, sempre foi meu desejo conhecer
o Brésil!
– Entendo isso, filho. O que não quer dizer que um rapaz
brilhante com todo o futuro pela frente... Querido, jogar chapéu
e diploma para o alto só fica bonito no momento da graduação.
Há tantos concursos públicos para altos cargos da magistratura
francesa! Não pode ser por nada tantos esforços que você fez na
Sorbonne!
– Não exagere, mamãe. Há anos penso nisso. E não significa
que vá deixar de gostar da ciência jurídica e do direito. Posso praticá-lo em qualquer lugar do mundo! Lembre-se de que não foi o
sangue de Jesus que foi vertido enquanto cantávamos a Marselhesa. O Direito praticado aqui na França, mamãe, é derivado do
romano. É latino. Como o da América Latina. Lá adaptar-me-ei
facilmente onde quer que esteja. Aliás, o Vale do Aço brasileiro é
para mim uma região enigmática. É tentador um dia ver o que lá
tanto atraiu o irmão do meu bisavô. Também me seduz pesquisar
12
Jairo Martins de Souza
o ramo tropical da nossa família que lá deve ter restado. De certa
forma, mãe, nosso sangue foi ajuntado com o da família de um
famoso barão chamado Catas Altas. Somos nome de uma cidade
na América do Sul! Isso não significa nada para você?
– Ah, Bernard, mon chéri, quanto ao que dizes, não posso
contestar. Gosto de ter propriedades, nem que sejam de fantasia,
como é o caso. Faz-me lembrar o tempo dos meus avós: lembrese que somos Bogenet e Monlevadê legítimos. Falo por preocupações de mãe que ama o filho. Mas, na realidade, não posso
criar maiores objeções ao seu propósito. Sei que é fantasia antiga.
Desde pequeno você falava sobre isso. Pensava que fosse desejo efêmero. De criança. Ah, Bern, também tive meus ímpetos na
juventude, sei como alguns desejos funcionam com jovens idealistas como você. Tornei-me mãe e, no entanto, exatamente para
entender meu filho, faço esforço especial para não esquecer o que
fiz na mocidade. Fui também assim e fazia o que o meu coração
comandava. Digo isso, querido, com toda a minha alma carregada
de amor!... Portanto, cumpra seu gosto e aproveite seu tempo!
– Ah, mamãe, fico feliz com o que me dizes. No fundo da minha alma, nunca deixei de pensar que você acabaria me apoiando. Sempre que tocava nesse assunto seu olhar traía-lhe, mãe.
Como agora. Olhar de admiração. Um bisneto que tem interesse
em coisas de um bisavô! Não sou tolo a ponto de não notar que,
de forma inconsciente, você sempre achou boa coisa. Além disso,
qual mãe não quer que o filho apanhe experiência em viagem ao
estrangeiro? Ainda mais a um país tranqüilo como o Brésil. Povo
festivo. Você somente não suportava expressar de forma verbal,
mamãe. Então, já com seu aceite formal, antecipo-lhe que a minha idéia é partir em meados de janeiro do ano que vem: quero
chegar ao Rio em época de festa popular. Chamam-na Carnaval.
Ah, mamãe, vou seguir exemplo de meu bisavô: viajarei usando
serviço de navio a vapor.
– Ótimo. É transporte seguro. Fico feliz. Mas, e o domínio da
língua, filho?
– Nem precisaria dizer-lhe, mamãe, mas digo. Você sabe que
a língua praticada no Brasil nasceu também das entranhas do
Dossiê Monlevade
13
latim. Como o francês. Dê-me alguns dias e fico sabendo toda a
sua estrutura e conjugações verbais. Recordo-lhe que, muito mais
aqui, com nosso idioma, do que lá, com o português, fala-se totalmente diferente do que se escreve... Noventa, mamãe! Noventa
é o número de dias com os quais devo estar comunicando-me a
contento na língua do Machadô de Assis.
– Sei que vai ser assim, Bern, és aplicado e tens facilidade
para aprender.
– Graças a você, mãe. Criança tem facilidade para captar
línguas e sons diferentes. Lembro que você iniciou-nos, a mim e
a Liviah, a ferro e fogo, bem cedo em escola especializada. Você
levava-nos para cima e para baixo. Menino de pouca idade não
tem preconceito se a língua que ouve é, ou não é, a sua natal.
Aprendi isso há poucos anos quando ingressei na faculdade. Fiz
classes especiais de lingüística aplicada, lembra? Com isso tudo,
mamãe, pode ser que consiga trabalho temporário na usina siderúrgica da Belgo-Mineira: a que meu bisavô geólogo, de certa
forma, fundou.
– Não precisa, Bern… Já conversei com seu pai a respeito.
Sabíamos que a qualquer hora você dispararia esse processo.
– Sei disso, mamãe. No entanto, gosto de caminhar com minhas próprias pernas. Ah, então foi por isso que papai insistiu,
por telegrama, que, qualquer que fosse o andamento da minha
carreira profissional, continuaria dando-me ajuda com dinheiro
das vinícolas de Guéret.
– Ah, filho, basta que se fale nelas e meu coração se aperta
por Liviah. Sua irmã bem que poderia ficar comigo alguns dias
aqui em Paris.
– Também penso sobre isso, mamãe. Nossos morros não são
famosos como as sete colinas de Roma, mas muito mais produtivos e belos. Liviah adora aquele sítio!
– Certo, filho, devemos, além de tudo, nos orgulhar de nossa
terra... A propósito, não vais encaminhar carta com currículo antes de viajar para o Brésil? Posso fazê-lo com precisão. Conheço
tudo de você... Melhor que você mesmo. Não és Rômulo nem és
Remo, mas a loba gosta de alimentar o filho!
14
Jairo Martins de Souza
– Lobas não são médicas apaixonadas como você. Você é
mãe. Você é minha mãe. Aposto que exageraria tanto nos meus
atributos físicos quanto nas minhas qualidades de advogado.
Não. Não, mãe... Ademais, levaria tanto tempo para lá chegar, e
ser lida… Melhor ir comigo em retrato de corpo inteiro. Pensando
bem, vou requerer visto de trabalho, não de turismo, junto às autoridades de lá. Conversei com ex-presidente brasileiro que faz estágio aqui na nossa université. Disse-me que, chegando ao Brésil,
basta ser aprovado no exame da Ordem local. A famosa Ordem
dos Advogados do Brasil. Ah, mamãe, ainda sobre o currículo,
fosse o caso, teria que tratar aqui mesmo na Europa. O dono atual da Belgo Mineira é grupo sediado em Luxemburgo. Coisa de
príncipes, reis e o ex-ditador Vargas... Vargas é o atual presidente
do Brasil, mãe. Foi eleito recentemente por voto popular: mesmo
que à moda de coronéis do início do século. Lá ainda funciona o
chamado voto de cabresto.
– O que significa isso, filho?
– Andei estudando, mamãe, mas não entendi ao pé da letra.
Na prática funciona assim. A cédula, já com o voto definido, é entregue pronta para o eleitor por agente do candidato. O chamado
cabo eleitoral. Só falta-lhe assinar ou, quando analfabeto, colocar
as digitais na folha de votação. Para encerrar a lambança, o tal
cabo coloca o papel na urna oficial. Um absurdo, mãe...
– É verdade. Mas, Bern, não vá mexer com política no Brésil!
É país ainda parcialmente entorpecido por moléstias crônicas.
Pelo que já li, tudo por aquelas bandas ainda cheira a colônia
lusitana. Não se esqueça de que…
– É claro que não, mamãe! Falo por falar… Lembre-se que
conversar sobre política faz parte da alma do francês desde os
tempos de Montesquieu…
Dossiê Monlevade
15
Capítulo 2
Onde se diz de um tiro. Os negócios andam bem no
Bazar Monlevade
J
oão Monlevade, dezembro de 1950. O espelho
invisível de ar, abruptamente sacudido pela passagem de bala calibre 380, fez com que os poucos e esparsos
passantes na Rua da Favela virassem ligeiramente a cabeça na direção do ruído. Com indiferença assumida, prosseguem como se
nada tivesse ocorrido. Afinal, nas proximidades da loja de Jaime
Raimundo, o ecoar de tiros ao longo do dia é cena rotineira. Se
bem sucedida, a operadora de caixa registradora – National – do
Bazar Monlevade confirmaria, por meio do apertar de pesadas
teclas e levantamento de bandeirolas, a saída de mais uma arma
de fogo. Venda à vista.
No stand improvisado de tiros, com fundo seguro da terra
pouco fértil de Monlevade, um dos filhos do proprietário, a quem
a mãe chamava de Cusecco, assopra fumaça que ainda resta fraca no cano da pequena arma. A bala passara longe da mosca do
pequeno alvo improvisado que ficava toscamente fixado no barranco. O jovem vestia calça far west e, com o braço trêmulo pelo
impacto do disparo, deixara cair no chão uma tasca de biscoito
de maisena duchen. O comprador já o olha com reprovação e
prepara-se ele mesmo para testemunhar a qualidade do produto adquirido. Embrulho para presente? Não. Não é necessário. É
para uso próprio.
Taurus, Rossi, CBC, Winchester, Colt, disse o homem, e eu
aqui comprando algo que mal mata até mesmo um tiziu. Ato contínuo, arrependeu-se do que ouvira, reconhecendo com dificul-
16
Jairo Martins de Souza
dade a própria voz. Tinha pensado alto. Com a velhice que se
aproximava, isso andava ocorrendo com freqüência. Consolando-se com tal retardo, lembrou-se do que lhe dissera o médico
noviço do recém inaugurado Hospital Santa Margarida. Grande
complexo hospitalar equiparado às Clínicas e ao da Beneficência
Portuguesa de São Paulo, se considerados juntos. Não entendera
bem, mas aqui assinalo (talvez o leitor tenha melhor sorte): a gente não ouve a própria voz do mesmo jeito que outros a ouvem.
Por causa dos ossos do rosto e alguns outros ossinhos laterais. Foi
o que, resumidamente, ouvira do especialista em otorrino.
Mas agora o que escutava era a voz do garoto que o atendia
solícito, tentando eliminar qualquer dúvida quanto ao bom andamento da venda. Esta garrucha é boa o suficiente para espantar
gatos do mato, é o que comenta. Cada coisa tem sua aplicação…
O senhor caça onças nas matas da Companhia? O homem calou-se pela força da indagação. Era antigo funcionário da Belgo. O
bisavô, por sua vez, o fora da forja catalã, nos tempos ainda da
fazenda do fundador do município, o próprio João Monlevade.
Não podia confessar seus pecados, mas morria de amores pela
calibre 12 que vira exposta na vitrine do Bazar. Boa para onça...
Quer testar agora o senhor? Pode deixar. Para que esquentar
cano da arma e gastar bala à-toa? Ficara ligeiramente vexado.
Tenho pressa. Então, por favor, acompanhe-me para emissão da
nota. Vou avisar à gerência que deu tudo certo.
Na porta da loja, um funcionário graduado dirigiu-se com
sorriso aberto ao freguês. O menino atendeu bem ao senhor? É
novato na atividade de balconista e atendimento ao público. Sim,
inclusive ofereceu-me teste, mas não julguei necessário. O Jaime Raimundo está por aí? Gosto de fechar negócio com o dono.
Está. Vou chamá-lo!
Tudo acima foi o que restou da primeira folha de acordo com
a numeração encontrada. Pode haver mais antigas, provavelmente destruídas. O que ficou impossível foi imaginar cupins penetrando em grossa parede de aço. Não vivem fora da presença de
ar, enfim, como disse o filósofo, – creio, Schopenhauer – há mais
coisas entre os céus e a terra que a vã filosofia sonha!
Dossiê Monlevade
17
Ainda não passam das 10 da manhã e já vendemos sete armas de fogo, Jaime Raimundo comenta com um dos seus dois
gerentes que se encontra ao seu lado. O rapaz assentiu com a cabeça, enquanto ajeitava banca de sabonetes Lifebuoy e Eucalol.
Prestativo, imediatamente também confirmou que tinha ido ao
cofre que fica no escritório e buscado igual quantidade de garruchas e revolvéres para repor mostruário da vitrine central. Na
ocasião, o Bazar Monlevade tinha quatro portas de madeira de
duas bandeiras pequenas, e tais armas encontravam-se na primeira de quem está postado de frente para a loja. Suas paredes
também eram integralmente de madeirame de mesma qualidade.
Por vontade do dono, ambos atravessaram a Rua da Favela para,
do outro extremo, melhor apreciar o Rio Piracicaba que, ultimamente, andava com águas mais claras. Pausa para puxar ar fresco
e oxigenar pulmões.
João Monlevade naqueles dias já significava grande trecho
de vale cortado pelo Piracicaba onde, em um dos seus lados, e
como certidão de batismo, fora instalada a Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. Na vizinhança do seu centro antigo, a empresa
construíra – já que planejada para funcionar em área totalmente
isolada – um e outro estabelecimento comercial. Foi onde também
levantara praças de cinema e mercado, além de residências para
seus supervisores e demais empregados. Na outra margem do rio,
erguera outras casas com o mesmo objetivo. A Igreja para cuidar
das almas do operariado não fora esquecida, por meio da matriz
de São José do Operário. Construção imponente. Destacar-se-ia
caso fosse feito cartão postal da área da qual estamos falando.
Alongando-se por toda a extensão do rio, a grande Monlevade
contabilizava as alturas de um milhão e quinhentos mil habitantes. Desses, 831.990 almas somente na sede do município! Tudo
fora precipitado, estejam lembrados, pela descoberta à flor da terra de belíssimas jazidas de ouro negro, o petróleo, no município
vizinho de Rio Piracicaba.
O nome Rua da Favela é enganoso nos dias atuais, comenta
Jaime Raimundo para seu colaborador. Não é calçada porque há
possibilidade futura de ser tombada por autoridade do Patrimô-
18
Jairo Martins de Souza
nio Histórico. Aqui nunca falta luz com relógio, nem água e muito
menos rede de esgoto. Depois, se alguma favela houve aqui, deve
ter sido nos tempos em que a cidade era apenas um arraial. É
verdade, concordou o jovem que já se retirava, encaminhando-se para retorno ao trabalho. Pedira licença e saíra sem maiores
considerações. A chegada de mais alguns clientes na porta da
loja autorizava sua saída sem necessidade de agrados a quem o
empregava. Tinha plano certo para o futuro e não lhe agradava
perder tempo divagando sobre o que existira no passado naquela
estradinha secundária cheia de costeletas. O chefe andava encaminhando bem a vida. Iria fazer o mesmo. Não demora ele estaria
cuidando da sua, dentro do mesmo rumo.
O patrão fora operário da Belgo. Adoentado, entre outras
coisas por não se acostumar ao calor da área de lançamento de
carvão para os fornos, fora encaminhado ao serviço de saúde da
empresa. O médico que o atendeu acabou extraindo-lhe o duodeno a troco de cura de mera queimação estomacal. Profissional
de formação duvidosa, vira oportunidade de treinar cirurgia de
alto risco. Arrasou por tempos a saúde do futuro comerciante. Daí
surgiu mudança de rumos e profissão. Não é que isso vá se repetir
comigo, refletiu o jovem que já se encaminhava na direção de
uma cliente que achava bonita. De uma forma ou de outra vou
ter meu próprio negócio. Não sou pássaro que nasce e morre em
mesma gaiola. Posso melhorar minha vida sem implicações como
a que ele sofreu, e sem fazer biscates ou trabalho de ambulante.
Não quero ser mascate. Os tempos mudaram e Monlevade pede
novas lojas em áreas de subúrbio recentemente formadas. Está
por chegar a minha hora. Enfim, em que posso ajudá-la? Foi o
que falou em voz alta para a jovem que também o aguardava
ansiosa.
Como indiretamente disse na cabeça deste capítulo, ficou-me
o mês, não o dia. Por razão simples. Todo o mês doze é de movimentação extraordinária para quem lida com a arte de comerciar.
Antiga. Cá, como em todo o mundo, é período em que se lembram mais os pais dos filhos. Em especial os nativos e estrangeiros
dessa cidade que fora fundada dependendo exclusivamente do
Dossiê Monlevade
19
aço e benfeitorias saídos dos fornos da Companhia Siderúrgica
Belgo Mineira. A CSBM. Por todas as ruas ouvem-se músicas motivadas por tema milenar vindo das longínquas terras de Nazaré.
Se daqui a 33 anos tudo se encerra com o escuro da noite do
Gólgota, hoje não é mais que a melhor hora para festejar. Que o
exemplo dos reis magos seja seguido até os mais ignotos pontos
do Vale do Piracicaba. É claro, com as cortesias, brindes e presentes sendo adquiridos no Bazar.
O proprietário voltou as costas para o rio, permanecendo
pensativo e observando a fachada do seu negócio. Com o avanço
de minutos, o movimento de entrada de famílias que transitavam
a pé pela Favela aumentou consideravelmente. Agora em grupos
de 4 a 7 pessoas com distâncias que variavam de 3 a 20 metros.
Não lhes prestava atenção. Sua cabeça viajava, buscando selecionar letras, palavras e frase para compor placa nova que intentava
fixar na marquise de sua loja. Olhava-a com atenção. Tenho que
discutir isso com a minha Alice, é o que dizia de si para si. Bazar
Monlevade tem tudo que você precisa pelo preço que lhe convém. Por ora, esta longa frase era o produto final que, por ser tão
extenso, falava alto para fixar texto. Não sou bom em português.
– Pode deixar, pai. Agora quem diz é seu filho mais velho,
que ora se aproxima e a ele observa estar falando alto. Vou pedir
a colegas mais estudiosos, e que já estão na escola em série seguinte para fazer a análise sintática desse longo anúncio. Pedirei a
eles para verificar se estão corretas as concordâncias e regências
nominais e verbais.
– Sim. Agradeço, menino. Não gosto mesmo de mandar escrever porcarias. Mas a que vens aqui? Não vês que estou cá pensando?
– Duas coisas, pai: a primeira é que certo Gerente de Vendas
quer falar com o senhor. Veio com o representante da Vulcabrás.
Ele disse que tem dois produtos novíssimos para a praça de Monlevade. Trouxe-os, em primeira mão, aqui para o Bazar. Mostroume um deles. O nome é Passo Doble. Bonito. Gostei, pai. Marrom. Já quanto à outra novidade, disse-me que vai exibir amostra
somente para o senhor e o para o tio Ninico…
20
Jairo Martins de Souza
Ah, quase me esqueço, pai, a outra coisa é freguês que quer
desconto especial. Ele está decidindo sobre compra de doze caixas de cartucho 36.
– Vou atendê-lo num piscar de olhos. Peça ao representante
e ao tal Gerente para aguardar! Diga-lhes que não demoro…
– Pai. ­
– Sim.
– Sobre o calçado novo. O Passo Doble… Se for feita compra,
o senhor me deixa ficar com um, número 42?
– Quem sabe para o Natal, filho… Agora, dê-me licença. Tenho que atender o caçador que quer as munições!
Dossiê Monlevade
21
Capítulo 3
O encontro com certo Gerente. O rapaz Monlevade
distrai-se e passa alguns dias a mais na Guanabara!
P
lásticos, seu Jaime Raimundo, é o negócio do futuro. Não demora, tudo vai ser feito de plástico.
Tenho aqui um exemplo de calçado, chamam-no Verlon, que é
o cão chupando manga. Perdoa pela expressão. Sei que, assim
colocado, cão parece significar o coisa ruim. Pelo contrário, aqui
significa que agüenta tudo. Deixei até uma amostra com seu irmão, o Ninico, que é do ramo. Está lá no escritório do Bazar se
lastimando. Disse-me: senhor Gerente, isso, se disseminado, vai
acabar com a minha fabricação de tamancos de madeira e botinas de borracha de pneu.
– Primeiro, agradeço por colocar em pratos limpos a questão
de quem chupa e de quem não chupa mangas, agora é o proprietário da loja quem diz. Tenho tendências evangélicas e, ontem
mesmo, estive lendo a bíblia em versículo sobre o não invocar
qualquer nome que possa ser dado a satanás. Quanto ao calçado,
não vejo tanto futuro assim. O fedor é insuportável!
Por enquanto, seu Jaime Raimundo, por enquanto… Isso
será corrigido. Juro que, em breve, cheirarão como rosas novas.
Ainda falo com o senhor sobre o assunto.
– Certo. Mas como não é chegado ainda esse tempo, destas
não compro. Sigamos com o pedido de alguns Vulcabrás que dão
venda garantida. Ah, vamos incluir também esse produto novo, o
Passo Doble. Meu filho gostou! O negociante dissera com firmeza
definindo a mercadoria que sabia agradar ao seu cliente. Não
gostara do comportamento do Gerente. Aliás, até o irmão Ninico
22
Jairo Martins de Souza
achava que o homem, recentemente vindo da paulicéia, compareceu na loja olhando para os lados, parece-me analisando todo
o ambiente e emanando ares suspeitos…
Os três pontinhos aí indicam que ocorreu um hiato na documentação. Por mais algumas folhas fica claro que o objetivo dos
analistas restringia-se a buscar melhor ordenação da papelada.
Até que apareceu um fato novo. Inusitado!
Je voudrais parler avec monsieur Jaime Raimundô. Estava
assim. Escrito em francês. A caneta tinteiro tinha carga de qualidade e o texto não dava margem a mal entendido. Traduzindo,
gostaria de falar com o senhor Jaime Raimundo. Nem mesmo
com consulta a pesquisadores do ramo houve condições de se
decifrar o porquê da utilização de língua estrangeira. Pelo menos
por ora.
Fez sentido com o passar dos eventos. Peço ao leitor a
paciência de... Paris. Calais. Porto. Lisboa. Gibraltar. Recife. Salvador. Vitória. Rio de Janeiro. Janeiro de 51. Foi longa viagem
feita a bordo do navio da Lloyd International Shipping Company que partira do porto inglês de Dover do outro lado do Canal da Mancha. Conforme afirmara à mãe, Bernard, na própria
Sorbonne, adquirira gramática da língua portuguesa, edição da
Universidade Portuguesa de Coimbra. Os autores, pois escrito a
duas mãos, eram Fernão de Oliveira e João de Barros. É detalhe
que incluo nestas anotações somente por curiosidade histórica.
Certo mesmo é que o jovem, de posse de material de tamanha
qualidade, lançara mãos à obra com entusiasmo. Estudara com
afinco.
Cometeria erros, é claro. No Brésil fala-se português um pouco diferente, contudo, não fora bem sucedido na obtenção de
obra didática com explicações sobre o praticado no Brasil. Um
colega de estudo de leis informara-lhe sobre gramática escrita por
certo Joaquim Mattoso Câmara. Morrera antes de completá-la.
Ciente da deficiência, era assim que durante a viagem decorava e
procurava entender todas as variações de pronúncia. Sabia ser o
Brésil, no fundo, um grande continente.
Finalmente, Rio de Janeiro. Não distante do porto, algumas
Dossiê Monlevade
23
luzes incandescentes iluminavam fracamente a Ilha Fiscal. Ao
passar por ela, Bernard Monlevade pensou sobre o famoso baile
onde a bebedeira e as ignomínias praticadas pela corte portuguesa tinham ajudado a derrubada do imperador Pedro II. Pedro de
Alcântara etc. e tal Bragança e Habsburgo. Longuíssimo nome.
Ainda com os olhos fitos nas luzes que se distanciavam, pensou
sorrindo sobre um outro imperador que lhe era mais próximo.
Pensou sobre Napoleão. Ah, esse corso fez besteiras com os portugueses e, em especial, com a família daquele imperador Pedro.
Rira quando um colega comentara ser o avô desse monarca, o tal
Dom João VI, o rei mais medroso que reinara sobre terras européias: explico que aqui escrevo medroso com alguma reticência.
Não foi o próprio Napoleão quem disse ter sido ele o único homem que o enganou? O forte soar da corneta elétrica do navio,
acusando iminente chegada ao ponto de atracação, fez-lhe escapar fluxo de pensamentos.
Daqui a minutos passaria defronte à Praça Mauá. Lá existem
muitas putas que gostam de abordar estrangeiros. É o que lhe fora
avisado por funcionários da embaixada brasileira em Paris. Com
um “faça bom proveito”, quem a ele alertou foi um diplomata
de carreira chamado Vinícius de Moraes. Na ocasião, segundo
secretário do serviço de atendimento a estrangeiros. Poeta, nas
horas vagas. Com o passar dos anos, ouviria falar muito sobre
esse homem.
Trouxera muitas malas. Inclusive uma com pasta de anotações cadastradas no Instituto de Ciências Geológicas de Paris,
onde o bisavô guardara informações recebidas do irmão geólogo
que lançara as bases da siderurgia no estado de Minas Gerais: seu
destino final. Não sabia bem o porquê de tê-las consigo, afinal de
contas, era um advogado. Passaria a noite ainda na embarcação.
A descarga do corpo, enfastiado com as oscilações das ondas
que caracterizam o Atlântico, deitaria alívio somente com a chegada da manhã seguinte. Preenchera a papelada aduaneira. A retirada de bagagem não deveria obedecer aos trâmites famosos que
bloqueiam o progresso desse país. Bernard gostava de bricolagem
e, habituado a serviço pesado nas horas de lazer, não faria uso
24
Jairo Martins de Souza
de carregadores ou de homens da estiva. Por partes poderia levar
todos os pertences. Ouvira falar que aqui os sindicalistas tinham
total domínio sobre as obrigações de carga e descarga portuárias.
A começar pelo círculo fechado dos Práticos que entram com as
embarcações nos canais dos portos brasileiros.
Passando por estibordo, permaneceu alguns minutos observando a vista maravilhosa do Cristo Redentor. Um homem ao
lado conversava com a esposa (parecia ser algum carioca que
retorna à casa paterna, após longa ausência). Procedia como se
estivesse encantado e fazia o “Nome do Pai”. Ao mesmo tempo,
chorava, e ria, dizendo, esse é o Rio Janeiro, minha alma canta e
por aí vai…
Tomado por sentimentos antigos, lembrou-se do avô que estivera no Rio há mais de século atrás. O Brasil ainda era colônia
dos lusos. 1817 ou 1818: não sabia com certeza. Na ocasião escapava dos desdobramentos da derrota de Napoleão – abatido
por Wellington – e que agitavam a França (talvez um dos motivos
do avô ter vindo para o Brasil. Não o principal. Muitos europeus
do século dezenove eram extremamente curiosos quanto às peculiaridades da natureza e da vida dos selvagens abaixo da linha
do Equador). Estou aqui hoje três anos mais jovem do que ele
quando veio. Tinha 28; tenho 25. Emocionado, Bernard devaneia fazendo e desfazendo voltas nessa máquina do tempo. Incorpora com orgulho os planos do avô. Não é ele a principal razão
de eu estar no Brésil? Visualiza-se a bordo de navio a vapor de
modelo mais antigo. Curiosamente lembra-se que, desde 1807, o
americano Fulton lançara aos mares os primeiros barcos movidos
a lenha.
O Rio no início do século dezenove ainda era praticamente
intocado. Há 10 anos, em 1808 recebera a corte lusitana e abrira
os portos às nações amigas. Tudo isso ocorrera indiretamente à
custa dos atos de Napoleão. Houve tempo em que Bonaparte
quis ser Deus!
Cá está também outra questão. Na ocasião, os levantamentos geológicos que dispunha eram precários. Não fosse ânimo
dado por amigos lusitanos, – o rapaz continua encarnando o avô
Dossiê Monlevade
25
–, que estudavam na prestigiada Universidade de Coimbra, talvez
não tivesse encarado tal empreitada. Cartas entre geólogos distantes geograficamente, mas vizinhos nos interesses da matéria,
iam e vinham, cruzando mar e terra que separavam nações. Tal
como Galileo fazia com Salviatti (o italiano trocava intensa correspondência com seus pares na ciência), Monlevade respeitava
o conhecimento do povo português. Em especial, lembrando-se
com saudade dos tempos em que lá estivera visitando, inclusive
os restos da antiga escola de navegação de Sagres. Portugal já
foi, escrevia aos seus confrades lusitanos, grande nas cruzadas e
embates com o uso de caravelas de grande desempenho. Nossas
cortes – escreveram os portugueses de volta – andaram relatando
que, no Brasil, além do ouro que praticamente aflora ao solo, há
grandes ocorrências minerais no estado dito das Minas Geraes.
Faltam-nos as técnicas para sua exploração. Poderias também,
Monlevadê, a partir disso, produzir enxadas, foices, machados,
alavancas, pás, ferraduras, picaretas, moendas para engenhocas,
freios para animais e outros materiais para a extração de metais e
minérios. Destes últimos, temos fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, lá existem muitos. A mão de obra? Tens de sobra. Guias de
importação de negros africanos são facilmente obtidas com as
autoridades, marqueses, barões e negociantes que controlam o
comércio dessa lucrativa mercadoria nos portos de São Sebastião
do Rio de Janeiro e Santos.
Com isso, Bernard volta à realidade da manhã que se abria
magnífica. Dormira bem e relaxado. Acima do Redentor, no
Corcovado, pairava nuvem que, isolada na imensidão do céu, tal
como se fosse coroa almofadada de branco, ornamentava-lhe a
cabeça destacando a intenção de sua santidade protetora. Nessa
imagem esplendorosa, fica a descoberto o amor que o criador
destinou a esse Brésil. Terra abençoada! Não faz mal lembrar o
talento do francês Landowski que capitaneou a construção da
estátua para o acolhedor povo que habita a baía. Aí recupero que
demorara anos entre transporte e instalação, inclusive iluminação
a ser ligada diretamente da Itália pelo próprio Marconi, o inventor
do rádio.
26
Jairo Martins de Souza
Já com alguns cruzeiros no bolso, previamente adquiridos
em casa de câmbio na própria Paris, Bernard fez algumas contas
mentais. Por fim, decidiu, depois de aportar, vou circular a pé pela
famosa praia de Copacabana. Ligeiramente amuado, resmungou,
lembrando-se que as caminhadas matinais que fazia ao lado da
mãe far-lhe-iam falta. Por fim, alisou o voucher do Hotel de mesmo nome, assegurando-se de sua textura tranqüilizadora. Mãe,
estou no Brésil!
Se bem que ainda não totalmente recuperados da derrota
sofrida para os uruguaios em 50, os cariocas confirmaram tudo
que Bernard Monlevade estivera estudando sobre a sociedade
brasileira no vasto material colocado à sua disposição na biblioteca de Humanas da Sorbonne. Povo gentil. Alegre. Receptivo. O
dinheiro combinado com o pai tinha chegado regularmente por
meio de ordem de pagamento telegrafada e retirada sem complicação na agência central do Crédit Lyonnais no Largo da Carioca. Manter-se-ia assim, fora o recado que recebera da instituição.
Por complicações burocráticas, ainda não resolvidas, não pudera
adotar os serviços do Banco do Brasil. Poderia ser mais útil quando se dirigisse, por fim, até o interior do país. Aliás, lembravase, orgulhoso, esse banco fora fundado por Irineu Evangelista de
Souza, o conhecido Barão de Mauá. A razão de aqui constar essa
informação é que esse homem famoso adquirira a siderúrgica que
fora fundada por seu bisavô. Mauá, empresário de biografia conhecida dos anos 800, era também, na ocasião, proprietário da
Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros.
Todo o conjunto de fatores, a cortesia, a beleza natural, a
boa comida e outros dotes da antiga Guanabara, que o leitor
bem conhece, alteraram-lhe automaticamente os planos. Perdera
o comando da situação. Tinha imaginado dar cabo final à visita
carioca tão logo conhecesse o divulgado Pão de Açúcar (um cronista dissera-lhe que lá é onde Deus toma seu café da manhã!),
seu teleférico e a magnífica vista do Morro da Urca. Além dele,
o Palácio Imperial em Petrópolis, o Museu Nacional, a Academia
Brasileira de Letras, a Biblioteca Nacional, o Teatro… Ao longo da viagem, após travar conhecimento com o casal que acima
Dossiê Monlevade
27
dissemos ter chorado no reencontro com a terra, acrescentara
outras atrações. Um passeio pela Rua de Mata-cavalos, tão citada por Machado em seus romances fluminenses. Hoje se chama
Riachuelo. Uma visita a ensaio de “L’ école de Sambá”, teatro de
revistas nas praças do centro, um clássico entre seleção mineira e
carioca no Maracanã, enfim, eram tantas as atrações culturais na
Guanabara e redondezas...
Mas posteriormente faltaram adjetivos e tempo para homenagear a rica natureza local, pois, mesmo que advertido, não contara com tamanha qualidade que a ela foi dada de graça pela
criação. Passava dias e dias perdido em passeios solitários pela
orla marítima, sem perceber que, há tempo, não tinha agenda
senão para escrever letras floreadas de encantamento à mãe preocupada do outro lado do Atlântico. Nelas mesmas, por economia,
encaminhava bilhetinhos à irmã Liviah, que raramente saía da
região de Guéret. Afora algumas visitas à Aliança Francesa para
desenvolver imediata comunicação com a gente do hotel, andou
também assistindo, como convidado especial, a algumas sessões
ordinárias do já falido sistema jurídico da capital federal dos brasileiros. Quando deu por si, carecia de regularizar permanência
junto às autoridades locais. Seu passaporte já estava em vias de
passar momento de revalidação!
Moço simpático e bem falante, quando oportuno, enrabichou-se com três ou quatro moças de outros estados que andaram passeando com as famílias pelas praias cariocas. Hotel Copacabana. Importante. Einstein esteve aqui hospedado,
em 25. Seus proprietários, gente da glamurosa família Guinle,
divulgavam-no pelo mundo inteiro. Foram seus companheiros
de estadia, presidentes de potências estrangeiras, playboys internacionais, – como o próprio Jorginho Guinle –, Carmem
Miranda, etc. Lá se mantinha bem aconselhado, por meio de
relações amistosas com a portaria, pelas camareiras, a lavanderia e a administração. Adquirira roupas na Casa José Silva a
preços módicos, mesmo considerada a perda de força do franco
francês em relação ao ascendente cruzeiro nacional. A despeito
disso, liberava régias gorjetas e pagava antecipadamente a cada
28
Jairo Martins de Souza
nova intenção de permanência. Assim o tempo fora passando
despercebidamente.
Gostava de ficar também assentado nas espreguiçadeiras colocadas à disposição no entorno da piscina do premiado hotel.
Frequentemente ao seu lado bronzeavam os corpos, alojados em
discretos maiôs, as maiores celebridades da Rádio Nacional. Certa ocasião vira, com as restrições inerentes à época, o escultural
corpo da atriz Virgínia Lane.
Foi nessas condições relaxadas que leu notícia na página de
frente da edições do dia anterior do Jornal da Noite: ‘Getúlio segue
amanhã para Minas. O presidente tem o fito principal de visitar
a Usina Siderúrgica Belgo Mineira localizada no Distrito de João
Monlevade. O Governador Juscelino Kubitschek… Pronto. Ligeiramente atordoado, Bernard decidiu tomar ação. Nem mais sabia
onde encontrar, por exemplo, o prontuário de vacinação rigorosamente recomendado como credencial de saúde para viagens ao interior do país. Lembrou-se, sorrindo dos temores que tivera quando, ainda em Paris, lera sobre certa Revolta da Vacina que, não há
muitos anos atrás, ocorrera aqui mesmo no Rio. O português fraco,
que falava na ocasião, fê-lo confundir algumas palavras e comprometer o sentido do texto. Como pude julgar tão mal os brasileiros?
O conflito foi social e não de maniqueísmo religioso como entendera. Coisa de política e políticos sujos. Ah, esses cafards (baratas)
sobrevivem a todos os países, conflitos e gerações!
Alentado por costume europeu profundamente enraizado, a
idéia era seguir inicialmente por trem ferroviário. Noturno. Fora
informado que o confortável Vera Cruz seguia todas as noites
para a capital dos mineiros. Belo Horizonte era conhecida como
Cidade Jardim. Poucos dias de reconhecimento seriam suficientes para absorver a cultura local. Sabia ser essa muito diferente
da dos cariocas, a qual já se mostrava acostumado. Um político
mineiro de baixo quilate, um falastrão que conhecera no Copa,
dissera-lhe do corpo bem definido e da educação inerente às moças da terra. Mais ainda do rigor com que eram administradas
pelos pais e irmãos. Namoro lá, admoestara-lhe o homem, só se
for para casar! Principalmente pelas bandas do interior. Bernard,
Dossiê Monlevade
29
moço organizado, anotara tal instrução com letra miúda em sua
caderneta que funcionava como um diário de bordo.
Documento que tomei conhecimento, posteriormente, por
meio de terceiros. É o que fez válida a sua citação. Tivessem-no
guardado no cofre, junto com as esparsas e fragmentadas lascas
de papel rasgado, facilitaria sobremaneira a tarefa de redigir essas
linhas. Enfim, não diz o povo que quem não tem cão, caça como
um gato? É o que procuro fazer. Monto esse quebra-cabeças lembrando a argúcia de felino doméstico.
E é tendo isso em mente que volto ao ambiente do Bazar
mantendo fio de meada abandonado em capítulo anterior. Lembram-se? Em dado momento, dizíamos das suspeitas do sapateiro
Ninico quanto ao já referido Gerente de Vendas, e ao produto
chamado Verlon. Agora quem tem a palavra é o próprio Gerente.
Não é que vá se defender de acusações das quais nem tem conhecimento. Vamos ver do que se trata.
– Seu Jaime, sei que não é do seu costume, mas gostaria de
pedir licença para convidá-lo para tomar um café, ou cerveja, se
for o caso. Depois que o senhor fechar o seu Bazar. É que tenho
assunto do qual não vejo condições para aqui conversar. Faz-se
necessário ambiente tranqüilo no qual possamos refletir e trocar
idéias. Embora, antecipo, tratar-se de matéria absolutamente comercial. Se o senhor quiser pode ser no Hotel Monlevade, onde
estou, ou, quem sabe, no Bar Central da Praça do Mercado.
– Sem problemas, senhor M (nota do autor: a partir de agora, sem quê nem por que, o Gerente de vendas constantemente
referido nesse dossiê passa a ser chamado somente por sua consoante de início. Em inglês. Pois conforme explicado em pequena
nota, Manager é tradução de Gerente vinda da língua internacional do comércio! Há outras razões citadas, mas não detalhadas
pelo analista. Em determinado momento somente diz que esse
procedimento não faz qualquer alusão ao clássico ‘Disque M Para
Matar’, de Alfred Hitchcock. As coisas aqui não chegam a tal nível
de violência física, etc.).
Com uma restrição. É Jaime Raimundo quem diz respondendo ao convite do Gerente, ou M, como queiram. Decerto não
30
Jairo Martins de Souza
me oponho a trabalho fora do horário de expediente comercial,
de 7 às 18. Estou habituado a tanto. Inclusive a rotina da loja,
normalmente encerra-se às 20. É a partir daí que saio para outra
jornada. A de verificar minha propriedade rural que, no fundo, é a
minha distração. No entanto, não é procedimento fechado. Aceito
sim tomar café em sua companhia, só que ofertado por minha
senhora e acompanhado por broa de fubá e queijo fresco. Para
tanto, sinta-se convidado para estar hoje na Rua do Contorno, na
Vila Tanque, onde resido. Pedirei à moça do caixa que anote o
número para o senhor. Fica logo de frente ao Centro Comercial,
próximo ao palanque onde se processam ao tempo os serviços
religiosos daquela comunidade. Se o senhor for de carro, dou-lhe
outra coordenada importante, pois minha casa fica perto da loja
da Dona Santa. Não sei se a ela já visitaste com mala de mercadorias.
– Não, senhor. Mas posso chegar até lá com facilidade.
– De todas as formas, não querendo dirigir, o senhor pode
usar os serviços do ônibus Jardineira que passa nas proximidades
do hotel e vai até quase em frente. O ponto final é junto da minha
casa. Há também Buicks de praça a preço módico. Quanto ao
retorno, não se preocupe, posso trazê-lo de volta.
– Agradeço antecipadamente, seu Raimundo. Ficamos assim
combinados.
Dossiê Monlevade
31
Capítulo 4
M tem interesses em Monlevade. Preciso de sócios locais, diz!
O
Gerente apeara da condução no ponto adequado.
Forjado ao longo dos anos no transporte de massa da
capital dos paulistanos, mostrou-se desenvolto em sua andança.
Inquirira ao motorista da Jardineira e não tivera dificuldades para
localizar a casa do comerciante: homem conhecido nas redondezas. Só sentira-se desgastado quanto ao calor que sentira na
parte interna das mãos quando batera fortes palmas para chamar
a atenção da família visitada. Doeram-lhe também as juntas. Isso
porque todos os filhos e agregados da casa encontravam-se junto
a barulho de talheres e de conversas rotineiras de lar com mais de
15 comensais quando em momento de refeição noturna. Família
grande. Não se sentira à vontade sob os olhares curiosos dos moradores que estavam, em quantidade, fazendo compras ou simplesmente aglomerados defronte ao centro comercial da vila que
era chamada de Tanque.
Um dos vizinhos, uma mulher, por instantes, pensou ter visto
que, com a aproximação de M, o portão da casa abrira-se sozinho.
Isso era comum em porteiras das fazendas e roças de onde viera.
Ao lado do visitante também imaginara visões instantâneas de
samambaias secas que queimavam acionadas por pequeno pé de
vento. Um corisco. Dois pequenos chifres de bode assomaram-lhe
rapidamente na testa. É claro, o texto aqui continua referindo-se
ao Gerente paulista. Ao mesmo tempo o homem abriu a boca
para expor língua cortada ao meio. Língua de lagarto grande. Um
iguana. Cruz credo! A vizinha não se deu por rogada. Entrou cor-
32
Jairo Martins de Souza
rendo em casa e dirigiu-se imediatamente para imagem de Aparecida. É certo que ultimamente andara lendo romances fantásticos
de Cortázar e Garcia Marques, mas neles não vira referências a
fantasmas, duendes e aparições. Então, por via de dúvidas…
– Entra. Entra.
– Boa noite, menino. Seu pai está?
– Não é meu pai, senhor M. É meu tio.
– E qual é o seu nome?
– Melquesedeque, senhor. Com licença, vou chamá-lo. Ele
vem num instante. Já está acabando de jantar.
– Não precisa menino, cá estou, é Jaime Raimundo quem
diz, parecendo satisfeito com a concretização da visita prometida.
Estava a poucos metros do visitante, pois a sala que os separava
era pequena. Por fim, avança do seu quarto já quase em posição
de troca de cumprimentos. Sente-se, senhor Gerente, a poltrona
não é grande, mas tanto eu como o senhor somos magros. Nos
servirá bem. Num instante, minha Alice já lhe trará café, a broa e
o queijo prometidos.
– Peço aguardar um pouco, seu Jaime. Por ora, basta-me um
copo d’água. Temos muito que conversar. Como sabes, sou novo
no comércio da região... (a partir dessa frase, M limpa o gogó e
prossegue falando mais pausado. Parece ser daqueles que demoram mil anos para chegar ao cerne da questão). Andei por aqui e
por ali, garimpando oportunidades. Caeté, Dionísio, Nova Lima,
Ouro Preto, São João Del Rey, São Pedro dos Ferros, Sabará e
Viçosa são alguns dos lugares que estive pesquisando.
– Pois é, respondeu-lhe incidentalmente o comerciante, gosto
de gente curiosa. No bom sentido. Inclusive meu irmão, lembrase dele? Andou notando esse jeito no senhor. Ficaste observando
código de preços de custo das mercadorias do meu bazar.
– Sim. Agrada-me sabê-los, mais que tudo por questão de
saber como anda o lucro dos varejistas. Tento decodificar os
que usam e, ao mesmo tempo, busco passatempo, algo como
brincadeira de 7 erros. O senhor sabe, há ocasiões em que o dono
da loja demora a nos atender. Prioriza logicamente a clientela. Às
vezes, M complementou, agora mais relaxado, penso que poderia
Dossiê Monlevade
33
criar alguns mais difíceis. Nada de A = 1, B = 2… Quem sabe
misturando letras com sinais de Morse.
– Morse?
– Do código Morse.
– Esse senhor eu não conheço.
– É o do telégrafo.
(Na verdade procuro abreviar, pois M prossegue falando
novamente que viajou por localidades próximas e distantes, não
sabia dizer quando, e que não podia mentir, entrevistara outros
negociantes de vários ramos na região, da indústria do couro e da
carne, fabricantes de armários e móveis, comerciantes que lidam
com madeiras diversas... Disse tudo isso e muito mais, inclusive
fazendo, talvez para quebrar o gelo, perguntas de foro íntimo ao
interlocutor, algumas sem sentido, até que, finalmente, já cansado
de tamanho lero-lero, de forma polida, o proprietário do Bazar indagou. Tudo bem! Mas, aonde queres chegar, senhor Gerente?).
Procuro sócios! Atuei em São Paulo, na capital, por vários
anos junto à indústria calçadista. O que, de certa forma, permaneço fazendo por meio de credenciais, comissões e representação,
como a que tenho da grande Vulcabrás. Esse homem que comigo
está e que, inclusive, acompanha o seu Bazar no dia-a-dia é simplesmente meu preposto. Lá tenho casa, comida e roupa lavada;
a bem dizer, negócios e família, esta última a qual destaco como
essencial para sucesso de homem de bem.
– Sim. É a base de tudo, Jaime Raimundo argumentou reflexivo, não percebera a ironia nas palavras que o empresário paulista
há pouco acabara de dizer. Na verdade o proprietário dissera o
“sim”, conforme informado ao leitor, somente para pontuar a frase
do interlocutor, ser gentil, dizendo ao visitante que se interessara
pelo assunto. Ansiedade de mineiro para fazer agrado a terceiros.
– Repare, prosseguiu o Gerente, lá estou bem. Tenho até
mesmo um sedã Chevrolet fleetline duas portas. Hidramático. De
luxe. Comprei-o de um diretor da empresa que represento. Fica a
serviço da minha esposa. Não tive a graça de ter filhos com essa
mulher. Eu os tenho com outra. Nisso vejo que o senhor está bem
aquinhoado.
34
Jairo Martins de Souza
– Não posso me queixar. No entanto, nunca ninguém está
totalmente satisfeito. Por exemplo, o Chevrolet que disseste ter é
meu sonho de infância. Não o tenho. Aliás, não concordo com alguns poetas que dizem ser a infância a fase mais feliz da vida. Um
amigo daqui de Monlevade disse-me que os humanos gastam o
resto de suas vidas tentando superar traumas nela adquiridos. Leu
algo assim em resumo das obras de um sujeito chamado Freud.
Enfim, talvez seja por isso que penso ter um carro daqueles aqui
na garagem de casa.
– Talvez. Também já li alguma coisa desse autor. Quem sabe
tenha razão quanto aos traumas que dizes. Eu mesmo estoco
pilhas de pacotes de manteiga no interior da minha geladeira.
O motivo? Meu pai não permitia que os filhos a comessem com
fartura. Entretanto, trauma infantil ou não, seu Jaime, com
a disposição que tens para trabalhar, não demora terás um
Chevrolet.
A seguir M declarou afirmativamente. Hoje atuo sem dedicação exclusiva ao comércio e, se o senhor não sabe, passe a
saber, tenho relativa importância nesse segmento. Nessa região
de Monlevade mais ainda. Não ouça com conotação negativa,
prosseguiu, abaixando decisivamente o tom de voz, mas poderia
inclusive cortar fornecimento de mercadoria que sei fundamental
para o senhor. Lembre-se da representação selecionada que tenho
da linha Vulcabrás. Não é que vá deixá-lo à míngua, mas corto-lhe
renda. Aliás, já o fiz para outros que comigo não concordaram, ou
que pagaram com suor e sangue que não julguei recompensador
para meus propósitos.
Jaime Raimundo não entendeu bem o que o gerente acabara
de dizer e, um pouco por educação, e mais ainda por timidez,
simplesmente concordou com aceno de cabeça. Com o que M
seguiu falando que a idéia de implantação de fábricas providas de
novas tecnologias nunca deixa de ser saudável – o comerciante,
no fundo, concordou. Na realidade, M dizia, o meu ramo é preferencialmente a indústria. Dá mais volume de capital e negócios.
O do senhor, senhor Jaime, demanda maior corpo-a-corpo com
cliente. Não tenho tal habilidade, faço serviço impessoal, aliás, é
Dossiê Monlevade
35
característica do meu estado que, historicamente, sempre cresceu
mais que seus pares no Brasil.
É. Agora é o proprietário quem diz. Aqui em Monlevade o
comerciante tem muito do seu sucesso ligado ao conhecimento
individual que tem do cliente, sua família, seus problemas com
o chefe na usina da Belgo. Funciono às vezes como psicólogo. É
quando ofereço materialmente algo que possa ajudá-los a sublimar carências.
– Aí que está, Jaime. Perdoa, posso chamá-lo de Jaime?
– Sim. Desde que haja troco e V.Sa. seja só Gerente, dispensando o senhor.
– É claro. Jaime!?
– Gerente!
Combinados! Então, Jaime, M disse ligeiramente encabulado,
procuro sócios locais. Quero-os ativos como o senhor é. Desculpe-me, como és. Por fim, que tenham condições de comercializar
os produtos da nossa fábrica…
–- Nossa fábrica?
– Sim. Minha. Sua. E de outros sócios selecionados aqui da
região, os quais o senhor queira indicar. Não. Não se assuste, meu,
agora, amigo Jaime. Matutei muito sobre o negócio e o modo de
lhe falar, mas sou como o escorpião que morde o sapo na travessia do rio. Incorrigível. Às vezes acabo indo direto ao assunto.
– Também gosto de assim proceder, quando se trata de assunto comercial, senhor Gerente. Só costumo fazer de outra forma quando estou contando casos em reuniões entre amigos. Ah,
peço sua licença por um minuto, minha mulher pede-me para ir
até a cozinha.
– Gostas do jeito desse Gerente, marido?
– Não sei. Quando pergunto-lhe algo, responde certo. Mas
sempre toma proveito e estica assunto fazendo perguntas. Algumas inoportunas. Estranhas.
– Estranhas? Quais?
– Se eu gostava mais do Lago Nahuel Huapi ou do Rio Petrohue. Nomes esquisitos. Pareceu-me tortura psicológica, pois pediu-me para soletrá-los. Não consegui. Disse-lhe nunca ter ouvido
36
Jairo Martins de Souza
falar sobre o assunto… Ah, perguntou-me também se eu preferia
águas doces às salgadas. Respondi-lhe doces. Esclareci-lhe que é
escolha de coração, pois não sou mineiro viajado. Nem mesmo
conheço o mar!
– Só isso?
– Não. Quando perguntei-lhe, por educação, pela família, insistiu em saber detalhes íntimos sobre nós. Se eu gostava mais da
minha filha mais nova ou da mais velha. Também se mais das meninas que dos meninos. Se mais dos pretos do que dos brancos.
Se dos que têm olhos verdes ou castanhos. Disse-lhe que, em se
tratando de filhos, um pai não vê diferenças quanto ao amor que
por eles nutre. Perguntei-lhe o porquê das perguntas. Respondeume evasivamente. Alegou conhecer rudimentos de psiquiatria.
Minhas respostas, disse-me, poderiam dar-lhe pistas sobre minha
personalidade…
– Jaime, não é tempo de servir o café?
– Ah, sim, Alice, pode levar-lhe café, a broa e o queijo. Passa
da hora. Aproveita e dê-lhe também outra caneca de água. O homem parece ter garganta seca. Agora, dê-me licença que preciso
voltar para a sala. Não é educado deixar visita sozinha…
Já coloco o café no bule. A água pego no filtro de barro. A
broa… Levo tudo num instante…
Dossiê Monlevade
37
Capítulo 5
M tem grande poder de persuasão. Monlevadê finalmente
chega a Monlevade
B
ernard Monlevade chegara a Belo Horizonte às
10h38 da manhã de 21 de Abril de 1951. Tiradentes, dia de feriado nacional. Protelara saída da Guanabara
mais uns dias depois da visita de Getúlio à capital mineira. Não
resistira aos anúncios e festejos que antecipavam com alvíssaras
a chegada do carnaval carioca. Bondes apinhados de gente, blocos caricatos, o ativo comércio no Largo da Carioca, tudo isso
foi fator de peso. Não esquecido o baile do próprio Copacabana
Palace que anunciava grandes atrações internacionais. Agentes
de atores de Hollywood anunciavam presença de seus pupilos
– vindos diretamente de Los Angeles, Califórnia – inclusive o que
protagonizou o famoso Cidadão Kane. Orson Wells, senhores, estará bem próximo a nós. Em carne e osso. Bom para Bernard.
Como hóspede contínuo do Copa, foi-lhe ofertado convite especial: vip.
O jovem abusara! Foi grande o excesso durante os folguedos.
Desconhecendo os efeitos nefastos das caipirinhas tomadas
naquela condição, gastara dias para recuperar forças, enfim, sair
da ressaca física e moral. Não fora somente ao baile do Copa:
aprendera rapidamente o caminho do Quitandinha e o embalo de
algumas passistas da já famosa Mangueirá. No mesmo período,
identificou-se com o som da regional do maestro Altamiro
Carrilho que embalava as canções dos rapazes do Trio Irakitan.
Adorara também a famosa orquestra Tabajara sob a batuta do
maestro Severino Araújo. Bailes inesquecíveis. Daí tanto atraso
38
Jairo Martins de Souza
para drenar a aflição e o plano arquitetado à beira da piscina do
Copa. Por fim, restaram duas coisas positivas: a primeira que,
ainda combalido, estivera de visita à Aliança Francesa – onde fora
comunicado, após rápida avaliação, que seu português estava
praticamente perfeito. Bastava-lhe continuar praticando com
os nativos. O esforço fora recompensado: durante o tal período
de resguardo, estivera afundado no seu apartamento de hotel
decorando falsos cognatos, conjugações irregulares e expressões
coloquiais. A segunda, e mais importante, é que um brasileiro
advogado que conhecera dissera-lhe ser na semana seguinte o
teste da OAB. Três dias de estudo foram suficientes para obter
aprovação e medalha de prata entregue com o número 96421.
Obtivera a segunda melhor nota! O título provisório ser-lhe-ia
entregue, por ser estrangeiro, em regime de urgência. Quantos
dias? Perguntara. O mais breve possível, o oficial respondera-lhe.
Estava praticamente apto para trabalhar no Brésil!
Nesse estado é que escrevera para mãe, não dizendo da fraqueza em que ainda estava, e sim se recordando da baguete com
queijo fedido que habitualmente degustavam juntos nos finais de
tarde em estabelecimentos do Quartier Latin. Escrevera, mãe, estou saindo para Belo Horizonte!
Paradoxalmente é com essa frase que voltamos ao andamento das negociações entre M e Jaime Raimundo. Estão lembrados
que há poucas linhas tinham sido interrompidas por chamado da
esposa do comerciante?
– Indústria de quê, senhor Gerente?
– Calçadista. Revolucionária! Lembra-se do que lhe disse sobre plásticos? Tenho contrato exclusivo, pessoal e intransferível
com os proprietários da Verlon Calçados, empresa de ponta do
setor. Conseguido a ferro e fogo. Tecnologia totalmente nacional. Com isso, Jaime Raimundo ligou o assunto rapidamente à
conversa rápida que tivera com o irmão Ninico e, inocentemente, voltou a questionar, indagando como resolver o problema do
cheiro horrível do calçado de plástico.
– Ah, amigo Jaime, não digo como na anedota do gambá e
do casal de portugueses…
Dossiê Monlevade
39
– Não a conheço, senhor Gerente. Aliás, peço-lhe desculpas
pela franqueza, mas pelo seu sorriso presumo ser piada de sacanagem. Não gosto de ouvi-las. Por formação familiar. Nem a
essas nem às preconceituosas. Cor. Defeito físico. Religião. Menos
ainda quanto a possível cheiro de bacalhau em parte íntima…
– Não importa, Jaime, o fato é que a menina dos olhos desse
projeto é fabricá-las não com cheiro ruim, com cheiro de petróleo
queimado. Como dizia um político, não sou daqueles que…
Não sou daqueles que diz, ou dizem (não sei bem) que o
problema reside no próprio odor do pés de alguns consumidores
brasileiros. Assim dou a mim mesmo o direito de dizer Eureka
(M aqui faz alusão à palavra grega que significa achei. Segundo
o que história diz, foi exclamação de felicidade falada por Arquimedes ao descobrir, por meio da lei do empuxo, que determinado
joalheiro roubava ouro da coroa real), pois a chave é colocar no
mercado produtos de plástico com gosto frutal.
– Frutal?
– Sim, de frutas, disse M. Com gosto de frutas. Outra tecnologia que firmei contrato único com a Verlon. Nem eles podem
usá-la. Tanto de extração e tratamento químico do suco quanto
da injeção na borracha de forma a manter-se perene. Aí reside
outro fator porque lhe oferto sociedade.
– Qual?
– Frutas. A idéia é usar matéria prima da chácara que tens
no seu sítio de Rio Piracicaba. Com seus olhos d’água e lagoas,
tem grande potencial de expansão. Água não falta. Como disse,
estudei a vida de muitas pessoas nesse Vale do Aço. Inclusive a
sua. Lucro duplo. Podemos processá-las, estou dizendo das frutas. Com isso, poderão ser colocadas nas palmilhas dos calçados
que fabricaremos! Gosto forte de jabuticaba, goiaba, laranja, mamão…
Dessas, lembro que jabuticaba é fruta que só existe no Brasil. Aliás, para facilitar a logística, a fábrica pode ser colocada lá
mesmo na área de sua propriedade. Reduziria custos de implantação. Ademais temos perto a estação da Vitória-a-Minas. Não seria
necessária a construção de braço de ramal ferroviário. De lá fica
40
Jairo Martins de Souza
fácil transportar para o sítio, digo, fábrica, os demais produtos químicos que usaremos na extrusão do calçado, e na sua integração
com a fórmula secreta pela qual sou único e exclusivo zelador. Eu
a tenho guardada a sete chaves (posteriormente encontrada em
compartimento especial, localizado entre as chapas do tapamento
lateral do cofre. Escrita em papel de altíssima resistência. Nela
traçamos vestígios de polietilenos e fenóis. Não incluiu a química
dos cítricos nem de outras frutas desprovidas de ácido acético: o
segredo que o Gerente antecipara querer usar), pois decorada na
minha própria cabeça. Na verdade não a entendo bem, pois na
escola nunca fui fundo na disciplina da química do carbono. Mas
para qualquer bom entendedor, meias-palavras bastam...
O que não bastava era o seu discurso até o momento. De fato
M seguia animado, mas falando contidamente, como era seu estilo.
Por vezes, desviava caminhos, explicando e dando detalhes sobre
isso, sobre aquilo… A obtenção de matéria prima, a produção,
como escoá-la, como expandir mercado e abrir fábricas em Cocais
e Nova Era. A tudo o negociante ouvia com atenção.
Como também dissecava cada palavra, buscando sentido
oculto que o Gerente, por acaso, ou intencionalmente, tivesse,
por trás das cortinas, mencionado. Para tanto ponderava, para
manter a função fática da linguagem, com um sim, um entendo,
um pode ser... Aprendera o artifício quando no telefone diziamlhe algo e ele respondia simplesmente ãh hã...
Foi como rapidamente concluiu seu breve julgamento, esse
homem parece ter vários lobos de Hesse dentro de si. Quem não
os tem? Tudo isso, muito antes de diminuir, aumentara o significado fundamental de sua dúvida…
No fundo, o que quer esse homem de São Paulo?
Procuro sócios, repito, M prosseguia. Pareceu ter invadido os
pensamentos do interlocutor monlevadense. Andei, Jaime, sondando com seus pares lá da Praça do Mercado. Não com os detalhes que lhe disse. Um deles de nome José Brás, o Zé Brás, mostrou-se sensibilizado com o projeto. É inclusive espírita e disse-me
conhecer bem ao senhor na alma e comportamento.
– Sei de quem falas, é amigo antigo e de confiança.
Dossiê Monlevade
41
– Então o recomendas?
– Sim. Além do que significaria mais um canal de saída para
nossos produtos.
– Nossos produtos, amigo Jaime? Gostei. Significa que estás
abraçando a idéia.
– Talvez. Saiu de dentro de mim sem perceber. Para tanto tenho que conversar com a família, não sou daqueles 0,01 por cento de desconfiados que não se casam com comunhão universal.
A partir daí, o testemunho da entrevista aparece recortado,
nada relevante, ou que tenha sido feito dessa forma a ser considerada na sequência da documentação. Isso posto, segue-se recomendação aconselhando voltarmos a seguir os passos do rapaz
francês…
O vôo de Belo Horizonte ao aeroporto internacional de Monlevade foi rápido. Vinte e cinco minutos foram suficientes para
que Bernard entendesse porque o bisavô escolhera Minas Gerais
como sítio especial para suas pesquisas geológicas de principiante.
Do alto percebia-se a vocação mineral dessas montanhas: peito
de aço, coração de ouro, diziam. Por baixo de sua pele, coisa de
há poucos anos, soube-se circular veias cheias do sangue negro
do petróleo – Monteiro Lobato previra mal somente quanto ao
estado da federação. Uma grande estrela de cinco pontas sobre a
torre de controle, algo parecido como a de Davi, anuncia chegada
dos viajantes ao novo bairro de Graal: porta de entrada à próspera cidade que tinha o nome do bisavô. O grande outdoor, assentado horizontalmente na cobertura da administração aeronáutica,
dizia com letras garrafais, benvenuto, bienvenidos, bienvenue, velkommen, welcome, willkomem... O altiplano, outrora ocupado
por pequeno aeroporto que recebia tímidos aviões teco-teco do
correio nacional, agora transformara-se em movimentada área de
padrão jurerê catarinense. Há poucos anos, coberto de arbustos
baixos na pequena pista, adequava-se para visitas furtivas de casais que, de lá, mais próximos do céu, apreciavam mirar a Lua, as
estrelas, as nebulosas, a Via Láctea e as constelações daquele belíssimo planetário chamado Monlevade. Muitos dos moradores da
celebrada e confortável área residencial da Avenida do Aeroporto
42
Jairo Martins de Souza
monlevadense cederam espaço para sede comercial de grandes
empresas do mercado petroleiro e outros ramos da riqueza mundial. Aqui estão instalados gigantes como a Petrobrás, a Vale, a
British Petroleum, a Pemex, a Texaco, a Belgo Mineira e por aí
vai. Sedes futurísticas. Inteligentes. A arquitetura do conjunto é
de ponta, baseada nos padrões asiáticos de Singapura e Kuala
Lumpur.
Nada disso fazia parte do conjunto de interesses imediatos do
rapaz. Interessava-lhe a parte histórica da cidade. Pernoitaria no
Hotel Cassino, e imediatamente visitaria com cuidados especiais
os restos da fazenda Solar construída pelo avô nos idos vinte do
século retrasado. Entraria em contato com as autoridades da cidade, aos poucos cristalizava idéia firme de ceder material de sua
volumosa bagagem para o museu que soubera existir, e que dizia
respeito aos périplos do antigo parente.
Um homem caminha de mãos dadas com a filha adolescente, a garota tem aspecto aborrecido. Um outro lê o jornal, parece
analisar as variações da bolsa de valores do Vale do Aço. Um
terceiro lê e-mails em notebook de última geração; duzentos e
cinqüenta mil transistores em um milímetro quadrado do seu moderníssimo processador Intel! Uma jovem aeromoça passa apressada e, enquanto puxa com destreza sua mala on board, come
desajeitadamente um pedaço de lingüiça que sobra nas beiradas
de um delicioso pão de queijo da região. Bernard filosofa, sorrindo, na medida em que observa essa e outras ações do cotidiano do aeroporto monlevadense. Por fim, finalizado o recolher de
seus volumes, pertences e malas, debateu-se, contrariado, com
um primeiro contratempo. A sua bagagem de roupas e utensílios
de uso imediato havia se extraviado e, pior ainda, ao ser questionado, o funcionário noviço da Aço Airlines atrapalhou-se em suas
previsões. Com o eterno problema dos controladores de vôo nacionais, dizia, nunca se sabe quando aqui chegará votre baggage.
Assim que chegar, entregâmo-la no hotel, finalizou.
Então Je voudrais parler avec monsieur Jaime Raimundô.
Agora com melhor entendimento do que se passara até o momento, fica fácil entender que o escrito em francês que citamos
Dossiê Monlevade
43
anteriormente, na página 22, fora feito pelo próprio Bernard! Na
realidade, fragmento de folha de diário de viagem, pois manter
um desses era hábito de europeus que viajavam por terras sul-americanas e que, quando não pela escrita, faziam anotações de
suas andanças por meio de gravuras. Assim fizeram Vicente Yañez
Pinzón, quando viajou pela vez primeira pelo Amazonas, Stefan
Zweig, e até mesmo Wied-Neuwied que, por meio de gravuras
de terceiros, andou desenhando o cotidiano de índios Puri. Aliás,
em especial, disso sabia o rapaz, alguns moradores dessa cidade
descendem desses silvícolas.
Dado o imprevisto, Bernard fora aconselhado por funcionário do hotel a adquirir roupas e utilidades pessoais de primeira necessidade no Bazar Monlevade. Era localizado próximo ao hotel
e tinha tudo que, de imediato, o estrangeiro pudesse precisar. O
atendimento é bom, complementara, e o senhor poderá dar uma
esticada nas pernas. A loja é logo ali! Posto a caminho, entendera
algo do idiossincrasismo da fala das pessoas da região. O ali não
era tão perto assim. Não ficara insatisfeito, afinal sentiu-se feliz
imaginando que a mãe estava ao lado conversando futilidades
sobre a vida abaixo da linha do Equador. Sentiu falta e o peito apertou-lhe um pouco a respiração. Lembrou-se também do
pai, Guillaume, do seu modo educado e afável de ser, de toda a
gentileza com que circulava entre amigos apreciadores de bom
vinho. Pedira ao filho que trouxesse detalhes sobre um brasileiro
de marca Miolo, dizem que de boa cepa, comentara! A figura e o
pedido inusitado do pai fizeram-lhe sorrir enquanto caminhava.
A vida é bela!
Convocado por balconista, o proprietário do Bazar aproximou-se de Bernard.
– Seu Jaime, há um rapaz simpático solicitando atendimento.
Parece-me querer comprar guarda-roupa completo. Acho que é
alemão!
– Pode cuidar de outro cliente, senhor caixeiro, estou habituado a tratar com os gringos da Belgo-Mineira. Isso esclarecido, cumprimentou o recém-chegado estendendo-lhe a mão. Na
verdade gostaria que outro o atendesse, não conseguia tirar da
44
Jairo Martins de Souza
cabeça o assunto que tivera com o Gerente da paulicéia – sim, a
esposa concordara com a idéia, mas...
Tudo ocorrera a bom termo. Três dos filhos menores do comerciante levariam as mercadorias adquiridas pelo rapaz até o
quarto de hotel. Gratificado pela cortesia com que fora recebido, Bernard até mesmo exagerara nas compras. Mesmo a altura
privilegiada de 1,83 m, incomum para os padrões monlevadenses daqueles dias, não fora empecilho para encontrar calças e
camisas que bem se ajustassem ao seu elegante perfil. Um par
delas ser-lhe-ia entregue no dia seguinte. A despeito de toda a
sua boa vontade, a costureira não daria conta de todos os ajustes.
Na verdade, não se limitaram a assunto de compras. O tipo físico
do comerciante brasileiro agradara ao jovem, algo do seu porte
lembrava-lhe o pai. No cardápio da conversa, incluiu comentários sobre a comida e bebida consumidas no seu país. Esse tema
agradou a ambos, e a troca de informações, à parte de alguma
dificuldade lingüística, caminhou suave como o passar de mãos
que alisam um taco de sinuca lubrificado com giz de boa procedência. Soube sobre a qualidade da cachaça mineira, tinha falado
dos vinhedos do pai, e fora aconselhado a visitar o Bar Central.
Lá, diz o comerciante, um meu parente possui barrica de caninha
temperada com jabuticaba. O jovem não entendera bem o tipo
de fruto, teve a idéia de uvas, mas prometera experimentar. Outro
dia, dissera. Outro dia.
Dossiê Monlevade
45
Capítulo 6
A mala perdida de Bernard. O reencontro com o comerciante
C
inco dias após chegada de Bern a Monlevade, finalmente a mala de roupas fora entregue no Hotel Cassino. Equivocadamente. Com rápida passada de olhos, entendera
o porquê. Tinha as mesmas características que relatara no seu baggage report complaint ou boletim de perda de bagagem, conforme escrito nas instruções da papelada. Mesma marca, Samsonite.
Mesma cor. No entanto em nome de certo Bernardo Gui! Ato
contínuo, comunicara à empresa de aviação para que a recolhesse de volta, dizia aguardar a verdadeira mala, ou indenização, de
acordo com as regras vigentes.
O tempo – por esquecimento não estivemos mencionando
esse importante fator – estivera mantendo-se firme e, dessa forma, auxiliando sobremaneira as andanças do rapaz. O mês de
abril sucedera tranquilamente às águas de março. Nada de efeito
estufa. Bons tempos aqueles em que as estações do ano podiam
ser explicadas sem temor de mal entendidos nas escolas. Por sinal, as folhas das árvores iniciavam queda sob a iluminação de
tímidas incursões solares. Bernard fora buscar informações na
prefeitura, encaminharam-no para o patrimônio histórico da cidade, daí para setor de comunicação da velha siderúrgica Belgo
Mineira. Água mais limpa é a bebida mais próxima da fonte, disseram-no. Pelo visto é ditado que as pessoas gostam nestas terras.
Por fim, sorriu, concordando e, com tal filosofia brasileira, seguira
em frente.
A carta chegara-lhe no dia anterior. Por falha do mensageiro
do hotel, não lhe fora entregue. A faixa azul e branca com a ins-
46
Jairo Martins de Souza
crição par avion identificava proceder da França. Junto ao nome
resumido do endereçado, Bernard R. Monlevade, fora grafado a
palavra urgent. O boy do hotel, supondo que o hóspede dormia
já às 20h, decidira não incomodá-lo. Foi-lhe entregue quando iniciava a rotina de tomar desjejum composto principalmente, entre
outros quitutes, de frutas características da região, com as quais
imediatamente o jovem aprendera a se deliciar. A Aço Airlines
informava, por meio de itinerário inusitado, que tinha depositado
valor de 3000 francos na sua conta de Paris. Com isso confirmava
que realmente a mala não havia sido extraviada e sim, perdida!
O aviso inicialmente tinha sido enviado para a França, justificado
pelo endereço de compra do proprietário do bilhete. De lá, fora
encaminhado pela mãe. Em folha de papel cor de rosa, anexado
à carta, ela lamentava a perda de algumas peças que, com suas
próprias mãos, confeccionara em momentos de lazer. Traziam assinadas, como griffe, o amor que dedicava ao filho traduzido por
singelo Be, bordado discretamente em cantinho escolhido das peças. Bernard pensou, após alguns minutos de reflexão e abrupta
tristeza, vou ter que voltar à loja daquele atencioso senhor.
O proprietário está no escritório em reunião com um Gerente
de São Paulo, informou-lhe o caixeiro atendente. – Oui. E demora? – Penso que não. Não é de demorar em conversas quando há
cliente esperando. Ademais o outro sócio da fábrica de calçados
de plástico já saiu faz tempo. Se o senhor francês não se importar,
posso eu mesmo iniciar atendimento. Aliás, já certa ocasião iniciei
mes premier pas dans le français (a dar meus primeiros passos no
estudo do francês). Então, sendo mais objetivo, pergunto, posso
ajudá-lo? – Sim, claro.
O outro sócio... O leitor também deve ter percebido que o paulista conseguira mais um patrocinador para a sociedade fabril que
intentava. O amigo Zé Brás sucumbira facilmente à arguta conversação do empresário. A despeito de sobre isso nada se citar na ata
de formação da sociedade, enfim, cada coisa a seu devido tempo.
Ça va, distraidamente Bernard assim cumprimentou o
proprietário da loja, que vinha, em acelerado passo, a ele se
dirigindo. De longe fitaram-se contentes pelo reencontro. Como
Dossiê Monlevade
47
vai? O moço corrigiu sua fala, um pouco envergonhado pelo
deslize do Ça va inicial. É que o jeito de caminhar daquele senhor
lembrava-lhe, já dissemos, pessoas de seu círculo familiar em
Guéret.
Ora, que prazer, senhor Bernardo! Disse-lhe o comerciante,
aportuguesando o nome do rapaz. – Porr favorr, seu Jaime, podes
retirar o senhor. Melhor chamar-me somente pelo nome. – Sim,
faço isso com mais prazer ainda. Decerto soube que sua mala não
mais irá chegar. As notícias aqui, mesmo com o crescimento da
cidade, circulam rápido. Não se preocupe, no meu Bazar tenho de
tudo. Aliás, pode deixar, senhor balconista, deixe-me prosseguir
atendendo pessoalmente esse freguês que, para mim, é especial.
Fico feliz que tenhas aqui retornado. Poderias ter ido ao moderno bairro de Carneirinhos. Lá todos os grandes arranha-céus
são totalmente informatizados e abrem-se lojas de griffes famosas
como se estouram pipocas. Fico feliz que…
A simpatia do primeiro encontro evoluiu. Esse senhor é um
homem confiável, pensou o jovem advogado francês à medida
que a conversa tinha andamento. Esse rapaz é de boa família, é
o que o proprietário advogava por meio de sorrisos e gentilezas.
Tornaram-se ainda mais chegados. No final, Bern entregou-lhe
um reluzente cartão de visitas, retirado de pacote que lhe viera
endereçado do Rio de Janeiro: Bernard Raymond Monlevade –
Graduado pela Sorbonne – Paris. No canto, discretamente, via-se
OAB 96421.
Enquanto isso, já de volta ao hotel em que se encontrava
alojado há dias, M esfregava as mãos de satisfação. Negociara
bem os termos do contrato com o pessoal da cidade. Inclusive
que a cobertura das cotas contratuais deveria ser quitada em dinheiro vivo pelos demais. Fizera várias viagens a Rio Piracicaba
tomando partido do metrô recentemente inaugurado e que passa
integralmente sob leito do Piracicaba. Obra sensacional, planejada simultaneamente à implantação de ilhas e praias artificiais:
a administração regional antecipa-se assim a obras futuras que
viriam ocorrer nas paradisíacas áreas dos reis árabes de Dubai. O
turismo, segmento que, apesar do potencial histórico da cidade,
48
Jairo Martins de Souza
era pouquíssimo explorado, tornara-se atividade de grande valor
econômico para o município. Por exemplo, o Solar Monlevade, o
tímido Cemitério dos Escravos e a memória da antiga Companhia
Siderúrgica Mineira são agora atrações celebradas internacionalmente. Nos dias festivos, multiplicava-se a população flutuante.
Mas, especificamente, quanto ao metrô que dizíamos, obra equivalente no mundo ocidental, senhores, tem-se somente o túnel
que cruza o canal da Mancha. O famoso English Channel. Os
trens de alta velocidade que o cruzavam eram, voltamos a dizer
do metrô monlevadense, de grande valia para deslocamento do
contingente de trabalhadores vindos de todo o país e que, aqui, já
se encontravam para atender à recente demanda da indústria petrolífera e outras. Nessas incursões, M estudara todas as variáveis,
o planejamento, a programação, a execução, a avaliação, enfim,
tudo que poderia vir a afetar a implantação da fábrica monlevadense de calçados à base do ouro negro e, cá está de novo a
grande inovação, suco de frutas alimentado por um dos sócios
locais. Não se esquecera de incluir análise detalhada de pontos
que, aos outros dois sócios, certamente passariam despercebidos.
Tomaria partido dessas vantagens. São mineiros crédulos. Parecem-me modelos inconscientes do selvagem de Rousseau, dissera
por telefone a um velho amigo de São Paulo.
Com essas palavras deve-se tomar em conta que algo estranho fora introduzido nas anotações encontradas no sítio de Rio
Piracicaba.
Dossiê Monlevade
–
B
49
Capítulo 7
Mulheres
ern, querido! Como vão as coisas aí no
Brésil? Espero que você já tenha matado
parte de curiosidade que tinhas quanto ao garimpo das coisas
do seu bisavô. Seu pai chegou ontem de Guéret e iniciou estudos
para revitalização das plantações de uva Carmenère. Agendou
encontro com especialistas latianoamericanos. Temos que
quebrar lanças, filho! Agora nós, franceses, que mostramos ao
mundo como produzir bons vinhos, estamos sendo torpedeados
comercialmente pelos Andes chilenos! Ah, mudando de assunto,
como é a política por aí? Esse governador aí de Minas, o Juscelino,
é mais um fisiologista? Um amigo da embaixada daqui, um
brasileiro, disse-me que para ter antipatia desse futuro candidato
a presidente, tem-se que ficar a cerca de 20 quilômetros do seu
sorriso. No mínimo! Gostou do chiste?
Torço por esse povo, Bern. Faz-me lembrar tempo de adolescente em que, surpreendida, li que alguns dos seus índios vieram
para cá servir de bufões na corte de Luís XVI...
Encontrei-me acidentalmente com a Deneuve, ontem, no
Champs Eliseé. Estava linda e perguntou por você. Reparei, olhar
de mãe, que seus olhos brilharam de forma diferente. Mas parecia triste de um modo geral. Lembrou-se que tens a gargalhada
mais gostosa da Sorbonne. Por fim, quando Bern retorna? Foi o
que, de essencial, perguntou-me por meio de frases disfarçadas.
Não sou tola quanto ao sentimento que ela claramente cultiva em
relação a você, no entanto não soube respondê-la e repasso agradecida a indagação. Quando voltas, Bern? Mamãe sente falta de
50
Jairo Martins de Souza
son garçon – sente falta do seu garoto. Beijos (em tempo, querido,
parabéns pela aceitação do seu diploma!).
Não é que Bern (como a ele chamava a mãe) não sentisse
falta de contato com o sexo oposto. Em especial da jovem Deneuve que a mãe mencionara. O fato é que estivera totalmente
encantado com tudo que a ele acontecera desde a belíssima visão
do Cristo Redentor quando chegara à Baía de Guanabara. A Deneuve tinha razão, encantara a muitas com sua risada que saía
espontaneamente de um coração que também sorri. Tinha tido
alguns pequenos envolvimentos. Deles já dei breve conhecimento
ao leitor: basta que seja rapidamente revisado um dos envelopes
passados destes escritos. Não mais sei qual, de cor.
Se bem que empurradas por súbita expansão, certas regiões
de Monlevade teimavam em se manter inalteradas. Ao que
tudo indica, nunca irão mudar. Uma delas é a chamada Vila
Tanque. Para tanto, a opção dada aos atuais moradores, alguns
nouveaux riches, foi de nada alterar o aspecto externo das velhas
edificações. Com isso, a riqueza e a ostentação do petróleo e
da siderurgia da região espelhavam-se verdadeiramente nos
seus interiores: é verdade que, muitas vezes, várias delas eram
interligadas de forma que o conjunto de muitas cabia registro
de posse a um único dono e morador. Bern gostara. Na Europa
procede-se assim. Foi o que pensou, enquanto passeava a pé
pelas ruas estreitas da tal Vila Tanque. Fazia caminhada matinal.
Nela, o Sol seguia ameno sua faina diária: parecia respeitar o
exercício do rapaz. Não. Não, senhor! Hoje não é dia para se
espalhar calor e desconforto! Assim, sem suor que incomode,
e com seu porte esguio e elegante, Bern destacava-se, sem
fazer disso um privilégio, dentre as pessoas que iam e vinham
por aquelas ruas estreitas. Era, sem dúvida alguma, um moço
bonito. Não. Não que fosse perfeito. Não dizem os árabes que a
beleza reside na imperfeição? É por isso que nos tapetes persas
aparecem defeitos de costura. Intencionais!
Ah, a propósito – agora se trata de opinião pessoal – toda e
qualquer pequena discussão sobre beleza e arte deveria merecer
tratado atualizado por parte de gente com a clareza de um Tosltoi.
Dossiê Monlevade
51
Afirmo isso sem hesitar, pois recentemente algo tem me incomodado sobre o tema. Assim, não vacilo em escrever que o grande
escritor russo seguramente criticaria os extremos a que, nos dias
de hoje, o conceito de belo é imposto à nossa sociedade. Por
exemplo, uma pinta preta em uma banana não pode condená-la
para compra. Uma pequenina mancha em uma calça bonita não
pode ter o poder de destruí-la para o uso. Uma minúscula gota
de azeite que cai sobre uma blusa não pode ter a força de atirála para a lata de lixo. Uma discreta mancha de vinho em roupa
clara… Pequenas celulites nas pernas de mulher não podem ter o
poder de destruí-las.
A moça já vira Bern conversando com o proprietário do Bazar. Ela e a família eram fregueses habituais. Na ocasião, com
olhos e ouvidos atentos de mulher, escutara algo sobre extravio
de bagagem no aeroporto internacional de Monlevade. Ah, essa
Air Aço… Soubera assim ser o rapaz um francês, não que afirmado literalmente a Jaime Raimundo, mas sim pelo sotaque inconfundível que conhecia bem. Ainda com lembranças recentes do
intercâmbio estudantil que fizera naquele país, sabia com certeza
não se tratar de um parisiense pela simplicidade, quase ingênua,
com que esclarecia outras indagações do seu interlocutor. Ah, que
gracinha de garçon (rapaz)! Foi o que, sorrindo, faceira, dissera
para a companheira que estava ao lado. Ambas eram filhas de
empresários da nova burguesia da cidade que florescia sob os
auspícios da British Petroleum, da Petrobrás, da Standard Oil...
Contudo, enquanto começo a me dispersar falando sobre empresas de realce na economia mundial, quem assume comando é
Marie que, novamente, observa o jovem que passa, e vai passando… Ah, que pena, já passou do seu ângulo de visão. Afoitamente, a mocinha disparou pelas amplas dependências intermediárias
da casa, alcançando outra janela de observação. Buscava localizá-lo novamente: assim que o viu já dobrava a esquina. Ele não
teve tempo para entender o porquê de um ordinário fiu, fiu que
a moça, com dois dedos enganchados na boca, fizera ecoar pelos
ares. No entanto, a idéia de Marie era avisar-lhe: de alguma forma
vou achá-lo nessa grande Monlevade!
52
Jairo Martins de Souza
Não demorou! Decidida, passou a freqüentar o Bazar mais
amiúde. Soubera por terceiros que o jovem francês eventualmente por lá aparecia. O informante dissera que Bern fazia gosto em
trocar algumas idéias com o proprietário. Sua conversa simples e
seus causos, contados com estilo inerente aos mineiros, agradavam-lhe e faziam-lhe feliz. Bern, por sua vez, dava-lhe de troco
suas risadas e seu bom humor: percebia que levava vida nova ao
dia-a-dia e à rotina do amigo Jaime Raimundo.
Assim ela o viu caminhando na Rua da Favela. Reparara que
vestia camisa de mangas curtas. O tecido, aparentemente leve,
simulava pele de onça pintada: fora cortesia de Jaime Raimundo
quando com ele estivera na primeira oportunidade. Carregava
sobre os ombros uma japona azul e parecia ter direção certa do
Bazar…
– Sim, sou nova balconista, vous voulez… (você quer) que o
atenda, dissera sorridente. Fizera a graça de forma muito feminina, e antecipara-se a outras atendentes que, ansiosas, já corriam
para cortejar o rapaz.
Dossiê Monlevade
53
Capítulo 8
Fica assim fundada a Verlon Fruit Shoe – a primeira
fábrica de calçados multi-frutados do mundo
A
reunião da sociedade estava quase nos seus últimos estertores. Então fico responsável legal até o
limite das cotas que aqui subscrevo?
– Sim, M respondeu prontamente ao Brás, que soubera antecipadamente adepto ao kardecismo.
– Sendo assim, amigo Gerente, assino esse contrato societário sem nenhuma outra questão, pois, já ontem, estive consultando, e obtive aprovação de alguns amigos desencarnados. A própria presença do proprietário do Bazar Monlevade, como outro
sócio, disseram-me, mostra, em termos práticos, a seriedade do
empreendimento. Se bem que, confesso, estranharam um pouco
o cerne do produto. Sapato de plástico? Exclusivamente frutado?
Fosse produto destinado à crianças entenderiam melhor, enfim,
estão em outro mundo.
– Ora, sócio, quem respondeu-lhe foi M, algumas dessas almas penadas são do tempo que aqui se chamava Arraial do São
Miguel. Não conseguem, pobres coitados, absorver o dinamismo
com que, hoje, a grande Monlevade está possuída.
– E você? Agora M dirigia-se a Jaime Raimundo.
– Sou evangélico, senhor Gerente, orei também ontem com
os joelhos dobrados e apoiados sobre sementes de milho e bagos de feijão. Buscava, pela dor, identificar-me com um mínimo
que padeceu Nosso Senhor. De fato naquele momento queria ser
tomado como seu filho. Sequer sou crente Maranata, mas a luz
dos anjos que me orientaram, disse-me que teria alguns proble-
54
Jairo Martins de Souza
mas, contudo, asseverando, aprende-se muito mais no sacrifício
do que no privilégio. Mais no escuro do que no claro do centro
do Sol. Com tal parecer, resta-me apenas assinar perguntando o
que ainda se encontra em aberto. Pergunto então, quem deverá
ser o diretor que tocará com maior responsabilidade e trabalho o
dia-a-dia da nossa fábrica?
– Sou candidato e não abro mão! Disse-lhe M, mas dirigindo
olhar significativo para o segundo sócio.
– Estás eleito, responderam-lhe os dois amigos. Entenderam
o que o Gerente queria. Ademais tinham outras obrigações com
seus próprios comércios.
Agradeço a confiança em mim depositada! Foi frase única
com que o Gerente paulista imediatamente retrucou com olhar
ligeiramente aborrecido. Estranhamente, permaneceu nesse estado, parece-me que observando algo escrito em certa lauda do
contrato já aceito pelos sócios. É claro, ainda por ser assinado, ser
levado ao cartório, por fim, ainda carente de algumas formalidades legais.
Uma frase solitária, anotada pelo próprio, esclarece o estado
de espírito do qual M fora acometido. O preciso de outro diretor
gerente aparece no canto de folha já velha de cópia do contrato
original, catalogada com o número xyz. Detalhe tolo, exigências
do Direito Civil, mas a lei do tal contrato que curiosamente releio,
proibia-lhe tocar as finanças da Verlon sozinho!
Os outros dois sócios entreolharam-se. Cara. Coroa. Brás já
dissera ao amigo que, no mundo, cada um deve salvar-se por si
mesmo, aprimorando-se em seguidas vidas e mortes. A teoria da
reencarnação em que acreditava. O martírio de Jesus, dizia, não
é suficiente para pagar conhecido pecado mortal… No final, definiu-se que o proprietário do Bazar seria o outro sócio-gerente.
Nada que se referisse à Verlon Fruit Shoe poderia ser concretizado
sem sua vista e assinatura. Fim da reunião. Nada anotado, tudo
decidido. Negócio a fio de bigode. Ainda amanhã encaminho o
que tratamos para a Junta Comercial. M ficara animado e avisara
que iria a bancos, visitaria clientes em potencial, sairia à caça de
lucros que, certamente, dissera, não demorariam a vir.
Dossiê Monlevade
55
Projeto, construção civil e por aí vai, tudo sucedia de acordo com modernas técnicas de planejamento. M mostrava toda
a sua capacidade paulista de desembolso. Outdoors gigantescos
assombravam a cidade desde o aeroporto até as mais remotas
ruas e avenidas. Documentários televisivos exibiam passo a passo
o andamento das obras e adequações no sítio do Córrego de São
Benedito. Caminhe com as estrelas! Use sandálias da Verlon Fruit
Shoe. Cheiro de homem, limão; de mulher, jabuticaba...
Dossiê Monlevade
E
57
Capítulo 9
Onde se diz da inauguração
stoque não é o nosso negócio! Foram as primeiras
palavras que M proferiu logo de início no discurso
inaugural da Fruit Shoe. Estavam presentes o presidente da República, o governador, o prefeito, vereadores, convidados, sindicalistas e funcionários. Na segunda fila os dois outros sócios entreolharam-se sorridentes. O homem é um empreendedor! Apoiado por
essas e aquelas palavras de impacto, M prosseguiu sua fala dizendo que o sistema fabril da Shoe funcionaria por bateladas. Como
uma máquina de lavar, explicou. Colocam-se roupas, o sabão, o
amaciante, a água. Deixa-se de molho, bate-se a roupa… Assim
funcionará nossa indústria, desde a eliminação de formigas, a coleta dos frutos… a chegada dos fenóis… a mistura com os sumos
colhidos na chácara, a extrusão... Pronto!
Daí os revolucionários calçados seguem para todo mercado
mundial. Isso não aconteceu com as ordinárias havaianas? Para tanto, acordos e estudos de logística já foram firmados com a divisão
cargo da Aço Airlines. É claro, tendo como base de sustentação o
capital humano da Fruit a ser treinado eficazmente com técnicas especiais de decisão. Por exemplo, com a prática do arvorismo nos andes chilenos… Ponho-me a favor de ajuda a países como a Bolívia
de Morales, aplausos, mas não a ideário de revolução bolivariana!
Na realidade, tudo que exponho aqui, fragmentado, resume
o que M concluiu sob aplausos entusiasmados da platéia presente
ao auditório do centro ecológico que o arquiteto não esquecera
de localizar bem no meio de árvores frutíferas e ornamentais. Seguiu-se coquetel com exibição de filme institucional e apresenta-
58
Jairo Martins de Souza
ção em Power Point, ambas recheadas de insinuações e gráficos
em formato de pizza. Sim, a Fruit Shoe preocupa-se mais com o
meio-ambiente do que consigo mesma. Com isso quer se integrar
ao programa mundial, obter créditos de carbono, enfim, a economia mundial deve continuar se desenvolvendo, mas mantendo-se
fiel não somente ao protocolo de Kyoto, aplausos, como também
a outros mais que seguramente estão por vir.
JK, o governador, levantou-se e cumpriu o papel que todo
político faz. Mentiu deslavadamente. Chamou M de amigo. Disse poder chamá-lo assim porque dele se lembrava em encontros
realizados em Monlevade, aplausos, e em capitais do Mercosul e
Europa, mais aplausos, e assim foi seguindo e falando muito mais
do que o esperado.
Não foi tudo. Na seqüência falou o chefe do serviço médico, o engenheiro gerente da manutenção, o padre... o sindicalista... o general. Todos exageraram nos discursos, enaltecendo,
com superlativos e metáforas, o excepcional progresso do país e
a grandeza portentosa do faraônico governador. No fundo, sua
mão firme resolveria qualquer situação. Já se levantando, Jaime
Raimundo sussurrou algo para o Brás. Brás, M não cuidou adequadamente do protocolo do evento: faltou falar quem vai fazer
a capina do pomar da Verlon Fruit Shoe. Faltou o homem do
roçado, Brás. Ele, com sua enxada, é quem de fato vai carregar a
base da Verlon nas costas!
Ainda não fora realmente encerrada a solenidade, pois, na
saída, o burburinho da educada audiência abruptamente cessou.
Alguém, ansiosamente, tomando posse de microfone, pedira silêncio, chiiiiii… Senhoras e senhores, ouçam, há fecho de ouro
para essa celebração!
Ouçâmo-lo. Não ao homem! Mas a belíssimo passarinho que,
pousado no caixilho de uma das janelas envidraçadas que davam
para o esplendor da natureza do tal sítio, cantava repetidamente
estrofes do hino nacional. Um raro curió cantador! O proprietário
orgulhoso informa que é morador da Vila Tanque e seu pássaro
não está ali para venda. Não tem preço. É de estimação. Essa
segunda conferência foi ainda melhor que a primeira, exclamou
uma emocionada expectadora que não parava de pedir bis!, bis!
Dossiê Monlevade
59
Capítulo 10
Há algo de estranho no reino da Dinamarca. M engendra
planos. Onde se diz do doc x
A
migo, relatar o conteúdo de um dossiê não é tarefa
difícil para quem escreve: principalmente quando
se tem em mãos documentos confiáveis como os que tenho analisado. Façamos contas. Gosto de fazê-las ainda que por mero exercício
de aritmética simples: mania de engenheiro. E de escritor. Todos, se
não fazem, pensam fazer o mesmo antes de iniciar um livro! Então,
se escrevo uma página por dia, em um mês comercial, tenho 30. Em
12, tenho 360. Arredondando, em um simples ano (agora de acordo
com o velho ajuste de calendário proposto por Gregório XIII), tenho
365 delas. Pronto. Tenho um livro como esse Dossiê que tem menos
que isso. A idade para começar? Não se incomode. Quando iniciei
meu primeiro, tinha 57. Que isso sirva de incentivo para quem pensa em escrever um deles. Mais ainda para quem já tem filhos e que,
por acaso, tenha plantado uma árvore. É o meu caso!
São Paulo, julho de 1952. Não sou afetado por problemas
psicológicos de nenhuma natureza, senhor Diretor, disse M ao
Presidente de empréstimos do Banco de la Nación.
– Percebo e não se aborreça com isso. Tens em mim um companheiro. Na verdade, com dinheiro sobrando no mercado, tenho
liberado empréstimo a quem precisa, sem maiores questionamentos. Com JK à frente, ninguém segura as Geraes. Nem mesmo verifico a ficha modelo 18, o certificado de situação militar, se votou
na última eleição, ou se o solicitante tem prontuário cadastrado
no DOPS. Além do que, vejo o seu negócio, senhor M, como de
grande visão empresarial, de futuro…
60
Jairo Martins de Souza
– É verdade, Diretor, a fórmula do Fruit Shoe pode valer a
minha fábrica a peso de ouro puro do forte Knox.
– Sim, M, tudo isso é muito bom… para você e para mim,
foi o que maliciosamente acrescentou o homem que gerenciava
andamento de dinheiro coletado em impostos e contribuições. No
entanto, há pequeno contratempo legal. Repare que, para liberação de linha de crédito, preciso do de acordo do tal Raimundo de
Monlevade que aqui é citado nos termos contratuais.
– Não é que tenha me esquecido dessa formalidade, Diretor.
Juro pelo sangue de Jesus que o homem anda muito ocupado
com os insumos frutíferos da Shoe. Também não é de dar importância a tais detalhes da estrutura da empresa. Não é de fato
empresário, e sim, bom capataz para tocar os trabalhos de base.
Não tenho dúvidas que, a despeito de absurdo legal, baseado
em minha ambição pessoal, devo assinar por mim e por ele. Na
Fruit posso parodiar Luís XIV e dizer que lá o reino sou eu. Não
se amofine. Lá valho por dois. Lá valho por todos.
Estamos cá discutindo vultoso cabedal, prosseguiu M, ligeiramente transtornado, e ele lá a jogar formicida na nossa chácara, é
claro, posso ofertar-lhe garantias adicionais.
– Carta de Fiança bancária? Agora quem diz é o diretor avançando o dorso do corpo ligeiramente na direção do interlocutor.
– Melhor ainda, promissória registrada em cartório e por mim
mesmo assinada.
– Não vale muito, M. Isso também não se permite no contrato
firmado com a junta comercial, as leis civis, os outros sócios, as
esposas, os filhos, o mundo jurídico e os outros prejudicados que
sei existir.
Bem, sinto passar da hora de tomar riscos, pensou M (curiosamente lembrando-se do sucesso de Elvis Presley que gostava
de ouvir em sua radiola Telefunken, o it´s now or never. Não era
bom em inglês, mas soubera significar algo como é agora ou nunca). Por fim, com os acordes e a voz do rei do rock ainda ecoando
na cabeça, – e ainda não sabendo exatamente se estava colocando a carruagem na frente dos bois –, terminou por arrematar
irrefletidamente ao banqueiro: sim. Entendo bem. Mas se essa
Dossiê Monlevade
61
promissória não lhe serve do jeito que lhe oferto, que tal remessa
de dólares para conta de algum seu preposto? Avermelhou-se.
O motivo? Teve dúvidas se fora bem entendido. Então um tanto
quanto embaralhado, nem mesmo deu tempo de resposta ao interlocutor e, sem perceber, prosseguiu falando como se estivesse
mantendo conversação telefônica. O outro permanecia calado,
porém atento a todos os movimentos corporais do empresário.
Essa estratégia funciona bem tanto para corruptos, quanto para
os corruptores. M fazia o mesmo e deu continuidade ao seu trabalho nefasto. Aliás, senhor Diretor de banco, tenho consciência
que não tens chácara e funcionários como a Fruit Shoe tem, mas,
sem ofensa, posso substituir o termo preposto que anteriormente
sugeri por laranja? Digo assim, direto, para que tudo fique bem
claro, enfim, antes que respondas, adianto que se trata de breve
correlação com nossa indústria. Questão de coerência. Nossos
produtos, como sabes, são frutados.
– Ah, sim, finalmente falaste a língua aqui praticada desde a
fundação deste banco por Mauá, disse, satisfeito, o Superintendente da instituição. Ah, também sou adepto do evangelismo de
resultados. Fiquei sensibilizado com o juramento sobre a bíblia
e com o pagamento ofertado que aceitei, mas isso não dispensa
a promissória a qual me referi. Faz parte do ritual. Não lhe trará
aflição, servirá apenas como necessário enfeite à tramitação que
farei o mais rápido possível. Para tanto, amigo M, preciso impreterivelmente de um outro signatário para a promissória.
– Pedirei ao meu gerente de entulhos que comigo a subscreva, senhor presidente. Com esse negócio fechado a quatro paredes, agradeço-lhe, e não se preocupe. O perfil do empréstimo
é curto. Não deverá trazer inquietação. Estou seguro que deves
estar contando com o pessoal de Monlevade!
Em tempo, faço reparo (sucinto) em relação ao que escrevi
no limiar desse capítulo. Não. A arte da escrita não é tão fácil
como disse. Há complicadores. Por exemplo, nos escritos do cofre
consta que o conjunto de papéis da liberação de crédito do de La
Nación para M (do qual acabamos de assistir negociação), passa
62
Jairo Martins de Souza
a ser chamado de doc x. Por que x? Como não esclarecido, é pergunta que me arrisco a responder. Aí que está! Na álgebra que o
muçulmano Averrois espalhou pelo mundo, x é letra que designa
o desconhecido. O das equações de primeiro grau. Estão lembrados dos tempos idos do ginásio?
Bem, assim como ocorreu com a chave e o segredo do cofre,
o importante é que fica clara a idéia que o acordo nunca poderia
vir a público!
Dossiê Monlevade
J
63
Capítulo 11
Monlevade, cidade de sonhos
á de volta a São Paulo por dois dias, e a estada de
M em Monlevade ainda parecia-lhe um sonho. O
vôo da Aço atrasara quando de escala inesperada em Belo Horizonte: segundo a companhia houve algum problema com o Airbus A 380. Portanto, chegara ao Rio uma hora mais tarde do que
havia planejado. Perdera a conexão para São Paulo, e teve que
esperar mais três horas na cidade, mas tudo foi ok. Por dentro,
agradecia toda generosidade e delicadeza que o público teve com
a sua pessoa; graças a tudo isso sua estada em Minas fora única.
Na ocasião, sacara algumas fotos, gostava das máquinas old
style. Nada de digitalizações. Com satisfação constatara que ficaram excelentes, principalmente nas que figurava na parte central
do tablado, chefiando o painel comemorativo da inauguração da
Fruit. Lamentava a ausência da mulher. Ela, ao vê-las, mostrouse insatisfeita por não ter lá estado. Talvez outra ocasião, dissera
não muito à vontade. Julgou os demais sócios de forma positiva,
a despeito de ambos terem aspecto um tanto quanto inocente. A
conclusão fora, sem nenhuma margem de erro, bastante apropriada. O fato era absolutamente verdadeiro.
Estivera pensando muito sobre eles desde que retornara para
alguns dias de recreação na paulicéia. Dias produtivos. No primeiro deles fizera acordo de sonhos com o diretor do banco De
La Nación. No segundo, passeara pela manhã com a família no
Simba Safári; à tarde, fora ao Pacaembu ver o Santos de Pelé
contra o Palmeiras de Leivinha e Ademir da Guia; à noite, complementara o dia acompanhando a mulher a luxuoso jantar de
64
Jairo Martins de Souza
gala no conceituado Famiglia Mancini. Enfim, voltando ao assunto sócios, M os tinha como bastante diferentes. O dono do Bazar
era um pouco mais novo e mais ativo. No entanto, era considerado, estou dizendo sob o ponto de vista de M, facilmente maleável.
A despeito disso, o que não podia era avaliar se o homem usava
Quina Petróleo ou brilhantina Coty nos cabelos. M era curioso
quanto a esse tipo de futilidade. O fato é que os cabelos do comerciante estavam sempre bem penteados. Sujeito sensível. Não
era difícil de constatar que, ao participar de velórios, ciente de
que facilmente sucumbia ao choro, procurava manter-se discretamente afastado dos parentes do morto. Por outro lado, o Zé Brás,
como dissemos, com diferença de idade pouco significativa, era
osso mais duro de roer. Contrariava aforismo que M gostava de
lembrar: mesmos homens; mesmas gerações. Não se preocupava
com a morte: estamos aqui somente de passagem, o Brás dizia,
nossa residência fixa está ainda por vir. No dia-a-dia usava roupa de casemira e chapéu Ramenzoni. Sujeito conservador. Daí
preocupação que assombrava o imaginário de M. Aquele senhor
manifestava-se pouco. M não gostava de gente assim, teria que
mantê-lo mais afastado do lado financeiro da Fruit. Pode ser que
fosse um daqueles que não se abrem, porque sabem exatamente o que querem. Daqueles, o Gerente refletiu, que pensam e
quando chegam a uma decisão, chegam-na explosivamente sem
consultar ninguém. Esse ninguém poderia ser ele mesmo, M, o
único e verdadeiro idealizador e diretor da sociedade, foi o que,
aborrecido, entendeu. Quanto a essa nefasta possibilidade, o que
poderia fazer? Decerto poderia ser proativo, antecipando-se a
qualquer preocupação que pudesse estar assomando na cabeça
do Brás. Tenho mais é que pensar o modo de lidar com isso…
Outro ponto é que pensava Monlevade somente como uma versão menos barulhenta de São Paulo e do Rio de Janeiro. Constatara ser muito mais que isso. Graças a Deus, iria morar em lugar
bastante espalhado às margens tranqüilas do Piracicaba, e com
índice de criminalidade baixíssimo. Há algo de mágico naquela
cidade. Não espero a hora de voltar!
Dossiê Monlevade
65
Capítulo 12
Bern informa à irmã que pretende ficar um pouco mais que
o previsto no Brésil
P
aris, 28.08.51. Mon cher Bern, je rencontrais…
encontrei-me com sua mãe… Os anos da escola se
passaram, mas, infantilmente, ao dizer de você, retrocedo até antes
daquele tempo feliz. De fato sinto-me quase um bebê quando me
recordo do seu riso espalhado e incontido. Podes imaginar, Bern,
a alegria desses pequeninos quando alguém querido, brincando,
ameaça-lhe fazer cócegas no corpo? Ou então, vá lá, dando-lhe
colher de comida imitando os movimentos de um aviãozinho. É
assim que me sinto agora! Quanta felicidade você já trouxe para
tantos outros com tal ato de genuíno amor! És contagiante. Traz-me sentimento tão puro que, pensando nisso, chego a chorar de
satisfação. Continuas assim aí no Brésil? Com a alma leve, escrevo-lhe… encontrei-me recentemente com Liviah quando de passagem por Guéret… Por fim, quando retornas é a pergunta que fiz
à sua mãe. Quando retornas é a pergunta que faço para você! De
sua, K. Deneuve. PS: seu bisavô é mesmo importante aí?
Sim. Na falta imediata do jovem advogado, sou eu, o copista
destas notas, quem responde à garota francesa. Por motivo simples. A dita carta fora amorosamente escrita de próprio punho
pela moça e sujeita à morosidade dos Correios e Telégrafos. Oui,
mademoiselle Deneuve, Bern aqui continua do jeito que afirmaste antes de perguntar!
Foi o que reparou a bela jovem que o observara caminhando,
em capítulo anterior, pelas ruas do bairro burguês da Vila Tanque. Acometeu-lhe novamente rápido frio no estômago e brusca
66
Jairo Martins de Souza
aceleração do batimento do músculo cardíaco. Ah, o amor! Um
belíssimo sorriso aflorou-lhe no rosto. Instantaneamente sabia ter
sido alvejada com flechada dupla de Eros e Cupido. No intercâmbio que fizera em Paris, estudara povos antigos e aprendera que
esses dois bebês doidinhos, um grego, o outro romano, no fundo
dão fundamento às mesmas coisas: a paixão, o amor, o namoro,
o casamento, filhos…
Com isso lembrara trecho de livro recente, o qual havia comprado. Um memorial. Por acaso. Alguns exemplares padeciam esquecidos em canto de estante aguardando catalogação. Mas Marie era uma ratazana de livraria e descobrira-lhes durante ronda
pelas bibliotecas de Monlevade. A moça não estudara literatura,
mas amava ler. Aliás, disseram-lhe certa ocasião que quem ama
a arte não a estuda. Simplesmente a usufrui. Passara os olhos
pela obra. Capa e contracapa bonitas. Sentira atração imediata. Folheara algumas de suas páginas: miolo de papel reciclado.
Bom! Sinal de compromisso com o meio-ambiente. Cheirou-as.
Queijo de qualidade… Dizia algo sobre a Vila Tanque e sobre a
cultura local. No fundo, um livro de família. Ah, aí é que entra
todo o interesse da moça. Família. A moça devaneia. Ela, como
toda mulher, – destino da criação –, sonha em formar sua própria.
Por fim, os minutos passavam e a jovem prosseguia sorrindo com
suas idéias sem pé nem cabeça. Todas lembravam-lhe Bern!
Então ainda sonhando acordada, lembrou-se das gentilezas
por ele demonstradas quando estiveram juntos no Bazar. Inteligente, aprendera ser bom olhar para a floresta e não para a árvore, percebera que teria que agir com cautela. Lembrou angustiada
que o advogado provocava muitos olhares. Lá mesmo decidiu-se:
vou tomar atitude de mulher!
Logo na entrada do restaurante do Hotel Cassino, vira o jovem que, como de costume, vestia traje social completo. Paletó
azul. Corte italiano. Risca de giz. Camisa branca. Gravata vermelha. Sapato Samello. Quanta elegância! Repara, mantém tal
postura até mesmo ao levar à boca a xícara de café que, com a
manhã fria, ardia vapor à vista remota. Trata-se mesmo de um
legítimo Monlevadê, disse feliz para si mesma.
Dossiê Monlevade
67
Lembra-se de mim? – Sim, claro, você é Marie, Mariah, a
moça da Vila Tanquê! – Sim, sou Maria… Pois é, estava passando
pela porta do hotel e…
Ela conseguiu! Inclusive, com isso, provocar nosso retorno à
Vila Tanque onde podemos observar Bern caminhando distraído.
Soubera que a sua antiga urbanização fora tombada em nome da
memória local. Assim, as ruas diametrais do círculo ovalado da
Rua do Contorno não haviam sofrido alterações desde sua construção. Extremamente estreitas e impossíveis de estacionar. Como
as de alguns quarteirões do centro da velha Paris. É o porquê de
Bern ser pego caminhando e assobiando ton meilleur ami! Da
Françoise Hardy.
A entrada da noite trazia para a vila não somente o frescor
do clima daquelas montanhas, como também – o que não era incomum – a presença de um estrangeiro que anseia pelos olhos de
uma monlevadense. Seu automóvel fora estacionado bem longe
da entrada da casa de Marie, de quem agora sabia endereço (a
moça atendera ao pedido de Bern. Já no primeiro encontro, no
Bazar, rogara chamá-la Marie. Como em francês, dissera!). Estava
feliz! Sempre sonhara ter um confortável Chevrolet Bel Air. Conseguira um modelo 50 a preço de ocasião. Novíssimo! O primeiro
proprietário, impaciente, não conseguira acertar com o governo a
indispensável guia de importação!
Marie iria adorar. Marie! Um sorriso diferente do que a Deneuve lembrara, em carta recente, explodiu-lhe por dentro de
forma incontida. A sombra da francesinha passou-lhe de longe
em lugar recôndito da consciência. Avermelhou-se. Com isso reconhecera que estava procedendo como um tolo por rua desconhecida, mal conhece o lugar, buscando a casa de une jeunesse,
a quem batizara de Marie. Maria. Ah, algo está ocorrendo comigo.
E se mamãe e Liviah vissem-me assim? Um ligeiro e não sabido
mal estar causou-lhe arrepios. Ufa, ainda bem, privilégio da idade, foi-se como veio. Não durou um piscar de olhos. Consciente
disso, o jovem novamente tornou-se feliz e abriu largo sorriso. Solitário. Ah, pensou, prosseguisse assim por mais alguns segundos,
poderia ser confundido com o Dilsinho doido.
68
Jairo Martins de Souza
Explico. Bern havia lido algo sobre certo morador local de
nome Dilsinho doido em capítulo de memorial escrito por monlevadense que passara infância naquela vizinhança. Coincidentemente, o mesmo que Marie, há poucas linhas acima, lembrou ter
lido e que, a ela, fizera sonhar futura família. Com Bern naturalmente. Aliás, não somente essa obra. Bern lera também, antes de
aqui estar, muitas outras fontes sobre a formação da cidade que
o bisavô havia fundado. Como quase todos os europeus, prezava
memórias de tempo passado e subscrevera, já em Monlevade,
abaixo-assinado sobre tema importante coletado na porta do
Hotel Cassino. O objetivo era sensibilizar os legisladores locais
a aprovar projeto popular de fazer praças e memoriais homenageando valores alienados da cidade. Entre eles a Sá Luzia, outra
cabeça-varrida; o próprio Dilsinho doido e, expliquem-nos, senhores vereadores, como poderia ficar de lado o burro do Geo?
Aliás, esse último, em particular, aparece antecipadamente distinguido, em capítulo extra, da papelada deste dossiê. O motivo?
Todo monlevadense sabe. Mas não custa repetir. Ele é figura símbolo do esforço da gente briosa dessas terras.
Contudo é naquele estado de espírito que Marie o vira chegando, e já o aguardava ansiosa defronte do portão de casa. Seus
belos cabelos, como sempre, estavam graciosamente penteados
com os dotes da casa. Tinha característica não muito freqüente
nas mulheres de hoje: era feminina! Das que a própria natureza
prepara de forma permanente para as lides do amor. Das que
pouco precisam fazer diante de penteadeiras de quarto. Das raras
que…
– Ça va? (como vai?), disse com ar de criança travessa para o
jovem que se aproxima.
– Ça va, Marie.
E então, preparada para o Piracicaba Spring Floating
Restaurant?
João Monlevade, 01.9.51. Chère Liviah. Nada que aqui escrever deve ser repassado para mamãe. Não quero que ela se
sinta de saia justa, caso venha a encontrar a Deneuve. Você sabe,
Liviah, nunca fui de fingir. Escrevo apressadamente, pois estou
Dossiê Monlevade
69
de saída para rendez-vous com uma garota aqui de Monlevade.
Encantadora! No entanto sinto-me como um ator. Sinto-me como
um daqueles antigos de barriga e braços flácidos que faziam papel
de trabalho duro de um ferreiro. Uma pessoa que exala mentira.
Até ontem estava bem e feliz. Mudou desde então. Tudo porque
recebi a carta da Deneuve e não me disponho a respondê-la. Use
a sua intuição feminina e diga-me como escrever a ela, explicando
com jeitinho que gosto dela sim… mas apenas como uma querida
amiga. Bises pour toi (beijos para você). Bern.
PS. Deves ter percebido que devo ficar um pouco mais no
Brésil! Isto podes dizer a mamãe, e a papai, é claro, pessoalmente,
quando voltares a Guéret.
Dossiê Monlevade
71
Capítulo 13
M diz publicamente querer morar definitivamente em
Monlevade.
T
emos mais um sócio, Jaime, é o Brás quem diz olhando resignado para o amigo. M voltou acompanhado
de São Paulo relatando que o homem é parente próximo. Sendo
assim, informou, é automaticamente guindado àquela posição na
estrutura da Fruit. Já assinei a papelada, trouxe-a comigo. Agora
é a sua vez.
– Dê-me cá!
Apreciando o tráfego de aviões que intensamente ocupavam
o espaço aéreo de Monlevade, M, e o parente, já cruzavam as
proximidades do luxuoso bairro de Graal. Retornava entusiasmado da paulicéia. Fizera várias aquisições e, mesmo de férias, já
tinha deixado em aberto canais de negociação para ampliação
de outros projetos pessoais. A mulher dera-lhe suporte, dizendo-lhe também não gostar de porta estreita... Que essa fique para
os que acreditam na bíblia e na conquista do céu, complementou. A atitude da esposa poupou-lhe desgostos que pressuponha
inevitáveis. Bom para ele. Bom para o casal. Foi a razão de ter
evoluído com alguns sonhos. Por exemplo, o Pontiac 50 zero quilômetro que negociara juntamente com a liberação dos recursos
do Banco de La Nación. Pneus faixa branca. Preto. Cheio de metais decorativos, inclusive as duas tiras do vidro traseiro: the most
beautiful thing on wheels, dissera de forma inaudível. Como? A
esposa murmurou. M acordou instantaneamente do devaneio de
conhecer ao vivo e a cores como vivem os estadunidenses e, ato
contínuo, disse-lhe que se tratava da propaganda que as revistas
72
Jairo Martins de Souza
americanas fazem desse carro: o que há de mais belo sobre rodas.
Nem precisou se desfazer do outro carro. O fleetline. E os outros
sócios? Perguntara-lhe a mulher. Como o clima estava amoroso
entre os dois, respondeu-lhe recordando novamente a anedota
do casal de turistas portugueses, o gambá, e a burla da autoridade aeroportuária da zona franca de Manaus. Por fim, se o leitor
não conhecê-la, pergunte a terceiros de sua intimidade. Como
na primeira ocasião, por decoro, não a ponho aqui por inteiro.
Ambos riram.
Quanto a isso não há dúvidas! Enquanto uns riem, outros
choram. Por ora, o Gerente é quem prossegue sorrindo: a bíblia
guardada no porta-luvas do veículo permanecia aberta em versículo especial. Não se trata logicamente de pista concreta de qual
poderia ser sua fé. Nada, por ora, fora definitivamente mencionado nesse sentido. Discutiremos ainda vastamente sobre o tema.
Enquanto isso, substitua-lhe, se for do seu gosto, pelo alcorão.
Para aquele cavalheiro, daria igual efeito. Que fosse por decoração, o que parece ser mais provável, disso não dá conta, pois joga
todos os sentidos quando lentamente passeia pela Graal. Belo
carro. Belas casas. Bela rua. É aqui que passarei a morar!
Não se sabe se nascera em berço pobre ou se era de sangue
azul. Do sócio Jaime Raimundo, já sabemos ser homem nascido
de família humilde. A propósito, o leitor deve ter observado que
ao longo dessa obra se fala exaustivamente desse senhor. De forma compulsiva (a mim me parece que o autor de algumas destas
notas padece de doença da repetição. Não se trata de suspeita
leve, pois talvez se trate de patologia similar à descrita por Freud
em seus livros de psicanálise). Então, ainda dentro do assunto
Jaime Raimundo, vamos em frente esclarecendo que, dentro dos
seus quarenta e poucos anos, tinha como método de vida não se
assentar na roda de escarnecedores. Fora formado na rotina do
trabalho. Adianto que, quando com idade avançada, tornou-se
consumidor contumaz de remédios e fármacos: pressuponho por
razões ligadas aos seus investimentos na Fruit. Pode ser.
O Brás, quem sabe já tenhamos dito, talvez tivesse dez anos
mais, desconsiderados os que afirmava ter vivido em outras
Dossiê Monlevade
73
encarnações. Já M traz-nos múltiplas dificuldades de avaliação
nesse quesito. Confesso que busquei diligentemente essa informação no contrato social da Fruit. Tentativa frustrada! Em tal
documento não se cita quão velho é um cidadão. O quarto sócio?
Por ora, dado irrelevante. Nem mesmo se sabe se será incluso na
história.
Conhecida essa nova variável, não sabemos se de valor prático, voltemos à M que continuava deslizando pela Graal. Observava atenciosamente alguma eventual placa de vendo, enquanto
explicava ao parente, em detalhes, a cerimônia em que inaugurara a sua Fruit Shoe. Sucesso espetacular. Lembrou-se que, a
princípio, pensara em fundar uma igreja. Metaforicamente, dissera que, a exemplo de Jesus, esteve sendo atormentado por 40
dias no deserto de idéias pelo qual passava na ocasião. Declinou.
A barca de Pedro, a igreja, navegaria pelo Mar Morto sem a sua
contribuição: julgara o mercado por demais disputado. Também
não era de decorar versículos e capítulos cheios de parábolas e
juízos de valor. A idéia da Verlon caiu-lhe como uma luva feita
sob medida quando, oportunamente, ocorreu-lhe que a tudo os
japoneses copiavam, colocando-lhe pequeno detalhe diferenciador. No caso, o cheiro frutado. O resto veio por graça divina ou
por sua busca sem fé por Santo Expedito a quem, como muitos,
julgava o das causas perdidas. Aí, sugere-se fosse católico. O parente a tudo ouvia por educação, fingindo estar atento. Sabia que
M, mesmo passando por altos e baixos, achava que sua riqueza
nunca se acabaria. Tal como a fênix mitológica, sempre ressurgiria
das cinzas. Na verdade fazia o mesmo que o próprio, olhando
para as mansões que se sucediam nos mais variados estilos arquitetônicos. Quero também morar nessa vizinhança. Para tanto
ambos contavam com o Banco de La Nación! Finalmente, aí percebemos motivo por que o quarto sócio não pode deixar de ser
lembrado nessas anotações!
Dossiê Monlevade
75
Capítulo 14
Onde se diz muito em poucas linhas. Há segredos entre
escritor e leitor. Sombras da inauguração. Uma fantasia
chamada Fruit. Fumaça de calote. M e seu castelo na Graal.
T
al era o propósito dos estrangeiros de São Paulo com
os quais se envolveram os negociantes monlevadenses. Que fique aqui isoladamente lançado esse registro que complementa e reforça o que li no final do capítulo próximo passado.
Entretanto nem tudo acontece de forma linear nessa vida. Por
exemplo, eu e você, por meio desta simples introdução, sabemos,
resumidamente, de circunstâncias da vida de terceiros, as quais
por justiça e solidariedade, deveriam vir a público, antecipando
circunstâncias difíceis para os monlevadenses. É a vantagem de
quem escreve e de quem lê. Quanto aos personagens? Estes não
contam! Ignoram totalmente sua própria história e seus segredos.
Portanto não ficam óbvias as razões de não discuti-los, tornando-as conhecidas para os tais sócios? Então tome lá a minha verdade. Trata-se de economia de espaço e palavras! Não estou aqui
para análise. Simplesmente relato.
Pois o fato é que a Verlon Fruit Shoe passara rapidamente a
ser uma das maiores empregadoras da região do antigo Vale do
Aço. Digo antigo, pois agora ponho-lhe a palavra óleo, conforme
exaustivamente mencionado na inauguração da empresa pelo
Presidente da República, pelos ministros, o Gerente e, indiretamente, o curió cantador.
Nesse ponto é bom lembrar que nas anotações sobre a
solenidade de inauguração da Verlon não se disse nada sobre
discurso do presidente do Brasil. Na ocasião foi desnecessário.
76
Jairo Martins de Souza
O homem só fala de política. Está sempre em campanha. Todas
essas frases curtas foram encontradas anexas às declarações que se
seguem. Dissera, na ocasião, o presidente: estou seguro de que esse
país jamais conheceu fábrica com tal envergadura... Aí vale escrever
algo absolutamente fora do contexto da documentação em que
se baseiam essas notas. (Não disse? Então digo. Sou do signo de
escorpião!). O chefe da nação passara alguns anos nas repúblicas
estudantis de Ouro Preto. Graduou-se nos ofícios da cachaça.
Filho de caudilhos gaúchos, acabou tornando-se sindicalista de
carreira. Durante período de treinamento em centro de formação
da militância, cortou pequena parte do dedo mindinho (lembra-se
de brincadeira que se faz com filhos pequenos? É o que fica ao lado
do seu vizinho). Distraíra-se ao usar gillette para acerto de ponta de
lápis no momento de assinatura de lista de presença. Aposentado
precocemente, rumou definitivamente para o sindicalismo e
a presidência. Nessa condição é que fomos encontrá-lo, na
presidência, elogiando o dinamismo de M.
Na platéia, alguns olhavam-no com admiração. É incrível
como é homem tinhoso. Não é preciso bola de cristal. Vai, em
futuro breve, terminar seus dias como senador típico da nossa
república. Nada de novo, um dos sócios da Verlon comentou,
parece uma constante nos sonhos de presidente do Brasil. Em dia
de céu escuro e chuva forte, nada em lama vestido com terno de
linho branco. Não se suja. Por muito menos que isso, os franceses
do século dezoito... ah, deixe-se isso para lá, procurar-se-á, nestes
escritos, manter promessa feita por Bern, à sua mãe, em Paris.
Não falar de política no Brasil. No entanto, agora, por exemplo,
diz da pureza de sua administração, e ergue os braços como faz
um pregador do evangelismo de resultados… Um dinheiro para
você cá, outro para você acolá. Trezentos e dezoito pastores estão aí, a postos, para coletar impostos e contribuições. Deverá
extorquir a nossa Fruit, quem comentou isso foi um outro homem
que dirigira a palavra para a esposa. Parecia injuriado. A mulher
não lhe dera atenção, pois, absorta, admirava a jóia da esposa de
conhecido deputado estadual. O sujeito irritou-se com a mulher.
Não lhe bastou a ironia e o sarcasmo com que se referira ao presi-
Dossiê Monlevade
77
dente que, nesse exato momento, encerrava discurso sob pesados
aplausos da platéia.
No entanto não se devem misturar alhos com bugalhos, pois
dizíamos que a Verlon tornara-se grande empregadora. Superara
a CAF, a Companhia Agrícola Florestal que, antes da presença do
óleo e do gás que ora vaza pelos poros da região, era responsável
pelo carvão que aquecia o gusa desde os tempos do bisavô de
Bernard. A todo o momento chegavam funcionários especializados, principalmente egressos da paulicéia, tanto para a indústria
do petróleo, como também para a própria Verlon. Onde, para
maior agilidade, nem mesmo eram contratados pelo tradicional
setor de recursos humanos – tais consultores deixavam assim de
gerenciar o maior tesouro das empresas: os chamados, modernamente, colaboradores. Observadores externos andaram alertando
que, com isso, poderiam ocorrer distorções não benéficas para a
saúde da empresa. Multiplicavam-se as superintendências, departamentos, divisões, seções e assim por diante. Parecia o próprio
governo federal. M assinava contratos de trabalho pelas madrugadas adentro, com isso negociando salários totalmente fora da
realidade de mercado. O Setor de finanças protestava de forma
ineficaz, pois os burburinhos limitavam-se às paredes onde circulavam preocupados funcionários. Fosse sócio, dizia um deles,
dirigir-me-ia a M, questionando sobre tais gastos com parentes
e mobiliários incompatíveis com a seriedade de um empreendimento agro-industrial do porte da Verlon.
E os outros sócios? Ah, caro leitor, a falta de criatividade é
minha, pois cito pela terceira vez a piada do gambá, do casal...
Na realidade, aqueles sempre conversavam sobre negócios da
Fruit em reuniões secretas na Praça do Mercado e na Rua da
Favela. Na primeira, se não disse, digo agora, localizava-se o
comércio do adepto de Kardec, na segunda, sabemos, o de Jaime Raimundo. O outro sócio-gerente. Sócio-gerente? Não! Sou
somente de fachada, é o que afirmava para o amigo. M faz todas
as operações administrativas, comerciais e financeiras por conta
e decisão próprias. Inclusive, não tem aceitado opiniões e tem
levado a cabo todas as instâncias na distribuição e fabrico dos
78
Jairo Martins de Souza
frutados da Verlon. Resumindo, não aceita interferências nem
mesmo do parente que trouxera consigo a bordo do Pontiac.
Agora mesmo soube, por meio de terceiros, que intenta imediatamente instalar outra nossa fábrica em Cocais. – Cocais? – Sim.
Barão de Cocais.
Foi-me segredado que já busca sócios de capital e trabalho
para introdução de linha extraordinária de cintos e carteiras frutadas no mercado. Amigo, não sei se compartilhas de tal sentimento, mas tenho desconfianças graves daquele senhor. Faltam-me
provas. Mas creio tratar-se de uma de suas estratégias. Recruta,
como em Monlevade, sócios locais esperançosos no contrato
ultra-secreto que diz manter da tecnologia Fruit com a Verlon.
Aqueles, como os monlevadenses, buscam alternativas no mercado de Cocais para manter emprego seguro em seu, digamos, próprio negócio. Por exemplo, repara que a parte do trabalho pesado
fica conosco. Você no chão de fábrica, e eu, por assim dizer, meto
a enxada para prosperar a nossa indústria de frutos. Por final,
disseram agora simultaneamente – o texto copiado relata como
se fossem locutores de coral que explica andamento de tragédia
grega: “na verdade, temos nos descuidado dos nossos negócios
pessoais!”.
Não. Não é somente essa constatação que deverá trazer angústia àqueles monlevadenses (cujo final do parágrafo anterior
procurou dramatizar, explicando por meio de imagem antiga da
arte. O responsável por essa parte do dossiê explicou, sucintamente, ter se recordado do clássico A Poderosa Afrodite de Woody
Allen). Algo não previsto aconteceu. Um homem de São Paulo, dizem, do Banco de La Nación esteve em certa sexta-feira na
Verlon Fruit Shoe. Consternou a todos. Logo na sexta, dia que
normalmente antecipa horas de satisfação e recreio. Tinha olhar
aborrecido e procurava por M. Alguém ouviu-lhe dizer em voz
baixa que se trata de empréstimo não pago.
– Algo mais?
– Não. A secretária informou-me rapidamente: ele estava se
aproximando e poderia desconfiar. Disse ter visto na agenda do
próprio.
Dossiê Monlevade
79
Na mesma ocasião, a mulher de M, de passagem por Monlevade, dissera-lhe que a casa em que ambicionava morar na cidade era belíssima. Ficava em Graal. A Avenida do Aeroporto
impressionou-lhe entusiasticamente. Agradava-lhe o estilo mediterrâneo. Na piscina semi-olímpica, algumas canaletas imitavam discretamente a circulação de águas do fabuloso Alhambra
da cidade de Granada. Sorrira, pensando que mesas brancas e
sombrinhas protetoras, colocadas ao lado, viriam a calhar para
ensolaradas reuniões com amigos. Monlevade, soubera, possui
temperaturas cálidas durante o dia e agradável frio noturno. Bom
para rodadas de chopp. Bom para vinhos tintos e fondues.
– Valor do aluguel?
– Insignificante quando se trata de utilização por donos de
empresas do porte da Esso, da Petrobrás, Xerox, Microsoft e da
Fruit. A mulher concordou, dizendo, é verdade. O marido dera
mostras de satisfação por meio de indecifrável sorriso e, para que
não pairasse qualquer sinal de dúvida, confirmou a sentença favorável. Fizera sinal de assentimento com a cabeça.
– Dê-me o contrato, a mulher disse rapidamente para o corretor de imóveis. Não queria perder o negócio.
– Senhor Gerente!
– Sim.
– A praça de pagamento?
– Por favor, diretamente comigo lá na Fruit.
– Cheque ou dinheiro?
– Dinheiro vivo.
– Recibo?
– Não. Dispensável. Devo pagar sinal com recurso de caixa 2.
– Obrigado. Antecipa o que lhe iria solicitar. Até mais ver!
Dossiê Monlevade
81
Capítulo 15
Z
Barão de Cocais
ilda. Adeílza. Não posso ser interrompido. Nada de
transferir ligações. A partir deste momento, estamos
em reunião extraordinária da Sociedade Verlon Fruit Shoe. Zé
Brás. Brás. Entra. Os demais sócios já estão nos aguardando.
Pretendo manter a mesma estrutura societária e a mesma
bandeira da Fruit nessa área de Cocais, disse M. Qualquer alteração custar-nos-ia milhares de cruzeiros. Também, prosseguiu
– copiando metáfora de gosto presidencial – em time que está
ganhando não se mexe. Fico com as diretorias atuais e vocês nas
áreas de produção. Lembro mais uma vez que sem o contrato de
cessão exclusivo, intransferível e pessoal que tenho com a Verlon,
qualquer protesto de vossas senhorias pode levar a Fruit à falência. Outros convidados irão ajudá-los naqueles afazeres, pois buscam garantia de trabalho sol a sol. Sei que ninguém nada ganhou
até o momento em termos de dividendos. Mas não é um contrato
de trabalho recompensa suficiente?
Com isso, disse ponto final e declarou encerrada a pauta que
que convocara para discussão em regime de emergência.
– Vamos insistir?
– Vamos, respondeu Jaime Raimundo. Já colocamos muito aqui
e penso ser correto prosseguir com nova visão. Mais cautelosa.
– Mas o homem insiste na exclusividade que tem. Não somos
nada?
– Não. Lembre-se que, na prática, pode até mesmo nos demitir dos cargos e da sociedade.
– Disso, não sabia.
82
Jairo Martins de Souza
– Pois é. Fique sabendo!
– Pois fique sabendo você que anda interferindo também na
área de produção.
– Não sabias? Sempre foi assim!
– Mas agora anda exagerando. Passeia pela fábrica criando
novos gastos e investindo em compra de máquinas desnecessárias. Suspeita-se de superfaturamento em contratos celebrados
recentemente.
– Há como verificar?
– Não. As contas são fechadas pelo próprio.
– E então? O que faremos?
– Nada. O homem não nos dá ouvidos!
– Nenhum sócio protesta?
– Não. M trata a todos de forma igual.
Repara, leitor, a súbita mudança de diagramação no texto.
Observe que já analisamos cerca de um terço da documentação
e é a vez primeira que, à exceção de uma ou outra carta, ou uma
ou outra intromissão de quem relata o texto, adquire tal formato.
Assim chamo-lhe atenção. Assim se encontrava escrito! Suspeito,
como você, tratar-se de peça chave, pois, além disso, segundo informações dos especialistas, encontrava-se enrolado em formato
de papiro em canto à parte.
Voltemos ao diálogo acima abruptamente interrompido. Os
interlocutores prosseguiam-no, por final especulando sobre alguns
aspectos da personalidade do gerente. Em especial, ouçamos o
José Brás, que, intrigado, dizia que nunca o vira esbravejar!
M fala manso mesmo em momentos de crise. Nada parece
afetá-lo. É invisível como onda de voz que transita pelo ar. Uma
barata. Ofende e depois lambe. Interessante. O parente e a mulher são iguais. Mesma farinha em sacos diferentes…
Foi o que resumidamente disse. Não parou por aí. Faço assim
para não cansar o leitor. O Brás insistira em bater na mesma tecla.
Não obstante, passo a palavra ao outro que também queria
dar sua contribuição.
– Você tem razão, Brás. Já o que me intriga é questão religiosa.
Você sabe que sou homem que não acredita em anjo da guarda.
Dossiê Monlevade
83
No entanto, respeito ilusão de quem nisso tem fé. Aliás, nunca me
esqueço que você é um deles… Mas Brás, mais ainda, por influência de criação, acostumei-me a andar com espírito desarmado.
– Somos amigos faz tempo, Jaime. Também são assim nossos meninos. Mesmo que ainda gente miúda. Um deles disse-me
que, caso fosse autor de dicionário ilustrado, ao lado da palavra
amigo, colocaria a nossa foto. Aprendeu isso ouvindo diálogo de
artistas de cinema, enfim, há muito sei que você não é de colocar
maldade nas coisas.
– É, Brás, nem tanto, pois passou-me pela cabeça uma ressalva. No fundo, no fundo, não sou completamente como disse.
Por exemplo, gosto de saber sobre a crença religiosa das pessoas
com quem lido. Aí que está, Brás. M nunca declarou abertamente
a sua. Não sei se você reparou, pois de minha parte, nunca o vi
freqüentar nenhuma sociedade cristã. Ah, por sinal, católico ele
não pode ser! Deduzi isso quando o vi conversar com o parente
sobre ocasião em que estiveram em loja maçônica.
– Ah, meu amigo, alguns romanos desrespeitam tal orientação
papal. Por razões simples. Uma é falta de conhecimento. Outra é
que a igreja não mais excomunga fiel participante da ordem dos
pedreiros. Entretanto é falta grave... M pode ser católico, Jaime!
Vi-lhe criticar abertamente Lutero por ter cortado sete livros da
bíblia de Agostinho. Não reparaste que a esposa usa broches que
imitam imagens?
– É vaidosa. Pode ser que seja somente como enfeite.
– Pode ser. Mas, quanto a M, tenho mais uma situação. Lembra do caso de certo grupo de adventistas do sétimo dia que queriam guardar o sábado na fábrica de sumos? Não queriam ir para
turno escalado. M protestou!
– Aí que está. Tal quesito pode dar pista de testemunha de
Jeová!
– Não, meu amigo. Seu comportamento não dá suporte.
Além do que, observei que contestou diretor da Palmolive que visitava a nossa nova linha de frutados light. O americano dizia que
somente 144.000 eleitos deverão ser salvos no juízo final. M riu!
– Mórmon?
84
Jairo Martins de Souza
– De jeito nenhum. Disse-me outro dia que Deus não pode
ter carne e ossos. Caso contrário estaria dentro dos trajes de um
desembargador.
– Exército da Salvação?
– Sem chance. Não é dos que usam uniformes. Nunca o vi
nem mesmo com os da Verlon. Talvez crente Batista?
– Não. Desses eu conheço de longe. Tenho alguns familiares convertidos. M nunca deu indicação de algum dia ter sido arrebatado.
– Cultua à Imaculada Conceição de Maria?
– Não sei. Talvez a mulher, se não for como disse há pouco.
Vi-lhe com bonito colar em enterro de funcionário. Pareceu-me
um dos cinco terços de um rosário. Sussurrava trechos do sofrimento de Jesus.
– Fez o mesmo em procissão a qual vi passar na Vila Tanque.
O marido estava ao seu lado de mãos dadas.
– Podia estar fingindo. No entanto, se por honra do filho, venera à mãe Imaculada, o homem só pode ser mesmo um dos
milhões de apostólicos romanos.
– De novo digo pode ser. Você sabe que não sou homem de
aposta ou jogo de azar, mas aqui abriria exceção. Sigo conselho
do meu falecido pai. Mas, fosse o caso, Jaime, apostaria em outra
coisa. Apostaria ser M um daqueles católicos somente de boca
para fora…
Com o que, subitamente, o próprio M assoma à porta do
ambiente e retoma reunião que declarara esgotada. Sentem-se,
senhores! Está acompanhado de um bando de pessoas que, aos
poucos, são reconhecidos como alguns novos sócios da Fruit de
Monlevade Cocais. Todos penetram no ambiente. O último tem
atitude de advogado. Veste terno.
Feito sossego de tumba sacerdotal, M ergueu o braço esquerdo e cortou o ar com disposição. A seguir rasgou o silêncio dizendo, não tens rezado na minha cartilha, Vossa Senhoria está definitivamente destituído da função de o outro sócio-gerente. Não
somente isso! Declaro reduzidas em setenta e cinco por cento a
cota de produtos Vulcabrás destinadas ao Bazar. O dedo indicador da mão apontava incisivamente para Jaime Raimundo.
Dossiê Monlevade
85
Não no papel, complementou. Fosse assim teria mais desnecessária despesa contábil. Então farás procuração provisória para
o faxineiro chefe. Vejo nele grande futuro. Em momento certo
esse homem deverá ser promovido a gerente com todos os direitos internacionais. No entanto sei de suas habilidades, podes
trabalhar como ferramenteiro. É concessão que faço. Seguiu-se
um oh! geral entre os presentes, mas ninguém moveu palha.
Reforço positivo. Esse foi o objetivo final dessa reconvocação.
Não os retiraria do trabalho por razões vãs. O aprendizado fixa-se
por meio de insistência. Diz-se uma vez. Depois de tempos em
tempos há que se fazer releituras e atualizações do processo. Então encerro esse encontro de sócios, lembrando que tenho sobre
todos aqui presentes total observação e controle. Vocês são os
cavalos que fazem andar a minha carruagem. Posso trocá-los sem
aviso prévio e contemplação. Obrigado!
Dossiê Monlevade
87
Capítulo 16
A família de Marie é antiga na região. Bernard faz palestra
na Fruit Shoe.
A
lguns dos nossos antepassados são franceses. –
Franceses? – Sim, do século dezesseis. Vieram
com Villegaignon. A princípio para participar da campanha de
implantação da França Antártica de Henrique II. Gostaram. Resolveram se instalar no Morro do Cão, o atual Pão de Açúcar (segundo eles, enorme baguete com dois terços de altura enterrados
pela águas da Urca carioca), e cá continuamos quase 400 anos
depois. Na época, um tanto quanto afastados de tudo, é verdade.
Meio escondidos. Na ocasião, Portugal não teve como exibir o
testamento de Adão que fora pedido por Henrique. Então usou a
força para tentar nos expulsar.
Bern ouvia com interesse o que dizia o pai de Marie. Já dominava perfeitamente a língua: ajudado pela arte, é claro, pois a
literatura brasileira já fazia parte de suas preferências para momentos de solidão.
Bem, daqueles parentes não tenho notícias, prosseguiu o simpático senhor, mas sim, a partir do meu avô. Ele era um empalhador, Bernard.
– Empalhador?
– Sim. Não como atividade principal. De subsistência. Mas
era hobby que levava a sério. Enviava corpos secos de insetos,
répteis, onças, jacarés, etc. para exposições e museus europeus.
Várias de suas peças figuram em catálogos internacionais. Certa
ocasião foi até mesmo citado no Le Figaro francês: o jornal
mais antigo de lá. Viajou, quanto pôde, caçando vestígios de
88
Jairo Martins de Souza
dinossauros. Seu objetivo era montar arcabouço de um deles a fio
de ferro. Aí sim, como profissão. Não sucedeu em suas investidas
arqueológicas na região de Maquiné. Acabou ganhando a vida
no ramo siderúrgico. Desde os idos de 20 do século passado foi
contratado por conterrâneo que viera da França e acabou caindo
pela região. Meu avô foi seu capataz e gerente, pois, anteriormente
ao que disse, aventurara-se pela Espanha e tornara-se mestre em
trabalho com forjas catalãs.
– Catalãs?
– Sim. Desenvolvidas na região da Catalunha. Lareira de pedras com brasa de carvão, minérios e ar frio insuflado por foles.
Foi a que o seu futuro patrão, Jean Monlevade, usou na sua indústria.
Bern revirou-se na confortável cadeira. A conversa, faltoume dizer, corria em espaçosa varanda na casa da moça, localizada no ainda chamado Alto da Samambaia. Lá fora chovia a
cântaros. Chuva benfazeja. Parecia emergir de gigantesco regador
escondido por trás de nuvens brancas repletas de água pura. Encantado, o moço observava suave brecha nas nuvens onde o sol
da tarde, totalmente molhado, se recolhia após dia de trabalho.
Surpreendeu-se imaginando como seria a sua extinção quando
engoliria toda a Terra. Coisas do Discovery Channel narradas por
Carl Sagan. No entanto, não por ser sol já velho deixava de emoldurar cenário digno de ser presenciado por Deuses do Olimpo.
Assim se sentia o rapaz. Como um Deus. E, mais ainda, lembrando-se do poeta Vinícius que conhecera em Paris, em vias de
ser nomeado cavaleiro. Um cavaleiro medieval. Dos que fazem
cantigas de amigo. Não é assim que funcionava no Brasil para
quem pensa em viver um grande amor? Nesse estado de nirvana é que permanecia, inebriado, sob os olhares furtivos da moça
que, a custo, tentava concentrar-se em leitura. Filha amorosa, estava postada em cadeira próxima ao pai. De sua parte, mesmo
que sob quase total estado de encantamento, Bernard ainda não
se livrara de certo constrangimento com a menção anterior ao
nome do avô. Não que fosse nada de relevante um parente da
moça ter sido empregado de Jean Monlevade, mas permanecera
Dossiê Monlevade
89
calado, ouvindo o pai falar sobre seus gostos. Não gostava de
escrever, mas lia muito. Não praticava ginástica, mas gostava de
subir e descer escadas de sua casa. Oxigena o sangue. Apreciava
a pesca esportiva e caminhar pela manhã. Pensava na aposentadoria que já se avizinhava: seu sonho era ajudar a filha no cuidado com os futuros netos. Sem muita responsabilidade, é claro.
Para tanto o tempo de avô dar-lhe-ia alvará. Declarou viver com a
mulher como, no dizer dos mineiros, a couve e o angu. Bern não
entendera bem, mas sabia ser coisa boa pelo sorriso espontâneo
que acompanhara as palavras. Acrescentara algo como metades
de mamão papaia. Por final disse do amor que tinha pela cidade,
a família e a filha.
Interessante. Parecia não padecer do mal que normalmente
assola as pessoas, o dizer e criticar terceiros e governantes. Não
sabia ao certo se, por acaso, ou por não ter sido conveniente ao
andamento da conversa, ou se fora por ser primeiro e longo contato. Ou, por terceira hipótese, que Bernard adotou como verdadeira: o sogro era homem de boa índole e tinha bom coração. A
conseqüência é que livre dessa espécie de tensão, que corrompe,
entristece e desvaloriza contatos humanos, percebeu que poderia
ficar ouvindo-o durante séculos. Tal como sentia com relação ao
pai, Guillaume Monlevade.
Passou-lhe fluxo frio pela espinha, mas sentiu-se ainda mais
leve por dele ter se lembrado. Tenho certeza que papai, não fosse a língua, gostaria de trocar idéias com esse senhor. Enquanto
isso, o diálogo já caminha para o fim, agora de quem se lembra,
o moço, é do amigo Raimundo. Sorrindo intimamente recordase que teve dificuldade em entendê-lo quando esse dissera que
não gostava de conversar abobrinhas. Percebera finalmente que
Jaime Raimundo, tal como o pai de Marie, não gastava tempo
perdendo-se em banalidades. Latindo como vira-latas, rangendo
como carroça vazia.
A chuva passara. Amanhã, com o passar das horas, o verde
da paisagem da Vila Tanque voltaria mais viçoso e cheio de energia. Ainda no frescor do mesmo ambiente, Bern, já a sós com
Marie, intimamente questionava o porquê dessa varanda da Vila
90
Jairo Martins de Souza
Tanque tanto lembrar-lhe a que Scarlett O’Hara fizera fuxicos com
os gêmeos Tarleton nos diálogos iniciais de O Vento Levou. Foi
em Tara, a fazenda dos pais da moça, próxima à cidade de Atlanta, na Geórgia. Na ocasião tocavam-se as cornetas para início
da violenta guerra da Secessão. Margareth Mitchell foi magistral!
No entanto, é mesmo difícil entender os mistérios da mente humana. Afinal de contas, Bern vira o filme quando criança, ainda
em Guéret! Clark Gable. Vivien Leigh. Olívia de Havilland. 1939.
Grande elenco! Enfim, corria brisa suave pelas frestas dos paus
de madeira de lei com a qual essa parte da casa fora construída.
O assunto que conversavam? Profissões. Médica ou professora? – Nem uma, nem outra! O viço da mocidade assomava-lhe
à face intensificando a soberana arte do criador. Inimitável. Ah,
Bern, tive avó enfermeira. Não a conheci bem, mas, pelos relatos
de mamãe, soube ter tido vida sacerdotal. A medicina é sacerdócio. O magistério é sacerdócio. Não me atraem. Simples como
isso. Quero ter tempo disponível para cuidar de filhos… Não sou
daquelas modernas, Bern, que pensam seguir com a vida, tomando rumo fora dos termos em que vi meus pais e família. Não foi
por acaso que passei todo o ano passado em Paris. Penso que a
arquitetura caber-me-á bem…
Ele gostava do jeito de Marie. Escrevera à Liviah sobre tal
sentimento. Aliás, tanto ele, como nós, aguardamos resposta. Conhecia a irmã e seus ciúmes. Imaginou-a defronte ao notebook e,
sorrindo, supôs ter adivinhado a sua sentença final: Bern, cuidado
com essa brasileira!
Fosse eu seguidor de ditado que diz (perdoa o leitor pela soberba, pois invento-lhe agora): a prudência é privilégio dos nobres, encerraria este capítulo deixando reter no papel somente os
belos sentimentos marcados linhas acima. Constam no interior do
maço de documentos marcado com o número 14.
Não termino e a razão é simples. No mesmo folder, na mesma pasta, consta que, Bern – por indicação do rebaixado Jaime
Raimundo – fora convidado para ministrar palestra na Fruit. A
confirmação chegara-lhe enviada pelo setor de treinamento da
empresa monlevadense. Assunto? Legislação comercial e a comu-
Dossiê Monlevade
91
nidade européia. Viria a calhar. M buscava investir no mercado
europeu! Na ocasião, estaria ausente, mas apoiara. Um advogado
francês? Sem custos? Ótimo! Faça o favor de informar meu parente e os sócios de Cocais sobre o evento.
Um sucesso! Bern encantara a todos que participaram da
conferência realizada no Rio Piracicaba’s Congress Center. A pedido de empresários que fabricavam produtos de outras áreas,
esmiuçara, com clareza, como legalmente vender touros em Sevilha, ou introduzir queijo tipo canastra no difícil mercado francês.
Perguntado como negociar produtos não constantes no código
aduaneiro internacional, – como a nova coleção de cintos frutados da nossa empresa –, o jovem arrancou gargalhadas quando
relatou das aproximações a que são forçados os homens do ofício.
Tal como, prosseguiu, caso de múmia egípcia que, certa ocasião,
rumara para exposição itinerante em capital européia. Por falta de
número cip (código internacional de produto) passou como sendo um gigantesco e mal cheiroso bacalhau português! Por fim, somente para ilustrar e trazer à baila valores locais, aplausos, explicou sobre recentes normas e exigências da CBD para exportação
de jogadores de futebol menores de idade. Conferencista nato. A
platéia observava seus elegantes movimentos enquanto expunha
leis consideradas maçantes e ordinárias. Exemplos carregados de
burocracia tornavam-se motivo de riso e bom humor. O jovem é
craque, aplausos, diziam alguns advogados e administradores da
região. É lindo! Suspiravam moças e senhoras presentes.
Faltando pouco para terminar, – novos tempos são anunciados para o mundo –, Bern lembrou-se do surpreendente Barack
Obama e copiou frases de incentivo que o estadunidense andara
usando em campanha presidencial. A audiência exultou quando disse, entusiasticamente, Sim, Podemos. Sim, podemos mudar (Yes, We Can. Yes, We Can Change In). Mudar para melhor.
Nascia um novo brasileiro. Mais aplausos. Finalmente, voltando o
silêncio, Bern voltou a repetir a mesma frase, agora na língua espanhola em que, inicialmente, a conhecera. Fecho de ouro. Afastado de lugares comuns. Decerto foi marcante o reforço positivo
do Sí, Se Puede que deixara para o término do discurso. O pú-
92
Jairo Martins de Souza
blico levantou-se. Os aplausos perduravam. Passemos para a fase
final da conferência. Foi o que a mâitresse da cerimônia orientou.
Mal conseguia controlar satisfação.
Aos convidados, peço iniciar o painel de perguntas…
Dossiê Monlevade
93
Capítulo 17
Inquietações. O dragão bancário investe contra M. Onde se
diz que suas chamas atingem o comerciante.
D
eparei-me novamente com alguns escritos digitados com formatação especial. Tombada e em negrito! Deixados como se fosse sugestão para que o analista não
perdesse orientação sobre as ações ora em andamento. Lembra
da dificuldade que disse, há certa de 30 páginas, ter um autor na
escrita de um livro? Em particular, naquele parágrafo, o tal doc x.
Acrescento mais uma. Se não consigo escrever pelo menos uma
página por dia, não sou um escritor. Tenho que vencer essa barreira! Pois bem, um pequeno papel, com clip na pasta manilha desse
capítulo, afirma em letras marcadas com pincel atômico: Operação Fruit. Tentativa de resgate da negociata. Inicia-se
cobrança de devidos! Mais ainda há…
Por exemplo, a visita do presidente do Banco de La Nación
à sede da Fruit de Piracicaba. Não por acaso. Fato, frise-se bem,
de conhecimento único e exclusivo de M que gravara a conversa
em fita de cromo para fim ora desconhecido. Nada adiantou. Foi
encontrada inaudível. No entanto, junto à mesma, figurava folha
de transcrição fonética em português praticado no interior de São
Paulo. Ininteligível. Ao lado, duas folhas pequenas, com dobras,
dois origamis com formatos de um barco e um avião que, quando
retornadas ao formato original, exibiam o mesmo trabalho. Com
um detalhe. Escrito em mandarim e francês. Francês. Aí é que
apareceu a prova textual do encontro!
– Os juros são altos, presidente.
– Sabias disso, M.
94
Jairo Martins de Souza
– Não posso pagá-los, a concorrência chinesa é cruel. Têm
unidades clonadas da Fruit que processam pedidos em alto mar,
a caminho do país consumidor.
– Não é isso. Soube por meus agentes que andaste desviando recursos. Inclusive que moras na área do aeroporto de Graal e
pagas altos salários a parentes.
– Tenho-os poucos, diretor.
– Mas em número suficiente!
– Avanças em área particular, superintendente. A sociedade
deve, não nego. O que não sabemos é quando e como poderemos pagar!
– Ah, a sociedade! Agora passas para o plural. Não gozaste
dos lucros no singular? Fazes como o político. Privatizar lucro e
ratear prejuízo.
– Sim. Sigo método de trabalho que não mudo.
– Certo. Gastaste o numerário posto por nós à tua disposição.
Não posso cobrá-lo com nota de empréstimo que assinaste com
teu diretor de faxina. Fizemos negócio praticamente a fio de bigode, lembras?
– Não somente isso. Lembro também que levaste algum lucro.
– Muito bem, M. Não vou desqualificá-lo como mereces. No
entanto, tenho que retrucar de forma virulenta. Nosso sistema é o
capitalismo. Não em toda a sua integridade. Então sua motivação
é objetivamente o lucro. Lucro é palavra ofensiva quando dita
com o significado que disseste. Devasta reputações. Caprichaste.
Ou melhor, excedeste, meu amigo. Tua entonação foi por demais
maldosa: sabes bem do que digo. Então juro pela saúde da minha
mãe, que há anos está nos céus, que não tenho qualquer ligação
com o ramo secundário de negócios do seu sócio Raimundo. Sei
que lida também no ramo de frutas. O senhor mesmo disse-me
que foi razão forte para convidá-lo para figurar na estrutura das
empresas Fruit. Com toda essa meia-volta, quero dizer que não
costumo trabalhar com laranjas. Muito menos podres. Isso posto,
nada mais tenho a declarar, pois desconheço qualquer assunto
dessa natureza que possas ter em mente lançar no mercado. A
tudo desmentirei. Farei como todo mundo faz. Direi que se trata
Dossiê Monlevade
95
de intriga a favor de interesse de grupos estrangeiros internacionais. Posso também fazer como manda a prática nacional: permanecerei calado. Não há provas!
– Certo. Fizeste bem o negócio, senhor caixa executivo. Somos fubá moído no mesmo moinho. No entanto, se confessei captação fácil, de boca, posso confessá-la no papel. Jaime Raimundo
é culpado, e deverá pagar a dívida em nome de Jesus.
– Cuidado, M. Não digas blasfêmias. Pode trazer mau agouro
para nossos negócios. Nunca leste no Apocalipse “Então vi subir
do mar uma besta que tinha dez chifres e sete cabeças, e sobre
os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças, nomes de
blasfêmia”?
– Precipitei-me. No frigir dos ovos, tenho temor a Deus. Todo
mundo tem. Até mesmo o diabo. Sendo assim, retiro parte do
que disse. No entanto, reafirmo que Raimundo é quem deverá
assumir o débito.
– Como?
– Não me perguntes, senhor responsável pelo lixo bancário
da nação. Sabes como fazê-lo de forma legal. Reflita. Pense. Podes iniciar cobrança inicialmente ingressando contra a minha pessoa. Não surtirá efeito. A despeito disso, aguardo providências
amanhã. Com isso damos início real a esse processo. Na parte da
manhã. Tenho pressa. Saudações.
Não tardou muito... Procuro por certo senhor M. Tenho notícias que não está, mas repito aviso de empréstimo não pago. Sou
emissário do de La Nación. Podes chamar-me cobrador.
– Ele não está. Passa dias em São Paulo renegociando cláusula secreta com diretores da Verlon.
– A senhora é?
– Brasilina. Dona Brasilina. Secretária. Para tais casos, o gerente solicitou-me encaminhar para Jaime Raimundo. Vou chamá-lo.
Pois não! – Senhor Raimundo?
– Sim. Às ordens. Mas, por favor, seja breve. Sou do setor de
produção. Não posso me demorar. A campainha toca e um grupo
de funcionários solicita-me ajuda. Aqui meu trabalho é inadiável!
96
Jairo Martins de Souza
– Ah, compreendo. Mas veja que nesse papel timbrado pela
justiça o senhor figura como o outro gerente dessa empresa.
– É verdade. Por aí vejo escrito que M ainda não alterou o
contrato da Fruit.
– Então sob as penas da lei, acuse recebimento desse ofício:
trata-se de ordem especial do próprio M!
– Dê-me cá. Pronto!
– Assinaste, Jaime?
– Sim, Brás. Não tive alternativa. O desconhecido disse ser
oficial do governo federal.
– Do que se tratava?
– Não vi bem. Pareceu-me aviso de cobrança. Estava colocando peças em máquina funcionando.
– Não estás preocupado?
– Não pensei em nada. Nem reagi. Fiz como judeu caminhando para a câmara de gás nazista. Sou fruta passada!
Dossiê Monlevade
A
97
Capítulo 18
A carta da irmã
resposta à carta mencionada por Bernard, nas
derradeiras linhas do capítulo 12, demorara
tempo apenas suficiente para cruzar o Atlântico. Fora deixada na
portaria do Hotel Cassino – apartamento 203 – com expressa recomendação de entrega em mãos. Ao lado do Aviso de Recebimento, anexado ao corpo do envelope, lia-se, em letra destacada,
a palavra confidentiel.
Nela, Liviah não dizia novidades, por exemplo, que tinha
saudades do irmão. Que ouvia queixas da Deneuve que, desde a vinda de Bern para o Brésil, passou a escrevê-la com mais
freqüência. Que estivera em Paris e assistira à peça Les Miserables -Merveilleuse! Que mamãe andara um pouco gripada, mas
melhorara. Que estava fortemente inclinada a cursar especialização em arquitetura, após concluir o curso de engenharia civil (ah,
Bern, quero aplicar urbanismo moderno na região de Guéret!).
Que estava de namorado novo! Que papai andara reclamando
envio de notícias diretas do filho (nada de recados, dissera!). Que
o irmão se cuidasse, e zelasse por não brincar com sentimentos de
terceiros. Que os primos…
As notícias do cotidiano da família trouxeram paz à alma do
moço. Às vezes sentia-se como o inconfidente brasileiro Gonzaga
quando compôs a sua canção no exílio. Tudo lá está como deixei,
suspirou aliviado. Um súbito sentimento de eternidade, em que
toda alma humana se regozija, fez-lhe tornar o corpo suavemente
relaxado, enquanto retornava com as folhas para dentro do envelope postal. Alongando-se na espreguiçadeira, pensou demorada-
98
Jairo Martins de Souza
mente sobre o porquê de Liviah nem mesmo ter citado o nome de
Marie! Escrevera terceiros. Ciúmes? Não há dúvidas! É. Tal e qual
pensei! Mas tenho certeza de que se tornarão boas amigas.
Foi por outro motivo que Bernard passou a sentir leve inquietação. Correspondências de família eram consideradas segredos
de estado. Invioláveis. Tais instruções paternas vinham de heranças ancestrais. Metaforicamente, cartas lacradas com selo episcopal de Mazarino nunca devem ser abertas a olhos públicos. É por
isso que sofria! Queria dizer a Marie sobre a carta da irmã.
A solidão quebra regras de conduta. O velho conversa sozinho. O criminoso encarcerado lê a bíblia. O japonês conversa
com pedras. O ladrão solitário na cruz diz querer acordar ao lado
de Jesus… Bern não resistiu e, mesmo omitindo o ciúme da irmã,
dissera sobre a carta confidencial e da antiga amizade com a Deneuve. No fundo fora empurrado por inesgotável desejo de dividir suas coisas francesas com alguém querido na terra do bisavô.
Marie fora cautelosa em suas indagações. Ouvira com calma. Entre um comentário e outro, perguntara, quase incidentalmente.
– Essa moça, a Deneuve, é amiga de infância?
– Não. Conhecemo-nos na Sorbonne. É ótima alma e tornouse amiga de minha irmã. Não deixamos de ter contato depois que
me graduei. Gosto muito dela!
– Para as brasileiras, Bern, isso é relativo. Que realmente
quer dizer a frase que disseste?
– Dou-me bem com ela! Nós franceses, Marie, falamos o que
sentimos. Esqueceste do sangue jorrado na revolução?
A frase final convencera a moça. A esposa de Jesus é a Igreja.
A foice do advogado é a palavra. Os males têm que ser cortados
pela raiz. Não era à-toa que Bern tornara-se advogado. Só não
dissera que não podia afirmar o mesmo pelo sentimento da Deneuve. De lucrativo ficou-lhe o desejo de Marie de escrever para
a irmã. A intuição de mulher dissera-lhe para pesquisar melhor
o tema. Afora saber que palavras escritas com amor, e letra redonda, dão início a belas amizades. Foi o que, adianto, aconteceu!
Dossiê Monlevade
99
Capítulo 19
Certa reunião em Luxemburgo. Os executivos de
La Nación
O
empréstimo pessoal que fiz a M, acobertado pela
bandeira da Verlon Fruit Shoe, não será pago
facilmente!
– Usaste as premissas legais do contrato social da Fruit como
manda a lei e a autoridade nacional?
– Não, fiz vista grossa! Precisava do cliente.
– Algum horizonte de acordo?
– Impossível. O homem sabe que, com o documento de crédito inicial que engendramos, não há chance de ser cobrado. É
zero! Notificamos a Fruit. Protestou! Como esperado, os outros
sócios não admitiram que tenha sido realizada tal operação. Pedem-nos para exibir o contrato de crédito e a promissória. Disselhes que isso é segredo de estado. Nem mesmo com pedido de
juiz. Por fim, senhores, tudo isso M disse-me secretamente em
reunião realizada na própria sede administrativa da fábrica em
Rio Piracicaba.
– A conversa foi gravada por nossos agentes infiltrados?
– Sim. Inclusive com transcrição fonética. É forma de despistar os agentes de segurança locais. A portaria é rigorosa em suas
revistas.
– Suspeito das intenções malignas de M por vários motivos.
– Cite-me um.
– Durante a reunião foi-me desqualificando como representante do nosso banco. Começou chamando-me presidente, – o
que sou de direito –, depois diretor, depois superintendente, depois
100
Jairo Martins de Souza
caixa executivo, depois responsável pelo lixo bancário. É dado a
ironias. Fala com a boca torta como quando se dá milho a bode faminto. Alongasse a conversa, chamar-me-ia cliente especial, cliente
comum e, na condição extrema, de devedor, como ele é.
– Aí está. Não nos chamará de mais nada depreciativo. Vamos triturá-lo com nossos juros e correções monetárias.
– Isso não faz nascer valor impagável? Se não nos dá conta
do principal que é, por si só, volumoso, como pagará o nosso
lucro?
– Para tanto, ele mesmo nos deu caminho. Não estão lembrados que sugeriu confessar publicamente que nos deve? Olhem.
Olhem. Basta atentar para determinado trecho na parte final da
nossa transcrição. Lá se lê, claramente: devo, não nego, Jaime
Raimundo irá pagar! Aliás, quando dirigia-nos para o embarque
em Graal, ele, M, confidenciou-me segredo, em off, não incluso
na ata de reunião. Disse-me ser ainda grande investidor em São
Paulo. Na área imobiliária. Tentou sensibilizar-me, creio que, no
fundo, deu-me dica que podemos seguir.
– Qual?
– Propôs envolver patrimônio fictício de si e da família, na
confissão, para conseguir confiança de Raimundo. Todos aqui no
banco sabem que esse deverá ser o verdadeiro pagador!
– Como?
– Um teatro. Uma simulação. M sugeriu concordar, além
da confissão, com uma garantia. Uma garantia hipotecária. De
fachada! Para inglês ver. Portanto, para qualificá-la, legalmente,
podemos redigi-la, e registrá-la na Bolívia. Tudo lá é mais fácil.
Lá, até mesmo alguns brasileiros desquitados, artistas famosos,
acabam legitimando situação de amásias. Casam-se. Inclusive por
procuração. Bem, mas o fato é que temos acordo bilateral firmado
com o pessoal de La paz, daí podemos dar aparente legalidade
ao documento. Não é muito comum, e não é que consigamos
eliminar eventuais suspeitas, mas… bem, com tal artifício, M
disse que forçaria psicologicamente Raimundo a assinar como
avalista. Ele lembrou-nos que o homem é ainda seu outro diretor.
No papel. Também a nossa gerência pode enfatizar e dizer a
Dossiê Monlevade
101
Raimundo que a assinatura trata-se de mera formalidade. Tudo
aqui é de fachada.
– Quero o meu dinheiro, custe a quem custar. Mas… você há
pouco disse ser procedimento aparentemente legal? Então, pergunto: é ou não é?
– Sim e não.
– Não entendi o porquê de aqui receber resposta paradoxal!
Cá não estamos dizendo de episódio relatado pelo antigo Zenão.
Nada de Aquiles e sua tartaruga. Trata-se aqui de assunto sério.
Dinheiro! Por acaso, não lembras estar falando com um diretor?
– Mesmo assim, confirmo o sim, e o não. O yes e o no, para
que fique bem entendido, já que estamos conversando diretamente de país estrangeiro comandado pelo príncipe de Luxemburgo.
Há ocasiões que funciona assim, senhor Diretor.
– Gosto de respostas diretas.
– Também eu, e gostaria de receber uma desse tipo do senhor. Agora.
– Pois não. Faça a tal pergunta!
Continuas liberando crédito irregular tal como fizeste no caso
M?
– Trabalho em banco do povo. Estatal. Não tenho satisfações a lhe dar. Nem a você, nem a ninguém. Com isso volto ao
que interessa, pois memorando recente, colocado sigilosamente
na minha mesa, diz que o corpo de advogados do nosso banco
posicionou-se a favor da proposta de M. Dizem assim copiando o
que lhes disse o superintendente de empréstimos, enfim, qualquer
que seja a fonte, o recebimento será bem-vindo.
– O setor aguarda sinal verde para concluir redação do documento.
– Não descarto alternativas. Por ora, guarde esse esqueleto
no armário da diretoria. Aparecerá em tempo certo!
Dossiê Monlevade
E
103
Capítulo 20
Jaime Raimundo
sse Jaime Raimundo que aí aparece no título é homem
festejado. A despeito de, faz tempo, ter sido destituído
da gerência da Verlon Fruit Shoe por um seu sócio-diretor chamado M. Portanto passa a ter tratamento especial, por razão também
especial. O fato é que o volume acima indicado, o de número 20,
simplesmente diz, Jaime Raimundo: verificar sobre sua vida na
Biblioteca Municipal!
Fora protagonista de um livro! Encontramo-lo mencionado
em diversas oportunidades, por ter sido obra folheada por Marie
e Bern.
Cá está! Ah, trata-se realmente da mesma obra literária. Escrita por um dos seus filhos! Por respeito ao leitor, não voltarei folhas
e folhas para confirmar que se trata do que testara garrucha 380
em um dos primeiros capítulos deste processo.
Escrevera quando criança! Se é que bem entendi. Fizera tudo
enaltecendo a família e procurando revigorar o respeito antigo
que os filhos tinham pelos pais e pela sociedade. Sugerira nas entrelinhas a criação de um memorial físico para o pai e a mãe. Não
tivera visão de futuro, é verdade. Quem poderia imaginar Monlevade com tamanhas perspectivas que a descoberta do petróleo
abriu? Não obstante, poeticamente, ter sido um tanto hiperbólico
em relação a tudo que nos cerca. Pecado leve. Se, nos livros, não
se colocam fantasias, o seu mundo fica como o nosso, o real.
Perde a graça!
Aqui, informa o documento, Jaime Raimundo deverá prosseguir sendo um dos participantes principais. Não o principal. Há
104
Jairo Martins de Souza
vários de mesma relevância, segundo o parecer dos analistas que
deram vistas à papelada. Há também nota, pasme o leitor, que
exprime opinião de Guimarães Rosa que recomendava que os
livros do tal autor fossem lidos em seqüência cronológica. Como
os seus. Por exemplo, Sagarana, Grande Sertão... Tutaméia, etc.
Portanto para melhor entendimento deste processo melhor que
se leia...
Se bem que, ele, o próprio Jaime Raimundo, nunca lera um
livro. Nem mesmo o que lhe fora consagrado!
Dossiê Monlevade
O
105
Capítulo 21
O Brás
José Brás aparece nestas linhas por razão diferente
do amigo Jaime. Mas a fonte é a mesma. Fora mencionado no memorial sobejamente citado, encarnado na figura
do filho que, quando criança, compartilhara amizade com o autor. Pais amigos, filhos amigos. Amizade de família. A esposa era
companhia de tricô da esposa de Jaime Raimundo. Seguem-se
muitas linhas em branco. Talvez o analista pendesse de algumas
informações. Daí fica a razão destas escassas linhas…
Dossiê Monlevade
J
107
Capítulo 22
Charlie Chan
osé Rego, faixa dos 35, baixo, – 1,65m de altura –,
com aproximados 75 quilos, disse algo para o colega ao lado, Richard Albano. Rego era moreno claro com cabelos
sempre cuidadosamente penteados.
– Albano, em suma, a coisa está preocupante... Ligeiramente
mais alto e mais velho, a tez era escura, o outro assentiu com
suave movimento de cabeça e, ao mesmo tempo, cutucou um
terceiro senhor que, por sua vez, consternado, escutava o diálogo
que já se arrastava por horas.
O discurso de todos era o mesmo. O do pessimismo. Não citados anteriormente, o grupo era composto de sócios da Fruit em
Cocais e Monlevade. O motivo de estarem reunidos aqui na sede
central da empresa? Necessidade. As maquiavélicas atividades de
M já incomodavam a todos os participantes do conglomerado.
Um quarto elemento, que se encontrava caminhando pelo ambiente, observava com olhar suspeito alguém que trocava idéias
com fornecedor de São Paulo na portaria da administração. Ah,
M gosta de reunir-se sozinho com esse tipo de gente. O sócio que
dizíamos vigiá-lo estava em forte estado de excitação. O celular
de um deles tocou. O dono, um evangélico, sentiu parte do seu
sofrimento humano se esvair ao ouvir a letra do conhecido corinho Com Cristo no Barco. Quem estava do outro lado da linha
era inusitadamente o amigo ao lado que, por motivos de sigilo,
procurava estender o assunto sem que M, nem mesmo de longe,
notasse qual era a razão das expressões carregadas de preocupação. Tinha notado que o mesmo concluíra a conversa e acelerava
108
Jairo Martins de Souza
o passo na direção dos sócios. Na verdade, o que M fazia é retornar para sua sala na presidência. Tinha ordens e novas missões a
encomendar. Nos últimos segundos mudou de idéia e passou por
eles. Parecia sorrir matreiramente.
Na rua, separada do ambiente por colossais vidros de segurança, via-se outro investidor que com eles dividia a mesma ansiedade. A chamada de celular, – agora o de José Rego –, anunciando em tom alto o ‘por qué non te callas?’ de Juan Carlos
Bourbon, fez descontrair por instantes o ambiente carregado pelos humores da conversação. Todos os demais foram desligados
e a atenção geral voltou-se para a chamada que Rego vai iniciar
a atender. Rego pressionara botão verde de aceite do aparelho
silenciando por instantes o encontro, e ao mesmo tempo, emudecendo o divertido toque de chamada que baixara de arquivo da
internet. Com isso e com o fechamento da porta do escritório de
M, o grupo finalizou sorrisos, aguardando a seqüência da troca
de idéias que deverão vir a aflorar na ligação.
– Rego, aqui é da parte de Torquato Viglioni.
– Viglioni? Um dos novos sócios da Fruit Cocais?
– Sim. Não o conheço pessoalmente, Rego. Para inscrever-me na sociedade Fruit acertei tudo diretamente com M. Explico
que me buscou no mercado por meio de empresa de head hunters. Paguei-lhe diretamente a cota em dinheiro vivo há cerca de
dois meses. Cobrou-me luva de alto valor. Prometeu-me mundos
e fundos, mas passado tempo combinado não vejo nada em troca
a não ser o trabalho.
– Isso se passa também comigo, Viglioni. M às vezes diz nas
entrelinhas que nosso trabalho é como um sacerdócio. Uma missão. Dispensa recompensas monetárias.
– É o que suspeitava, meu caro. Mas não assumo essa postura como ovelha que segue para o matadouro. Não estou balançando o rabo de felicidade, enfim, não sou cordeiro a ser ofertado
para honra e glória de M.
– Então junte-se a nós, Viglioni, estamos planejando ações para
desbancá-lo das diretorias comercial e financeira. A idéia é analisar
bem a situação para não trazer transtornos de mercado para a Fruit.
Dossiê Monlevade
109
– Concordo. Falamos a mesma língua. E de minha parte,
Rego, antecipei-me acionando alguns mecanismos. Passo-os para
você em absoluto movimento de confiança. O Jaime Raimundo é
amigo de juventude e disse-me ótimas referências de sua pessoa,
mas saliento que, para nossa segurança, essa conversa está sendo
criptografada.
– Entendo. Tenho também minhas precauções. Troco de chip
e operadora quando faço ligações que concernem a assuntos relativos a detalhes administrativos da Fruit.
– Ótimo, então terás guardado aí que poucos sabem que
estou mantendo M sob constante vigilância. Contratei serviços
de antigo colega de infância. Um detetive. Seu nome é Charlie.
Charlie Chan.
– Chan? Lembra-me Fu Manchu.
– Esse vestia quimono. Tem pouco a ver com o outro. Era
bandido. Chan era artista. Na realidade, o pai desse meu amigo é
descendente dos chineses que, há décadas, mantém rede de pastelarias em São Paulo. Andou trabalhando na polícia civil mineira
na época em que esta usava fardamento azul.
– Como a dos policiais americanos?
– Sim. Mas o importante, no caso, é que era fã dos métodos
do herói e mais ainda dos seus quadrinhos. Tentava aplicá-los. O
filho aprendeu com ele, e fez melhor: os desenvolveu. Além disso,
somente usa armas em casos de extrema necessidade e é grande
admirador do Tai I Chi.
– Muito bem. Também sou adepto da não violência. Mas pratica também o kung fu?
– Sim. Somente quanto não há outra opção... Mas vamos ao
que interessa. Descobriste algo?
– Ainda não. Se bem que Chan tenha me dito, em relatório
de última hora, que está próxima a hora de vir a público uma das
armas de M.
– Qual?
– O tal contrato de exclusividade com a Verlon International.
Passo-lhe mais essa informação sigilosa porque, já disse, estamos
unidos nessa mesma canoa. Pode estar furada! É algema que tem
110
Jairo Martins de Souza
colocado em todos nós, seus parceiros. Quando cobrei-lhe atitude, jogou-me no rosto tal argumento. E mais ainda. Ameaçou-me
congelar fornecimento dos produtos da Vulcabrás. Sou também
comerciante aqui em Cocais. Segundo o colega Jaime Raimundo,
foram muitas as oportunidades em que M deu-lhe o mesmo golpe
baixo! Não sou de me estressar facilmente, mas o homem não é
nem um pouco criativo...
José Rego não apreciava longas conversas ao telefone e, enquanto Viglioni falava, aproveitou para observar, pela vidraça em
forma de báscula, uma senhora idosa que passava empurrada
pela filha. Distanciara o celular do ouvido. A moça carinhosamente dirigia palavras de afago à doente. Deve ter sofrido um acidente vascular cerebral, foi o que Rego pensou. A voz de Viglioni
soava-lhe distante. Sabe-se lá por que acontece de uma pessoa
ficar paralisada como a que aqui vejo passar empurrada. Coisa triste. Lembrou que tivesse sido um aneurisma, tudo poderia
ter sido precedido por fortíssimas dores de cabeça. Rapidamente
suas dores existenciais diminuíram de intensidade. Vivemos de
comparações. Estou reclamando de perdas financeiras, mas gozo
de saúde excepcional. Não mais ouvia o que dizia o seu interlocutor, e intentou dar ponto final ao texto que se alongava.
– Então, Torquato, tenho aqui o seu número registrado no
meu chip empresarial. Temos os mesmo ideais e objetivos. Peço
aguardar contato e telefonar-me somente caso haja algo novo
quanto às investigações de Chan. Mobilizarei forças acessórias…
Bom dia de trabalho!
Viglioni não gostou do final da conversa. Era sujeito reconhecidamente sedutor e não gostara da secura do homem do outro
lado da linha. Ficara momentaneamente frustrado. Esse sujeito
simplesmente não deve ter aprendido a falar e a despedir-se pelo
telefone. Muitos jovens fazem dessa forma. No entanto, passados
alguns minutos, digerira o mal entendido, e entendera as razões
de Rego. Não podia culpá-lo. Torquato, já lhe dizia a esposa, você
fala demais… Lutava contra o hábito. Por fim, acionou novamente a tecla send do seu móvel para trocar idéias com outros sócios
da Fruit. Ficara de partilhar seletivamente com seus confrades
Dossiê Monlevade
111
as informações que receberia daquela facção de sócios que fora
também ludibriada por M.
Enquanto isso, Rego resumia para o outro grupo de colegas o
assunto Chan, a aliança que fizera, e tudo o mais que entendera
das intenções de Torquato Viglioni.
– Torquato? – Nunca conheci ninguém com esse nome. Somente na escola ouvi falar de um de sobrenome Tasso. Este aí foi
poeta da Renascença italiana que escreveu Jerusalém Libertada.
Sujeito interessante! Enfim, quem fez tal longo comentário foi o
quarto sócio que há pouco adentrara no ambiente (não me ficou
anotado o nome: é homem de pouco relevo para a história. No
entanto, seu sobrenome era Doval e tinha ascendência espanhola).
São Paulo, 30 dias depois. Calmamente assentado em cadeira estofada com motivos florais, Charlie Chan repassava fotos
tiradas ao longo da semana com sua máquina Canon de última
geração. Definição de imagens? Excelente! Lastreada em tela de
altíssima resolução: 35 Mega Pixels. As noturnas à base de lentes infravermelhas ficaram perfeitas. Ah, refletiu, como a simples
observação de uma fotografia nos traz à tona o desenlace de verdadeiras histórias de amor ou o de autênticos segredos policiais!
Como foi o caso. Mentalmente colocou uma das fotos em movimento para trás, fazendo breve flash back. Lá está M chegando
à sede da Verlon em São Paulo, capital. Avenida Paulista. Endereço caríssimo. Na pasta recoberta com couro de jacaré pantaneiro levava – pelo menos é o que lhe disseram os alcagüetes
– o contrato para prorrogação de concessão pessoal e exclusiva
do nome Verlon e da tecnologia Fruit. Três homens de elevada
estatura o acompanhavam. Um negro; o outro, branco. O terceiro era mulato com rosto amassado. Parecia um antigo boxeur
conhecido nacionalmente como Maguilla. Vestiam ternos pretos
e camisas brancas. Causavam impacto à vista de suas extravagantes gravatas borboletas. Um deles pagou ao motorista da limousine da qual M tinha apeado, enquanto os outros observavam
atentamente as pessoas que passavam nas imediações. Vou ter
trabalho para obter aquela pasta, Chan refletiu enquanto anotava
tempos e movimentos no seu caderno de planejamento de ações.
112
Jairo Martins de Souza
Anos atrás fizera breve, mas proveitoso curso de engenharia de
produção. Em nenhum momento vira o homem se desligar da tal
pasta, pois percebera que ficava presa ao seu corpo por meio de
minúscula corrente de aço que passava discretamente pela palma
da mão. O detalhe de uma das tomadas revelou-lhe, sutilmente,
tal contingência. Noutra foto, em ângulo particular, viu que estava
costurada internamente pela parte de dentro do braço do paletó.
Invisível à vista desarmada.
Bem, enquanto isso, as coisas tinham mudado muito desde
a conversa entre Rego e Viglioni. Autorizado pelo segundo, Rego
entrara em contato com Jaime Raimundo. Ambos decidiram que
uma ação conjunta seria mais adequada para a situação. A união
faz a força foi o que disseram, concluindo animadamente os entendimentos. Monlevade e Cocais seguiriam de braços dados. A
escolha de Charlie Chan também fora abonada por todos e ficou
decidido que deveriam ampliar o escopo dos seus serviços. Era
reconhecidamente bom detetive. Conhecido na praça, não era
daqueles que se dedicavam a casos fortuitos como de seguir maridos e esposas infiéis. Um tipo pesquisador. Mantinha pessoal
especializado para assistência psicológica para si e seus clientes:
inclusive por meio de colaboradores como I. Campos, um psicanalista com poética refinada. Sua valia maior? Chan assegurara
a amigos que era assisti-lo em casos de dramaticidade extrema.
Fora ele que traçara linhas básicas da personalidade de M. O que
não significava não gostar também da utilização de métodos ortodoxos. Não. Chan tinha por hábito gastar algumas horas assistindo às series do Peter Gunn, Mr. Luck e outros detetives de classe.
Hora de estudo. Faço como o jogador de futebol faz, dizia, faço
parte do meu trabalho brincando. Assim pesquisava e aplicava
diversos estilos de investigação, inclua-se aí os dos peritos de medicina forense da famosa série Detetives Médicos. Lutava para
não se tornar viciado nesses entretenimentos televisivos. Na parte
prática, freqüentara cursos da SWAT e mantinha ligações pessoais
com policiais da Interpol, FBI, o Mossad israelense e organizações
secretas governamentais latino-americanas: inclusive setores seletos da polícia federal brasileira e da PM2. Currículo pesado!
Dossiê Monlevade
113
Por tudo isso Chan estivera na capital paulista a serviço exclusivo do pessoal de Viglioni. Em operação que, no âmbito da
policia federal fora conhecida, conforme batizada por Chan, de
Tio Patinhas. É conhecido o hábito dos federais de colocar nomes
inusitados em suas investidas audaciosas contra grandes organizações marginais. O mesmo fazem alguns detetives particulares.
Como Chan. Por que tal nome infantil para serviço de risco? Um
dos seus auxiliares perguntou-lhe. Há aqui outro tipo de tio patinhas, alguns patos e muito dinheiro envolvido. E, afora isso, a
Fruit é a moeda # 1 de M. Por fim, satisfeito, concluiu lembrando duas coisas: a primeira é que continuava apreciando a leitura
de quadrinhos; a segunda é que apelidara com aquele nome de
forma inconsciente. Explicou que não fazia como os detetives de
filmes americanos que padecem dentro de automóveis comendo
hambúrgueres nas madrugadas frias de Nova Iorque. Preferia ler
quadrinhos…
Tal como agora sob o facho fino da lanterninha de tecnologia
laser acoplada no seu cell phone. Alguém do lado de fora do Mercedes Classe A jamais imaginaria que assim estivesse procedendo,
enquanto aguardava a chegada de M ao Hilton paulista. Segundo fora informado, o empresário teria encontro de negócios com
executivos da Verlon. No veículo, usava insulfilm com menos de
58% de transparência.
Mais tarde, Alceu Orosimbo, um dos seus auxiliares, dirigindo um Xsara Picasso azul escuro, avisara-lhe, via walkie talkie de
freqüência exclusiva, que M se encontrava finalizando refeição no
famoso Restaurante Brahma. O local? Esquina da Ipiranga com
a São João. Comera, como antepasto, alguns ceviches, – peixes
marinados em suco de limão –, degustara lagostas ao termidor
e agora, dissera, sorvia a derradeira colher de Petit Gateau. Na
mesa repousavam, vazias, uma taça e uma garrafa de Cousino
Macul reserva Dom Luís, tinto. O café espresso e a conta já se
achavam a caminho. Próximo à sua mesa, outro agente, estou
dizendo de um dos ligados a Chan, e que repassara as informações para o tal Orosimbo, notou que a pasta meta da tio patinhas,
ou moeda #1, como queiram, fora passada para os braços de
114
Jairo Martins de Souza
um dos seguranças. O olheiro do Chan era um prestador de serviços terceirizado, bastante familiarizado com a polícia paulista e
com vasta rede de informantes. Detalhista. Para cada anotação
que fazia, utilizava caneta bic de cor diferente. Chan instruíra-lhe
não tomar nenhuma ação, pois não pretendia, a princípio, nem
substituir nem tomar posse da tal pasta. O plano era fotografar os
contratos e documentos que nela constassem. Chan tinha visão, e
estava tratando o processo da forma como faria com caso simples
de crime de colarinho branco.
Dossiê Monlevade
115
Capítulo 23
Torquato, José Rego e O. Costa. Procura-se advogado
D
ia 8.12.1951 – 14:23h. Biblioteca do Centro Histórico na antiga fazenda de Jean Monlevade. Sala
de eventos corporativos.
Miracy. Dona Nêga. Nada de transferir chamadas para a sala
de reuniões. Senhores, o almoço no Graal foi magnífico. A carne,
de primeiríssima qualidade. Mas temos muitos problemas a discutir nessa reunião de sócios insatisfeitos da Fruit. Para maior grau
de confidencialidade não deverá haver ata escrita nem gravada.
As anotações devem ser tomadas conforme necessário e posteriormente destruídas em triturador de papéis. Devemos ter em
mente que, o que aqui for falado, deverá ser considerado como
se o fora dentro das paredes de consultório de psicanalista ou
o confessionário de um padre católico. Nada de gravadores. Os
celulares? Desligados.
Quem concisamente assim abriu a reunião foi Viglioni. Ao
seu lado, perfilados e sérios, estavam Rego, o Zé Brás e o Jaime
Raimundo. Os demais sócios da Fruit Cocais e Monlevade, seletivamente convidados, estavam já sentados. Alguns deles, que se
encontravam totalmente marginalizados quanto às atividades administrativas da sociedade, repararam a ausência de M, dos seus
parentes, – o homem expandira suas ações fisiológicas –, e dos
que compactuavam com seu modo despudorado de proceder.
– Precisamos de um advogado! Foi o que Rego disse afirmativamente após levantar o braço e pedir a palavra. Questão de
ordem, ponderou. As ações de Chan precisam de apoio jurídico,
e nós mesmos careceremos de análise de profissional do ramo
116
Jairo Martins de Souza
quanto à documentação que buscamos. O murmúrio afirmativo
dos demais confirmou, sem necessidade de voto aberto, o acerto
da declaração.
– Alguma sugestão de nome? Agora foi o Brás quem indagou
aos colegas.
– Bern. O doutor Bernard Monlevade. Lembram-se da segurança e conhecimento que demonstrou ter durante a palestra que
nos deu em Piracicaba? Na ocasião, respondeu a todas as nossas
dúvidas sem vacilar. O rapaz é bom! A sugestão partiu de O. Costa, um sócio que demonstrava grande timidez. Normalmente, nas
reuniões entrava mudo e assim permanecia até que o condutor
dava como encerrados os trabalhos.
– E pode? Não é francês?
– Sim. Mas credenciado pela OAB. É nome de peso. Além do
que é um privilégio ter ao nosso lado um profissional com o nome
do fundador...
Para encurtar a conversa, escrevo que todos se colocaram a
favor da contratação do rapaz. Não falo, citando nominalmente outros sócios, porque pouco influenciaram no andamento da
reunião. Digamos que, por assim dizer, eram os do baixo clero.
Somente um deles, Anselmo Amador, lembrou com voz baixa sobre a inexperiência do advogado. Fato irrelevante para o caso,
disseram-lhe os demais. Profissional caro? Não acredito. Costuma
participar de ações humanitárias. No final, Costa, em nome dos
presentes, foi encarregado de fazer imediatamente contato com o
causídico estrangeiro.
Dossiê Monlevade
C
117
Capítulo 24
Bernard se encaixa na Tio Patinhas
onfesso que, após pesquisa, ficou-me dúvida sobre
o exato momento em que Bern Monlevade iniciou
participação em questões investigativas, policiais. O motivo fora
alguns números apagados no dorso dos documentos e que me
custaram indecisão quanto ao momento de inserir o advogado
em diligência policial.
Não obstante, fica aqui conclusivamente confirmado que ‘a
necessidade é a mãe de todas as coisas’. Explico. Costa era sujeito
sabidamente calado, mas ao deparar-se com Bernard, soltou a
língua. Precisava expectorar todas as tensões que sentia em relação à situação delicada em que se encontrava na sociedade de M.
Ainda mais, puxado pelas perguntas bem articuladas e inteligentes do rapaz, dissera-lhe sobre Charlie Chan e seguira relatando
sutilezas de formação da Fruit que tinham escapado até mesmo a
outros sócios mais argutos.
– Há documentos comprobatórios? Em dado momento Bern
indagou.
– Não. Encontrá-los é uma das missões de Chan. A principal,
você sabe, é checar o contrato secreto. A tal tio patinhas...
Costa havia confabulado com os demais sócios sobre a questão dos honorários advocatícios. Bern não aceitou contrato de risco com percentual sobre futuros lucros que os contratantes pudessem auferir, caso as coisas chegassem a bom termo. Dependo de
terceiros, disse, minha obrigação é de meios, não de resultados!
Bom negociador, Costa, no final, firmou contrato em nome dos
demais interessados com remuneração dez por cento menor que
118
Jairo Martins de Souza
o valor sugerido pela tabela OAB. Nem eu, nem você. Dissera
após escutar e propor pretensões. Além disso, adiantou dinheiro
em espécie para que o advogado fizesse frente às despesas iniciais. As circunstâncias do caso tornavam necessária toda discrição possível. Para outras informações não pertinentes à natureza
histórica da Fruit, dissera: Doutor Bernard, por favor, refira-se a
Jaime Raimundo, ao Brás ou a Viglioni.
Foi o que o jovem imediatamente fez. Temos um agente
que atualmente está em São Paulo acompanhando M 24 horas
por dia. Ele tem uma rede muito bem estruturada na região, foi o
que lhe explicou Torquato Viglioni ao expor a situação. No final
do encontro, Viglioni explicou-lhe o modus operandi do recém
contratado Chan e recomendou-lhe entrar em contato com o próprio.
– M suspeita que está sendo investigado? – Bern perguntou-lhe.
– Talvez. Ele sempre mantém agentes a seu serviço. Contudo
Charlie Chan é bastante experiente no ramo. É invisível. Tal como
a radiação que queima a pele das pessoas que se expõem aos
prazeres trazidos pela luz solar. Daí tenho poucas preocupações
a respeito.
Dossiê Monlevade
N
119
Capítulo 25
No salão de embarque
o aeroporto de Graal, enquanto Bernard aguardava chamada na sala de embarque indicada no
bilhete, dois repórteres japoneses da famosa rede NHK faziam
reportagem sobre a influência do boom da descoberta de petróleo
no vale do Piracicaba. A Al Jazeera já estivera por aqui. Gente
curiosa, pensou o francês. Quase entortam o tronco para agradecer qualquer cortesia que se lhes faça. Basta dirigir-lhes a palavra. Qualquer palavra. Fora pesquisado por um deles. Sorrira
espontaneamente no instante em que a moça de olhos estreitos
e amendoados, de pronto, perguntou-lhe, em inglês peculiar aos
nipônicos: príz, uót taime du iú stárt uorquing? (com licença, a
que horas começas a trabalhar?)
Quase imediatamente divagou pensando se Charlie Chan
seria parecido com o outro repórter que, ao lado dela, parecia
falar português claro. Sorrindo, lembrou estar meditando asneiras, afinal de contas, Viglioni disse-me ser ele um descendente
de chineses. Não japoneses. Foi quando também lembrou que
os amarelos são homens que estão na moda. Um gigante que
desperta ameaçador. Enfim, de certa forma é com um deles que
tenho agendado encontro na capital dos paulistas.
Pensou em Marie, suspirando fundo. O que, aliás, não é coisa que se faça em conturbado ambiente de aeroporto de grande
movimento. Pode-se perder uma chamada de vôo. Mas tal como
alguém entorpecido por excesso de sono, sentiu a cabeça vacilar e
ficou totalmente à parte de gente que se abraça, que faz promessas e se despede. Não mais repara em executivos que, preocupa-
120
Jairo Martins de Souza
dos ou felizes, dão orientações e falam sem cessar em celulares.
Alguns, absortos, escrevem e-mails em notebooks de tamanhos
cada vez mais reduzidos. O moço quase sonha.
Em Paris, antes de dormir, Bern tomava taça de vinho tinto
com o pai. Aliás, Guillaume, o pai, dizia que esse hábito faz atenuar males do coração (um cartão de visita, perdido entre a miríade de papéis desse dossiê, informava ser ele também médico.
Como a mãe). No entanto, era a mãe, refiro-me à de Bern, a sua
companhia noturna constante, pois raras eram as ocasiões em
que o pai não estava em Guéret. Juntos faziam comentários sobre
o que fizeram ao longo do dia. Brincava com ela. Trocavam idéias
e novidades com a irmã. Telefonavam para o pai… Passava em
revista os sites de advocacia. Conversava com amigos, falando
de futebol. Já deitado, e sob o embalo do suave sabor da bebida
preferida de Dionísio, revia e avançava páginas de livro que o faziam rapidamente cair em sono profundo, por fim, nos braços de
Morfeu, o rei que inventou o sono. Nessa condição de abandono,
sonhava constantemente com os inocentes tempos de férias passadas em Guéret. Ali, entre a casa e os vinhedos, voltava a brincar
com o pai, o avô, os primos, os pequenos amigos...
Em Monlevade, – breve deverá ser o tempo em que, oficialmente, terá que admitir –, o seu vinho chamava-se Marie. A alegria
do contato com a mãe chamava-se Marie. Cá no Brésil, tudo que
pedia em termos de amor pedia o colo de Marie. Corrijo. Quase
tudo. Pena que não tomasse o lugar das partidas de futebol. Não.
Esse é insubstituível tanto para o francês quanto para o brasileiro
que queria ser. O moço já sonhava com dupla nacionalidade.
E os livros? Ah, não é que aqui novamente a mulher perca
espaço. Afinal de contas, nele, como em todas as outras esquinas
desse mundo, ela é a personagem principal. A celula mater. Ponto
final.
O que me adverte que, há poucas linhas atrás, aguardávamos embarque de Bern para a cidade de São Paulo. Embarque
de vôos domésticos de Graal. Por sinal, ambiente onde muitos
viajantes apreciam o hábito da leitura. De todos os tipos. Romances, memoriais, biografias, obras históricas, livros técnicos, obras
Dossiê Monlevade
121
de auto-ajuda, apostilas, manuais diversos, jornais, revistas, etc.
Alguns passageiros mais temerosos abrem a bíblia pedindo proteção, pois mesmo com as excepcionais estatísticas de um por
milhão de vôos problemáticos, acreditam mais na proteção de
Nosso Senhor do que nos rigorosos controles de manutenção da
aviação internacional. Tudo nela tem tempo de vida definido, independente do estado de qualidade. Outros têm os mesmos temores, mas não os colocam a público. A maioria, como eu, tem
predileção pelo Salmo 23. Além de tudo isso, o que os torna iguais
é que todos praticam a leitura com o anseio de tornar mais leves
as horas que se arrastariam tediosas durante as prolongadas esperas. Em particular, é aí, também em Graal, que ficaria marcado
o início da viagem de Bern para fazer parceria com Charlie Chan.
Fora feliz. O avião atrasaria somente 30 minutos para partida. A
visão ocasional de écran, alertando sobre vôo que faria conexão
para Paris, fê-lo ficar sobressaltado. O moço abandonou a leitura
de obra jurídica. Ocorreu-lhe profundo sentimento de saudade
da mãe, do pai, de Liviah, das partidas do Parc des Princes, da
Sorbonne, da amiga Deneuve… Ah, aqui o seu cálice transbordava. Bern imediatamente sacou caneta e papel e iniciou escrita
de cartas. Não e-mails. Estes, pensou, servem bem e tão somente
para fins comerciais.
Aço Airlines, vôo 803 com destino a São Paulo. Última chamada, portão 64. Senhores passageiros... Bern levantou-se rapidamente com o cartão de embarque em uma das mãos.
Marie correspondia aos anseios de Bern. Sentia-se bem. Sentia-se amada. É o que toda mulher precisa, é o que refletia durante longos momentos. Queria casar. Ser feliz. Ser dona de casa.
Nas horas vagas, arquiteta. Passar horas sossegadas assistindo
tevê a cabo. Que os dramas das Desperate Housewives fiquem
somente na tela LCD da televisão do seu quarto. Não. Não tinha
nascido para tanta instabilidade! Sonhava o futuro como via no
seriado da família de negros do My Wife And Kids. Isso sim é viver
o cotidiano com alegria! Explico que aqui passo ao largo do texto
real do dossiê, e escrevo isso, porque a moça era alma antiga, e
não daquelas modernas que dizem se ligar na chamada produção
122
Jairo Martins de Souza
independente. Nada de bancos congelados de genes especiais. Se
o mundo é bom, as pessoas são boas. Ah, que bom! O francês é,
por natureza, um cortejador. Funciona ainda regido por método
antigo. Bern enviava-lhe recados, lindos arranjos de flores sem
motivos extraordinários, pequenos presentes… Aguava a plantação! Todos esses afagos deixados com freqüência no endereço da
Vila Tanque. Às vezes trazia-lhe o próprio, em mãos.
Sim. Direi sim no altar! Esse é o marido que quero ter sempre
ao meu lado! Ultimamente nem mesmo lia revistas de arquitetura
na qual já dissemos interessada em futura carreira. Nesses dias
achava o assunto tão inútil como a presença ou não de um vaso
chinês no canto de sala esquecida. Um amor colocado de molho, deixado de lado por ato de Deus. Ato divino. Interessava-lhe
sim os poemas românticos dos brasileiros dos meados do século
que passara. Chorava ao ler o desespero de Álvares de Azevedo
e os arroubos de Casimiro. Interessava-lhe a igreja. Interessava-lhe Bernard. Bernardo em português. Teria filho com esse nome.
Pesquisara e sorrira ao conhecer que, na iconografia da igreja católica, era nome de santo que emanava favos de mel da boca por
serem tão doces as suas palavras. Na vida as coisas não sucedem
por mera coincidência! Entretanto, quando Bern irá dizer dos seus
sentimentos a papai?
Dossiê Monlevade
123
Capítulo 26
U
São Paulo
m homem da equipe de investigadores de Chan
aguardava-o em Congonhas. Bern identificou-o facilmente, pois na saída da retirada de bagagens, trazia uma placa
com a inscrição B. Monlevade. Tome cuidado com seu notebook,
disse-lhe o policial civil. Há várias quadrilhas aqui que mantêm
observadores avançados nos aeroportos de Congonhas e Guarulhos. Analisam os passageiros e avisam comparsas motoqueiros
que ficam aguardando nas imediações. Daí segue-se assalto. Mas
não se preocupe, hoje estás sob manto de proteção segura! Bern
agradeceu, recebendo corrente de aço que lhe fora ofertado pelo
receptivo agente. Prenda a pasta do seu note no braço, dissera-lhe. A partir daí, partiram para hotel localizado no centro da cidade. Não lhe fora dito o nome. A caminho, suspeitaram estar sendo
seguidos por sedã preto ocupado por dois homens. Repararam
que o motorista usava chapéu e capa preta. Parece aquele ator
chinês que arremessava chapéus de aço em determinado filme
de James Bond: foi Bern quem comentou. Então, ajudado por
aparelho de GPS de tecnologia recente, o agente de Chan enveredou-se agilmente por vias e ruas secundárias e, rapidamente,
despistou o eventual perseguidor. Conhecia a cidade como a palma de suas mãos e seguira evitando colossais congestionamentos
de veículos. Contava também apoio de grosso livro guia das ruas
e logradouros da cidade. Edição antiga. Nasci e aqui fui criado,
explicou ao rapaz que ficara surpreendido com sua habilidade e
confiança.
124
Jairo Martins de Souza
Às 16h30min, chegaram ao Alcatraz de downtown São
Paulo. O hotel não era muito novo, mas tinha projeto e design
inovadores. Todos os seus apartamentos eram decorados como se
fossem celas das antigas prisões do complexo de Alcatraz, ainda
mantido em ilha próxima à cidade de San Francisco. Lá o visitante pode, por meio de pagamento de taxa especial de visita turística, participar de dia típico de autêntico prisioneiro. Chan gosta
de hospedar-se aqui, disse o agente para Bernard. Em Roma,
como os romanos. Diz também que faz parte de sua atualização
profissional. Avalia, por alto, como se sentem os criminosos que
usualmente com sua inteligência e argúcia costuma enviar para o
xadrez. Lamenta que o Carandiru paulista tenha sido demolido.
Poderia ser hoje centro turístico mais sofisticado que o próprio Alcatraz californiano. Por fim, mantém reserva quase fixa no apartamento 1808. É supersticioso. 1808 foi o ano em que Dom João VI
abriu os portos do Brasil às nações amigas. Entretanto, confessou
a Bernard que na primeira vez que lá se hospedara, tinha levado
uma bomba de flit. Tinha horror a baratas e o soldado desenhado
na lata do pesticida dava-lhe ligeira sensação de segurança. O seguro morreu de velho, complementou, com tudo isso nunca abria
mão de sabonete Aristolino que guardava embrulhado em lenço
de pano. Por fim, se naquela ocasião, em 1808, significou libertação de antigas amarras coloniais, cá lembra a Chan que há outras
mais velhas ainda, e que devem permanecer sendo perseguidas
pelos homens de boa vontade. Caso contrário…
Mesmo sendo descendente de chineses, sou adepto de alguns
procedimentos dos japoneses, Chan disse, amigavelmente, após
cumprimento dirigido a Bernard. Gosto de escrever no estilo do
haikai e dos enigmas do Koan: ajudam-me a desvendar crimes
misteriosos. Fazem-me aguçar percepção e raciocínio. Faz bem
à minha profissão. Tomas um chá em cerimônia que lhe ofereço
como marco de início dos nossos contatos? Ao longo dela poderíamos trocar idéias sobre como proceder nossas operações em
conjunto. Sim, claro. O mordomo do andar poderá nos trazer em
segundos. Não se surpreenda, pois provavelmente deverá vir vestido como um carcereiro. Ah, entendo.
Dossiê Monlevade
125
Sirva-se primeiro, disse-lhe Chan, após a colocação na
mesa, pelo funcionário, de bandeja de prata com as xícaras de
chá. O líquido quente já estava em condições de ser sorvido.
O empregado do hotel, o camareiro, viera realmente vestido a
rigor. Na sua cintura reluziam algemas de aço inox. Não, por
favor, sirva-se você, senhor Chan. É uma honra conceder-lhe
esse privilégio. A honra é minha, senhor Bernard, em ceder-lhe
a vez…
Milenar jogo de amabilidades! Ambos conheciam o sentido
da cerimônia de chá nipônica. Os antigos samurais praticavam-na
assim. O período de cortesias dera, a ambos, tempo de estudos
para ordenar idéias e pensar estratégias. Enfim, como sempre, o
primeiro gole deve ser sorvido pelo visitante. Daí iniciaram conversa detalhada…
Entre uma e outra observação de ambas as partes, Bernard
contou a Chan tudo que O. Costa relatara-lhe. Em seus mínimos
detalhes. Quando deu por finalizado, foi a vez de Chan fechar informações fornecidas pelo grupo de Torquato Viglioni. Acrescentara algumas próprias. É claro, não dissera tudo. Um investigador
experiente nunca dá todo o mistério do pulo do gato, foi o que
refletiu, enquanto mirava os olhos do rapaz. Procurava vestígios
de veracidade em tudo que o jovem lhe relatou. Não demorou
tempo para concluir que podia confiar integralmente no advogado. Alma pura. Foi o que deduziu animado com o reforço enviado
por Monlevade.
Um bandido normalmente não dorme duas vezes consecutivas em um mesmo quarto, Chan disse-lhe. O mesmo funciona
com o tirano. Dizem que Napoleão tinha esse hábito como prática. Temem ser assassinados. Guardadas as devidas proporções,
M, aqui em São Paulo, também procura não ter quarto fixo. Meus
agentes descobriram que, na classificação de oficiais de justiça,
ele é inimigo público número um. Nunca é achado. Há premiação
especial prometida para quem primeiro localizá-lo. É indiciado
por compra de diplomas, fraude à execução, falsidade ideológica,
múltiplas identidades… Com uma constante.
– Qual? Perguntou-lhe Bernard.
126
Jairo Martins de Souza
– Costuma sempre usar pessoas de bem como bois de piranha.
Certa ocasião deu declaração polêmica em determinado processo.
Disse que aprendeu tudo aquilo com os políticos nacionais. Note
bem, são centenas de pequenos delitos que entopem as caixas de
entrada do judiciário paulista. De forma sigilosa, um servidor público cedeu a um dos meus agentes a ficha completa de M há algumas semanas atrás. Custou-nos bom dinheiro. Páginas e páginas
de formulário contínuo. Com isso soube que, no Alcatraz, troca de
apartamentos todos os dias e nunca fica no décimo-terceiro andar. Felizmente conseguimos decodificar a seqüência que gosta de
adotar. Pelas nossas projeções, hoje mesmo deverá se hospedar no
1717. É o porquê da minha equipe estar também aqui. Temos pessoal especializado em todas as saídas, inclusive alguns disfarçados
de funcionários do hotel. Nossa missão, hoje, doutor Bernard, é
botar as mãos sobre o tal contrato secreto. Sem falta!
A cópia do cartão magnético feita por elemento infiltrado por
Chan na portaria do Hotel Alcatraz funcionou magnificamente. O
led verde acendeu-se três vezes de forma intermitente e a fechadura emitiu discreto sinal sonoro, indicando que a porta podia ser
acionada pela maçaneta. Chan aguardou alguns segundos com
a orelha esquerda encostada contra a porta. Orelha de batedor
Sioux. O ouvido treinado procurava perceber algum ruído de movimentação do lado de dentro do aposento onde M supostamente
estava dormindo a sono solto. Pelo menos é o que indicava a
micro-câmera instalada na parte frontal do abajur com cobertura
de chapéu chinês. Charlie Chan consultou novamente as imagens
captadas por celular. Tudo ali era eficiente e confortável, mas toscamente instalado de forma a dar idéia de mal organizada cela
de veterano prisioneiro. A decoração era a específica dos que ficavam aguardando execução. Como na fila do corredor da morte. Nos moldes de San Quentin, entenderam? Lá de fora não se
ouvia um pio. Apenas o ressonar cadenciado de M. Chan delicadamente moveu a porta. Bern, no fundo do corredor, observava
a movimentação nas escadas e no elevador. Era madrugada, e,
afora raro hóspede que voltava de programas noturnos, o silêncio
era absoluto. Vinha sendo assim há mais de quarto de hora.
Dossiê Monlevade
127
A porta cedeu vagarosamente à pressão dos ombros de Chan
até um terço de sua abertura. Com a mão direita colocada abaixo
da linha dos ombros carregava um Taurus 32, cano curto. A mão
esquerda firmemente postada sobre o dorso inferior do braço
direito dava-lhe garantia de qualidade de tiro. Em todas essas
ocasiões, a expectativa dessa possibilidade trazia-lhe imagem do
enérgico instrutor de tiro dos seus tempos de escola de polícia. Não
vacile, caso se depare com adversário. Independente de qualquer
circunstância, mantenha a arma sempre apontada para o espaço
entre os olhos do elemento. Assim, aluno Chan, em hipótese alguma,
você deixará de atrair-lhe atenção. Enfim, cá estou novamente em
ação. A fraca luminosidade do corredor lançou risco de luz sobre
o ambiente e, a partir daí, iluminou parcialmente a ante-sala do
apartamento. Chan avançou alguns centímetros. Encontrou
resistência. De repente teve o braço abruptamente arremessado
contra o portal. O Taurus quase caiu-lhe da mão. Acostumado
com tais circunstâncias, recuperou-se rapidamente, e encaixou o
sapato do pé direito entre a porta e o portal. Tinha biqueira de
aço. Prosseguiu empurrando a porta de volta, fazendo força com
os ombros e todo o lado esquerdo do seu corpo. Ganhou terreno.
Ato contínuo, relaxou pressão, dando idéia que se arrependera e
pretendia bater em retirada. Nem as pessoas do seu meio, e nem
mesmo os amigos mais próximos sabiam que Chan era medroso
por natureza. No entanto, era bem treinado e não fugia do perigo.
Então, lembrando-se de amigo pastor evangélico, pensou em dizer,
saia daí, diabo… Saia em nome de Jesus!
Não foi bem assim. Retornou com fortíssimo movimento de
ombro, atingindo violentamente o adversário, jogando-o contra a
parede por detrás da porta. Ouviu grito de dor contido. Trouxe-a
de volta, estou dizendo da porta da suíte, com força duplicada.
Repetiu o movimento, vai e vem, por mais duas vezes, até sentir
que o corpo do outro se esborrachava. Daí a pouco saiu totalmente da traseira da porta. O adversário desmaiara.
Tudo aconteceu em fração de segundos. Claro que há aí certa
dose de exagero. Ainda tenso, Chan prosseguiu cautelosamente
invadindo o ambiente. Reparou que nem mesmo Bern se aper-
128
Jairo Martins de Souza
cebera da movimentação, pois o próprio corpo do segurança de
M absorvera os ruídos dos impactos da porta contra a parede.
Puxou-o para dentro. Tinha o nariz quebrado e o supercílio aberto. Amordaçou-o. Charlie fora massagista de time de futebol em
sua juventude, e rapidamente estancou o sangramento na região
dos olhos com chumaço de algodão. Amarrou-o com barbantes e
tiras que trouxera em bolsa colocada em cinturão. Ultrapassada a
sala de estar, estava prestes a entrar no quarto onde M repousava
de suas iniqüidades. Foi no exato momento em que percebeu, por
meio de sombra projetada pela luz do corredor, que um segundo
homem se aproximava perigosamente. Vinha sorrateiramente do
banheiro. O golpe passou perto. Como nos filmes de Bruce Lee,
Chan aproveitou a energia da qual o próprio agressor vinha possuído e com preciso movimento de mão espalmada, atingiu-lhe a
base traseira do crânio. O homem caiu sem sentidos. Vai dormir
por tempo suficiente, foi a projeção que o detetive vaticinou. Havia medido a pancada com precisão. Voltou a investigar meticulosamente ao redor.
Ao abrir a porta do aposento sentiu ar fresco no rosto. A corrente de ar que circulava de forma contínua fê-lo olhar para as
cortinas que dançavam vagarosamente tocadas por ventos suaves da madrugada paulista. A janela estava aberta e a cama vazia.
Assustado, M havia escapado pela escada de incêndio externa ao
edifício. Bom para o detetive. Basta de violência por hoje. Não foi
difícil localizar a pasta deixada na boca de entrada dos dutos de
refrigeração. Aliviado, foi até a porta do apartamento e, curvando
o dedo indicador, convocou Bern que o aguardava ansioso.
– E então?
– Tudo sob controle, Chan respondeu-lhe. Missão cumprida.
– E quanto a esses dois homens?
– Não estão mortos, mas M provavelmente os substituirá. Não
admite falhas. Já avisei ao gerente de operações para dispersar
pessoal conforme planejado. Saiamos pelo elevador de serviço.
Tudo dá a entender que a operação patinhas já faz parte do meu
arquivo morto...
A pasta, doutor Bernard, é toda sua!
Dossiê Monlevade
A
129
Capítulo 27
A verdade
í está. O tal contrato de exclusividade não existe!
Toda a documentação encontrada na pasta de M
fora cuidadosamente colocada, por Bern, sobre a mesa de reuniões do escritório de Chan em subúrbio paulista. Aqui temos apenas propostas técnicas e comerciais de fornecimento de couros,
tintas e vernizes da Verlon para uma empresa que M mantinha
aqui nessa capital. O homem é um mentiroso! Veja, Sr. Chan, o
fax que tenho em minhas mãos aniquila tudo sobre o assunto.
São Paulo, Para Sr. M. De Verlon S/A. Caro senhor, respondendo sua consulta, informamos que não temos como política
empresarial fechar contratos de exclusividade com empresas e
particulares, quaisquer que sejam os objetivos... Causa-nos espécie a sua proposta, etc.
Dossiê Monlevade
N
131
Capítulo 28
Onde o escritor disseca o dossiê
ão tenho dúvidas! A ordem com que foram organizados os papéis do dossiê de São Benedito
(conforme nomeado por cronista do judiciário. Tal apelido está
ligado a nome de córrego existente nas vizinhanças do já referido moinho de grãos), faz-nos concluir que fora escrita no conceito folhetim. Mesmo formato com que Machado liberava seus
romances ao público, no apagar das luzes do século dezenove.
Por partes! Na ocasião, volto a dizer deste dossiê, talvez entregues
pelo autor a alguém que, sob orientação expressa, guardavamnas sem mesmo saber o que nelas constava. A razão? Elementar,
como solicitamente esclareceria S. Holmes ao médico Watson. A
fragmentação do próprio texto explica. A suave tentativa de interatividade, de quem relatou, reforça. Portanto os textos pedem
explicações. É aí que entro. No entanto, há momentos em que,
tanto você, como eu, precisamos de breve recapitulação. Como
agora.
Um certo cofre encontrado acidentalmente, tal como se introduz aventuras do arqueólogo Indiana Jones (que Harrison Ford
tão bem encarnou!). Um rapaz estrangeiro quer conhecer antepassado importante. Um desconhecido, M, de gerente, em inglês,
ao que tudo indica, um empresário aventureiro, chega à próspera
João Monlevade. Dotado de poderes especiais, seduz a grupo de
comerciantes local. Funda empresa coletiva e gasta mal. Arrebanha, sob vistas grossas de banco estatal, dinheiro para...
Dossiê Monlevade
133
Capítulo 29
P
A confissão. A garantia. O Fiador.
assados poucos meses após reunião da diretoria
em Luxemburgo, – da qual tomamos conhecimento na pasta de número 19 deste dossiê­–, o Banco de La Nación
inquietou-se novamente. Baseado em fortes indícios, investigadores do setor de empréstimos negavam soluções a gerentes que se
sucediam repetidamente. Não. O banco nada receberia em retorno do empréstimo concedido a M. Nem do próprio. Nem da Fruit.
Momentos de tensão. O setor de cobranças judiciais se exaltara.
Também percebera que a transação ofendera às normas contratuais da empresa monlevadense. Faltara-lhe, estamos dizendo do
De La Nación, a assinatura do sócio Jaime Raimundo, anteriormente negligenciada.
O banco não se fez de rogado. A determinação veio de cima.
O diretor ilustrara o comando, lembrando famosa frase de H.
Kissinger: no mundo nunca há nada de graça, sempre alguém paga
a conta do jantar. Desde que não seja uma instituição bancária,
complementou. Para bom entendedor, meias palavras bastam.
A ordem tinha tom raivoso, como se fosse judicial. Cumpra-se.
Se não de M, e da Fruit, o De La Nación deveria receber de
alguém.
Com esse objetivo foi montada força-tarefa – uma task force,
no linguajar dos seus gerentes – para montar plano de ação. O
mal feito deveria ser corrigido. Ainda que fosse por meio da montagem de outro. Mas que este surja efeito desejado, alertou indignado. O que a instituição não pode, definitivamente, é ficar em
prejuízo. Nossos acionistas não podem pagar por nossos erros.
Fez também ameaças. Talvez encaminhe inquérito administrativo.
134
Jairo Martins de Souza
Mas isso fica para depois.
Peço empenho especial de todos os senhores para resgatar
esse crédito. Para tanto, contamos com ajuda de equipe especializada. Na verdade, consultoria acostumada a articular recursos
razoavelmente dentro da lei, mas incubados de pontos obscuros.
Sua arte é inseri-los de tal forma a não serem percebidos por
olhos desatentos ou desavisados. Esse grupo de apoio, – escolhido a dedo –, é composto principalmente de advogados habituados a lidar com oportunidades.
A solução não tardou por esperar, pois, em tarde de inspiração incomum, os olhos do chefe do setor jurídico brilharam. O
motivo? Lembrara-se de Jaime Raimundo. E de M. Recordara-se da possibilidade de engendrar confissão. Pensou sobre ela. A
consciência doía-lhe. Na realidade era homem de bem. No entanto, não era essa a hora de desenterrar o defunto? Não fora essa
a orientação do presidente na decisiva reunião de Luxemburgo?
Poderia aprimorá-la e armar emboscada para o comerciante. O
palpite partira ao longo de sessão em que, para seleção de idéias,
exercitavam prática de brainstorm. O Jaime! O ex-diretor da Fruit.
Ele é a chave da porta para saída de provável prejuízo. Era dele
a assinatura que faltara na ocasião da negociata com M. Nada
melhor do que ela mesma para dar ar de seriedade ao que venhamos a fazer.
Antes tarde do que nunca! O bancário buscou documentos
e recordou que realmente era ele, estamos dizendo do monlevadense, que, na ocasião, ocupara o cargo de diretor da Fruit.
Por poucos dias. Tempo suficiente. Como Jânio Quadros, quando
governou o Brasil. A lembrança fez-lhe acelerar mudança de humor e sorrir para si mesmo. Danem-se meus antigos estudos de
ética kantiana. Dane-se tempo de seminário e do PCB de Prestes!
Já estou dentro do jogo. Agradava-lhe demonstrar conhecimento
da história da sua maltratada pátria. Não que a situação fosse
igual a do ex-presidente, afinal de contas, o comerciante não fizera carta-renúncia. Nem nada. Estão lembrados que M destituiu-o, estamos novamente dizendo do Jaime Raimundo, em reunião
relâmpago, conforme exaustivamente repassado nos autos deste
Dossiê Monlevade
135
dossiê? Não no papel. Aí que está! Bingo!
Não estamos em Vegas, mas acertamos o jackpot! Foi o que o
contratado satisfeito deduziu. Muito do que aconteceu na formação da sociedade da Verlon Fruit Shoe foi feito de forma verbal.
O homem sorriu e disse para os que ouviam, verba volant, senhores, verba volant... A justiça leva em conta somente documentos
escritos, aqueles que fazem parte do seu mundo de fantasia. O
das letras. O dos sonhos. O do coelho de Alice...
Com isso, o banco pode, senhores, por meio de preciosa
aliança já ratificada com M, aplicar pressão adequada, coagindo
psicologicamente Jaime Raimundo, e esposa, a assinarem
confissão. Por exemplo, conforme primeira idéia, dizendo ao casal
que tal colocação de assinatura trata-se de mera formalidade.
Inclua-se aí que seja feita, estou ainda dizendo da assinatura, em
local distante do ambiente psicológico e do ritual de ambiente
fechado de cartório. Sem testemunhas. Ainda que no próprio
documento conste absolutamente o contrário. Advirto que, não
sendo assim, pode parar para pensar. Pode até mesmo não
assinar. Temos que pegá-lo, – esta é uma boa sugestão –, quando
estiver bem ocupado, com todos os sentidos voltados para a
produção dos frutados da empresa que estamos por executar. O
ideal seria quando estivesse no calor de canteiro de obras, com a
cabeça dirigida para as agruras do trabalho, enfim, sob sol quente
e a sujeira do minério vermelho dessas terras. Diremos, nada
lhe acontecerá, prezado Jaime, afinal de contas, tens garantia
de imóvel colocado à disposição por M e seus queridos. Esse
argumento foi, por nós, vastamente estudado.
O advogado excitou-se. Tinha os ânimos totalmente transformados. Apertava as mãos de satisfação. O riso tornou-se torto.
De cachorro. Do Rabugento, o malicioso protagonista das redes a
cabo de televisão (o texto integral do dossiê informa ser esse o Rabugento, o Muttley, o cão detetive do desenho animado que tem
riso característico, irônico, enfim, paródia feita a partir de Columbo, o dissimulado detetive estrelado por Peter Falk. O que tinha
um olho de vidro). O bancário do setor de cobranças gostava de
assisti-lo.
136
Jairo Martins de Souza
Pelas informações que recebera dos psicólogos que trabalhavam a serviço do de La Nación, conhecia bem Jaime Raimundo. Homem com origem no campo. Crédulo. Assinaria facilmente como fiador. Especialmente sob ameaça de demissão da
própria Fruit Shoe. Para tanto, solicitaria a M, o homem ainda
lá se mantinha como diretor, que prosseguisse cumprindo seu
papel, decerto, usando, mais ainda, a força da representação da
Vulcabrás. Afora isso tudo, faria constar, no documento, a ilusória garantia hipotecária mencionada em Luxemburgo! Levaria
a idéia à diretoria de sua instituição. Sorriu mais uma vez pensando, e assumindo o grande valor que tivera para ele a famosa
reunião daquele Principado. Para confirmar, revirara páginas até
tranqüilizar-se com o seu escrito integral, à página 103.
Foi com tal carta na manga do paletó que se encaminhou
até a sala do conselho de administração. Veja, caro Senhor
Diretor, o que está aqui escrito. De forma literal, Ipsis litteris
(como advogado de elite, mais do que o usual, o funcionário
insistia em usar frases em latim. Achava chic). Ouça. Alguns
dos nossos associados já ouviram essa frase anteriormente.
São declarações do próprio M… devo, não nego, Jaime Raimundo irá pagar. Precisamos desse homem. Precisamos desse
Jaime Raimundo. Encontramos o nosso Jesus! Essas três últimas frases, ditas com entusiasmo, brotaram da garganta do
presidente da instituição.
Daí tudo foi feito a toque de caixa. Poucas horas depois, a
pedido do de La Nación, o cartório de Santa Cruz de La Sierra
já elaborara documento com seguinte explicação no frontispício:
confissão de dívida com garantia hipotecária. Por que tal cidade
boliviana? Perguntou Jaime Raimundo muitos anos depois. Teve
resposta seca de um magistrado: foi opção do banco. Aproveitouse de brecha legal. No conteúdo, M e seus parentes assumiam
a dívida contraída em nome da Fruit. Como fiador, estava em
aberto campo adequado para o pobre Raimundo e a esposa que,
durante todo o episódio, prosseguia com a rotina de cozinhar e
tratar dos filhos e agregados. Ela, praticamente, não aparece nos
autos!
Dossiê Monlevade
137
Enquanto isso, já de posse do documento – na ocasião, chamado de doc Santa Cruz –, em arquivo pdf, os advogados do
banco, e o representante do tabelião, atravessaram a madrugada trabalhando. Às 4 horas, precisamente, deram trabalho como
concluído. Os galos ainda não haviam cantado. Nem uma. Nem
duas. Nem três vezes. Talvez tenham se lembrado de Pedro, o
apóstolo que vacilou na fé.
O jato executivo especialmente fretado já se encontrava
estacionado em hangar especial do aeroporto de Graal. A bordo
estavam M e seus associados do de La Nación. Grupos de homens foram espalhados imediatamente para localização do cobiçado fiador. Tarefa fácil. Desnecessário dispêndio de recursos.
Gosto de fazer como o FBI faz, comenta um dos doze detetives
participantes. Jaime Raimundo foi pego em plena atividade capinando pragas que atacavam abacateiro em uma das áreas selecionadas de sumos da Fruit. Instantaneamente repromovido a
sócio-gerente pelo Diretor, simplesmente indagou ao banqueiro.
Mesmo sendo o que disseste que sou, no papel, por que devo fiar
obrigação que toda a família de M assume ter contraído e aqui se
responsabiliza?
– Não se amofine. Trata-se de mera formalidade. Inclusive
está escrito aqui na capa que há garantia hipotecária dada por
M para essa operação. Uma casa, de valor, localizada em São
Paulo.
– Não entendi bem. Respondeste-me pergunta que não fiz.
– OK, então, a resposta que tenho para o senhor é: não sei!
M simplesmente encaminhou-nos até vossa senhoria. O de La
Nación gostou da idéia. Tens cadastro mais branco que as glaciais antárticas. A propósito, ele também nos disse algo quanto
a cortar vendas de mercadorias para seu negócio! Melhor que
assines agora (ah, Raimundo, é claro, que conforme está escrito
aí, por sua importância, esse ato de confissão teria que acontecer
dentro de cartório. Se possível com ar refrigerado. Não aqui nesse
local pleno de poeira e suor. Na mão terias caneta tinteiro e não
essa enxada que tens pendurada nas costas, enfim, ao lado de
testemunhas, e lida em voz alta pelo tabelião. Serias alertado que
138
Jairo Martins de Souza
a garantia hipotecária é parcial. Não total, como lhe disseram, e
como não mostrado na capa do documento. Obedecerias a um
ritual. A uma cerimônia. Não assinarias. Mais claro ainda é que,
aqui, não consegues ler essa letra miúda, até mesmo apagada em
pontos chaves, ou entender esses termos jurídicos e números que
aí colocamos. Esquisitos. Mesmo que não redigidos em aimará ou
quíchua: línguas bolivianas. Tudo isso é considerado futilidade.
Tanto por nós, como pelos órgãos do Estado).
– Estou confuso, diretor. Envergonho-me de dizer-lhe, mas
não ouvi direito as frases que disseste. Soaram-me como murmúrios. Não as entendi. As últimas, em especial, pareceram-me
língua dos anjos. Tenho problemas de audição nas duas orelhas.
– Disse-lhe que M pediu-nos para reforçar que estamos próximos do Natal. Você pode ter aborrecimento com falta de mercadoria. Estás se esquecendo da representação da Vulcabrás que ele diz
ter sob controle? Já reduziu a cota do Bazar. Pode cortar-lhe tudo!
– Não. Não me esqueço desse poder especial desse diretor
da Verlon Fruit Shoe. Nunca. Foi motivo capcioso pelo qual me
ajuntei à sociedade. Continuo tendo medo. Tenho família e filhos
para criar. Dê-me cá. Não quero aborrecimentos com M.
– A sua senhora também deve apor assinatura!
– Por quê?
– És casado em comunhão universal. Preciso do de acordo
do casal.
– Está em casa, preparando almoço e olhando as crianças.
Simplesmente diga a ela que solicitei que assine onde indicado.
Não se amofine.
– Agradeço. Encontrar-nos-emos nos salões da justiça dos homens. Um mundo que não conheces. Um mundo fechado. Um
mundo fechado a 7 chaves. O mundo fechado do Direito civil.
– Não entendi bem o que disseste.
– Entenderás mais tarde.
No dia seguinte... Mãe, tem um homem aqui na varanda de
casa! Diz precisar de assinatura autorizada.
– Estou indo. Estou indo... Bom dia, moço (Paro por aqui.
Atendo à ordem do analista desse envelope de número 17. Diz
Dossiê Monlevade
139
ter razões de sobra: “o capítulo é por demais penoso, e poupolhe leitura de escrita que pode vir a ser repetitiva”. O fato é que
o escritor, – o que não é comum –, decidiu por não antecipar
aqui a mesma redação de outras cenas futuras. Diz que são
diversos os trechos em que há malsinadas coletas de assinatura.
Mas também não promete colocá-las quando de suas ocorrências.
Aí não entendi bem! Mas garantiu ser tal omissão plenamente
justificável, confirmando não comprometer o entendimento do
processo, e complementa de forma literal: “decerto que, nessas
ocasiões, a frase final é a mesma, quando o oficial de justiça
agradece, dizendo, (sic), obrigado. Obrigado, senhora. Obrigado
pela assinatura!”).
Dossiê Monlevade
O
141
Capítulo 30
Amor
s finais das tardes, no Hotel Cassino, traziam a reboque algo que Bern Monlevade desconhecera até
então. Anda. Anda mais rápido, tempo! Às vezes o tempo não lhe
obedecia. Aí o jovem dava-lhe troco, deixando-o vagar solitário
nas dependências de seu apartamento. Seguia mais cedo para o
Alto da Samambaia. Lá, no topo do mundo, mais perto do céu da
Vila Tanque, mergulhava em pensamentos, a bordo do Bel-Air,
até momento certo de acionar a campainha da casa de Marie.
Gostava de ouvi-la repicar. Era suave. Como o da Avon Chama.
Nem preciso dizer que o moço era correspondido. Por incontáveis vezes já repetimos isso. Mas o amor feminino é assim:
precisa confirmação todas as manhãs, todas as noites… O casal
em que o marido serve o desjejum para a mulher na cama todos
os dias, é mais feliz. Tem mais valor que carregá-la no colo! O
rubro na face da garota matava-lhe qualquer sombra de dúvida e
fazia-lhe bater mais rápido o coração! Se quiseres, minha amiga,
podes dizer de coisas mais românticas que fazem o mesmo efeito.
Por exemplo, como a história de um sapo que se transforma em
príncipe, ou um pezinho que cabe em sapatinho de cristal...
Mas a vida não funciona assim! Então devo voltar imediatamente ao encontro vespertino entre Bern e Marie. Encontramo-los sorrindo! (Ah, ao ver tal cena, peço desculpar-me pela
distração que tive ao encher lingüiça, enfim, fazendo mau uso de
tempo precioso. Não é que tenha cometido pecado capital, mas
percebo que, desviando-me dos dois namorados, quase tirei de
você sensação agradável que amolece, é certo, até mesmo o co-
142
Jairo Martins de Souza
ração duro de banqueiro nacional). De fato o que se vê são duas
juritis encostando biquinhos.
Que permaneçam usufruindo desse gozo celestial, enquanto os observamos suficientemente de perto para ouvir o que
dizem um para o outro. Provavelmente de boca deverão ser falas
comuns. Como passaste de ontem para hoje? Um doce de leite
com queijo minas? Tímidos, não ainda se abriram de fato com os
predicados da linguagem, mas, sabemos, é óbvio, que o corpo
fala por eles. Que se mantenham silentes, pois a cada novo encontro tudo recomeçava do zero. As emoções, o encantamento...
Não lhes aborrecia o barulho de alguns carpinteiros que, na casa
ao lado, preparavam palanque para reza de missa ao lar livre.
As procissões religiosas da Vila Tanque sempre foram famosas e
fazem parte da tradição local, foi como, a ele, Marie explicara.
Dissera também que o mês de maio era o mês de coroação da
Virgem. No fundo queria aproveitar e dizer-lhe ser, além disso, o
mês das noivas. Sem perceber, finalizara informando que há anos
atrás não se permitia a presença de negros e índios na tal celebração. Passado infeliz!
Bern era católico e gostava de discutir religião estabelecendo
paralelos com a filosofia e a psicanálise. Não hoje. Bastou-lhe, já
que Marie dissera algo característico do Brésil, retrucar com mais
um orgulho de francês. A França, Marie, é na Europa, a filha mais
velha da Igreja, alguns a chamam a primogênita de Maria. A história Mariana da França teve início bastante cedo, dissera! Quarenta anos, digo 40 anos depois de Jesus Cristo, uma embarcação
acostou às margens da região de Marselha, trazendo a...
Nesse ínterim, o pai da moça, que aparecera rapidamente
para saudar o rapaz, aproveitou para convidá-lo para jantar. Fazia
gosto em ver a sua querida assim tão bem acompanhada. Bom
moço. Talvez daqui a alguns dias venha conversar comigo em
especial. Se não me chama breve, chamo-lhe eu. Estamos em
Minas Gerais e já passa da hora de identificar as suas intenções.
Por ora sei que são somente amigos, ah, esses jovens…, hoje nunca se sabe ao certo. No entanto, o que temos para essa noite é
frango com quiabo e angu. Frango de terreiro: carne magra e
Dossiê Monlevade
143
dura. Saborosíssima. Típico manjar dos mineiros. Para acompanhar, tenho garrafa de bom tinto chileno, o Toro de Piedra. Para
aperitivo, se for do seu gosto, posso servir cachaça de Salinas. De
primeira. Toma. Cheira. Experimenta. Joga um pouco no chão.
É para que os santos não nos deixem faltar. Chama-se Guaraciaba. Tenho também a Leonor... Não. Obrigado. Ela é mesmo boa.
Não arde. Mas ainda não tomei gosto por cachaça pura. Somente
quando misturada com gelo, muito açúcar e limão. Experimentei
logo quando cheguei ao Brasil. Muito forte. Melhor ficar com o
vinho. Vou buscá-lo... O agradecimento viera acompanhado por
largo sorriso.
O quê você dizia antes de papai entrar, Bern? Marie indagaralhe, retomando a conversação. Seus olhos brilhavam. Como luz!
Dossiê Monlevade
145
Capítulo 31
O pai de Marie convoca Bernard...
N
ão sou Jessé, o pai da jovem disse-lhe, nem quero
trazer à baila antiga história bíblica, mas sou pai de
uma outra santa. Uma outra Maria. Sei que o senhor chama-lhe
Marie. Por ser assim, gostaria de ter algumas satisfações. Antes disso, faço-lhe elogio. Reparei que brincaste e fizeste afagos na nossa
cadela quando aqui chegaste. Pelos abanos de rabo, a alegria e o
olhar ansioso do animal, parecia que era o próprio dono quem chegava após longa ausência. Gosto disso, senhor Bernard. Gosto de
pessoas que apreciam animais... Lembram-me Francisco, o santo.
Aliás, minha filha disse-me ser o senhor homem católico. – Sim, é
verdade (foi o que Bern respondeu-lhe, sem deixar de reparar que,
pela terceira vez, fora chamado com o pronome de tratamento,
senhor. Aí rapidamente entendeu que se o pai de Marie tivesse dito
você, poderia julgar estar sinalizando aproximação não desejada
para momento solene).
Estou em audiência especial, sorriu intimamente, lembrando-se dos tribunais de Paris onde era chamado não somente de
senhor, como também doutor. Então o pai de Marie desfiou o rosário, explicando que sua família era assim, era assado, inclusive
repetindo, somos descendentes distantes do povo francês etecoetera e tal, e que sonhara e fizera versos românticos quando nascera-lhe a filha e, finalmente, decerto ele e a esposa sonhavam para
ela um casamento com rapaz católico, e novamente acentuando
que ficara satisfeito que o pretendente atendia àquele quesito...
A tudo Bern escutava com atenção. Interessante! Em nenhum momento, ele, Bern, dissera de tão distante intenção conju-
146
Jairo Martins de Souza
gal – ainda que avisado antecipadamente sobre algumas atitudes
arraigadas desse povo. Riu com seus botões, lembrando-se das
recomendações do político mineiro que conhecera no Copa. É
claro, era educado. O chefe da casa falava. Ele ouvia. Fase das exposições. Daqui a pouco passará para o interrogatório. Ele deve
ser tudo aqui, segundo a tradição: promotor, testemunha, provas,
juiz...
No final, cedera a tamanha precipitação e dissera que queria
namorar a filha do monlevadense. Agora teria que dizer abertamente para a própria. Já em hora avançada – dorme-se cedo na
bucólica Vila Tanque – fez acordo de horários e outras combinações. Não sei se é conveniente que venhas todos os dias. Temo a
língua comprida da vizinhança. Falo não por você, mas por puro
zelo pela reputação de minha filha.
Cumprido papel de pai, o dono da casa voltara ao normal.
Com um despropósito! A longa conversa impedia-lhe de convidar o namorado da filha para degustar costelinha assada com
bastante alho na sua capa de carne. Fica convite postergado para
amanhã, dissera, recolhendo-se para a área de dormitórios da
mansão.
Ah, que aquela conversa não chegue aos ouvidos de mamãe
e Liviah. Temo que tenham reação de genuíno protesto.
No entanto, Marie não teve a mesma atitude. Não protestou.
Sim. Quero namorar com você, Bern! Se você não me pedisse,
pedi-lo-ia eu. Já com meu pai quero ter ajuste de contas.
Não agora!
Dossiê Monlevade
147
Capítulo 32
Não se vive somente de problemas. O turfe monlevadense
P
áreo final do grande prêmio Vale do Aço. Montados por jóqueis de renome mundial, – incentivados pela presença, na platéia, do proclamado cavaleiro Nelson
Pessoa –, elegantes e portentosos cavalos galopavam já perto da
linha de chegada. Parecem-nos dos árabes que serviam aos oficiais da Legião Estrangeira. Alguns arfavam vigorosamente. Fosse
sacada fotografia aérea, com aproximação via satélite, ver-se-ia
que a nata da cosmopolita sociedade monlevadense ocupava todos os espaços do hipódromo de Areia Preta. As mulheres, vestidas com esmero, traziam elegantes e vistosos chapéus. Alguns
totalmente brancos. Outros coloridos. Perfeitas combinações com
os vestidos e as, às vezes, quase imperceptíveis anáguas. Enfeitavam graciosamente as instalações sóbrias do requintado ambiente. Já a proximidade do final de dia trazia a bordo o frescor das
tardes da região. Então os homens, sem desconforto, trajavam
belos ternos de tecido leve e chapéus da moda. O uso do tecido de linho branco havia retornado com grande intensidade.
Alguns, além disso, compareciam desnecessariamente apoiados
sobre bengalas de luxo. Algumas de suas pontas eram decoradas
com cabeças douradas de onças, leões, etc. Como as dos lordes
ingleses do século dezenove. Reunidos em pequenos grupos, não
deixavam de elogiar o desempenho dos animais, e o gosto apurado das mulheres que, aqui e ali, exibiam os últimos lançamentos
da moda mundial.
Marie exultava de felicidade e destacava-se entre as beldades
presentes. Ofuscava de certa forma até mesmo a famosa modelo
148
Jairo Martins de Souza
internacional, Naomi Campbell, que fora exclusivamente convidada para ilustrar o evento. Não. Não que fizesse de propósito.
Atraía os homens como o pôquer faz com o jogador. Por onde
passava, prosseguia sendo avaliada em altíssima conta no julgamento que homens e mulheres sempre fazem nesses acontecimentos sociais. Não é o homem o árbitro da elegância? Mesmo
quando durante tempo de espera de um para outro páreo, ela
abria seu encantador sorriso. Natural. A moça, nesses tempos em
que a cada esquina de Monlevade há consultório de profissional
especializado, era das poucas a ter esse predicado dispensando
aparelhos ortodônticos e outros artifícios. Fora privilegiada por
dádiva materna. Uma abelha que próxima dela voasse; um vendedor de sorvetes que pedia passagem; um aviso de alto-falante
comunicando vitória de cavalo a ou b, enfim, um azarão, tudo era
motivo particular para que seu encantamento não cessasse.
Ao seu lado, Bern Monlevade respirava satisfação. Nada que
ocorresse fora do espaço ocupado por ele e a moça trazia-lhe
grande interesse. Por olhar faceiro da namorada, perdera até mesmo o final de concorrido páreo em que um dos cavalos vencera
por diferença ínfima. A decisão dos juízes somente tomada após
consulta a tomadas fotográficas quadro a quadro. Em corridas
de cavalos vence-se por frações de cabeça. Não milímetros. Fato
incomum que deveria ser normalmente festejado pelo rapaz. Mesmo com a gigantesca tela digital colocada à disposição da platéia,
no momento crucial, olhara Marie de perfil. Estava devaneando. Abaixo do contorno daquele vestido branco, com bolinhas
vermelhas, repousavam os seios da mulher que sonhava beijar.
O decote era discretíssimo (Deus que me livre, pois não escrevo
aqui levianamente. De sexo e amor falo de alma e corpo que
pensam em se misturar com a bandeira de nobres sentimentos).
A moça parece que adivinhava os seus desejos e, intimamente,
pensava olhando para os lábios do amado. Esses são os que beijarão a mim e aos meus seios ainda intocados. Também o farão
seus filhos, mas terei para o pai espaço exclusivo e reservado em
que tentará eliminar a eterna falta masculina do amor materno.
Fortíssimas vibrações circulavam entre eles. Incontroláveis. Pres-
Dossiê Monlevade
149
sentindo a interminável sintonia, disseram juras de amor um para
o outro com a linguagem profunda do olhar.
E assim seguiram pronunciando, calados, mas repetindo
frases perdidas por séculos e séculos e que, provavelmente, as
mesmas disse Adão para Eva quando a cortejou no metafórico
Éden. Milenares. Das que, ao longo de todo aquele tempo, foram
muito bem descritas pela linguagem da poesia erótica de grandes
poetas, ou até mesmo nos versos puros da métrica bíblica do Rei
Salomão. O tempo cá não existe como contado nos ponteiros de
um relógio de pulso. Nesse passo sem rumo, os dois enamorados
prosseguiam embriagados pelas sensações do amor que prospera. – Você é o meu rei. – Sou sua rainha. – És de longe. – Sim.
Sou francês. – Eu sou brasileira. Mas sigo para onde quiseres.
– Inclusive a longínqua Guéret que nunca em sua vida tinhas ouvido falar?...
Dossiê Monlevade
151
Capítulo 33
Onde se diz de sinais da execução. Jaime Raimundo busca
ajuda de Bern
B
ern leu o edital publicado em um dos matutinos
monlevadenses de alta tiragem. O atual Planeta
Diário de Monlevade era antigamente chamado de o Morro do
Geo. A data de sua edição passava de uma semana atrás, mas ao
apanhá-lo, para descarte no lixo, o formato do anúncio havia-lhe
chamado atenção. Lera com alguma dificuldade. As letras eram
miúdas e em português confuso: pareciam digitadas em fonte harlow solid itálico:
O Exmo. Sr Juiz da 4ª. Vara... convoca Jaime Raimundo,
comerciante de João Monlevade, para ser penalizado sobre empréstimo ilegal a que fizeram jus certo empresário M e familiares
associados. Consta aqui que o indiciado assinou, não importa sob
que condições, junto com sua senhora, ser fiador de confissão de
dívida referente a tal empréstimo, empréstimo este concedido ao
já citado M pelo banco de La Nación. Aqui se executa somente
tomando em conta os termos objetivos da questão. A não ser que
haja instrução contrária do cobrador bancário, dou-lhe um, dou-lhe dois, dou-lhe três dias para comparecimento cá nessa vara
para pagamento imediato. Caso contrário, serão penhorados,
caso existentes, todos os bens do executado, móveis ou imóveis,
sabidamente conquistados por meio de trabalho sob Sol nordestino. Trabalho duro. Aproveito e aviso que, a despeito de o Estado ter constatado, por meio de vistas às anotações da carteira de
trabalho do executado, que esse trabalha desde a tenra idade de
15 anos, não considera tal fato relevante. E, dessa forma, dentro,
152
Jairo Martins de Souza
e fazendo uso dos seus poderes, classifica-o como empresário, e
manda executar, reforço, todos os seus bens. Sumariamente. Demais instruções deverão ser negociadas diretamente com o oficial
de justiça. Esses termos têm reforço no braço armado do nosso
governo. As pressões psicológicas deverão permanecer durante
todo o tempo de existência desse indivíduo e de sua família. Demais sanções, informarei a tempo justo.
(A) fulano de tal – Juiz de Direito.
– Não é esse o meu amigo comerciante que aparece nessa
notificação, Marie?
– Sim. É ele. Interessante. Estava hoje com a esposa comprando carne no açougue próximo de casa. Moram aqui na vila,
na Rua do Contorno, lembra-se?
– Parecia triste?
– Não. E não pareciam sofrer de mal algum. Não me pareceram preocupados. Inclusive estavam com quase todos os filhos, que são muitos. Uns davam as mãos aos outros, fechassem
as extremidades pareceriam estar brincando de ciranda: são três
brancos, três pretos e uma loirinha.
Bern riu das divagações infantis de Marie. Tudo que a moça
fazia, chamava-lhe atenção. Pensou nisso e mais ainda que, de
outra feita, uma chamada do judiciário é sempre algo especial. Lá
se pratica a justiça dos homens, – que é rigorosa com os humildes.
Provavelmente o casal não soubera do chamado obrigatório do
Exmo. Sr. Juiz.
Dou-lhe um doce, se não for assim, dissera para Marie. Sabia
ter grande chance de estar certo. Totalmente alheio às coisas da
administração da Fruit, Jaime Raimundo não tinha conhecimento do acordo entre o de La Nación e M. Assinava alguns papéis
por obrigação, pois de fato dedicava-se com total afinco à área
de produção, tanto da empresa quanto do seu pequeno negócio.
Ouvia rumores no chão de fábrica que M promovia isto e mais
aquilo outro… Tinha outros barcos para ver passar. Afinal de contas o Bazar era-lhe suficiente para arcar com as despesas de sua
extensa família, filhos, parentes e agregados.
Dossiê Monlevade
153
Bern ficara constrangido; Marie, preocupada! Ele conhecia
leis. Ela, alguns amigos que andaram estagiando no judiciário local. Nenhum deles gostara dos termos da convocação.
Às dezessete horas do dia seguinte, Marie estava pronta para
sair e acompanhar procissão relativa a festividades de coroação
da Imaculada. Bernard não aparecera conforme combinado. Pelo
celular, informara à namorada que fora solicitado, por Jaime Raimundo, para comparecer, não na sede da Fruit em Rio Piracicaba,
e sim no seu Bazar da Rua da Favela. Dissera tratar-se de assunto
urgente. Com isso, atinava ser algo relativo ao que ambos haviam
visto no Planeta. Depois explico tudo a você. Parecia apressado.
Terminou com um beijo, alertando que deixara o Bel Air na garagem do hotel. Seguiria a pé.
Dossiê Monlevade
A
155
Capítulo 34
Entenderás mais tarde!
insinuação do Diretor do banco de La Nación nas
linhas finais do capítulo 30, o “entenderás mais
tarde”, estava prestes a se tornar real. Logo após Jaime Raimundo voltar a fazer o trabalho de capina, o executivo complementou
para um dos agentes federais que o acompanhavam na coleta de
assinatura: de hoje a dias esse homem não terá alternativa. Deverá contar milhões de carneirinhos que pulam cerca antes de ter
qualquer esperança para conseguir sono. Desmaiará de cansaço.
Profissionais como M são imunes a esse tipo de insônia cruel!
Têm almas leves e livres de qualquer censura moral. Jaime Raimundo por sua vez, certamente acabará por cair em poltrona de
terapeuta ou psiquiatra. Pobre diabo!
– Estás com pena? Indagou, surpreendido, o assessor.
– Não. Acredito na predestinação divina. Não se espante. Até
mesmo nós, banqueiros, reconhecemos a existência de Deus. Aliás, até mesmo conversamos com Deus. Não recordas do longo
diálogo que Jesus manteve com Lúcifer em deserto asiático? De
certa forma aqui na Terra somos cover do demônio. Particularmente dirijo-me a ele – não ao diabo, mas a Deus – todos os dias.
Minha meta é angariar perdão para pecados cometidos.
Com o que o riu nervosamente, uma vez que, ao dizer isso,
quase caíra ao atropelar um galho de goiabeira que fora podado,
e ainda não recolhido pelo setor competente da Verlon.
– Basicamente quero receber o meu, prosseguiu o endemoniado, já disse: doa a quem doer. Carrego esse fardo. Minha vida
é cobrar. Sou um cobrador. Podes comparar-me, se quiseres, ao
156
Jairo Martins de Souza
protagonista de mesmo nome do Rubem Fonseca. Algo daquela
sua crônica caber-me-ia bem. Aliás, povos de todos os mundos
identificam-me como gente simplesmente porque ando com duas
pernas e tenho o dedo polegar que nos diferencia dos macacos.
Não dizem também que o banqueiro é o único ser humano desprovido de coração?
Foi o que ficou confirmado naquele dia. Sigamos com o desenrolar dos acontecimentos. Por exemplo, a reunião fechada entre o dono do banco e seu grupo de apoio para a cobrança que
se tornara efetiva. Agora, senhores, dissera, tenho documento
pressupostamente legal. Por favor, no folder de vocês, abram na
página 666 do processo onde se inicia um documento chamado
Confissão. Prontos?
– Sim. E então?
– Vejam com detalhes que um fulano chamado Raimundo e
senhora assinaram como fiadores. Aliás, não somente eles, como
também alguns parentes próximos de M. É claro, tanto esse como
a família não dão garantia real a nada. Constam aqui somente
para dar idéia que o documento tem amparos extraordinários. Da
mesma forma o escrivão escreveu aqui sobre imóvel que permite
chamá-lo de confissão de dívida com garantia hipotecária. Aí é
onde enganamos mais tanto Jaime Raimundo, quanto a esposa.
Na capa colocamos garantia hipotecária. No interior do documento, com letras miúdas, quase ilegíveis, inserimos restrições.
Na realidade o valor do imóvel cobria um pouco mais de cinqüenta por cento da operação.
– E quanto ao próprio M?
– Já executamos a casa que ele e a família nos deram como
garantia fictícia. O que nada de efetivo resolve. Foi somente para
encaminhar e dar andamento à solução que propomos. Estão
lembrados que foi apenas para manter aparências? A isca para
Jaime Raimundo morder! Não procuramos saber, custar-nos-ia
tempo e dinheiro, se, já naquela ocasião, o imóvel ofertado era,
ou não era, realmente de M e dos seus. Decerto que a tal casa
nem cobria a operação de forma total, repito. Agora temos certeza que foi vendida antes de nos ser ofertada como garantia do
Dossiê Monlevade
157
empréstimo repassado a M. Aí de certa forma o trairemos. Vamos
acusá-lo, a ele e aos seus, de conspirar contra a justiça, por fim,
de fraudar a execução de cobrança em andamento. Vamos então
seguir com a operação, vamos chamá-la, a partir de agora, de 7
frutas.
– Sete?
– Sim. Sete. Pois são 7 são os pecados capitais. Sete são os
filhos do Raimundo. Sete são os céus muçulmanos e se somarmos
5 mais, tornam-se doze, que por sua vez é o número de apóstolos
cristãos. Também 7 são as frutas utilizadas pelas indústrias de M.
Laranja, goiaba, limão, abacate, jabuticaba, manga e caqui. Exatamente os sabores atualmente usados nas sandálias da Verlon
Fruit Shoe.
Isso definido, o próximo passo é encaminhar documento
para o judiciário. O objetivo agora é receber o crédito de uma vez
por todas. Senhores, Raimundo é o nosso alvo, ou melhor, nossa
vítima.
– Algum magistrado em especial?
– Não. É causa simples. Basta despacho de execução. Podese obtê-lo em qualquer comarca em que tenhamos contatos e
ação!
Como vimos, isso foi feito de forma sumária!
Dossiê Monlevade
159
Capítulo 35
O oficial de justiça. Bern Monlevade assume defesa
do Bazar
D
eus lhe pague! Foi o que um pedinte dissera a Jaime Raimundo após receber alguns tostões para
compra de pão. A alma do comerciante era daquelas simples que
não suportam recusa de algo pedido em nome e pelo amor de
Jesus. Quantas vezes deixara de comprar pequenos luxos, ou até
mesmo algo essencial, para ceder pequenos numerários a terceiros. Feita a caridade, já podemos vê-lo retomando o caminho do
Bazar. Foi onde convidara Bern para reunião de última hora. Horário? Depois do expediente. Preciso de sossego. Assunto? Digo-lhe no local. Caminhava aborrecido: tinha razões para tal.
O comerciante não havia visto a notificação publicada a mando de Juiz no O Globo e no Planeta Diário. A hipótese de Bern
fora correta. Parcialmente, pois o judiciário tem, afora a imprensa
escrita, outros meios para intimar qualquer cidadão. Veja-se cá
em Monlevade onde, para maior eficácia de sua ação, várias atividades da lei civil podem ser levadas a cabo ao mesmo tempo.
Por exemplo, o envio de carteiro ao domicílio do homem comum.
– Mãe, tem um homem aqui na varanda de casa! Diz precisar
de mais uma assinatura autorizada.
– Com licença, é verdade madame (agora é o funcionário
dos correios e telégrafos quem diz, avançando abruptamente
pela sala da moradia), preciso comprovação de recebimento de
correspondência convocatória de ida ao edifício novo do tribunal
de justiça. É belíssimo prédio de granito preto recentemente
construído no bairro de Graal. Foi o próprio juiz diretor quem
160
Jairo Martins de Souza
assinou essa correspondência e pede pagamento em 24 horas.
– Pronto.
– Obrigado pela assinatura!
– O que queria o carteiro de encomendas especiais, mãe?
– Alguma coisa relativa ao Bazar, filho. Seu pai está de viagem. Quando chegar, resolve!
Cerca de 36 horas depois, Jaime Raimundo disse: isso não é
tão simples, mulher. Não entendo direito do assunto. O que me
ocorre é conversar e pedir conselhos ao José Brás.
Brás, recebi comunicação de cobrança de dívida assumida
por M na Verlon. Não sei direito do que se trata, mas parece-me
dinheiro grosso. Traz-me preocupação, e a mulher anda também
aborrecida. Anda brigando com as crianças até mesmo sem necessidade. Nunca conversei com um juiz, Brás!
– Contrate um advogado, Jaime Raimundo. Ele consegue falar com as autoridades do mundo jurídico. Deixe o assunto com o
homem, e vá trabalhar em paz!
Seguira conselho e contratara o causídico indicado pelo amigo. O homem é bom e não é daqueles de luxo que usam terno até
mesmo quando comparecem a jogo de futebol, dissera-lhe. Basta
pagá-lo adiantado.
Isso formalizado, seguira para cumprir agendas extraordinárias para a Fruit e o Bazar. As despesas são grandes, ainda mais
agora com um advogado nas costas, enfim, há necessidade de esforços redobrados, afirmara resoluto para a mulher. Conto como
sempre com a sua prestimosa colaboração!
Enquanto isso, no banco de La Nación, agora sob nova
direção, os acordos, estudos e análises de juros e indenização
concluíram que as execuções seguiriam a ordem de praxe. A começar com afastamento do diretor e o chefe de empréstimos que
ajustara detalhes com M. Depois executaremos o próprio.
– Esse M tem ficha mais suja que gaiola de pássaro preto.
Não paga ninguém. Tudo isso foi dito pelo novo subgerente após
consultar papel identificado como confidencial.
– Então, como liberamos tal crédito? Foi o que indagou voz
nova no circuito.
Dossiê Monlevade
161
– São águas passadas, cavalheiro. Como você! Estás demitido por pergunta que pode denegrir imagem da nossa instituição!
Conformado, o ex-funcionário que perguntara saiu silenciosamente da sala de reunião. Não queria perturbar a cobrança que
se encontrava em pleno andamento.
A nossa ação deve ser eficaz. Lidiane. Senhorita Lidiane. Faça
memorando ao juiz, solicitando que peça seqüestro de bens.
– De quem?
– De Raimundo, naturalmente. Após deferimento pelo magistrado, o oficial de justiça deve seguir para a Vila Tanque imediatamente.
Mais cem metros de caminhada e Jaime Raimundo chegaria
ao Bazar. Seguia lembrando-se dos episódios que lhe ocorreram
nos três últimos dias. Dignos do calvário de Jesus. Avassaladores. Soubera detalhes de alguns deles, tal como o destacado nas
linhas acima, por meio da secretária do diretor bancário. Ele a
considerava quase uma sobrinha. Ajudado pela Lua, que brilhava a meio caminho do céu, livrava-se de qualquer atropelo nas
costeletas da Rua da Favela. Por tradição, ainda nela era mantida
escassa iluminação com postes de madeira de lei e à base de
lâmpadas incandescentes protegidas por pequenos capacetes de
metal. Tipo chinês.
Mas dizíamos que estava a cem metros de sua loja. Cem metros é tempo suficiente para última consulta à folha que diz indiretamente sobre seu estado de espírito naqueles instantes. Algo
marcante ocorrera-lhe!
Era homem de fala mansa. O diabo não é tão feio quanto
o pintam, mas não deixa de ser assustador. Não muitas horas
depois da visita do empregado dos correios, o oficial de justiça
chegara à Vila Tanque sem aparato policial, nem nada. Viajara de
ônibus comum. De linha. Lá chegando, inspecionara a casa, verificando o que poderia levar ou não para defesa dos interesses do
de La Nación. Fogão de lenha? Não. Uma geladeira Gelomatic?
Não. Pingüim de louça? Não. É de estimação. Freezer? Sim. Uma
das duas televisões? Sim...
Chamado com urgência à casa pela mulher, Jaime Raimundo dirigiu polidamente a palavra ao oficial.
162
Jairo Martins de Souza
– É verdade que queres levar nossas coisas?
– Sim e sob apoio e testemunho legais. Se necessário peço
reforço policial. Tenho intenção inclusive de visitar o seu sítio em
Rio Piracicaba. O serviço secreto dos advogados do banco informou-me ser seu bem pessoal mais precioso.
– Não consegues, está sob manto da justiça divina. É bem
único. De família.
– Pode ser. Mas posso seqüestrar moenda do antigo moinho
de grãos. É bem móvel. Partiria seu coração.
– Estás dizendo tolices, senhor oficial. Aquela peça é de pedra. Pesa toneladas. Não conseguirias tirá-lo de lá. A propósito,
vamos ser práticos. Posso convocar advogado?
– Sim, quem é?
– Doutor Fulano.
– Confirmo que podes chamá-lo. É dos nossos.
– Não entendi bem.
– Não precisa, como de outra ocasião, depois entenderás!
– Está tudo arranjado, Jaime Raimundo – comunicou-lhe o
causídico que aparecera rapidamente em um sedã Chevrolet 38
– o oficial decidiu não levar nada. Estava nervoso, mas chegamos
a bom termo após conversa entre amigos. Divagamos também
sobre filosofia de vida e religião.
– Obrigado, doutor.
– Que não seja por isso, mas tens que dar contribuição para
o judiciário na pessoa do oficial aqui presente.
– Não é ilegal?
– Sim. Mas alguns funcionários estatais têm suas próprias regras. Na prática funciona assim!
Foi assim, repassando tais últimos fatos, que Jaime Raimundo mal vira que, finalmente, chegava ao Bazar. Na porta, de pasta
e terno de corte italiano, Bern o recepcionara, dizendo que fazia
alguns minutos desde que lá chegara. Pensando no retorno, e reavaliando se deveria ter sido melhor ter vindo no seu Bel Air,
o rapaz complementou saudação inicial, relatando que foi tempo breve, mas bom, pois deixara-lhe passar olhando as águas
tranqüilas do Piracicaba. O que não falou é que isso lhe trouxe
Dossiê Monlevade
163
saudades do Sena, de Paris, da mãe, do pai e da irmã. Suspirou
fundo e seguiu em frente para o interior do estabelecimento. Um
último olhar confirmou-lhe que o céu de Monlevade prosseguia
limpo e ameno.
Conheci muito desse caso quando das informações passadas
por Costa, Bern disse-lhe após ouvir a exposição. É claro, patrocinarei com prazer e muito trabalho a sua causa, amigo Jaime
Raimundo. Algo mais a relatar?
– Não. Não que me lembre.
– Pois bem, sendo assim, podemos começar!
Dossiê Monlevade
165
Capítulo 36
Bern dá algumas explicações à família
F
oi isso, Marie. A condição fragilizada de Jaime Raimundo é facilmente compreensível. O homem é
franco. Reto. É poço de honestidade. Já sua situação jurídica tem
que ser analisada com critério especial. Há medidas que o direito
brasileiro propicia para combater tais casos. Digo combater porque se trata de circunstância especial. Jaime Raimundo confessou
o que não devia. Mesmo que sob coação psicológica. Basta executá-lo!
Só para você entender, Marie, tudo nesse processo tem letras
pequeninas e linguajar rebuscado de jurista. Por exemplo, a confissão. Ainda não a vi. Jaime Raimundo descreveu-a sem maiores
detalhes, mas sei ter sido arma letal engendrada pelo diretor jurista do Banco de La Nación.
– Dá para recorrer à imprensa? Tenho alguns amigos...
– Não. A imprensa não tem público suficiente para casos
como esses. São tantos por esse Brasil afora! Todo brasileiro parece ter uma história dessa estirpe. Caiu em lugar comum. Não há
sangue jorrando de forma espetacular! Fisicamente, digo. Além
disso, a justiça é como Tomé. Pede evidências. Provas. Faltam-nos
muitas nesse caso. Nossa missão é buscá-las a qualquer custo.
Posso começar indo à Bolívia. Quem sabe, Marie, consiga cópia da tal confissão… Após tudo ajuntado, talvez possa montar
o quebra-cabeças engendrado por M contra a família de Jaime
Raimundo. Com isso espero beneficiar também o Brás, o Viglioni,
o Costa, etc.
Amiga. Amigo. Reparo que de há muito, de forma incisiva,
166
Jairo Martins de Souza
não se cita neste texto os amores franceses do advogado que inicia, mal sabe ele, peculiar experiência jurídica. Não. Isso não significa que seja filho e irmão ausente. Dos que amam apenas com
os olhos. Na verdade, mantém contato constante com os seus, a
despeito de cada vez mais entrar com coração e alma nas coisas
boas que tem o Brasil. Aí que está! Talvez por isso os pesquisadores do dossiê tenham, em alguns momentos, dado maior realce ao
aspecto prático da documentação.
Para compensar, recolhi e faço públicas três partes de cartas
deixadas de lado pelos analistas. Não. Não tão íntimas como as
das correspondências que Mary McCarthy trocava com Hannah
Arendt. Uma escritora e uma filósofa. Memórias de Uma Moça
Católica. As origens do Totalitarismo. Virou livro de qualidade.
Por fim, na primeira carta Bern responde ao pai; na segunda, à
irmã; já a terceira foi para aquela que o moço, como filho, tinha
identificação especial.
– Não dizias, papai, que nós franceses somos discípulos de
Heráclito, ou então a vida para você não é mais movimento? Insisto que venha passar alguns dias aqui. Tenho certeza que se dará
bem com a cidade e o pai de Marie. Mande-me fotos das videiras
de Guéret. Devem estar lindas nessa época do ano. Noutra carta,
conto-lhe sobre causa que decidi patrocinar. Comecei hoje. É de
amigo brasileiro, um pouco mais velho, acredito ser de sua idade...
– No entanto, Liviah, ficar por tempo maior em Monlevade
não é nenhuma condenação. Simplesmente aconteceu! Aposto
que você já sabe que a Életricité De France assumiu o controle de
geração da barragem do Jacuí (garanto que muito antes de mim!).
C´est vrai, – é verdade –, Liviah, fornecemos energia elétrica para
toda essa grande metrópole! Dá-me orgulho! Fico...
– Sim, mamãe. Tens razão! Não tracei esse tipo de objetivo
para minha vida aqui no Brésil. Relaxe! Venha passear... e esqueça a Deneuve como nora. Para mim é apenas boa e querida amiga. Não se preocupe, mas fiquei um pouco desapontado quanto
ao projeto do meu glorioso vovô brasileiro. No Brasi não se cultua
o hábito de resguardar memória das coisas do país. Do que nos
Dossiê Monlevade
167
restou nestas terras, mamãe, pouco passou do nome abstrato de
parente distante. Não muito mais. Já lhe disse de todas as minhas
andanças pela região. Não é que tenha desistido de todo! Prosseguirei pesquisando, pois cada vez mais cristaliza em mim buscar
meios e argumentos para criação de um seu memorial. Memorial
Jean de Monlevade. Talvez possa chamá-lo JM. Tal como feito
para o JK. Vamos ver...
Dossiê Monlevade
M
169
Capítulo 37
Por que La Paz?
arie acompanhou Bernard até o instante final
em que o A 380 sumiu totalmente dos céus de
Monlevade em direção à La Paz. Vôo direto. Não demore, chéri.
Não faça barba com pressa. Lá, para estrangeiros, é difícil estancar sangramentos. O sangue fica ralo por causa da altitude. Tome
cuidado com o soroche. Coma comidas leves. Mastigue algumas
folhas de coca. Não demore...
De longe Jaime Raimundo acompanhava todo o corre-corre
no aeroporto e, em particular, tudo que se referia à viagem do seu
advogado. Afastara-se discretamente do casal. Viera entregar-lhe
procuração, segundo termos legais, e desejar-lhe boa sorte. Tiveram alguns atropelos iniciais, é verdade, por exemplo, a desqualificação do causídico que anteriormente contratara a conselho do
Brás. Ambos foram enganados. O tipo era desprezível!
Viera também para ajudar, por meio de carta de recomendação de amigos, a desembaraçar embargos a profissional francês
atuando na área do Mercosul. No caso, a Bolívia. Foi de valia,
o fato de Getúlio e Morales andarem conversando como velhos
colegas de ginásio. Nesse passo, e graças a algumas boas almas
monlevadenses, tudo fora levado a bom termo: em regime de
urgência. O bilhete aéreo, de última hora, foi também conseguido sob viés de concessão especial. A vaga fora cedida por sobrinho da família Raimundo. O jovem era aeronauta recentemente
contratado pela Aço Airlines no duríssimo mercado internacional.
Encantado, Jaime Raimundo vira o avião mover-se como anta
gigantesca, correr como leopardo, voar como águia, trocal, juriti,
170
Jairo Martins de Souza
pardal, e por fim, minúsculo ponto iluminado por distante sol de
verão. Tinha cor prata.
Retornando para o Bazar, pensou nas dificuldades que seu
advogado deveria enfrentar. Surpreendeu-se consigo mesmo! Ora
bolas, chamara o menino, seu amigo, de advogado pela segunda
vez! Lembrou-se que, pela afeição sincera que a ele dedicava,
poderia ser seu filho, ou neto! Felizmente, consolou-se a tempo
lembrando-se de velho adágio popular: amizade é amizade. Negócio é negócio!
Por que La Paz e não Santa Cruz de La Sierra? O banco de
La Nación não registrou documento em Santa Cruz? Perguntara
ao advogado.
– Na ocasião em que assinaste a tal confissão, Jaime, a situação administrativa do país de Evo Morales era muito diferente.
Nem pertencia ao Mercosul. Ainda na França andei acompanhando a situação jurídica deles. Confusa! Algumas facções queriam
acumular na cidade de Sucre as funções administrativa e legislativa. Não deu certo. Lembra-se do famoso protesto do povo de La
Paz, La Sede No Se Mueve...?
Ficou como estava. Sucre é a capital legislativa. La Paz é
onde fica a administração federal. Enfim, independente do apontamento da confissão ter sido feito em Santa Cruz, para tribunal
de assuntos internacionais, vale La Paz. Um tanto estranho, mas
funciona assim. É por isso que mudei destino!
O vôo fora tranqüilo. Bern dormira profundamente enquanto
sobrevoava os altiplanos andinos, e pouco vira das belezas do Titicaca boliviano. Já próximo das imediações de La Paz, lembrou-se de algumas palavras do sobrinho de Jaime Raimundo que
comentara sobre as dificuldades com que os pilotos da Aço se
deparavam para lá aterrissar. Altitude superior a 4000 metros, dissera. Com ar rarefeito fica mais difícil parar somente nos freios o
pesado avião. O piloto tem que ser experiente naquele aeroporto.
Para tanto, os pilotos da Aço Airlines... Bom, de fato o comandante fora bem treinado, pois mesmo que com alguma tensão por
parte de uma passageira, a chegada foi perfeita. A moça antecipadamente declarara ter problemas com altura e espaços abertos.
Dossiê Monlevade
171
Inconscientes, pois era física-engenheira de bom nível, e conhecia
rudimentos de aviação. O que importa é que interpretava ordens
de computadores de bordo como se fossem instruções para queda iminente da aeronave. Por exemplo, motores que se ajustam
para fins de economicidade de querosene de aviação. Que não
se diga de turbulências normais encontradas no ar atmosférico!
Suava frio nas mãos e em todo o corpo. Mas não fujo dos meus
medos, concluíra entusiasticamente. Acostumado a ver tal sensação de desconforto na própria mãe, Bern a confortou, segurando
uma de suas mãos durante boa parte do percurso.
Viemos aqui trazer boas vindas, disseram-lhe dois oficiais bolivianos. Um homem e uma mulher. Trabalhamos na justiça local
e somos especialmente designados para tratar do caso M versus
Banco de La Nación. Nesse momento representamos a Verlon,
mas podemos representar a quem por isso se interessar. Depende
do pagamento. Por ora, dizemos que a Verlon tem muitos interesses aqui nos Andes. Apreciamos seus produtos frutados, inclusive
estamos negociando cessão de tecnologia. No entanto, agora nossa missão é conduzi-lo com saúde até o hotel.
Foi o que aconteceu. Outrossim, conforme acertado via contato preliminar – local e hora a combinar – Bern já ajustara entrevista com embaixador brasileiro em terras bolivianas. Digo terras
porque não posso dizer mares, foi frase do diplomata, lembrando-lhe que daqui não há saída para águas salgadas. Não estranhe,
senhor advogado, termos aqui Ministério da Marinha, pois cá
também a esperança é considerada a última a morrer. Pois bem,
enquanto isso, os marinheiros bolivianos vão ficando a ver navios
nas águas do Titicaca.
Para maior discrição, comentara também, melhor encontrarmo-nos no Cafe Ciudad que fica bem próximo ao hotel em que te
hospedaste. Era sujeito falante e dissera não ser homem de carreira. Na verdade, foi político derrotado em eleições municipais
e, finalmente, agraciado com cargo de confiança do partido aqui
nesses confins etc. e tal.
Livre do ajuste que avistara difícil, Bern relaxara, e após mastigar recomendada folha de coca, descansara confortavelmente
172
Jairo Martins de Souza
instalado em poltrona da recepção. De lá, afora gritos vindos de
vans que aliciam passageiros, nada mais se ouvia no tranqüilo
centro da capital boliviana. Com misto de curiosidade, e ansioso
por alguma novidade cultural, pegara uma jardineira, convidado
que fora por um dos homens que observara gritar. Em La Paz não
há metrô. Com sorte chegara a tempo de passear pelo Mercado
de Las Brujas. Ocorreu-lhe comprar algum pequeno regalo, ou
cadeau, como em francês, para sua Marie.
De volta ao hotel fez ligações para a namorada, para a mãe,
para o pai e para Liviah.
Caía a noite. O povo era receptivo. Fazia frio, sim, mas não
muito. Mastigara algumas folhas de coca. Ainda não sentira os
efeitos da altitude da cidade...
Foi o que em essência dissera para seus amados. Da porta
envidraçada, percebeu que o tal restaurante, o dito Cafe Ciudad
ficava logo na esquina, bem dentro de seu horizonte visual. Pôsse a caminho.
O embaixador estava acompanhado por um senhor de nacionalidade brasileira, foi o que Bern antecipou. Não lhe fora
difícil perceber. O sotaque do homem era tipicamente carioca.
Afloraram-lhe lembranças do gostoso período do Copacabana
com seus alongados ss herdados da corte portuguesa que lá chegara em 1808. Tomavam taças de vinho chileno, pois no centro
da mesa repousavam duas garrafas de Casillero del Diablo. Pareciam em animada conversação. O companheiro do diplomata
mostrou-se educado e polido e passou a dedicar especial atenção
a Bern, na medida em que o político fora chamado a participar
de algo importante em mesa vizinha.
Estava de passagem pela Bolívia, pois atuava na Organização
Mundial do Comércio, a OMC. Chamava-se senhor ***. Advogado tributarista, especializado em contendas internacionais, na
realidade era presidente da importante instituição. Estava aqui
para acompanhar coleta de dados visando julgamento de, não
se pasme o cavalheiro, contenda comercial entre Brasil e Bolívia.
Assunto? A eterna questão do gás natural. Ah, muito interessante,
comentou Bern.
Dossiê Monlevade
173
Fossem dois evangélicos, irmãos em Cristo, não encontrariam
na fé tamanho ponto de liga comum. O brasileiro, na faixa dos
60, fora professor respeitado em diversas faculdades de Direito
em todo o mundo. Menos na Sorbonne. Daí é que, de sua parte, indagara Bern várias situações. Fora convidado recentemente
para lecionar curso de verão no campus de Paris, mas recusara
por absoluta falta de agenda. Daí passou a ouvir. Tivera percepção, a tempo certo, de ser instante de passar o bastão. Então, o
rapaz iniciou relato sobre o que fora fazer em La Paz.
Exceção de pré-executividade! Exclamou o presidente da
OMC após escutar atentamente tudo que criteriosamente fora
exposto pelo companheiro de mesa. Como disse-lhe, sou advogado tributarista, mas conheço o Direito Brasileiro como a meus
próprios filhos. Inclusive todas as suas leis e jurisprudências em
latim. Na ponta da língua: gosto de beber água na fonte. Não me
arrisco. Lembras do traduttore traditore? (o tradutor é um traidor).
Só para ilustrar, foi por isso que aprendi aramaico para melhor entender Paixão de Cristo, – a do filme de Mel Gibson. Estudei grego
para ler as epopéias de Homero. Alemão para deliciar-me com a
poesia de Göethe. Russo para a arte de Fedor Dostoiévski. Árabe
para os segredos do Alcorão... Podes listar o resto por sua conta,
pois são muitas as línguas e os segredos do mundo. Foi assim
também que escrevi as tais obras jurídicas em latim. Publiquei-as,
ajuntando-as em manual na própria Itália, pois foi onde o direito
romano nasceu e se tornou o pai do nosso. Não nego que seja um
cipoal de regras e instruções, mas foi em cima do seu texto que
patrocinei causas das mais diversas procedências. Minha arte é
aproveitar suas brechas. De presidentes da república, de grandes
empresários, do senado federal, de militares de alta patente, de
ministro de justiça que nada entendia de Direito Constitucional,
de vara de família, de homens violentados por ditadura, de direito
criminal... também quando jovem escrevi livros de poesias e tudo
o mais em termos de literatura. Fiz-me amigo de presidentes e
ministros. Fui premiado em algumas ocasiões. Enfim, tudo isso
me fez debruçar, volto a falar do Direito, sobre obras de todos os
grandes doutrinadores nacionais.
174
Jairo Martins de Souza
Madrugadas e madrugadas a fio. Não tenho dúvidas, aquele
instrumento jurídico, a exceção, é o que você deve explorar na
defesa de seu cliente. No entanto, há uma condição sine qua non.
Para aplicá-lo, você precisa de algo novo nesse processo, algo estarrecedor e concreto que surpreenda o juiz e que o faça reestudá-lo, a ponto de paralisar a execução em andamento.
Em outras palavras, precisas achar um vulcão em erupção, o
despertar de um Tronador como o dos Andes chilenos. Algo como
um trovão gigantesco que traz a reboque luz, raio e fogo que queima e reduz a cinzas tal processo. Desculpe-me, sei ter-me alongado
há pouco, mesmo gostando de textos curtos. Enxutos. Então pergunto de forma direta: tens cópia do documento comprobatório do
crédito irregular dado pelo diretor do La Nación a M?
– Não, ainda não a vi!
– Tens a nota promissória emitida pelo próprio?
– Não. Também não!
– Então, ainda não tens provas contundentes para dar um
basta na execução e no sofrimento do seu cliente. Corra atrás de
tais provas documentais que tenham o efeito que dramatizei, é
sua sina! Depois disso, ponha imediatamente em ação o instrumento que sugeri.
Foi quando adentrou no ambiente o casal que o recepcionara no aeroporto das Tierras Altas. Os dois meirinhos que acima
mencionei. Com o retorno do embaixador à mesa, Bern se retirara para atendê-los. Pareciam esposos, pois a mulher advertira o
outro com olhar repressor. Ninguém atinou o porquê. Coisas de
casal. Um solícito garçom levou polidamente taça de Casillero do
qual Bern sorvera todo o conteúdo, enquanto isso o presidente
da OMC retomava animadamente a conversa que deixara em
suspenso com o diplomata.
No crachá identificavam-se como Patino e Banzer. Interessante, Bern refletiu, um tem sobrenome de antigo rei do estanho
boliviano. Na ocasião conhecido playboy internacional. A outra
de ex-presidente. Um militar. Por instantes, Bern perguntou a si
mesmo, o porquê de, no aeroporto, não portarem tal cartão de
visitas. Talvez tenha sido simples negligência. Considerações for-
Dossiê Monlevade
175
tuitas à parte, ambos tinham estilo draconiano e foram direto ao
cerne do assunto. Temos comunicação a fazer, disseram.
– Qual?
– Descobrimos que o doc Santa Cruz que buscas para seu
cliente seguiu para São Paulo. O pedido procedeu do judiciário
de certo estado do seu país para uso em processo tocado pelo
Banco de La Nación. Aqui aquela confissão não é mais considerada de importância, mas deu crias a vários processos paralelos.
O sistema boliviano funciona assim. Tal como no Brasil, nunca se
sabe o que com eles vai ocorrer. Quanto ao doc x é propriedade exclusiva do De La Nación. Foi firmado na sede paulista do
banco. Se bem que dele a justiça boliviana mantivesse cópia em
guardados especiais. Recentemente informações sigilosas relatam
que seguiram por mala postal pela ferrovia do trem da morte. O
destino é fórum situado na fronteira com o Mato Grosso. Lá, após
lidos, devem ser incinerados, se não por nós salvos a tempo e
hora. É nossa missão, caso cheguemos a acordo.
É fato consumado que, mesmo que resgatados, por estrita
instrução de ministro da justiça brasileiro devem ser sumariamente encaminhados para endereço de certo senhor M. Um industrial
de João Monlevade, Minas Gerais. Por ora, então, o senhor deve
se preocupar agora mesmo é com a execução principal que segue
normalmente na capital paulista e no estado do crucificado Raimundo. És francês, Monlevade, melhor se habituar a tais nuances
processuais no Mercosul. Por exemplo, pela cessão desses dados
confidenciais estamos requisitando contribuição, podes chamá-la
propina. Não. Não se trata de escândalo. Propina, em espanhol,
em nossa língua, diz respeito a pagamento normal feito em contrapartida a serviço prestado pelo governo a cidadão. Bom, para
esse caso, o valor estipulado é de 10 mil bolivares.
– Certo. Tenho aqui o equivalente em dólares, pode ser?
– A orientação da nossa gerência dá-nos opção de recebê-los
em real. Moeda forte.
– Então a transação tem que ser feita amanhã! Às 10, na portaria do hotel, fica bem?
– Sim.
176
Jairo Martins de Souza
Com isso Bern voltou à mesa do embaixador. Com a conta
já paga os dois sorviam os derradeiros goles de café colombiano.
Preparavam-se para sair. Bern acompanhou-os.
No dia seguinte, no horário combinado de acordo com o fuso
boliviano, esperavam-lhes outros dois funcionários que cumprimentaram afavelmente tanto a Patino quanto a Banzer. Espontaneamente apresentaram-se a Bern, dizendo: meu nome é Fuentes. Carlos Fuentes. Sou Gabriel G. Marques. Somos escritores e
vimos receber numerário ajustado. O mercado livreiro no país do
seu antigo avô não anda bem para escritores de vanguarda. Dizse aqui, à boca pequena, que o brasileiro anda financiando somente obras de cunho socialista no novo estilo bolivariano. Anda
de braços com a Venezuela e o Equador. É também por isso que
se faz agora tal coleta. Parte desse fundo serve como multa por
falta de leitura do povo da terra que abraçaste. Um dos seus presidentes deverá julgar desnecessário o estudo pelo povo. Digo, diz
que, a seu exemplo, não precisa estudar para ser bem sucedido.
Arrota ser suficiente o conhecimento do bê-a-bá. Ele mesmo dá o
exemplo. Consta que nunca leu uma obra. Pisa sobre a cultura e
diz ter chegado onde chegou ajudado por massacres à gramática,
usando gerúndios em excesso e fazendo metáforas futebolísticas.
– É um boçal e todos sabemos, senhor Fuentes. Mas outros nossos presidentes que têm olheiras eternas de tanto ler fazem o mesmo. Têm em comum gostar de passar dias na embaixada brasileira
em Paris e publicar livros que poucos lêem. Bebem vinho de boa
cepa e passeiam tranqüilos pelas margens do Sena. Lembre-se que
um deles escreveu Marimbondos de Fogo e o distribuiu em folhas
de papel acetinado pago pela população. Encadernação de luxo.
Enfim, tens recibo para acusar recebimento de todo esse dinheiro?
– Não. Aqui não se trabalha com documento formal.
– Cá tens o dinheiro em reais.
– Gracias. Não vamos conferi-lo e nem colocá-lo nas cuecas.
Aliás, não fica nenhum mal entendido sobre a pergunta indecorosa
que fizeste sobre certo tipo de recibo. Temos caixa 2. Faz parte do
processo. No entanto, estamos instruídos para permanecer no aeroporto até que seu avião não seja mais visto no céu de La Paz.
Boa viagem!
Dossiê Monlevade
177
Fotocópia da capa do doc Santa Cruz, conforme original em espanhol. Na ocasião de
sua feitura, Bern solicitou, para evitar questões burocráticas, que fossem extraídos os
brasões nacionais do Brasil e da Bolívia.
Dossiê Monlevade
A
179
Capítulo 38
Recesso
fora algumas pequenas turbulências nos Andes
peruanos – o retorno antecipado obrigara-lhe a
fazer conexão em Lima – a viagem de La Paz ao aeroporto de
Graal foi tempo de grande valia para o homem e o advogado
Bernard Monlevade. Ao primeiro, por gostar de textos bíblicos,
e por fazer lembrar várias vezes que, em Genêsis 2:18, Moisés
escreveu que não é bom que o homem esteja só. Não estava.
Figurativamente. Pois, a poltrona fisicamente vazia ao seu lado
estava mentalmente preenchida pelo elegante corpo de Marie.
Pensava perguntas e respostas. Sorrisos e suave apreensão.
Pequena angústia por mal entendido ligeiro. Ciúme, como diria
Alencar, ou Casemiro, por conta de fluxo de ar condicionado que
varre o rosto rosado de Marie, ou aeromoça que pergunta ao
rapaz se prefere suco normal ou light. Sobrara também tempo
para o advogado, pouco, é verdade, mas suficiente para delinear
agenda para os próximos dias.
É exatamente o que se lê na folha seguinte, a 117, estou dizendo da marcação original encontrada no dossiê. Absolutamente
não sei se coincide com a deste livro. Lá, lê-se, agenda para os
próximos dias. Interessante! No canto esquerdo do papel, linha a
linha, viam-se itens ordenados de 1 a 10. Vazios! À exceção do de
número 10! Pode ser que tenha pensado partir do de menor para
o de maior importância. Pode ser.
Fato é que a anotação fora feita a lápis com letras grandes. O
que era por inteiro incongruente com a escrita manual do rapaz. O
contorno robusto sugeria certa agressividade também inconsistente
com a personalidade do filho de Guillaume Monlevade. Dizia:
180
Jairo Martins de Souza
Custe o que custar (nesse processo, não tenho razões para,
como em Paris, dizer “cherchez la femme”), devo localizar acordo
secreto De La Nación x M : o doc x... Anote aí, um dos analistas
observara a um dos técnicos do judiciário que integravam a equipe de pesquisa, o rapaz escreveu custe o que custar…
Em Monlevade era de conhecimento popular que corriam no
fórum local, diversos processos de vulto contra M. Indefinidos.
Enigmáticos. Sombras no judiciário cobriam quaisquer pistas a
respeito. No entanto, um, em particular, caíra no conhecimento
de famoso cronista da sociedade local. Um daqueles sensacionalistas. Por falta de pagamento fora solicitado despejo de toda
a família M do imponente castelo marroquino de Graal. Tal fato
trouxe grandes preocupações à sociedade quanto ao futuro da
Verlon. A sociedade civil e os sindicatos trabalhistas sabiam que
dezenas de famílias dependiam do bom nome e da boa saúde do
promissor negócio.
Já o processo sobre acordo que M fizera com o de La Nación
corria sob altíssimo segredo de justiça. Nem mesmo o juiz sabe do
que se trata, informaram a Bern, quando iniciou movimentação
para localizar documento que combinamos denominar x. Conhece-o bem, estamos dizendo do tal processo, somente o presidente
da instituição financeira. Alguns dos executivos sob seu comando
também dele sabiam. Por partes...
Ah, caro leitor, mesmo com toda essa falta de luz, o processo
era real. Realíssimo. Como escreveria o José Dias, de Machado.
Tinha efeitos sobre a Verlon Fruit Shoe. As pessoas pensavam sobre ele. Ele existia. Algo um tanto cartesiano. Não foi Descartes
quem disse que as coisas existem a partir do momento em que são
pensadas? O famoso “penso, logo existo”.
Dossiê Monlevade
N
181
Capítulo 39
O Presidente do de La Nación
ão quero desanimá-lo, mas é mais fácil um rico
entrar no reino dos céus do que falar com esses
homens da Justiça! Foi o que Jaime Raimundo dissera inconformado. Bern acabara de contar-lhe todo o andamento de sua viagem. Relatório minucioso. A conversa com o embaixador. O conselho jurídico do presidente brasileiro da OMC. A propina dada
aos escritores. O desvio até Lima no Peru. O cliente ouvira calado,
– somente interrompera quanto à propina. Dadas as explicações,
acabou por considerá-la gasto normal –, por fim, o advogado
concluíra assumindo três ações iniciais.
Na primeira, partiria para busca de prova que sabia em poder do presidente do banco de La Nácion. Talvez M também o
possuísse, no entanto julgava mais fácil ... Trata-se, amigo Jaime,
do doc x! Na segunda, estudaria palpite do homem da OMC, do
qual expliquei algo algumas linhas atrás. Então sobre ele nada
mais digo. Justifico-me dizendo que aqui não é foro para conversa mais detalhada sobre técnicas e ações da prática jurídica.
A última providência – ufa! Não tenho dúvida alguma ser
tarefa mais árdua –, é a de botar as coisas em pratos limpos para
o juiz. Afinal, nunca se sabe quem é, ou onde está.
Com tal estado de ânimo, seguira para a casa de Marie na
Vila Tanque. Pretendia nos próximos dias dedicar-se de corpo e
alma ao processo do Bazar. A moça estava ainda saudosa. Buscá-lo no aeroporto, levá-lo ao Hotel Cassino, tomar rápido sorvete
na Praça do Mercado etc., nada disso, nem de longe, sufocara ansiedade causada pela viagem a La Paz. La Paix em francês, como
182
Jairo Martins de Souza
dissera distraidamente o namorado. Hoje não, Marie. A moça tinha proposto fazerem circuito cultural. De carro. Passar pelo Morro do Geo, ir ao Jacuí, passear a pé pelas antigas instalações do
Grêmio Monlevadense, fazer o mesmo nas do Caça e Pesca, mostrar a Bern onde tem intenção de propor, junto à municipalidade,
colocação de obra que marque, de vez, a participação na vida da
cidade do famoso burro do Geo, enfim, nos mesmos moldes de
escultura feita na cidade alemã de Bremen, e que homenageia
seus famosos músicos do reino animal. Acabariam o passeio na
Praça do Cinema onde poderiam…
Não, Marie. Hoje não. Hoje não posso ir à sessão cult que
você sugere. Fica para depois. Na próxima semana, talvez.
Bem mais tarde, com Bern já refeito das emoções da viagem,
estavam namorando na biblioteca da casa de Marie. Na parede
fora montado móvel envidraçado com prateleiras altas e escuras.
É o que por si só justifica o nome do ambiente. Estilo farmácia
antiga. É o tipo de lugar onde o visitante deveria ser deixado sozinho para que, mais à vontade, apreciasse a beleza do ambiente.
E, é claro, por meio dos nomes dos autores colocados no dorso
das obras, viajasse rapidamente pelas boas fontes que sustentavam o equilíbrio da gente daquela casa. Reinações de Narizinho,
O Tesouro da Juventude, Obras de Alencar e Machado... Aqui e
ali, uma ou outra fotografia diz também muito sobre o jeito da
família. Lembrou-se de Guillaume. O pai dizia-lhe, filho, queres
conhecer a sua namorada do futuro? Olha a mãe. Antes e depois.
Ah, sim, a de Marie era bonita. Como fora a avó. Um ou outro detalhe não muito conveniente, quem não os tem? Afinal de contas,
a beleza não tem morada numa casa chamada conjunto? Tudo
anunciava que a velhice da moça tardaria a chegar.
Entretanto, estávamos com os dois jovens na biblioteca. Falta
esclarecer alguns detalhes do ambiente. Poucos. Prometo. Não
mais se pode escrever com as minúcias com que Alencar descrevia a sua Iracema. Lá as grandes janelas abertas trazem restos
de iluminação e o arejado do quintal. Tanta beleza, inclusive o
frescor e a jovialidade da mulher que ama, e é amada, finalmente, tudo isso traz e dá clareza às idéias de Bern que prossegue
Dossiê Monlevade
183
dizendo o que achava certo dizer. Chérie, preciso ver se consigo acesso aos guardados do presidente do de La Nación na sua
mansão em Graal. Cópias. No banco, em São Paulo, é impossível
ter acesso aos originais. A segurança é digna de presidente norte-americano. É difícil até mesmo agendar uma simples entrevista.
Muitas secretárias. Muitos body guards. O homem parece um juiz.
Antes de seguir para conversar com Jaime Raimundo, estive lá e
fiquei sabendo que seus horários estão lotados até, – a estagiária
segredou-me ao pé do ouvido, – sua aposentadoria ou quando
vier tempo de participar de conselho de anciãos.
Já não era dia, nem ainda era noite. Lusco-fusco. Os faroletes do Bel Air discretamente ligados não perturbavam as vistas
de quem vinha em sentido contrário. Encerravam-se com ele os
últimos estertores da luz solar. A bonita estagiária que, mal Bern
imagina, dentro de poucas linhas deverá ser-lhe de grande ajuda,
dera-lhe endereço e mapa de orientação para chegada à casa do
presidente. Portentosa! Bernard sorrira. No verso do cartão de visitas que dela recebera, constava também um número de celular.
Que Marie não me entenda mal!
O segurança da portaria, homem de fala fácil, identificou-se
como policial aposentado. Trabalho aqui, doutor Bernard, entre
outras coisas, para complementar renda. O patrão? Encontravase viajando. A trabalho. Vai passar a semana na Bolívia. O lugar
é La Paz, não sei bem!
– Sabes o que especificamente foi fazer lá?
– O caso M. Ontem, penso ter ouvido alguém tê-lo mencionado
insistentemente em jantar de luxo. Aconteceu aqui. O ouvinte era o
nosso diretor e algoz. Conversavam em voz baixa.
Eu mesmo acompanho pessoalmente o caso M, prosseguiu o
policial olhando fixamente para Bern.
– Por quê?
– Fui obreiro da Fruit durante alguns dias na fábrica de Cocais. Demitiram-me por justa causa.
– Por quê? Bern indagou novamente.
– Denunciei parente de um diretor de São Paulo. Não sabia
ser sangue do próprio M.
184
Jairo Martins de Souza
Um forasteiro abusado, diz o segurança que, com cara de
aborrecido, dá continuidade à sua fala. Batia cartão de presença e
se retirava imediatamente das instalações da companhia. Aguardo decisão para entrar com ação trabalhista na justiça dos homens. A de Deus está sendo feita, tudo anda dando errado para
aquele vagabundo. É razão por que trabalho aqui – pelo terno bonito parece-me que és advogado –, minha missão de vida e morte
é, nessa área, vigiar-lhe todos os movimentos e passos. Os de M.
Somos parte de um grupo. Para tanto temos amigos infiltrados
no judiciário e na crônica policial. Pessoalmente, ouvi dizer que
foi dada denúncia vazia contra ele aqui mesmo em Graal. Difícil
de safar. Pois, corre a boca solta, alguns diretores da Fruit estão
se rebelando e não querem pagar-lhe prestações faltantes. Diz-se
que tudo aqui está em negociações, providência divina, querem-no no distante bairro da Coréia. Se não sabes, fiques sabendo, a
Coréia é zona boêmia da grande Monlevade. Um lixo!
Aqui se faz, aqui se paga, amigo – agora é Bern quem diz,
lembrando-se em tempo de perguntar-lhe o nome. Esse simples
ato poderia criar clima mais propício para andamento da conversação. J. Wilson, senhor. José Wilson Palhares. Concluídas as
apresentações formais, Bern relatou-lhe por alto toda a contenda,
o sofrimento de Jaime Raimundo e do Brás, destacara que os
problemas do primeiro eram infinitamente maiores, suprimindo,
é claro, detalhes pessoais absolutamente dispensáveis. O homem
ficara sensibilizado. Conhecia aquelas duas boas almas. O que
posso fazer para ajudar? – Por ora, nada, respondeu-lhe Bernard,
enquanto pensava, com mais vagar, futura estratégia que tinha
em mente. Precisava imediatamente escrever ao pai, em Guéret.
Então, agradecido, despediu-se enquanto acionava o motor de
arranque do Bel-Air. Destino: Hotel Cassino.
A conexão Wi-fi funcionara bem, no entanto o pai não era
dado às artes da informática e Bern demorou a ser atendido pela
administração da fazenda em Guéret.
Escreveu Bern: papai, prenuncio que para ter acesso ao doc x,
presumo ter que fazer algo reprovável. Estou dizendo-lhe do caso M.
Escreveu Guillaume: não dá para negociar com o Diretor, filho?
Dossiê Monlevade
185
Escreveu Bern: impossível, papai. É como negociar com a lei
da gravidade ou com um defunto.
Escreveu Guillaume: então não lhe resta outra alternativa,
querido. A justiça às vezes tem que ser feita por caminhos fora
da lei. Lembra-se do que fizemos com Luís XVI? Fique tranqüilo,
filho. Noã se ipmrot, não diezm Dues esrceve certo msemo por
mieo de plvrs earrdas?
Escreveu Bern: obrigado pelo conselho, papai. Convenceume. Fico feliz. Percebo que continuas mantendo o bom humor de
sempre!
Capítulo 41
Dossiê Monlevade
A
187
Capítulo 40
Invasão
manhã já estava quase expirando e Bern prosseguia trocando algumas idéias com Marie. Ele
com a testa franzida. Ela angustiada. Não era do seu gosto vê-lo
preocupado. Relaxe, querido, isso só vai trazer algumas marcas
de expressão para seu rostinho… Estavam no Bel Air, nas proximidades da casa da moça. As portas abertas do motorista e do
carona facilitavam passagem de brisa suave. Os vidros, deixados
fechados por horas, haviam aprisionado ondas de calor que praticamente fizeram ferver os elegantes bancos de plástico vermelho.
Bonitos, mas pouco práticos, o rapaz comentara…
– Não há cópia de x em nenhum lugar, Bern?
– Não, Marie. O próprio procurador chefe da justiça nacional disse-me ontem. Soube que ele tinha interesse nesse nosso
processo, por estar às voltas com outros, de natureza fiscal, em
que M também está envolvido. Por tanto, eu havia lhe telefonado
dizendo ser parente do fundador de Monlevade. Conversamos
em francês. O burocrata mostrou-se desejoso de praticar a língua.
Embora não seja do seu ofício conhecer tal tipo de contenda,
tomou conhecimento por meio de juiz amigo que pedira vistas ao
caso. Achou-o atípico! No final da conversa, alegou que, visando
a interesse nacional, poderia entrar contra Jaime Raimundo por
meio de processo adequado do ministério público. Foi por isso
que andou tentando localizar x.
– Não poderia solicitar o original?
– Tentou, mas foi negado pelo de La Nación. Só conseguiria
direitos de vista se solicitado pelo presidente da república e apro-
188
Jairo Martins de Souza
vado por dois terços do congresso nacional. Desculpe-me pela
ironia. É claro que se trata de exagero da minha parte. No fundo
quero dizer ser impossível a cessão do documento pelo de La
Nación.
– Mas, Bern, voltando um pouco, por que o homem da procuradoria pensava acionar Jaime Raimundo e não M?
– Foi influenciado por opinião particular do tal juiz!
– Como? Por acaso, já houve alguma decisão sobre o
assunto?
– Não. Nem mesmo houve, por ora, qualquer tipo de julgamento. Nem de juiz, nem de ninguém. Aliás, poucos juízes realmente tiveram vistas ao processo. Entre esses, não está incluído
o que andou abordando o assunto com o procurador. O fulano
nunca leu nada sobre andamento da ação e formulou opinião
estritamente pessoal. Esteve em algumas reuniões com M… andei
pesquisando edições de coluna social de O Globo das últimas semanas. M é frio. Parece que sofre de doença de água no sangue,
o homem deve ter caído na sua conversa!
– Bern, você sabe que só temos uma saída, não sabe?
– Sim. Ilegal. Penetrar no bunker do presidente do banco e
sacar cópia de x. Um dos seguranças de sua casa de Graal deu
pistas de colaboração, a princípio compartilhamos interesses comuns... Mas, voltando um pouco atrás, você disse temos, Marie.
Errado! Não quero risco algum para você! Tenho que agir sozinho
nessa empreitada que considero antiética.
Aí que está, prezado leitor, Bern no fundo sabia não ser assim! Queria, é certo, descartar a namorada de participação, pois
a causa é justa. O pai inclusive apoiara a ação e o método. O
comerciante é cidadão honesto, no entanto, impossível de provar
no rigor da lei. Estão lembrados que assinara como fiador em confissão baseada em x? Sim, o rapaz decidira operar como um bom
ladrão. Não que fosse exatamente assim, mas não dissera Jesus a
um desses, no Gólgota, amanhã estarás comigo no paraíso?
Para tanto tinha outra aliada. Esquecera-se, mas ao rebuscar
papéis no bolso do paletó, sorrira satisfeito com a descoberta. O
cartão de visitas e o número de celular trouxeram-lhe à mente a
Dossiê Monlevade
189
imagem da estagiária do de La Nación. Sua intuição dizia que não
negaria ajuda ao seu dileto cliente. Era da cidade… Com toda
certeza freguesa do Bazar, e conhecedora da retidão do caráter
do comerciante... Trabalhava no departamento de edificações da
instituição bancária. Não tenho dúvidas que tem acesso à planta e
aos segredos da mansão do presidente. Provavelmente ele os tem
guardados em seu escritório de trabalho. A moça tinha postura de
quem gosta de colaborar com causas justas, enfim, a partir dela a
questão teórica poderia ser equacionada. Já a prática... Essa teria
canal seguro de negociação com o segurança com quem fizera
contato anterior, o Palhares. O ex-policial que trabalhara na Fruit.
Fácil. Ah, também não tinha dúvidas que poderia contar com a
experiência de Chan... Daí quem sabe, pudesse chegar ao doc x.
Alô! É do de La Nación? Sim. Por acaso, quem fala é a simpática estagiária?
– Obrigado, doutor Bernard. Meu nome é Jacieni. Jacieni
Fernandes Flores. Pronta para ajudá-lo no que necessário para
aliviar a amargura atual do tio Jaime.
– Tio? Não sabia que eram parentes!
– Não. Não disse isso, mas por via de dúvidas... No interior,
mesmo em metrópoles como Monlevade, todo mundo tem algum
tipo de ligação. Ouça-me bem, se não é de sangue, é afetiva. Inclusive aconselho nunca falar mal de um morador daqui com um
outro qualquer. É correr risco desnecessário.
– Não se preocupe, não é do meu feitio relinchar como um
cavalo (a moça riu discretamente. Ah, esses estrangeiros, alguém
tem que ensiná-los o momento certo de citar figuras de linguagem
do português!)
– Fico feliz em confirmar. Aliás, quando o vi, de longe, percebi imediatamente essa característica que considero nobre. Já
voltaste a conversar com o segurança da residência do diretor?
– Como sabes que tenho a intenção de procurá-lo?
– É caso simples, usei intuição feminina.
– Ainda não. Ainda não o procurei!
– Então vou interceder por você. Ele foi criado na casa de
parente de um meu primo distante.
190
Jairo Martins de Souza
– É muita gentileza de sua parte!
– Não precisa me agradecer, sou franca. Estou à sua disposição. Tenho acesso a toda documentação das edificações do
Diretor. Inclusive às plantas civis, elétricas e hidráulicas e automação de sua casa. Estudarei todas e farei relatório a ser enviado para quem você indicar. Faço isso também por achar você
bonito.
A operação foi minuciosamente elaborada. Flores, a estagiária, mostrou-se eficaz, e o segurança de praticidade ímpar. Bern,
um pouco constrangido por incomodar, havia pedido socorro a
Chan. Posso compartilhar minha experiência com você sem nenhuma contrapartida, a não ser a manutenção da sua amizade,
foi o que de imediato o detetive lhe respondera. Bern havia feito
contato por telefone, localizando-o em plena ação em cemitério
secundário da capital paulista. Sim, estava muito ocupado. A pedido de Simon Wiesenthal, que lhe antecipara via fax diretamente
de Viena, fora contratado por R. Tuma, chefe da polícia paulista
para auxiliar em investigação especial. Sentiu-se honrado. Wiesenthal é o famosíssimo caçador de nazistas. Estava nos rastros
do antigo anjo da morte, o médico Josef Mengele do famigerado
campo de concentração de Auschwitz. Não. Não deixaria de ajudar o amigo. Nem Simon nem Bernard. Lembrou-se sensibilizado
da parceria formada na operação Patinhas. Mandar-lhe-ia instruções, via sedex, bastar-lhe-ia que Bern lhe enviasse mapas e resumo da situação. Caso necessário, Bern poderia também contar
com suporte logístico e factual de seus agentes em Monlevade.
Gostaria muito e agradeço. E o sigilo da correspondência? Sem
problemas, disse-lhe Chan, disponho de papel especial que, se
tocado, esfarela-se como farinha de milho triturada por pilão. É
recoberto microscopicamente com íons negativos. Como então
manuseá-lo? Assim que receber o envelope entre em contato comigo, daí envio sinal via satélite para inibir microchip que dispara
a reação. Você poderá abri-la sem sustos.
Bern. Jacieni. Palhares. Sendo obedecidos todos os detalhes do plano que lhes enviei, vocês darão conta do recado sem
atropelos. Bom trabalho! Essa foi a palavra final de incentivo de
Dossiê Monlevade
191
Chan. Lamento não poder estar aí. E assim repassaram o plano
nos seus mais ínfimos detalhes.
Bern vestiria o colete à prova de bala. Usaria comunicador
de alto rendimento. Acessaria o interior da residência por entrada de ventilação – um bueiro vazado de aço –, que se abria
nos jardins da parte lateral da mansão e que, por meio de escada de pedras rústicas, conduzir-lhe-ia até adega climatizada
do diretor. O homem é caprichoso, disseram-lhe! Tal ambiente
especial ficava em porão afastado da casa, mas ligado por túnel
que também se aprestava como área de estocagem para vinhos
recém-chegados.
Foram as últimas palavras ditas pela moça. Desse ponto, deveria sair em direção ao escritório. Há cadeado?
– Sim. A ser aberto por amigo do segurança a troco de pequena quantia.
Os fundos da casa projetavam-se para mata fechada que lá
estava muito antes que Jean Monlevade aportasse no Rio, conforme sabido, em 1817 ou 1818. Lá, com as suas espécies nativas que identificam a chamada Mata Atlântica, funcionava como
cercado natural de grande valia para os moradores que ainda
restavam na Avenida do Aeroporto. Intransponível. Foi o porquê
de Bern optar por acesso diretamente pelas portas e portões da
entrada principal da bela residência. Para que não ficasse registro
posterior, as câmeras de vigilância seriam, por instantes pré-programados, desconectadas pelo segurança – que também trataria
de manter isolados os dobermann que policiavam os jardins e
áreas de lazer.
Na reunião final de ajustes, feita em sala especial do Hotel
Cassino, o segurança Wilson Palhares dera informações complementares e a estagiária Jacieni trouxera croqui feito a mão. Utilizara tinta fosforescente. Um simples visor de celular poderia iluminá-lo com sobras, dissera sentindo-se bem em colaborar com
idéia que sabia fundamental para o sucesso da missão x. Doc x.
Missão x… Nada de complicações. Portanto, foi assim que, entre
eles, foi chamada a visita noturna à casa do Diretor do Banco de
La Nación.
192
Jairo Martins de Souza
A noite chegara. A cerca de cinco casas distantes do seu objetivo, Bern discutiu novamente os movimentos iniciais com a estagiária. Vá adiante, Bern, e passe defronte ao portão principal.
Se tudo estiver bem, o pequeno retângulo vazado no seu centro deverá estar aberto. Nunca fica. É a senha combinada com
o segurança. Na pilastra da lateral direita há porteiro eletrônico
com câmera acoplada. Ignore-o. Abaixo do buraco que disse há
pouco, você verá uma campânula cujo badalo é pequeno frade
capuchinho fundido com mistura de cobre e estanho. No Brasil,
chamamos latão. Bata com a cabeça do bonequinho três vezes
na parede do sino. Pausadamente. Exatamente como se digita
número de cartão de crédito quando se fala com call center. Com
o silêncio, – lá você só ouve coaxar de sapos –, serão facilmente
percebidas pelo vigia. Em torno de um minuto, no máximo, ele
deverá abrir fresta suficiente para que você entre no caminho que
o levará diretamente ao …
Pronto. Já estava na adega. Um tanto quanto nervoso, pensou em Poirot, tentando imaginar como o seu detetive preferido
procederia. Viu-se na tela de sua tevê. O artifício fez-lhe bem.
Não se deixou encantar com a maravilhosa exposição de vinhos
que o cercava. O termômetro do climatizador indicava 18 graus
centígrados. O homem é grande apreciador de tintos, foi o que
rapidamente compreendeu ao passar defronte à prateleira onde
se via escrito com letra comum: franceses selecionados. Imaginou
que, entre tantos, poderia haver alguma garrafa dos que o pai
fabricava com esmero. Até aqui tudo bem. Foi o que informou
à bela Jacieni que, do lado de fora, acompanhava as ações. Ato
contínuo, passou a reexaminar o mapa que a jovem anteriormente
lhe entregara. Sorriu nervosamente, confirmando o que já havia
deduzido. Fora precisamente elaborado. Detalhes desnecessários
foram sabiamente desconsiderados. Fazia silêncio sepulcral. Ao
abrir uma das portas ouvira risos distantes de funcionários que se
deliciavam com iguarias retiradas dos guardados do patrão. Ao
fechá-la, confirmou o excelente isolamento acústico que Jaciene dissera lá existir. Imediatamente silêncio de sarcófago voltou
a reinar.
Dossiê Monlevade
193
O escritório era mutíssimo bem decorado. Uma das paredes,
protegida por extenso vidro de segurança, exibia interessante desfile de armas. Revólveres. Somente revólveres. Com a lâmpada
do seu celular, Bern aproximou-se, verificando que, no pé de
cada um deles, além de figurar o modelo, constava o acontecimento histórico a que esteve ligado. Interessante. O que Getúlio
usou para atentar contra sua vida, o que Santos Dumont apertara
o gatilho para suicidar-se… Atento, o jovem reparou que havia
lugar vago de arma faltante… Provavelmente é a que o diretor
deve trazer consigo, imaginou!
Não. Não é o que pensas, rapaz! A voz era tensa e soou lúgubre pela vastidão do escritório. A arma que vês ausente foi retirada por mim! Como leste na anotação que aí está, trata-se da primeira e única vendida pelo Bazar que resultou em aniquilação de
um seu funcionário que tivera amor frustrado. Não se sabe bem
o porquê, mas o diretor tem fixação em armas que… Gosta também das utilizadas em competições olímpicas, modalidade pistola
livre. Aquela que está no canto superior esquerdo, calibre .22 LR,
foi a de representante brasileiro na Olimpíada de Londres. 1948.
Na ocasião, não levou medalha, nem mesmo de bronze. Mas andou abiscoitando vários prêmios do Clube da Caça e da Pesca:
aqui em Monlevade... Bem, mas isso cá não nos diz respeito!
Mais relaxado, o desconhecido retirou o capuz, mantendo o
facho reto da luz de sua lanterna na direção do rosto de Bern. Ao
mesmo tempo dirigiu-se para o mostruário de armas para reposição do revólver que retirara. Não queria deixar vestígios. Bern,
ainda surpreso pela presença de um terceiro, perguntou vacilante
em francês, Qui est vous? (quem é você?)
Não sabes quem eu sou, mas sei quem é você! Portanto, relato que sou um dos sócios da Fruit em Cocais. Também advogo e
sou especialista em crimes contra empresas e mercado de capitais.
Fiz curso noturno. Graduei-me em Colatina no Espírito Santo. Lá
minha mulher fez pedagogia na mesma época. Íamos juntos em
ônibus de carreira todos os finais de semana. Não sei o porquê de
estar lhe dizendo isso, Monlevade, contando detalhes particulares
de minha vida e de minha família. Talvez seja para angariar sua
194
Jairo Martins de Souza
confiança. Enfim, sou pessoa que fala muito. Então, dentro dessa
minha característica, exponho que, na realidade, minha missão
é investigar o caso M, pois trouxe graves interferências em nossos negócios. Por exemplo, o affair Banco de La Nación. Sei que
ambos estamos aqui, amigo Monlevade, por causa desse caso, e
da semente maligna que o germinou, o doc x. Antecipo não estar
muito à vontade nessa situação. Sou advogado legalista. Primo
por obedecer e cumprir leis. Na realidade, antes de invadir propriedade alheia, tentei, por meio de ingresso na Justiça, que o
De La Nación apresentasse o endemoniado x. Batizei-a, estou
dizendo da tal representação, com nome comprido que terminava
com os termos exibição de documentos. Não surtiu efeito, pois a
justiça não me levou a sério. Tudo isso nos trouxe muitos transtornos. Não mais traz. Foi daquele jeito até o momento em que seu
cliente, o proprietário do Bazar, assinou a tal confissão. O que,
de certa forma, trouxe-nos alguma satisfação e alívio. Com isso,
reforço que para a sociedade Fruit essa situação deveria ser água
passada, afinal de contas a bomba foi colocada no colo do seu
cliente. No entanto, inicialmente, antes de envolver Jaime Raimundo, o de La Nación tentou colocar a Fruit como devedora da
negociata pessoal que fizera com M. Causou-nos mágoa profunda. Assim como causou mágoa a atitude tomada contra Raimundo. Todos o têm como homem de princípios. Como expliquei-lhe
há pouco, Monlevade, na ocasião, pedimos ao banco que exibisse
documentos que comprovassem eventual débito e desdobramentos. Não o fez. Nem o juiz obrigou-lhe a tanto. De todas as formas,
fui contratado pelos demais sócios para elucidar toda a trama.
Nosso interesse é apenas entender o que realmente aconteceu
entre M e o De la Nación. No frigir dos ovos, é por isso que estou
aqui. Disseram-me ser missão mais difícil que desvendar o mistério do Santo Graal, ou saber sobre a autenticidade do sudário,
ou descobrir onde, finalmente, foram guardados os restos da cruz
em que Jesus foi crucificado. Não o foi. Não percebeste que segui
todos os seus passos em La Paz? Tenho gravado, inclusive, tudo
que falaste e recebeste via telefonia fixa, móvel e internet.
Nem eu nem o Bazar nada temos a esconder dos sócios ho-
Dossiê Monlevade
195
nestos da Verlon Fruit Shoe, agora foi Bern quem retrucou incomodado com tal invasão de privacidade. No entanto, paradoxalmente
tranqüilo. O motivo, mesmo na situação inusitada em que se encontrava, fora a longa exposição do interlocutor, – não se diz na França
que chien qui aboie ne mord pas (cão que ladra não morde)? No
entanto o senhor sabe, trata-se de procedimento criminoso.
– Sim. Contudo sei que não vais tomar ação alguma contra nós.
– É verdade, desde que cesse a partir deste exato momento.
– Podes considerar encerrado.
– Sou-lhe grato, e perdôo a sua nefasta ação anterior. Provo
dizendo que já a esqueci. Então, pergunto, conseguiste o doc x?
– Sim Saquei cópia com câmera de celular, inclusive arquivo
de promissória que sempre o acompanha de mãos dadas. Como
Cosme acompanha Damião.
– Se é assim, podes ceder-me?
– Por e-mail. Não podemos demorar nem mais um minuto aqui. Distraí-me. Peço-lhe desculpas por ter me alongado nas
explicações que lhe dei faz pouco. Eram absolutamente necessárias, mas poderia ter-lhe dito tudo aquilo em momento de menor
stress. Rápido. Saiamos rápido. O peixe morre pela boca. Não
sou um deles, Monlevade, mas alguns amigos me dizem que esta
minha prolixidade ainda um dia me mata. Depressa. Depressa.
O rodízio da guarda deverá passar em 30 segundos. Repara o
marcador digital regressivo que está a sua direita.
– Mas o segurança Wilson Palhares, que trabalha conosco,
disse-me…
– Esqueça, alguém denunciou parcialmente seu esquema
para o diretor em La Paz. Acompanhe-me até os fundos da casa,
vamos caminhar por trecho de Mata Atlântica monlevadense. Nela,
alguns caçadores antigos abriram trilha a facão até alcançar a Vila
Tanque. Lá há viatura que nos aguarda. Posso encomendar ao
motorista para levá-lo ao Hotel Cassino. Quando chegar, já terás
o documento em sua caixa de mensagem. Terás que decodificálo, por meio de senha que lhe passo agora. Basta deslizar esse
papel próximo à chama de fogão, o código secreto aparecerá
por alguns segundos e se extinguirá para nunca mais voltar. É
196
Jairo Martins de Souza
gravação volátil.
– Entendo e agradeço. Só preciso avisar a estagiária que me
aguarda com o Bel Air.
– Não é necessário. Já foi cientificada da mudança de planos pelos sócios de Cocais. Amigo, ela não é somente sua, como
também nossa parceira, aliás, todos nós temos também outra missão.
– Qual?
– Protegê-lo!
Dossiê Monlevade
S
197
Capítulo 41
Amor e arte. Duas cartas!
ei que você também quer sempre me proteger, mamãe, mas digo-lhe o que sinto. Sinto tanto carinho
por ela que tenho ímpetos de carregá-la no colo em ocasiões mais
inusitadas. É como funciona comigo aqui. Quero proteger Marie!
Papai disse-me que era assim que fazia com você quando namorados. Dizendo desse jeito fica melhor para você entender? Então
fica claro que não é como a uma irmã que gosto da brasileira,
enfim, como faria com a Deneuve que prezas tanto. Aliás, repito,
venham aqui, você e Liviah, para conhecer Marie. Isso é uma ordem! O rapaz que você viu sair de Paris cresceu bastante...
Aí que está mamãe, peço-lhe não pôr chifres na cabeça de
cavalo! E não se preocupe, ainda que não seja somente isso que
esteja vendo de excitante aqui no Brésil! Não fazia um ano e já
tinha dado para perceber que tudo nos trópicos é diferente. Até
mesmo as estações egípcias que, faz séculos, nunca mudaram.
O verão é mais forte, as chuvas mais copiosas. No inverno faz
frio, mas não tanto. A primavera é feita de cores mais vivas, há
profusão de frutas, flores e cores. O outono é menos distinto, com
cores menos cobreadas. Aqui tudo é tingido a ouro, mamãe! Aliás, falando em ouro, assim que puder, vou a Ouro Preto. Marie
disse-me ser cidade colonial simplesmente maravilhosa...
Papai, obrigado pelos depósitos e adiantamento para
cuidar dos negócios relativos ao processo de Jaime Raimundo.
Estive na casa do Diretor de La Nación e tudo deu certo. Finalmente
tenho em mãos a buscada cópia de x. Agora é encaminhar
procedimento jurídico, conforme me sugeriu o presidente da
198
Jairo Martins de Souza
OMC quando estive em La Paix. Quanto a você, papai, apesar
de distante, cada vez mais me sinto enriquecido com sua alma
companheira e dedicada. Guardo instintivamente todas as suas
orientações. Lembro-me sempre que, com seus conselhos, não
deverei temer mal algum. Nunca me esqueço da história do
caranguejo que diz ao filho para andar reto, e o filho pede-lhe
para mostrar como... Contaste-me quando criança. Agradeço-lhe
pelos exemplos, que sei, vieram de sua formação cristã. Prometo
pagá-lo com juros que também sei nunca cobrados. Fico feliz
em saber que os negócios vão bem em Guéret! Por outro lado,
agora entendendo melhor o Brésil, mudo meu humor na escrita
e torno-me levemente triste. Os portugueses, papai, perderam
oportunidade de ser o povo europeu mais rico do continente.
Não entendo porque não participaram das revoluções industriais
que mudaram o mundo a tempo certo. Corte atrasada. Povo
atrasado!
Não me consta ter havido, entre eles, nenhum industrial como
meu bisavô que aqui viveu e morreu. Os lusitanos que vieram
para cá, começaram buscando pau-brasil. Eram chamados brasileiros e vinham somente levar essa e outras riquezas. Daí nome
transferido erroneamente para o povo daqui. Iam e vinham. Tais
brasileiros, no fundo portugueses, não pensavam ficar aqui como
fizeram os ingleses que viajaram para a América do Norte. Como
se não fosse suficiente, alguns poucos daqueles acabaram fixando
moradia, mas com o mesmo espírito de extorquir e carregar suas
caravelas particulares. Pais, mães, gerações inteiras que continuaram indo e vindo. Tornaram-se, em essência, políticos que, ao
longo dos séculos, vêm tentando destruir o muito que aqui tem
de bom. Pedro II, cuja tia casou com nosso Napoleão Bonaparte,
foi exceção. Uma pergunta, papai... Por que o habitante do Brasil
não é brasiliano, tal como os peruanos, bolivianos, italianos?...
Sim, estou desviando assunto, deves estar ansioso para saber
algo mais de Marie. Faço melhor! Envio-lhe foto exclusiva em que
estamos almoçando em floating restaurant às margens do Piracicaba! O dia estava ensolarado e facilitou mostrar os encantos da
mulher brasileira. Só vendo, papai... Só vendo...
Dossiê Monlevade
199
E o futebol daqui, papai? Vi alguns jogos durante minha estada no Rio de Janeiro. Como disse-lhe, tempos atrás, estive no
Maracanã e, quanto a isso, nada mudou. Já em Monlevade, continuo apreciando clássicos locais como o Metalúrgico versus Belgominas. O Real versus o Vigilante. Aliás, já estiveram jogando
também por aqui o Atlético Mineiro e o Cruzeiro. Time fundado
por italianos. Um antigo estádio daqui, chamado Jacuí, foi reconstruído no local que antes seria cedido à ferrovia da gigantesca Companhia Vale do Rio Doce. A Vale. Lembra que algo
semelhante aconteceu com o Wembley dos ingleses? Já o maior
clube desse estado teve o seu estádio, o da Colina de Lourdes,
transformado em Shopping Center. O torcedor do Cruzeiro chama-se cruzeirense. Tornei-me um deles. Não é a palavra torcedor, vinda do latim torccere: o que distorce a verdade? Bem, tal
como fazíamos juntos aí em Paris, acompanho também rodadas
de discussões entre comentaristas especializados. De fato, papai,
os espetáculos daqui encantam-me tanto quanto ver shows do
Cirque de Soleil. O Alegria. O La Nouba… Os brasilianos fazem
atuações futebolísticas, acredite, como grandes atores de teatro.
Só não os chamam atores, jouers, como o francês chama. Os
ingleses, lembra-se, também chamam seus futebolistas de artistas. Chamam-lhes players. Aqui são simplesmente jogadores. O
que é absolutamente igual é a falta de compreensão das mulheres quanto a essa paixão masculina. Desesperam-se pela perda
momentânea de companhia dos seus queridos. Como em todas
as partes do mundo dizem-se desamparadas. Mas estou dizendo
de grandes artistas, papai! Levam o público ao delírio. Nem os
gladiadores romanos, no gigantesco Coliseu, arrancavam tamanho entusiasmo. Spartacus e Maciste sentir-se-iam pequeninos se
comparados a Edson Arantes, o Pelé. Se bem que, quanto a isso,
papai, os brasileiros não sejam nada modestos. Têm motivos de
sobra. Nunca se sabe o que vão fazer com seu texto ou sua pintura. Aqui a caneta e o pincel têm nome único: a bola. A partir
dela fazem arte! Não é arte tudo que tem por missão surpreender
pessoas, fazê-las felizes ou simplesmente reflexivas?
Beijos para você, mamãe e Liviah.
Dossiê Monlevade
201
Capítulo 42
Bern invoca Têmis, a deusa que se faz cega às coisas
dos homens
U
m café forte passado à moda antiga?
– Como?
– Coado em filtro de pano! Já tomaste dele aqui em casa.
– Ótimo, percebo que fica mesmo melhor. É muito superior
aos espresso.
– Posso servi-lo em canequinha de estimação? É esmaltada
em cor verde. Pertenceu a meu avô. Esquenta um pouco os lábios, mas…
– O prazer é todo meu. Vai torná-lo mais saboroso.
– E então, Bern, foi difícil obter o doc x?
– Não. Tudo correu com a graça do Senhor. Parece-me, as
coisas se sucederam imperceptíveis como a lei da gravidade. Mas
senti os efeitos materializados nas letras da senha do papel que
me forneceu o advogado colatinense.
– Podes me dizer qual era a senha?
– Sim. Iustitia. Justiça. Em latim.
– Por que em latim, e por que Justiça?
– Creio não haver razão especial. Talvez quem criou o código
goste de línguas mortas. Pode ser também dos que sonhe com
a força da espada, o equilíbrio da balança, e a imparcialidade
da deusa que zera sua tara. Aí está o porquê da deusa Têmis ter
máscara nos olhos.
– Sonho possível?
– Sim. Tal como o que o reverendo King teve e viu tornar
realidade. O mesmo que tivemos com os famosos gritos de liber-
202
Jairo Martins de Souza
té, egalité, fraternité. Por trás desse tipo de sonho existem muitas
lutas. A nossa aqui mal começou.
– Entendo… Se é assim, Bern, por onde começamos?
– Pelo princípio. Pelo caminho que me deu o presidente da
Organização Mundial de Comércio quando estive em La Paz. Vou
pedir mudança dos rumos da execução que a justiça tem feito
com meu cliente. Tal como nos julgamentos antigos devo invocar
a presença de Têmis. O instrumento jurídico é a tal exceção. A de
pré-executividade…
Dossiê Monlevade
203
Capítulo 43
Onde se diz sobre o milenar jogo de braço de ferro
E
m qualquer peça jurídica, Marie, deve haver ordenação
lógica totalmente de acordo com a prática dos advogados e juízes. Há que identificar o magistrado para o qual segue,
tratando-o com o respeito a que faz jus de ofício. É um homem
comum, mas em suas decisões solitárias pode ser visto como um
Deus. Ocupa cargo atípico na sociedade dos homens. Sendo assim, é de praxe chamá-lo excelência. Não é de todo incomum que
sejam pessoas forjadas por ligações sangüíneas. Praticantes do nepotismo. Nesses casos, de geração a geração, tornam-se burocratas
que se eternizam debaixo de togas. Perdoa por desviar o foco do
assunto, Marie, pois, após seguir profissão de fé que anteriormente
disse, o advogado faz exposição inicial. Daí expõe arrazoado. Para
enfeitar, borda algumas palavras, enfeita-as, escrevendo-as em latim e, para reforçar, lembra casos passados, e cita jurisprudências.
Isso pode contar pontos a favor… No final faz os pedidos, alguns
escrevem o óbvio e reforçam clamando por Iustitia.
Foi o que fiz aqui, chérie, falta-me somente encaminhá-los.
Não. Não fora fácil assim a ponto de todo o esforço de Bern
poder ser reduzido a tão simples e pequeno parágrafo. Mesmo
não se tratando de processo criminal, o rapaz buscara entrevistar os sócios de Monlevade e os de Cocais. Consultara agricultores, comerciantes, professores, médicos, administradores e exportadores de frutas. Arrolara testemunhas. Obtivera declarações
reconhecidas em cartório de pessoas idôneas, conhecedoras do
assunto e que acompanharam Jaime Raimundo durante a instalação da Fruit no mercado. Tinha trabalhado bem. Com poucas
204
Jairo Martins de Souza
palavras e muitas razões desclassificara e tornara clara as más
intenções do De La Nación e de M. A documentação anexada
deixava bem clara a inocência de Raimundo. Resumindo, fora
convincente. Disso tudo resultou bela peça de defesa. Inócua!
Por quê? – Perguntou-lhe Marie.
– Ao direito e às leis, chérie, não interessa saber se o indivíduo
é inocente ou não. Os maus políticos e cidadãos congestionam
os tribunais. Todos alegam inocência. Minha alma já é brasileira,
Marie, e, como tal, dou-me o direito de dizer que aqui no nosso
país, o foco, parece-me, é dirigido para o processo do julgamento.
Não à essência de que trata. Mais especificamente, veja o caso de
Raimundo que assinou algo que não devia ter assinado. O fato é
que quando o fez, caiu na teia de leis do sistema. Desnecessário é
lembrar-lhe, chérie, que aqui, quem aprova as leis é o legislativo.
Ah, esses políticos são donos de tudo. Até mesmo no executivo
ditam regras com as tais medidas provisórias. Enfim, todo esse
sistema dá idéia de não se conformar que alguém que nele entre,
ou simplesmente seja citado, possa ter sido ludibriado e, por conseqüência seja considerado inocente. Metáfora boa é a de uma
aranha que captura um inseto e deixa-o à mingua em sua prisão
eterna. Não o mata por definitivo, mas também não o libera de
suas algemas. Não é nada pessoal contra Raimundo. O Estado
versus Raimundo. Ou contra qualquer que seja. O sistema legal
dificilmente vê como alguém pode ser inocente se nele entrou
pela porta de trás. Aliás, chérie – digo isso só para estabelecer
paralelos e diferenças –, quando estudante participei de viagem
de estudos e troca de informações aos Estados Unidos. Papai foi
comigo. Ele, por curiosidade; eu, para confirmar certos dados que
levantei durante semestre em que, na Sorbonne, estivemos estudando como funcionavam os tribunais naquelas terras. É claro,
papai não era nosso colega de classe. O fato é que estivemos inicialmente na Justiça federal, na Pearl Street. Lá, pouco aprendi.
Mas eu e papai rimos muito, ha, ha, ha
– Por que, Bern?
­– Xingos. Xingos, Marie. Por exemplo, em audiência a que
assistimos, – de mulher negra que acionava a homem branco, um
Dossiê Monlevade
205
ex - empregador –, em dado momento, ela xingou-lhe assim: take
care, fellow, I’m going to assassinate your ass (cuidado, fulano, vou
assassinar o seu c…). Não preciso traduzir o resto, não é Marie?
Não é frase um tanto inusitada? Achei-a divertidíssima. Enfim,
querida, aquele povo faz ameaças e diz frases daquele tipo como
poucos. Não é assim que funciona nos seus filmes? No entanto, na
ocasião tomei proveito mesmo foi de visita à Centre Street, número 100. Foi também na cidade de Nova Iorque. É onde funcionam,
não é que sejam julgamentos, mas algo como sessões, eles chamam arraignaments, com ritual característico, e que podem definir
destinos de casos de pequena relevância social. Denunciada a má
ou boa intenção de a ou de b… Pronto. Define-se logo. Em regime
de 24 horas por dia. Não há disputa entre o sistema, que quer condenar para dar satisfação à comunidade que paga impostos, e o
advogado de defesa, que é pago para defender o acusado dentro
dos furos da lei. Há também outras diferenças, enfim, casos são
definidos rapidamente, pois muitos outros estão na fila de espera.
No Brésil, para os juízes, isso tanto faz, tanto fez. É triste, mas no
Direito brasileiro, repito, o que interessa é a disputa pela decisão
final. Imaterial. Não há interesse pela pessoa, em particular. Raramente se faz justiça. Que se acumulem os processos! Grosso modo,
são tantos os artifícios legais para procrastinar decisões que muitos
deles acabam morrendo por inanição nas gavetas do Supremo. Os
processos normalmente caminham enfeitados, pois ao longo dos
andamentos há batalhas verbais belíssimas: isso desde os tempos
de Rui Barbosa. Fato comum. É tradição nacional. Basta lembrar,
Marie, as que travam os senadores e deputados da república nas
dependências do Congresso Nacional. Algumas se tornaram peças
literárias apreciadíssimas e, por isso, muitos doutores que litigavam, e litigam, foram eleitos para a Academia Brasileira de Letras.
Os advogados mentem muito. Claramente. Na televisão. Nos jornais. Muitos seguem a carreira de políticos. Mas todas essas querelas, no fundo, tratam de jogos de poder específicos. Uma queda de
braços entre os envolvidos. Um braço de ferro. Às vezes, mesmo
com definição prévia de quem perde e de quem ganha, não há
beleza alguma se não acontece contestação de um ou de outro.
206
Jairo Martins de Souza
– Pelo que dizes, Bern, passa-me idéia de ser como venda de
objeto por negociante marroquino. O mais importante é a intriga
durante oferta e aceitação de preço. Se não há disputa, a transação perde a graça.
– De certa forma foi o que o juiz entendeu, Marie. Com seu
despacho, deixou claro que o presidente da OMC não foi feliz na
instrução que nos aconselhou. Foi o porquê de ter enviado carta
à população, informando que a ferramenta jurídica proposta para
a desoneração de Jaime Raimundo não procede.
– Considerou isso porque não houve o braço de ferro?
– Sim. Mas também porque desconhece o caráter do nosso
amigo Jaime. Além disso, disse-nos não porque na exceção de
pré-executividade não se convoca presença do outro participante
da lide jurídica. O de La Nación.
– Ele, quero dizer o Jaime Raimundo, ficou triste?
– Sim. Como também a esposa e filhos. Mas não desanimou.
Nem eu. A verdade tem que vencer. Quando informei-lhe, por
telefone, citou-me textos bíblicos sobre os sofrimentos de Jó. Concluiu dizendo que se Deus está por nós, quem estará contra nós?
– E você?
– Fiquei calado. Não podia dizer-lhe que o pessoal do De La
Nación buscará manter sua condenação a todo custo.
– Como?
– Fazendo-se de morto! É o que tem feito desde que o primeiro juiz disparou o processo dessa execução. Com isso, o processo
encontra-se paralisado: mas não a execução. Seus efeitos persistem. Nem está parada a nefasta parcela da sociedade que vive da
desgraça alheia.
– Nefasta?
– Sim. Órgãos e instituições com características medievais que
inibem crédito pessoal e envergonham pessoas como Raimundo.
O coitado nem mesmo tem direito a cheque bancário.
– E então, o que fazer?
– Apelar. Apelar para junta de desembargadores. Podem revogar decisão do juiz.
– Então vamos recorrer da decisão?
Dossiê Monlevade
207
– Sim. Mais precisamente, vamos agravá-la.
– Temos chance de mudar o que definiu o magistrado?
– Talvez. O desembargador corrige o que o juiz faz. Às vezes,
funciona como seu professor. Dá puxão de orelhas. Aprova ou
não. Tem força para tanto. Alguns dizem que não há espírito de
corpo entre juízes e desembargadores. Outros dizem que costumeiramente formam grupo fechado carne e unha. Aliás, dizer que
o juiz é pai do desembargador é afirmação um tanto freudiana,
mas não posso contradizê-la. Mas, Jaime, mesmo que a segunda
hipótese seja a verdadeira, continua acreditando na existência da
exceção. Não são elas que justificam a existência das regras?
Dossiê Monlevade
O
209
Capítulo 44
O tribunal de Apelação
Banco do Brasil quebrou em 1829. João VI havia
raspado seu cofre quando retornou para Lisboa anos
antes, em 21. Foi recuperado por Mauá. A Panair quebrou. O governo tomou-lhe as linhas. Não se recuperou. A Real aerovias...
A Verlon Fruit Shoe está se extinguindo. Por abandono. M gostara
do exemplo do imperador português...
Bern olhava-os com respeito. Dois ou três eram conceituados juristas e professores nas escolas de direito de Monlevade.
Os desembargadores entreolharam-se descontraídos. Nada do
que acima deduziram havia sido posto a público pelos jornais
e artigos de economia da semana. No entanto, pelos termos da
representação do De La Nación, contra certo Raimundo, foi-lhes
fácil concluir. Haviam finalizado os preliminares no salão de café
e vestiam togas de acordo com o cerimonial demandado para a
ocasião. No momento encontravam-se assentados em cadeiras
modelo Luiz XVI e passavam os olhos sobre recurso de agravo de
instrumento, levado às barras do egrégio tribunal pelo advogado
Bernard Monlevade. Quem estava com a palavra era o relator,
que funciona como guia e dá o ritmo ao processo sendo julgado.
A pauta, como sempre, se mostrava cheia, e a audiência,
tanto na parte central do salão, quanto nas galerias, estava repleta
e composta de cidadãos ansiosos. Alguns como Raimundo
aguardavam definição. Toda a audiência permanecia calada. Não
se ouvia um pio que fosse. Uma mosca que batesse as asinhas
seria ouvida de um a outro extremo do salão. Nem se fale, caso
fosse uma borboleta. Os advogados destacavam-se pelo modo
210
Jairo Martins de Souza
distinto de se vestir. Por deveres de ofício, normalmente falantes,
aqui, primam por manter comportamento discreto.
Desde a entrega do seu pedido de reforma de decisão, já
havia passado cerca de três anos. Agora finalmente aqui estava,
prestes a receber a decisão do relator quanto à possível reforma,
digo, mudança, da decisão do juiz de primeiro grau. Nada no
ambiente há de teatral ou romântico. Não como nas películas de
tribunais do cinema norte-americano.
O relator do pedido de agravo era homem experimentado.
Mas parecia triste. Uma exceção. Parecia doente. Quem sabe fosse
o seu último dia de serviço. Parecia ser dos que estavam prestes
a passar para período de aposentadoria compulsória: fosse assim
o final de semana seria totalmente voltado para homenagens.
Aparentava não prestar atenção ao que lia. Parecia indiferente.
Ah, Bern constatou, a justiça estava distraída. Ao lado estavam
Jaime Raimundo e esposa. Também ansiosos. Passemos aos
fatos.
Escrevi que o relator era homem experimentado. Agora
escrevo cansado. Um juiz cansado. Um desembargador cansado.
Ao iniciar leitura de sua conclusão, fê-la cometendo grave erro. De
pronto errara o nome do agravante. Dissera qualquer coisa que
soou como James Raimundo e por aí seguiu enfadonhamente
dirigindo a sessão. Estranho, Bern pensou. Talvez melhor ponderar
que o equívoco fora conseqüência da conhecida lei de Murphy,
ou considerar o ocorrido como fruto da senilidade do agente
público. Então, encurtando o assunto, e colocando-o conforme
anotações de próprio punho de Bern...
Depois de cometer tão grande deslize, o desembargador
que relatava deu parecer contrário ao que eu, como advogado,
julgava justo acontecer. Imediatamente foi seguido pelos demais,
seus pares. Em política, diz-se voto da bancada. Diz-se seguir o
líder da bancada. Aqui no judiciário nacional não sei como se
diz. O que sei é que tenho que partir para outra batalha. Procurar
outro caminho. Rapidamente. Com a agilidade que Napoleão
movimentava seus exércitos!
Dossiê Monlevade
O
211
Capítulo 45
O juiz
juiz de Primeira Instância não tinha agido tão errado
assim. Mas errou. Deixou faltar-lhe algo. Faltou-lhe
disposição. Como também aos desembargadores que julgaram
o agravo no tribunal. Não. E não é que seu cliente seja culpado.
Faltou-lhe, agora volto a falar do juiz de Primeira Instância, talvez
um pouco de coragem. Coragem para chamar Raimundo, e o
de La Nación, e saber o que realmente aconteceu. Face a face.
Pois o que não está de acordo, de forma límpida e clara com as
regras do direito nacional, é que a decisão do juiz não poderia ser
tomada sem se ouvir as razões do banco. Mesmo que desonestas.
Precisa-se de um contraditório. Precisa-se de uma discussão entre
as partes que anteriormente não houvera.
Mesmo tendo tudo isso em conta, o juiz que inaugurou a
execução não trabalhou bem. Agiu mecanicamente. Como um
autômato. Fez tal como no casamento quando a mulher, acuada pela histeria, acusa o marido. Não permitiu o contraditório.
Alguns fazem assim. Lavam as mãos. Como Pilatos. Não vão a
campo. Tornam-se homens solitários, pois não tiram o traseiro
de cadeira honorífica. Ex officio. Fazem parte de sistema, e nem
mesmo sei se podem ser condenados. Alguns, sim. Estão lembrados do Rocha Mattos e do Leopoldo? São milhares de processos!
O juiz é obrigado a fazer como o médico que trabalha na rede
pública. Do tipo que receita remédios, não para o doente, mas
para o resultado de exames que vêm de um laboratório. Como
se o paciente não existisse. Não conhece os seres humanos: seus
antigos semelhantes. Por fim, o juiz julga a letra e o escrito. Lá
está, solitário, frente a frente com um nome lido como Raimundo.
212
Jairo Martins de Souza
Nessas condições é que define o destino daquela palavra. Escreve
bonito, parece fazê-lo em língua alemã. Duríssima. Entregam sua
alma, sua inteligência, a textos sem poesia. Desconhece, mais das
vezes, palavra antiga chamada caráter. O olho no olho. O bom
caráter. Não pesquisa. Ou não tem tempo de pesquisar o mundo.
Faz juízo de valor sem conhecer a pessoa com quem lida na frieza
dos autos. Há exceções brilhantes. No entanto, na maioria dos
casos, julga tudo iluminado por sol de outro mundo. O jurídico.
Que parece superior à inteligência humana, pois que baseado em
leis propostas e votadas por políticos que se curvam a quantidades monetárias. Não disse Bismarck, o chanceler prussiano, que
o povo arrepiaria os cabelos caso soubesse como se produzem as
lingüiças e as leis? É claro, há aqui também algumas exceções. Em
alguns países, tais como os Estados Unidos e Inglaterra, muitas
vezes a lei não é tudo, e sim a tradição e a prática dos julgadores
de boa vontade. Um crime de quilate já cometido no passado é
punido conforme séculos atrás. Mantém-se a tradição, conforme
saudável para a sociedade, enfim, a política, prezado doutor Bernard, é o câncer do sistema legal e do estado de direito.
Já os desembargadores são seres superiores normalmente em
fim de carreira. Procuram fazer justiça. No entanto, há casos em
que...
Tudo isso e muito mais fora relatado pelo presidente brasileiro da Organização Mundial do Comércio que se tornara amigo
de Bern quando de sua estadia em La Paz. Tecnicamente o juiz
estava certo, mas...
A conversa ocorreu enquanto navegavam em suas poderosas
estações de trabalho. Um em Monlevade. O outro em Bruxelas.
Via skype.
– Jaime Raimundo tem caminhado como um morto-vivo pelas ruas de Monlevade, foi o que o moço, em dado momento,
respondeu-lhe durante andamento da conversa. Tinham passado
a falar da influência das decisões judiciais, em sua maioria malignas, nas vidas dos cidadãos de bem.
O cadáver de Marilyn Monroe nada significa para ela mesma,
doutor Bernard. Significa sim para a sociedade que a apreciou e
Dossiê Monlevade
213
que continua viva. Nesse sentido a morte funciona como um fato
sem solução para quem morre. Não existem livros, obras de artes
etc. para quem já morreu. Quem disso usufrui são os que restam
vivos nesse mundo de sombras e cores. No caso do seu cliente,
temos muita terra para caminhar. Por pior que seja a situação, não
estamos nos tempos em que, indiretamente, Maria, a Louca, regia
os destinos do Brasil. Leve-lhe ânimo. Tens ainda cartuchos a serem gastos, algumas cartas a serem retiradas do colete, alguns...
Lembre-se do instrumento do embargo de execução por terceiros. Copiâmo-lo também do direito romano... Com isso poderias manter a paralisação do processo de execução e fundamentar
o pedido de exclusão do seu cliente da lide mantida pelo De La
Nación.
Usando-o adequadamente, e com todos os documentos e
confissão obtidos pelas suas investigações e as de Chan, a chance
de livrá-lo de tudo é grande. Tens aí a oportunidade de apresentar
o contraditório que o juiz pediu e que o desembargador confirmou. O banco tem que dar as caras e apresentar novas razões.
Não as tem. Daí o nome de Jaime Raimundo poder ser retirado
desse tortuoso processo. Dizem que nele já constam milhares de
páginas. Então Bern disse-lhe que já havia pensado sobre o assunto e que, inclusive, tinha iniciado redação de texto a ser enviado para tribunal adequado. Sim. Ficava feliz por ter opinião e
suporte de tão grande autoridade etc. e tal.
O que temia era a atual falta de interesse dos magistrados
pelo processo. Não gostam de ler os de grande volume e de tal
monta. Ou então, leitura superficial, pelas beiradas. Poderia gerar
erro crasso. Dá trabalho, um deles comentou despretensiosamente. Se me debruço sobre ele, como terei tempo de alcançar meta
estabelecida para a minha vara, aqui, em Monlevade? Minha
produtividade, minha estatística, cairia escandalosamente. E as
promoções por merecimento? Iriam para o ralo! Fosse designado
para mim, só abriria suas páginas se for intimado ao dever, ou
pelo Supremo, ou pelo Gerente do Ministério Público, ou se diretamente solicitado pelo Presidente da República...
Dossiê Monlevade
M
215
Capítulo 46
Bern segue conselho de ***
arie, veja se está tudo aí anexado. Contratos
societários da Fruit, doc x, relatórios confidenciais de Charlie Chan, declarações de grupos Católicos regulares,
Carismáticos, Metodistas, Kardecistas, Maranatas, Testemunhas
de Jeová, Budistas, Batistas, Muçulmanos, Judeus, Adventistas...
Parece-me que o mundo religioso apóia nosso amigo, não é
Bern?
– Sim, Marie. Aliás, não somente eles como também associações centenárias como os Maçons, Rosa-cruzes, Templários e
outros grupos citados por Dan Brown no seu famoso Código Da
Vinci. Anexe também, por favor, o manifesto de presidente francês, o Marechal De Gaulle. Por cautela, retire a parte em que se
supõe dizer que o Brasil não é país sério. O magistrado pode julgar que aí incluímos o nosso sistema de julgamentos processuais.
Pode ficar enfezado. Pode comprometer minha tese de defesa.
Então, chèri, vais entrar mesmo com a ação de embargar o
processo por meio de terceiros? Sim. Sigo conselho do brasileiro atual presidente da Organização Mundial do Comércio. Já lhe
disse sobre ele. Lembras? Seu nome é ***. Homem competente.
Nessa ação, o terceiro que vou considerar é o próprio Jaime Raimundo. Vou considerá-lo como ausente de qualquer responsabilidade da cobrança pelo De La Nación. Nessa situação ele pode
solicitar que tudo seja arcado por quem de direito. No caso, M e
família.
Há previsão para despacho do juiz, Bern?
– Não. Nunca se sabe. Pode demorar séculos. Há muitos
216
Jairo Martins de Souza
casos assim na crônica judiciária nacional. No nosso – mesmo
sendo de decisão rápida – é erro crasso se pensar em prazo certo.
– Então nada garante que o juiz que iniciou análise é quem
dará o despacho final?
– Não. E com isso há complicador. Explico. Provavelmente quem vai julgar, nunca teve contato humano com as partes.
Nunca esteve face a face. Não conhece Jaime Raimundo. Tudo
fica frio. Nesse processo o juiz muda a cada semana. Declaram-se
incompetentes e passam-no de um para outro. Parecem brincar
de passar o anel, entendeu?
– Ah… – Marie disse consternada – um pretendente a magistrado contou-me que às vezes funciona assim para casos como
esse. Antigos. Volumosos.
– Por acaso, não lhe disse também que, para tanto, são treinados pelo próprio sistema?
– Não diretamente, mas isso ficou claro nas entrelinhas. A
despeito de tudo, a decisão sairá a nosso favor?
– Aqui acontece a mesma coisa. Nunca se sabe. Aliás, não
estranhe, mas falando de assunto que você gosta de ouvir, o assunto bebês, de metáforas com bebês, dizia-se que o pensamento
deles, dos juízes, antes dos tempos da ultra-sonografia, era como
sexo de neném: só se conhecia depois do parto. No entanto, sempre foram influenciados por fatores que prevalecem até hoje.
– Quais, chéri?
– Amizade, parentesco … Há mesmo casos em que nem precisam estudar nada de leis. Mais ainda: nada de nada.
– Como?
– Os juízes não togados da Justiça do Trabalho. Os classistas.
São do povo comum e indicados pelos sindicatos e pela gerência
do governo. Um juizossauro rex. Felizmente, há indícios de que
estão em processo de extinção…
– Vamos mudar de assunto, Bern? Agrada-me mais voltar às
referências que fizeste a bebês…
– Boa idéia! Gosto de crianças pequenas, Marie. Adoro fazer,
com elas, aquela brincadeira do apareceu, sumiu, apareceu, sumiu. Encanta-me a alegria de tão simples ato. Aliás, essas surpre-
Dossiê Monlevade
217
sas de aparece, some – aí digo de uma mesma pessoa a sumir e
aparecer novamente – dão segurança e renovação de amor que
elas simplesmente adoram. Freud explica…
Caro leitor, pode virar a página. Escrevo isso bem à moda de
Machado, explicando que encaixei o próximo envelope do dossiê conforme minha conveniência. Envelope pequeno. A razão?
Nele não havia qualquer referência, ou data, que indicasse sua
localização na linha do tempo. Antecipo que, no seu texto, Jaime
Raimundo veste “carapuça” e protesta, não se surpreenda o leitor,
fazendo suas algumas palavras de conhecido burro monlevadense. Um burro operário. O do Geo. Estão lembrados? Dele já fizemos referência.
Dossiê Monlevade
C
219
Capítulo 47
O burro do Geo (capítulo especial)
hama-me mais uma vez de filho de uma égua, patrão.
Estou acostumado! Tens na mão o chicote e a palavra,
a balança e a espada, essas não tenho nem nunca vou ter. Vai.
Vai. Continua a vergar-me com peso que continuarei puxando na
carroça que impuseste à minha vida. Sustento-te com suor e impostos. Nem com isso lhe pago a minha liberdade. Não olho para
os céus, com isso bem conheço o caráter tantas vezes dramático
do homem e do mundo. O do seu chão. Compro-te a comida, e
alimento sua mulher e filhos. O mesmo feno que insistes em me
negar. No fundo sou mais que tu. No entanto não deixas de ser a
minha esperança!
(a)um burro João de Monlevade.
Na cabeça do documento de número 47 há registro de
aprovado! A assinatura? Ilegível! O carimbo, já com tinta sumida,
mal mostra o mês da liberação para exposição pública. Que aqui
nem se mencione do nome do oficial responsável!
Mas essas falhas de registro, o caráter de fábula dado a esse
dossiê, não nos devem causar contransgimentos. Decerto não trazem aborrecimentos de qualquer natureza. Justifico que até mesmo
em processos de alto interesse nacional, juízes togados e autoridades costumam mencionar fábulas para fundamentar decisões. Até
mesmo não é incomum, em estudos sociais de extensa profundidade filosófica, dar-se voz a animais. Lembro aqui a Rebelião dos
Bichos de Orwell. Como também o uso da arte. Recordam-se os
senhores como o prefeito Graciliano Ramos, de Palmeira dos Índios, prestava suas contas antes de conhecer sucesso literário?
220
Jairo Martins de Souza
Razão bastante? Então sinto-me justificado por ter acima incluído um semovente nesse livro cujo assunto principal é processo
que tramita no judiciário! Admito terem sido palavras breves, e
se nelas houve alguma metáfora a ser aplicado ao nosso sistema
legal, que seja tarefa do leitor descobri-la. Garanto ser fácil!
Há, no entanto, algo mais. As palavras do burro devem ser
seriamente tomadas por conta de ser ele, além de tudo, o ícone
do esforço do homem monlevadense. Um deles não esteve ao
lado do menino Jesus na manjedoura? Por fim, homenageio-lhe,
trazendo outras de suas próprias palavras para constar neste processo. A fonte é a primeira edição da obra Bazar Monlevade (Por
Trás das Vitrines). Lá, em determinado momento, dizia:
O armazém do meu patrão ficava bem no meio da ladeira,
lado esquerdo de uma carroça que sobe. Às suas costas, a popular
Praça do Mercado. Do lado direito via-se o imponente muro do
Grupo Escolar que servia como contenção de enorme barranco.
Lá se estuda para não ficar um burro como eu…
Paro por aí. Para o leitor mais interessado nos detalhes desse
processo, e na gente de Monlevade, a importância da existência
do burro do Geo pode ser melhor avaliada em capítulo de título
longuíssimo: a importância dos burros no cotidiano de Monlevade, em particular, a do chamado burro do Geo. A obra é a mesma
acima citada.
Dossiê Monlevade
J
221
Capítulo 48
A fuga
oão Monlevade. 01 de novembro de 54. 23h30min.
No bairro de Luanda, área quase que totalmente
dedicada a empresas prestadoras de serviço da área petrolífera,
Torquato Viglioni e associados dão andamento à reunião secreta
de alguns sócios remanescentes da Verlon Fruit Shoe. O local era
armazém abandonado: fora um dos redutos de prosperidade da
empresa.
O próprio Torquato está com a palavra e, após introdução
de praxe e solicitação de desligamento de todos os celulares, diz.
Senhores, o Jaime Raimundo e o José Brás saíram da sociedade
há alguns meses. Então, eu e O. Costa visualizamos oportunidade
e adquirimos as partes que lhes cabiam na sociedade. Com os
segredos que Charlie Chan e sua equipe puseram a descoberto,
aí incluo o advogado francês Bern Monlevade, conseguimos finalmente expulsar M da nossa sociedade. O bastardo mentiu! Como
muitos aqui presentes sabem, ele não tinha contrato especial com
a Verlon com cláusula de exclusividade.
No entanto, é ainda Torquato quem prossegue, o homem
ainda deverá continuar nos trazendo percalços. Por exemplo,
recentemente, descobrimos que contratara filho para os quadros da nossa empresa. Até aí, nada demais. O diferente é que
constava trabalhar simultaneamente em dois locais Fruit. São
Paulo e Monlevade. Com a saída do pai, o filho acionou-nos
nos tribunais da Justiça do Trabalho. Queria receber horas extras. Aí que está. Com simples afirmação de que dois corpos
não podem ocupar ao mesmo tempo espaços diferentes, nessa
222
Jairo Martins de Souza
oportunidade, a 500 km de distância, o juiz negou-lhe pedido.
Essa possibilidade, disse-lhe o magistrado, – homem interessado
em física quântica –, só é possível a elétron quando salta de um
para outro nível de energia de um mesmo átomo. Pode sumir de
um deles. Pode aparecer simultaneamente no outro. Com isso
concluiu ser o filho de M mais um de seus laranjas, estou dizendo novamente de M. Situação inusitada. No entanto, prezados,
esse foi caso isolado, no qual a verdade prevaleceu, a justiça foi,
eventualmente, feita, pois, como na historinha de Joãozinho e
Maria, M deixou-nos muitas mais sementes no caminho. Do mal.
Daninhas. As quais explico a todos aqui presentes, incluindo o
leitor das notas deste dossiê, como sendo ações fiscais, penais,
trabalhistas, etc. Em quantidade superior aos grãos de areia das
praias artificiais do Rio Piracicaba. Não estou exagerando. Nisso
M era criativo. Quase posso dizer a palavra inovador. No mau
sentido. O desgraçado deixou a nossa empresa em frangalhos,
inclusive fazendo-nos depositários infiéis de contribuições sociais de IAPI, etc., de algumas centenas dos nossos obreiros. Os
oficiais de justiça lotados em todo o Brasil não conseguem cumprir, a tempo e hora, todos os mandados expedidos por juízes
em centenas de varas cíveis...
Por outro lado, a São Paulo Alpargatas também recuou na
proposta que havia nos ofertado pela empresa. Tinham opção
de compra. Não conseguimos fechar negociação com a indústria
automobilística para colocação de bancos de couro frutados nos
carros de fabricação nacional. A justiça do trabalho, a prefeitura
e outras várias representações do governo, e do povo, têm-nos
infringido multas e despesas referidas à administração de M. E
assim, Torquato, em tom apocalíptico, foi descrevendo todas as
desgraças que o diretor impôs à Fruit Shoe. Por fim, um dos sócios perguntou-lhe:
– Disso sabemos, Viglioni. Na sociedade não se diz outra
coisa. Nosso noticiário suplanta inclusive notícias boas, como a
recente utilização de células-tronco, agora comprovadamente eficazes na cura contra a síndrome de ausência de imunidade adquirida, a tal aids. Os espanhóis chamam-na sida.
Dossiê Monlevade
223
– Não sejas dispersivo, Costa. És famoso por sua prolixidade.
Vá direto ao ponto. Estamos em reunião séria. De definição de
novos rumos…
– Agora sou quem peço ser mais objetivo, Viglioni. Onde queres chegar com os fatos que disseste? Lembro que são mais cruéis
para nós do que foram as sete pragas para os egípcios que caíram
em pecado no velho testamento.
– Entendo a sua angústia. É a mesma que tenho. Profetizo
que nunca terá final. A solução provisória é fazer olhos e ouvidos
de mercador para essa empresa que se acaba. Vamos deixar que
morra de inanição. Como acontece em muitos casamentos. Nada
de injeção de recursos que nunca serão suficientes, nem mesmo
para cumprir fechamento de passivo…
– Não entendo a resposta que deste a Costa, Torquato. Quem
comentou agora foi um sócio que viera de Cocais às pressas. Estivera em viagem de férias com a família pela América do Norte e
sofria com o calor do ambiente em que acontecia a reunião. Por
economia, o ar condicionado estava desligado: por recomendação expressa da diretoria, utilizava-se ventiladores de teto controlados por sistema eletrônico de geração recente – há minutos
o homem pensava meios para derrubar tal deliberação. Por fim,
perguntou: o que fazer?
– Fuga, caro sócio de Cocais. Fuga. Por exemplo, a partir
de hoje não possuirei endereço fixo. Sou médico por formação
acadêmica. Jamais exerci a profissão, pois optei por dar seqüência
ao negócio dos meus pais. Não mais. Já adquiri unidade portátil
de imagens. Dormirei em hospitais, ambulatórios, casas de saúde,
casas da morte – como as do Egito antigo – asilo de velhos, orfanato
de crianças, hotéis, pousadas, albergues, enfim, não mais darei
condições a qualquer oficial de justiça que venha aborrecer-me
por problemas herdados de M. É a minha decisão. Calo-me. Com
isso, passo o bastão para o sócio O. Costa que dará seqüência a
esse encontro.
– De minha parte, caro Torquato, é Costa quem fala assumindo a palavra, meu pai era fazendeiro e como ele pretendo
voltar a ser. Largo o comércio e a indústria. Procurarei refúgio
224
Jairo Martins de Souza
nas fazendas, nos estábulos, nos currais, nos pastos, nas matas
e nos rios que atravessam esse Brasil sem fim. Com isso passo a
palavra a…
E assim caminha a humanidade e essa reunião. Em fuga de si
mesma e de seus desígnios. O último sócio, ao terminar, passou a
palavra ao Brás que ali, juntamente com Jaime Raimundo, figurava apenas como convidado especial. Mencionou sucintamente
que se esconderia em grota localizada próxima à antiga barragem
do Jacuí. Vida de Robinson Crusoé sem Sexta-feira. Há ainda
onças pintadas por lá, finalizou. Ninguém, nem mesmo minha
família, irá até lá.
Por final, foi dada a palavra a Jaime Raimundo. Emocionou-se. Disse palavras simples, desconexas, fruto de seu estado de
consternação. Coisas antigas foram misturadas com novas, seus
pais, a educação rigorosa, seus irmãos, o orgulho que tem pelos
filhos, sua vida e sua formação. Fala fragmentada. A saída da
roça, a chegada até Monlevade, a fundação do Bazar, o sapato
Passo Doble pedido pelo filho, o encontro com M, a desilusão
com a fábrica de frutados, o corte de fornecimento da linha vulcabrás, e por aí vai (amigo, juro que há momentos em que discerni-lo – refiro-me ao discurso de Raimundo – pelos sentimentos nele
contidos, torna-se mais difícil que resolver um cubo mágico. Coisa
complexa. Um algoritmo de Deus. Então, por ser assim, poupo o
leitor de ouvi-lo com suas próprias palavras, conforme texto original. Cubro essa lacuna, cumprindo promessa feita e, resumo, a
seguir, o que de minha parte entendi. Meu recurso? A de escritor.
O da arte literária. Bem, foi mais ou menos assim. O comerciante
disse ter resolução contrária. Disse até hoje não entender bem
esses processos. Principalmente o da execução bancária. Sinto-me de certa forma como o senhor K de Franz Kafka. Alguém
nesta mesa leu o seu O Processo? Ou como o inseto do seu fantástico Metamorfose. Não vou fazer como seu protagonista que,
psicologicamente, transformou-se em bicho rasteiro. Metáfora da
humilhação do homem moderno. Não vou desanimar como Mersault de O Estrangeiro. Pobre homem. Talvez condenado por ter
tomado café no dia do velório da mãe de quem cuidava, final-
Dossiê Monlevade
225
mente, como o próprio Raimundo, por ter assinado... Paro por
aqui, sigamos com Jaime Raimundo. Passo novamente ao rigor
do texto original).
A fuga, senhores, não é solução. Não para quem vos fala.
É minha mãe e meu pai que sussurram aos meus ouvidos. Vou
lutar como fez o homem da máscara de ferro. Como Davi que
enfrentou Golias. Como o pigmeu que enfrenta gigantes. Como
ensinou-me meu filho, não fugirei como João VI que correu de
Napoleão com as calças arreadas. Além do que, não tenho alternativa. Fui o único envolvido por M no caso do banco de La
Nación.
Absortos em pensamentos e lembranças, os demais sócios
prometeram-lhe apoio à distância e disseram-lhe rezar por seu
sucesso. Um deles aconselhou-o a manter consigo o advogado
Bernard. Desse conselho não preciso, Jaime Raimundo respondeu-lhe, já o tenho comigo. Não somente como advogado, mas
como grande amigo. Finalmente, deram-se as mãos, proferindo
ao mesmo tempo a palavra adeus.
Dossiê Monlevade
B
227
Capítulo 49
Cinco anos depois
ern já se acostumara a freqüentar a biblioteca da
casa de Marie. Por liberalidade do pai da moça,
fora colocada à sua disposição para lá manter coleção de assuntos
jurídicos. Assim podia, à noite, passar longas horas pesquisando
jurisprudências e estudando leis gerais à medida do necessário. O
seu escritório ia de vento em popa. Questões polêmicas e de alta
complexidade jurídica chegavam procedentes de clientes de todo
o Brasil. Escrevera e publicara dois livros já incluídos em ementas
de cursos de direito em diversas faculdades. Nos meios acadêmicos era conhecido somente por Monlevade. Doutor Monlevade.
Como o Doutor Zerbini. Como o Doutor Louis Ensch - o diretor
da Belgo. Seu foco era a lentidão do andamento dos processos
pelos tribunais da nação. No entanto, tornara-se referência em Direitos do Cidadão. Por outro lado, enquanto fazia seus trabalhos,
Marie já mantinha procurado escritório de arquitetura. Com seu
poder de sedução e inteligência havia convencido políticos e, com
isso, conseguido tombamento de diversas edificações antigas de
Monlevade. Gostava de trabalhar com o pessoal do Patrimônio
Histórico. A duras penas tombara a Praça do Mercado, as instalações do antigo Grêmio Monlevadense, o Cine Monlevade, o Clube Ideal, a Praça do Cinema e o popular Morro do Geo. Soubera
haver novos planos de ocupação dessas áreas pela proprietária, a
Belgo-Mineira. O objetivo era expansão de negócios. O fato que
não mencionei é que estava, há coisa de dois anos, freqüentando
escola de prestígio aberta por Oscar Niemeyer em Monlevade.
Era talentosa. Na ocasião, o famoso arquiteto havia completado
228
Jairo Martins de Souza
belíssimo projeto na Pampulha belorizontina e decidira se ajuntar
a grupo de empreendedores monlevadenses. Cândido Portinari,
que participara também com genial contribuição no projeto cultural daquela lagoa, era um outro seu associado. A cidade não
somente não parava de crescer, como também era cada vez mais
próspera na cultura. Por exemplo, a Academia Monlevadense de
Letras, durante solenidade de posse de recente presidente eleito,
recebera visita dos escritores Saramago e Umberto Eco. A sociedade local ainda festeja tão relevante acontecimento. Aliás, segundo discreto relato do José Brás a alguns amigos, os fantasmas
de Machado e Kafka também lá estiveram apreciando obras de
alguns dos acadêmicos monlevadenses. O Brás e o Jaime Raimundo foram alguns dos leigos especialmente convidados para o
evento. Na ocasião, ao vê-los, Bern observou que outro fantasma
andava rondando a face do amigo Jaime: o do quase eterno Processo do Bazar que padecia por falta de decisão.
Já decorriam cinco anos do dia em que Bern desembarcara em Graal e o processo de Jaime Raimundo prosseguia em
andamento. Parado. Não se sabe se postado na direção certa.
Como há dias comentara com Marie: vez por outra, um ou outro
despacho de juiz aparecia nos seus autos. Dissera também que
o magistrado procede assim somente para fazer constar que não
está morto.
Recentemente viajara com Marie e família até a cidade do
Rio de Janeiro onde, pela vez primeira, desfrutara a dois as belezas da capital dos cariocas. A cidade continuava deslumbrante.
Como se fora uma procissão de fé, acompanhado pela namorada, refizera todos os caminhos e visitara todos os lugares em
que estivera quando de sua chegada ao Brasil. Os contrastes da
natureza, o azul da baía da Guanabara, o verde das florestas, o
amarelo-avermelhado do pôr do Sol, as flores do Jardim Botânico, tudo lhe pareceu ainda mais belo. De volta, ainda encantado,
ao contemplar os morros receptivos de Monlevade, mais do que
nunca afirmou sua disposição de aqui permanecer até o fim dos
seus dias. Refletiu sobre essa verdade, sorrindo. Não era ficção.
Na realidade, tomava ciência desta certeza todo nascer e apagar
Dossiê Monlevade
229
dos dias. Isso começou, estejam lembrados, desde a primeira vez
que vira Marie.
Mesma varanda. Mesmas cadeiras. Há anos fazemos assim.
Passa da hora de mudar. A pequena basset, a Baby, que pertencia a Marie já está velha e preguiçosa. Quando pela primeira vez
a vira, era nova e cheia de vida. Não, Bern, a moça disse-lhe, o
animalzinho está velho e cansado. A tristeza na voz demonstrava
leve e desconhecida angústia. As sombras na face inconscientemente denunciavam pressentimento de que sua companhia, desde os românticos tempos de adolescente, não teria muito mais
tempo de vida. Não mais persegue pequenos besouros, formigas
e cigarras. Não levanta as orelhas em estado de alerta. Repara,
querido, ela não corre mais com tanta rapidez quando jogo essa
pequena bola de borracha para um ou outro lado. Sei que lhe
agrada a brincadeira. Sempre agradou. Mas não mais a traz de
volta para mim. Não se anima a entregá-la. Fica com ela entre as
patas. No máximo traz-me uma vez. Não mais. Não se coça mais
com tanta sofreguidão. Não balança o rabo com a energia de
antes. Não late mais quando alguém se aproxima de sua dona. O
marrom da face torna-se branco flácido. A causa? Essa doença de
carrapato, êta diacho, que é coisa que se arrasta. Não consegue
cura. Está quase cega. Dorme muito. Não mais ouve sons e ruídos
que passam despercebidos pelos humanos. Falta-lhe faro. Ficava
agitada. Hoje é surda. Por exemplo, não mais foge para os cantos
da casa, ou para os meus braços, aterrorizada, quando trovões e
raios cruzam e riscam os céus da Vila Tanque em tardes tempestuosas. Não mais toma conhecimento de rojões disparados por torcedores durante celebrações de vitórias de times de futebol. Papai
dizia-me que sabia estar eu chegando às vizinhanças de casa, por
meio dos latidos dessa cachorrinha.
Ela não é um tamagoshi, Bern. Um pet eletrônico. Um tipo
de Game Boy. Bastaria trocar-lhe as pilhas! Com o coração apertado, Marie tentava afastar a idéia de um dia ter que enviá-la ao
veterinário para sacrifício final, enfim...
Uma cachorrinha não pode ser o centro do mundo. Nem foi
preparada pela natureza para tal. Foi o que Bern lembrou-lhe,
230
Jairo Martins de Souza
tentando consolá-la. Ah, Hegel! Não consigo afastar a filosofia e o
fantasma desse alemão... ser vivo. Germe de contradição: A hora
do seu nascimento dispara o processo de morte…
Começamos a morrer, chérie, a partir do momento em que
nascemos. Com a Baby acontece o mesmo... Lembra, meu amor,
para ela o tempo passa mais rápido. Quinze anos de vida desse
pet equivalem a quase 80 dos humanos!
Dossiê Monlevade
N
231
Capítulo 50
Filhos
o texto do cofre não fica bem claro o porquê do
assunto que passo a relatar ainda não ter vindo
à baila. Quem sabe pelo fato de aqui essencialmente tratarmos
de processo que andou rolando por centenas de varas cíveis da
nação. No entanto, lembro que há nele algumas pinceladas de
romance. Vejamos de que se trata. Mãos à obra!
Bern finalmente estava por decidir-se. É tempo e hora de
assumir, juntamente com Marie, novo lar e filhos. A moça era
filha única e não era de hoje que andara ouvindo pressões veladas da família. Ele. Não ela. Não cedera. Não se considerava
profissional feito em condições de manter padrão que a moça
tinha na casa dos pais. Pensava aguardar ocasião certa, quando
já absolutamente não dependesse mais nada de adaptações ao
sistema brasileiro. Em termos profissionais, há anos já avisara ao
pai não precisar das ajudas de Guéret. Dava-se, inclusive, ao luxo
de reverter antigo fluxo de caixa. Enviava presentes caros com
constância para a mãe, o pai e a irmã.
Foi pensando em tudo isso que prosseguia animada conversa com a namorada. O local era o de sempre. A biblioteca ou
a varanda da Vila Tanque. Falavam sobre crianças. Falavam sobre
as de celebridades como as de Brad Pitt e Angeline Jolie: além dos
próprios, andaram adotando outros, enfim, a moça dizia-lhe que
o casal cumpria mais uma função social de artistas. O amor...
– Sabes, chérie, que hoje se pode comprovar que bebês dão
sorrisos mesmo antes de nascer?
– Sim. Mas não podem ser somente contrações faciais?
232
Jairo Martins de Souza
– Não. Os exames a quatro dimensões mostram que não é
assim. Fiquei encantada com um desses. Vi recentemente...
– E qual é essa quarta dimensão que dizes? A que conheço é
apenas a do tempo.
– Não sei bem. Talvez seja a do sorriso que falei. Ou a do
amor, da alegria e, quem sabe, alguma tristeza que porventura o
bebê já tenha vivido… Ah, o menininho é filho de pessoa querida
e…
Falando nisso, Bern interrompeu-a com sorriso suave, não
andas pensando em ter os seus próprios?
Dossiê Monlevade
233
Capítulo 51
Monlevade e Guéret: cidades irmãs
N
ão diz nem o dia nem o ano. A nota simplesmente
cita que o prefeito e alguns vereadores de Monlevade foram convidados a visitar a França. O assunto fora costurado por Bern junto às autoridades de ambos os países, seguindo passo a passo todos os rituais diplomáticos. O objetivo inicial
fora troca de experiências administrativas. É no terreno fértil das
diferenças que surgem as grandes idéias, dissera o prefeito em
mensagem ao povo. Com essa, e outras frases de efeito, justificara
com sobras a intenção de viagem ao exterior. Que não se surpreendam com o tamanho da caravana, sentenciou. Todos os meus
convidados são absolutamente necessários: inclusive o contingente de jornalistas, empresários e comentaristas esportivos. Guéret
nos comprará aço e petróleo. Degustaremos seus vinhos. Exportaremos jogadores de futebol. E vice-versa, finalizara.
A coisa ampliou-se. As duas prefeituras acabaram por firmar
fortes laços culturais, finalmente ligadas pela figura comum do
fundador. Fizeram-se irmãs!
Dossiê Monlevade
235
Capítulo 52
Bern reflete sobre a instituição casamento
A
s notícias circularam por meio de relatos ocasionais de terceiros. Torquato Viglioni continuava a
praticar a medicina em lugares ignotos. Prospera mais a cada dia.
O. Costa, escondido sob a cortina protetora de sociedades amigas,
mantinha promessa e exportava grãos. Tem vida confortável. O
Brás, por falta de informações, supõe-se ainda estar levando vida
solitária na grota do Jacuí. Solitária? Nem tanto assim. Acompanham-no amigos desencarnados. O Jaime Raimundo, sabemos,
tocava a vida insistindo em manter endereço fixo na Vila Tanque.
Bern disse-lhe ser o último dos moicanos, ele sorrira com a comparação. Os filhos já lhe haviam falado gostar desse seriado na
tradicional tevê Itacolomi. Enfim, sabia ter em Bern um companheiro, não um mero cliente, e observavam, dia e noite, todos os
movimentos e despachos do processo. Ok, a amizade entre advogado e cliente, tal como parentesco entre cirurgião e paciente, às
vezes não é muito recomendável, mas sabemos tratar-se de caso
especial e, ambos, optaram de coração por tal caminho.
Por outro lado, é notório que o assunto casamento já foi direta
e indiretamente citado nestas anotações. Aliás, não seria surpresa,
nem para mim, nem para o leitor, pressentir que cá nos escapa o
tempo certo de núpcias entre Bern e Marie. O próprio já declarou
ser seu destino passar o restante dos seus dias nessa aprazível metrópole do Vale do Aço mineiro. Da moça nem se fale. É daquelas
apaixonadas pela terra e pela família. Basta recordar o empenho
com que se entrega às causas locais, por exemplo, a preservação
do seu patrimônio cultural. Já se considera parente do próprio
236
Jairo Martins de Souza
Monlevade, o fundador. Já do descendente ambiciona somente
anel de casamento e todas as suas implicações sociais e amorosas. Laços. Elos definitivos de família. Amava o moço.
Que por acaso amanhecera o dia com estranha inquietude.
Lembrou-se nem alegre, nem triste, das palavras do poeta, tem
dias que a gente se sente… Um vazio existencial: normalmente
com ele não funcionava assim. Normalmente amanhecia sorrindo e iluminando o dia dos que o cercavam. Dormira bem, o que
é próprio da idade. Inconscientemente, lembrou-se das breves
queixas relatadas ultimamente pelo pai em última correspondência. Quem sabe fosse explicação do seu estado de angústia.
Guillaume escrevera-lhe que os olhos mostravam-se cansados
com pouca leitura (sofro de miopia e astigmatismo!). A próstata
já o incomodava e fazia-lhe buscar alívio na madrugada. A idade
vem avançando, filho, e com elas as agruras e desvantagens da
velhice. Temos troco de sobra que é a experiência e o aprendizado que se acumula e nos fazem felizes. No entanto, o sono demora a voltar e o jeito, às vezes, é caminhar alguns minutos pelos
arredores da casa, próximos ao vinhedo, aqui em Guéret. Ah, e
as coceiras na perna! Coisa de família. De DNA. Falta de sebo na
pele: comum entre os nossos depois dos cinqüenta. Às vezes um
banho quente resolvia. Não resolve mais!
Daqueles inconvenientes o filho ainda não compartilhava,
mas o fato é que o dia amanhecera atípico. Nem bonito nem feio.
Alguns cumulus bem altos e longínquos indicavam que...
A arrumadeira, mulher falante, comentara com Bern sobre o
seu desconsolo quando não conseguia, por si só, prever a quantas andariam as horas e o próprio céu de sua terra. Por dentro
reclamara ainda não ter se acostumado com o fato de trabalhar
para um estrangeiro. Ouvindo-a, o moço ainda não entendera
racionalmente o tal desconforto de espírito que acima dissemos.
A carta do pai? Não. Não temia por ele. Era de família longeva:
viviam muito. Sim, havia tomado alguns chopps com Marie na
noite anterior. Não muitos. O local tinha ar festivo. Nada mais
aconchegante que o delicioso Spetacollo que recentemente abrira
portas na Vila Tanque. Restaurante famoso. Procedia de Vitória
Dossiê Monlevade
237
no Espírito Santo. Não jantaram. Por fim, animados, rumaram
para a antiga Rua Siderúrgica no velho centro da cidade. Até aí
tudo bem. Nada de mal estar. Nada de Engov. Nada de bicarbonato. Naquela área onde residiram os primeiros moradores, as antigas casas de operários da Rua Siderúrgica abrigavam, mantida
arquitetura original, procurado centro de gastronomia de receitas
elaboradas por chefs capixabas. Por exemplo, aqui estão funcionando a pleno vapor, em Monlevade, o Oriundi, o Cantinho do
Curuca (famosa casa de moquecas), e muitos outros templos de
boa comida como o La Cave e o La Salsa. Lá, após breve conferência e indecisão, o casal optou por jantar delicioso prato à base
de bacalhau norueguês. No La Cave. O La Cave há alguns anos
funcionava nas proximidades do Hotel Cassino e, em especial,
era onde, privilegiados por tratamento diferenciado que lhes proporcionava o proprietário, Marie e Bernard gostavam de celebrar
datas significativas. Degustaram a iguaria, refiro-me novamente
ao bacalhau, acompanhado por vinho de qualidade. Até então
nada de dor cabeça e mal estar. Nada de Cibalena. Nada de Pepsamar. Bern sorriu de forma diferente, misto de satisfação e agonia, e lembrou-se novamente de Guillaume e seus antiácidos. Daí
comera pão com queijo e manteiga e saboreara café forte – costume monlevadense já arraigado no seu cotidiano. Leite? Nem pensar! Fazia-lhe correr acelerado para o banheiro. Ao fazer alguns
alongamentos na varanda do quarto, resolveu preguiçosamente
que não iria à academia de ginástica. Não hoje. Hoje é domingo.
Decidira somente por exercícios de aquecimento, algumas flexões
e polichinelos. Finalmente, após 10 minutos de corrida dentro de
casa, – a esteira elétrica andava ruidosa e perturbar-lhe-ia mais
ainda a alma –, tomara ducha fria. Para concluir, um pouco de
relaxamento e suaves práticas respiratórias. Estava pronto para
a vida! Mãos à obra. Passara vista em seus e-mails: dos quase
100 não abertos, em torno de 50 foram religiosamente deletados.
Ah, esses spams e porcarias de mau gosto que circulam à solta
pela rede mundial. Quanto lixo! Quanta perda de tempo! Que
falta fazem bons livros! Então, lera avidamente alguns matutinos.
Mesmas notícias de sempre: o futebol de Monlevade enviara nova
238
Jairo Martins de Souza
leva de valores para o futebol europeu. Ninho de talentos, diz o
cronista. A economia. O progresso. A política e suas artimanhas.
Os crimes que fazem crescer estatísticas. A violência contra a mulher: isso nunca muda desde os tempos de Moisés. A municipalidade, inspirada no modelo de sucesso do prefeito nova-iorquino
Rudolfo Giuliani, intenta implantar programa de tolerância zero.
Estilo policial infalível. Falta-nos apenas suporte do governo federal, relata o jornalista em inflamado editorial. Bern sentiu-se
impotente e, para desviar pensamentos desagradáveis, fora até a
caixa de correspondências. Lá encontrou cartão postal da mãe e
de Liviah que passavam alguns dias na Noruega. Estivemos também em Londres, disseram.
Suas tensões já haviam tomado destino ignorado. Foi até o
Bel Air, estou precisando lavá-lo, constatou ansioso. Os papéis de
trabalho que nele deixava, de forma improvisada, sempre postergavam tal pequeno arranjo. Então, os vidros dianteiros mostravam marcas bem distintas do vai e vem dos limpadores do párabrisa. O trânsito nos últimos dias, por algumas áreas ainda de
piso de barro seco na cidade velha, ruas preservadas, fizeram-no
utilizá-los, enquanto lançava generosos esguichos de água. Diacho! Água mais terra é igual a barro. No entanto, os anos de uso
do veículo só faziam realçar o seu arrojado design. Esse carro é
como mulher bonita, mas caída na lama. Basta pequeno banho
para transformar-se em princesa. Consolou-se. Afastado o desassossego, rumou para a Vila Tanque, sentindo-se absolutamente
bem. A tempo certo, pois lembrando-se que, aqui no Brésil, cultiva-se ainda o domingo como o dia do Senhor. Dia de descanso
e lazer.
Há muito dissemos que certas ruas da metrópole de Monlevade deverão ficar definitivamente preservadas. Nem que seja
somente nestas anotações: agora dispersas e esquecidas do pobre Jaime Raimundo que aguarda decisão judicial a favor. Por
exemplo, na Vila Tanque, um logradouro, que alguns reconhecem
como Rua dos Cabritos, fora mantido no estado. Sem calçamento: por trás disso havia o dedo de Marie que conseguira convencer
as autoridades que, afora a manutenção de cenário que deveria
Dossiê Monlevade
239
se eternizar para os vilatanquenses, sem a colocação de piso asfáltico, haveria menor velocidade das águas no período de chuvas,
menos inundações, etc.
Localizada nas imediações de antigo Centro Comercial da
Vila Tanque, da Rua dos Cabritos, se vê privilegiadamente o hipódromo de Areia Preta. É de lá, prossigo ainda dizendo da Cabritos, que postado em uma de suas extremidades que dá para um
vale suave, Bernard apreciava as montanhas que ficavam além
do próprio bairro que abrigava as competições de cavalos. Ainda mais, para compor e aumentar o seu encantamento, a vista
de dois aviões que se aproximavam para pouso em Graal dava
harmonioso toque de modernidade ao quadro que contemplava.
A contrapartida ficava por conta de bando de andorinhas que se
mantinham pródigas em quantidade nessa antiga vila operária.
Estava agachado. À sua direita, fosse o caso, poderia observar o
movimento de gente na Rua do Contorno; à sua esquerda, eterna
plantação de eucaliptos.
Não. Não retornaria à velha Paris para fixar residência. Meu
lugar é aqui nessa Vila Tanque. Foi isso, de forma direta, sem
subterfúgios, que pensou alto ao observar pequena formiga que
deslizava suavemente nos pés calçados com antiga sandália, fabricação Fruit. Essas não mais existem no mercado, lembrou conformado. Nas suas tiras, já que feitas exclusivamente para consumidor europeu, estava inserida delicada bandeira francesa. Há
pouco, antes de a formiguinha subir no seu pé, Bern observou-a
transportar pedaço de folha de goiabeira que deveria ter no mínimo quinze vezes o seu próprio peso. O inseto talvez tivesse em
torno de metade de um grama. Tinha em torno de 80 quilos.
Imaginou-se com peso equivalente às costas. 1200 quilos. 1,2 toneladas! Ah, o bichinho nasceu para o trabalho. Riu. Rememorou
tempo de criança e da fábula de La Fontaine: a da Cigarra e a
Formiga.
Assim, fazendo contas com resto de pedra de carvão que
encontrara próximo, Bern prosseguiu observando a tal formiga
que mantinha rápidos deslocamentos em seus pés e sandálias.
Parecia não saber para onde ir. Ao deslocar-se para a planta dos
240
Jairo Martins de Souza
pés do moço, provocou-lhe cócegas. Ah, ainda bem que não é
das cabeçudas ou das minúsculas lava-pés. Marie disse-me
serem pródigas nesse bairro. As primeiras, as cabeçudas, a moça
complementara, têm garras que servem como ferrões: as crianças
daqui gostam de colocá-las para brigar. Embolam os ferrões. Às
vezes tornam-se tanajuras. Aí elas ficam com o derrière enorme.
Uma bola. As segundas, as lava-pés, são donas de picadas que
ardem como pimenta malagueta ainda verde... Mas foi com as
cócegas que Bern sorriu, lembrando-se de antigas brincadeiras
com a irmã em Guéret. Gostava de deslizar penas de galinha nos
pés e orelhas da moça enquanto ela dormia ou estava distraída.
Curiosamente analisou-a com cuidado, trazendo-a para o
dorso da mão direita, que virava e revirava com vagar. Sorriu.
Mesmo de cabeça para baixo a formiga permanecia caminhando
colada à sua pele. Será que tem goma nos pés como as lagartixas?
Macho ou fêmea? Riu novamente. Talvez dentro do seu espírito
repousasse algum ancestral do inglês Darwin que, com alma
nascida para a pesquisa, gostava de olhar minuciosamente
tudo que habita ou cresce na América do Sul. Seu pensamento
voou longe. Muitos homens do século dezenove sonhavam
em aventurar-se no exótico e desconhecido mundo tropical. A
despeito disso, aquele Darwin foi especial. É claro, Bern não
estava fazendo exatamente como o inglês. Esse verificava não
somente a posição das constelações distantes como também
a existência de tipos especiais de bactérias amontoadas sobre
rochas marinhas. Foi o que andou fazendo nos Galápagos...
Entretanto, o advogado tinha lá também seus momentos de
reflexão sobre a natureza e seus habitantes. Por exemplo, enquanto
tem consigo o pequeno membro da família dos formicídeos.
Uma coisa puxa a outra. Questionou-se por estar se lembrando
de nome que não mais usara desde as classes de biologia de
curso secundário em Guéret. Concluiu que o fato deveu-se a
sua afeição ao uso do latim na ciência jurídica. Na realidade o
substantivo formiga e seus derivados originam-se do vocábulo
latino formica.
Enquanto isso, sua curiosidade crescia na medida em que
Dossiê Monlevade
241
avaliava a fantástica velocidade do bichinho. Buscava razões para
ser tão veloz assim. Intrigado, com algumas contas mais, procurou
fazer comparações com a velocidade do caminhar dele próprio.
Não logrou resultado satisfatório. Então, abruptamente, passou
a refletir sobre a solidão. Sim. Esse inseto estava sozinho. Havia
um vazio ao seu lado. Nada. Nem mesmo ninguém pode ser assim. Até o próprio átomo, que é o máximo de impessoalidade, é
estranhamente preenchido pelo vazio. Ele é consistente porque
ocupado quanticamente por partículas. Não fosse assim a velha
Paris afundar-se-ia sobre si mesma. A falta de companhia constante não é comum. Como a que ocorre com ele mesmo aqui
nesse país distante. Essa formiguinha é inseto gregário. Não pode
ficar sozinha. É bichinho famoso também por viver em sociedade
qualquer que seja o lugar que esteja. Na terra. Debaixo dela. Nas
árvores. O homem também é animal gregário. De família. Desde
criança Bern soubera o sinônimo dessa palavra quando o pai,
Guillaume, deu-lhe exemplo de um formigueiro. Não por acaso.
Nele as formigas trabalhavam, comiam e viviam juntas. Um homem arrasara o formigueiro. Muitas morreram pisoteadas. As que
sobraram criaram forças e auxiliaram-se uma às outras.
O formigueiro renasceu. Sabe o porquê, filho? Porque fazia
parte de uma família. Era uma família. Família é assim. Briga-se.
Ama-se. Nela, ao lado do amor, corre a passos firmes a esperança
de cooperação.
Esses pensamentos perseguiam-no constantemente. Lentamente amadurecia a idéia de casar-se imediatamente com Marie.
Desde que a conhecera soubera ser ela a escolhida. Faltava-lhe
sempre a ocasião. Raciocinara muito sobre o tema. Casamento
é opção. É como aceitar a Jesus. Pensar como Pedro. Não como
Paulo. Com mais fé do que razão. De há muito decidira aceitá-lo.
Faltava-lhe o batismo. Com isso acatava testemunho de fé que
ouvira de velho monlevadense que mantinha bonita relação com
a esposa por décadas a fio. O homem não dizia isso de boca
para fora. Não é que tudo que fizera com a esposa fosse eterno,
comentara sorrindo, o brinquedinho dos meninos é de levantar, o
das meninas é de abrir… Não obstante, Bern reparara que sem-
242
Jairo Martins de Souza
pre mantinha e caminhava de mãos dadas com a mulher pelas
ruas da cidade. Dizia também que para manter tal fé tinha que
ser santificado. No fundo, explicou, há que se ter paciência de
santo. Tanto ele quanto ela. Bern sorriu quando lembrou-se de
outra de suas recomendações: tens que ter a paciência de Jó. E
a tua mulher, a bondade e capacidade de doação de uma Teresa
de Calcutá.
Dossiê Monlevade
C
243
Capítulo 53
Preocupações de futuro marido e pai
asar. Em termos gerais, Bern tinha muitos modelos
positivos para definitivamente ter em conta que se
tratava de procedimento indispensável para a manutenção da
sociedade civil. Particularmente, tanto ele, como nós, sabemos
que seu destino estava traçado pelos olhos de Marie. O bisneto
de Jean Monlevade tinha visão de futuro e não temia qualquer
dificuldade futura para tornar-se noivo, marido, pai, avô, e por aí
sua vida deveria seguir. Na França, não fora Simone de Beauvoir
o amor de toda a vida de Sartre? Aqui não é Glória Menezes a
eterna paixão de Tarcisio Meira? E olhe que todos seguiram e
seguem profissões que obviamente dificultam e embaraçam os
compromissos e deveres de um lar. Ele e Marie. Um advogado e
uma arquiteta. Temos tudo para dar certo. Ímãs de polaridades
opostas! Não dizem os sábios que as diferenças enriquecem e fazem as coisas funcionarem como pólos de atração? Os exemplos
de Fábio Júnior, Richard Gere, Michael Douglas, e outros tantos, não serviam de modelo para suas idéias. Não lhe restavam
preocupações do porquê do primeiro deles ter se separado da
Glória Pires (chamava-a Pirê): o cantor da famosa música “Pai”
é reconhecidamente desajustado para enlaces duradouros. Mania
de Don Juan. No entanto… e o desquite do Chico e a Marieta
Severo?
Bem, Bern prosseguiu divagando, é certo que há casamentos
especiais em que os verdadeiros noivos são empenhos políticos
de nações. Aqui no Brésil, por exemplo, foram casados os portugueses de João VI com os espanhóis de Carlota Joaquina. Tam-
244
Jairo Martins de Souza
bém Pedro I casou-se com os interesses austríacos de Leopoldina.
Qual foi mesmo a que assinou a lei de libertação dos escravos?
Nenhuma delas. Foi Izabel. Enfim, na Europa, nem se diga quantas centenas desses matrimônios aconteceram… Ah, essas breves
palavras não têm força para dar ponto final ao assunto. Tema
inesgotável. Pois há os que começam por amor e prosseguem
mantidos pelo poder da política: como os de Hillary e Bill Clinton,
Jacqueline e John Kennedy etc. Ufa, deixe-se isso para lá! Afinal
de contas, nunca se sabe o que ocorre entre as quatro paredes em
que habita um casal de seres humanos: sejam artistas, monarcas
ou jogadores de futebol. Como dizia sua mãe, para conhecer uma
pessoa é preciso comer um saco de sal junto com a mesma. Demora tempo. Sabia que, por mais nobre que seja a relação de um
casal, tem que ser baseada em um orçamento. Riu. Casa que não
tem pão, todo mundo briga e ninguém tem razão! Portanto, no
casamento, há necessidade indispensável de bom ganho, já que a
manutenção de uma família envolve custos inesgotáveis. Quanto
custa a formação de um filho desde tenra idade até profissional
formado e integrado na selva de pedra do mercado capitalista?
Em outra página já dissemos quanto à sua necessidade de não se
abaixar o padrão de vida de sua futura mulher.
Aí há algumas variáveis que o rapaz analisava com cautela.
Senão vejamos, a direção política do Poder Executivo do país
muda como mudam as nuvens, mas o que sempre fica de seguro
é o aparecimento de novos impostos e tributações. Não dá para
enumerar a causa de tantos infortúnios. A despeito do grande
progresso nacional, empurrado por mundo ávido das matérias-primas brasileiras, a toda semana eram ofertados ao povo novos pacotes de medidas entregues embrulhados para presente.
Presente de grego. Alguns ornados com laços cor de rosa, pois
muitos dos novos ministros eram mulheres. Portanto listo apenas
um. Por exemplo, o governo federal, por iniciativa de presidente
sindicalista, havia mudado a sede para o estado de Alagoas e
Maranhão. Em termos materiais, não fiz nada de novo, dissera.
Psicologicamente isso já ocorre desde a fundação da república.
As bancadas nordestinas há décadas são numerosas e facilmente
Dossiê Monlevade
245
seduzíveis. Na primeira sede funcionava o centro de decisões administrativas; no segundo, o da política. Copiara, segundo ele, o
bem sucedido modelo boliviano de La Paz e Sucre. Foram essas
suas palavras! Por conseqüência disso, e de outros milhares de
fatores menores, o judiciário, perfeitamente sintonizado com os
demais poderes, gerava outras tantas milhares de decisões por
ano. Os processos que Bern conduzia caminhavam a contento, se
bem que nunca se encerrassem. De todas as formas, os honorários eram bons, e havia sempre a perspectiva de ganho adicional
por sucumbência do adversário. É bem verdade que aqui viveria
sempre na corda bamba, pois tais processos, mesmo que fechados, poderiam ser reabertos a qualquer momento em alguma instância secreta do judiciário nacional. Para tanto havia exércitos
de procuradores de justiça espalhados por todo o Brasil. Outros
tantos são contratados a cada ano. Bern havia se acostumado
com essas contingências. Não mais o incomodavam, sabia isso
ser parte, digamos assim, da personalidade burocrática nacional.
Com uma exceção: o caso Jaime Raimundo. Não avançava nem retrocedia. Teimava em ficar no mesmo escaninho. Nisso pensou, consolando-se, não estava sozinho. Lembrou-se que,
cansados, todos os demais sócios da Fruit haviam batido em retirada. Alguns deles, soubera por meio de telefonemas anônimos,
haviam se suicidado como cidadãos. Simularam mortes, velórios
e enterros. Agora com novas certidões de nascimento, carteiras
de motoristas e CPFs estavam livres das garras da presidência da
república. Não. Não se disseram equivocados. Disseram que, no
Brasil, estamos na França do século dezoito. Aqui o presidente
Getúlio ainda é o próprio Estado. Basicamente, um rei. Independente disso, colocavam-se à disposição para colaborar com Jaime
Raimundo em qualquer caso de necessidade. Um deles finalizou,
ironizando, não descansar até segunda morte, agora real, para
vingar-se de M.
Dossiê Monlevade
A
247
Capítulo 54
Divagações
sseguro que não se trata de impessoalidade da minha parte. A verdade é que, de um momento para
o outro, as anotações do cofre passaram a ter caráter um tanto
frio. Sem emoção. Sem vida. Tal como algo que se apresenta nas
mãos de juiz para despacho. Parece-me que houve solução de
continuidade dos analistas da documentação. Talvez tenham sido
trocados sistematicamente, – como tem ocorrido com os magistrados do caso Raimundo–, e o trabalho tenha passado para outro
grupo com outra orientação. Circunstâncias como essas é que me
fizeram, ao longo do texto, tomar atitude para tornar mais amenos
estes escritos. Aliás, não estou trazendo à baila nada de novo. Foi
posição que dei conta ao leitor logo no início das notas deste livro.
Não vendi mercadoria falsa! Sendo assim, novamente adulterarei
a escrita, suavizando-a, de forma que, principalmente as mulheres
que me lêem, tenham com maior intensidade o gosto de sorver os
preparativos do casamento de Bernard e Marie. Poucos. Prometo!
Dossiê Monlevade
249
Capítulo 55
O Casamento. Onde se diz de possível ideal do
velho Monlevade
A
poltrona era confortável e o cabeleireiro absolutamente gentil. Dissera não ter muito que fazer
para preparar cabelos bonitos como o de Marie. Um detalhe aqui,
outro acolá. Um ajuste na grinalda, e com mais esse retoque final,
senhorita, ficas por conta do maquiador. Esse também confessara
ganhar dinheiro fácil no dia de hoje. Afora alguns pozinhos tom
pastel, para evitar pontos de luminosidade indesejáveis, e discreto
batom de costume, a noiva estava pronta para brilhar na cerimônia de algumas horas mais. O vestido bem ajustado e rodado em
sua base, muito antes de esconder, realçara-lhe o corpo delgado
e elegante. Marie não era alta, mas nem tão baixa. Com pequena
ajuda de salto Luís XV, desfilaria como uma princesa. Na porta,
acompanhada pelo pai, aguardava-a um reluzente Buick preto.
Para conduzi-lo, estava lá um velho amigo da família que, não se
pasme o leitor, por inusitada decisão paterna, fora batizado com
o solitário nome de Oliveira. Oliveira. Somente Oliveira. Nada
demais, dizia. Não existe um diplomata brasileiro que se chama
Vasco Leitão da Cunha? Melhor que ter muitos nomes é ter somente um. De qualidade. Sigamos para a bela matriz de São José
do Operário. Já nas suas proximidades, o pai lembra estar se dirigindo para a maior igreja católica do mundo com planta baixa em
formato de um vê. Feita assim, reza a tradição, para que homens
e mulheres a freqüentassem suas celebrações em alas separadas.
Tenha sido essa a intenção, não funcionou! O fato concreto é que,
Monlevade, ultimamente, tem vivido de superlativos!
250
Jairo Martins de Souza
A entrada da noiva na igreja teve como pano de fundo a belíssima Marcha Nupcial de Mendelsson – Tan Tan Tan Tan. Escolha
da própria. Bernard, tranqüilo, aguardava-lhe conversando com
amigos: há muito tinha alma preparada para a ocasião. Que belle
fiancée, exclamaram alguns parentes e amigos de Bern que não a
conheciam pessoalmente. Que bela noiva! Radiante! Estrangeiros
e nacionais, impressionados, usaram as mesmas expressões, cada
um em sua língua, que é verdade sem fronteiras de territórios e
mundos.
A França estava presente em grande número. Monlevade,
contudo, superou todas as expectativas. O pai de Marie era pessoa que não gozava de muito prestígio social. Fazia o tipo urso
que gosta de ficar em casa a desfrutar das pequenas benesses de
ser um pai de família. Amava o futebol, mas não era daqueles que
passam as manhãs de domingo pelos bares aguardando horário
de início das partidas. Pelo contrário. Vestia pijamas de calças de
pano arejado e, apreciando o belo panorama dos morros monlevadenses, dirigia-se para a varanda, onde, sorvendo um cafezinho tomava conhecimento das últimas nacionais. Não era adepto
de reuniões noturnas com amigos durante os dias de semana. A
mãe era caseira. Casal de formigas. Toda essa postura tornavase compensada pela popularidade da filha e do noivo. Gomos
de laranja doce. O fiel da balança pendia para elevada atividade
social. Daí a igreja ter concordado em colocar alguns bancos adicionais em certos pontos do adro.
Da família de Bern, lá estavam o pai, a mãe, Liviah e namorado brasileiro que conhecera há tempos. Todos elegantes e
felizes. Do pai da noiva nem se diga. Vímo-lo, orgulhoso, entrar
com a moça há minutos. A princípio parecia manquitolar. Disse a
posteriori ter sido tal a emoção que resultou em breve descontrole
do caminhar. Recuperou-se rapidamente. Tudo muito bonito! Segundo palavras de discreto cronista local.
No tradicional arremesso do bouquet de flores, Liviah, sorrindo, abiscoitou o prêmio. Não é que não tenha ficado envergonhada. O rosto, embora feliz, tornou-se rubro. Mais ainda quando
o irmão lembrou-lhe antigo apelido de criança. Chamou-lhe mo-
Dossiê Monlevade
251
ranguinho. De lá os convidados seguiriam para Rio Piracicaba.
A caravana de pessoas e carros era bastante extensa, mas todos
chegaram a tempo e hora ao belo sítio que pertencia a Jaime
Raimundo e que, gentilmente, cedera a propriedade para a recepção do casamento dos seus jovens amigos. Considerava-os
parentes. O amplo centro de convenções deixado como legado
pela Fruit fora mantido em excelente estado de conservação. A
festa foi plena de encontros entre velhos amigos e animadamente
conduzida pelos noivos e por banda regional de renome. Casamento de princesa. Festa de princesa. De arromba. De acordo
com os dizeres dos anos 60. Não demorou muito e os nubentes,
despedindo-se apressadamente, rumaram para o aeroporto Internacional de Graal. Pelo avançado da hora, perderam o avião!
Não se tem aqui anotado onde passariam dias em lua-de-mel. No
entanto, seguramente, passaram-na sob manto protetor de bons
desejos e felicidades.
Na despedida dos pais de Bern em Graal, o prefeito de Monlevade declarara aberta a ponte aérea Monlevade – Paris – Guéret. Com os novos jatos intercontinentais da Aço Airlines, dez horas são suficientes para cruzar de Monlevade a Paris, comentou
sorrindo. É, o pai de Marie disse, dando-lhe mais razão, há poucas décadas gastava-se 90 dias em navio a vela. O nosso sonho
é constituir família única. Quem sabe não fosse o ideal do velho
Monlevade?
Dossiê Monlevade
253
Capítulo 56
Aqui fica confirmado que o que não tem remédio,
remediado está!
O
sentimento que tenho a respeito do seu processo é o
de eternidade. Algo indefinido. Algo que nunca se esgota. Algo que teve um início, mas que jamais terá um final dentro
da linguagem dos vivos. Talvez nem mesmo Aristóteles, com suas
lógicas de infinito, de vazio, de espaço e de tempo, conseguisse
enquadrá-lo dentro de sua lógica clássica. É cheia de furos, mas
a ela nada escapa. Não foi em cima dela que Tomás de Aquino
montou o arcabouço da igreja cristã? Foi o que Bern disse a Jaime
Raimundo. Parecia conversar consigo mesmo, pois sabia que o
interlocutor nada conhecia sobre a filosofia e a cultura da antiga
Grécia. Passaram a conversar sobre M. Relembraram que, quase
por encanto, ressurgira, há meses, por chamada de juiz em outro
processo contra a Fruit, e indiretamente contra Raimundo. Tinha,
estou dizendo de M, um dos braços sob tipóia. Na ocasião não
justificou o porquê. Nem lhe foi perguntado. Ironicamente, parece
que sob efeito de doping espiritual, confessara indiretamente, ao
magistrado, todos os seus atos contra o pessoal de Monlevade.
Parecia contar vantagem. Perspicaz, o juiz compreendeu bem a situação e isentou Raimundo da ação legal que conduzia. Bernard
diz ter tomado proveito e anexara tal decisão judicial ao processo
do De La Nación. Mais uma evidência de peso a favor do seu
cliente e amigo. Por fim, encerrou essa parte da conversa dizendo,
vamos ver se Vossa Excelência vai levar tal fato em consideração adequada, ­– sem deixar de notar que o amigo Raimundo já
tinha os cabelos totalmente brancos: o processo fizera-lhe ace-
254
Jairo Martins de Souza
lerar traços de velhice. Estavam na luxuosa sede dos escritórios
da Bernard Raymond Monlevade – Advogados Associados – em
Graal. No fundo, entendo o que dizes, o comerciante respondeu-lhe. Tanto é que vou seguindo a vida, como dizia o poeta, apesar
de você. Nesse caso, é claro, novamente o você significando a estrutura exdrúxula do nosso estado. Quando achas que podemos
ter decisão final?
– Nunca se sabe. Fiz acompanhamento desse processo todos
os anos que se passaram. Todos os meses. Todas as semanas.
Inclusive a que passou e a que está em andamento. Vou ao fórum
todos os dias. A situação do embargo é a mesma. Nas mãos do
juiz para decisão.
– E vai decidir?
– Não sei dizer. Por acaso, soube, ontem, por telegrama, que
o processo novamente mudou de juiz e de vara.
– Sabes a razão?
– Não ao certo. O funcionário disse-me ser rotina.
– E então?
– Tudo segue como sempre seguiu.
– Por experiência aprendi a entender o que queres dizer. O
juiz que vai decidir não participou de parte crucial do processo, as
oitivas, as audiências… É onde realmente se conhece os litigantes, as pessoas, os indivíduos... Ah, amigo, se o novo julgador não
for daqueles que se debruçam sobre a justiça, – daqueles que o
presidente da OMC disse a você haver poucos –, vai decidir sobre
o papel. Vai decidir sobre documento antiético. Imoral. Vai decidir sobre o texto cheio de buracos daquela confissão. É, Bern, fiz
papel de tolo. Fiz tolice. Fiz papel de Jerry Lewis… Meus meninos
gostam desse ator. Lembra daquele filme, O otário?
– Lembro-me. Também gosto do Jerry. É engraçado. O que
não tem graça alguma é a possibilidade que levantaste anteriormente. Tens razão. Os acusadores do banco mudaram o foco da
coisa. Ladinos. De forma proposital, no andamento dessa execução, eles só destacam as palavras da confissão, aliás, um deles,
passo a dizer de um juiz, disse-me ser ela um castelo de areia
sustentado por termos legais. Aparentemente, legais. Enterraram
Dossiê Monlevade
255
o contrato de empréstimo fraudado. Um buraco negro. Vá lá,
amigo Jaime, espero que não fiques cansado, pois tenho comigo
uma comparação com a astronomia. Uma supernova e uma anã
branca. Não vivemos de comparações? A primeira, a confissão,
a supernova, transforma-se num pulsar. Fica brilhando a tempo
certo. Luz fortíssima. Pode cegar a visão do julgador. A segunda,
a fraude contratual, a anã branca, foi transformada pelo de La
Nación, equivocadamente, em buraco negro. Ninguém o vê. Só
sente seus efeitos. O de La Nación agiu como um deus. Entendeu? Se o juiz for fraco em direito comercial... Enfim, também o
De La Nación é composto por poder constituído. Mais acreditado
sem maiores questionamentos.
– Não entendi bem.
– Então resumo. A corda sempre arrebenta no lado mais fraco… Como na brincadeira do cabo de guerra. Lembra?
– Sim.
– No entanto, não quero dizer que, com tudo isso, você já
esteja condenado.
– Como também não quer dizer que serei absolvido.
– E a fé? E a cruz? Não é com esse signo que já me disseste
vencer?
– Sabes que a tenho, estou dizendo da fé, com sobras. Aliás,
também a cruz, por via da aflição, de toda a angústia, que todo
esse processo que M e o De La Nación fizeram aflorar. Faz parte.
– Estás certo. Interessa ao sistema que sintas assim. A instabilidade parece fazer bem ao regime atual. É um tanto quanto maquiavélico, mas tanto no seu caso, como em muitos outros, alguns
juízes costumam deixar o fiel fora da balança. É mais cômodo.
– Então o meu sofrimento faz parte de contexto que atende
aos poderes estabelecidos?
– Não sei. Tecnicamente, não. No entanto, na prática, você
pode considerar sim. O alongamento infinito do perfil dos processos parece dar poder à autoridade. Valoriza os seus trabalhos e
as estatísticas de crimes. Milhões e milhões deles sempre deverão
estar em andamento. Dá noção de poder. Podes constatar nas
colunas sociais acreditadas. Os magistrados vivem isolados, mas
256
Jairo Martins de Souza
sempre unidos em associações e em eventos de gala. Exibem-se
a si e as suas famílias. Normalmente são feios, mas vestem-se
bem. Normalmente têm belas mulheres e apresentam aos poucos
os filhos e filhas. Rapazes e moças. Futuros juízes. Formam, aos
poucos, nova família forense. Petrificada pelo sistema. Tornam-se
incrédulos. Aí é que se tornam feios. Com o passar dos anos, desenvolvem outras doenças, ficam aborrecidos, frios e calculistas.
Daí tornam-se pais de futuros juízes que virão.
– Entendo. Cartórios judiciais.
– De certa forma. A despeito disso, siga em frente. Quanto a
eles, terão o seu apocalipse. Que Deus nos ilumine para encontrar
um dos que constituam exceção e que esteja fora daquele circuito.
Eles existem. Um dos que ande transitando pela porta estreita.
Um dos que consiga no futuro entrar no reino dos céus. Um dos
que separe o joio do trigo. Um dos que…
– Entendo e agradeço, Bern. Confesso que é saída única que
meu coração vê. Falo isso sem mágoa. Não sou homem de guardá-las. Inclusive chamei-lhe para informar algo importante.
– Diga.
– Recebi telefonema de São Paulo há pouco. Charlie Chan
chamou-me.
– Chan? Há muito não ouço falar dele.
– Pois é. Comunicou-me a morte de M.
– Como? Foi assassinado?
– Talvez por sua consciência. Por remorso. Ataque cardíaco
fulminante. Morreu ontem aqui mesmo em Monlevade. Mesmo
após tantos anos, Chan mantinha-o sob vigilância, por meio de
agente local 24 horas. Ininterruptas. Tinha microchip implantado
na sola dos pés e não sabia. Daí sabia-se que M havia se tornado maníaco depressivo: alguns chamam transtorno bipolar. Não
limpava os dedos nem fazia as unhas. Achava que tais atitudes
levavam a desgaste prematuro da pele. Morreu em trânsito dentro
de uma das jardineiras que circulam ainda a pedido da Secretaria
de Turismo. Dirigia-se da Praça do Cinema para encontro secreto
na Vila Tanque. Chan trabalhava com a hipótese que M mantinha
esperanças de ganhar controle acionário de empresa de chine-
Dossiê Monlevade
257
ses que andou, há anos, clonando os produtos da Fruit. O homem era incorrigível. Segundo Chan, M sustentava que espíritos
desconhecidos sempre interrompiam sua linha de pensamento.
Um deles afirmava ser o do Brás. Daí, para despistá-los, tinha
consigo sete CPFs e sete carteiras de identidade. Andou fazendo
várias plásticas para melhor disfarce e achava-se invisível como
as ondas de voz que rasgam o ar. Acabou por mutilar a face. Não
fosse o apoio de Charlie teria sido difícil identificá-lo para liberar
funeral. A confirmação veio por meio de análise genética feita
em exame de amostra de cabelo. A municipalidade agradeceulhe e enterrou o homem no cemitério do Baú. Como Mengele,
que foi despojado em cemitério paulista, M lá ficará e não mais
trará inconvenientes para a população. Eu mesmo não tinha conhecimento, mas com suas negociatas, era considerado inimigo
público número um aqui no Vale do Aço. Para todos os efeitos, a
morte não deve ter alterado o seu caráter, mas pelo menos para
nós vivos, digo que repouse em paz. Então pergunto, Bern, em
que essa nota funerária afeta nosso processo?
– Nada!
– Nada?
– Nem mesmo para os parentes de M. Certo filósofo disse que
a morte quita todas as dívidas. Aqui não funciona assim. Os herdeiros de M pagarão por parte dos seus pecados. Não dizem as
escrituras que os filhos pagarão pelos erros dos pais por gerações
e gerações?
– Dito assim até que concordo. Sabes que sou homem temente a Deus. A propósito, Bern, acreditas na salvação?
– Sim. Mas não da forma que enxergas. Acredito piamente
que...
Dossiê Monlevade
A
259
Epílogo
lguns anos depois, Bern e Marie, convidados pela
família de Jaime Raimundo, voltaram ao sítio que
pertencera ao próprio. Ele e a esposa já não mais se encontravam
nesse mundo de Deus. Conversaram sobre o passado, o presente e o futuro. Riram e se emocionaram. A família informara-lhes
que, por infortúnio da vida, lá não podia estar presente o amigo
Brás. O Brás, disseram-lhes, rumara tranqüilo para o caminho
que sempre dissera acreditar. O de viver outras vidas e aprimorar
virtudes pelo refino do sofrimento. Os anfitriões tinham também
procurado localizar, por todos os meios possíveis, alguns antigos
sócios da Fruit como O. Costa e Torquato Viglioni. A idéia era
ajuntar pessoas de bem que trouxessem sentimentos de amizade,
boas lembranças e compreensão. Dia de recordações. Tarefa que
se mostrou impossível, disseram consternados. Tanto Viglioni,
quanto Costa, e tantos outros, conforme tinham prometido, ou
jurado, tinham desaparecido à custa desse e de outros processos
engendrados pelo falecido M.
Na ocasião, Bern e Marie moravam em belo apartamento em
condomínio de luxo chamado Central Park. Idéia de Marie. Essa
área de Monlevade fazia parte de projeto revolucionário de revitalização da cidade. Fora idealizada nos moldes do famoso parque
de Nova Iorque. Daí o nome estrangeiro. Ficava próximo à casa
dos pais de Marie na parte alta da Vila Tanque. A família de Bern
mantinha apartamento no mesmo condomínio e fazia constantemente a ponte aérea Paris – Guéret – Monlevade.
O jovem casal caminhava vagarosamente pelas vizinhanças
da antiga casa sede do sítio. Almas grudadas. Estame e pistilo.
260
Jairo Martins de Souza
Lembravam tempos passados e se alegravam. Aqui, pelo rádio
ouvimos a notícia que Gagarin fora enviado ao espaço. Debaixo
daquele pé de mangas soubemos dos primeiros passos de Neil
Armstrong na Lua... Finalmente, entre uma ou outra opção, – dispunham de poucas horas –, decidiram apreciar antiga edificação
onde existia um mais antigo, ainda, moinho de grãos. Era local
onde Jaime Raimundo gostava de levá-los. Não iriam até o seu
interior, pois a velha construção – ainda dos tempos do Brasil
Colônia – ficava em parte baixa de difícil acesso. Marie estava
em estado de gravidez facilmente identificável, – isso é chegar
aos céus, dizia. Sendo assim, seguia com calma, escondendo-se,
cautelosamente, sob a sombra de uma ou outra árvore ocasional.
Não queria correr riscos. O dia era cálido e de poucas nuvens.
A alguns metros de subida que antecipava a visão do destino,
já um pouco cansada, alertou estranhamente ao marido: veja,
querido, há algo bizarro aflorando no chão daquele morro.
– Qual?
– O que fica paralelo à pequena subida para o mirante de
onde se vê o moinho. Não lhe parece ponta de grande caixa retangular? Daqui, Bern, dá impressão de ser pintada de verde.
– Não. Não vejo, Marie. A posição do Sol me atrapalha.
– Proteja os olhos com as mãos, Bern. Olhe do lado de cá.
Ele está um pouco escondido por aquela rocha maior...
– Agora percebi, Marie. Visão atípica. Um tanto quanto assustadora. Você consegue ir até lá?
– Sim, querido. Desde que devagar…
– Ufa, olha, na verdade é um armário de metal. Um cofre.
Olha a fechadura. É enorme, Marie!
– É mesmo, chéri. Lembra a de cofres subterrâneos de bancos. Acho que só estamos vendo a ponta do iceberg. Um tanto
sujo, não é?
– Tens razão. No entanto, do lado que estou, Marie, há cava
no solo que está bem lavada. Por meio dela posso ver que há nele
uma estátua de mulher. Gravada grosseiramente. Parece-me feita
com punção!
– É verdade. Observa o traje. Dá idéia de deusa grega... Bern,
Dossiê Monlevade
261
aquilo lá próximo aos olhos, dando impressão de caído, não é
uma viseira? Espera. Espera um pouco. Tem mais. Olha só, meu
amor, à esquerda dela há também uma espada solta: um pouco
ali ao lado... Querido, não atino por que me passa uma imagem
pela cabeça. Não estou sabendo exatamente expressar o nome,
pois não é que seja idêntica...
– Não seja idêntica a quê, Marie?
– Ah, Bern, de repente ficou claro para mim. A posição dessa
imagem, saindo aí da terra, lembra-me algo como a visão da Estátua da Liberdade, a de Nova Iorque, que apareceu no final do
Planeta dos Macacos.
– Onde?
– No filme do Charlton Heston, lembra?
– Ah, claro. Não foi aquele em que os macacos mantinham
os homens em gaiolas? Lembro sim. Lembro que terminou com
Heston galopando sobre cavalo sem sela e dando de frente com
a Estátua enterrada em curva de praia deserta. Fugia de exército
de gorilas. Foi final belíssimo. Não é difícil de entender o porquê
de você ligá-lo ao cenário que aqui temos. O impacto é parecido.
– Também acho isso... No entanto há ali mais alguma coisa...
Algo peculiar. Ainda não me acudiu o que é…
– Sim, Marie. O que dizes não é o que está gravado, a marcação é rasa, bem naquele cantinho da parede? Parece-me desenho
rústico de balança de dois pratos. Sabe, querida, daquelas usadas
por mercadores em feiras antigas. Repara bem se não é o que
estou falando!
– Bern…
– Sim…
– Fico trêmula em dizer isso, mas estas inscrições espalhadas
nesse cofre: a deusa, a viseira, a espada... agora essa balança...
tudo isso se ajuntado não é o mesmo que esculpir a imagem, o
símbolo, da palavra Iustitia?
– Sim. Justiça. O equilíbrio. A independência. A força.
– Então o que temos aí dentro, chéri?
– Não sei. Nem mesmo tenho vaga idéia. Mais ainda de como,
e por que esse objeto foi enterrado neste sítio de Jaime Raimun-
262
Jairo Martins de Souza
do. No entanto, acho que podemos concluir que esse achado,
Marie, é propriedade do governo. Da Justiça!
No livro que aqui termina, meu amor, Iustitia, foi senha de
acesso aos escritos do doc x…
– Isso quer dizer que pode vir a ser senha para abertura de
caixas pretas de tudo de misterioso que nos cerca, Bern? Como a
desse cofre? Como a desse Processo?
– Pode. Pode, querida. Não obstante a injustiça que vem
acontecendo nos seus autos, e com o que, neste livro, imaginariamente, escrevi, continuo acreditando nas doutrinas que aprendi
na faculdade de Direito. É claro, a vida tem sido minha grande
mestra, mas procuro manter sempre em mente que uma das missões da Justiça é proteger...
Dossiê Monlevade
265
Post Scriptum
No corpo deste Dossiê, mencionei duas vezes sobre o que se
passa na cabeça de um escritor quando às voltas com a escrita de
um livro. Naqueles momentos, não disse tudo. Faltaram muitas
outras coisas.
Por exemplo, faltou dizer que entregar um livro ao público é
trabalho de muitos. É tarefa de um time. Ah, aqui, muito a propósito, cabe recordar antigo ditado do futebol, e assegurar que
literatura também é association. Associação. Para tanto, no caso
do andamento desta obra, leram inicialmente meus rascunhos,
profissionais de áreas diferentes. Equipe pequena, mas eficiente.
Gente escolhida a dedo. Todos, cada qual à sua maneira, fizeram
leituras preciosas. Incentivaram-me. Fizeram-me refletir melhor.
Fizeram-me controlar minhas fantasias, corrigir meus excessos,
enfim, não perder de vista que mesmo o universo fantasioso da
literatura possui lá suas limitações.
Em pouquíssimos casos não atendi às suas recomendações.
Em particular na parte jurídica, onde eventuais distorções de termos técnicos e situações devem ser totalmente atribuídas à minha pessoa. A partir daí, o livro foi feito com muito cuidado. Não
obstante, não nego possibilidade de existência de erros de outras
naturezas. Como não poderia deixar de ser, assumo também, de
forma integral, os seus créditos negativos.
Por outro lado, tal como no primeiro livro que escrevi (O Bazar
Monlevade), eu já tinha a história do Dossiê na minha cabeça. No
coco. Pronta para ser contada. Lembro, aí, novamente, algumas
palavras proferidas pela escritora Zélia Gattai, durante conhecida
entrevista concedida à Televisão Educativa (TVE). Dizia da forma
266
Jairo Martins de Souza
em que Jorge Amado aconselhara-lhe escrever seu primeiro livro.
Na ocasião desse relato, o marido já era morto. Mas voltando ao
Dossiê, reforço que é história de vida. Só ela produz casos assim.
Portanto, fica fácil deduzir que os tais achados do cofre não se
tratam somente de fantasia do escritor. É alegoria de fato real. M
existiu. O banco de La Nación é o Banco do Brasil.
Quanto aos outros personagens, todos foram forjados em
pessoas que conheci ao longo de minha existência. Entretanto,
escrevo essencialmente sobre os amores que tenho. Meu processo
de criação é simples. Bern, Bernard, é nome afrancesado do meu
recém-chegado primeiro netinho. Projetei nele as características e
caráter de todos os homens que apreciei, e admiro: inclusive meu
filho. Sua mãe francesa é uma médica. Tal como o é a brasileira, a
de verdade, que é minha filha mais velha. Liviah, a irmã de Bern,
que mora na região de vinhedos de Guéret, cristaliza presença da
minha outra filha, a mais jovem, que é estudante de engenharia
civil. Dela também extraí o desejo da personagem Marie de fazer
algo em relação à arquitetura. A jovem senhora que Bern segura as mãos, durante vôo sobre os altiplanos da Bolívia, é minha
própria esposa. Ela morre de medo de viagens aéreas. O pai de
Bernard é o cardiologista Guilhaume. Guilherme. Como na vida
real. Meu pai é o próprio Jaime Raimundo. Sua esposa, Alice,
minha mãe, foi ingênua como o personagem que leva seu nome.
Fazendo dessa forma, torna-se fácil escrever.
Os demais aqui lembrados na história são amigos de velha
data. Todos têm, em comum, o fato de seus personagens terem
retrato fidedigno de suas personalidades. A eles agradeço pelo
subsídio. Teria que escrever outro livro para descrever suas qualidades. Negligenciaria defeitos. É pecado antigo. Para mim, tão
velho como o de Adão.
Deveria finalizar por aí, no entanto, não posso deixar de mencionar João Monlevade, minha terra natal, pela ambientação deste romance. E a Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade, que,
à custa do seu pioneirismo, em termos finais, acabou por dar
nome à nossa cidade. Imagino a aventura que, naquela época,
significou abandonar a Europa, o Velho Mundo, e fundar peque-
Dossiê Monlevade
267
na fundição no obscuro interior de Minas Gerais.
Por fim, faço distinção especial à minha esposa, Olívia. Foi
ela quem fez a revisão final da obra. Trabalho minucioso. Cirúrgico. De formiguinha. De quem segue à risca as regras da difícil
gramática portuguesa. Os erros que restaram devem novamente
ser creditados à minha teimosia de escritor. Sem ela, esse romance não teria sido escrito.
Ah, faltou falar sobre o principal: Faltou falar sobre você, o
leitor. Afinal de contas, é o objetivo final da feitura de um livro.
Buscá-lo, trata-se de outra luta. Difícil. Demanda estrutura de
marketing e distribuição.
No entanto (como escrevi no texto deste romance, gosto de
fazer contas), se consigo um de vocês, leitores, por dia, ao final de
um ano, são 365; ao cabo de dois anos são 730, então...
* * *
Esse livro foi editado e impresso em papel
Renova solf 75g/m2 e Capa Triplex 250g/m2
pela Grafer Editora em 2008
* * *
Grafer Editora
Rua: Fagundes Varella, 135 Soteco - Vila Velha - ES
Tel.: 27 3219-3524 - email: [email protected]

Documentos relacionados

- Prefeitura Municipal de João Monlevade

- Prefeitura Municipal de João Monlevade O documento é expedido gratuitamente e vale em todo o território nacional. Além de beneficiar os portadores de necessidades, servirá para coibir o desrespeito na ocupação de vagas destinadas a eles...

Leia mais