Dossiê Monlevade - Bazar Monlevade
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Dossiê Monlevade - Bazar Monlevade
Dossiê Monlevade O Processo do Bazar Romance Jairo Martins de Souza 2008 Dedicatória Bê, você é a síntese de todos os heróis da minha vida. (Então, no reino do seu pai, os justos resplandescerão como o sol. Aquele que tem ouvidos, ouça - Mateus 13:43). © Copyright by Jairo Martins de Souza, Vitória, 2008. Projeto gráfico e editoração: Antônio Alves dos Santos Capa: Antônio Alves dos Santos Imagem da Capa: Pintura a óleo de Lívia L. F. de Souza Digitação: Jairo Martins de Souza Revisão Final: Olivia Alves Fagundes de Souza Colaboração: Géa Raimundo de Souza / Rafael H. de M. Souza / Janaína Garcia / Lúcia de Souza Barros / Ítalo Campos Catalogação: Ana Maria de Matos Mariani - CRB: 12/ES 425 Impressão e fotolito: Grafer Editora Ltda Souza, Jairo Martins de, 1948S729d Dossiê Monlevade : o processo do bazar : romance / Jairo Martins de Souza. – Vila Velha: Grafer, 2008. 270 p. : il., retr. ; 21 cm. ISBN 978-85-86986-24-6 1. Romance brasileiro. I. Título. II. Título: O processo do bazar : romance. CDD: B869.3 CDU: 821.134.3(81)-31 Esta obra foi impressa em papel reciclado. Portanto, mesmo sendo impresso em máquinas de última geração, pode apresentar variações de textura e tonalidade em suas páginas. Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta obra, por qualquer meio, sem a autorização do autor, constitui violação da LDA 9.610/98. Sumário Introdução...............................................................................9 Capítulo 1 – Um descendente de Jean A. F. D. Monlevade quer pesquisar sobre a vida do tio-bisavô nos trópicos.....................11 Capítulo 2 – Onde se diz de um tiro. Os negócios andam bem no Bazar Monlevade......................................................................15 Capítulo 3 – O encontro com certo Gerente. O rapaz Monlevade distrai-se e passa alguns dias a mais na Guanabara!.................21 Capítulo 4 – M tem interesses em Monlevade. Preciso de sócios locais, diz!.................................................................................31 Capítulo 5 – M tem grande poder de persuasão. Monlevadê finalmente chega a Monlevade.................................................37 Capítulo 6 – A mala perdida de Bernard. O reencontro com o comerciante..............................................................................45 Capítulo 7 – Mulheres............................................................49 Capítulo 8 – Fica assim fundada a Verlon Fruit Shoe Ltda – a primeira fábrica de calçados multi-frutados do mundo.............53 Capítulo 9 – Onde se diz da inauguração...............................57 Capítulo 10 – Há algo de estranho no reino da Dinamarca. M engendra planos. Onde se diz do doc x....................................59 Capítulo 11 – Monlevade, cidade de sonhos.........................63 Capítulo 12 – Bern informa à irmã que pretende ficar um pouco mais que o previsto no Brésil....................................................65 Capítulo 13 – M diz publicamente querer morar definitivamente em Monlevade.........................................................................71 Capítulo 14 – Onde se diz muito em poucas linhas. Há segredos entre escritor e leitor. Sombras da inauguração. Uma fantasia chamada Fruit. Fumaça de calote. M e seu castelo na Graal. ........75 Capítulo 15 – Barão de Cocais..............................................81 Capítulo 16 – A família de Marie é antiga na região. Bernard faz palestra na Fruit Shoe..............................................................87 Capítulo 17 – Inquietações. O dragão bancário investe contra M. Onde se diz que suas chamas atingem o comerciante..........93 Capítulo 18 – A carta da irmã................................................97 Capítulo 19 – Certa reunião em Luxemburgo. Os executivos de La Nación................................................................................99 Capítulo 20 – Jaime Raimundo...........................................103 Capítulo 21 – O Brás...........................................................105 Capítulo 22 – Charlie Chan.................................................107 Capítulo 23 – Torquato, José Rego e O. Costa. Procura-se advogado..........................................................................................115 Capítulo 24 – Bernard se encaixa na Tio Patinhas...............117 Capítulo 25 – No salão de embarque..................................119 Capítulo 26 – São Paulo......................................................123 Capítulo 27 – A verdade......................................................129 Capítulo 28 – Onde o escritor disseca o dossiê....................131 Capítulo 29 – A confissão. A garantia. O Fiador...................133 Capítulo 30 – Amor.............................................................141 Capítulo 31 – O pai de Marie convoca Bernard...................145 Capítulo 32 – Não se vive somente de problemas. O turfe monlevadense...............................................................................147 Capítulo 33 – Onde se diz de sinais da execução. Jaime Raimundo busca ajuda de Bern..................................................151 Capítulo 34 – Entenderás mais tarde!..................................155 Capítulo 35 – O oficial de justiça. Bern Monlevade assume defesa do Bazar..........................................................................159 Capítulo 36 – Bern dá algumas explicações à família...........165 Capítulo 37 – Por que La Paz?.............................................169 Capítulo 38 – Recesso.........................................................179 Capítulo 39 – O Presidente do de La Nación.......................181 Capítulo 40 – Invasão..........................................................187 Capítulo 41 – Amor e arte. Duas cartas!..............................197 Capítulo 42 – Bern invoca Têmis, a deusa que se faz cega às coisas dos homens..................................................................201 Capítulo 43 – Onde se diz sobre o milenar jogo de braço de ferro.......................................................................................203 Capítulo 44 – O tribunal de Apelação..................................209 Capítulo 45 – O Juiz............................................................211 Capítulo 46 – Bern segue conselho de ***..........................215 Capítulo 47 – O burro do Geo (capítulo especial)................219 Capítulo 48 – A fuga............................................................221 Capítulo 49 – Cinco anos depois.........................................227 Capítulo 50 – Filhos.............................................................231 Capítulo 51 – Monlevade e Guéret: cidades irmãs...............233 Capítulo 52 – Bern reflete sobre a instituição casamento.....235 Capítulo 53 – Preocupações de futuro marido e pai............243 Capítulo 54 – Divagações....................................................247 Capítulo 55 – O Casamento. Onde se diz de possível ideal do velho Monlevade....................................................................249 Capítulo 56 – Aqui fica confirmado que o que não tem remédio, remediado está!......................................................................253 Epílogo.................................................................................259 Post Scriptum......................................................................265 Dossiê Monlevade 9 Introdução A migo leitor, abro as páginas deste livro, esclarecendo que, ao longo de sua escrita, procurei espelhar com fidelidade (não sei se com êxito) tudo o que restou de farta documentação encontrada em cofre construído de forma incomum. Estranha. Como a escrita nele contida. A sua pesada caixa de ferro tinha múltiplas camadas de parede; talvez similar à urna funerária que Bonaparte teve como jazigo sepulcral: não sei bem. No entanto, a tempo próprio, direi detalhes sobre como foi encontrado. Peça aparentemente inviolável! A espessura de suas partes internas era acima do normal – tinha, a mais, algumas divisões especiais reforçadas com travessões de aço inox e barrotes de madeira de lei. Com um complicador que permanece indecifrável para os pesquisadores até os dias de hoje. Algo bizarro. No interior do achado estavam também guardados a sua chave mecânica e o seu segredo. Exemplares únicos e exclusivos, conforme comprovado por análises e buscas posteriores. Não se sabe como, mas foram lançados dentro do invólucro metálico imediatamente após fechamento. Daí admite-se que a intenção de quem por ele zelava era que seu conteúdo nunca viesse a ser conhecido. Além disso, havia pontos de solda ao longo de todo o perímetro da porta. Deu idéia de trabalho feito às pressas. Ainda assim, foi mais um sinal que reforçou especulação de que o cofre deveria ser mantido lacrado. Bem lacrado. Alguns, mais ousados, afirmaram que, não tivesse sido encontrado, ficaria assim até o final dos tempos! 10 Jairo Martins de Souza Descoberta acidental: o que não é circunstância rara. Como ela, recordo-me da penicilina, dos raios X e da fissão nuclear que gerou a diabólica bomba atômica. Encontrava-se afundado, coberto por terra mole e arbustos, nas proximidades de moinho de fubá. Daqueles antigos: ainda do tempo do Brasil Colônia e movido por água de córrego. A pista foi dada por uma de suas pontas que sobressaiu da terra lavada pelas chuvas ao longo dos anos em que esteve oculto. A cor era verde-musgo. Nem digo do trabalho que deu para removê-lo, e abri-lo. Cansaria ao leitor. Lá, abandonado por décadas, tinha segredo já enferrujado e portas totalmente emperradas. Grudadas. O local foi sítio de propriedade de certo senhor de família Raimundo de Souza. Rio Piracicaba. Minas Gerais. O feito de recomposição de cartas, folhas numeradas e catalogadas, algumas já deterioradas pelos anos e cupins, foi, por mim, minuciosamente executado. Mas não de forma completa. Também eventualmente fiz uso de minhas próprias palavras e idéias de mundo. Aí principalmente residem as falhas deste relato… Dossiê Monlevade 11 Capítulo 1 Um descendente de Jean A. F. D. Monlevade quer pesquisar sobre a vida do tio-bisavô nos trópicos P aris, novembro de 50. A tarde cai. A noite avança. Um jovem bem apessoado e uma simpática senhora caminham, lado a lado, na bela Avenida dos ChampsÉlisées. Ambos vestem capotes pesados e, esquecidos do mundo, conversam animadamente. Mãe e filho. Não se vê estrela nos céus da cidade luz, nem mesmo a Polar da Ursa Menor. É o frio do inverno europeu que chega firme, enfim, já passa da hora, e dá mostras de sua força. – Mas mamãe, além de tudo, sempre foi meu desejo conhecer o Brésil! – Entendo isso, filho. O que não quer dizer que um rapaz brilhante com todo o futuro pela frente... Querido, jogar chapéu e diploma para o alto só fica bonito no momento da graduação. Há tantos concursos públicos para altos cargos da magistratura francesa! Não pode ser por nada tantos esforços que você fez na Sorbonne! – Não exagere, mamãe. Há anos penso nisso. E não significa que vá deixar de gostar da ciência jurídica e do direito. Posso praticá-lo em qualquer lugar do mundo! Lembre-se de que não foi o sangue de Jesus que foi vertido enquanto cantávamos a Marselhesa. O Direito praticado aqui na França, mamãe, é derivado do romano. É latino. Como o da América Latina. Lá adaptar-me-ei facilmente onde quer que esteja. Aliás, o Vale do Aço brasileiro é para mim uma região enigmática. É tentador um dia ver o que lá tanto atraiu o irmão do meu bisavô. Também me seduz pesquisar 12 Jairo Martins de Souza o ramo tropical da nossa família que lá deve ter restado. De certa forma, mãe, nosso sangue foi ajuntado com o da família de um famoso barão chamado Catas Altas. Somos nome de uma cidade na América do Sul! Isso não significa nada para você? – Ah, Bernard, mon chéri, quanto ao que dizes, não posso contestar. Gosto de ter propriedades, nem que sejam de fantasia, como é o caso. Faz-me lembrar o tempo dos meus avós: lembrese que somos Bogenet e Monlevadê legítimos. Falo por preocupações de mãe que ama o filho. Mas, na realidade, não posso criar maiores objeções ao seu propósito. Sei que é fantasia antiga. Desde pequeno você falava sobre isso. Pensava que fosse desejo efêmero. De criança. Ah, Bern, também tive meus ímpetos na juventude, sei como alguns desejos funcionam com jovens idealistas como você. Tornei-me mãe e, no entanto, exatamente para entender meu filho, faço esforço especial para não esquecer o que fiz na mocidade. Fui também assim e fazia o que o meu coração comandava. Digo isso, querido, com toda a minha alma carregada de amor!... Portanto, cumpra seu gosto e aproveite seu tempo! – Ah, mamãe, fico feliz com o que me dizes. No fundo da minha alma, nunca deixei de pensar que você acabaria me apoiando. Sempre que tocava nesse assunto seu olhar traía-lhe, mãe. Como agora. Olhar de admiração. Um bisneto que tem interesse em coisas de um bisavô! Não sou tolo a ponto de não notar que, de forma inconsciente, você sempre achou boa coisa. Além disso, qual mãe não quer que o filho apanhe experiência em viagem ao estrangeiro? Ainda mais a um país tranqüilo como o Brésil. Povo festivo. Você somente não suportava expressar de forma verbal, mamãe. Então, já com seu aceite formal, antecipo-lhe que a minha idéia é partir em meados de janeiro do ano que vem: quero chegar ao Rio em época de festa popular. Chamam-na Carnaval. Ah, mamãe, vou seguir exemplo de meu bisavô: viajarei usando serviço de navio a vapor. – Ótimo. É transporte seguro. Fico feliz. Mas, e o domínio da língua, filho? – Nem precisaria dizer-lhe, mamãe, mas digo. Você sabe que a língua praticada no Brasil nasceu também das entranhas do Dossiê Monlevade 13 latim. Como o francês. Dê-me alguns dias e fico sabendo toda a sua estrutura e conjugações verbais. Recordo-lhe que, muito mais aqui, com nosso idioma, do que lá, com o português, fala-se totalmente diferente do que se escreve... Noventa, mamãe! Noventa é o número de dias com os quais devo estar comunicando-me a contento na língua do Machadô de Assis. – Sei que vai ser assim, Bern, és aplicado e tens facilidade para aprender. – Graças a você, mãe. Criança tem facilidade para captar línguas e sons diferentes. Lembro que você iniciou-nos, a mim e a Liviah, a ferro e fogo, bem cedo em escola especializada. Você levava-nos para cima e para baixo. Menino de pouca idade não tem preconceito se a língua que ouve é, ou não é, a sua natal. Aprendi isso há poucos anos quando ingressei na faculdade. Fiz classes especiais de lingüística aplicada, lembra? Com isso tudo, mamãe, pode ser que consiga trabalho temporário na usina siderúrgica da Belgo-Mineira: a que meu bisavô geólogo, de certa forma, fundou. – Não precisa, Bern… Já conversei com seu pai a respeito. Sabíamos que a qualquer hora você dispararia esse processo. – Sei disso, mamãe. No entanto, gosto de caminhar com minhas próprias pernas. Ah, então foi por isso que papai insistiu, por telegrama, que, qualquer que fosse o andamento da minha carreira profissional, continuaria dando-me ajuda com dinheiro das vinícolas de Guéret. – Ah, filho, basta que se fale nelas e meu coração se aperta por Liviah. Sua irmã bem que poderia ficar comigo alguns dias aqui em Paris. – Também penso sobre isso, mamãe. Nossos morros não são famosos como as sete colinas de Roma, mas muito mais produtivos e belos. Liviah adora aquele sítio! – Certo, filho, devemos, além de tudo, nos orgulhar de nossa terra... A propósito, não vais encaminhar carta com currículo antes de viajar para o Brésil? Posso fazê-lo com precisão. Conheço tudo de você... Melhor que você mesmo. Não és Rômulo nem és Remo, mas a loba gosta de alimentar o filho! 14 Jairo Martins de Souza – Lobas não são médicas apaixonadas como você. Você é mãe. Você é minha mãe. Aposto que exageraria tanto nos meus atributos físicos quanto nas minhas qualidades de advogado. Não. Não, mãe... Ademais, levaria tanto tempo para lá chegar, e ser lida… Melhor ir comigo em retrato de corpo inteiro. Pensando bem, vou requerer visto de trabalho, não de turismo, junto às autoridades de lá. Conversei com ex-presidente brasileiro que faz estágio aqui na nossa université. Disse-me que, chegando ao Brésil, basta ser aprovado no exame da Ordem local. A famosa Ordem dos Advogados do Brasil. Ah, mamãe, ainda sobre o currículo, fosse o caso, teria que tratar aqui mesmo na Europa. O dono atual da Belgo Mineira é grupo sediado em Luxemburgo. Coisa de príncipes, reis e o ex-ditador Vargas... Vargas é o atual presidente do Brasil, mãe. Foi eleito recentemente por voto popular: mesmo que à moda de coronéis do início do século. Lá ainda funciona o chamado voto de cabresto. – O que significa isso, filho? – Andei estudando, mamãe, mas não entendi ao pé da letra. Na prática funciona assim. A cédula, já com o voto definido, é entregue pronta para o eleitor por agente do candidato. O chamado cabo eleitoral. Só falta-lhe assinar ou, quando analfabeto, colocar as digitais na folha de votação. Para encerrar a lambança, o tal cabo coloca o papel na urna oficial. Um absurdo, mãe... – É verdade. Mas, Bern, não vá mexer com política no Brésil! É país ainda parcialmente entorpecido por moléstias crônicas. Pelo que já li, tudo por aquelas bandas ainda cheira a colônia lusitana. Não se esqueça de que… – É claro que não, mamãe! Falo por falar… Lembre-se que conversar sobre política faz parte da alma do francês desde os tempos de Montesquieu… Dossiê Monlevade 15 Capítulo 2 Onde se diz de um tiro. Os negócios andam bem no Bazar Monlevade J oão Monlevade, dezembro de 1950. O espelho invisível de ar, abruptamente sacudido pela passagem de bala calibre 380, fez com que os poucos e esparsos passantes na Rua da Favela virassem ligeiramente a cabeça na direção do ruído. Com indiferença assumida, prosseguem como se nada tivesse ocorrido. Afinal, nas proximidades da loja de Jaime Raimundo, o ecoar de tiros ao longo do dia é cena rotineira. Se bem sucedida, a operadora de caixa registradora – National – do Bazar Monlevade confirmaria, por meio do apertar de pesadas teclas e levantamento de bandeirolas, a saída de mais uma arma de fogo. Venda à vista. No stand improvisado de tiros, com fundo seguro da terra pouco fértil de Monlevade, um dos filhos do proprietário, a quem a mãe chamava de Cusecco, assopra fumaça que ainda resta fraca no cano da pequena arma. A bala passara longe da mosca do pequeno alvo improvisado que ficava toscamente fixado no barranco. O jovem vestia calça far west e, com o braço trêmulo pelo impacto do disparo, deixara cair no chão uma tasca de biscoito de maisena duchen. O comprador já o olha com reprovação e prepara-se ele mesmo para testemunhar a qualidade do produto adquirido. Embrulho para presente? Não. Não é necessário. É para uso próprio. Taurus, Rossi, CBC, Winchester, Colt, disse o homem, e eu aqui comprando algo que mal mata até mesmo um tiziu. Ato contínuo, arrependeu-se do que ouvira, reconhecendo com dificul- 16 Jairo Martins de Souza dade a própria voz. Tinha pensado alto. Com a velhice que se aproximava, isso andava ocorrendo com freqüência. Consolando-se com tal retardo, lembrou-se do que lhe dissera o médico noviço do recém inaugurado Hospital Santa Margarida. Grande complexo hospitalar equiparado às Clínicas e ao da Beneficência Portuguesa de São Paulo, se considerados juntos. Não entendera bem, mas aqui assinalo (talvez o leitor tenha melhor sorte): a gente não ouve a própria voz do mesmo jeito que outros a ouvem. Por causa dos ossos do rosto e alguns outros ossinhos laterais. Foi o que, resumidamente, ouvira do especialista em otorrino. Mas agora o que escutava era a voz do garoto que o atendia solícito, tentando eliminar qualquer dúvida quanto ao bom andamento da venda. Esta garrucha é boa o suficiente para espantar gatos do mato, é o que comenta. Cada coisa tem sua aplicação… O senhor caça onças nas matas da Companhia? O homem calou-se pela força da indagação. Era antigo funcionário da Belgo. O bisavô, por sua vez, o fora da forja catalã, nos tempos ainda da fazenda do fundador do município, o próprio João Monlevade. Não podia confessar seus pecados, mas morria de amores pela calibre 12 que vira exposta na vitrine do Bazar. Boa para onça... Quer testar agora o senhor? Pode deixar. Para que esquentar cano da arma e gastar bala à-toa? Ficara ligeiramente vexado. Tenho pressa. Então, por favor, acompanhe-me para emissão da nota. Vou avisar à gerência que deu tudo certo. Na porta da loja, um funcionário graduado dirigiu-se com sorriso aberto ao freguês. O menino atendeu bem ao senhor? É novato na atividade de balconista e atendimento ao público. Sim, inclusive ofereceu-me teste, mas não julguei necessário. O Jaime Raimundo está por aí? Gosto de fechar negócio com o dono. Está. Vou chamá-lo! Tudo acima foi o que restou da primeira folha de acordo com a numeração encontrada. Pode haver mais antigas, provavelmente destruídas. O que ficou impossível foi imaginar cupins penetrando em grossa parede de aço. Não vivem fora da presença de ar, enfim, como disse o filósofo, – creio, Schopenhauer – há mais coisas entre os céus e a terra que a vã filosofia sonha! Dossiê Monlevade 17 Ainda não passam das 10 da manhã e já vendemos sete armas de fogo, Jaime Raimundo comenta com um dos seus dois gerentes que se encontra ao seu lado. O rapaz assentiu com a cabeça, enquanto ajeitava banca de sabonetes Lifebuoy e Eucalol. Prestativo, imediatamente também confirmou que tinha ido ao cofre que fica no escritório e buscado igual quantidade de garruchas e revolvéres para repor mostruário da vitrine central. Na ocasião, o Bazar Monlevade tinha quatro portas de madeira de duas bandeiras pequenas, e tais armas encontravam-se na primeira de quem está postado de frente para a loja. Suas paredes também eram integralmente de madeirame de mesma qualidade. Por vontade do dono, ambos atravessaram a Rua da Favela para, do outro extremo, melhor apreciar o Rio Piracicaba que, ultimamente, andava com águas mais claras. Pausa para puxar ar fresco e oxigenar pulmões. João Monlevade naqueles dias já significava grande trecho de vale cortado pelo Piracicaba onde, em um dos seus lados, e como certidão de batismo, fora instalada a Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. Na vizinhança do seu centro antigo, a empresa construíra – já que planejada para funcionar em área totalmente isolada – um e outro estabelecimento comercial. Foi onde também levantara praças de cinema e mercado, além de residências para seus supervisores e demais empregados. Na outra margem do rio, erguera outras casas com o mesmo objetivo. A Igreja para cuidar das almas do operariado não fora esquecida, por meio da matriz de São José do Operário. Construção imponente. Destacar-se-ia caso fosse feito cartão postal da área da qual estamos falando. Alongando-se por toda a extensão do rio, a grande Monlevade contabilizava as alturas de um milhão e quinhentos mil habitantes. Desses, 831.990 almas somente na sede do município! Tudo fora precipitado, estejam lembrados, pela descoberta à flor da terra de belíssimas jazidas de ouro negro, o petróleo, no município vizinho de Rio Piracicaba. O nome Rua da Favela é enganoso nos dias atuais, comenta Jaime Raimundo para seu colaborador. Não é calçada porque há possibilidade futura de ser tombada por autoridade do Patrimô- 18 Jairo Martins de Souza nio Histórico. Aqui nunca falta luz com relógio, nem água e muito menos rede de esgoto. Depois, se alguma favela houve aqui, deve ter sido nos tempos em que a cidade era apenas um arraial. É verdade, concordou o jovem que já se retirava, encaminhando-se para retorno ao trabalho. Pedira licença e saíra sem maiores considerações. A chegada de mais alguns clientes na porta da loja autorizava sua saída sem necessidade de agrados a quem o empregava. Tinha plano certo para o futuro e não lhe agradava perder tempo divagando sobre o que existira no passado naquela estradinha secundária cheia de costeletas. O chefe andava encaminhando bem a vida. Iria fazer o mesmo. Não demora ele estaria cuidando da sua, dentro do mesmo rumo. O patrão fora operário da Belgo. Adoentado, entre outras coisas por não se acostumar ao calor da área de lançamento de carvão para os fornos, fora encaminhado ao serviço de saúde da empresa. O médico que o atendeu acabou extraindo-lhe o duodeno a troco de cura de mera queimação estomacal. Profissional de formação duvidosa, vira oportunidade de treinar cirurgia de alto risco. Arrasou por tempos a saúde do futuro comerciante. Daí surgiu mudança de rumos e profissão. Não é que isso vá se repetir comigo, refletiu o jovem que já se encaminhava na direção de uma cliente que achava bonita. De uma forma ou de outra vou ter meu próprio negócio. Não sou pássaro que nasce e morre em mesma gaiola. Posso melhorar minha vida sem implicações como a que ele sofreu, e sem fazer biscates ou trabalho de ambulante. Não quero ser mascate. Os tempos mudaram e Monlevade pede novas lojas em áreas de subúrbio recentemente formadas. Está por chegar a minha hora. Enfim, em que posso ajudá-la? Foi o que falou em voz alta para a jovem que também o aguardava ansiosa. Como indiretamente disse na cabeça deste capítulo, ficou-me o mês, não o dia. Por razão simples. Todo o mês doze é de movimentação extraordinária para quem lida com a arte de comerciar. Antiga. Cá, como em todo o mundo, é período em que se lembram mais os pais dos filhos. Em especial os nativos e estrangeiros dessa cidade que fora fundada dependendo exclusivamente do Dossiê Monlevade 19 aço e benfeitorias saídos dos fornos da Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. A CSBM. Por todas as ruas ouvem-se músicas motivadas por tema milenar vindo das longínquas terras de Nazaré. Se daqui a 33 anos tudo se encerra com o escuro da noite do Gólgota, hoje não é mais que a melhor hora para festejar. Que o exemplo dos reis magos seja seguido até os mais ignotos pontos do Vale do Piracicaba. É claro, com as cortesias, brindes e presentes sendo adquiridos no Bazar. O proprietário voltou as costas para o rio, permanecendo pensativo e observando a fachada do seu negócio. Com o avanço de minutos, o movimento de entrada de famílias que transitavam a pé pela Favela aumentou consideravelmente. Agora em grupos de 4 a 7 pessoas com distâncias que variavam de 3 a 20 metros. Não lhes prestava atenção. Sua cabeça viajava, buscando selecionar letras, palavras e frase para compor placa nova que intentava fixar na marquise de sua loja. Olhava-a com atenção. Tenho que discutir isso com a minha Alice, é o que dizia de si para si. Bazar Monlevade tem tudo que você precisa pelo preço que lhe convém. Por ora, esta longa frase era o produto final que, por ser tão extenso, falava alto para fixar texto. Não sou bom em português. – Pode deixar, pai. Agora quem diz é seu filho mais velho, que ora se aproxima e a ele observa estar falando alto. Vou pedir a colegas mais estudiosos, e que já estão na escola em série seguinte para fazer a análise sintática desse longo anúncio. Pedirei a eles para verificar se estão corretas as concordâncias e regências nominais e verbais. – Sim. Agradeço, menino. Não gosto mesmo de mandar escrever porcarias. Mas a que vens aqui? Não vês que estou cá pensando? – Duas coisas, pai: a primeira é que certo Gerente de Vendas quer falar com o senhor. Veio com o representante da Vulcabrás. Ele disse que tem dois produtos novíssimos para a praça de Monlevade. Trouxe-os, em primeira mão, aqui para o Bazar. Mostroume um deles. O nome é Passo Doble. Bonito. Gostei, pai. Marrom. Já quanto à outra novidade, disse-me que vai exibir amostra somente para o senhor e o para o tio Ninico… 20 Jairo Martins de Souza Ah, quase me esqueço, pai, a outra coisa é freguês que quer desconto especial. Ele está decidindo sobre compra de doze caixas de cartucho 36. – Vou atendê-lo num piscar de olhos. Peça ao representante e ao tal Gerente para aguardar! Diga-lhes que não demoro… – Pai. – Sim. – Sobre o calçado novo. O Passo Doble… Se for feita compra, o senhor me deixa ficar com um, número 42? – Quem sabe para o Natal, filho… Agora, dê-me licença. Tenho que atender o caçador que quer as munições! Dossiê Monlevade 21 Capítulo 3 O encontro com certo Gerente. O rapaz Monlevade distrai-se e passa alguns dias a mais na Guanabara! P lásticos, seu Jaime Raimundo, é o negócio do futuro. Não demora, tudo vai ser feito de plástico. Tenho aqui um exemplo de calçado, chamam-no Verlon, que é o cão chupando manga. Perdoa pela expressão. Sei que, assim colocado, cão parece significar o coisa ruim. Pelo contrário, aqui significa que agüenta tudo. Deixei até uma amostra com seu irmão, o Ninico, que é do ramo. Está lá no escritório do Bazar se lastimando. Disse-me: senhor Gerente, isso, se disseminado, vai acabar com a minha fabricação de tamancos de madeira e botinas de borracha de pneu. – Primeiro, agradeço por colocar em pratos limpos a questão de quem chupa e de quem não chupa mangas, agora é o proprietário da loja quem diz. Tenho tendências evangélicas e, ontem mesmo, estive lendo a bíblia em versículo sobre o não invocar qualquer nome que possa ser dado a satanás. Quanto ao calçado, não vejo tanto futuro assim. O fedor é insuportável! Por enquanto, seu Jaime Raimundo, por enquanto… Isso será corrigido. Juro que, em breve, cheirarão como rosas novas. Ainda falo com o senhor sobre o assunto. – Certo. Mas como não é chegado ainda esse tempo, destas não compro. Sigamos com o pedido de alguns Vulcabrás que dão venda garantida. Ah, vamos incluir também esse produto novo, o Passo Doble. Meu filho gostou! O negociante dissera com firmeza definindo a mercadoria que sabia agradar ao seu cliente. Não gostara do comportamento do Gerente. Aliás, até o irmão Ninico 22 Jairo Martins de Souza achava que o homem, recentemente vindo da paulicéia, compareceu na loja olhando para os lados, parece-me analisando todo o ambiente e emanando ares suspeitos… Os três pontinhos aí indicam que ocorreu um hiato na documentação. Por mais algumas folhas fica claro que o objetivo dos analistas restringia-se a buscar melhor ordenação da papelada. Até que apareceu um fato novo. Inusitado! Je voudrais parler avec monsieur Jaime Raimundô. Estava assim. Escrito em francês. A caneta tinteiro tinha carga de qualidade e o texto não dava margem a mal entendido. Traduzindo, gostaria de falar com o senhor Jaime Raimundo. Nem mesmo com consulta a pesquisadores do ramo houve condições de se decifrar o porquê da utilização de língua estrangeira. Pelo menos por ora. Fez sentido com o passar dos eventos. Peço ao leitor a paciência de... Paris. Calais. Porto. Lisboa. Gibraltar. Recife. Salvador. Vitória. Rio de Janeiro. Janeiro de 51. Foi longa viagem feita a bordo do navio da Lloyd International Shipping Company que partira do porto inglês de Dover do outro lado do Canal da Mancha. Conforme afirmara à mãe, Bernard, na própria Sorbonne, adquirira gramática da língua portuguesa, edição da Universidade Portuguesa de Coimbra. Os autores, pois escrito a duas mãos, eram Fernão de Oliveira e João de Barros. É detalhe que incluo nestas anotações somente por curiosidade histórica. Certo mesmo é que o jovem, de posse de material de tamanha qualidade, lançara mãos à obra com entusiasmo. Estudara com afinco. Cometeria erros, é claro. No Brésil fala-se português um pouco diferente, contudo, não fora bem sucedido na obtenção de obra didática com explicações sobre o praticado no Brasil. Um colega de estudo de leis informara-lhe sobre gramática escrita por certo Joaquim Mattoso Câmara. Morrera antes de completá-la. Ciente da deficiência, era assim que durante a viagem decorava e procurava entender todas as variações de pronúncia. Sabia ser o Brésil, no fundo, um grande continente. Finalmente, Rio de Janeiro. Não distante do porto, algumas Dossiê Monlevade 23 luzes incandescentes iluminavam fracamente a Ilha Fiscal. Ao passar por ela, Bernard Monlevade pensou sobre o famoso baile onde a bebedeira e as ignomínias praticadas pela corte portuguesa tinham ajudado a derrubada do imperador Pedro II. Pedro de Alcântara etc. e tal Bragança e Habsburgo. Longuíssimo nome. Ainda com os olhos fitos nas luzes que se distanciavam, pensou sorrindo sobre um outro imperador que lhe era mais próximo. Pensou sobre Napoleão. Ah, esse corso fez besteiras com os portugueses e, em especial, com a família daquele imperador Pedro. Rira quando um colega comentara ser o avô desse monarca, o tal Dom João VI, o rei mais medroso que reinara sobre terras européias: explico que aqui escrevo medroso com alguma reticência. Não foi o próprio Napoleão quem disse ter sido ele o único homem que o enganou? O forte soar da corneta elétrica do navio, acusando iminente chegada ao ponto de atracação, fez-lhe escapar fluxo de pensamentos. Daqui a minutos passaria defronte à Praça Mauá. Lá existem muitas putas que gostam de abordar estrangeiros. É o que lhe fora avisado por funcionários da embaixada brasileira em Paris. Com um “faça bom proveito”, quem a ele alertou foi um diplomata de carreira chamado Vinícius de Moraes. Na ocasião, segundo secretário do serviço de atendimento a estrangeiros. Poeta, nas horas vagas. Com o passar dos anos, ouviria falar muito sobre esse homem. Trouxera muitas malas. Inclusive uma com pasta de anotações cadastradas no Instituto de Ciências Geológicas de Paris, onde o bisavô guardara informações recebidas do irmão geólogo que lançara as bases da siderurgia no estado de Minas Gerais: seu destino final. Não sabia bem o porquê de tê-las consigo, afinal de contas, era um advogado. Passaria a noite ainda na embarcação. A descarga do corpo, enfastiado com as oscilações das ondas que caracterizam o Atlântico, deitaria alívio somente com a chegada da manhã seguinte. Preenchera a papelada aduaneira. A retirada de bagagem não deveria obedecer aos trâmites famosos que bloqueiam o progresso desse país. Bernard gostava de bricolagem e, habituado a serviço pesado nas horas de lazer, não faria uso 24 Jairo Martins de Souza de carregadores ou de homens da estiva. Por partes poderia levar todos os pertences. Ouvira falar que aqui os sindicalistas tinham total domínio sobre as obrigações de carga e descarga portuárias. A começar pelo círculo fechado dos Práticos que entram com as embarcações nos canais dos portos brasileiros. Passando por estibordo, permaneceu alguns minutos observando a vista maravilhosa do Cristo Redentor. Um homem ao lado conversava com a esposa (parecia ser algum carioca que retorna à casa paterna, após longa ausência). Procedia como se estivesse encantado e fazia o “Nome do Pai”. Ao mesmo tempo, chorava, e ria, dizendo, esse é o Rio Janeiro, minha alma canta e por aí vai… Tomado por sentimentos antigos, lembrou-se do avô que estivera no Rio há mais de século atrás. O Brasil ainda era colônia dos lusos. 1817 ou 1818: não sabia com certeza. Na ocasião escapava dos desdobramentos da derrota de Napoleão – abatido por Wellington – e que agitavam a França (talvez um dos motivos do avô ter vindo para o Brasil. Não o principal. Muitos europeus do século dezenove eram extremamente curiosos quanto às peculiaridades da natureza e da vida dos selvagens abaixo da linha do Equador). Estou aqui hoje três anos mais jovem do que ele quando veio. Tinha 28; tenho 25. Emocionado, Bernard devaneia fazendo e desfazendo voltas nessa máquina do tempo. Incorpora com orgulho os planos do avô. Não é ele a principal razão de eu estar no Brésil? Visualiza-se a bordo de navio a vapor de modelo mais antigo. Curiosamente lembra-se que, desde 1807, o americano Fulton lançara aos mares os primeiros barcos movidos a lenha. O Rio no início do século dezenove ainda era praticamente intocado. Há 10 anos, em 1808 recebera a corte lusitana e abrira os portos às nações amigas. Tudo isso ocorrera indiretamente à custa dos atos de Napoleão. Houve tempo em que Bonaparte quis ser Deus! Cá está também outra questão. Na ocasião, os levantamentos geológicos que dispunha eram precários. Não fosse ânimo dado por amigos lusitanos, – o rapaz continua encarnando o avô Dossiê Monlevade 25 –, que estudavam na prestigiada Universidade de Coimbra, talvez não tivesse encarado tal empreitada. Cartas entre geólogos distantes geograficamente, mas vizinhos nos interesses da matéria, iam e vinham, cruzando mar e terra que separavam nações. Tal como Galileo fazia com Salviatti (o italiano trocava intensa correspondência com seus pares na ciência), Monlevade respeitava o conhecimento do povo português. Em especial, lembrando-se com saudade dos tempos em que lá estivera visitando, inclusive os restos da antiga escola de navegação de Sagres. Portugal já foi, escrevia aos seus confrades lusitanos, grande nas cruzadas e embates com o uso de caravelas de grande desempenho. Nossas cortes – escreveram os portugueses de volta – andaram relatando que, no Brasil, além do ouro que praticamente aflora ao solo, há grandes ocorrências minerais no estado dito das Minas Geraes. Faltam-nos as técnicas para sua exploração. Poderias também, Monlevadê, a partir disso, produzir enxadas, foices, machados, alavancas, pás, ferraduras, picaretas, moendas para engenhocas, freios para animais e outros materiais para a extração de metais e minérios. Destes últimos, temos fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, lá existem muitos. A mão de obra? Tens de sobra. Guias de importação de negros africanos são facilmente obtidas com as autoridades, marqueses, barões e negociantes que controlam o comércio dessa lucrativa mercadoria nos portos de São Sebastião do Rio de Janeiro e Santos. Com isso, Bernard volta à realidade da manhã que se abria magnífica. Dormira bem e relaxado. Acima do Redentor, no Corcovado, pairava nuvem que, isolada na imensidão do céu, tal como se fosse coroa almofadada de branco, ornamentava-lhe a cabeça destacando a intenção de sua santidade protetora. Nessa imagem esplendorosa, fica a descoberto o amor que o criador destinou a esse Brésil. Terra abençoada! Não faz mal lembrar o talento do francês Landowski que capitaneou a construção da estátua para o acolhedor povo que habita a baía. Aí recupero que demorara anos entre transporte e instalação, inclusive iluminação a ser ligada diretamente da Itália pelo próprio Marconi, o inventor do rádio. 26 Jairo Martins de Souza Já com alguns cruzeiros no bolso, previamente adquiridos em casa de câmbio na própria Paris, Bernard fez algumas contas mentais. Por fim, decidiu, depois de aportar, vou circular a pé pela famosa praia de Copacabana. Ligeiramente amuado, resmungou, lembrando-se que as caminhadas matinais que fazia ao lado da mãe far-lhe-iam falta. Por fim, alisou o voucher do Hotel de mesmo nome, assegurando-se de sua textura tranqüilizadora. Mãe, estou no Brésil! Se bem que ainda não totalmente recuperados da derrota sofrida para os uruguaios em 50, os cariocas confirmaram tudo que Bernard Monlevade estivera estudando sobre a sociedade brasileira no vasto material colocado à sua disposição na biblioteca de Humanas da Sorbonne. Povo gentil. Alegre. Receptivo. O dinheiro combinado com o pai tinha chegado regularmente por meio de ordem de pagamento telegrafada e retirada sem complicação na agência central do Crédit Lyonnais no Largo da Carioca. Manter-se-ia assim, fora o recado que recebera da instituição. Por complicações burocráticas, ainda não resolvidas, não pudera adotar os serviços do Banco do Brasil. Poderia ser mais útil quando se dirigisse, por fim, até o interior do país. Aliás, lembravase, orgulhoso, esse banco fora fundado por Irineu Evangelista de Souza, o conhecido Barão de Mauá. A razão de aqui constar essa informação é que esse homem famoso adquirira a siderúrgica que fora fundada por seu bisavô. Mauá, empresário de biografia conhecida dos anos 800, era também, na ocasião, proprietário da Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros. Todo o conjunto de fatores, a cortesia, a beleza natural, a boa comida e outros dotes da antiga Guanabara, que o leitor bem conhece, alteraram-lhe automaticamente os planos. Perdera o comando da situação. Tinha imaginado dar cabo final à visita carioca tão logo conhecesse o divulgado Pão de Açúcar (um cronista dissera-lhe que lá é onde Deus toma seu café da manhã!), seu teleférico e a magnífica vista do Morro da Urca. Além dele, o Palácio Imperial em Petrópolis, o Museu Nacional, a Academia Brasileira de Letras, a Biblioteca Nacional, o Teatro… Ao longo da viagem, após travar conhecimento com o casal que acima Dossiê Monlevade 27 dissemos ter chorado no reencontro com a terra, acrescentara outras atrações. Um passeio pela Rua de Mata-cavalos, tão citada por Machado em seus romances fluminenses. Hoje se chama Riachuelo. Uma visita a ensaio de “L’ école de Sambá”, teatro de revistas nas praças do centro, um clássico entre seleção mineira e carioca no Maracanã, enfim, eram tantas as atrações culturais na Guanabara e redondezas... Mas posteriormente faltaram adjetivos e tempo para homenagear a rica natureza local, pois, mesmo que advertido, não contara com tamanha qualidade que a ela foi dada de graça pela criação. Passava dias e dias perdido em passeios solitários pela orla marítima, sem perceber que, há tempo, não tinha agenda senão para escrever letras floreadas de encantamento à mãe preocupada do outro lado do Atlântico. Nelas mesmas, por economia, encaminhava bilhetinhos à irmã Liviah, que raramente saía da região de Guéret. Afora algumas visitas à Aliança Francesa para desenvolver imediata comunicação com a gente do hotel, andou também assistindo, como convidado especial, a algumas sessões ordinárias do já falido sistema jurídico da capital federal dos brasileiros. Quando deu por si, carecia de regularizar permanência junto às autoridades locais. Seu passaporte já estava em vias de passar momento de revalidação! Moço simpático e bem falante, quando oportuno, enrabichou-se com três ou quatro moças de outros estados que andaram passeando com as famílias pelas praias cariocas. Hotel Copacabana. Importante. Einstein esteve aqui hospedado, em 25. Seus proprietários, gente da glamurosa família Guinle, divulgavam-no pelo mundo inteiro. Foram seus companheiros de estadia, presidentes de potências estrangeiras, playboys internacionais, – como o próprio Jorginho Guinle –, Carmem Miranda, etc. Lá se mantinha bem aconselhado, por meio de relações amistosas com a portaria, pelas camareiras, a lavanderia e a administração. Adquirira roupas na Casa José Silva a preços módicos, mesmo considerada a perda de força do franco francês em relação ao ascendente cruzeiro nacional. A despeito disso, liberava régias gorjetas e pagava antecipadamente a cada 28 Jairo Martins de Souza nova intenção de permanência. Assim o tempo fora passando despercebidamente. Gostava de ficar também assentado nas espreguiçadeiras colocadas à disposição no entorno da piscina do premiado hotel. Frequentemente ao seu lado bronzeavam os corpos, alojados em discretos maiôs, as maiores celebridades da Rádio Nacional. Certa ocasião vira, com as restrições inerentes à época, o escultural corpo da atriz Virgínia Lane. Foi nessas condições relaxadas que leu notícia na página de frente da edições do dia anterior do Jornal da Noite: ‘Getúlio segue amanhã para Minas. O presidente tem o fito principal de visitar a Usina Siderúrgica Belgo Mineira localizada no Distrito de João Monlevade. O Governador Juscelino Kubitschek… Pronto. Ligeiramente atordoado, Bernard decidiu tomar ação. Nem mais sabia onde encontrar, por exemplo, o prontuário de vacinação rigorosamente recomendado como credencial de saúde para viagens ao interior do país. Lembrou-se, sorrindo dos temores que tivera quando, ainda em Paris, lera sobre certa Revolta da Vacina que, não há muitos anos atrás, ocorrera aqui mesmo no Rio. O português fraco, que falava na ocasião, fê-lo confundir algumas palavras e comprometer o sentido do texto. Como pude julgar tão mal os brasileiros? O conflito foi social e não de maniqueísmo religioso como entendera. Coisa de política e políticos sujos. Ah, esses cafards (baratas) sobrevivem a todos os países, conflitos e gerações! Alentado por costume europeu profundamente enraizado, a idéia era seguir inicialmente por trem ferroviário. Noturno. Fora informado que o confortável Vera Cruz seguia todas as noites para a capital dos mineiros. Belo Horizonte era conhecida como Cidade Jardim. Poucos dias de reconhecimento seriam suficientes para absorver a cultura local. Sabia ser essa muito diferente da dos cariocas, a qual já se mostrava acostumado. Um político mineiro de baixo quilate, um falastrão que conhecera no Copa, dissera-lhe do corpo bem definido e da educação inerente às moças da terra. Mais ainda do rigor com que eram administradas pelos pais e irmãos. Namoro lá, admoestara-lhe o homem, só se for para casar! Principalmente pelas bandas do interior. Bernard, Dossiê Monlevade 29 moço organizado, anotara tal instrução com letra miúda em sua caderneta que funcionava como um diário de bordo. Documento que tomei conhecimento, posteriormente, por meio de terceiros. É o que fez válida a sua citação. Tivessem-no guardado no cofre, junto com as esparsas e fragmentadas lascas de papel rasgado, facilitaria sobremaneira a tarefa de redigir essas linhas. Enfim, não diz o povo que quem não tem cão, caça como um gato? É o que procuro fazer. Monto esse quebra-cabeças lembrando a argúcia de felino doméstico. E é tendo isso em mente que volto ao ambiente do Bazar mantendo fio de meada abandonado em capítulo anterior. Lembram-se? Em dado momento, dizíamos das suspeitas do sapateiro Ninico quanto ao já referido Gerente de Vendas, e ao produto chamado Verlon. Agora quem tem a palavra é o próprio Gerente. Não é que vá se defender de acusações das quais nem tem conhecimento. Vamos ver do que se trata. – Seu Jaime, sei que não é do seu costume, mas gostaria de pedir licença para convidá-lo para tomar um café, ou cerveja, se for o caso. Depois que o senhor fechar o seu Bazar. É que tenho assunto do qual não vejo condições para aqui conversar. Faz-se necessário ambiente tranqüilo no qual possamos refletir e trocar idéias. Embora, antecipo, tratar-se de matéria absolutamente comercial. Se o senhor quiser pode ser no Hotel Monlevade, onde estou, ou, quem sabe, no Bar Central da Praça do Mercado. – Sem problemas, senhor M (nota do autor: a partir de agora, sem quê nem por que, o Gerente de vendas constantemente referido nesse dossiê passa a ser chamado somente por sua consoante de início. Em inglês. Pois conforme explicado em pequena nota, Manager é tradução de Gerente vinda da língua internacional do comércio! Há outras razões citadas, mas não detalhadas pelo analista. Em determinado momento somente diz que esse procedimento não faz qualquer alusão ao clássico ‘Disque M Para Matar’, de Alfred Hitchcock. As coisas aqui não chegam a tal nível de violência física, etc.). Com uma restrição. É Jaime Raimundo quem diz respondendo ao convite do Gerente, ou M, como queiram. Decerto não 30 Jairo Martins de Souza me oponho a trabalho fora do horário de expediente comercial, de 7 às 18. Estou habituado a tanto. Inclusive a rotina da loja, normalmente encerra-se às 20. É a partir daí que saio para outra jornada. A de verificar minha propriedade rural que, no fundo, é a minha distração. No entanto, não é procedimento fechado. Aceito sim tomar café em sua companhia, só que ofertado por minha senhora e acompanhado por broa de fubá e queijo fresco. Para tanto, sinta-se convidado para estar hoje na Rua do Contorno, na Vila Tanque, onde resido. Pedirei à moça do caixa que anote o número para o senhor. Fica logo de frente ao Centro Comercial, próximo ao palanque onde se processam ao tempo os serviços religiosos daquela comunidade. Se o senhor for de carro, dou-lhe outra coordenada importante, pois minha casa fica perto da loja da Dona Santa. Não sei se a ela já visitaste com mala de mercadorias. – Não, senhor. Mas posso chegar até lá com facilidade. – De todas as formas, não querendo dirigir, o senhor pode usar os serviços do ônibus Jardineira que passa nas proximidades do hotel e vai até quase em frente. O ponto final é junto da minha casa. Há também Buicks de praça a preço módico. Quanto ao retorno, não se preocupe, posso trazê-lo de volta. – Agradeço antecipadamente, seu Raimundo. Ficamos assim combinados. Dossiê Monlevade 31 Capítulo 4 M tem interesses em Monlevade. Preciso de sócios locais, diz! O Gerente apeara da condução no ponto adequado. Forjado ao longo dos anos no transporte de massa da capital dos paulistanos, mostrou-se desenvolto em sua andança. Inquirira ao motorista da Jardineira e não tivera dificuldades para localizar a casa do comerciante: homem conhecido nas redondezas. Só sentira-se desgastado quanto ao calor que sentira na parte interna das mãos quando batera fortes palmas para chamar a atenção da família visitada. Doeram-lhe também as juntas. Isso porque todos os filhos e agregados da casa encontravam-se junto a barulho de talheres e de conversas rotineiras de lar com mais de 15 comensais quando em momento de refeição noturna. Família grande. Não se sentira à vontade sob os olhares curiosos dos moradores que estavam, em quantidade, fazendo compras ou simplesmente aglomerados defronte ao centro comercial da vila que era chamada de Tanque. Um dos vizinhos, uma mulher, por instantes, pensou ter visto que, com a aproximação de M, o portão da casa abrira-se sozinho. Isso era comum em porteiras das fazendas e roças de onde viera. Ao lado do visitante também imaginara visões instantâneas de samambaias secas que queimavam acionadas por pequeno pé de vento. Um corisco. Dois pequenos chifres de bode assomaram-lhe rapidamente na testa. É claro, o texto aqui continua referindo-se ao Gerente paulista. Ao mesmo tempo o homem abriu a boca para expor língua cortada ao meio. Língua de lagarto grande. Um iguana. Cruz credo! A vizinha não se deu por rogada. Entrou cor- 32 Jairo Martins de Souza rendo em casa e dirigiu-se imediatamente para imagem de Aparecida. É certo que ultimamente andara lendo romances fantásticos de Cortázar e Garcia Marques, mas neles não vira referências a fantasmas, duendes e aparições. Então, por via de dúvidas… – Entra. Entra. – Boa noite, menino. Seu pai está? – Não é meu pai, senhor M. É meu tio. – E qual é o seu nome? – Melquesedeque, senhor. Com licença, vou chamá-lo. Ele vem num instante. Já está acabando de jantar. – Não precisa menino, cá estou, é Jaime Raimundo quem diz, parecendo satisfeito com a concretização da visita prometida. Estava a poucos metros do visitante, pois a sala que os separava era pequena. Por fim, avança do seu quarto já quase em posição de troca de cumprimentos. Sente-se, senhor Gerente, a poltrona não é grande, mas tanto eu como o senhor somos magros. Nos servirá bem. Num instante, minha Alice já lhe trará café, a broa e o queijo prometidos. – Peço aguardar um pouco, seu Jaime. Por ora, basta-me um copo d’água. Temos muito que conversar. Como sabes, sou novo no comércio da região... (a partir dessa frase, M limpa o gogó e prossegue falando mais pausado. Parece ser daqueles que demoram mil anos para chegar ao cerne da questão). Andei por aqui e por ali, garimpando oportunidades. Caeté, Dionísio, Nova Lima, Ouro Preto, São João Del Rey, São Pedro dos Ferros, Sabará e Viçosa são alguns dos lugares que estive pesquisando. – Pois é, respondeu-lhe incidentalmente o comerciante, gosto de gente curiosa. No bom sentido. Inclusive meu irmão, lembrase dele? Andou notando esse jeito no senhor. Ficaste observando código de preços de custo das mercadorias do meu bazar. – Sim. Agrada-me sabê-los, mais que tudo por questão de saber como anda o lucro dos varejistas. Tento decodificar os que usam e, ao mesmo tempo, busco passatempo, algo como brincadeira de 7 erros. O senhor sabe, há ocasiões em que o dono da loja demora a nos atender. Prioriza logicamente a clientela. Às vezes, M complementou, agora mais relaxado, penso que poderia Dossiê Monlevade 33 criar alguns mais difíceis. Nada de A = 1, B = 2… Quem sabe misturando letras com sinais de Morse. – Morse? – Do código Morse. – Esse senhor eu não conheço. – É o do telégrafo. (Na verdade procuro abreviar, pois M prossegue falando novamente que viajou por localidades próximas e distantes, não sabia dizer quando, e que não podia mentir, entrevistara outros negociantes de vários ramos na região, da indústria do couro e da carne, fabricantes de armários e móveis, comerciantes que lidam com madeiras diversas... Disse tudo isso e muito mais, inclusive fazendo, talvez para quebrar o gelo, perguntas de foro íntimo ao interlocutor, algumas sem sentido, até que, finalmente, já cansado de tamanho lero-lero, de forma polida, o proprietário do Bazar indagou. Tudo bem! Mas, aonde queres chegar, senhor Gerente?). Procuro sócios! Atuei em São Paulo, na capital, por vários anos junto à indústria calçadista. O que, de certa forma, permaneço fazendo por meio de credenciais, comissões e representação, como a que tenho da grande Vulcabrás. Esse homem que comigo está e que, inclusive, acompanha o seu Bazar no dia-a-dia é simplesmente meu preposto. Lá tenho casa, comida e roupa lavada; a bem dizer, negócios e família, esta última a qual destaco como essencial para sucesso de homem de bem. – Sim. É a base de tudo, Jaime Raimundo argumentou reflexivo, não percebera a ironia nas palavras que o empresário paulista há pouco acabara de dizer. Na verdade o proprietário dissera o “sim”, conforme informado ao leitor, somente para pontuar a frase do interlocutor, ser gentil, dizendo ao visitante que se interessara pelo assunto. Ansiedade de mineiro para fazer agrado a terceiros. – Repare, prosseguiu o Gerente, lá estou bem. Tenho até mesmo um sedã Chevrolet fleetline duas portas. Hidramático. De luxe. Comprei-o de um diretor da empresa que represento. Fica a serviço da minha esposa. Não tive a graça de ter filhos com essa mulher. Eu os tenho com outra. Nisso vejo que o senhor está bem aquinhoado. 34 Jairo Martins de Souza – Não posso me queixar. No entanto, nunca ninguém está totalmente satisfeito. Por exemplo, o Chevrolet que disseste ter é meu sonho de infância. Não o tenho. Aliás, não concordo com alguns poetas que dizem ser a infância a fase mais feliz da vida. Um amigo daqui de Monlevade disse-me que os humanos gastam o resto de suas vidas tentando superar traumas nela adquiridos. Leu algo assim em resumo das obras de um sujeito chamado Freud. Enfim, talvez seja por isso que penso ter um carro daqueles aqui na garagem de casa. – Talvez. Também já li alguma coisa desse autor. Quem sabe tenha razão quanto aos traumas que dizes. Eu mesmo estoco pilhas de pacotes de manteiga no interior da minha geladeira. O motivo? Meu pai não permitia que os filhos a comessem com fartura. Entretanto, trauma infantil ou não, seu Jaime, com a disposição que tens para trabalhar, não demora terás um Chevrolet. A seguir M declarou afirmativamente. Hoje atuo sem dedicação exclusiva ao comércio e, se o senhor não sabe, passe a saber, tenho relativa importância nesse segmento. Nessa região de Monlevade mais ainda. Não ouça com conotação negativa, prosseguiu, abaixando decisivamente o tom de voz, mas poderia inclusive cortar fornecimento de mercadoria que sei fundamental para o senhor. Lembre-se da representação selecionada que tenho da linha Vulcabrás. Não é que vá deixá-lo à míngua, mas corto-lhe renda. Aliás, já o fiz para outros que comigo não concordaram, ou que pagaram com suor e sangue que não julguei recompensador para meus propósitos. Jaime Raimundo não entendeu bem o que o gerente acabara de dizer e, um pouco por educação, e mais ainda por timidez, simplesmente concordou com aceno de cabeça. Com o que M seguiu falando que a idéia de implantação de fábricas providas de novas tecnologias nunca deixa de ser saudável – o comerciante, no fundo, concordou. Na realidade, M dizia, o meu ramo é preferencialmente a indústria. Dá mais volume de capital e negócios. O do senhor, senhor Jaime, demanda maior corpo-a-corpo com cliente. Não tenho tal habilidade, faço serviço impessoal, aliás, é Dossiê Monlevade 35 característica do meu estado que, historicamente, sempre cresceu mais que seus pares no Brasil. É. Agora é o proprietário quem diz. Aqui em Monlevade o comerciante tem muito do seu sucesso ligado ao conhecimento individual que tem do cliente, sua família, seus problemas com o chefe na usina da Belgo. Funciono às vezes como psicólogo. É quando ofereço materialmente algo que possa ajudá-los a sublimar carências. – Aí que está, Jaime. Perdoa, posso chamá-lo de Jaime? – Sim. Desde que haja troco e V.Sa. seja só Gerente, dispensando o senhor. – É claro. Jaime!? – Gerente! Combinados! Então, Jaime, M disse ligeiramente encabulado, procuro sócios locais. Quero-os ativos como o senhor é. Desculpe-me, como és. Por fim, que tenham condições de comercializar os produtos da nossa fábrica… –- Nossa fábrica? – Sim. Minha. Sua. E de outros sócios selecionados aqui da região, os quais o senhor queira indicar. Não. Não se assuste, meu, agora, amigo Jaime. Matutei muito sobre o negócio e o modo de lhe falar, mas sou como o escorpião que morde o sapo na travessia do rio. Incorrigível. Às vezes acabo indo direto ao assunto. – Também gosto de assim proceder, quando se trata de assunto comercial, senhor Gerente. Só costumo fazer de outra forma quando estou contando casos em reuniões entre amigos. Ah, peço sua licença por um minuto, minha mulher pede-me para ir até a cozinha. – Gostas do jeito desse Gerente, marido? – Não sei. Quando pergunto-lhe algo, responde certo. Mas sempre toma proveito e estica assunto fazendo perguntas. Algumas inoportunas. Estranhas. – Estranhas? Quais? – Se eu gostava mais do Lago Nahuel Huapi ou do Rio Petrohue. Nomes esquisitos. Pareceu-me tortura psicológica, pois pediu-me para soletrá-los. Não consegui. Disse-lhe nunca ter ouvido 36 Jairo Martins de Souza falar sobre o assunto… Ah, perguntou-me também se eu preferia águas doces às salgadas. Respondi-lhe doces. Esclareci-lhe que é escolha de coração, pois não sou mineiro viajado. Nem mesmo conheço o mar! – Só isso? – Não. Quando perguntei-lhe, por educação, pela família, insistiu em saber detalhes íntimos sobre nós. Se eu gostava mais da minha filha mais nova ou da mais velha. Também se mais das meninas que dos meninos. Se mais dos pretos do que dos brancos. Se dos que têm olhos verdes ou castanhos. Disse-lhe que, em se tratando de filhos, um pai não vê diferenças quanto ao amor que por eles nutre. Perguntei-lhe o porquê das perguntas. Respondeume evasivamente. Alegou conhecer rudimentos de psiquiatria. Minhas respostas, disse-me, poderiam dar-lhe pistas sobre minha personalidade… – Jaime, não é tempo de servir o café? – Ah, sim, Alice, pode levar-lhe café, a broa e o queijo. Passa da hora. Aproveita e dê-lhe também outra caneca de água. O homem parece ter garganta seca. Agora, dê-me licença que preciso voltar para a sala. Não é educado deixar visita sozinha… Já coloco o café no bule. A água pego no filtro de barro. A broa… Levo tudo num instante… Dossiê Monlevade 37 Capítulo 5 M tem grande poder de persuasão. Monlevadê finalmente chega a Monlevade B ernard Monlevade chegara a Belo Horizonte às 10h38 da manhã de 21 de Abril de 1951. Tiradentes, dia de feriado nacional. Protelara saída da Guanabara mais uns dias depois da visita de Getúlio à capital mineira. Não resistira aos anúncios e festejos que antecipavam com alvíssaras a chegada do carnaval carioca. Bondes apinhados de gente, blocos caricatos, o ativo comércio no Largo da Carioca, tudo isso foi fator de peso. Não esquecido o baile do próprio Copacabana Palace que anunciava grandes atrações internacionais. Agentes de atores de Hollywood anunciavam presença de seus pupilos – vindos diretamente de Los Angeles, Califórnia – inclusive o que protagonizou o famoso Cidadão Kane. Orson Wells, senhores, estará bem próximo a nós. Em carne e osso. Bom para Bernard. Como hóspede contínuo do Copa, foi-lhe ofertado convite especial: vip. O jovem abusara! Foi grande o excesso durante os folguedos. Desconhecendo os efeitos nefastos das caipirinhas tomadas naquela condição, gastara dias para recuperar forças, enfim, sair da ressaca física e moral. Não fora somente ao baile do Copa: aprendera rapidamente o caminho do Quitandinha e o embalo de algumas passistas da já famosa Mangueirá. No mesmo período, identificou-se com o som da regional do maestro Altamiro Carrilho que embalava as canções dos rapazes do Trio Irakitan. Adorara também a famosa orquestra Tabajara sob a batuta do maestro Severino Araújo. Bailes inesquecíveis. Daí tanto atraso 38 Jairo Martins de Souza para drenar a aflição e o plano arquitetado à beira da piscina do Copa. Por fim, restaram duas coisas positivas: a primeira que, ainda combalido, estivera de visita à Aliança Francesa – onde fora comunicado, após rápida avaliação, que seu português estava praticamente perfeito. Bastava-lhe continuar praticando com os nativos. O esforço fora recompensado: durante o tal período de resguardo, estivera afundado no seu apartamento de hotel decorando falsos cognatos, conjugações irregulares e expressões coloquiais. A segunda, e mais importante, é que um brasileiro advogado que conhecera dissera-lhe ser na semana seguinte o teste da OAB. Três dias de estudo foram suficientes para obter aprovação e medalha de prata entregue com o número 96421. Obtivera a segunda melhor nota! O título provisório ser-lhe-ia entregue, por ser estrangeiro, em regime de urgência. Quantos dias? Perguntara. O mais breve possível, o oficial respondera-lhe. Estava praticamente apto para trabalhar no Brésil! Nesse estado é que escrevera para mãe, não dizendo da fraqueza em que ainda estava, e sim se recordando da baguete com queijo fedido que habitualmente degustavam juntos nos finais de tarde em estabelecimentos do Quartier Latin. Escrevera, mãe, estou saindo para Belo Horizonte! Paradoxalmente é com essa frase que voltamos ao andamento das negociações entre M e Jaime Raimundo. Estão lembrados que há poucas linhas tinham sido interrompidas por chamado da esposa do comerciante? – Indústria de quê, senhor Gerente? – Calçadista. Revolucionária! Lembra-se do que lhe disse sobre plásticos? Tenho contrato exclusivo, pessoal e intransferível com os proprietários da Verlon Calçados, empresa de ponta do setor. Conseguido a ferro e fogo. Tecnologia totalmente nacional. Com isso, Jaime Raimundo ligou o assunto rapidamente à conversa rápida que tivera com o irmão Ninico e, inocentemente, voltou a questionar, indagando como resolver o problema do cheiro horrível do calçado de plástico. – Ah, amigo Jaime, não digo como na anedota do gambá e do casal de portugueses… Dossiê Monlevade 39 – Não a conheço, senhor Gerente. Aliás, peço-lhe desculpas pela franqueza, mas pelo seu sorriso presumo ser piada de sacanagem. Não gosto de ouvi-las. Por formação familiar. Nem a essas nem às preconceituosas. Cor. Defeito físico. Religião. Menos ainda quanto a possível cheiro de bacalhau em parte íntima… – Não importa, Jaime, o fato é que a menina dos olhos desse projeto é fabricá-las não com cheiro ruim, com cheiro de petróleo queimado. Como dizia um político, não sou daqueles que… Não sou daqueles que diz, ou dizem (não sei bem) que o problema reside no próprio odor do pés de alguns consumidores brasileiros. Assim dou a mim mesmo o direito de dizer Eureka (M aqui faz alusão à palavra grega que significa achei. Segundo o que história diz, foi exclamação de felicidade falada por Arquimedes ao descobrir, por meio da lei do empuxo, que determinado joalheiro roubava ouro da coroa real), pois a chave é colocar no mercado produtos de plástico com gosto frutal. – Frutal? – Sim, de frutas, disse M. Com gosto de frutas. Outra tecnologia que firmei contrato único com a Verlon. Nem eles podem usá-la. Tanto de extração e tratamento químico do suco quanto da injeção na borracha de forma a manter-se perene. Aí reside outro fator porque lhe oferto sociedade. – Qual? – Frutas. A idéia é usar matéria prima da chácara que tens no seu sítio de Rio Piracicaba. Com seus olhos d’água e lagoas, tem grande potencial de expansão. Água não falta. Como disse, estudei a vida de muitas pessoas nesse Vale do Aço. Inclusive a sua. Lucro duplo. Podemos processá-las, estou dizendo das frutas. Com isso, poderão ser colocadas nas palmilhas dos calçados que fabricaremos! Gosto forte de jabuticaba, goiaba, laranja, mamão… Dessas, lembro que jabuticaba é fruta que só existe no Brasil. Aliás, para facilitar a logística, a fábrica pode ser colocada lá mesmo na área de sua propriedade. Reduziria custos de implantação. Ademais temos perto a estação da Vitória-a-Minas. Não seria necessária a construção de braço de ramal ferroviário. De lá fica 40 Jairo Martins de Souza fácil transportar para o sítio, digo, fábrica, os demais produtos químicos que usaremos na extrusão do calçado, e na sua integração com a fórmula secreta pela qual sou único e exclusivo zelador. Eu a tenho guardada a sete chaves (posteriormente encontrada em compartimento especial, localizado entre as chapas do tapamento lateral do cofre. Escrita em papel de altíssima resistência. Nela traçamos vestígios de polietilenos e fenóis. Não incluiu a química dos cítricos nem de outras frutas desprovidas de ácido acético: o segredo que o Gerente antecipara querer usar), pois decorada na minha própria cabeça. Na verdade não a entendo bem, pois na escola nunca fui fundo na disciplina da química do carbono. Mas para qualquer bom entendedor, meias-palavras bastam... O que não bastava era o seu discurso até o momento. De fato M seguia animado, mas falando contidamente, como era seu estilo. Por vezes, desviava caminhos, explicando e dando detalhes sobre isso, sobre aquilo… A obtenção de matéria prima, a produção, como escoá-la, como expandir mercado e abrir fábricas em Cocais e Nova Era. A tudo o negociante ouvia com atenção. Como também dissecava cada palavra, buscando sentido oculto que o Gerente, por acaso, ou intencionalmente, tivesse, por trás das cortinas, mencionado. Para tanto ponderava, para manter a função fática da linguagem, com um sim, um entendo, um pode ser... Aprendera o artifício quando no telefone diziamlhe algo e ele respondia simplesmente ãh hã... Foi como rapidamente concluiu seu breve julgamento, esse homem parece ter vários lobos de Hesse dentro de si. Quem não os tem? Tudo isso, muito antes de diminuir, aumentara o significado fundamental de sua dúvida… No fundo, o que quer esse homem de São Paulo? Procuro sócios, repito, M prosseguia. Pareceu ter invadido os pensamentos do interlocutor monlevadense. Andei, Jaime, sondando com seus pares lá da Praça do Mercado. Não com os detalhes que lhe disse. Um deles de nome José Brás, o Zé Brás, mostrou-se sensibilizado com o projeto. É inclusive espírita e disse-me conhecer bem ao senhor na alma e comportamento. – Sei de quem falas, é amigo antigo e de confiança. Dossiê Monlevade 41 – Então o recomendas? – Sim. Além do que significaria mais um canal de saída para nossos produtos. – Nossos produtos, amigo Jaime? Gostei. Significa que estás abraçando a idéia. – Talvez. Saiu de dentro de mim sem perceber. Para tanto tenho que conversar com a família, não sou daqueles 0,01 por cento de desconfiados que não se casam com comunhão universal. A partir daí, o testemunho da entrevista aparece recortado, nada relevante, ou que tenha sido feito dessa forma a ser considerada na sequência da documentação. Isso posto, segue-se recomendação aconselhando voltarmos a seguir os passos do rapaz francês… O vôo de Belo Horizonte ao aeroporto internacional de Monlevade foi rápido. Vinte e cinco minutos foram suficientes para que Bernard entendesse porque o bisavô escolhera Minas Gerais como sítio especial para suas pesquisas geológicas de principiante. Do alto percebia-se a vocação mineral dessas montanhas: peito de aço, coração de ouro, diziam. Por baixo de sua pele, coisa de há poucos anos, soube-se circular veias cheias do sangue negro do petróleo – Monteiro Lobato previra mal somente quanto ao estado da federação. Uma grande estrela de cinco pontas sobre a torre de controle, algo parecido como a de Davi, anuncia chegada dos viajantes ao novo bairro de Graal: porta de entrada à próspera cidade que tinha o nome do bisavô. O grande outdoor, assentado horizontalmente na cobertura da administração aeronáutica, dizia com letras garrafais, benvenuto, bienvenidos, bienvenue, velkommen, welcome, willkomem... O altiplano, outrora ocupado por pequeno aeroporto que recebia tímidos aviões teco-teco do correio nacional, agora transformara-se em movimentada área de padrão jurerê catarinense. Há poucos anos, coberto de arbustos baixos na pequena pista, adequava-se para visitas furtivas de casais que, de lá, mais próximos do céu, apreciavam mirar a Lua, as estrelas, as nebulosas, a Via Láctea e as constelações daquele belíssimo planetário chamado Monlevade. Muitos dos moradores da celebrada e confortável área residencial da Avenida do Aeroporto 42 Jairo Martins de Souza monlevadense cederam espaço para sede comercial de grandes empresas do mercado petroleiro e outros ramos da riqueza mundial. Aqui estão instalados gigantes como a Petrobrás, a Vale, a British Petroleum, a Pemex, a Texaco, a Belgo Mineira e por aí vai. Sedes futurísticas. Inteligentes. A arquitetura do conjunto é de ponta, baseada nos padrões asiáticos de Singapura e Kuala Lumpur. Nada disso fazia parte do conjunto de interesses imediatos do rapaz. Interessava-lhe a parte histórica da cidade. Pernoitaria no Hotel Cassino, e imediatamente visitaria com cuidados especiais os restos da fazenda Solar construída pelo avô nos idos vinte do século retrasado. Entraria em contato com as autoridades da cidade, aos poucos cristalizava idéia firme de ceder material de sua volumosa bagagem para o museu que soubera existir, e que dizia respeito aos périplos do antigo parente. Um homem caminha de mãos dadas com a filha adolescente, a garota tem aspecto aborrecido. Um outro lê o jornal, parece analisar as variações da bolsa de valores do Vale do Aço. Um terceiro lê e-mails em notebook de última geração; duzentos e cinqüenta mil transistores em um milímetro quadrado do seu moderníssimo processador Intel! Uma jovem aeromoça passa apressada e, enquanto puxa com destreza sua mala on board, come desajeitadamente um pedaço de lingüiça que sobra nas beiradas de um delicioso pão de queijo da região. Bernard filosofa, sorrindo, na medida em que observa essa e outras ações do cotidiano do aeroporto monlevadense. Por fim, finalizado o recolher de seus volumes, pertences e malas, debateu-se, contrariado, com um primeiro contratempo. A sua bagagem de roupas e utensílios de uso imediato havia se extraviado e, pior ainda, ao ser questionado, o funcionário noviço da Aço Airlines atrapalhou-se em suas previsões. Com o eterno problema dos controladores de vôo nacionais, dizia, nunca se sabe quando aqui chegará votre baggage. Assim que chegar, entregâmo-la no hotel, finalizou. Então Je voudrais parler avec monsieur Jaime Raimundô. Agora com melhor entendimento do que se passara até o momento, fica fácil entender que o escrito em francês que citamos Dossiê Monlevade 43 anteriormente, na página 22, fora feito pelo próprio Bernard! Na realidade, fragmento de folha de diário de viagem, pois manter um desses era hábito de europeus que viajavam por terras sul-americanas e que, quando não pela escrita, faziam anotações de suas andanças por meio de gravuras. Assim fizeram Vicente Yañez Pinzón, quando viajou pela vez primeira pelo Amazonas, Stefan Zweig, e até mesmo Wied-Neuwied que, por meio de gravuras de terceiros, andou desenhando o cotidiano de índios Puri. Aliás, em especial, disso sabia o rapaz, alguns moradores dessa cidade descendem desses silvícolas. Dado o imprevisto, Bernard fora aconselhado por funcionário do hotel a adquirir roupas e utilidades pessoais de primeira necessidade no Bazar Monlevade. Era localizado próximo ao hotel e tinha tudo que, de imediato, o estrangeiro pudesse precisar. O atendimento é bom, complementara, e o senhor poderá dar uma esticada nas pernas. A loja é logo ali! Posto a caminho, entendera algo do idiossincrasismo da fala das pessoas da região. O ali não era tão perto assim. Não ficara insatisfeito, afinal sentiu-se feliz imaginando que a mãe estava ao lado conversando futilidades sobre a vida abaixo da linha do Equador. Sentiu falta e o peito apertou-lhe um pouco a respiração. Lembrou-se também do pai, Guillaume, do seu modo educado e afável de ser, de toda a gentileza com que circulava entre amigos apreciadores de bom vinho. Pedira ao filho que trouxesse detalhes sobre um brasileiro de marca Miolo, dizem que de boa cepa, comentara! A figura e o pedido inusitado do pai fizeram-lhe sorrir enquanto caminhava. A vida é bela! Convocado por balconista, o proprietário do Bazar aproximou-se de Bernard. – Seu Jaime, há um rapaz simpático solicitando atendimento. Parece-me querer comprar guarda-roupa completo. Acho que é alemão! – Pode cuidar de outro cliente, senhor caixeiro, estou habituado a tratar com os gringos da Belgo-Mineira. Isso esclarecido, cumprimentou o recém-chegado estendendo-lhe a mão. Na verdade gostaria que outro o atendesse, não conseguia tirar da 44 Jairo Martins de Souza cabeça o assunto que tivera com o Gerente da paulicéia – sim, a esposa concordara com a idéia, mas... Tudo ocorrera a bom termo. Três dos filhos menores do comerciante levariam as mercadorias adquiridas pelo rapaz até o quarto de hotel. Gratificado pela cortesia com que fora recebido, Bernard até mesmo exagerara nas compras. Mesmo a altura privilegiada de 1,83 m, incomum para os padrões monlevadenses daqueles dias, não fora empecilho para encontrar calças e camisas que bem se ajustassem ao seu elegante perfil. Um par delas ser-lhe-ia entregue no dia seguinte. A despeito de toda a sua boa vontade, a costureira não daria conta de todos os ajustes. Na verdade, não se limitaram a assunto de compras. O tipo físico do comerciante brasileiro agradara ao jovem, algo do seu porte lembrava-lhe o pai. No cardápio da conversa, incluiu comentários sobre a comida e bebida consumidas no seu país. Esse tema agradou a ambos, e a troca de informações, à parte de alguma dificuldade lingüística, caminhou suave como o passar de mãos que alisam um taco de sinuca lubrificado com giz de boa procedência. Soube sobre a qualidade da cachaça mineira, tinha falado dos vinhedos do pai, e fora aconselhado a visitar o Bar Central. Lá, diz o comerciante, um meu parente possui barrica de caninha temperada com jabuticaba. O jovem não entendera bem o tipo de fruto, teve a idéia de uvas, mas prometera experimentar. Outro dia, dissera. Outro dia. Dossiê Monlevade 45 Capítulo 6 A mala perdida de Bernard. O reencontro com o comerciante C inco dias após chegada de Bern a Monlevade, finalmente a mala de roupas fora entregue no Hotel Cassino. Equivocadamente. Com rápida passada de olhos, entendera o porquê. Tinha as mesmas características que relatara no seu baggage report complaint ou boletim de perda de bagagem, conforme escrito nas instruções da papelada. Mesma marca, Samsonite. Mesma cor. No entanto em nome de certo Bernardo Gui! Ato contínuo, comunicara à empresa de aviação para que a recolhesse de volta, dizia aguardar a verdadeira mala, ou indenização, de acordo com as regras vigentes. O tempo – por esquecimento não estivemos mencionando esse importante fator – estivera mantendo-se firme e, dessa forma, auxiliando sobremaneira as andanças do rapaz. O mês de abril sucedera tranquilamente às águas de março. Nada de efeito estufa. Bons tempos aqueles em que as estações do ano podiam ser explicadas sem temor de mal entendidos nas escolas. Por sinal, as folhas das árvores iniciavam queda sob a iluminação de tímidas incursões solares. Bernard fora buscar informações na prefeitura, encaminharam-no para o patrimônio histórico da cidade, daí para setor de comunicação da velha siderúrgica Belgo Mineira. Água mais limpa é a bebida mais próxima da fonte, disseram-no. Pelo visto é ditado que as pessoas gostam nestas terras. Por fim, sorriu, concordando e, com tal filosofia brasileira, seguira em frente. A carta chegara-lhe no dia anterior. Por falha do mensageiro do hotel, não lhe fora entregue. A faixa azul e branca com a ins- 46 Jairo Martins de Souza crição par avion identificava proceder da França. Junto ao nome resumido do endereçado, Bernard R. Monlevade, fora grafado a palavra urgent. O boy do hotel, supondo que o hóspede dormia já às 20h, decidira não incomodá-lo. Foi-lhe entregue quando iniciava a rotina de tomar desjejum composto principalmente, entre outros quitutes, de frutas características da região, com as quais imediatamente o jovem aprendera a se deliciar. A Aço Airlines informava, por meio de itinerário inusitado, que tinha depositado valor de 3000 francos na sua conta de Paris. Com isso confirmava que realmente a mala não havia sido extraviada e sim, perdida! O aviso inicialmente tinha sido enviado para a França, justificado pelo endereço de compra do proprietário do bilhete. De lá, fora encaminhado pela mãe. Em folha de papel cor de rosa, anexado à carta, ela lamentava a perda de algumas peças que, com suas próprias mãos, confeccionara em momentos de lazer. Traziam assinadas, como griffe, o amor que dedicava ao filho traduzido por singelo Be, bordado discretamente em cantinho escolhido das peças. Bernard pensou, após alguns minutos de reflexão e abrupta tristeza, vou ter que voltar à loja daquele atencioso senhor. O proprietário está no escritório em reunião com um Gerente de São Paulo, informou-lhe o caixeiro atendente. – Oui. E demora? – Penso que não. Não é de demorar em conversas quando há cliente esperando. Ademais o outro sócio da fábrica de calçados de plástico já saiu faz tempo. Se o senhor francês não se importar, posso eu mesmo iniciar atendimento. Aliás, já certa ocasião iniciei mes premier pas dans le français (a dar meus primeiros passos no estudo do francês). Então, sendo mais objetivo, pergunto, posso ajudá-lo? – Sim, claro. O outro sócio... O leitor também deve ter percebido que o paulista conseguira mais um patrocinador para a sociedade fabril que intentava. O amigo Zé Brás sucumbira facilmente à arguta conversação do empresário. A despeito de sobre isso nada se citar na ata de formação da sociedade, enfim, cada coisa a seu devido tempo. Ça va, distraidamente Bernard assim cumprimentou o proprietário da loja, que vinha, em acelerado passo, a ele se dirigindo. De longe fitaram-se contentes pelo reencontro. Como Dossiê Monlevade 47 vai? O moço corrigiu sua fala, um pouco envergonhado pelo deslize do Ça va inicial. É que o jeito de caminhar daquele senhor lembrava-lhe, já dissemos, pessoas de seu círculo familiar em Guéret. Ora, que prazer, senhor Bernardo! Disse-lhe o comerciante, aportuguesando o nome do rapaz. – Porr favorr, seu Jaime, podes retirar o senhor. Melhor chamar-me somente pelo nome. – Sim, faço isso com mais prazer ainda. Decerto soube que sua mala não mais irá chegar. As notícias aqui, mesmo com o crescimento da cidade, circulam rápido. Não se preocupe, no meu Bazar tenho de tudo. Aliás, pode deixar, senhor balconista, deixe-me prosseguir atendendo pessoalmente esse freguês que, para mim, é especial. Fico feliz que tenhas aqui retornado. Poderias ter ido ao moderno bairro de Carneirinhos. Lá todos os grandes arranha-céus são totalmente informatizados e abrem-se lojas de griffes famosas como se estouram pipocas. Fico feliz que… A simpatia do primeiro encontro evoluiu. Esse senhor é um homem confiável, pensou o jovem advogado francês à medida que a conversa tinha andamento. Esse rapaz é de boa família, é o que o proprietário advogava por meio de sorrisos e gentilezas. Tornaram-se ainda mais chegados. No final, Bern entregou-lhe um reluzente cartão de visitas, retirado de pacote que lhe viera endereçado do Rio de Janeiro: Bernard Raymond Monlevade – Graduado pela Sorbonne – Paris. No canto, discretamente, via-se OAB 96421. Enquanto isso, já de volta ao hotel em que se encontrava alojado há dias, M esfregava as mãos de satisfação. Negociara bem os termos do contrato com o pessoal da cidade. Inclusive que a cobertura das cotas contratuais deveria ser quitada em dinheiro vivo pelos demais. Fizera várias viagens a Rio Piracicaba tomando partido do metrô recentemente inaugurado e que passa integralmente sob leito do Piracicaba. Obra sensacional, planejada simultaneamente à implantação de ilhas e praias artificiais: a administração regional antecipa-se assim a obras futuras que viriam ocorrer nas paradisíacas áreas dos reis árabes de Dubai. O turismo, segmento que, apesar do potencial histórico da cidade, 48 Jairo Martins de Souza era pouquíssimo explorado, tornara-se atividade de grande valor econômico para o município. Por exemplo, o Solar Monlevade, o tímido Cemitério dos Escravos e a memória da antiga Companhia Siderúrgica Mineira são agora atrações celebradas internacionalmente. Nos dias festivos, multiplicava-se a população flutuante. Mas, especificamente, quanto ao metrô que dizíamos, obra equivalente no mundo ocidental, senhores, tem-se somente o túnel que cruza o canal da Mancha. O famoso English Channel. Os trens de alta velocidade que o cruzavam eram, voltamos a dizer do metrô monlevadense, de grande valia para deslocamento do contingente de trabalhadores vindos de todo o país e que, aqui, já se encontravam para atender à recente demanda da indústria petrolífera e outras. Nessas incursões, M estudara todas as variáveis, o planejamento, a programação, a execução, a avaliação, enfim, tudo que poderia vir a afetar a implantação da fábrica monlevadense de calçados à base do ouro negro e, cá está de novo a grande inovação, suco de frutas alimentado por um dos sócios locais. Não se esquecera de incluir análise detalhada de pontos que, aos outros dois sócios, certamente passariam despercebidos. Tomaria partido dessas vantagens. São mineiros crédulos. Parecem-me modelos inconscientes do selvagem de Rousseau, dissera por telefone a um velho amigo de São Paulo. Com essas palavras deve-se tomar em conta que algo estranho fora introduzido nas anotações encontradas no sítio de Rio Piracicaba. Dossiê Monlevade – B 49 Capítulo 7 Mulheres ern, querido! Como vão as coisas aí no Brésil? Espero que você já tenha matado parte de curiosidade que tinhas quanto ao garimpo das coisas do seu bisavô. Seu pai chegou ontem de Guéret e iniciou estudos para revitalização das plantações de uva Carmenère. Agendou encontro com especialistas latianoamericanos. Temos que quebrar lanças, filho! Agora nós, franceses, que mostramos ao mundo como produzir bons vinhos, estamos sendo torpedeados comercialmente pelos Andes chilenos! Ah, mudando de assunto, como é a política por aí? Esse governador aí de Minas, o Juscelino, é mais um fisiologista? Um amigo da embaixada daqui, um brasileiro, disse-me que para ter antipatia desse futuro candidato a presidente, tem-se que ficar a cerca de 20 quilômetros do seu sorriso. No mínimo! Gostou do chiste? Torço por esse povo, Bern. Faz-me lembrar tempo de adolescente em que, surpreendida, li que alguns dos seus índios vieram para cá servir de bufões na corte de Luís XVI... Encontrei-me acidentalmente com a Deneuve, ontem, no Champs Eliseé. Estava linda e perguntou por você. Reparei, olhar de mãe, que seus olhos brilharam de forma diferente. Mas parecia triste de um modo geral. Lembrou-se que tens a gargalhada mais gostosa da Sorbonne. Por fim, quando Bern retorna? Foi o que, de essencial, perguntou-me por meio de frases disfarçadas. Não sou tola quanto ao sentimento que ela claramente cultiva em relação a você, no entanto não soube respondê-la e repasso agradecida a indagação. Quando voltas, Bern? Mamãe sente falta de 50 Jairo Martins de Souza son garçon – sente falta do seu garoto. Beijos (em tempo, querido, parabéns pela aceitação do seu diploma!). Não é que Bern (como a ele chamava a mãe) não sentisse falta de contato com o sexo oposto. Em especial da jovem Deneuve que a mãe mencionara. O fato é que estivera totalmente encantado com tudo que a ele acontecera desde a belíssima visão do Cristo Redentor quando chegara à Baía de Guanabara. A Deneuve tinha razão, encantara a muitas com sua risada que saía espontaneamente de um coração que também sorri. Tinha tido alguns pequenos envolvimentos. Deles já dei breve conhecimento ao leitor: basta que seja rapidamente revisado um dos envelopes passados destes escritos. Não mais sei qual, de cor. Se bem que empurradas por súbita expansão, certas regiões de Monlevade teimavam em se manter inalteradas. Ao que tudo indica, nunca irão mudar. Uma delas é a chamada Vila Tanque. Para tanto, a opção dada aos atuais moradores, alguns nouveaux riches, foi de nada alterar o aspecto externo das velhas edificações. Com isso, a riqueza e a ostentação do petróleo e da siderurgia da região espelhavam-se verdadeiramente nos seus interiores: é verdade que, muitas vezes, várias delas eram interligadas de forma que o conjunto de muitas cabia registro de posse a um único dono e morador. Bern gostara. Na Europa procede-se assim. Foi o que pensou, enquanto passeava a pé pelas ruas estreitas da tal Vila Tanque. Fazia caminhada matinal. Nela, o Sol seguia ameno sua faina diária: parecia respeitar o exercício do rapaz. Não. Não, senhor! Hoje não é dia para se espalhar calor e desconforto! Assim, sem suor que incomode, e com seu porte esguio e elegante, Bern destacava-se, sem fazer disso um privilégio, dentre as pessoas que iam e vinham por aquelas ruas estreitas. Era, sem dúvida alguma, um moço bonito. Não. Não que fosse perfeito. Não dizem os árabes que a beleza reside na imperfeição? É por isso que nos tapetes persas aparecem defeitos de costura. Intencionais! Ah, a propósito – agora se trata de opinião pessoal – toda e qualquer pequena discussão sobre beleza e arte deveria merecer tratado atualizado por parte de gente com a clareza de um Tosltoi. Dossiê Monlevade 51 Afirmo isso sem hesitar, pois recentemente algo tem me incomodado sobre o tema. Assim, não vacilo em escrever que o grande escritor russo seguramente criticaria os extremos a que, nos dias de hoje, o conceito de belo é imposto à nossa sociedade. Por exemplo, uma pinta preta em uma banana não pode condená-la para compra. Uma pequenina mancha em uma calça bonita não pode ter o poder de destruí-la para o uso. Uma minúscula gota de azeite que cai sobre uma blusa não pode ter a força de atirála para a lata de lixo. Uma discreta mancha de vinho em roupa clara… Pequenas celulites nas pernas de mulher não podem ter o poder de destruí-las. A moça já vira Bern conversando com o proprietário do Bazar. Ela e a família eram fregueses habituais. Na ocasião, com olhos e ouvidos atentos de mulher, escutara algo sobre extravio de bagagem no aeroporto internacional de Monlevade. Ah, essa Air Aço… Soubera assim ser o rapaz um francês, não que afirmado literalmente a Jaime Raimundo, mas sim pelo sotaque inconfundível que conhecia bem. Ainda com lembranças recentes do intercâmbio estudantil que fizera naquele país, sabia com certeza não se tratar de um parisiense pela simplicidade, quase ingênua, com que esclarecia outras indagações do seu interlocutor. Ah, que gracinha de garçon (rapaz)! Foi o que, sorrindo, faceira, dissera para a companheira que estava ao lado. Ambas eram filhas de empresários da nova burguesia da cidade que florescia sob os auspícios da British Petroleum, da Petrobrás, da Standard Oil... Contudo, enquanto começo a me dispersar falando sobre empresas de realce na economia mundial, quem assume comando é Marie que, novamente, observa o jovem que passa, e vai passando… Ah, que pena, já passou do seu ângulo de visão. Afoitamente, a mocinha disparou pelas amplas dependências intermediárias da casa, alcançando outra janela de observação. Buscava localizá-lo novamente: assim que o viu já dobrava a esquina. Ele não teve tempo para entender o porquê de um ordinário fiu, fiu que a moça, com dois dedos enganchados na boca, fizera ecoar pelos ares. No entanto, a idéia de Marie era avisar-lhe: de alguma forma vou achá-lo nessa grande Monlevade! 52 Jairo Martins de Souza Não demorou! Decidida, passou a freqüentar o Bazar mais amiúde. Soubera por terceiros que o jovem francês eventualmente por lá aparecia. O informante dissera que Bern fazia gosto em trocar algumas idéias com o proprietário. Sua conversa simples e seus causos, contados com estilo inerente aos mineiros, agradavam-lhe e faziam-lhe feliz. Bern, por sua vez, dava-lhe de troco suas risadas e seu bom humor: percebia que levava vida nova ao dia-a-dia e à rotina do amigo Jaime Raimundo. Assim ela o viu caminhando na Rua da Favela. Reparara que vestia camisa de mangas curtas. O tecido, aparentemente leve, simulava pele de onça pintada: fora cortesia de Jaime Raimundo quando com ele estivera na primeira oportunidade. Carregava sobre os ombros uma japona azul e parecia ter direção certa do Bazar… – Sim, sou nova balconista, vous voulez… (você quer) que o atenda, dissera sorridente. Fizera a graça de forma muito feminina, e antecipara-se a outras atendentes que, ansiosas, já corriam para cortejar o rapaz. Dossiê Monlevade 53 Capítulo 8 Fica assim fundada a Verlon Fruit Shoe – a primeira fábrica de calçados multi-frutados do mundo A reunião da sociedade estava quase nos seus últimos estertores. Então fico responsável legal até o limite das cotas que aqui subscrevo? – Sim, M respondeu prontamente ao Brás, que soubera antecipadamente adepto ao kardecismo. – Sendo assim, amigo Gerente, assino esse contrato societário sem nenhuma outra questão, pois, já ontem, estive consultando, e obtive aprovação de alguns amigos desencarnados. A própria presença do proprietário do Bazar Monlevade, como outro sócio, disseram-me, mostra, em termos práticos, a seriedade do empreendimento. Se bem que, confesso, estranharam um pouco o cerne do produto. Sapato de plástico? Exclusivamente frutado? Fosse produto destinado à crianças entenderiam melhor, enfim, estão em outro mundo. – Ora, sócio, quem respondeu-lhe foi M, algumas dessas almas penadas são do tempo que aqui se chamava Arraial do São Miguel. Não conseguem, pobres coitados, absorver o dinamismo com que, hoje, a grande Monlevade está possuída. – E você? Agora M dirigia-se a Jaime Raimundo. – Sou evangélico, senhor Gerente, orei também ontem com os joelhos dobrados e apoiados sobre sementes de milho e bagos de feijão. Buscava, pela dor, identificar-me com um mínimo que padeceu Nosso Senhor. De fato naquele momento queria ser tomado como seu filho. Sequer sou crente Maranata, mas a luz dos anjos que me orientaram, disse-me que teria alguns proble- 54 Jairo Martins de Souza mas, contudo, asseverando, aprende-se muito mais no sacrifício do que no privilégio. Mais no escuro do que no claro do centro do Sol. Com tal parecer, resta-me apenas assinar perguntando o que ainda se encontra em aberto. Pergunto então, quem deverá ser o diretor que tocará com maior responsabilidade e trabalho o dia-a-dia da nossa fábrica? – Sou candidato e não abro mão! Disse-lhe M, mas dirigindo olhar significativo para o segundo sócio. – Estás eleito, responderam-lhe os dois amigos. Entenderam o que o Gerente queria. Ademais tinham outras obrigações com seus próprios comércios. Agradeço a confiança em mim depositada! Foi frase única com que o Gerente paulista imediatamente retrucou com olhar ligeiramente aborrecido. Estranhamente, permaneceu nesse estado, parece-me que observando algo escrito em certa lauda do contrato já aceito pelos sócios. É claro, ainda por ser assinado, ser levado ao cartório, por fim, ainda carente de algumas formalidades legais. Uma frase solitária, anotada pelo próprio, esclarece o estado de espírito do qual M fora acometido. O preciso de outro diretor gerente aparece no canto de folha já velha de cópia do contrato original, catalogada com o número xyz. Detalhe tolo, exigências do Direito Civil, mas a lei do tal contrato que curiosamente releio, proibia-lhe tocar as finanças da Verlon sozinho! Os outros dois sócios entreolharam-se. Cara. Coroa. Brás já dissera ao amigo que, no mundo, cada um deve salvar-se por si mesmo, aprimorando-se em seguidas vidas e mortes. A teoria da reencarnação em que acreditava. O martírio de Jesus, dizia, não é suficiente para pagar conhecido pecado mortal… No final, definiu-se que o proprietário do Bazar seria o outro sócio-gerente. Nada que se referisse à Verlon Fruit Shoe poderia ser concretizado sem sua vista e assinatura. Fim da reunião. Nada anotado, tudo decidido. Negócio a fio de bigode. Ainda amanhã encaminho o que tratamos para a Junta Comercial. M ficara animado e avisara que iria a bancos, visitaria clientes em potencial, sairia à caça de lucros que, certamente, dissera, não demorariam a vir. Dossiê Monlevade 55 Projeto, construção civil e por aí vai, tudo sucedia de acordo com modernas técnicas de planejamento. M mostrava toda a sua capacidade paulista de desembolso. Outdoors gigantescos assombravam a cidade desde o aeroporto até as mais remotas ruas e avenidas. Documentários televisivos exibiam passo a passo o andamento das obras e adequações no sítio do Córrego de São Benedito. Caminhe com as estrelas! Use sandálias da Verlon Fruit Shoe. Cheiro de homem, limão; de mulher, jabuticaba... Dossiê Monlevade E 57 Capítulo 9 Onde se diz da inauguração stoque não é o nosso negócio! Foram as primeiras palavras que M proferiu logo de início no discurso inaugural da Fruit Shoe. Estavam presentes o presidente da República, o governador, o prefeito, vereadores, convidados, sindicalistas e funcionários. Na segunda fila os dois outros sócios entreolharam-se sorridentes. O homem é um empreendedor! Apoiado por essas e aquelas palavras de impacto, M prosseguiu sua fala dizendo que o sistema fabril da Shoe funcionaria por bateladas. Como uma máquina de lavar, explicou. Colocam-se roupas, o sabão, o amaciante, a água. Deixa-se de molho, bate-se a roupa… Assim funcionará nossa indústria, desde a eliminação de formigas, a coleta dos frutos… a chegada dos fenóis… a mistura com os sumos colhidos na chácara, a extrusão... Pronto! Daí os revolucionários calçados seguem para todo mercado mundial. Isso não aconteceu com as ordinárias havaianas? Para tanto, acordos e estudos de logística já foram firmados com a divisão cargo da Aço Airlines. É claro, tendo como base de sustentação o capital humano da Fruit a ser treinado eficazmente com técnicas especiais de decisão. Por exemplo, com a prática do arvorismo nos andes chilenos… Ponho-me a favor de ajuda a países como a Bolívia de Morales, aplausos, mas não a ideário de revolução bolivariana! Na realidade, tudo que exponho aqui, fragmentado, resume o que M concluiu sob aplausos entusiasmados da platéia presente ao auditório do centro ecológico que o arquiteto não esquecera de localizar bem no meio de árvores frutíferas e ornamentais. Seguiu-se coquetel com exibição de filme institucional e apresenta- 58 Jairo Martins de Souza ção em Power Point, ambas recheadas de insinuações e gráficos em formato de pizza. Sim, a Fruit Shoe preocupa-se mais com o meio-ambiente do que consigo mesma. Com isso quer se integrar ao programa mundial, obter créditos de carbono, enfim, a economia mundial deve continuar se desenvolvendo, mas mantendo-se fiel não somente ao protocolo de Kyoto, aplausos, como também a outros mais que seguramente estão por vir. JK, o governador, levantou-se e cumpriu o papel que todo político faz. Mentiu deslavadamente. Chamou M de amigo. Disse poder chamá-lo assim porque dele se lembrava em encontros realizados em Monlevade, aplausos, e em capitais do Mercosul e Europa, mais aplausos, e assim foi seguindo e falando muito mais do que o esperado. Não foi tudo. Na seqüência falou o chefe do serviço médico, o engenheiro gerente da manutenção, o padre... o sindicalista... o general. Todos exageraram nos discursos, enaltecendo, com superlativos e metáforas, o excepcional progresso do país e a grandeza portentosa do faraônico governador. No fundo, sua mão firme resolveria qualquer situação. Já se levantando, Jaime Raimundo sussurrou algo para o Brás. Brás, M não cuidou adequadamente do protocolo do evento: faltou falar quem vai fazer a capina do pomar da Verlon Fruit Shoe. Faltou o homem do roçado, Brás. Ele, com sua enxada, é quem de fato vai carregar a base da Verlon nas costas! Ainda não fora realmente encerrada a solenidade, pois, na saída, o burburinho da educada audiência abruptamente cessou. Alguém, ansiosamente, tomando posse de microfone, pedira silêncio, chiiiiii… Senhoras e senhores, ouçam, há fecho de ouro para essa celebração! Ouçâmo-lo. Não ao homem! Mas a belíssimo passarinho que, pousado no caixilho de uma das janelas envidraçadas que davam para o esplendor da natureza do tal sítio, cantava repetidamente estrofes do hino nacional. Um raro curió cantador! O proprietário orgulhoso informa que é morador da Vila Tanque e seu pássaro não está ali para venda. Não tem preço. É de estimação. Essa segunda conferência foi ainda melhor que a primeira, exclamou uma emocionada expectadora que não parava de pedir bis!, bis! Dossiê Monlevade 59 Capítulo 10 Há algo de estranho no reino da Dinamarca. M engendra planos. Onde se diz do doc x A migo, relatar o conteúdo de um dossiê não é tarefa difícil para quem escreve: principalmente quando se tem em mãos documentos confiáveis como os que tenho analisado. Façamos contas. Gosto de fazê-las ainda que por mero exercício de aritmética simples: mania de engenheiro. E de escritor. Todos, se não fazem, pensam fazer o mesmo antes de iniciar um livro! Então, se escrevo uma página por dia, em um mês comercial, tenho 30. Em 12, tenho 360. Arredondando, em um simples ano (agora de acordo com o velho ajuste de calendário proposto por Gregório XIII), tenho 365 delas. Pronto. Tenho um livro como esse Dossiê que tem menos que isso. A idade para começar? Não se incomode. Quando iniciei meu primeiro, tinha 57. Que isso sirva de incentivo para quem pensa em escrever um deles. Mais ainda para quem já tem filhos e que, por acaso, tenha plantado uma árvore. É o meu caso! São Paulo, julho de 1952. Não sou afetado por problemas psicológicos de nenhuma natureza, senhor Diretor, disse M ao Presidente de empréstimos do Banco de la Nación. – Percebo e não se aborreça com isso. Tens em mim um companheiro. Na verdade, com dinheiro sobrando no mercado, tenho liberado empréstimo a quem precisa, sem maiores questionamentos. Com JK à frente, ninguém segura as Geraes. Nem mesmo verifico a ficha modelo 18, o certificado de situação militar, se votou na última eleição, ou se o solicitante tem prontuário cadastrado no DOPS. Além do que, vejo o seu negócio, senhor M, como de grande visão empresarial, de futuro… 60 Jairo Martins de Souza – É verdade, Diretor, a fórmula do Fruit Shoe pode valer a minha fábrica a peso de ouro puro do forte Knox. – Sim, M, tudo isso é muito bom… para você e para mim, foi o que maliciosamente acrescentou o homem que gerenciava andamento de dinheiro coletado em impostos e contribuições. No entanto, há pequeno contratempo legal. Repare que, para liberação de linha de crédito, preciso do de acordo do tal Raimundo de Monlevade que aqui é citado nos termos contratuais. – Não é que tenha me esquecido dessa formalidade, Diretor. Juro pelo sangue de Jesus que o homem anda muito ocupado com os insumos frutíferos da Shoe. Também não é de dar importância a tais detalhes da estrutura da empresa. Não é de fato empresário, e sim, bom capataz para tocar os trabalhos de base. Não tenho dúvidas que, a despeito de absurdo legal, baseado em minha ambição pessoal, devo assinar por mim e por ele. Na Fruit posso parodiar Luís XIV e dizer que lá o reino sou eu. Não se amofine. Lá valho por dois. Lá valho por todos. Estamos cá discutindo vultoso cabedal, prosseguiu M, ligeiramente transtornado, e ele lá a jogar formicida na nossa chácara, é claro, posso ofertar-lhe garantias adicionais. – Carta de Fiança bancária? Agora quem diz é o diretor avançando o dorso do corpo ligeiramente na direção do interlocutor. – Melhor ainda, promissória registrada em cartório e por mim mesmo assinada. – Não vale muito, M. Isso também não se permite no contrato firmado com a junta comercial, as leis civis, os outros sócios, as esposas, os filhos, o mundo jurídico e os outros prejudicados que sei existir. Bem, sinto passar da hora de tomar riscos, pensou M (curiosamente lembrando-se do sucesso de Elvis Presley que gostava de ouvir em sua radiola Telefunken, o it´s now or never. Não era bom em inglês, mas soubera significar algo como é agora ou nunca). Por fim, com os acordes e a voz do rei do rock ainda ecoando na cabeça, – e ainda não sabendo exatamente se estava colocando a carruagem na frente dos bois –, terminou por arrematar irrefletidamente ao banqueiro: sim. Entendo bem. Mas se essa Dossiê Monlevade 61 promissória não lhe serve do jeito que lhe oferto, que tal remessa de dólares para conta de algum seu preposto? Avermelhou-se. O motivo? Teve dúvidas se fora bem entendido. Então um tanto quanto embaralhado, nem mesmo deu tempo de resposta ao interlocutor e, sem perceber, prosseguiu falando como se estivesse mantendo conversação telefônica. O outro permanecia calado, porém atento a todos os movimentos corporais do empresário. Essa estratégia funciona bem tanto para corruptos, quanto para os corruptores. M fazia o mesmo e deu continuidade ao seu trabalho nefasto. Aliás, senhor Diretor de banco, tenho consciência que não tens chácara e funcionários como a Fruit Shoe tem, mas, sem ofensa, posso substituir o termo preposto que anteriormente sugeri por laranja? Digo assim, direto, para que tudo fique bem claro, enfim, antes que respondas, adianto que se trata de breve correlação com nossa indústria. Questão de coerência. Nossos produtos, como sabes, são frutados. – Ah, sim, finalmente falaste a língua aqui praticada desde a fundação deste banco por Mauá, disse, satisfeito, o Superintendente da instituição. Ah, também sou adepto do evangelismo de resultados. Fiquei sensibilizado com o juramento sobre a bíblia e com o pagamento ofertado que aceitei, mas isso não dispensa a promissória a qual me referi. Faz parte do ritual. Não lhe trará aflição, servirá apenas como necessário enfeite à tramitação que farei o mais rápido possível. Para tanto, amigo M, preciso impreterivelmente de um outro signatário para a promissória. – Pedirei ao meu gerente de entulhos que comigo a subscreva, senhor presidente. Com esse negócio fechado a quatro paredes, agradeço-lhe, e não se preocupe. O perfil do empréstimo é curto. Não deverá trazer inquietação. Estou seguro que deves estar contando com o pessoal de Monlevade! Em tempo, faço reparo (sucinto) em relação ao que escrevi no limiar desse capítulo. Não. A arte da escrita não é tão fácil como disse. Há complicadores. Por exemplo, nos escritos do cofre consta que o conjunto de papéis da liberação de crédito do de La Nación para M (do qual acabamos de assistir negociação), passa 62 Jairo Martins de Souza a ser chamado de doc x. Por que x? Como não esclarecido, é pergunta que me arrisco a responder. Aí que está! Na álgebra que o muçulmano Averrois espalhou pelo mundo, x é letra que designa o desconhecido. O das equações de primeiro grau. Estão lembrados dos tempos idos do ginásio? Bem, assim como ocorreu com a chave e o segredo do cofre, o importante é que fica clara a idéia que o acordo nunca poderia vir a público! Dossiê Monlevade J 63 Capítulo 11 Monlevade, cidade de sonhos á de volta a São Paulo por dois dias, e a estada de M em Monlevade ainda parecia-lhe um sonho. O vôo da Aço atrasara quando de escala inesperada em Belo Horizonte: segundo a companhia houve algum problema com o Airbus A 380. Portanto, chegara ao Rio uma hora mais tarde do que havia planejado. Perdera a conexão para São Paulo, e teve que esperar mais três horas na cidade, mas tudo foi ok. Por dentro, agradecia toda generosidade e delicadeza que o público teve com a sua pessoa; graças a tudo isso sua estada em Minas fora única. Na ocasião, sacara algumas fotos, gostava das máquinas old style. Nada de digitalizações. Com satisfação constatara que ficaram excelentes, principalmente nas que figurava na parte central do tablado, chefiando o painel comemorativo da inauguração da Fruit. Lamentava a ausência da mulher. Ela, ao vê-las, mostrouse insatisfeita por não ter lá estado. Talvez outra ocasião, dissera não muito à vontade. Julgou os demais sócios de forma positiva, a despeito de ambos terem aspecto um tanto quanto inocente. A conclusão fora, sem nenhuma margem de erro, bastante apropriada. O fato era absolutamente verdadeiro. Estivera pensando muito sobre eles desde que retornara para alguns dias de recreação na paulicéia. Dias produtivos. No primeiro deles fizera acordo de sonhos com o diretor do banco De La Nación. No segundo, passeara pela manhã com a família no Simba Safári; à tarde, fora ao Pacaembu ver o Santos de Pelé contra o Palmeiras de Leivinha e Ademir da Guia; à noite, complementara o dia acompanhando a mulher a luxuoso jantar de 64 Jairo Martins de Souza gala no conceituado Famiglia Mancini. Enfim, voltando ao assunto sócios, M os tinha como bastante diferentes. O dono do Bazar era um pouco mais novo e mais ativo. No entanto, era considerado, estou dizendo sob o ponto de vista de M, facilmente maleável. A despeito disso, o que não podia era avaliar se o homem usava Quina Petróleo ou brilhantina Coty nos cabelos. M era curioso quanto a esse tipo de futilidade. O fato é que os cabelos do comerciante estavam sempre bem penteados. Sujeito sensível. Não era difícil de constatar que, ao participar de velórios, ciente de que facilmente sucumbia ao choro, procurava manter-se discretamente afastado dos parentes do morto. Por outro lado, o Zé Brás, como dissemos, com diferença de idade pouco significativa, era osso mais duro de roer. Contrariava aforismo que M gostava de lembrar: mesmos homens; mesmas gerações. Não se preocupava com a morte: estamos aqui somente de passagem, o Brás dizia, nossa residência fixa está ainda por vir. No dia-a-dia usava roupa de casemira e chapéu Ramenzoni. Sujeito conservador. Daí preocupação que assombrava o imaginário de M. Aquele senhor manifestava-se pouco. M não gostava de gente assim, teria que mantê-lo mais afastado do lado financeiro da Fruit. Pode ser que fosse um daqueles que não se abrem, porque sabem exatamente o que querem. Daqueles, o Gerente refletiu, que pensam e quando chegam a uma decisão, chegam-na explosivamente sem consultar ninguém. Esse ninguém poderia ser ele mesmo, M, o único e verdadeiro idealizador e diretor da sociedade, foi o que, aborrecido, entendeu. Quanto a essa nefasta possibilidade, o que poderia fazer? Decerto poderia ser proativo, antecipando-se a qualquer preocupação que pudesse estar assomando na cabeça do Brás. Tenho mais é que pensar o modo de lidar com isso… Outro ponto é que pensava Monlevade somente como uma versão menos barulhenta de São Paulo e do Rio de Janeiro. Constatara ser muito mais que isso. Graças a Deus, iria morar em lugar bastante espalhado às margens tranqüilas do Piracicaba, e com índice de criminalidade baixíssimo. Há algo de mágico naquela cidade. Não espero a hora de voltar! Dossiê Monlevade 65 Capítulo 12 Bern informa à irmã que pretende ficar um pouco mais que o previsto no Brésil P aris, 28.08.51. Mon cher Bern, je rencontrais… encontrei-me com sua mãe… Os anos da escola se passaram, mas, infantilmente, ao dizer de você, retrocedo até antes daquele tempo feliz. De fato sinto-me quase um bebê quando me recordo do seu riso espalhado e incontido. Podes imaginar, Bern, a alegria desses pequeninos quando alguém querido, brincando, ameaça-lhe fazer cócegas no corpo? Ou então, vá lá, dando-lhe colher de comida imitando os movimentos de um aviãozinho. É assim que me sinto agora! Quanta felicidade você já trouxe para tantos outros com tal ato de genuíno amor! És contagiante. Traz-me sentimento tão puro que, pensando nisso, chego a chorar de satisfação. Continuas assim aí no Brésil? Com a alma leve, escrevo-lhe… encontrei-me recentemente com Liviah quando de passagem por Guéret… Por fim, quando retornas é a pergunta que fiz à sua mãe. Quando retornas é a pergunta que faço para você! De sua, K. Deneuve. PS: seu bisavô é mesmo importante aí? Sim. Na falta imediata do jovem advogado, sou eu, o copista destas notas, quem responde à garota francesa. Por motivo simples. A dita carta fora amorosamente escrita de próprio punho pela moça e sujeita à morosidade dos Correios e Telégrafos. Oui, mademoiselle Deneuve, Bern aqui continua do jeito que afirmaste antes de perguntar! Foi o que reparou a bela jovem que o observara caminhando, em capítulo anterior, pelas ruas do bairro burguês da Vila Tanque. Acometeu-lhe novamente rápido frio no estômago e brusca 66 Jairo Martins de Souza aceleração do batimento do músculo cardíaco. Ah, o amor! Um belíssimo sorriso aflorou-lhe no rosto. Instantaneamente sabia ter sido alvejada com flechada dupla de Eros e Cupido. No intercâmbio que fizera em Paris, estudara povos antigos e aprendera que esses dois bebês doidinhos, um grego, o outro romano, no fundo dão fundamento às mesmas coisas: a paixão, o amor, o namoro, o casamento, filhos… Com isso lembrara trecho de livro recente, o qual havia comprado. Um memorial. Por acaso. Alguns exemplares padeciam esquecidos em canto de estante aguardando catalogação. Mas Marie era uma ratazana de livraria e descobrira-lhes durante ronda pelas bibliotecas de Monlevade. A moça não estudara literatura, mas amava ler. Aliás, disseram-lhe certa ocasião que quem ama a arte não a estuda. Simplesmente a usufrui. Passara os olhos pela obra. Capa e contracapa bonitas. Sentira atração imediata. Folheara algumas de suas páginas: miolo de papel reciclado. Bom! Sinal de compromisso com o meio-ambiente. Cheirou-as. Queijo de qualidade… Dizia algo sobre a Vila Tanque e sobre a cultura local. No fundo, um livro de família. Ah, aí é que entra todo o interesse da moça. Família. A moça devaneia. Ela, como toda mulher, – destino da criação –, sonha em formar sua própria. Por fim, os minutos passavam e a jovem prosseguia sorrindo com suas idéias sem pé nem cabeça. Todas lembravam-lhe Bern! Então ainda sonhando acordada, lembrou-se das gentilezas por ele demonstradas quando estiveram juntos no Bazar. Inteligente, aprendera ser bom olhar para a floresta e não para a árvore, percebera que teria que agir com cautela. Lembrou angustiada que o advogado provocava muitos olhares. Lá mesmo decidiu-se: vou tomar atitude de mulher! Logo na entrada do restaurante do Hotel Cassino, vira o jovem que, como de costume, vestia traje social completo. Paletó azul. Corte italiano. Risca de giz. Camisa branca. Gravata vermelha. Sapato Samello. Quanta elegância! Repara, mantém tal postura até mesmo ao levar à boca a xícara de café que, com a manhã fria, ardia vapor à vista remota. Trata-se mesmo de um legítimo Monlevadê, disse feliz para si mesma. Dossiê Monlevade 67 Lembra-se de mim? – Sim, claro, você é Marie, Mariah, a moça da Vila Tanquê! – Sim, sou Maria… Pois é, estava passando pela porta do hotel e… Ela conseguiu! Inclusive, com isso, provocar nosso retorno à Vila Tanque onde podemos observar Bern caminhando distraído. Soubera que a sua antiga urbanização fora tombada em nome da memória local. Assim, as ruas diametrais do círculo ovalado da Rua do Contorno não haviam sofrido alterações desde sua construção. Extremamente estreitas e impossíveis de estacionar. Como as de alguns quarteirões do centro da velha Paris. É o porquê de Bern ser pego caminhando e assobiando ton meilleur ami! Da Françoise Hardy. A entrada da noite trazia para a vila não somente o frescor do clima daquelas montanhas, como também – o que não era incomum – a presença de um estrangeiro que anseia pelos olhos de uma monlevadense. Seu automóvel fora estacionado bem longe da entrada da casa de Marie, de quem agora sabia endereço (a moça atendera ao pedido de Bern. Já no primeiro encontro, no Bazar, rogara chamá-la Marie. Como em francês, dissera!). Estava feliz! Sempre sonhara ter um confortável Chevrolet Bel Air. Conseguira um modelo 50 a preço de ocasião. Novíssimo! O primeiro proprietário, impaciente, não conseguira acertar com o governo a indispensável guia de importação! Marie iria adorar. Marie! Um sorriso diferente do que a Deneuve lembrara, em carta recente, explodiu-lhe por dentro de forma incontida. A sombra da francesinha passou-lhe de longe em lugar recôndito da consciência. Avermelhou-se. Com isso reconhecera que estava procedendo como um tolo por rua desconhecida, mal conhece o lugar, buscando a casa de une jeunesse, a quem batizara de Marie. Maria. Ah, algo está ocorrendo comigo. E se mamãe e Liviah vissem-me assim? Um ligeiro e não sabido mal estar causou-lhe arrepios. Ufa, ainda bem, privilégio da idade, foi-se como veio. Não durou um piscar de olhos. Consciente disso, o jovem novamente tornou-se feliz e abriu largo sorriso. Solitário. Ah, pensou, prosseguisse assim por mais alguns segundos, poderia ser confundido com o Dilsinho doido. 68 Jairo Martins de Souza Explico. Bern havia lido algo sobre certo morador local de nome Dilsinho doido em capítulo de memorial escrito por monlevadense que passara infância naquela vizinhança. Coincidentemente, o mesmo que Marie, há poucas linhas acima, lembrou ter lido e que, a ela, fizera sonhar futura família. Com Bern naturalmente. Aliás, não somente essa obra. Bern lera também, antes de aqui estar, muitas outras fontes sobre a formação da cidade que o bisavô havia fundado. Como quase todos os europeus, prezava memórias de tempo passado e subscrevera, já em Monlevade, abaixo-assinado sobre tema importante coletado na porta do Hotel Cassino. O objetivo era sensibilizar os legisladores locais a aprovar projeto popular de fazer praças e memoriais homenageando valores alienados da cidade. Entre eles a Sá Luzia, outra cabeça-varrida; o próprio Dilsinho doido e, expliquem-nos, senhores vereadores, como poderia ficar de lado o burro do Geo? Aliás, esse último, em particular, aparece antecipadamente distinguido, em capítulo extra, da papelada deste dossiê. O motivo? Todo monlevadense sabe. Mas não custa repetir. Ele é figura símbolo do esforço da gente briosa dessas terras. Contudo é naquele estado de espírito que Marie o vira chegando, e já o aguardava ansiosa defronte do portão de casa. Seus belos cabelos, como sempre, estavam graciosamente penteados com os dotes da casa. Tinha característica não muito freqüente nas mulheres de hoje: era feminina! Das que a própria natureza prepara de forma permanente para as lides do amor. Das que pouco precisam fazer diante de penteadeiras de quarto. Das raras que… – Ça va? (como vai?), disse com ar de criança travessa para o jovem que se aproxima. – Ça va, Marie. E então, preparada para o Piracicaba Spring Floating Restaurant? João Monlevade, 01.9.51. Chère Liviah. Nada que aqui escrever deve ser repassado para mamãe. Não quero que ela se sinta de saia justa, caso venha a encontrar a Deneuve. Você sabe, Liviah, nunca fui de fingir. Escrevo apressadamente, pois estou Dossiê Monlevade 69 de saída para rendez-vous com uma garota aqui de Monlevade. Encantadora! No entanto sinto-me como um ator. Sinto-me como um daqueles antigos de barriga e braços flácidos que faziam papel de trabalho duro de um ferreiro. Uma pessoa que exala mentira. Até ontem estava bem e feliz. Mudou desde então. Tudo porque recebi a carta da Deneuve e não me disponho a respondê-la. Use a sua intuição feminina e diga-me como escrever a ela, explicando com jeitinho que gosto dela sim… mas apenas como uma querida amiga. Bises pour toi (beijos para você). Bern. PS. Deves ter percebido que devo ficar um pouco mais no Brésil! Isto podes dizer a mamãe, e a papai, é claro, pessoalmente, quando voltares a Guéret. Dossiê Monlevade 71 Capítulo 13 M diz publicamente querer morar definitivamente em Monlevade. T emos mais um sócio, Jaime, é o Brás quem diz olhando resignado para o amigo. M voltou acompanhado de São Paulo relatando que o homem é parente próximo. Sendo assim, informou, é automaticamente guindado àquela posição na estrutura da Fruit. Já assinei a papelada, trouxe-a comigo. Agora é a sua vez. – Dê-me cá! Apreciando o tráfego de aviões que intensamente ocupavam o espaço aéreo de Monlevade, M, e o parente, já cruzavam as proximidades do luxuoso bairro de Graal. Retornava entusiasmado da paulicéia. Fizera várias aquisições e, mesmo de férias, já tinha deixado em aberto canais de negociação para ampliação de outros projetos pessoais. A mulher dera-lhe suporte, dizendo-lhe também não gostar de porta estreita... Que essa fique para os que acreditam na bíblia e na conquista do céu, complementou. A atitude da esposa poupou-lhe desgostos que pressuponha inevitáveis. Bom para ele. Bom para o casal. Foi a razão de ter evoluído com alguns sonhos. Por exemplo, o Pontiac 50 zero quilômetro que negociara juntamente com a liberação dos recursos do Banco de La Nación. Pneus faixa branca. Preto. Cheio de metais decorativos, inclusive as duas tiras do vidro traseiro: the most beautiful thing on wheels, dissera de forma inaudível. Como? A esposa murmurou. M acordou instantaneamente do devaneio de conhecer ao vivo e a cores como vivem os estadunidenses e, ato contínuo, disse-lhe que se tratava da propaganda que as revistas 72 Jairo Martins de Souza americanas fazem desse carro: o que há de mais belo sobre rodas. Nem precisou se desfazer do outro carro. O fleetline. E os outros sócios? Perguntara-lhe a mulher. Como o clima estava amoroso entre os dois, respondeu-lhe recordando novamente a anedota do casal de turistas portugueses, o gambá, e a burla da autoridade aeroportuária da zona franca de Manaus. Por fim, se o leitor não conhecê-la, pergunte a terceiros de sua intimidade. Como na primeira ocasião, por decoro, não a ponho aqui por inteiro. Ambos riram. Quanto a isso não há dúvidas! Enquanto uns riem, outros choram. Por ora, o Gerente é quem prossegue sorrindo: a bíblia guardada no porta-luvas do veículo permanecia aberta em versículo especial. Não se trata logicamente de pista concreta de qual poderia ser sua fé. Nada, por ora, fora definitivamente mencionado nesse sentido. Discutiremos ainda vastamente sobre o tema. Enquanto isso, substitua-lhe, se for do seu gosto, pelo alcorão. Para aquele cavalheiro, daria igual efeito. Que fosse por decoração, o que parece ser mais provável, disso não dá conta, pois joga todos os sentidos quando lentamente passeia pela Graal. Belo carro. Belas casas. Bela rua. É aqui que passarei a morar! Não se sabe se nascera em berço pobre ou se era de sangue azul. Do sócio Jaime Raimundo, já sabemos ser homem nascido de família humilde. A propósito, o leitor deve ter observado que ao longo dessa obra se fala exaustivamente desse senhor. De forma compulsiva (a mim me parece que o autor de algumas destas notas padece de doença da repetição. Não se trata de suspeita leve, pois talvez se trate de patologia similar à descrita por Freud em seus livros de psicanálise). Então, ainda dentro do assunto Jaime Raimundo, vamos em frente esclarecendo que, dentro dos seus quarenta e poucos anos, tinha como método de vida não se assentar na roda de escarnecedores. Fora formado na rotina do trabalho. Adianto que, quando com idade avançada, tornou-se consumidor contumaz de remédios e fármacos: pressuponho por razões ligadas aos seus investimentos na Fruit. Pode ser. O Brás, quem sabe já tenhamos dito, talvez tivesse dez anos mais, desconsiderados os que afirmava ter vivido em outras Dossiê Monlevade 73 encarnações. Já M traz-nos múltiplas dificuldades de avaliação nesse quesito. Confesso que busquei diligentemente essa informação no contrato social da Fruit. Tentativa frustrada! Em tal documento não se cita quão velho é um cidadão. O quarto sócio? Por ora, dado irrelevante. Nem mesmo se sabe se será incluso na história. Conhecida essa nova variável, não sabemos se de valor prático, voltemos à M que continuava deslizando pela Graal. Observava atenciosamente alguma eventual placa de vendo, enquanto explicava ao parente, em detalhes, a cerimônia em que inaugurara a sua Fruit Shoe. Sucesso espetacular. Lembrou-se que, a princípio, pensara em fundar uma igreja. Metaforicamente, dissera que, a exemplo de Jesus, esteve sendo atormentado por 40 dias no deserto de idéias pelo qual passava na ocasião. Declinou. A barca de Pedro, a igreja, navegaria pelo Mar Morto sem a sua contribuição: julgara o mercado por demais disputado. Também não era de decorar versículos e capítulos cheios de parábolas e juízos de valor. A idéia da Verlon caiu-lhe como uma luva feita sob medida quando, oportunamente, ocorreu-lhe que a tudo os japoneses copiavam, colocando-lhe pequeno detalhe diferenciador. No caso, o cheiro frutado. O resto veio por graça divina ou por sua busca sem fé por Santo Expedito a quem, como muitos, julgava o das causas perdidas. Aí, sugere-se fosse católico. O parente a tudo ouvia por educação, fingindo estar atento. Sabia que M, mesmo passando por altos e baixos, achava que sua riqueza nunca se acabaria. Tal como a fênix mitológica, sempre ressurgiria das cinzas. Na verdade fazia o mesmo que o próprio, olhando para as mansões que se sucediam nos mais variados estilos arquitetônicos. Quero também morar nessa vizinhança. Para tanto ambos contavam com o Banco de La Nación! Finalmente, aí percebemos motivo por que o quarto sócio não pode deixar de ser lembrado nessas anotações! Dossiê Monlevade 75 Capítulo 14 Onde se diz muito em poucas linhas. Há segredos entre escritor e leitor. Sombras da inauguração. Uma fantasia chamada Fruit. Fumaça de calote. M e seu castelo na Graal. T al era o propósito dos estrangeiros de São Paulo com os quais se envolveram os negociantes monlevadenses. Que fique aqui isoladamente lançado esse registro que complementa e reforça o que li no final do capítulo próximo passado. Entretanto nem tudo acontece de forma linear nessa vida. Por exemplo, eu e você, por meio desta simples introdução, sabemos, resumidamente, de circunstâncias da vida de terceiros, as quais por justiça e solidariedade, deveriam vir a público, antecipando circunstâncias difíceis para os monlevadenses. É a vantagem de quem escreve e de quem lê. Quanto aos personagens? Estes não contam! Ignoram totalmente sua própria história e seus segredos. Portanto não ficam óbvias as razões de não discuti-los, tornando-as conhecidas para os tais sócios? Então tome lá a minha verdade. Trata-se de economia de espaço e palavras! Não estou aqui para análise. Simplesmente relato. Pois o fato é que a Verlon Fruit Shoe passara rapidamente a ser uma das maiores empregadoras da região do antigo Vale do Aço. Digo antigo, pois agora ponho-lhe a palavra óleo, conforme exaustivamente mencionado na inauguração da empresa pelo Presidente da República, pelos ministros, o Gerente e, indiretamente, o curió cantador. Nesse ponto é bom lembrar que nas anotações sobre a solenidade de inauguração da Verlon não se disse nada sobre discurso do presidente do Brasil. Na ocasião foi desnecessário. 76 Jairo Martins de Souza O homem só fala de política. Está sempre em campanha. Todas essas frases curtas foram encontradas anexas às declarações que se seguem. Dissera, na ocasião, o presidente: estou seguro de que esse país jamais conheceu fábrica com tal envergadura... Aí vale escrever algo absolutamente fora do contexto da documentação em que se baseiam essas notas. (Não disse? Então digo. Sou do signo de escorpião!). O chefe da nação passara alguns anos nas repúblicas estudantis de Ouro Preto. Graduou-se nos ofícios da cachaça. Filho de caudilhos gaúchos, acabou tornando-se sindicalista de carreira. Durante período de treinamento em centro de formação da militância, cortou pequena parte do dedo mindinho (lembra-se de brincadeira que se faz com filhos pequenos? É o que fica ao lado do seu vizinho). Distraíra-se ao usar gillette para acerto de ponta de lápis no momento de assinatura de lista de presença. Aposentado precocemente, rumou definitivamente para o sindicalismo e a presidência. Nessa condição é que fomos encontrá-lo, na presidência, elogiando o dinamismo de M. Na platéia, alguns olhavam-no com admiração. É incrível como é homem tinhoso. Não é preciso bola de cristal. Vai, em futuro breve, terminar seus dias como senador típico da nossa república. Nada de novo, um dos sócios da Verlon comentou, parece uma constante nos sonhos de presidente do Brasil. Em dia de céu escuro e chuva forte, nada em lama vestido com terno de linho branco. Não se suja. Por muito menos que isso, os franceses do século dezoito... ah, deixe-se isso para lá, procurar-se-á, nestes escritos, manter promessa feita por Bern, à sua mãe, em Paris. Não falar de política no Brasil. No entanto, agora, por exemplo, diz da pureza de sua administração, e ergue os braços como faz um pregador do evangelismo de resultados… Um dinheiro para você cá, outro para você acolá. Trezentos e dezoito pastores estão aí, a postos, para coletar impostos e contribuições. Deverá extorquir a nossa Fruit, quem comentou isso foi um outro homem que dirigira a palavra para a esposa. Parecia injuriado. A mulher não lhe dera atenção, pois, absorta, admirava a jóia da esposa de conhecido deputado estadual. O sujeito irritou-se com a mulher. Não lhe bastou a ironia e o sarcasmo com que se referira ao presi- Dossiê Monlevade 77 dente que, nesse exato momento, encerrava discurso sob pesados aplausos da platéia. No entanto não se devem misturar alhos com bugalhos, pois dizíamos que a Verlon tornara-se grande empregadora. Superara a CAF, a Companhia Agrícola Florestal que, antes da presença do óleo e do gás que ora vaza pelos poros da região, era responsável pelo carvão que aquecia o gusa desde os tempos do bisavô de Bernard. A todo o momento chegavam funcionários especializados, principalmente egressos da paulicéia, tanto para a indústria do petróleo, como também para a própria Verlon. Onde, para maior agilidade, nem mesmo eram contratados pelo tradicional setor de recursos humanos – tais consultores deixavam assim de gerenciar o maior tesouro das empresas: os chamados, modernamente, colaboradores. Observadores externos andaram alertando que, com isso, poderiam ocorrer distorções não benéficas para a saúde da empresa. Multiplicavam-se as superintendências, departamentos, divisões, seções e assim por diante. Parecia o próprio governo federal. M assinava contratos de trabalho pelas madrugadas adentro, com isso negociando salários totalmente fora da realidade de mercado. O Setor de finanças protestava de forma ineficaz, pois os burburinhos limitavam-se às paredes onde circulavam preocupados funcionários. Fosse sócio, dizia um deles, dirigir-me-ia a M, questionando sobre tais gastos com parentes e mobiliários incompatíveis com a seriedade de um empreendimento agro-industrial do porte da Verlon. E os outros sócios? Ah, caro leitor, a falta de criatividade é minha, pois cito pela terceira vez a piada do gambá, do casal... Na realidade, aqueles sempre conversavam sobre negócios da Fruit em reuniões secretas na Praça do Mercado e na Rua da Favela. Na primeira, se não disse, digo agora, localizava-se o comércio do adepto de Kardec, na segunda, sabemos, o de Jaime Raimundo. O outro sócio-gerente. Sócio-gerente? Não! Sou somente de fachada, é o que afirmava para o amigo. M faz todas as operações administrativas, comerciais e financeiras por conta e decisão próprias. Inclusive, não tem aceitado opiniões e tem levado a cabo todas as instâncias na distribuição e fabrico dos 78 Jairo Martins de Souza frutados da Verlon. Resumindo, não aceita interferências nem mesmo do parente que trouxera consigo a bordo do Pontiac. Agora mesmo soube, por meio de terceiros, que intenta imediatamente instalar outra nossa fábrica em Cocais. – Cocais? – Sim. Barão de Cocais. Foi-me segredado que já busca sócios de capital e trabalho para introdução de linha extraordinária de cintos e carteiras frutadas no mercado. Amigo, não sei se compartilhas de tal sentimento, mas tenho desconfianças graves daquele senhor. Faltam-me provas. Mas creio tratar-se de uma de suas estratégias. Recruta, como em Monlevade, sócios locais esperançosos no contrato ultra-secreto que diz manter da tecnologia Fruit com a Verlon. Aqueles, como os monlevadenses, buscam alternativas no mercado de Cocais para manter emprego seguro em seu, digamos, próprio negócio. Por exemplo, repara que a parte do trabalho pesado fica conosco. Você no chão de fábrica, e eu, por assim dizer, meto a enxada para prosperar a nossa indústria de frutos. Por final, disseram agora simultaneamente – o texto copiado relata como se fossem locutores de coral que explica andamento de tragédia grega: “na verdade, temos nos descuidado dos nossos negócios pessoais!”. Não. Não é somente essa constatação que deverá trazer angústia àqueles monlevadenses (cujo final do parágrafo anterior procurou dramatizar, explicando por meio de imagem antiga da arte. O responsável por essa parte do dossiê explicou, sucintamente, ter se recordado do clássico A Poderosa Afrodite de Woody Allen). Algo não previsto aconteceu. Um homem de São Paulo, dizem, do Banco de La Nación esteve em certa sexta-feira na Verlon Fruit Shoe. Consternou a todos. Logo na sexta, dia que normalmente antecipa horas de satisfação e recreio. Tinha olhar aborrecido e procurava por M. Alguém ouviu-lhe dizer em voz baixa que se trata de empréstimo não pago. – Algo mais? – Não. A secretária informou-me rapidamente: ele estava se aproximando e poderia desconfiar. Disse ter visto na agenda do próprio. Dossiê Monlevade 79 Na mesma ocasião, a mulher de M, de passagem por Monlevade, dissera-lhe que a casa em que ambicionava morar na cidade era belíssima. Ficava em Graal. A Avenida do Aeroporto impressionou-lhe entusiasticamente. Agradava-lhe o estilo mediterrâneo. Na piscina semi-olímpica, algumas canaletas imitavam discretamente a circulação de águas do fabuloso Alhambra da cidade de Granada. Sorrira, pensando que mesas brancas e sombrinhas protetoras, colocadas ao lado, viriam a calhar para ensolaradas reuniões com amigos. Monlevade, soubera, possui temperaturas cálidas durante o dia e agradável frio noturno. Bom para rodadas de chopp. Bom para vinhos tintos e fondues. – Valor do aluguel? – Insignificante quando se trata de utilização por donos de empresas do porte da Esso, da Petrobrás, Xerox, Microsoft e da Fruit. A mulher concordou, dizendo, é verdade. O marido dera mostras de satisfação por meio de indecifrável sorriso e, para que não pairasse qualquer sinal de dúvida, confirmou a sentença favorável. Fizera sinal de assentimento com a cabeça. – Dê-me o contrato, a mulher disse rapidamente para o corretor de imóveis. Não queria perder o negócio. – Senhor Gerente! – Sim. – A praça de pagamento? – Por favor, diretamente comigo lá na Fruit. – Cheque ou dinheiro? – Dinheiro vivo. – Recibo? – Não. Dispensável. Devo pagar sinal com recurso de caixa 2. – Obrigado. Antecipa o que lhe iria solicitar. Até mais ver! Dossiê Monlevade 81 Capítulo 15 Z Barão de Cocais ilda. Adeílza. Não posso ser interrompido. Nada de transferir ligações. A partir deste momento, estamos em reunião extraordinária da Sociedade Verlon Fruit Shoe. Zé Brás. Brás. Entra. Os demais sócios já estão nos aguardando. Pretendo manter a mesma estrutura societária e a mesma bandeira da Fruit nessa área de Cocais, disse M. Qualquer alteração custar-nos-ia milhares de cruzeiros. Também, prosseguiu – copiando metáfora de gosto presidencial – em time que está ganhando não se mexe. Fico com as diretorias atuais e vocês nas áreas de produção. Lembro mais uma vez que sem o contrato de cessão exclusivo, intransferível e pessoal que tenho com a Verlon, qualquer protesto de vossas senhorias pode levar a Fruit à falência. Outros convidados irão ajudá-los naqueles afazeres, pois buscam garantia de trabalho sol a sol. Sei que ninguém nada ganhou até o momento em termos de dividendos. Mas não é um contrato de trabalho recompensa suficiente? Com isso, disse ponto final e declarou encerrada a pauta que que convocara para discussão em regime de emergência. – Vamos insistir? – Vamos, respondeu Jaime Raimundo. Já colocamos muito aqui e penso ser correto prosseguir com nova visão. Mais cautelosa. – Mas o homem insiste na exclusividade que tem. Não somos nada? – Não. Lembre-se que, na prática, pode até mesmo nos demitir dos cargos e da sociedade. – Disso, não sabia. 82 Jairo Martins de Souza – Pois é. Fique sabendo! – Pois fique sabendo você que anda interferindo também na área de produção. – Não sabias? Sempre foi assim! – Mas agora anda exagerando. Passeia pela fábrica criando novos gastos e investindo em compra de máquinas desnecessárias. Suspeita-se de superfaturamento em contratos celebrados recentemente. – Há como verificar? – Não. As contas são fechadas pelo próprio. – E então? O que faremos? – Nada. O homem não nos dá ouvidos! – Nenhum sócio protesta? – Não. M trata a todos de forma igual. Repara, leitor, a súbita mudança de diagramação no texto. Observe que já analisamos cerca de um terço da documentação e é a vez primeira que, à exceção de uma ou outra carta, ou uma ou outra intromissão de quem relata o texto, adquire tal formato. Assim chamo-lhe atenção. Assim se encontrava escrito! Suspeito, como você, tratar-se de peça chave, pois, além disso, segundo informações dos especialistas, encontrava-se enrolado em formato de papiro em canto à parte. Voltemos ao diálogo acima abruptamente interrompido. Os interlocutores prosseguiam-no, por final especulando sobre alguns aspectos da personalidade do gerente. Em especial, ouçamos o José Brás, que, intrigado, dizia que nunca o vira esbravejar! M fala manso mesmo em momentos de crise. Nada parece afetá-lo. É invisível como onda de voz que transita pelo ar. Uma barata. Ofende e depois lambe. Interessante. O parente e a mulher são iguais. Mesma farinha em sacos diferentes… Foi o que resumidamente disse. Não parou por aí. Faço assim para não cansar o leitor. O Brás insistira em bater na mesma tecla. Não obstante, passo a palavra ao outro que também queria dar sua contribuição. – Você tem razão, Brás. Já o que me intriga é questão religiosa. Você sabe que sou homem que não acredita em anjo da guarda. Dossiê Monlevade 83 No entanto, respeito ilusão de quem nisso tem fé. Aliás, nunca me esqueço que você é um deles… Mas Brás, mais ainda, por influência de criação, acostumei-me a andar com espírito desarmado. – Somos amigos faz tempo, Jaime. Também são assim nossos meninos. Mesmo que ainda gente miúda. Um deles disse-me que, caso fosse autor de dicionário ilustrado, ao lado da palavra amigo, colocaria a nossa foto. Aprendeu isso ouvindo diálogo de artistas de cinema, enfim, há muito sei que você não é de colocar maldade nas coisas. – É, Brás, nem tanto, pois passou-me pela cabeça uma ressalva. No fundo, no fundo, não sou completamente como disse. Por exemplo, gosto de saber sobre a crença religiosa das pessoas com quem lido. Aí que está, Brás. M nunca declarou abertamente a sua. Não sei se você reparou, pois de minha parte, nunca o vi freqüentar nenhuma sociedade cristã. Ah, por sinal, católico ele não pode ser! Deduzi isso quando o vi conversar com o parente sobre ocasião em que estiveram em loja maçônica. – Ah, meu amigo, alguns romanos desrespeitam tal orientação papal. Por razões simples. Uma é falta de conhecimento. Outra é que a igreja não mais excomunga fiel participante da ordem dos pedreiros. Entretanto é falta grave... M pode ser católico, Jaime! Vi-lhe criticar abertamente Lutero por ter cortado sete livros da bíblia de Agostinho. Não reparaste que a esposa usa broches que imitam imagens? – É vaidosa. Pode ser que seja somente como enfeite. – Pode ser. Mas, quanto a M, tenho mais uma situação. Lembra do caso de certo grupo de adventistas do sétimo dia que queriam guardar o sábado na fábrica de sumos? Não queriam ir para turno escalado. M protestou! – Aí que está. Tal quesito pode dar pista de testemunha de Jeová! – Não, meu amigo. Seu comportamento não dá suporte. Além do que, observei que contestou diretor da Palmolive que visitava a nossa nova linha de frutados light. O americano dizia que somente 144.000 eleitos deverão ser salvos no juízo final. M riu! – Mórmon? 84 Jairo Martins de Souza – De jeito nenhum. Disse-me outro dia que Deus não pode ter carne e ossos. Caso contrário estaria dentro dos trajes de um desembargador. – Exército da Salvação? – Sem chance. Não é dos que usam uniformes. Nunca o vi nem mesmo com os da Verlon. Talvez crente Batista? – Não. Desses eu conheço de longe. Tenho alguns familiares convertidos. M nunca deu indicação de algum dia ter sido arrebatado. – Cultua à Imaculada Conceição de Maria? – Não sei. Talvez a mulher, se não for como disse há pouco. Vi-lhe com bonito colar em enterro de funcionário. Pareceu-me um dos cinco terços de um rosário. Sussurrava trechos do sofrimento de Jesus. – Fez o mesmo em procissão a qual vi passar na Vila Tanque. O marido estava ao seu lado de mãos dadas. – Podia estar fingindo. No entanto, se por honra do filho, venera à mãe Imaculada, o homem só pode ser mesmo um dos milhões de apostólicos romanos. – De novo digo pode ser. Você sabe que não sou homem de aposta ou jogo de azar, mas aqui abriria exceção. Sigo conselho do meu falecido pai. Mas, fosse o caso, Jaime, apostaria em outra coisa. Apostaria ser M um daqueles católicos somente de boca para fora… Com o que, subitamente, o próprio M assoma à porta do ambiente e retoma reunião que declarara esgotada. Sentem-se, senhores! Está acompanhado de um bando de pessoas que, aos poucos, são reconhecidos como alguns novos sócios da Fruit de Monlevade Cocais. Todos penetram no ambiente. O último tem atitude de advogado. Veste terno. Feito sossego de tumba sacerdotal, M ergueu o braço esquerdo e cortou o ar com disposição. A seguir rasgou o silêncio dizendo, não tens rezado na minha cartilha, Vossa Senhoria está definitivamente destituído da função de o outro sócio-gerente. Não somente isso! Declaro reduzidas em setenta e cinco por cento a cota de produtos Vulcabrás destinadas ao Bazar. O dedo indicador da mão apontava incisivamente para Jaime Raimundo. Dossiê Monlevade 85 Não no papel, complementou. Fosse assim teria mais desnecessária despesa contábil. Então farás procuração provisória para o faxineiro chefe. Vejo nele grande futuro. Em momento certo esse homem deverá ser promovido a gerente com todos os direitos internacionais. No entanto sei de suas habilidades, podes trabalhar como ferramenteiro. É concessão que faço. Seguiu-se um oh! geral entre os presentes, mas ninguém moveu palha. Reforço positivo. Esse foi o objetivo final dessa reconvocação. Não os retiraria do trabalho por razões vãs. O aprendizado fixa-se por meio de insistência. Diz-se uma vez. Depois de tempos em tempos há que se fazer releituras e atualizações do processo. Então encerro esse encontro de sócios, lembrando que tenho sobre todos aqui presentes total observação e controle. Vocês são os cavalos que fazem andar a minha carruagem. Posso trocá-los sem aviso prévio e contemplação. Obrigado! Dossiê Monlevade 87 Capítulo 16 A família de Marie é antiga na região. Bernard faz palestra na Fruit Shoe. A lguns dos nossos antepassados são franceses. – Franceses? – Sim, do século dezesseis. Vieram com Villegaignon. A princípio para participar da campanha de implantação da França Antártica de Henrique II. Gostaram. Resolveram se instalar no Morro do Cão, o atual Pão de Açúcar (segundo eles, enorme baguete com dois terços de altura enterrados pela águas da Urca carioca), e cá continuamos quase 400 anos depois. Na época, um tanto quanto afastados de tudo, é verdade. Meio escondidos. Na ocasião, Portugal não teve como exibir o testamento de Adão que fora pedido por Henrique. Então usou a força para tentar nos expulsar. Bern ouvia com interesse o que dizia o pai de Marie. Já dominava perfeitamente a língua: ajudado pela arte, é claro, pois a literatura brasileira já fazia parte de suas preferências para momentos de solidão. Bem, daqueles parentes não tenho notícias, prosseguiu o simpático senhor, mas sim, a partir do meu avô. Ele era um empalhador, Bernard. – Empalhador? – Sim. Não como atividade principal. De subsistência. Mas era hobby que levava a sério. Enviava corpos secos de insetos, répteis, onças, jacarés, etc. para exposições e museus europeus. Várias de suas peças figuram em catálogos internacionais. Certa ocasião foi até mesmo citado no Le Figaro francês: o jornal mais antigo de lá. Viajou, quanto pôde, caçando vestígios de 88 Jairo Martins de Souza dinossauros. Seu objetivo era montar arcabouço de um deles a fio de ferro. Aí sim, como profissão. Não sucedeu em suas investidas arqueológicas na região de Maquiné. Acabou ganhando a vida no ramo siderúrgico. Desde os idos de 20 do século passado foi contratado por conterrâneo que viera da França e acabou caindo pela região. Meu avô foi seu capataz e gerente, pois, anteriormente ao que disse, aventurara-se pela Espanha e tornara-se mestre em trabalho com forjas catalãs. – Catalãs? – Sim. Desenvolvidas na região da Catalunha. Lareira de pedras com brasa de carvão, minérios e ar frio insuflado por foles. Foi a que o seu futuro patrão, Jean Monlevade, usou na sua indústria. Bern revirou-se na confortável cadeira. A conversa, faltoume dizer, corria em espaçosa varanda na casa da moça, localizada no ainda chamado Alto da Samambaia. Lá fora chovia a cântaros. Chuva benfazeja. Parecia emergir de gigantesco regador escondido por trás de nuvens brancas repletas de água pura. Encantado, o moço observava suave brecha nas nuvens onde o sol da tarde, totalmente molhado, se recolhia após dia de trabalho. Surpreendeu-se imaginando como seria a sua extinção quando engoliria toda a Terra. Coisas do Discovery Channel narradas por Carl Sagan. No entanto, não por ser sol já velho deixava de emoldurar cenário digno de ser presenciado por Deuses do Olimpo. Assim se sentia o rapaz. Como um Deus. E, mais ainda, lembrando-se do poeta Vinícius que conhecera em Paris, em vias de ser nomeado cavaleiro. Um cavaleiro medieval. Dos que fazem cantigas de amigo. Não é assim que funcionava no Brasil para quem pensa em viver um grande amor? Nesse estado de nirvana é que permanecia, inebriado, sob os olhares furtivos da moça que, a custo, tentava concentrar-se em leitura. Filha amorosa, estava postada em cadeira próxima ao pai. De sua parte, mesmo que sob quase total estado de encantamento, Bernard ainda não se livrara de certo constrangimento com a menção anterior ao nome do avô. Não que fosse nada de relevante um parente da moça ter sido empregado de Jean Monlevade, mas permanecera Dossiê Monlevade 89 calado, ouvindo o pai falar sobre seus gostos. Não gostava de escrever, mas lia muito. Não praticava ginástica, mas gostava de subir e descer escadas de sua casa. Oxigena o sangue. Apreciava a pesca esportiva e caminhar pela manhã. Pensava na aposentadoria que já se avizinhava: seu sonho era ajudar a filha no cuidado com os futuros netos. Sem muita responsabilidade, é claro. Para tanto o tempo de avô dar-lhe-ia alvará. Declarou viver com a mulher como, no dizer dos mineiros, a couve e o angu. Bern não entendera bem, mas sabia ser coisa boa pelo sorriso espontâneo que acompanhara as palavras. Acrescentara algo como metades de mamão papaia. Por final disse do amor que tinha pela cidade, a família e a filha. Interessante. Parecia não padecer do mal que normalmente assola as pessoas, o dizer e criticar terceiros e governantes. Não sabia ao certo se, por acaso, ou por não ter sido conveniente ao andamento da conversa, ou se fora por ser primeiro e longo contato. Ou, por terceira hipótese, que Bernard adotou como verdadeira: o sogro era homem de boa índole e tinha bom coração. A conseqüência é que livre dessa espécie de tensão, que corrompe, entristece e desvaloriza contatos humanos, percebeu que poderia ficar ouvindo-o durante séculos. Tal como sentia com relação ao pai, Guillaume Monlevade. Passou-lhe fluxo frio pela espinha, mas sentiu-se ainda mais leve por dele ter se lembrado. Tenho certeza que papai, não fosse a língua, gostaria de trocar idéias com esse senhor. Enquanto isso, o diálogo já caminha para o fim, agora de quem se lembra, o moço, é do amigo Raimundo. Sorrindo intimamente recordase que teve dificuldade em entendê-lo quando esse dissera que não gostava de conversar abobrinhas. Percebera finalmente que Jaime Raimundo, tal como o pai de Marie, não gastava tempo perdendo-se em banalidades. Latindo como vira-latas, rangendo como carroça vazia. A chuva passara. Amanhã, com o passar das horas, o verde da paisagem da Vila Tanque voltaria mais viçoso e cheio de energia. Ainda no frescor do mesmo ambiente, Bern, já a sós com Marie, intimamente questionava o porquê dessa varanda da Vila 90 Jairo Martins de Souza Tanque tanto lembrar-lhe a que Scarlett O’Hara fizera fuxicos com os gêmeos Tarleton nos diálogos iniciais de O Vento Levou. Foi em Tara, a fazenda dos pais da moça, próxima à cidade de Atlanta, na Geórgia. Na ocasião tocavam-se as cornetas para início da violenta guerra da Secessão. Margareth Mitchell foi magistral! No entanto, é mesmo difícil entender os mistérios da mente humana. Afinal de contas, Bern vira o filme quando criança, ainda em Guéret! Clark Gable. Vivien Leigh. Olívia de Havilland. 1939. Grande elenco! Enfim, corria brisa suave pelas frestas dos paus de madeira de lei com a qual essa parte da casa fora construída. O assunto que conversavam? Profissões. Médica ou professora? – Nem uma, nem outra! O viço da mocidade assomava-lhe à face intensificando a soberana arte do criador. Inimitável. Ah, Bern, tive avó enfermeira. Não a conheci bem, mas, pelos relatos de mamãe, soube ter tido vida sacerdotal. A medicina é sacerdócio. O magistério é sacerdócio. Não me atraem. Simples como isso. Quero ter tempo disponível para cuidar de filhos… Não sou daquelas modernas, Bern, que pensam seguir com a vida, tomando rumo fora dos termos em que vi meus pais e família. Não foi por acaso que passei todo o ano passado em Paris. Penso que a arquitetura caber-me-á bem… Ele gostava do jeito de Marie. Escrevera à Liviah sobre tal sentimento. Aliás, tanto ele, como nós, aguardamos resposta. Conhecia a irmã e seus ciúmes. Imaginou-a defronte ao notebook e, sorrindo, supôs ter adivinhado a sua sentença final: Bern, cuidado com essa brasileira! Fosse eu seguidor de ditado que diz (perdoa o leitor pela soberba, pois invento-lhe agora): a prudência é privilégio dos nobres, encerraria este capítulo deixando reter no papel somente os belos sentimentos marcados linhas acima. Constam no interior do maço de documentos marcado com o número 14. Não termino e a razão é simples. No mesmo folder, na mesma pasta, consta que, Bern – por indicação do rebaixado Jaime Raimundo – fora convidado para ministrar palestra na Fruit. A confirmação chegara-lhe enviada pelo setor de treinamento da empresa monlevadense. Assunto? Legislação comercial e a comu- Dossiê Monlevade 91 nidade européia. Viria a calhar. M buscava investir no mercado europeu! Na ocasião, estaria ausente, mas apoiara. Um advogado francês? Sem custos? Ótimo! Faça o favor de informar meu parente e os sócios de Cocais sobre o evento. Um sucesso! Bern encantara a todos que participaram da conferência realizada no Rio Piracicaba’s Congress Center. A pedido de empresários que fabricavam produtos de outras áreas, esmiuçara, com clareza, como legalmente vender touros em Sevilha, ou introduzir queijo tipo canastra no difícil mercado francês. Perguntado como negociar produtos não constantes no código aduaneiro internacional, – como a nova coleção de cintos frutados da nossa empresa –, o jovem arrancou gargalhadas quando relatou das aproximações a que são forçados os homens do ofício. Tal como, prosseguiu, caso de múmia egípcia que, certa ocasião, rumara para exposição itinerante em capital européia. Por falta de número cip (código internacional de produto) passou como sendo um gigantesco e mal cheiroso bacalhau português! Por fim, somente para ilustrar e trazer à baila valores locais, aplausos, explicou sobre recentes normas e exigências da CBD para exportação de jogadores de futebol menores de idade. Conferencista nato. A platéia observava seus elegantes movimentos enquanto expunha leis consideradas maçantes e ordinárias. Exemplos carregados de burocracia tornavam-se motivo de riso e bom humor. O jovem é craque, aplausos, diziam alguns advogados e administradores da região. É lindo! Suspiravam moças e senhoras presentes. Faltando pouco para terminar, – novos tempos são anunciados para o mundo –, Bern lembrou-se do surpreendente Barack Obama e copiou frases de incentivo que o estadunidense andara usando em campanha presidencial. A audiência exultou quando disse, entusiasticamente, Sim, Podemos. Sim, podemos mudar (Yes, We Can. Yes, We Can Change In). Mudar para melhor. Nascia um novo brasileiro. Mais aplausos. Finalmente, voltando o silêncio, Bern voltou a repetir a mesma frase, agora na língua espanhola em que, inicialmente, a conhecera. Fecho de ouro. Afastado de lugares comuns. Decerto foi marcante o reforço positivo do Sí, Se Puede que deixara para o término do discurso. O pú- 92 Jairo Martins de Souza blico levantou-se. Os aplausos perduravam. Passemos para a fase final da conferência. Foi o que a mâitresse da cerimônia orientou. Mal conseguia controlar satisfação. Aos convidados, peço iniciar o painel de perguntas… Dossiê Monlevade 93 Capítulo 17 Inquietações. O dragão bancário investe contra M. Onde se diz que suas chamas atingem o comerciante. D eparei-me novamente com alguns escritos digitados com formatação especial. Tombada e em negrito! Deixados como se fosse sugestão para que o analista não perdesse orientação sobre as ações ora em andamento. Lembra da dificuldade que disse, há certa de 30 páginas, ter um autor na escrita de um livro? Em particular, naquele parágrafo, o tal doc x. Acrescento mais uma. Se não consigo escrever pelo menos uma página por dia, não sou um escritor. Tenho que vencer essa barreira! Pois bem, um pequeno papel, com clip na pasta manilha desse capítulo, afirma em letras marcadas com pincel atômico: Operação Fruit. Tentativa de resgate da negociata. Inicia-se cobrança de devidos! Mais ainda há… Por exemplo, a visita do presidente do Banco de La Nación à sede da Fruit de Piracicaba. Não por acaso. Fato, frise-se bem, de conhecimento único e exclusivo de M que gravara a conversa em fita de cromo para fim ora desconhecido. Nada adiantou. Foi encontrada inaudível. No entanto, junto à mesma, figurava folha de transcrição fonética em português praticado no interior de São Paulo. Ininteligível. Ao lado, duas folhas pequenas, com dobras, dois origamis com formatos de um barco e um avião que, quando retornadas ao formato original, exibiam o mesmo trabalho. Com um detalhe. Escrito em mandarim e francês. Francês. Aí é que apareceu a prova textual do encontro! – Os juros são altos, presidente. – Sabias disso, M. 94 Jairo Martins de Souza – Não posso pagá-los, a concorrência chinesa é cruel. Têm unidades clonadas da Fruit que processam pedidos em alto mar, a caminho do país consumidor. – Não é isso. Soube por meus agentes que andaste desviando recursos. Inclusive que moras na área do aeroporto de Graal e pagas altos salários a parentes. – Tenho-os poucos, diretor. – Mas em número suficiente! – Avanças em área particular, superintendente. A sociedade deve, não nego. O que não sabemos é quando e como poderemos pagar! – Ah, a sociedade! Agora passas para o plural. Não gozaste dos lucros no singular? Fazes como o político. Privatizar lucro e ratear prejuízo. – Sim. Sigo método de trabalho que não mudo. – Certo. Gastaste o numerário posto por nós à tua disposição. Não posso cobrá-lo com nota de empréstimo que assinaste com teu diretor de faxina. Fizemos negócio praticamente a fio de bigode, lembras? – Não somente isso. Lembro também que levaste algum lucro. – Muito bem, M. Não vou desqualificá-lo como mereces. No entanto, tenho que retrucar de forma virulenta. Nosso sistema é o capitalismo. Não em toda a sua integridade. Então sua motivação é objetivamente o lucro. Lucro é palavra ofensiva quando dita com o significado que disseste. Devasta reputações. Caprichaste. Ou melhor, excedeste, meu amigo. Tua entonação foi por demais maldosa: sabes bem do que digo. Então juro pela saúde da minha mãe, que há anos está nos céus, que não tenho qualquer ligação com o ramo secundário de negócios do seu sócio Raimundo. Sei que lida também no ramo de frutas. O senhor mesmo disse-me que foi razão forte para convidá-lo para figurar na estrutura das empresas Fruit. Com toda essa meia-volta, quero dizer que não costumo trabalhar com laranjas. Muito menos podres. Isso posto, nada mais tenho a declarar, pois desconheço qualquer assunto dessa natureza que possas ter em mente lançar no mercado. A tudo desmentirei. Farei como todo mundo faz. Direi que se trata Dossiê Monlevade 95 de intriga a favor de interesse de grupos estrangeiros internacionais. Posso também fazer como manda a prática nacional: permanecerei calado. Não há provas! – Certo. Fizeste bem o negócio, senhor caixa executivo. Somos fubá moído no mesmo moinho. No entanto, se confessei captação fácil, de boca, posso confessá-la no papel. Jaime Raimundo é culpado, e deverá pagar a dívida em nome de Jesus. – Cuidado, M. Não digas blasfêmias. Pode trazer mau agouro para nossos negócios. Nunca leste no Apocalipse “Então vi subir do mar uma besta que tinha dez chifres e sete cabeças, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças, nomes de blasfêmia”? – Precipitei-me. No frigir dos ovos, tenho temor a Deus. Todo mundo tem. Até mesmo o diabo. Sendo assim, retiro parte do que disse. No entanto, reafirmo que Raimundo é quem deverá assumir o débito. – Como? – Não me perguntes, senhor responsável pelo lixo bancário da nação. Sabes como fazê-lo de forma legal. Reflita. Pense. Podes iniciar cobrança inicialmente ingressando contra a minha pessoa. Não surtirá efeito. A despeito disso, aguardo providências amanhã. Com isso damos início real a esse processo. Na parte da manhã. Tenho pressa. Saudações. Não tardou muito... Procuro por certo senhor M. Tenho notícias que não está, mas repito aviso de empréstimo não pago. Sou emissário do de La Nación. Podes chamar-me cobrador. – Ele não está. Passa dias em São Paulo renegociando cláusula secreta com diretores da Verlon. – A senhora é? – Brasilina. Dona Brasilina. Secretária. Para tais casos, o gerente solicitou-me encaminhar para Jaime Raimundo. Vou chamá-lo. Pois não! – Senhor Raimundo? – Sim. Às ordens. Mas, por favor, seja breve. Sou do setor de produção. Não posso me demorar. A campainha toca e um grupo de funcionários solicita-me ajuda. Aqui meu trabalho é inadiável! 96 Jairo Martins de Souza – Ah, compreendo. Mas veja que nesse papel timbrado pela justiça o senhor figura como o outro gerente dessa empresa. – É verdade. Por aí vejo escrito que M ainda não alterou o contrato da Fruit. – Então sob as penas da lei, acuse recebimento desse ofício: trata-se de ordem especial do próprio M! – Dê-me cá. Pronto! – Assinaste, Jaime? – Sim, Brás. Não tive alternativa. O desconhecido disse ser oficial do governo federal. – Do que se tratava? – Não vi bem. Pareceu-me aviso de cobrança. Estava colocando peças em máquina funcionando. – Não estás preocupado? – Não pensei em nada. Nem reagi. Fiz como judeu caminhando para a câmara de gás nazista. Sou fruta passada! Dossiê Monlevade A 97 Capítulo 18 A carta da irmã resposta à carta mencionada por Bernard, nas derradeiras linhas do capítulo 12, demorara tempo apenas suficiente para cruzar o Atlântico. Fora deixada na portaria do Hotel Cassino – apartamento 203 – com expressa recomendação de entrega em mãos. Ao lado do Aviso de Recebimento, anexado ao corpo do envelope, lia-se, em letra destacada, a palavra confidentiel. Nela, Liviah não dizia novidades, por exemplo, que tinha saudades do irmão. Que ouvia queixas da Deneuve que, desde a vinda de Bern para o Brésil, passou a escrevê-la com mais freqüência. Que estivera em Paris e assistira à peça Les Miserables -Merveilleuse! Que mamãe andara um pouco gripada, mas melhorara. Que estava fortemente inclinada a cursar especialização em arquitetura, após concluir o curso de engenharia civil (ah, Bern, quero aplicar urbanismo moderno na região de Guéret!). Que estava de namorado novo! Que papai andara reclamando envio de notícias diretas do filho (nada de recados, dissera!). Que o irmão se cuidasse, e zelasse por não brincar com sentimentos de terceiros. Que os primos… As notícias do cotidiano da família trouxeram paz à alma do moço. Às vezes sentia-se como o inconfidente brasileiro Gonzaga quando compôs a sua canção no exílio. Tudo lá está como deixei, suspirou aliviado. Um súbito sentimento de eternidade, em que toda alma humana se regozija, fez-lhe tornar o corpo suavemente relaxado, enquanto retornava com as folhas para dentro do envelope postal. Alongando-se na espreguiçadeira, pensou demorada- 98 Jairo Martins de Souza mente sobre o porquê de Liviah nem mesmo ter citado o nome de Marie! Escrevera terceiros. Ciúmes? Não há dúvidas! É. Tal e qual pensei! Mas tenho certeza de que se tornarão boas amigas. Foi por outro motivo que Bernard passou a sentir leve inquietação. Correspondências de família eram consideradas segredos de estado. Invioláveis. Tais instruções paternas vinham de heranças ancestrais. Metaforicamente, cartas lacradas com selo episcopal de Mazarino nunca devem ser abertas a olhos públicos. É por isso que sofria! Queria dizer a Marie sobre a carta da irmã. A solidão quebra regras de conduta. O velho conversa sozinho. O criminoso encarcerado lê a bíblia. O japonês conversa com pedras. O ladrão solitário na cruz diz querer acordar ao lado de Jesus… Bern não resistiu e, mesmo omitindo o ciúme da irmã, dissera sobre a carta confidencial e da antiga amizade com a Deneuve. No fundo fora empurrado por inesgotável desejo de dividir suas coisas francesas com alguém querido na terra do bisavô. Marie fora cautelosa em suas indagações. Ouvira com calma. Entre um comentário e outro, perguntara, quase incidentalmente. – Essa moça, a Deneuve, é amiga de infância? – Não. Conhecemo-nos na Sorbonne. É ótima alma e tornouse amiga de minha irmã. Não deixamos de ter contato depois que me graduei. Gosto muito dela! – Para as brasileiras, Bern, isso é relativo. Que realmente quer dizer a frase que disseste? – Dou-me bem com ela! Nós franceses, Marie, falamos o que sentimos. Esqueceste do sangue jorrado na revolução? A frase final convencera a moça. A esposa de Jesus é a Igreja. A foice do advogado é a palavra. Os males têm que ser cortados pela raiz. Não era à-toa que Bern tornara-se advogado. Só não dissera que não podia afirmar o mesmo pelo sentimento da Deneuve. De lucrativo ficou-lhe o desejo de Marie de escrever para a irmã. A intuição de mulher dissera-lhe para pesquisar melhor o tema. Afora saber que palavras escritas com amor, e letra redonda, dão início a belas amizades. Foi o que, adianto, aconteceu! Dossiê Monlevade 99 Capítulo 19 Certa reunião em Luxemburgo. Os executivos de La Nación O empréstimo pessoal que fiz a M, acobertado pela bandeira da Verlon Fruit Shoe, não será pago facilmente! – Usaste as premissas legais do contrato social da Fruit como manda a lei e a autoridade nacional? – Não, fiz vista grossa! Precisava do cliente. – Algum horizonte de acordo? – Impossível. O homem sabe que, com o documento de crédito inicial que engendramos, não há chance de ser cobrado. É zero! Notificamos a Fruit. Protestou! Como esperado, os outros sócios não admitiram que tenha sido realizada tal operação. Pedem-nos para exibir o contrato de crédito e a promissória. Disselhes que isso é segredo de estado. Nem mesmo com pedido de juiz. Por fim, senhores, tudo isso M disse-me secretamente em reunião realizada na própria sede administrativa da fábrica em Rio Piracicaba. – A conversa foi gravada por nossos agentes infiltrados? – Sim. Inclusive com transcrição fonética. É forma de despistar os agentes de segurança locais. A portaria é rigorosa em suas revistas. – Suspeito das intenções malignas de M por vários motivos. – Cite-me um. – Durante a reunião foi-me desqualificando como representante do nosso banco. Começou chamando-me presidente, – o que sou de direito –, depois diretor, depois superintendente, depois 100 Jairo Martins de Souza caixa executivo, depois responsável pelo lixo bancário. É dado a ironias. Fala com a boca torta como quando se dá milho a bode faminto. Alongasse a conversa, chamar-me-ia cliente especial, cliente comum e, na condição extrema, de devedor, como ele é. – Aí está. Não nos chamará de mais nada depreciativo. Vamos triturá-lo com nossos juros e correções monetárias. – Isso não faz nascer valor impagável? Se não nos dá conta do principal que é, por si só, volumoso, como pagará o nosso lucro? – Para tanto, ele mesmo nos deu caminho. Não estão lembrados que sugeriu confessar publicamente que nos deve? Olhem. Olhem. Basta atentar para determinado trecho na parte final da nossa transcrição. Lá se lê, claramente: devo, não nego, Jaime Raimundo irá pagar! Aliás, quando dirigia-nos para o embarque em Graal, ele, M, confidenciou-me segredo, em off, não incluso na ata de reunião. Disse-me ser ainda grande investidor em São Paulo. Na área imobiliária. Tentou sensibilizar-me, creio que, no fundo, deu-me dica que podemos seguir. – Qual? – Propôs envolver patrimônio fictício de si e da família, na confissão, para conseguir confiança de Raimundo. Todos aqui no banco sabem que esse deverá ser o verdadeiro pagador! – Como? – Um teatro. Uma simulação. M sugeriu concordar, além da confissão, com uma garantia. Uma garantia hipotecária. De fachada! Para inglês ver. Portanto, para qualificá-la, legalmente, podemos redigi-la, e registrá-la na Bolívia. Tudo lá é mais fácil. Lá, até mesmo alguns brasileiros desquitados, artistas famosos, acabam legitimando situação de amásias. Casam-se. Inclusive por procuração. Bem, mas o fato é que temos acordo bilateral firmado com o pessoal de La paz, daí podemos dar aparente legalidade ao documento. Não é muito comum, e não é que consigamos eliminar eventuais suspeitas, mas… bem, com tal artifício, M disse que forçaria psicologicamente Raimundo a assinar como avalista. Ele lembrou-nos que o homem é ainda seu outro diretor. No papel. Também a nossa gerência pode enfatizar e dizer a Dossiê Monlevade 101 Raimundo que a assinatura trata-se de mera formalidade. Tudo aqui é de fachada. – Quero o meu dinheiro, custe a quem custar. Mas… você há pouco disse ser procedimento aparentemente legal? Então, pergunto: é ou não é? – Sim e não. – Não entendi o porquê de aqui receber resposta paradoxal! Cá não estamos dizendo de episódio relatado pelo antigo Zenão. Nada de Aquiles e sua tartaruga. Trata-se aqui de assunto sério. Dinheiro! Por acaso, não lembras estar falando com um diretor? – Mesmo assim, confirmo o sim, e o não. O yes e o no, para que fique bem entendido, já que estamos conversando diretamente de país estrangeiro comandado pelo príncipe de Luxemburgo. Há ocasiões que funciona assim, senhor Diretor. – Gosto de respostas diretas. – Também eu, e gostaria de receber uma desse tipo do senhor. Agora. – Pois não. Faça a tal pergunta! Continuas liberando crédito irregular tal como fizeste no caso M? – Trabalho em banco do povo. Estatal. Não tenho satisfações a lhe dar. Nem a você, nem a ninguém. Com isso volto ao que interessa, pois memorando recente, colocado sigilosamente na minha mesa, diz que o corpo de advogados do nosso banco posicionou-se a favor da proposta de M. Dizem assim copiando o que lhes disse o superintendente de empréstimos, enfim, qualquer que seja a fonte, o recebimento será bem-vindo. – O setor aguarda sinal verde para concluir redação do documento. – Não descarto alternativas. Por ora, guarde esse esqueleto no armário da diretoria. Aparecerá em tempo certo! Dossiê Monlevade E 103 Capítulo 20 Jaime Raimundo sse Jaime Raimundo que aí aparece no título é homem festejado. A despeito de, faz tempo, ter sido destituído da gerência da Verlon Fruit Shoe por um seu sócio-diretor chamado M. Portanto passa a ter tratamento especial, por razão também especial. O fato é que o volume acima indicado, o de número 20, simplesmente diz, Jaime Raimundo: verificar sobre sua vida na Biblioteca Municipal! Fora protagonista de um livro! Encontramo-lo mencionado em diversas oportunidades, por ter sido obra folheada por Marie e Bern. Cá está! Ah, trata-se realmente da mesma obra literária. Escrita por um dos seus filhos! Por respeito ao leitor, não voltarei folhas e folhas para confirmar que se trata do que testara garrucha 380 em um dos primeiros capítulos deste processo. Escrevera quando criança! Se é que bem entendi. Fizera tudo enaltecendo a família e procurando revigorar o respeito antigo que os filhos tinham pelos pais e pela sociedade. Sugerira nas entrelinhas a criação de um memorial físico para o pai e a mãe. Não tivera visão de futuro, é verdade. Quem poderia imaginar Monlevade com tamanhas perspectivas que a descoberta do petróleo abriu? Não obstante, poeticamente, ter sido um tanto hiperbólico em relação a tudo que nos cerca. Pecado leve. Se, nos livros, não se colocam fantasias, o seu mundo fica como o nosso, o real. Perde a graça! Aqui, informa o documento, Jaime Raimundo deverá prosseguir sendo um dos participantes principais. Não o principal. Há 104 Jairo Martins de Souza vários de mesma relevância, segundo o parecer dos analistas que deram vistas à papelada. Há também nota, pasme o leitor, que exprime opinião de Guimarães Rosa que recomendava que os livros do tal autor fossem lidos em seqüência cronológica. Como os seus. Por exemplo, Sagarana, Grande Sertão... Tutaméia, etc. Portanto para melhor entendimento deste processo melhor que se leia... Se bem que, ele, o próprio Jaime Raimundo, nunca lera um livro. Nem mesmo o que lhe fora consagrado! Dossiê Monlevade O 105 Capítulo 21 O Brás José Brás aparece nestas linhas por razão diferente do amigo Jaime. Mas a fonte é a mesma. Fora mencionado no memorial sobejamente citado, encarnado na figura do filho que, quando criança, compartilhara amizade com o autor. Pais amigos, filhos amigos. Amizade de família. A esposa era companhia de tricô da esposa de Jaime Raimundo. Seguem-se muitas linhas em branco. Talvez o analista pendesse de algumas informações. Daí fica a razão destas escassas linhas… Dossiê Monlevade J 107 Capítulo 22 Charlie Chan osé Rego, faixa dos 35, baixo, – 1,65m de altura –, com aproximados 75 quilos, disse algo para o colega ao lado, Richard Albano. Rego era moreno claro com cabelos sempre cuidadosamente penteados. – Albano, em suma, a coisa está preocupante... Ligeiramente mais alto e mais velho, a tez era escura, o outro assentiu com suave movimento de cabeça e, ao mesmo tempo, cutucou um terceiro senhor que, por sua vez, consternado, escutava o diálogo que já se arrastava por horas. O discurso de todos era o mesmo. O do pessimismo. Não citados anteriormente, o grupo era composto de sócios da Fruit em Cocais e Monlevade. O motivo de estarem reunidos aqui na sede central da empresa? Necessidade. As maquiavélicas atividades de M já incomodavam a todos os participantes do conglomerado. Um quarto elemento, que se encontrava caminhando pelo ambiente, observava com olhar suspeito alguém que trocava idéias com fornecedor de São Paulo na portaria da administração. Ah, M gosta de reunir-se sozinho com esse tipo de gente. O sócio que dizíamos vigiá-lo estava em forte estado de excitação. O celular de um deles tocou. O dono, um evangélico, sentiu parte do seu sofrimento humano se esvair ao ouvir a letra do conhecido corinho Com Cristo no Barco. Quem estava do outro lado da linha era inusitadamente o amigo ao lado que, por motivos de sigilo, procurava estender o assunto sem que M, nem mesmo de longe, notasse qual era a razão das expressões carregadas de preocupação. Tinha notado que o mesmo concluíra a conversa e acelerava 108 Jairo Martins de Souza o passo na direção dos sócios. Na verdade, o que M fazia é retornar para sua sala na presidência. Tinha ordens e novas missões a encomendar. Nos últimos segundos mudou de idéia e passou por eles. Parecia sorrir matreiramente. Na rua, separada do ambiente por colossais vidros de segurança, via-se outro investidor que com eles dividia a mesma ansiedade. A chamada de celular, – agora o de José Rego –, anunciando em tom alto o ‘por qué non te callas?’ de Juan Carlos Bourbon, fez descontrair por instantes o ambiente carregado pelos humores da conversação. Todos os demais foram desligados e a atenção geral voltou-se para a chamada que Rego vai iniciar a atender. Rego pressionara botão verde de aceite do aparelho silenciando por instantes o encontro, e ao mesmo tempo, emudecendo o divertido toque de chamada que baixara de arquivo da internet. Com isso e com o fechamento da porta do escritório de M, o grupo finalizou sorrisos, aguardando a seqüência da troca de idéias que deverão vir a aflorar na ligação. – Rego, aqui é da parte de Torquato Viglioni. – Viglioni? Um dos novos sócios da Fruit Cocais? – Sim. Não o conheço pessoalmente, Rego. Para inscrever-me na sociedade Fruit acertei tudo diretamente com M. Explico que me buscou no mercado por meio de empresa de head hunters. Paguei-lhe diretamente a cota em dinheiro vivo há cerca de dois meses. Cobrou-me luva de alto valor. Prometeu-me mundos e fundos, mas passado tempo combinado não vejo nada em troca a não ser o trabalho. – Isso se passa também comigo, Viglioni. M às vezes diz nas entrelinhas que nosso trabalho é como um sacerdócio. Uma missão. Dispensa recompensas monetárias. – É o que suspeitava, meu caro. Mas não assumo essa postura como ovelha que segue para o matadouro. Não estou balançando o rabo de felicidade, enfim, não sou cordeiro a ser ofertado para honra e glória de M. – Então junte-se a nós, Viglioni, estamos planejando ações para desbancá-lo das diretorias comercial e financeira. A idéia é analisar bem a situação para não trazer transtornos de mercado para a Fruit. Dossiê Monlevade 109 – Concordo. Falamos a mesma língua. E de minha parte, Rego, antecipei-me acionando alguns mecanismos. Passo-os para você em absoluto movimento de confiança. O Jaime Raimundo é amigo de juventude e disse-me ótimas referências de sua pessoa, mas saliento que, para nossa segurança, essa conversa está sendo criptografada. – Entendo. Tenho também minhas precauções. Troco de chip e operadora quando faço ligações que concernem a assuntos relativos a detalhes administrativos da Fruit. – Ótimo, então terás guardado aí que poucos sabem que estou mantendo M sob constante vigilância. Contratei serviços de antigo colega de infância. Um detetive. Seu nome é Charlie. Charlie Chan. – Chan? Lembra-me Fu Manchu. – Esse vestia quimono. Tem pouco a ver com o outro. Era bandido. Chan era artista. Na realidade, o pai desse meu amigo é descendente dos chineses que, há décadas, mantém rede de pastelarias em São Paulo. Andou trabalhando na polícia civil mineira na época em que esta usava fardamento azul. – Como a dos policiais americanos? – Sim. Mas o importante, no caso, é que era fã dos métodos do herói e mais ainda dos seus quadrinhos. Tentava aplicá-los. O filho aprendeu com ele, e fez melhor: os desenvolveu. Além disso, somente usa armas em casos de extrema necessidade e é grande admirador do Tai I Chi. – Muito bem. Também sou adepto da não violência. Mas pratica também o kung fu? – Sim. Somente quanto não há outra opção... Mas vamos ao que interessa. Descobriste algo? – Ainda não. Se bem que Chan tenha me dito, em relatório de última hora, que está próxima a hora de vir a público uma das armas de M. – Qual? – O tal contrato de exclusividade com a Verlon International. Passo-lhe mais essa informação sigilosa porque, já disse, estamos unidos nessa mesma canoa. Pode estar furada! É algema que tem 110 Jairo Martins de Souza colocado em todos nós, seus parceiros. Quando cobrei-lhe atitude, jogou-me no rosto tal argumento. E mais ainda. Ameaçou-me congelar fornecimento dos produtos da Vulcabrás. Sou também comerciante aqui em Cocais. Segundo o colega Jaime Raimundo, foram muitas as oportunidades em que M deu-lhe o mesmo golpe baixo! Não sou de me estressar facilmente, mas o homem não é nem um pouco criativo... José Rego não apreciava longas conversas ao telefone e, enquanto Viglioni falava, aproveitou para observar, pela vidraça em forma de báscula, uma senhora idosa que passava empurrada pela filha. Distanciara o celular do ouvido. A moça carinhosamente dirigia palavras de afago à doente. Deve ter sofrido um acidente vascular cerebral, foi o que Rego pensou. A voz de Viglioni soava-lhe distante. Sabe-se lá por que acontece de uma pessoa ficar paralisada como a que aqui vejo passar empurrada. Coisa triste. Lembrou que tivesse sido um aneurisma, tudo poderia ter sido precedido por fortíssimas dores de cabeça. Rapidamente suas dores existenciais diminuíram de intensidade. Vivemos de comparações. Estou reclamando de perdas financeiras, mas gozo de saúde excepcional. Não mais ouvia o que dizia o seu interlocutor, e intentou dar ponto final ao texto que se alongava. – Então, Torquato, tenho aqui o seu número registrado no meu chip empresarial. Temos os mesmo ideais e objetivos. Peço aguardar contato e telefonar-me somente caso haja algo novo quanto às investigações de Chan. Mobilizarei forças acessórias… Bom dia de trabalho! Viglioni não gostou do final da conversa. Era sujeito reconhecidamente sedutor e não gostara da secura do homem do outro lado da linha. Ficara momentaneamente frustrado. Esse sujeito simplesmente não deve ter aprendido a falar e a despedir-se pelo telefone. Muitos jovens fazem dessa forma. No entanto, passados alguns minutos, digerira o mal entendido, e entendera as razões de Rego. Não podia culpá-lo. Torquato, já lhe dizia a esposa, você fala demais… Lutava contra o hábito. Por fim, acionou novamente a tecla send do seu móvel para trocar idéias com outros sócios da Fruit. Ficara de partilhar seletivamente com seus confrades Dossiê Monlevade 111 as informações que receberia daquela facção de sócios que fora também ludibriada por M. Enquanto isso, Rego resumia para o outro grupo de colegas o assunto Chan, a aliança que fizera, e tudo o mais que entendera das intenções de Torquato Viglioni. – Torquato? – Nunca conheci ninguém com esse nome. Somente na escola ouvi falar de um de sobrenome Tasso. Este aí foi poeta da Renascença italiana que escreveu Jerusalém Libertada. Sujeito interessante! Enfim, quem fez tal longo comentário foi o quarto sócio que há pouco adentrara no ambiente (não me ficou anotado o nome: é homem de pouco relevo para a história. No entanto, seu sobrenome era Doval e tinha ascendência espanhola). São Paulo, 30 dias depois. Calmamente assentado em cadeira estofada com motivos florais, Charlie Chan repassava fotos tiradas ao longo da semana com sua máquina Canon de última geração. Definição de imagens? Excelente! Lastreada em tela de altíssima resolução: 35 Mega Pixels. As noturnas à base de lentes infravermelhas ficaram perfeitas. Ah, refletiu, como a simples observação de uma fotografia nos traz à tona o desenlace de verdadeiras histórias de amor ou o de autênticos segredos policiais! Como foi o caso. Mentalmente colocou uma das fotos em movimento para trás, fazendo breve flash back. Lá está M chegando à sede da Verlon em São Paulo, capital. Avenida Paulista. Endereço caríssimo. Na pasta recoberta com couro de jacaré pantaneiro levava – pelo menos é o que lhe disseram os alcagüetes – o contrato para prorrogação de concessão pessoal e exclusiva do nome Verlon e da tecnologia Fruit. Três homens de elevada estatura o acompanhavam. Um negro; o outro, branco. O terceiro era mulato com rosto amassado. Parecia um antigo boxeur conhecido nacionalmente como Maguilla. Vestiam ternos pretos e camisas brancas. Causavam impacto à vista de suas extravagantes gravatas borboletas. Um deles pagou ao motorista da limousine da qual M tinha apeado, enquanto os outros observavam atentamente as pessoas que passavam nas imediações. Vou ter trabalho para obter aquela pasta, Chan refletiu enquanto anotava tempos e movimentos no seu caderno de planejamento de ações. 112 Jairo Martins de Souza Anos atrás fizera breve, mas proveitoso curso de engenharia de produção. Em nenhum momento vira o homem se desligar da tal pasta, pois percebera que ficava presa ao seu corpo por meio de minúscula corrente de aço que passava discretamente pela palma da mão. O detalhe de uma das tomadas revelou-lhe, sutilmente, tal contingência. Noutra foto, em ângulo particular, viu que estava costurada internamente pela parte de dentro do braço do paletó. Invisível à vista desarmada. Bem, enquanto isso, as coisas tinham mudado muito desde a conversa entre Rego e Viglioni. Autorizado pelo segundo, Rego entrara em contato com Jaime Raimundo. Ambos decidiram que uma ação conjunta seria mais adequada para a situação. A união faz a força foi o que disseram, concluindo animadamente os entendimentos. Monlevade e Cocais seguiriam de braços dados. A escolha de Charlie Chan também fora abonada por todos e ficou decidido que deveriam ampliar o escopo dos seus serviços. Era reconhecidamente bom detetive. Conhecido na praça, não era daqueles que se dedicavam a casos fortuitos como de seguir maridos e esposas infiéis. Um tipo pesquisador. Mantinha pessoal especializado para assistência psicológica para si e seus clientes: inclusive por meio de colaboradores como I. Campos, um psicanalista com poética refinada. Sua valia maior? Chan assegurara a amigos que era assisti-lo em casos de dramaticidade extrema. Fora ele que traçara linhas básicas da personalidade de M. O que não significava não gostar também da utilização de métodos ortodoxos. Não. Chan tinha por hábito gastar algumas horas assistindo às series do Peter Gunn, Mr. Luck e outros detetives de classe. Hora de estudo. Faço como o jogador de futebol faz, dizia, faço parte do meu trabalho brincando. Assim pesquisava e aplicava diversos estilos de investigação, inclua-se aí os dos peritos de medicina forense da famosa série Detetives Médicos. Lutava para não se tornar viciado nesses entretenimentos televisivos. Na parte prática, freqüentara cursos da SWAT e mantinha ligações pessoais com policiais da Interpol, FBI, o Mossad israelense e organizações secretas governamentais latino-americanas: inclusive setores seletos da polícia federal brasileira e da PM2. Currículo pesado! Dossiê Monlevade 113 Por tudo isso Chan estivera na capital paulista a serviço exclusivo do pessoal de Viglioni. Em operação que, no âmbito da policia federal fora conhecida, conforme batizada por Chan, de Tio Patinhas. É conhecido o hábito dos federais de colocar nomes inusitados em suas investidas audaciosas contra grandes organizações marginais. O mesmo fazem alguns detetives particulares. Como Chan. Por que tal nome infantil para serviço de risco? Um dos seus auxiliares perguntou-lhe. Há aqui outro tipo de tio patinhas, alguns patos e muito dinheiro envolvido. E, afora isso, a Fruit é a moeda # 1 de M. Por fim, satisfeito, concluiu lembrando duas coisas: a primeira é que continuava apreciando a leitura de quadrinhos; a segunda é que apelidara com aquele nome de forma inconsciente. Explicou que não fazia como os detetives de filmes americanos que padecem dentro de automóveis comendo hambúrgueres nas madrugadas frias de Nova Iorque. Preferia ler quadrinhos… Tal como agora sob o facho fino da lanterninha de tecnologia laser acoplada no seu cell phone. Alguém do lado de fora do Mercedes Classe A jamais imaginaria que assim estivesse procedendo, enquanto aguardava a chegada de M ao Hilton paulista. Segundo fora informado, o empresário teria encontro de negócios com executivos da Verlon. No veículo, usava insulfilm com menos de 58% de transparência. Mais tarde, Alceu Orosimbo, um dos seus auxiliares, dirigindo um Xsara Picasso azul escuro, avisara-lhe, via walkie talkie de freqüência exclusiva, que M se encontrava finalizando refeição no famoso Restaurante Brahma. O local? Esquina da Ipiranga com a São João. Comera, como antepasto, alguns ceviches, – peixes marinados em suco de limão –, degustara lagostas ao termidor e agora, dissera, sorvia a derradeira colher de Petit Gateau. Na mesa repousavam, vazias, uma taça e uma garrafa de Cousino Macul reserva Dom Luís, tinto. O café espresso e a conta já se achavam a caminho. Próximo à sua mesa, outro agente, estou dizendo de um dos ligados a Chan, e que repassara as informações para o tal Orosimbo, notou que a pasta meta da tio patinhas, ou moeda #1, como queiram, fora passada para os braços de 114 Jairo Martins de Souza um dos seguranças. O olheiro do Chan era um prestador de serviços terceirizado, bastante familiarizado com a polícia paulista e com vasta rede de informantes. Detalhista. Para cada anotação que fazia, utilizava caneta bic de cor diferente. Chan instruíra-lhe não tomar nenhuma ação, pois não pretendia, a princípio, nem substituir nem tomar posse da tal pasta. O plano era fotografar os contratos e documentos que nela constassem. Chan tinha visão, e estava tratando o processo da forma como faria com caso simples de crime de colarinho branco. Dossiê Monlevade 115 Capítulo 23 Torquato, José Rego e O. Costa. Procura-se advogado D ia 8.12.1951 – 14:23h. Biblioteca do Centro Histórico na antiga fazenda de Jean Monlevade. Sala de eventos corporativos. Miracy. Dona Nêga. Nada de transferir chamadas para a sala de reuniões. Senhores, o almoço no Graal foi magnífico. A carne, de primeiríssima qualidade. Mas temos muitos problemas a discutir nessa reunião de sócios insatisfeitos da Fruit. Para maior grau de confidencialidade não deverá haver ata escrita nem gravada. As anotações devem ser tomadas conforme necessário e posteriormente destruídas em triturador de papéis. Devemos ter em mente que, o que aqui for falado, deverá ser considerado como se o fora dentro das paredes de consultório de psicanalista ou o confessionário de um padre católico. Nada de gravadores. Os celulares? Desligados. Quem concisamente assim abriu a reunião foi Viglioni. Ao seu lado, perfilados e sérios, estavam Rego, o Zé Brás e o Jaime Raimundo. Os demais sócios da Fruit Cocais e Monlevade, seletivamente convidados, estavam já sentados. Alguns deles, que se encontravam totalmente marginalizados quanto às atividades administrativas da sociedade, repararam a ausência de M, dos seus parentes, – o homem expandira suas ações fisiológicas –, e dos que compactuavam com seu modo despudorado de proceder. – Precisamos de um advogado! Foi o que Rego disse afirmativamente após levantar o braço e pedir a palavra. Questão de ordem, ponderou. As ações de Chan precisam de apoio jurídico, e nós mesmos careceremos de análise de profissional do ramo 116 Jairo Martins de Souza quanto à documentação que buscamos. O murmúrio afirmativo dos demais confirmou, sem necessidade de voto aberto, o acerto da declaração. – Alguma sugestão de nome? Agora foi o Brás quem indagou aos colegas. – Bern. O doutor Bernard Monlevade. Lembram-se da segurança e conhecimento que demonstrou ter durante a palestra que nos deu em Piracicaba? Na ocasião, respondeu a todas as nossas dúvidas sem vacilar. O rapaz é bom! A sugestão partiu de O. Costa, um sócio que demonstrava grande timidez. Normalmente, nas reuniões entrava mudo e assim permanecia até que o condutor dava como encerrados os trabalhos. – E pode? Não é francês? – Sim. Mas credenciado pela OAB. É nome de peso. Além do que é um privilégio ter ao nosso lado um profissional com o nome do fundador... Para encurtar a conversa, escrevo que todos se colocaram a favor da contratação do rapaz. Não falo, citando nominalmente outros sócios, porque pouco influenciaram no andamento da reunião. Digamos que, por assim dizer, eram os do baixo clero. Somente um deles, Anselmo Amador, lembrou com voz baixa sobre a inexperiência do advogado. Fato irrelevante para o caso, disseram-lhe os demais. Profissional caro? Não acredito. Costuma participar de ações humanitárias. No final, Costa, em nome dos presentes, foi encarregado de fazer imediatamente contato com o causídico estrangeiro. Dossiê Monlevade C 117 Capítulo 24 Bernard se encaixa na Tio Patinhas onfesso que, após pesquisa, ficou-me dúvida sobre o exato momento em que Bern Monlevade iniciou participação em questões investigativas, policiais. O motivo fora alguns números apagados no dorso dos documentos e que me custaram indecisão quanto ao momento de inserir o advogado em diligência policial. Não obstante, fica aqui conclusivamente confirmado que ‘a necessidade é a mãe de todas as coisas’. Explico. Costa era sujeito sabidamente calado, mas ao deparar-se com Bernard, soltou a língua. Precisava expectorar todas as tensões que sentia em relação à situação delicada em que se encontrava na sociedade de M. Ainda mais, puxado pelas perguntas bem articuladas e inteligentes do rapaz, dissera-lhe sobre Charlie Chan e seguira relatando sutilezas de formação da Fruit que tinham escapado até mesmo a outros sócios mais argutos. – Há documentos comprobatórios? Em dado momento Bern indagou. – Não. Encontrá-los é uma das missões de Chan. A principal, você sabe, é checar o contrato secreto. A tal tio patinhas... Costa havia confabulado com os demais sócios sobre a questão dos honorários advocatícios. Bern não aceitou contrato de risco com percentual sobre futuros lucros que os contratantes pudessem auferir, caso as coisas chegassem a bom termo. Dependo de terceiros, disse, minha obrigação é de meios, não de resultados! Bom negociador, Costa, no final, firmou contrato em nome dos demais interessados com remuneração dez por cento menor que 118 Jairo Martins de Souza o valor sugerido pela tabela OAB. Nem eu, nem você. Dissera após escutar e propor pretensões. Além disso, adiantou dinheiro em espécie para que o advogado fizesse frente às despesas iniciais. As circunstâncias do caso tornavam necessária toda discrição possível. Para outras informações não pertinentes à natureza histórica da Fruit, dissera: Doutor Bernard, por favor, refira-se a Jaime Raimundo, ao Brás ou a Viglioni. Foi o que o jovem imediatamente fez. Temos um agente que atualmente está em São Paulo acompanhando M 24 horas por dia. Ele tem uma rede muito bem estruturada na região, foi o que lhe explicou Torquato Viglioni ao expor a situação. No final do encontro, Viglioni explicou-lhe o modus operandi do recém contratado Chan e recomendou-lhe entrar em contato com o próprio. – M suspeita que está sendo investigado? – Bern perguntou-lhe. – Talvez. Ele sempre mantém agentes a seu serviço. Contudo Charlie Chan é bastante experiente no ramo. É invisível. Tal como a radiação que queima a pele das pessoas que se expõem aos prazeres trazidos pela luz solar. Daí tenho poucas preocupações a respeito. Dossiê Monlevade N 119 Capítulo 25 No salão de embarque o aeroporto de Graal, enquanto Bernard aguardava chamada na sala de embarque indicada no bilhete, dois repórteres japoneses da famosa rede NHK faziam reportagem sobre a influência do boom da descoberta de petróleo no vale do Piracicaba. A Al Jazeera já estivera por aqui. Gente curiosa, pensou o francês. Quase entortam o tronco para agradecer qualquer cortesia que se lhes faça. Basta dirigir-lhes a palavra. Qualquer palavra. Fora pesquisado por um deles. Sorrira espontaneamente no instante em que a moça de olhos estreitos e amendoados, de pronto, perguntou-lhe, em inglês peculiar aos nipônicos: príz, uót taime du iú stárt uorquing? (com licença, a que horas começas a trabalhar?) Quase imediatamente divagou pensando se Charlie Chan seria parecido com o outro repórter que, ao lado dela, parecia falar português claro. Sorrindo, lembrou estar meditando asneiras, afinal de contas, Viglioni disse-me ser ele um descendente de chineses. Não japoneses. Foi quando também lembrou que os amarelos são homens que estão na moda. Um gigante que desperta ameaçador. Enfim, de certa forma é com um deles que tenho agendado encontro na capital dos paulistas. Pensou em Marie, suspirando fundo. O que, aliás, não é coisa que se faça em conturbado ambiente de aeroporto de grande movimento. Pode-se perder uma chamada de vôo. Mas tal como alguém entorpecido por excesso de sono, sentiu a cabeça vacilar e ficou totalmente à parte de gente que se abraça, que faz promessas e se despede. Não mais repara em executivos que, preocupa- 120 Jairo Martins de Souza dos ou felizes, dão orientações e falam sem cessar em celulares. Alguns, absortos, escrevem e-mails em notebooks de tamanhos cada vez mais reduzidos. O moço quase sonha. Em Paris, antes de dormir, Bern tomava taça de vinho tinto com o pai. Aliás, Guillaume, o pai, dizia que esse hábito faz atenuar males do coração (um cartão de visita, perdido entre a miríade de papéis desse dossiê, informava ser ele também médico. Como a mãe). No entanto, era a mãe, refiro-me à de Bern, a sua companhia noturna constante, pois raras eram as ocasiões em que o pai não estava em Guéret. Juntos faziam comentários sobre o que fizeram ao longo do dia. Brincava com ela. Trocavam idéias e novidades com a irmã. Telefonavam para o pai… Passava em revista os sites de advocacia. Conversava com amigos, falando de futebol. Já deitado, e sob o embalo do suave sabor da bebida preferida de Dionísio, revia e avançava páginas de livro que o faziam rapidamente cair em sono profundo, por fim, nos braços de Morfeu, o rei que inventou o sono. Nessa condição de abandono, sonhava constantemente com os inocentes tempos de férias passadas em Guéret. Ali, entre a casa e os vinhedos, voltava a brincar com o pai, o avô, os primos, os pequenos amigos... Em Monlevade, – breve deverá ser o tempo em que, oficialmente, terá que admitir –, o seu vinho chamava-se Marie. A alegria do contato com a mãe chamava-se Marie. Cá no Brésil, tudo que pedia em termos de amor pedia o colo de Marie. Corrijo. Quase tudo. Pena que não tomasse o lugar das partidas de futebol. Não. Esse é insubstituível tanto para o francês quanto para o brasileiro que queria ser. O moço já sonhava com dupla nacionalidade. E os livros? Ah, não é que aqui novamente a mulher perca espaço. Afinal de contas, nele, como em todas as outras esquinas desse mundo, ela é a personagem principal. A celula mater. Ponto final. O que me adverte que, há poucas linhas atrás, aguardávamos embarque de Bern para a cidade de São Paulo. Embarque de vôos domésticos de Graal. Por sinal, ambiente onde muitos viajantes apreciam o hábito da leitura. De todos os tipos. Romances, memoriais, biografias, obras históricas, livros técnicos, obras Dossiê Monlevade 121 de auto-ajuda, apostilas, manuais diversos, jornais, revistas, etc. Alguns passageiros mais temerosos abrem a bíblia pedindo proteção, pois mesmo com as excepcionais estatísticas de um por milhão de vôos problemáticos, acreditam mais na proteção de Nosso Senhor do que nos rigorosos controles de manutenção da aviação internacional. Tudo nela tem tempo de vida definido, independente do estado de qualidade. Outros têm os mesmos temores, mas não os colocam a público. A maioria, como eu, tem predileção pelo Salmo 23. Além de tudo isso, o que os torna iguais é que todos praticam a leitura com o anseio de tornar mais leves as horas que se arrastariam tediosas durante as prolongadas esperas. Em particular, é aí, também em Graal, que ficaria marcado o início da viagem de Bern para fazer parceria com Charlie Chan. Fora feliz. O avião atrasaria somente 30 minutos para partida. A visão ocasional de écran, alertando sobre vôo que faria conexão para Paris, fê-lo ficar sobressaltado. O moço abandonou a leitura de obra jurídica. Ocorreu-lhe profundo sentimento de saudade da mãe, do pai, de Liviah, das partidas do Parc des Princes, da Sorbonne, da amiga Deneuve… Ah, aqui o seu cálice transbordava. Bern imediatamente sacou caneta e papel e iniciou escrita de cartas. Não e-mails. Estes, pensou, servem bem e tão somente para fins comerciais. Aço Airlines, vôo 803 com destino a São Paulo. Última chamada, portão 64. Senhores passageiros... Bern levantou-se rapidamente com o cartão de embarque em uma das mãos. Marie correspondia aos anseios de Bern. Sentia-se bem. Sentia-se amada. É o que toda mulher precisa, é o que refletia durante longos momentos. Queria casar. Ser feliz. Ser dona de casa. Nas horas vagas, arquiteta. Passar horas sossegadas assistindo tevê a cabo. Que os dramas das Desperate Housewives fiquem somente na tela LCD da televisão do seu quarto. Não. Não tinha nascido para tanta instabilidade! Sonhava o futuro como via no seriado da família de negros do My Wife And Kids. Isso sim é viver o cotidiano com alegria! Explico que aqui passo ao largo do texto real do dossiê, e escrevo isso, porque a moça era alma antiga, e não daquelas modernas que dizem se ligar na chamada produção 122 Jairo Martins de Souza independente. Nada de bancos congelados de genes especiais. Se o mundo é bom, as pessoas são boas. Ah, que bom! O francês é, por natureza, um cortejador. Funciona ainda regido por método antigo. Bern enviava-lhe recados, lindos arranjos de flores sem motivos extraordinários, pequenos presentes… Aguava a plantação! Todos esses afagos deixados com freqüência no endereço da Vila Tanque. Às vezes trazia-lhe o próprio, em mãos. Sim. Direi sim no altar! Esse é o marido que quero ter sempre ao meu lado! Ultimamente nem mesmo lia revistas de arquitetura na qual já dissemos interessada em futura carreira. Nesses dias achava o assunto tão inútil como a presença ou não de um vaso chinês no canto de sala esquecida. Um amor colocado de molho, deixado de lado por ato de Deus. Ato divino. Interessava-lhe sim os poemas românticos dos brasileiros dos meados do século que passara. Chorava ao ler o desespero de Álvares de Azevedo e os arroubos de Casimiro. Interessava-lhe a igreja. Interessava-lhe Bernard. Bernardo em português. Teria filho com esse nome. Pesquisara e sorrira ao conhecer que, na iconografia da igreja católica, era nome de santo que emanava favos de mel da boca por serem tão doces as suas palavras. Na vida as coisas não sucedem por mera coincidência! Entretanto, quando Bern irá dizer dos seus sentimentos a papai? Dossiê Monlevade 123 Capítulo 26 U São Paulo m homem da equipe de investigadores de Chan aguardava-o em Congonhas. Bern identificou-o facilmente, pois na saída da retirada de bagagens, trazia uma placa com a inscrição B. Monlevade. Tome cuidado com seu notebook, disse-lhe o policial civil. Há várias quadrilhas aqui que mantêm observadores avançados nos aeroportos de Congonhas e Guarulhos. Analisam os passageiros e avisam comparsas motoqueiros que ficam aguardando nas imediações. Daí segue-se assalto. Mas não se preocupe, hoje estás sob manto de proteção segura! Bern agradeceu, recebendo corrente de aço que lhe fora ofertado pelo receptivo agente. Prenda a pasta do seu note no braço, dissera-lhe. A partir daí, partiram para hotel localizado no centro da cidade. Não lhe fora dito o nome. A caminho, suspeitaram estar sendo seguidos por sedã preto ocupado por dois homens. Repararam que o motorista usava chapéu e capa preta. Parece aquele ator chinês que arremessava chapéus de aço em determinado filme de James Bond: foi Bern quem comentou. Então, ajudado por aparelho de GPS de tecnologia recente, o agente de Chan enveredou-se agilmente por vias e ruas secundárias e, rapidamente, despistou o eventual perseguidor. Conhecia a cidade como a palma de suas mãos e seguira evitando colossais congestionamentos de veículos. Contava também apoio de grosso livro guia das ruas e logradouros da cidade. Edição antiga. Nasci e aqui fui criado, explicou ao rapaz que ficara surpreendido com sua habilidade e confiança. 124 Jairo Martins de Souza Às 16h30min, chegaram ao Alcatraz de downtown São Paulo. O hotel não era muito novo, mas tinha projeto e design inovadores. Todos os seus apartamentos eram decorados como se fossem celas das antigas prisões do complexo de Alcatraz, ainda mantido em ilha próxima à cidade de San Francisco. Lá o visitante pode, por meio de pagamento de taxa especial de visita turística, participar de dia típico de autêntico prisioneiro. Chan gosta de hospedar-se aqui, disse o agente para Bernard. Em Roma, como os romanos. Diz também que faz parte de sua atualização profissional. Avalia, por alto, como se sentem os criminosos que usualmente com sua inteligência e argúcia costuma enviar para o xadrez. Lamenta que o Carandiru paulista tenha sido demolido. Poderia ser hoje centro turístico mais sofisticado que o próprio Alcatraz californiano. Por fim, mantém reserva quase fixa no apartamento 1808. É supersticioso. 1808 foi o ano em que Dom João VI abriu os portos do Brasil às nações amigas. Entretanto, confessou a Bernard que na primeira vez que lá se hospedara, tinha levado uma bomba de flit. Tinha horror a baratas e o soldado desenhado na lata do pesticida dava-lhe ligeira sensação de segurança. O seguro morreu de velho, complementou, com tudo isso nunca abria mão de sabonete Aristolino que guardava embrulhado em lenço de pano. Por fim, se naquela ocasião, em 1808, significou libertação de antigas amarras coloniais, cá lembra a Chan que há outras mais velhas ainda, e que devem permanecer sendo perseguidas pelos homens de boa vontade. Caso contrário… Mesmo sendo descendente de chineses, sou adepto de alguns procedimentos dos japoneses, Chan disse, amigavelmente, após cumprimento dirigido a Bernard. Gosto de escrever no estilo do haikai e dos enigmas do Koan: ajudam-me a desvendar crimes misteriosos. Fazem-me aguçar percepção e raciocínio. Faz bem à minha profissão. Tomas um chá em cerimônia que lhe ofereço como marco de início dos nossos contatos? Ao longo dela poderíamos trocar idéias sobre como proceder nossas operações em conjunto. Sim, claro. O mordomo do andar poderá nos trazer em segundos. Não se surpreenda, pois provavelmente deverá vir vestido como um carcereiro. Ah, entendo. Dossiê Monlevade 125 Sirva-se primeiro, disse-lhe Chan, após a colocação na mesa, pelo funcionário, de bandeja de prata com as xícaras de chá. O líquido quente já estava em condições de ser sorvido. O empregado do hotel, o camareiro, viera realmente vestido a rigor. Na sua cintura reluziam algemas de aço inox. Não, por favor, sirva-se você, senhor Chan. É uma honra conceder-lhe esse privilégio. A honra é minha, senhor Bernard, em ceder-lhe a vez… Milenar jogo de amabilidades! Ambos conheciam o sentido da cerimônia de chá nipônica. Os antigos samurais praticavam-na assim. O período de cortesias dera, a ambos, tempo de estudos para ordenar idéias e pensar estratégias. Enfim, como sempre, o primeiro gole deve ser sorvido pelo visitante. Daí iniciaram conversa detalhada… Entre uma e outra observação de ambas as partes, Bernard contou a Chan tudo que O. Costa relatara-lhe. Em seus mínimos detalhes. Quando deu por finalizado, foi a vez de Chan fechar informações fornecidas pelo grupo de Torquato Viglioni. Acrescentara algumas próprias. É claro, não dissera tudo. Um investigador experiente nunca dá todo o mistério do pulo do gato, foi o que refletiu, enquanto mirava os olhos do rapaz. Procurava vestígios de veracidade em tudo que o jovem lhe relatou. Não demorou tempo para concluir que podia confiar integralmente no advogado. Alma pura. Foi o que deduziu animado com o reforço enviado por Monlevade. Um bandido normalmente não dorme duas vezes consecutivas em um mesmo quarto, Chan disse-lhe. O mesmo funciona com o tirano. Dizem que Napoleão tinha esse hábito como prática. Temem ser assassinados. Guardadas as devidas proporções, M, aqui em São Paulo, também procura não ter quarto fixo. Meus agentes descobriram que, na classificação de oficiais de justiça, ele é inimigo público número um. Nunca é achado. Há premiação especial prometida para quem primeiro localizá-lo. É indiciado por compra de diplomas, fraude à execução, falsidade ideológica, múltiplas identidades… Com uma constante. – Qual? Perguntou-lhe Bernard. 126 Jairo Martins de Souza – Costuma sempre usar pessoas de bem como bois de piranha. Certa ocasião deu declaração polêmica em determinado processo. Disse que aprendeu tudo aquilo com os políticos nacionais. Note bem, são centenas de pequenos delitos que entopem as caixas de entrada do judiciário paulista. De forma sigilosa, um servidor público cedeu a um dos meus agentes a ficha completa de M há algumas semanas atrás. Custou-nos bom dinheiro. Páginas e páginas de formulário contínuo. Com isso soube que, no Alcatraz, troca de apartamentos todos os dias e nunca fica no décimo-terceiro andar. Felizmente conseguimos decodificar a seqüência que gosta de adotar. Pelas nossas projeções, hoje mesmo deverá se hospedar no 1717. É o porquê da minha equipe estar também aqui. Temos pessoal especializado em todas as saídas, inclusive alguns disfarçados de funcionários do hotel. Nossa missão, hoje, doutor Bernard, é botar as mãos sobre o tal contrato secreto. Sem falta! A cópia do cartão magnético feita por elemento infiltrado por Chan na portaria do Hotel Alcatraz funcionou magnificamente. O led verde acendeu-se três vezes de forma intermitente e a fechadura emitiu discreto sinal sonoro, indicando que a porta podia ser acionada pela maçaneta. Chan aguardou alguns segundos com a orelha esquerda encostada contra a porta. Orelha de batedor Sioux. O ouvido treinado procurava perceber algum ruído de movimentação do lado de dentro do aposento onde M supostamente estava dormindo a sono solto. Pelo menos é o que indicava a micro-câmera instalada na parte frontal do abajur com cobertura de chapéu chinês. Charlie Chan consultou novamente as imagens captadas por celular. Tudo ali era eficiente e confortável, mas toscamente instalado de forma a dar idéia de mal organizada cela de veterano prisioneiro. A decoração era a específica dos que ficavam aguardando execução. Como na fila do corredor da morte. Nos moldes de San Quentin, entenderam? Lá de fora não se ouvia um pio. Apenas o ressonar cadenciado de M. Chan delicadamente moveu a porta. Bern, no fundo do corredor, observava a movimentação nas escadas e no elevador. Era madrugada, e, afora raro hóspede que voltava de programas noturnos, o silêncio era absoluto. Vinha sendo assim há mais de quarto de hora. Dossiê Monlevade 127 A porta cedeu vagarosamente à pressão dos ombros de Chan até um terço de sua abertura. Com a mão direita colocada abaixo da linha dos ombros carregava um Taurus 32, cano curto. A mão esquerda firmemente postada sobre o dorso inferior do braço direito dava-lhe garantia de qualidade de tiro. Em todas essas ocasiões, a expectativa dessa possibilidade trazia-lhe imagem do enérgico instrutor de tiro dos seus tempos de escola de polícia. Não vacile, caso se depare com adversário. Independente de qualquer circunstância, mantenha a arma sempre apontada para o espaço entre os olhos do elemento. Assim, aluno Chan, em hipótese alguma, você deixará de atrair-lhe atenção. Enfim, cá estou novamente em ação. A fraca luminosidade do corredor lançou risco de luz sobre o ambiente e, a partir daí, iluminou parcialmente a ante-sala do apartamento. Chan avançou alguns centímetros. Encontrou resistência. De repente teve o braço abruptamente arremessado contra o portal. O Taurus quase caiu-lhe da mão. Acostumado com tais circunstâncias, recuperou-se rapidamente, e encaixou o sapato do pé direito entre a porta e o portal. Tinha biqueira de aço. Prosseguiu empurrando a porta de volta, fazendo força com os ombros e todo o lado esquerdo do seu corpo. Ganhou terreno. Ato contínuo, relaxou pressão, dando idéia que se arrependera e pretendia bater em retirada. Nem as pessoas do seu meio, e nem mesmo os amigos mais próximos sabiam que Chan era medroso por natureza. No entanto, era bem treinado e não fugia do perigo. Então, lembrando-se de amigo pastor evangélico, pensou em dizer, saia daí, diabo… Saia em nome de Jesus! Não foi bem assim. Retornou com fortíssimo movimento de ombro, atingindo violentamente o adversário, jogando-o contra a parede por detrás da porta. Ouviu grito de dor contido. Trouxe-a de volta, estou dizendo da porta da suíte, com força duplicada. Repetiu o movimento, vai e vem, por mais duas vezes, até sentir que o corpo do outro se esborrachava. Daí a pouco saiu totalmente da traseira da porta. O adversário desmaiara. Tudo aconteceu em fração de segundos. Claro que há aí certa dose de exagero. Ainda tenso, Chan prosseguiu cautelosamente invadindo o ambiente. Reparou que nem mesmo Bern se aper- 128 Jairo Martins de Souza cebera da movimentação, pois o próprio corpo do segurança de M absorvera os ruídos dos impactos da porta contra a parede. Puxou-o para dentro. Tinha o nariz quebrado e o supercílio aberto. Amordaçou-o. Charlie fora massagista de time de futebol em sua juventude, e rapidamente estancou o sangramento na região dos olhos com chumaço de algodão. Amarrou-o com barbantes e tiras que trouxera em bolsa colocada em cinturão. Ultrapassada a sala de estar, estava prestes a entrar no quarto onde M repousava de suas iniqüidades. Foi no exato momento em que percebeu, por meio de sombra projetada pela luz do corredor, que um segundo homem se aproximava perigosamente. Vinha sorrateiramente do banheiro. O golpe passou perto. Como nos filmes de Bruce Lee, Chan aproveitou a energia da qual o próprio agressor vinha possuído e com preciso movimento de mão espalmada, atingiu-lhe a base traseira do crânio. O homem caiu sem sentidos. Vai dormir por tempo suficiente, foi a projeção que o detetive vaticinou. Havia medido a pancada com precisão. Voltou a investigar meticulosamente ao redor. Ao abrir a porta do aposento sentiu ar fresco no rosto. A corrente de ar que circulava de forma contínua fê-lo olhar para as cortinas que dançavam vagarosamente tocadas por ventos suaves da madrugada paulista. A janela estava aberta e a cama vazia. Assustado, M havia escapado pela escada de incêndio externa ao edifício. Bom para o detetive. Basta de violência por hoje. Não foi difícil localizar a pasta deixada na boca de entrada dos dutos de refrigeração. Aliviado, foi até a porta do apartamento e, curvando o dedo indicador, convocou Bern que o aguardava ansioso. – E então? – Tudo sob controle, Chan respondeu-lhe. Missão cumprida. – E quanto a esses dois homens? – Não estão mortos, mas M provavelmente os substituirá. Não admite falhas. Já avisei ao gerente de operações para dispersar pessoal conforme planejado. Saiamos pelo elevador de serviço. Tudo dá a entender que a operação patinhas já faz parte do meu arquivo morto... A pasta, doutor Bernard, é toda sua! Dossiê Monlevade A 129 Capítulo 27 A verdade í está. O tal contrato de exclusividade não existe! Toda a documentação encontrada na pasta de M fora cuidadosamente colocada, por Bern, sobre a mesa de reuniões do escritório de Chan em subúrbio paulista. Aqui temos apenas propostas técnicas e comerciais de fornecimento de couros, tintas e vernizes da Verlon para uma empresa que M mantinha aqui nessa capital. O homem é um mentiroso! Veja, Sr. Chan, o fax que tenho em minhas mãos aniquila tudo sobre o assunto. São Paulo, Para Sr. M. De Verlon S/A. Caro senhor, respondendo sua consulta, informamos que não temos como política empresarial fechar contratos de exclusividade com empresas e particulares, quaisquer que sejam os objetivos... Causa-nos espécie a sua proposta, etc. Dossiê Monlevade N 131 Capítulo 28 Onde o escritor disseca o dossiê ão tenho dúvidas! A ordem com que foram organizados os papéis do dossiê de São Benedito (conforme nomeado por cronista do judiciário. Tal apelido está ligado a nome de córrego existente nas vizinhanças do já referido moinho de grãos), faz-nos concluir que fora escrita no conceito folhetim. Mesmo formato com que Machado liberava seus romances ao público, no apagar das luzes do século dezenove. Por partes! Na ocasião, volto a dizer deste dossiê, talvez entregues pelo autor a alguém que, sob orientação expressa, guardavamnas sem mesmo saber o que nelas constava. A razão? Elementar, como solicitamente esclareceria S. Holmes ao médico Watson. A fragmentação do próprio texto explica. A suave tentativa de interatividade, de quem relatou, reforça. Portanto os textos pedem explicações. É aí que entro. No entanto, há momentos em que, tanto você, como eu, precisamos de breve recapitulação. Como agora. Um certo cofre encontrado acidentalmente, tal como se introduz aventuras do arqueólogo Indiana Jones (que Harrison Ford tão bem encarnou!). Um rapaz estrangeiro quer conhecer antepassado importante. Um desconhecido, M, de gerente, em inglês, ao que tudo indica, um empresário aventureiro, chega à próspera João Monlevade. Dotado de poderes especiais, seduz a grupo de comerciantes local. Funda empresa coletiva e gasta mal. Arrebanha, sob vistas grossas de banco estatal, dinheiro para... Dossiê Monlevade 133 Capítulo 29 P A confissão. A garantia. O Fiador. assados poucos meses após reunião da diretoria em Luxemburgo, – da qual tomamos conhecimento na pasta de número 19 deste dossiê–, o Banco de La Nación inquietou-se novamente. Baseado em fortes indícios, investigadores do setor de empréstimos negavam soluções a gerentes que se sucediam repetidamente. Não. O banco nada receberia em retorno do empréstimo concedido a M. Nem do próprio. Nem da Fruit. Momentos de tensão. O setor de cobranças judiciais se exaltara. Também percebera que a transação ofendera às normas contratuais da empresa monlevadense. Faltara-lhe, estamos dizendo do De La Nación, a assinatura do sócio Jaime Raimundo, anteriormente negligenciada. O banco não se fez de rogado. A determinação veio de cima. O diretor ilustrara o comando, lembrando famosa frase de H. Kissinger: no mundo nunca há nada de graça, sempre alguém paga a conta do jantar. Desde que não seja uma instituição bancária, complementou. Para bom entendedor, meias palavras bastam. A ordem tinha tom raivoso, como se fosse judicial. Cumpra-se. Se não de M, e da Fruit, o De La Nación deveria receber de alguém. Com esse objetivo foi montada força-tarefa – uma task force, no linguajar dos seus gerentes – para montar plano de ação. O mal feito deveria ser corrigido. Ainda que fosse por meio da montagem de outro. Mas que este surja efeito desejado, alertou indignado. O que a instituição não pode, definitivamente, é ficar em prejuízo. Nossos acionistas não podem pagar por nossos erros. Fez também ameaças. Talvez encaminhe inquérito administrativo. 134 Jairo Martins de Souza Mas isso fica para depois. Peço empenho especial de todos os senhores para resgatar esse crédito. Para tanto, contamos com ajuda de equipe especializada. Na verdade, consultoria acostumada a articular recursos razoavelmente dentro da lei, mas incubados de pontos obscuros. Sua arte é inseri-los de tal forma a não serem percebidos por olhos desatentos ou desavisados. Esse grupo de apoio, – escolhido a dedo –, é composto principalmente de advogados habituados a lidar com oportunidades. A solução não tardou por esperar, pois, em tarde de inspiração incomum, os olhos do chefe do setor jurídico brilharam. O motivo? Lembrara-se de Jaime Raimundo. E de M. Recordara-se da possibilidade de engendrar confissão. Pensou sobre ela. A consciência doía-lhe. Na realidade era homem de bem. No entanto, não era essa a hora de desenterrar o defunto? Não fora essa a orientação do presidente na decisiva reunião de Luxemburgo? Poderia aprimorá-la e armar emboscada para o comerciante. O palpite partira ao longo de sessão em que, para seleção de idéias, exercitavam prática de brainstorm. O Jaime! O ex-diretor da Fruit. Ele é a chave da porta para saída de provável prejuízo. Era dele a assinatura que faltara na ocasião da negociata com M. Nada melhor do que ela mesma para dar ar de seriedade ao que venhamos a fazer. Antes tarde do que nunca! O bancário buscou documentos e recordou que realmente era ele, estamos dizendo do monlevadense, que, na ocasião, ocupara o cargo de diretor da Fruit. Por poucos dias. Tempo suficiente. Como Jânio Quadros, quando governou o Brasil. A lembrança fez-lhe acelerar mudança de humor e sorrir para si mesmo. Danem-se meus antigos estudos de ética kantiana. Dane-se tempo de seminário e do PCB de Prestes! Já estou dentro do jogo. Agradava-lhe demonstrar conhecimento da história da sua maltratada pátria. Não que a situação fosse igual a do ex-presidente, afinal de contas, o comerciante não fizera carta-renúncia. Nem nada. Estão lembrados que M destituiu-o, estamos novamente dizendo do Jaime Raimundo, em reunião relâmpago, conforme exaustivamente repassado nos autos deste Dossiê Monlevade 135 dossiê? Não no papel. Aí que está! Bingo! Não estamos em Vegas, mas acertamos o jackpot! Foi o que o contratado satisfeito deduziu. Muito do que aconteceu na formação da sociedade da Verlon Fruit Shoe foi feito de forma verbal. O homem sorriu e disse para os que ouviam, verba volant, senhores, verba volant... A justiça leva em conta somente documentos escritos, aqueles que fazem parte do seu mundo de fantasia. O das letras. O dos sonhos. O do coelho de Alice... Com isso, o banco pode, senhores, por meio de preciosa aliança já ratificada com M, aplicar pressão adequada, coagindo psicologicamente Jaime Raimundo, e esposa, a assinarem confissão. Por exemplo, conforme primeira idéia, dizendo ao casal que tal colocação de assinatura trata-se de mera formalidade. Inclua-se aí que seja feita, estou ainda dizendo da assinatura, em local distante do ambiente psicológico e do ritual de ambiente fechado de cartório. Sem testemunhas. Ainda que no próprio documento conste absolutamente o contrário. Advirto que, não sendo assim, pode parar para pensar. Pode até mesmo não assinar. Temos que pegá-lo, – esta é uma boa sugestão –, quando estiver bem ocupado, com todos os sentidos voltados para a produção dos frutados da empresa que estamos por executar. O ideal seria quando estivesse no calor de canteiro de obras, com a cabeça dirigida para as agruras do trabalho, enfim, sob sol quente e a sujeira do minério vermelho dessas terras. Diremos, nada lhe acontecerá, prezado Jaime, afinal de contas, tens garantia de imóvel colocado à disposição por M e seus queridos. Esse argumento foi, por nós, vastamente estudado. O advogado excitou-se. Tinha os ânimos totalmente transformados. Apertava as mãos de satisfação. O riso tornou-se torto. De cachorro. Do Rabugento, o malicioso protagonista das redes a cabo de televisão (o texto integral do dossiê informa ser esse o Rabugento, o Muttley, o cão detetive do desenho animado que tem riso característico, irônico, enfim, paródia feita a partir de Columbo, o dissimulado detetive estrelado por Peter Falk. O que tinha um olho de vidro). O bancário do setor de cobranças gostava de assisti-lo. 136 Jairo Martins de Souza Pelas informações que recebera dos psicólogos que trabalhavam a serviço do de La Nación, conhecia bem Jaime Raimundo. Homem com origem no campo. Crédulo. Assinaria facilmente como fiador. Especialmente sob ameaça de demissão da própria Fruit Shoe. Para tanto, solicitaria a M, o homem ainda lá se mantinha como diretor, que prosseguisse cumprindo seu papel, decerto, usando, mais ainda, a força da representação da Vulcabrás. Afora isso tudo, faria constar, no documento, a ilusória garantia hipotecária mencionada em Luxemburgo! Levaria a idéia à diretoria de sua instituição. Sorriu mais uma vez pensando, e assumindo o grande valor que tivera para ele a famosa reunião daquele Principado. Para confirmar, revirara páginas até tranqüilizar-se com o seu escrito integral, à página 103. Foi com tal carta na manga do paletó que se encaminhou até a sala do conselho de administração. Veja, caro Senhor Diretor, o que está aqui escrito. De forma literal, Ipsis litteris (como advogado de elite, mais do que o usual, o funcionário insistia em usar frases em latim. Achava chic). Ouça. Alguns dos nossos associados já ouviram essa frase anteriormente. São declarações do próprio M… devo, não nego, Jaime Raimundo irá pagar. Precisamos desse homem. Precisamos desse Jaime Raimundo. Encontramos o nosso Jesus! Essas três últimas frases, ditas com entusiasmo, brotaram da garganta do presidente da instituição. Daí tudo foi feito a toque de caixa. Poucas horas depois, a pedido do de La Nación, o cartório de Santa Cruz de La Sierra já elaborara documento com seguinte explicação no frontispício: confissão de dívida com garantia hipotecária. Por que tal cidade boliviana? Perguntou Jaime Raimundo muitos anos depois. Teve resposta seca de um magistrado: foi opção do banco. Aproveitouse de brecha legal. No conteúdo, M e seus parentes assumiam a dívida contraída em nome da Fruit. Como fiador, estava em aberto campo adequado para o pobre Raimundo e a esposa que, durante todo o episódio, prosseguia com a rotina de cozinhar e tratar dos filhos e agregados. Ela, praticamente, não aparece nos autos! Dossiê Monlevade 137 Enquanto isso, já de posse do documento – na ocasião, chamado de doc Santa Cruz –, em arquivo pdf, os advogados do banco, e o representante do tabelião, atravessaram a madrugada trabalhando. Às 4 horas, precisamente, deram trabalho como concluído. Os galos ainda não haviam cantado. Nem uma. Nem duas. Nem três vezes. Talvez tenham se lembrado de Pedro, o apóstolo que vacilou na fé. O jato executivo especialmente fretado já se encontrava estacionado em hangar especial do aeroporto de Graal. A bordo estavam M e seus associados do de La Nación. Grupos de homens foram espalhados imediatamente para localização do cobiçado fiador. Tarefa fácil. Desnecessário dispêndio de recursos. Gosto de fazer como o FBI faz, comenta um dos doze detetives participantes. Jaime Raimundo foi pego em plena atividade capinando pragas que atacavam abacateiro em uma das áreas selecionadas de sumos da Fruit. Instantaneamente repromovido a sócio-gerente pelo Diretor, simplesmente indagou ao banqueiro. Mesmo sendo o que disseste que sou, no papel, por que devo fiar obrigação que toda a família de M assume ter contraído e aqui se responsabiliza? – Não se amofine. Trata-se de mera formalidade. Inclusive está escrito aqui na capa que há garantia hipotecária dada por M para essa operação. Uma casa, de valor, localizada em São Paulo. – Não entendi bem. Respondeste-me pergunta que não fiz. – OK, então, a resposta que tenho para o senhor é: não sei! M simplesmente encaminhou-nos até vossa senhoria. O de La Nación gostou da idéia. Tens cadastro mais branco que as glaciais antárticas. A propósito, ele também nos disse algo quanto a cortar vendas de mercadorias para seu negócio! Melhor que assines agora (ah, Raimundo, é claro, que conforme está escrito aí, por sua importância, esse ato de confissão teria que acontecer dentro de cartório. Se possível com ar refrigerado. Não aqui nesse local pleno de poeira e suor. Na mão terias caneta tinteiro e não essa enxada que tens pendurada nas costas, enfim, ao lado de testemunhas, e lida em voz alta pelo tabelião. Serias alertado que 138 Jairo Martins de Souza a garantia hipotecária é parcial. Não total, como lhe disseram, e como não mostrado na capa do documento. Obedecerias a um ritual. A uma cerimônia. Não assinarias. Mais claro ainda é que, aqui, não consegues ler essa letra miúda, até mesmo apagada em pontos chaves, ou entender esses termos jurídicos e números que aí colocamos. Esquisitos. Mesmo que não redigidos em aimará ou quíchua: línguas bolivianas. Tudo isso é considerado futilidade. Tanto por nós, como pelos órgãos do Estado). – Estou confuso, diretor. Envergonho-me de dizer-lhe, mas não ouvi direito as frases que disseste. Soaram-me como murmúrios. Não as entendi. As últimas, em especial, pareceram-me língua dos anjos. Tenho problemas de audição nas duas orelhas. – Disse-lhe que M pediu-nos para reforçar que estamos próximos do Natal. Você pode ter aborrecimento com falta de mercadoria. Estás se esquecendo da representação da Vulcabrás que ele diz ter sob controle? Já reduziu a cota do Bazar. Pode cortar-lhe tudo! – Não. Não me esqueço desse poder especial desse diretor da Verlon Fruit Shoe. Nunca. Foi motivo capcioso pelo qual me ajuntei à sociedade. Continuo tendo medo. Tenho família e filhos para criar. Dê-me cá. Não quero aborrecimentos com M. – A sua senhora também deve apor assinatura! – Por quê? – És casado em comunhão universal. Preciso do de acordo do casal. – Está em casa, preparando almoço e olhando as crianças. Simplesmente diga a ela que solicitei que assine onde indicado. Não se amofine. – Agradeço. Encontrar-nos-emos nos salões da justiça dos homens. Um mundo que não conheces. Um mundo fechado. Um mundo fechado a 7 chaves. O mundo fechado do Direito civil. – Não entendi bem o que disseste. – Entenderás mais tarde. No dia seguinte... Mãe, tem um homem aqui na varanda de casa! Diz precisar de assinatura autorizada. – Estou indo. Estou indo... Bom dia, moço (Paro por aqui. Atendo à ordem do analista desse envelope de número 17. Diz Dossiê Monlevade 139 ter razões de sobra: “o capítulo é por demais penoso, e poupolhe leitura de escrita que pode vir a ser repetitiva”. O fato é que o escritor, – o que não é comum –, decidiu por não antecipar aqui a mesma redação de outras cenas futuras. Diz que são diversos os trechos em que há malsinadas coletas de assinatura. Mas também não promete colocá-las quando de suas ocorrências. Aí não entendi bem! Mas garantiu ser tal omissão plenamente justificável, confirmando não comprometer o entendimento do processo, e complementa de forma literal: “decerto que, nessas ocasiões, a frase final é a mesma, quando o oficial de justiça agradece, dizendo, (sic), obrigado. Obrigado, senhora. Obrigado pela assinatura!”). Dossiê Monlevade O 141 Capítulo 30 Amor s finais das tardes, no Hotel Cassino, traziam a reboque algo que Bern Monlevade desconhecera até então. Anda. Anda mais rápido, tempo! Às vezes o tempo não lhe obedecia. Aí o jovem dava-lhe troco, deixando-o vagar solitário nas dependências de seu apartamento. Seguia mais cedo para o Alto da Samambaia. Lá, no topo do mundo, mais perto do céu da Vila Tanque, mergulhava em pensamentos, a bordo do Bel-Air, até momento certo de acionar a campainha da casa de Marie. Gostava de ouvi-la repicar. Era suave. Como o da Avon Chama. Nem preciso dizer que o moço era correspondido. Por incontáveis vezes já repetimos isso. Mas o amor feminino é assim: precisa confirmação todas as manhãs, todas as noites… O casal em que o marido serve o desjejum para a mulher na cama todos os dias, é mais feliz. Tem mais valor que carregá-la no colo! O rubro na face da garota matava-lhe qualquer sombra de dúvida e fazia-lhe bater mais rápido o coração! Se quiseres, minha amiga, podes dizer de coisas mais românticas que fazem o mesmo efeito. Por exemplo, como a história de um sapo que se transforma em príncipe, ou um pezinho que cabe em sapatinho de cristal... Mas a vida não funciona assim! Então devo voltar imediatamente ao encontro vespertino entre Bern e Marie. Encontramo-los sorrindo! (Ah, ao ver tal cena, peço desculpar-me pela distração que tive ao encher lingüiça, enfim, fazendo mau uso de tempo precioso. Não é que tenha cometido pecado capital, mas percebo que, desviando-me dos dois namorados, quase tirei de você sensação agradável que amolece, é certo, até mesmo o co- 142 Jairo Martins de Souza ração duro de banqueiro nacional). De fato o que se vê são duas juritis encostando biquinhos. Que permaneçam usufruindo desse gozo celestial, enquanto os observamos suficientemente de perto para ouvir o que dizem um para o outro. Provavelmente de boca deverão ser falas comuns. Como passaste de ontem para hoje? Um doce de leite com queijo minas? Tímidos, não ainda se abriram de fato com os predicados da linguagem, mas, sabemos, é óbvio, que o corpo fala por eles. Que se mantenham silentes, pois a cada novo encontro tudo recomeçava do zero. As emoções, o encantamento... Não lhes aborrecia o barulho de alguns carpinteiros que, na casa ao lado, preparavam palanque para reza de missa ao lar livre. As procissões religiosas da Vila Tanque sempre foram famosas e fazem parte da tradição local, foi como, a ele, Marie explicara. Dissera também que o mês de maio era o mês de coroação da Virgem. No fundo queria aproveitar e dizer-lhe ser, além disso, o mês das noivas. Sem perceber, finalizara informando que há anos atrás não se permitia a presença de negros e índios na tal celebração. Passado infeliz! Bern era católico e gostava de discutir religião estabelecendo paralelos com a filosofia e a psicanálise. Não hoje. Bastou-lhe, já que Marie dissera algo característico do Brésil, retrucar com mais um orgulho de francês. A França, Marie, é na Europa, a filha mais velha da Igreja, alguns a chamam a primogênita de Maria. A história Mariana da França teve início bastante cedo, dissera! Quarenta anos, digo 40 anos depois de Jesus Cristo, uma embarcação acostou às margens da região de Marselha, trazendo a... Nesse ínterim, o pai da moça, que aparecera rapidamente para saudar o rapaz, aproveitou para convidá-lo para jantar. Fazia gosto em ver a sua querida assim tão bem acompanhada. Bom moço. Talvez daqui a alguns dias venha conversar comigo em especial. Se não me chama breve, chamo-lhe eu. Estamos em Minas Gerais e já passa da hora de identificar as suas intenções. Por ora sei que são somente amigos, ah, esses jovens…, hoje nunca se sabe ao certo. No entanto, o que temos para essa noite é frango com quiabo e angu. Frango de terreiro: carne magra e Dossiê Monlevade 143 dura. Saborosíssima. Típico manjar dos mineiros. Para acompanhar, tenho garrafa de bom tinto chileno, o Toro de Piedra. Para aperitivo, se for do seu gosto, posso servir cachaça de Salinas. De primeira. Toma. Cheira. Experimenta. Joga um pouco no chão. É para que os santos não nos deixem faltar. Chama-se Guaraciaba. Tenho também a Leonor... Não. Obrigado. Ela é mesmo boa. Não arde. Mas ainda não tomei gosto por cachaça pura. Somente quando misturada com gelo, muito açúcar e limão. Experimentei logo quando cheguei ao Brasil. Muito forte. Melhor ficar com o vinho. Vou buscá-lo... O agradecimento viera acompanhado por largo sorriso. O quê você dizia antes de papai entrar, Bern? Marie indagaralhe, retomando a conversação. Seus olhos brilhavam. Como luz! Dossiê Monlevade 145 Capítulo 31 O pai de Marie convoca Bernard... N ão sou Jessé, o pai da jovem disse-lhe, nem quero trazer à baila antiga história bíblica, mas sou pai de uma outra santa. Uma outra Maria. Sei que o senhor chama-lhe Marie. Por ser assim, gostaria de ter algumas satisfações. Antes disso, faço-lhe elogio. Reparei que brincaste e fizeste afagos na nossa cadela quando aqui chegaste. Pelos abanos de rabo, a alegria e o olhar ansioso do animal, parecia que era o próprio dono quem chegava após longa ausência. Gosto disso, senhor Bernard. Gosto de pessoas que apreciam animais... Lembram-me Francisco, o santo. Aliás, minha filha disse-me ser o senhor homem católico. – Sim, é verdade (foi o que Bern respondeu-lhe, sem deixar de reparar que, pela terceira vez, fora chamado com o pronome de tratamento, senhor. Aí rapidamente entendeu que se o pai de Marie tivesse dito você, poderia julgar estar sinalizando aproximação não desejada para momento solene). Estou em audiência especial, sorriu intimamente, lembrando-se dos tribunais de Paris onde era chamado não somente de senhor, como também doutor. Então o pai de Marie desfiou o rosário, explicando que sua família era assim, era assado, inclusive repetindo, somos descendentes distantes do povo francês etecoetera e tal, e que sonhara e fizera versos românticos quando nascera-lhe a filha e, finalmente, decerto ele e a esposa sonhavam para ela um casamento com rapaz católico, e novamente acentuando que ficara satisfeito que o pretendente atendia àquele quesito... A tudo Bern escutava com atenção. Interessante! Em nenhum momento, ele, Bern, dissera de tão distante intenção conju- 146 Jairo Martins de Souza gal – ainda que avisado antecipadamente sobre algumas atitudes arraigadas desse povo. Riu com seus botões, lembrando-se das recomendações do político mineiro que conhecera no Copa. É claro, era educado. O chefe da casa falava. Ele ouvia. Fase das exposições. Daqui a pouco passará para o interrogatório. Ele deve ser tudo aqui, segundo a tradição: promotor, testemunha, provas, juiz... No final, cedera a tamanha precipitação e dissera que queria namorar a filha do monlevadense. Agora teria que dizer abertamente para a própria. Já em hora avançada – dorme-se cedo na bucólica Vila Tanque – fez acordo de horários e outras combinações. Não sei se é conveniente que venhas todos os dias. Temo a língua comprida da vizinhança. Falo não por você, mas por puro zelo pela reputação de minha filha. Cumprido papel de pai, o dono da casa voltara ao normal. Com um despropósito! A longa conversa impedia-lhe de convidar o namorado da filha para degustar costelinha assada com bastante alho na sua capa de carne. Fica convite postergado para amanhã, dissera, recolhendo-se para a área de dormitórios da mansão. Ah, que aquela conversa não chegue aos ouvidos de mamãe e Liviah. Temo que tenham reação de genuíno protesto. No entanto, Marie não teve a mesma atitude. Não protestou. Sim. Quero namorar com você, Bern! Se você não me pedisse, pedi-lo-ia eu. Já com meu pai quero ter ajuste de contas. Não agora! Dossiê Monlevade 147 Capítulo 32 Não se vive somente de problemas. O turfe monlevadense P áreo final do grande prêmio Vale do Aço. Montados por jóqueis de renome mundial, – incentivados pela presença, na platéia, do proclamado cavaleiro Nelson Pessoa –, elegantes e portentosos cavalos galopavam já perto da linha de chegada. Parecem-nos dos árabes que serviam aos oficiais da Legião Estrangeira. Alguns arfavam vigorosamente. Fosse sacada fotografia aérea, com aproximação via satélite, ver-se-ia que a nata da cosmopolita sociedade monlevadense ocupava todos os espaços do hipódromo de Areia Preta. As mulheres, vestidas com esmero, traziam elegantes e vistosos chapéus. Alguns totalmente brancos. Outros coloridos. Perfeitas combinações com os vestidos e as, às vezes, quase imperceptíveis anáguas. Enfeitavam graciosamente as instalações sóbrias do requintado ambiente. Já a proximidade do final de dia trazia a bordo o frescor das tardes da região. Então os homens, sem desconforto, trajavam belos ternos de tecido leve e chapéus da moda. O uso do tecido de linho branco havia retornado com grande intensidade. Alguns, além disso, compareciam desnecessariamente apoiados sobre bengalas de luxo. Algumas de suas pontas eram decoradas com cabeças douradas de onças, leões, etc. Como as dos lordes ingleses do século dezenove. Reunidos em pequenos grupos, não deixavam de elogiar o desempenho dos animais, e o gosto apurado das mulheres que, aqui e ali, exibiam os últimos lançamentos da moda mundial. Marie exultava de felicidade e destacava-se entre as beldades presentes. Ofuscava de certa forma até mesmo a famosa modelo 148 Jairo Martins de Souza internacional, Naomi Campbell, que fora exclusivamente convidada para ilustrar o evento. Não. Não que fizesse de propósito. Atraía os homens como o pôquer faz com o jogador. Por onde passava, prosseguia sendo avaliada em altíssima conta no julgamento que homens e mulheres sempre fazem nesses acontecimentos sociais. Não é o homem o árbitro da elegância? Mesmo quando durante tempo de espera de um para outro páreo, ela abria seu encantador sorriso. Natural. A moça, nesses tempos em que a cada esquina de Monlevade há consultório de profissional especializado, era das poucas a ter esse predicado dispensando aparelhos ortodônticos e outros artifícios. Fora privilegiada por dádiva materna. Uma abelha que próxima dela voasse; um vendedor de sorvetes que pedia passagem; um aviso de alto-falante comunicando vitória de cavalo a ou b, enfim, um azarão, tudo era motivo particular para que seu encantamento não cessasse. Ao seu lado, Bern Monlevade respirava satisfação. Nada que ocorresse fora do espaço ocupado por ele e a moça trazia-lhe grande interesse. Por olhar faceiro da namorada, perdera até mesmo o final de concorrido páreo em que um dos cavalos vencera por diferença ínfima. A decisão dos juízes somente tomada após consulta a tomadas fotográficas quadro a quadro. Em corridas de cavalos vence-se por frações de cabeça. Não milímetros. Fato incomum que deveria ser normalmente festejado pelo rapaz. Mesmo com a gigantesca tela digital colocada à disposição da platéia, no momento crucial, olhara Marie de perfil. Estava devaneando. Abaixo do contorno daquele vestido branco, com bolinhas vermelhas, repousavam os seios da mulher que sonhava beijar. O decote era discretíssimo (Deus que me livre, pois não escrevo aqui levianamente. De sexo e amor falo de alma e corpo que pensam em se misturar com a bandeira de nobres sentimentos). A moça parece que adivinhava os seus desejos e, intimamente, pensava olhando para os lábios do amado. Esses são os que beijarão a mim e aos meus seios ainda intocados. Também o farão seus filhos, mas terei para o pai espaço exclusivo e reservado em que tentará eliminar a eterna falta masculina do amor materno. Fortíssimas vibrações circulavam entre eles. Incontroláveis. Pres- Dossiê Monlevade 149 sentindo a interminável sintonia, disseram juras de amor um para o outro com a linguagem profunda do olhar. E assim seguiram pronunciando, calados, mas repetindo frases perdidas por séculos e séculos e que, provavelmente, as mesmas disse Adão para Eva quando a cortejou no metafórico Éden. Milenares. Das que, ao longo de todo aquele tempo, foram muito bem descritas pela linguagem da poesia erótica de grandes poetas, ou até mesmo nos versos puros da métrica bíblica do Rei Salomão. O tempo cá não existe como contado nos ponteiros de um relógio de pulso. Nesse passo sem rumo, os dois enamorados prosseguiam embriagados pelas sensações do amor que prospera. – Você é o meu rei. – Sou sua rainha. – És de longe. – Sim. Sou francês. – Eu sou brasileira. Mas sigo para onde quiseres. – Inclusive a longínqua Guéret que nunca em sua vida tinhas ouvido falar?... Dossiê Monlevade 151 Capítulo 33 Onde se diz de sinais da execução. Jaime Raimundo busca ajuda de Bern B ern leu o edital publicado em um dos matutinos monlevadenses de alta tiragem. O atual Planeta Diário de Monlevade era antigamente chamado de o Morro do Geo. A data de sua edição passava de uma semana atrás, mas ao apanhá-lo, para descarte no lixo, o formato do anúncio havia-lhe chamado atenção. Lera com alguma dificuldade. As letras eram miúdas e em português confuso: pareciam digitadas em fonte harlow solid itálico: O Exmo. Sr Juiz da 4ª. Vara... convoca Jaime Raimundo, comerciante de João Monlevade, para ser penalizado sobre empréstimo ilegal a que fizeram jus certo empresário M e familiares associados. Consta aqui que o indiciado assinou, não importa sob que condições, junto com sua senhora, ser fiador de confissão de dívida referente a tal empréstimo, empréstimo este concedido ao já citado M pelo banco de La Nación. Aqui se executa somente tomando em conta os termos objetivos da questão. A não ser que haja instrução contrária do cobrador bancário, dou-lhe um, dou-lhe dois, dou-lhe três dias para comparecimento cá nessa vara para pagamento imediato. Caso contrário, serão penhorados, caso existentes, todos os bens do executado, móveis ou imóveis, sabidamente conquistados por meio de trabalho sob Sol nordestino. Trabalho duro. Aproveito e aviso que, a despeito de o Estado ter constatado, por meio de vistas às anotações da carteira de trabalho do executado, que esse trabalha desde a tenra idade de 15 anos, não considera tal fato relevante. E, dessa forma, dentro, 152 Jairo Martins de Souza e fazendo uso dos seus poderes, classifica-o como empresário, e manda executar, reforço, todos os seus bens. Sumariamente. Demais instruções deverão ser negociadas diretamente com o oficial de justiça. Esses termos têm reforço no braço armado do nosso governo. As pressões psicológicas deverão permanecer durante todo o tempo de existência desse indivíduo e de sua família. Demais sanções, informarei a tempo justo. (A) fulano de tal – Juiz de Direito. – Não é esse o meu amigo comerciante que aparece nessa notificação, Marie? – Sim. É ele. Interessante. Estava hoje com a esposa comprando carne no açougue próximo de casa. Moram aqui na vila, na Rua do Contorno, lembra-se? – Parecia triste? – Não. E não pareciam sofrer de mal algum. Não me pareceram preocupados. Inclusive estavam com quase todos os filhos, que são muitos. Uns davam as mãos aos outros, fechassem as extremidades pareceriam estar brincando de ciranda: são três brancos, três pretos e uma loirinha. Bern riu das divagações infantis de Marie. Tudo que a moça fazia, chamava-lhe atenção. Pensou nisso e mais ainda que, de outra feita, uma chamada do judiciário é sempre algo especial. Lá se pratica a justiça dos homens, – que é rigorosa com os humildes. Provavelmente o casal não soubera do chamado obrigatório do Exmo. Sr. Juiz. Dou-lhe um doce, se não for assim, dissera para Marie. Sabia ter grande chance de estar certo. Totalmente alheio às coisas da administração da Fruit, Jaime Raimundo não tinha conhecimento do acordo entre o de La Nación e M. Assinava alguns papéis por obrigação, pois de fato dedicava-se com total afinco à área de produção, tanto da empresa quanto do seu pequeno negócio. Ouvia rumores no chão de fábrica que M promovia isto e mais aquilo outro… Tinha outros barcos para ver passar. Afinal de contas o Bazar era-lhe suficiente para arcar com as despesas de sua extensa família, filhos, parentes e agregados. Dossiê Monlevade 153 Bern ficara constrangido; Marie, preocupada! Ele conhecia leis. Ela, alguns amigos que andaram estagiando no judiciário local. Nenhum deles gostara dos termos da convocação. Às dezessete horas do dia seguinte, Marie estava pronta para sair e acompanhar procissão relativa a festividades de coroação da Imaculada. Bernard não aparecera conforme combinado. Pelo celular, informara à namorada que fora solicitado, por Jaime Raimundo, para comparecer, não na sede da Fruit em Rio Piracicaba, e sim no seu Bazar da Rua da Favela. Dissera tratar-se de assunto urgente. Com isso, atinava ser algo relativo ao que ambos haviam visto no Planeta. Depois explico tudo a você. Parecia apressado. Terminou com um beijo, alertando que deixara o Bel Air na garagem do hotel. Seguiria a pé. Dossiê Monlevade A 155 Capítulo 34 Entenderás mais tarde! insinuação do Diretor do banco de La Nación nas linhas finais do capítulo 30, o “entenderás mais tarde”, estava prestes a se tornar real. Logo após Jaime Raimundo voltar a fazer o trabalho de capina, o executivo complementou para um dos agentes federais que o acompanhavam na coleta de assinatura: de hoje a dias esse homem não terá alternativa. Deverá contar milhões de carneirinhos que pulam cerca antes de ter qualquer esperança para conseguir sono. Desmaiará de cansaço. Profissionais como M são imunes a esse tipo de insônia cruel! Têm almas leves e livres de qualquer censura moral. Jaime Raimundo por sua vez, certamente acabará por cair em poltrona de terapeuta ou psiquiatra. Pobre diabo! – Estás com pena? Indagou, surpreendido, o assessor. – Não. Acredito na predestinação divina. Não se espante. Até mesmo nós, banqueiros, reconhecemos a existência de Deus. Aliás, até mesmo conversamos com Deus. Não recordas do longo diálogo que Jesus manteve com Lúcifer em deserto asiático? De certa forma aqui na Terra somos cover do demônio. Particularmente dirijo-me a ele – não ao diabo, mas a Deus – todos os dias. Minha meta é angariar perdão para pecados cometidos. Com o que o riu nervosamente, uma vez que, ao dizer isso, quase caíra ao atropelar um galho de goiabeira que fora podado, e ainda não recolhido pelo setor competente da Verlon. – Basicamente quero receber o meu, prosseguiu o endemoniado, já disse: doa a quem doer. Carrego esse fardo. Minha vida é cobrar. Sou um cobrador. Podes comparar-me, se quiseres, ao 156 Jairo Martins de Souza protagonista de mesmo nome do Rubem Fonseca. Algo daquela sua crônica caber-me-ia bem. Aliás, povos de todos os mundos identificam-me como gente simplesmente porque ando com duas pernas e tenho o dedo polegar que nos diferencia dos macacos. Não dizem também que o banqueiro é o único ser humano desprovido de coração? Foi o que ficou confirmado naquele dia. Sigamos com o desenrolar dos acontecimentos. Por exemplo, a reunião fechada entre o dono do banco e seu grupo de apoio para a cobrança que se tornara efetiva. Agora, senhores, dissera, tenho documento pressupostamente legal. Por favor, no folder de vocês, abram na página 666 do processo onde se inicia um documento chamado Confissão. Prontos? – Sim. E então? – Vejam com detalhes que um fulano chamado Raimundo e senhora assinaram como fiadores. Aliás, não somente eles, como também alguns parentes próximos de M. É claro, tanto esse como a família não dão garantia real a nada. Constam aqui somente para dar idéia que o documento tem amparos extraordinários. Da mesma forma o escrivão escreveu aqui sobre imóvel que permite chamá-lo de confissão de dívida com garantia hipotecária. Aí é onde enganamos mais tanto Jaime Raimundo, quanto a esposa. Na capa colocamos garantia hipotecária. No interior do documento, com letras miúdas, quase ilegíveis, inserimos restrições. Na realidade o valor do imóvel cobria um pouco mais de cinqüenta por cento da operação. – E quanto ao próprio M? – Já executamos a casa que ele e a família nos deram como garantia fictícia. O que nada de efetivo resolve. Foi somente para encaminhar e dar andamento à solução que propomos. Estão lembrados que foi apenas para manter aparências? A isca para Jaime Raimundo morder! Não procuramos saber, custar-nos-ia tempo e dinheiro, se, já naquela ocasião, o imóvel ofertado era, ou não era, realmente de M e dos seus. Decerto que a tal casa nem cobria a operação de forma total, repito. Agora temos certeza que foi vendida antes de nos ser ofertada como garantia do Dossiê Monlevade 157 empréstimo repassado a M. Aí de certa forma o trairemos. Vamos acusá-lo, a ele e aos seus, de conspirar contra a justiça, por fim, de fraudar a execução de cobrança em andamento. Vamos então seguir com a operação, vamos chamá-la, a partir de agora, de 7 frutas. – Sete? – Sim. Sete. Pois são 7 são os pecados capitais. Sete são os filhos do Raimundo. Sete são os céus muçulmanos e se somarmos 5 mais, tornam-se doze, que por sua vez é o número de apóstolos cristãos. Também 7 são as frutas utilizadas pelas indústrias de M. Laranja, goiaba, limão, abacate, jabuticaba, manga e caqui. Exatamente os sabores atualmente usados nas sandálias da Verlon Fruit Shoe. Isso definido, o próximo passo é encaminhar documento para o judiciário. O objetivo agora é receber o crédito de uma vez por todas. Senhores, Raimundo é o nosso alvo, ou melhor, nossa vítima. – Algum magistrado em especial? – Não. É causa simples. Basta despacho de execução. Podese obtê-lo em qualquer comarca em que tenhamos contatos e ação! Como vimos, isso foi feito de forma sumária! Dossiê Monlevade 159 Capítulo 35 O oficial de justiça. Bern Monlevade assume defesa do Bazar D eus lhe pague! Foi o que um pedinte dissera a Jaime Raimundo após receber alguns tostões para compra de pão. A alma do comerciante era daquelas simples que não suportam recusa de algo pedido em nome e pelo amor de Jesus. Quantas vezes deixara de comprar pequenos luxos, ou até mesmo algo essencial, para ceder pequenos numerários a terceiros. Feita a caridade, já podemos vê-lo retomando o caminho do Bazar. Foi onde convidara Bern para reunião de última hora. Horário? Depois do expediente. Preciso de sossego. Assunto? Digo-lhe no local. Caminhava aborrecido: tinha razões para tal. O comerciante não havia visto a notificação publicada a mando de Juiz no O Globo e no Planeta Diário. A hipótese de Bern fora correta. Parcialmente, pois o judiciário tem, afora a imprensa escrita, outros meios para intimar qualquer cidadão. Veja-se cá em Monlevade onde, para maior eficácia de sua ação, várias atividades da lei civil podem ser levadas a cabo ao mesmo tempo. Por exemplo, o envio de carteiro ao domicílio do homem comum. – Mãe, tem um homem aqui na varanda de casa! Diz precisar de mais uma assinatura autorizada. – Com licença, é verdade madame (agora é o funcionário dos correios e telégrafos quem diz, avançando abruptamente pela sala da moradia), preciso comprovação de recebimento de correspondência convocatória de ida ao edifício novo do tribunal de justiça. É belíssimo prédio de granito preto recentemente construído no bairro de Graal. Foi o próprio juiz diretor quem 160 Jairo Martins de Souza assinou essa correspondência e pede pagamento em 24 horas. – Pronto. – Obrigado pela assinatura! – O que queria o carteiro de encomendas especiais, mãe? – Alguma coisa relativa ao Bazar, filho. Seu pai está de viagem. Quando chegar, resolve! Cerca de 36 horas depois, Jaime Raimundo disse: isso não é tão simples, mulher. Não entendo direito do assunto. O que me ocorre é conversar e pedir conselhos ao José Brás. Brás, recebi comunicação de cobrança de dívida assumida por M na Verlon. Não sei direito do que se trata, mas parece-me dinheiro grosso. Traz-me preocupação, e a mulher anda também aborrecida. Anda brigando com as crianças até mesmo sem necessidade. Nunca conversei com um juiz, Brás! – Contrate um advogado, Jaime Raimundo. Ele consegue falar com as autoridades do mundo jurídico. Deixe o assunto com o homem, e vá trabalhar em paz! Seguira conselho e contratara o causídico indicado pelo amigo. O homem é bom e não é daqueles de luxo que usam terno até mesmo quando comparecem a jogo de futebol, dissera-lhe. Basta pagá-lo adiantado. Isso formalizado, seguira para cumprir agendas extraordinárias para a Fruit e o Bazar. As despesas são grandes, ainda mais agora com um advogado nas costas, enfim, há necessidade de esforços redobrados, afirmara resoluto para a mulher. Conto como sempre com a sua prestimosa colaboração! Enquanto isso, no banco de La Nación, agora sob nova direção, os acordos, estudos e análises de juros e indenização concluíram que as execuções seguiriam a ordem de praxe. A começar com afastamento do diretor e o chefe de empréstimos que ajustara detalhes com M. Depois executaremos o próprio. – Esse M tem ficha mais suja que gaiola de pássaro preto. Não paga ninguém. Tudo isso foi dito pelo novo subgerente após consultar papel identificado como confidencial. – Então, como liberamos tal crédito? Foi o que indagou voz nova no circuito. Dossiê Monlevade 161 – São águas passadas, cavalheiro. Como você! Estás demitido por pergunta que pode denegrir imagem da nossa instituição! Conformado, o ex-funcionário que perguntara saiu silenciosamente da sala de reunião. Não queria perturbar a cobrança que se encontrava em pleno andamento. A nossa ação deve ser eficaz. Lidiane. Senhorita Lidiane. Faça memorando ao juiz, solicitando que peça seqüestro de bens. – De quem? – De Raimundo, naturalmente. Após deferimento pelo magistrado, o oficial de justiça deve seguir para a Vila Tanque imediatamente. Mais cem metros de caminhada e Jaime Raimundo chegaria ao Bazar. Seguia lembrando-se dos episódios que lhe ocorreram nos três últimos dias. Dignos do calvário de Jesus. Avassaladores. Soubera detalhes de alguns deles, tal como o destacado nas linhas acima, por meio da secretária do diretor bancário. Ele a considerava quase uma sobrinha. Ajudado pela Lua, que brilhava a meio caminho do céu, livrava-se de qualquer atropelo nas costeletas da Rua da Favela. Por tradição, ainda nela era mantida escassa iluminação com postes de madeira de lei e à base de lâmpadas incandescentes protegidas por pequenos capacetes de metal. Tipo chinês. Mas dizíamos que estava a cem metros de sua loja. Cem metros é tempo suficiente para última consulta à folha que diz indiretamente sobre seu estado de espírito naqueles instantes. Algo marcante ocorrera-lhe! Era homem de fala mansa. O diabo não é tão feio quanto o pintam, mas não deixa de ser assustador. Não muitas horas depois da visita do empregado dos correios, o oficial de justiça chegara à Vila Tanque sem aparato policial, nem nada. Viajara de ônibus comum. De linha. Lá chegando, inspecionara a casa, verificando o que poderia levar ou não para defesa dos interesses do de La Nación. Fogão de lenha? Não. Uma geladeira Gelomatic? Não. Pingüim de louça? Não. É de estimação. Freezer? Sim. Uma das duas televisões? Sim... Chamado com urgência à casa pela mulher, Jaime Raimundo dirigiu polidamente a palavra ao oficial. 162 Jairo Martins de Souza – É verdade que queres levar nossas coisas? – Sim e sob apoio e testemunho legais. Se necessário peço reforço policial. Tenho intenção inclusive de visitar o seu sítio em Rio Piracicaba. O serviço secreto dos advogados do banco informou-me ser seu bem pessoal mais precioso. – Não consegues, está sob manto da justiça divina. É bem único. De família. – Pode ser. Mas posso seqüestrar moenda do antigo moinho de grãos. É bem móvel. Partiria seu coração. – Estás dizendo tolices, senhor oficial. Aquela peça é de pedra. Pesa toneladas. Não conseguirias tirá-lo de lá. A propósito, vamos ser práticos. Posso convocar advogado? – Sim, quem é? – Doutor Fulano. – Confirmo que podes chamá-lo. É dos nossos. – Não entendi bem. – Não precisa, como de outra ocasião, depois entenderás! – Está tudo arranjado, Jaime Raimundo – comunicou-lhe o causídico que aparecera rapidamente em um sedã Chevrolet 38 – o oficial decidiu não levar nada. Estava nervoso, mas chegamos a bom termo após conversa entre amigos. Divagamos também sobre filosofia de vida e religião. – Obrigado, doutor. – Que não seja por isso, mas tens que dar contribuição para o judiciário na pessoa do oficial aqui presente. – Não é ilegal? – Sim. Mas alguns funcionários estatais têm suas próprias regras. Na prática funciona assim! Foi assim, repassando tais últimos fatos, que Jaime Raimundo mal vira que, finalmente, chegava ao Bazar. Na porta, de pasta e terno de corte italiano, Bern o recepcionara, dizendo que fazia alguns minutos desde que lá chegara. Pensando no retorno, e reavaliando se deveria ter sido melhor ter vindo no seu Bel Air, o rapaz complementou saudação inicial, relatando que foi tempo breve, mas bom, pois deixara-lhe passar olhando as águas tranqüilas do Piracicaba. O que não falou é que isso lhe trouxe Dossiê Monlevade 163 saudades do Sena, de Paris, da mãe, do pai e da irmã. Suspirou fundo e seguiu em frente para o interior do estabelecimento. Um último olhar confirmou-lhe que o céu de Monlevade prosseguia limpo e ameno. Conheci muito desse caso quando das informações passadas por Costa, Bern disse-lhe após ouvir a exposição. É claro, patrocinarei com prazer e muito trabalho a sua causa, amigo Jaime Raimundo. Algo mais a relatar? – Não. Não que me lembre. – Pois bem, sendo assim, podemos começar! Dossiê Monlevade 165 Capítulo 36 Bern dá algumas explicações à família F oi isso, Marie. A condição fragilizada de Jaime Raimundo é facilmente compreensível. O homem é franco. Reto. É poço de honestidade. Já sua situação jurídica tem que ser analisada com critério especial. Há medidas que o direito brasileiro propicia para combater tais casos. Digo combater porque se trata de circunstância especial. Jaime Raimundo confessou o que não devia. Mesmo que sob coação psicológica. Basta executá-lo! Só para você entender, Marie, tudo nesse processo tem letras pequeninas e linguajar rebuscado de jurista. Por exemplo, a confissão. Ainda não a vi. Jaime Raimundo descreveu-a sem maiores detalhes, mas sei ter sido arma letal engendrada pelo diretor jurista do Banco de La Nación. – Dá para recorrer à imprensa? Tenho alguns amigos... – Não. A imprensa não tem público suficiente para casos como esses. São tantos por esse Brasil afora! Todo brasileiro parece ter uma história dessa estirpe. Caiu em lugar comum. Não há sangue jorrando de forma espetacular! Fisicamente, digo. Além disso, a justiça é como Tomé. Pede evidências. Provas. Faltam-nos muitas nesse caso. Nossa missão é buscá-las a qualquer custo. Posso começar indo à Bolívia. Quem sabe, Marie, consiga cópia da tal confissão… Após tudo ajuntado, talvez possa montar o quebra-cabeças engendrado por M contra a família de Jaime Raimundo. Com isso espero beneficiar também o Brás, o Viglioni, o Costa, etc. Amiga. Amigo. Reparo que de há muito, de forma incisiva, 166 Jairo Martins de Souza não se cita neste texto os amores franceses do advogado que inicia, mal sabe ele, peculiar experiência jurídica. Não. Isso não significa que seja filho e irmão ausente. Dos que amam apenas com os olhos. Na verdade, mantém contato constante com os seus, a despeito de cada vez mais entrar com coração e alma nas coisas boas que tem o Brasil. Aí que está! Talvez por isso os pesquisadores do dossiê tenham, em alguns momentos, dado maior realce ao aspecto prático da documentação. Para compensar, recolhi e faço públicas três partes de cartas deixadas de lado pelos analistas. Não. Não tão íntimas como as das correspondências que Mary McCarthy trocava com Hannah Arendt. Uma escritora e uma filósofa. Memórias de Uma Moça Católica. As origens do Totalitarismo. Virou livro de qualidade. Por fim, na primeira carta Bern responde ao pai; na segunda, à irmã; já a terceira foi para aquela que o moço, como filho, tinha identificação especial. – Não dizias, papai, que nós franceses somos discípulos de Heráclito, ou então a vida para você não é mais movimento? Insisto que venha passar alguns dias aqui. Tenho certeza que se dará bem com a cidade e o pai de Marie. Mande-me fotos das videiras de Guéret. Devem estar lindas nessa época do ano. Noutra carta, conto-lhe sobre causa que decidi patrocinar. Comecei hoje. É de amigo brasileiro, um pouco mais velho, acredito ser de sua idade... – No entanto, Liviah, ficar por tempo maior em Monlevade não é nenhuma condenação. Simplesmente aconteceu! Aposto que você já sabe que a Életricité De France assumiu o controle de geração da barragem do Jacuí (garanto que muito antes de mim!). C´est vrai, – é verdade –, Liviah, fornecemos energia elétrica para toda essa grande metrópole! Dá-me orgulho! Fico... – Sim, mamãe. Tens razão! Não tracei esse tipo de objetivo para minha vida aqui no Brésil. Relaxe! Venha passear... e esqueça a Deneuve como nora. Para mim é apenas boa e querida amiga. Não se preocupe, mas fiquei um pouco desapontado quanto ao projeto do meu glorioso vovô brasileiro. No Brasi não se cultua o hábito de resguardar memória das coisas do país. Do que nos Dossiê Monlevade 167 restou nestas terras, mamãe, pouco passou do nome abstrato de parente distante. Não muito mais. Já lhe disse de todas as minhas andanças pela região. Não é que tenha desistido de todo! Prosseguirei pesquisando, pois cada vez mais cristaliza em mim buscar meios e argumentos para criação de um seu memorial. Memorial Jean de Monlevade. Talvez possa chamá-lo JM. Tal como feito para o JK. Vamos ver... Dossiê Monlevade M 169 Capítulo 37 Por que La Paz? arie acompanhou Bernard até o instante final em que o A 380 sumiu totalmente dos céus de Monlevade em direção à La Paz. Vôo direto. Não demore, chéri. Não faça barba com pressa. Lá, para estrangeiros, é difícil estancar sangramentos. O sangue fica ralo por causa da altitude. Tome cuidado com o soroche. Coma comidas leves. Mastigue algumas folhas de coca. Não demore... De longe Jaime Raimundo acompanhava todo o corre-corre no aeroporto e, em particular, tudo que se referia à viagem do seu advogado. Afastara-se discretamente do casal. Viera entregar-lhe procuração, segundo termos legais, e desejar-lhe boa sorte. Tiveram alguns atropelos iniciais, é verdade, por exemplo, a desqualificação do causídico que anteriormente contratara a conselho do Brás. Ambos foram enganados. O tipo era desprezível! Viera também para ajudar, por meio de carta de recomendação de amigos, a desembaraçar embargos a profissional francês atuando na área do Mercosul. No caso, a Bolívia. Foi de valia, o fato de Getúlio e Morales andarem conversando como velhos colegas de ginásio. Nesse passo, e graças a algumas boas almas monlevadenses, tudo fora levado a bom termo: em regime de urgência. O bilhete aéreo, de última hora, foi também conseguido sob viés de concessão especial. A vaga fora cedida por sobrinho da família Raimundo. O jovem era aeronauta recentemente contratado pela Aço Airlines no duríssimo mercado internacional. Encantado, Jaime Raimundo vira o avião mover-se como anta gigantesca, correr como leopardo, voar como águia, trocal, juriti, 170 Jairo Martins de Souza pardal, e por fim, minúsculo ponto iluminado por distante sol de verão. Tinha cor prata. Retornando para o Bazar, pensou nas dificuldades que seu advogado deveria enfrentar. Surpreendeu-se consigo mesmo! Ora bolas, chamara o menino, seu amigo, de advogado pela segunda vez! Lembrou-se que, pela afeição sincera que a ele dedicava, poderia ser seu filho, ou neto! Felizmente, consolou-se a tempo lembrando-se de velho adágio popular: amizade é amizade. Negócio é negócio! Por que La Paz e não Santa Cruz de La Sierra? O banco de La Nación não registrou documento em Santa Cruz? Perguntara ao advogado. – Na ocasião em que assinaste a tal confissão, Jaime, a situação administrativa do país de Evo Morales era muito diferente. Nem pertencia ao Mercosul. Ainda na França andei acompanhando a situação jurídica deles. Confusa! Algumas facções queriam acumular na cidade de Sucre as funções administrativa e legislativa. Não deu certo. Lembra-se do famoso protesto do povo de La Paz, La Sede No Se Mueve...? Ficou como estava. Sucre é a capital legislativa. La Paz é onde fica a administração federal. Enfim, independente do apontamento da confissão ter sido feito em Santa Cruz, para tribunal de assuntos internacionais, vale La Paz. Um tanto estranho, mas funciona assim. É por isso que mudei destino! O vôo fora tranqüilo. Bern dormira profundamente enquanto sobrevoava os altiplanos andinos, e pouco vira das belezas do Titicaca boliviano. Já próximo das imediações de La Paz, lembrou-se de algumas palavras do sobrinho de Jaime Raimundo que comentara sobre as dificuldades com que os pilotos da Aço se deparavam para lá aterrissar. Altitude superior a 4000 metros, dissera. Com ar rarefeito fica mais difícil parar somente nos freios o pesado avião. O piloto tem que ser experiente naquele aeroporto. Para tanto, os pilotos da Aço Airlines... Bom, de fato o comandante fora bem treinado, pois mesmo que com alguma tensão por parte de uma passageira, a chegada foi perfeita. A moça antecipadamente declarara ter problemas com altura e espaços abertos. Dossiê Monlevade 171 Inconscientes, pois era física-engenheira de bom nível, e conhecia rudimentos de aviação. O que importa é que interpretava ordens de computadores de bordo como se fossem instruções para queda iminente da aeronave. Por exemplo, motores que se ajustam para fins de economicidade de querosene de aviação. Que não se diga de turbulências normais encontradas no ar atmosférico! Suava frio nas mãos e em todo o corpo. Mas não fujo dos meus medos, concluíra entusiasticamente. Acostumado a ver tal sensação de desconforto na própria mãe, Bern a confortou, segurando uma de suas mãos durante boa parte do percurso. Viemos aqui trazer boas vindas, disseram-lhe dois oficiais bolivianos. Um homem e uma mulher. Trabalhamos na justiça local e somos especialmente designados para tratar do caso M versus Banco de La Nación. Nesse momento representamos a Verlon, mas podemos representar a quem por isso se interessar. Depende do pagamento. Por ora, dizemos que a Verlon tem muitos interesses aqui nos Andes. Apreciamos seus produtos frutados, inclusive estamos negociando cessão de tecnologia. No entanto, agora nossa missão é conduzi-lo com saúde até o hotel. Foi o que aconteceu. Outrossim, conforme acertado via contato preliminar – local e hora a combinar – Bern já ajustara entrevista com embaixador brasileiro em terras bolivianas. Digo terras porque não posso dizer mares, foi frase do diplomata, lembrando-lhe que daqui não há saída para águas salgadas. Não estranhe, senhor advogado, termos aqui Ministério da Marinha, pois cá também a esperança é considerada a última a morrer. Pois bem, enquanto isso, os marinheiros bolivianos vão ficando a ver navios nas águas do Titicaca. Para maior discrição, comentara também, melhor encontrarmo-nos no Cafe Ciudad que fica bem próximo ao hotel em que te hospedaste. Era sujeito falante e dissera não ser homem de carreira. Na verdade, foi político derrotado em eleições municipais e, finalmente, agraciado com cargo de confiança do partido aqui nesses confins etc. e tal. Livre do ajuste que avistara difícil, Bern relaxara, e após mastigar recomendada folha de coca, descansara confortavelmente 172 Jairo Martins de Souza instalado em poltrona da recepção. De lá, afora gritos vindos de vans que aliciam passageiros, nada mais se ouvia no tranqüilo centro da capital boliviana. Com misto de curiosidade, e ansioso por alguma novidade cultural, pegara uma jardineira, convidado que fora por um dos homens que observara gritar. Em La Paz não há metrô. Com sorte chegara a tempo de passear pelo Mercado de Las Brujas. Ocorreu-lhe comprar algum pequeno regalo, ou cadeau, como em francês, para sua Marie. De volta ao hotel fez ligações para a namorada, para a mãe, para o pai e para Liviah. Caía a noite. O povo era receptivo. Fazia frio, sim, mas não muito. Mastigara algumas folhas de coca. Ainda não sentira os efeitos da altitude da cidade... Foi o que em essência dissera para seus amados. Da porta envidraçada, percebeu que o tal restaurante, o dito Cafe Ciudad ficava logo na esquina, bem dentro de seu horizonte visual. Pôsse a caminho. O embaixador estava acompanhado por um senhor de nacionalidade brasileira, foi o que Bern antecipou. Não lhe fora difícil perceber. O sotaque do homem era tipicamente carioca. Afloraram-lhe lembranças do gostoso período do Copacabana com seus alongados ss herdados da corte portuguesa que lá chegara em 1808. Tomavam taças de vinho chileno, pois no centro da mesa repousavam duas garrafas de Casillero del Diablo. Pareciam em animada conversação. O companheiro do diplomata mostrou-se educado e polido e passou a dedicar especial atenção a Bern, na medida em que o político fora chamado a participar de algo importante em mesa vizinha. Estava de passagem pela Bolívia, pois atuava na Organização Mundial do Comércio, a OMC. Chamava-se senhor ***. Advogado tributarista, especializado em contendas internacionais, na realidade era presidente da importante instituição. Estava aqui para acompanhar coleta de dados visando julgamento de, não se pasme o cavalheiro, contenda comercial entre Brasil e Bolívia. Assunto? A eterna questão do gás natural. Ah, muito interessante, comentou Bern. Dossiê Monlevade 173 Fossem dois evangélicos, irmãos em Cristo, não encontrariam na fé tamanho ponto de liga comum. O brasileiro, na faixa dos 60, fora professor respeitado em diversas faculdades de Direito em todo o mundo. Menos na Sorbonne. Daí é que, de sua parte, indagara Bern várias situações. Fora convidado recentemente para lecionar curso de verão no campus de Paris, mas recusara por absoluta falta de agenda. Daí passou a ouvir. Tivera percepção, a tempo certo, de ser instante de passar o bastão. Então, o rapaz iniciou relato sobre o que fora fazer em La Paz. Exceção de pré-executividade! Exclamou o presidente da OMC após escutar atentamente tudo que criteriosamente fora exposto pelo companheiro de mesa. Como disse-lhe, sou advogado tributarista, mas conheço o Direito Brasileiro como a meus próprios filhos. Inclusive todas as suas leis e jurisprudências em latim. Na ponta da língua: gosto de beber água na fonte. Não me arrisco. Lembras do traduttore traditore? (o tradutor é um traidor). Só para ilustrar, foi por isso que aprendi aramaico para melhor entender Paixão de Cristo, – a do filme de Mel Gibson. Estudei grego para ler as epopéias de Homero. Alemão para deliciar-me com a poesia de Göethe. Russo para a arte de Fedor Dostoiévski. Árabe para os segredos do Alcorão... Podes listar o resto por sua conta, pois são muitas as línguas e os segredos do mundo. Foi assim também que escrevi as tais obras jurídicas em latim. Publiquei-as, ajuntando-as em manual na própria Itália, pois foi onde o direito romano nasceu e se tornou o pai do nosso. Não nego que seja um cipoal de regras e instruções, mas foi em cima do seu texto que patrocinei causas das mais diversas procedências. Minha arte é aproveitar suas brechas. De presidentes da república, de grandes empresários, do senado federal, de militares de alta patente, de ministro de justiça que nada entendia de Direito Constitucional, de vara de família, de homens violentados por ditadura, de direito criminal... também quando jovem escrevi livros de poesias e tudo o mais em termos de literatura. Fiz-me amigo de presidentes e ministros. Fui premiado em algumas ocasiões. Enfim, tudo isso me fez debruçar, volto a falar do Direito, sobre obras de todos os grandes doutrinadores nacionais. 174 Jairo Martins de Souza Madrugadas e madrugadas a fio. Não tenho dúvidas, aquele instrumento jurídico, a exceção, é o que você deve explorar na defesa de seu cliente. No entanto, há uma condição sine qua non. Para aplicá-lo, você precisa de algo novo nesse processo, algo estarrecedor e concreto que surpreenda o juiz e que o faça reestudá-lo, a ponto de paralisar a execução em andamento. Em outras palavras, precisas achar um vulcão em erupção, o despertar de um Tronador como o dos Andes chilenos. Algo como um trovão gigantesco que traz a reboque luz, raio e fogo que queima e reduz a cinzas tal processo. Desculpe-me, sei ter-me alongado há pouco, mesmo gostando de textos curtos. Enxutos. Então pergunto de forma direta: tens cópia do documento comprobatório do crédito irregular dado pelo diretor do La Nación a M? – Não, ainda não a vi! – Tens a nota promissória emitida pelo próprio? – Não. Também não! – Então, ainda não tens provas contundentes para dar um basta na execução e no sofrimento do seu cliente. Corra atrás de tais provas documentais que tenham o efeito que dramatizei, é sua sina! Depois disso, ponha imediatamente em ação o instrumento que sugeri. Foi quando adentrou no ambiente o casal que o recepcionara no aeroporto das Tierras Altas. Os dois meirinhos que acima mencionei. Com o retorno do embaixador à mesa, Bern se retirara para atendê-los. Pareciam esposos, pois a mulher advertira o outro com olhar repressor. Ninguém atinou o porquê. Coisas de casal. Um solícito garçom levou polidamente taça de Casillero do qual Bern sorvera todo o conteúdo, enquanto isso o presidente da OMC retomava animadamente a conversa que deixara em suspenso com o diplomata. No crachá identificavam-se como Patino e Banzer. Interessante, Bern refletiu, um tem sobrenome de antigo rei do estanho boliviano. Na ocasião conhecido playboy internacional. A outra de ex-presidente. Um militar. Por instantes, Bern perguntou a si mesmo, o porquê de, no aeroporto, não portarem tal cartão de visitas. Talvez tenha sido simples negligência. Considerações for- Dossiê Monlevade 175 tuitas à parte, ambos tinham estilo draconiano e foram direto ao cerne do assunto. Temos comunicação a fazer, disseram. – Qual? – Descobrimos que o doc Santa Cruz que buscas para seu cliente seguiu para São Paulo. O pedido procedeu do judiciário de certo estado do seu país para uso em processo tocado pelo Banco de La Nación. Aqui aquela confissão não é mais considerada de importância, mas deu crias a vários processos paralelos. O sistema boliviano funciona assim. Tal como no Brasil, nunca se sabe o que com eles vai ocorrer. Quanto ao doc x é propriedade exclusiva do De La Nación. Foi firmado na sede paulista do banco. Se bem que dele a justiça boliviana mantivesse cópia em guardados especiais. Recentemente informações sigilosas relatam que seguiram por mala postal pela ferrovia do trem da morte. O destino é fórum situado na fronteira com o Mato Grosso. Lá, após lidos, devem ser incinerados, se não por nós salvos a tempo e hora. É nossa missão, caso cheguemos a acordo. É fato consumado que, mesmo que resgatados, por estrita instrução de ministro da justiça brasileiro devem ser sumariamente encaminhados para endereço de certo senhor M. Um industrial de João Monlevade, Minas Gerais. Por ora, então, o senhor deve se preocupar agora mesmo é com a execução principal que segue normalmente na capital paulista e no estado do crucificado Raimundo. És francês, Monlevade, melhor se habituar a tais nuances processuais no Mercosul. Por exemplo, pela cessão desses dados confidenciais estamos requisitando contribuição, podes chamá-la propina. Não. Não se trata de escândalo. Propina, em espanhol, em nossa língua, diz respeito a pagamento normal feito em contrapartida a serviço prestado pelo governo a cidadão. Bom, para esse caso, o valor estipulado é de 10 mil bolivares. – Certo. Tenho aqui o equivalente em dólares, pode ser? – A orientação da nossa gerência dá-nos opção de recebê-los em real. Moeda forte. – Então a transação tem que ser feita amanhã! Às 10, na portaria do hotel, fica bem? – Sim. 176 Jairo Martins de Souza Com isso Bern voltou à mesa do embaixador. Com a conta já paga os dois sorviam os derradeiros goles de café colombiano. Preparavam-se para sair. Bern acompanhou-os. No dia seguinte, no horário combinado de acordo com o fuso boliviano, esperavam-lhes outros dois funcionários que cumprimentaram afavelmente tanto a Patino quanto a Banzer. Espontaneamente apresentaram-se a Bern, dizendo: meu nome é Fuentes. Carlos Fuentes. Sou Gabriel G. Marques. Somos escritores e vimos receber numerário ajustado. O mercado livreiro no país do seu antigo avô não anda bem para escritores de vanguarda. Dizse aqui, à boca pequena, que o brasileiro anda financiando somente obras de cunho socialista no novo estilo bolivariano. Anda de braços com a Venezuela e o Equador. É também por isso que se faz agora tal coleta. Parte desse fundo serve como multa por falta de leitura do povo da terra que abraçaste. Um dos seus presidentes deverá julgar desnecessário o estudo pelo povo. Digo, diz que, a seu exemplo, não precisa estudar para ser bem sucedido. Arrota ser suficiente o conhecimento do bê-a-bá. Ele mesmo dá o exemplo. Consta que nunca leu uma obra. Pisa sobre a cultura e diz ter chegado onde chegou ajudado por massacres à gramática, usando gerúndios em excesso e fazendo metáforas futebolísticas. – É um boçal e todos sabemos, senhor Fuentes. Mas outros nossos presidentes que têm olheiras eternas de tanto ler fazem o mesmo. Têm em comum gostar de passar dias na embaixada brasileira em Paris e publicar livros que poucos lêem. Bebem vinho de boa cepa e passeiam tranqüilos pelas margens do Sena. Lembre-se que um deles escreveu Marimbondos de Fogo e o distribuiu em folhas de papel acetinado pago pela população. Encadernação de luxo. Enfim, tens recibo para acusar recebimento de todo esse dinheiro? – Não. Aqui não se trabalha com documento formal. – Cá tens o dinheiro em reais. – Gracias. Não vamos conferi-lo e nem colocá-lo nas cuecas. Aliás, não fica nenhum mal entendido sobre a pergunta indecorosa que fizeste sobre certo tipo de recibo. Temos caixa 2. Faz parte do processo. No entanto, estamos instruídos para permanecer no aeroporto até que seu avião não seja mais visto no céu de La Paz. Boa viagem! Dossiê Monlevade 177 Fotocópia da capa do doc Santa Cruz, conforme original em espanhol. Na ocasião de sua feitura, Bern solicitou, para evitar questões burocráticas, que fossem extraídos os brasões nacionais do Brasil e da Bolívia. Dossiê Monlevade A 179 Capítulo 38 Recesso fora algumas pequenas turbulências nos Andes peruanos – o retorno antecipado obrigara-lhe a fazer conexão em Lima – a viagem de La Paz ao aeroporto de Graal foi tempo de grande valia para o homem e o advogado Bernard Monlevade. Ao primeiro, por gostar de textos bíblicos, e por fazer lembrar várias vezes que, em Genêsis 2:18, Moisés escreveu que não é bom que o homem esteja só. Não estava. Figurativamente. Pois, a poltrona fisicamente vazia ao seu lado estava mentalmente preenchida pelo elegante corpo de Marie. Pensava perguntas e respostas. Sorrisos e suave apreensão. Pequena angústia por mal entendido ligeiro. Ciúme, como diria Alencar, ou Casemiro, por conta de fluxo de ar condicionado que varre o rosto rosado de Marie, ou aeromoça que pergunta ao rapaz se prefere suco normal ou light. Sobrara também tempo para o advogado, pouco, é verdade, mas suficiente para delinear agenda para os próximos dias. É exatamente o que se lê na folha seguinte, a 117, estou dizendo da marcação original encontrada no dossiê. Absolutamente não sei se coincide com a deste livro. Lá, lê-se, agenda para os próximos dias. Interessante! No canto esquerdo do papel, linha a linha, viam-se itens ordenados de 1 a 10. Vazios! À exceção do de número 10! Pode ser que tenha pensado partir do de menor para o de maior importância. Pode ser. Fato é que a anotação fora feita a lápis com letras grandes. O que era por inteiro incongruente com a escrita manual do rapaz. O contorno robusto sugeria certa agressividade também inconsistente com a personalidade do filho de Guillaume Monlevade. Dizia: 180 Jairo Martins de Souza Custe o que custar (nesse processo, não tenho razões para, como em Paris, dizer “cherchez la femme”), devo localizar acordo secreto De La Nación x M : o doc x... Anote aí, um dos analistas observara a um dos técnicos do judiciário que integravam a equipe de pesquisa, o rapaz escreveu custe o que custar… Em Monlevade era de conhecimento popular que corriam no fórum local, diversos processos de vulto contra M. Indefinidos. Enigmáticos. Sombras no judiciário cobriam quaisquer pistas a respeito. No entanto, um, em particular, caíra no conhecimento de famoso cronista da sociedade local. Um daqueles sensacionalistas. Por falta de pagamento fora solicitado despejo de toda a família M do imponente castelo marroquino de Graal. Tal fato trouxe grandes preocupações à sociedade quanto ao futuro da Verlon. A sociedade civil e os sindicatos trabalhistas sabiam que dezenas de famílias dependiam do bom nome e da boa saúde do promissor negócio. Já o processo sobre acordo que M fizera com o de La Nación corria sob altíssimo segredo de justiça. Nem mesmo o juiz sabe do que se trata, informaram a Bern, quando iniciou movimentação para localizar documento que combinamos denominar x. Conhece-o bem, estamos dizendo do tal processo, somente o presidente da instituição financeira. Alguns dos executivos sob seu comando também dele sabiam. Por partes... Ah, caro leitor, mesmo com toda essa falta de luz, o processo era real. Realíssimo. Como escreveria o José Dias, de Machado. Tinha efeitos sobre a Verlon Fruit Shoe. As pessoas pensavam sobre ele. Ele existia. Algo um tanto cartesiano. Não foi Descartes quem disse que as coisas existem a partir do momento em que são pensadas? O famoso “penso, logo existo”. Dossiê Monlevade N 181 Capítulo 39 O Presidente do de La Nación ão quero desanimá-lo, mas é mais fácil um rico entrar no reino dos céus do que falar com esses homens da Justiça! Foi o que Jaime Raimundo dissera inconformado. Bern acabara de contar-lhe todo o andamento de sua viagem. Relatório minucioso. A conversa com o embaixador. O conselho jurídico do presidente brasileiro da OMC. A propina dada aos escritores. O desvio até Lima no Peru. O cliente ouvira calado, – somente interrompera quanto à propina. Dadas as explicações, acabou por considerá-la gasto normal –, por fim, o advogado concluíra assumindo três ações iniciais. Na primeira, partiria para busca de prova que sabia em poder do presidente do banco de La Nácion. Talvez M também o possuísse, no entanto julgava mais fácil ... Trata-se, amigo Jaime, do doc x! Na segunda, estudaria palpite do homem da OMC, do qual expliquei algo algumas linhas atrás. Então sobre ele nada mais digo. Justifico-me dizendo que aqui não é foro para conversa mais detalhada sobre técnicas e ações da prática jurídica. A última providência – ufa! Não tenho dúvida alguma ser tarefa mais árdua –, é a de botar as coisas em pratos limpos para o juiz. Afinal, nunca se sabe quem é, ou onde está. Com tal estado de ânimo, seguira para a casa de Marie na Vila Tanque. Pretendia nos próximos dias dedicar-se de corpo e alma ao processo do Bazar. A moça estava ainda saudosa. Buscá-lo no aeroporto, levá-lo ao Hotel Cassino, tomar rápido sorvete na Praça do Mercado etc., nada disso, nem de longe, sufocara ansiedade causada pela viagem a La Paz. La Paix em francês, como 182 Jairo Martins de Souza dissera distraidamente o namorado. Hoje não, Marie. A moça tinha proposto fazerem circuito cultural. De carro. Passar pelo Morro do Geo, ir ao Jacuí, passear a pé pelas antigas instalações do Grêmio Monlevadense, fazer o mesmo nas do Caça e Pesca, mostrar a Bern onde tem intenção de propor, junto à municipalidade, colocação de obra que marque, de vez, a participação na vida da cidade do famoso burro do Geo, enfim, nos mesmos moldes de escultura feita na cidade alemã de Bremen, e que homenageia seus famosos músicos do reino animal. Acabariam o passeio na Praça do Cinema onde poderiam… Não, Marie. Hoje não. Hoje não posso ir à sessão cult que você sugere. Fica para depois. Na próxima semana, talvez. Bem mais tarde, com Bern já refeito das emoções da viagem, estavam namorando na biblioteca da casa de Marie. Na parede fora montado móvel envidraçado com prateleiras altas e escuras. É o que por si só justifica o nome do ambiente. Estilo farmácia antiga. É o tipo de lugar onde o visitante deveria ser deixado sozinho para que, mais à vontade, apreciasse a beleza do ambiente. E, é claro, por meio dos nomes dos autores colocados no dorso das obras, viajasse rapidamente pelas boas fontes que sustentavam o equilíbrio da gente daquela casa. Reinações de Narizinho, O Tesouro da Juventude, Obras de Alencar e Machado... Aqui e ali, uma ou outra fotografia diz também muito sobre o jeito da família. Lembrou-se de Guillaume. O pai dizia-lhe, filho, queres conhecer a sua namorada do futuro? Olha a mãe. Antes e depois. Ah, sim, a de Marie era bonita. Como fora a avó. Um ou outro detalhe não muito conveniente, quem não os tem? Afinal de contas, a beleza não tem morada numa casa chamada conjunto? Tudo anunciava que a velhice da moça tardaria a chegar. Entretanto, estávamos com os dois jovens na biblioteca. Falta esclarecer alguns detalhes do ambiente. Poucos. Prometo. Não mais se pode escrever com as minúcias com que Alencar descrevia a sua Iracema. Lá as grandes janelas abertas trazem restos de iluminação e o arejado do quintal. Tanta beleza, inclusive o frescor e a jovialidade da mulher que ama, e é amada, finalmente, tudo isso traz e dá clareza às idéias de Bern que prossegue Dossiê Monlevade 183 dizendo o que achava certo dizer. Chérie, preciso ver se consigo acesso aos guardados do presidente do de La Nación na sua mansão em Graal. Cópias. No banco, em São Paulo, é impossível ter acesso aos originais. A segurança é digna de presidente norte-americano. É difícil até mesmo agendar uma simples entrevista. Muitas secretárias. Muitos body guards. O homem parece um juiz. Antes de seguir para conversar com Jaime Raimundo, estive lá e fiquei sabendo que seus horários estão lotados até, – a estagiária segredou-me ao pé do ouvido, – sua aposentadoria ou quando vier tempo de participar de conselho de anciãos. Já não era dia, nem ainda era noite. Lusco-fusco. Os faroletes do Bel Air discretamente ligados não perturbavam as vistas de quem vinha em sentido contrário. Encerravam-se com ele os últimos estertores da luz solar. A bonita estagiária que, mal Bern imagina, dentro de poucas linhas deverá ser-lhe de grande ajuda, dera-lhe endereço e mapa de orientação para chegada à casa do presidente. Portentosa! Bernard sorrira. No verso do cartão de visitas que dela recebera, constava também um número de celular. Que Marie não me entenda mal! O segurança da portaria, homem de fala fácil, identificou-se como policial aposentado. Trabalho aqui, doutor Bernard, entre outras coisas, para complementar renda. O patrão? Encontravase viajando. A trabalho. Vai passar a semana na Bolívia. O lugar é La Paz, não sei bem! – Sabes o que especificamente foi fazer lá? – O caso M. Ontem, penso ter ouvido alguém tê-lo mencionado insistentemente em jantar de luxo. Aconteceu aqui. O ouvinte era o nosso diretor e algoz. Conversavam em voz baixa. Eu mesmo acompanho pessoalmente o caso M, prosseguiu o policial olhando fixamente para Bern. – Por quê? – Fui obreiro da Fruit durante alguns dias na fábrica de Cocais. Demitiram-me por justa causa. – Por quê? Bern indagou novamente. – Denunciei parente de um diretor de São Paulo. Não sabia ser sangue do próprio M. 184 Jairo Martins de Souza Um forasteiro abusado, diz o segurança que, com cara de aborrecido, dá continuidade à sua fala. Batia cartão de presença e se retirava imediatamente das instalações da companhia. Aguardo decisão para entrar com ação trabalhista na justiça dos homens. A de Deus está sendo feita, tudo anda dando errado para aquele vagabundo. É razão por que trabalho aqui – pelo terno bonito parece-me que és advogado –, minha missão de vida e morte é, nessa área, vigiar-lhe todos os movimentos e passos. Os de M. Somos parte de um grupo. Para tanto temos amigos infiltrados no judiciário e na crônica policial. Pessoalmente, ouvi dizer que foi dada denúncia vazia contra ele aqui mesmo em Graal. Difícil de safar. Pois, corre a boca solta, alguns diretores da Fruit estão se rebelando e não querem pagar-lhe prestações faltantes. Diz-se que tudo aqui está em negociações, providência divina, querem-no no distante bairro da Coréia. Se não sabes, fiques sabendo, a Coréia é zona boêmia da grande Monlevade. Um lixo! Aqui se faz, aqui se paga, amigo – agora é Bern quem diz, lembrando-se em tempo de perguntar-lhe o nome. Esse simples ato poderia criar clima mais propício para andamento da conversação. J. Wilson, senhor. José Wilson Palhares. Concluídas as apresentações formais, Bern relatou-lhe por alto toda a contenda, o sofrimento de Jaime Raimundo e do Brás, destacara que os problemas do primeiro eram infinitamente maiores, suprimindo, é claro, detalhes pessoais absolutamente dispensáveis. O homem ficara sensibilizado. Conhecia aquelas duas boas almas. O que posso fazer para ajudar? – Por ora, nada, respondeu-lhe Bernard, enquanto pensava, com mais vagar, futura estratégia que tinha em mente. Precisava imediatamente escrever ao pai, em Guéret. Então, agradecido, despediu-se enquanto acionava o motor de arranque do Bel-Air. Destino: Hotel Cassino. A conexão Wi-fi funcionara bem, no entanto o pai não era dado às artes da informática e Bern demorou a ser atendido pela administração da fazenda em Guéret. Escreveu Bern: papai, prenuncio que para ter acesso ao doc x, presumo ter que fazer algo reprovável. Estou dizendo-lhe do caso M. Escreveu Guillaume: não dá para negociar com o Diretor, filho? Dossiê Monlevade 185 Escreveu Bern: impossível, papai. É como negociar com a lei da gravidade ou com um defunto. Escreveu Guillaume: então não lhe resta outra alternativa, querido. A justiça às vezes tem que ser feita por caminhos fora da lei. Lembra-se do que fizemos com Luís XVI? Fique tranqüilo, filho. Noã se ipmrot, não diezm Dues esrceve certo msemo por mieo de plvrs earrdas? Escreveu Bern: obrigado pelo conselho, papai. Convenceume. Fico feliz. Percebo que continuas mantendo o bom humor de sempre! Capítulo 41 Dossiê Monlevade A 187 Capítulo 40 Invasão manhã já estava quase expirando e Bern prosseguia trocando algumas idéias com Marie. Ele com a testa franzida. Ela angustiada. Não era do seu gosto vê-lo preocupado. Relaxe, querido, isso só vai trazer algumas marcas de expressão para seu rostinho… Estavam no Bel Air, nas proximidades da casa da moça. As portas abertas do motorista e do carona facilitavam passagem de brisa suave. Os vidros, deixados fechados por horas, haviam aprisionado ondas de calor que praticamente fizeram ferver os elegantes bancos de plástico vermelho. Bonitos, mas pouco práticos, o rapaz comentara… – Não há cópia de x em nenhum lugar, Bern? – Não, Marie. O próprio procurador chefe da justiça nacional disse-me ontem. Soube que ele tinha interesse nesse nosso processo, por estar às voltas com outros, de natureza fiscal, em que M também está envolvido. Por tanto, eu havia lhe telefonado dizendo ser parente do fundador de Monlevade. Conversamos em francês. O burocrata mostrou-se desejoso de praticar a língua. Embora não seja do seu ofício conhecer tal tipo de contenda, tomou conhecimento por meio de juiz amigo que pedira vistas ao caso. Achou-o atípico! No final da conversa, alegou que, visando a interesse nacional, poderia entrar contra Jaime Raimundo por meio de processo adequado do ministério público. Foi por isso que andou tentando localizar x. – Não poderia solicitar o original? – Tentou, mas foi negado pelo de La Nación. Só conseguiria direitos de vista se solicitado pelo presidente da república e apro- 188 Jairo Martins de Souza vado por dois terços do congresso nacional. Desculpe-me pela ironia. É claro que se trata de exagero da minha parte. No fundo quero dizer ser impossível a cessão do documento pelo de La Nación. – Mas, Bern, voltando um pouco, por que o homem da procuradoria pensava acionar Jaime Raimundo e não M? – Foi influenciado por opinião particular do tal juiz! – Como? Por acaso, já houve alguma decisão sobre o assunto? – Não. Nem mesmo houve, por ora, qualquer tipo de julgamento. Nem de juiz, nem de ninguém. Aliás, poucos juízes realmente tiveram vistas ao processo. Entre esses, não está incluído o que andou abordando o assunto com o procurador. O fulano nunca leu nada sobre andamento da ação e formulou opinião estritamente pessoal. Esteve em algumas reuniões com M… andei pesquisando edições de coluna social de O Globo das últimas semanas. M é frio. Parece que sofre de doença de água no sangue, o homem deve ter caído na sua conversa! – Bern, você sabe que só temos uma saída, não sabe? – Sim. Ilegal. Penetrar no bunker do presidente do banco e sacar cópia de x. Um dos seguranças de sua casa de Graal deu pistas de colaboração, a princípio compartilhamos interesses comuns... Mas, voltando um pouco atrás, você disse temos, Marie. Errado! Não quero risco algum para você! Tenho que agir sozinho nessa empreitada que considero antiética. Aí que está, prezado leitor, Bern no fundo sabia não ser assim! Queria, é certo, descartar a namorada de participação, pois a causa é justa. O pai inclusive apoiara a ação e o método. O comerciante é cidadão honesto, no entanto, impossível de provar no rigor da lei. Estão lembrados que assinara como fiador em confissão baseada em x? Sim, o rapaz decidira operar como um bom ladrão. Não que fosse exatamente assim, mas não dissera Jesus a um desses, no Gólgota, amanhã estarás comigo no paraíso? Para tanto tinha outra aliada. Esquecera-se, mas ao rebuscar papéis no bolso do paletó, sorrira satisfeito com a descoberta. O cartão de visitas e o número de celular trouxeram-lhe à mente a Dossiê Monlevade 189 imagem da estagiária do de La Nación. Sua intuição dizia que não negaria ajuda ao seu dileto cliente. Era da cidade… Com toda certeza freguesa do Bazar, e conhecedora da retidão do caráter do comerciante... Trabalhava no departamento de edificações da instituição bancária. Não tenho dúvidas que tem acesso à planta e aos segredos da mansão do presidente. Provavelmente ele os tem guardados em seu escritório de trabalho. A moça tinha postura de quem gosta de colaborar com causas justas, enfim, a partir dela a questão teórica poderia ser equacionada. Já a prática... Essa teria canal seguro de negociação com o segurança com quem fizera contato anterior, o Palhares. O ex-policial que trabalhara na Fruit. Fácil. Ah, também não tinha dúvidas que poderia contar com a experiência de Chan... Daí quem sabe, pudesse chegar ao doc x. Alô! É do de La Nación? Sim. Por acaso, quem fala é a simpática estagiária? – Obrigado, doutor Bernard. Meu nome é Jacieni. Jacieni Fernandes Flores. Pronta para ajudá-lo no que necessário para aliviar a amargura atual do tio Jaime. – Tio? Não sabia que eram parentes! – Não. Não disse isso, mas por via de dúvidas... No interior, mesmo em metrópoles como Monlevade, todo mundo tem algum tipo de ligação. Ouça-me bem, se não é de sangue, é afetiva. Inclusive aconselho nunca falar mal de um morador daqui com um outro qualquer. É correr risco desnecessário. – Não se preocupe, não é do meu feitio relinchar como um cavalo (a moça riu discretamente. Ah, esses estrangeiros, alguém tem que ensiná-los o momento certo de citar figuras de linguagem do português!) – Fico feliz em confirmar. Aliás, quando o vi, de longe, percebi imediatamente essa característica que considero nobre. Já voltaste a conversar com o segurança da residência do diretor? – Como sabes que tenho a intenção de procurá-lo? – É caso simples, usei intuição feminina. – Ainda não. Ainda não o procurei! – Então vou interceder por você. Ele foi criado na casa de parente de um meu primo distante. 190 Jairo Martins de Souza – É muita gentileza de sua parte! – Não precisa me agradecer, sou franca. Estou à sua disposição. Tenho acesso a toda documentação das edificações do Diretor. Inclusive às plantas civis, elétricas e hidráulicas e automação de sua casa. Estudarei todas e farei relatório a ser enviado para quem você indicar. Faço isso também por achar você bonito. A operação foi minuciosamente elaborada. Flores, a estagiária, mostrou-se eficaz, e o segurança de praticidade ímpar. Bern, um pouco constrangido por incomodar, havia pedido socorro a Chan. Posso compartilhar minha experiência com você sem nenhuma contrapartida, a não ser a manutenção da sua amizade, foi o que de imediato o detetive lhe respondera. Bern havia feito contato por telefone, localizando-o em plena ação em cemitério secundário da capital paulista. Sim, estava muito ocupado. A pedido de Simon Wiesenthal, que lhe antecipara via fax diretamente de Viena, fora contratado por R. Tuma, chefe da polícia paulista para auxiliar em investigação especial. Sentiu-se honrado. Wiesenthal é o famosíssimo caçador de nazistas. Estava nos rastros do antigo anjo da morte, o médico Josef Mengele do famigerado campo de concentração de Auschwitz. Não. Não deixaria de ajudar o amigo. Nem Simon nem Bernard. Lembrou-se sensibilizado da parceria formada na operação Patinhas. Mandar-lhe-ia instruções, via sedex, bastar-lhe-ia que Bern lhe enviasse mapas e resumo da situação. Caso necessário, Bern poderia também contar com suporte logístico e factual de seus agentes em Monlevade. Gostaria muito e agradeço. E o sigilo da correspondência? Sem problemas, disse-lhe Chan, disponho de papel especial que, se tocado, esfarela-se como farinha de milho triturada por pilão. É recoberto microscopicamente com íons negativos. Como então manuseá-lo? Assim que receber o envelope entre em contato comigo, daí envio sinal via satélite para inibir microchip que dispara a reação. Você poderá abri-la sem sustos. Bern. Jacieni. Palhares. Sendo obedecidos todos os detalhes do plano que lhes enviei, vocês darão conta do recado sem atropelos. Bom trabalho! Essa foi a palavra final de incentivo de Dossiê Monlevade 191 Chan. Lamento não poder estar aí. E assim repassaram o plano nos seus mais ínfimos detalhes. Bern vestiria o colete à prova de bala. Usaria comunicador de alto rendimento. Acessaria o interior da residência por entrada de ventilação – um bueiro vazado de aço –, que se abria nos jardins da parte lateral da mansão e que, por meio de escada de pedras rústicas, conduzir-lhe-ia até adega climatizada do diretor. O homem é caprichoso, disseram-lhe! Tal ambiente especial ficava em porão afastado da casa, mas ligado por túnel que também se aprestava como área de estocagem para vinhos recém-chegados. Foram as últimas palavras ditas pela moça. Desse ponto, deveria sair em direção ao escritório. Há cadeado? – Sim. A ser aberto por amigo do segurança a troco de pequena quantia. Os fundos da casa projetavam-se para mata fechada que lá estava muito antes que Jean Monlevade aportasse no Rio, conforme sabido, em 1817 ou 1818. Lá, com as suas espécies nativas que identificam a chamada Mata Atlântica, funcionava como cercado natural de grande valia para os moradores que ainda restavam na Avenida do Aeroporto. Intransponível. Foi o porquê de Bern optar por acesso diretamente pelas portas e portões da entrada principal da bela residência. Para que não ficasse registro posterior, as câmeras de vigilância seriam, por instantes pré-programados, desconectadas pelo segurança – que também trataria de manter isolados os dobermann que policiavam os jardins e áreas de lazer. Na reunião final de ajustes, feita em sala especial do Hotel Cassino, o segurança Wilson Palhares dera informações complementares e a estagiária Jacieni trouxera croqui feito a mão. Utilizara tinta fosforescente. Um simples visor de celular poderia iluminá-lo com sobras, dissera sentindo-se bem em colaborar com idéia que sabia fundamental para o sucesso da missão x. Doc x. Missão x… Nada de complicações. Portanto, foi assim que, entre eles, foi chamada a visita noturna à casa do Diretor do Banco de La Nación. 192 Jairo Martins de Souza A noite chegara. A cerca de cinco casas distantes do seu objetivo, Bern discutiu novamente os movimentos iniciais com a estagiária. Vá adiante, Bern, e passe defronte ao portão principal. Se tudo estiver bem, o pequeno retângulo vazado no seu centro deverá estar aberto. Nunca fica. É a senha combinada com o segurança. Na pilastra da lateral direita há porteiro eletrônico com câmera acoplada. Ignore-o. Abaixo do buraco que disse há pouco, você verá uma campânula cujo badalo é pequeno frade capuchinho fundido com mistura de cobre e estanho. No Brasil, chamamos latão. Bata com a cabeça do bonequinho três vezes na parede do sino. Pausadamente. Exatamente como se digita número de cartão de crédito quando se fala com call center. Com o silêncio, – lá você só ouve coaxar de sapos –, serão facilmente percebidas pelo vigia. Em torno de um minuto, no máximo, ele deverá abrir fresta suficiente para que você entre no caminho que o levará diretamente ao … Pronto. Já estava na adega. Um tanto quanto nervoso, pensou em Poirot, tentando imaginar como o seu detetive preferido procederia. Viu-se na tela de sua tevê. O artifício fez-lhe bem. Não se deixou encantar com a maravilhosa exposição de vinhos que o cercava. O termômetro do climatizador indicava 18 graus centígrados. O homem é grande apreciador de tintos, foi o que rapidamente compreendeu ao passar defronte à prateleira onde se via escrito com letra comum: franceses selecionados. Imaginou que, entre tantos, poderia haver alguma garrafa dos que o pai fabricava com esmero. Até aqui tudo bem. Foi o que informou à bela Jacieni que, do lado de fora, acompanhava as ações. Ato contínuo, passou a reexaminar o mapa que a jovem anteriormente lhe entregara. Sorriu nervosamente, confirmando o que já havia deduzido. Fora precisamente elaborado. Detalhes desnecessários foram sabiamente desconsiderados. Fazia silêncio sepulcral. Ao abrir uma das portas ouvira risos distantes de funcionários que se deliciavam com iguarias retiradas dos guardados do patrão. Ao fechá-la, confirmou o excelente isolamento acústico que Jaciene dissera lá existir. Imediatamente silêncio de sarcófago voltou a reinar. Dossiê Monlevade 193 O escritório era mutíssimo bem decorado. Uma das paredes, protegida por extenso vidro de segurança, exibia interessante desfile de armas. Revólveres. Somente revólveres. Com a lâmpada do seu celular, Bern aproximou-se, verificando que, no pé de cada um deles, além de figurar o modelo, constava o acontecimento histórico a que esteve ligado. Interessante. O que Getúlio usou para atentar contra sua vida, o que Santos Dumont apertara o gatilho para suicidar-se… Atento, o jovem reparou que havia lugar vago de arma faltante… Provavelmente é a que o diretor deve trazer consigo, imaginou! Não. Não é o que pensas, rapaz! A voz era tensa e soou lúgubre pela vastidão do escritório. A arma que vês ausente foi retirada por mim! Como leste na anotação que aí está, trata-se da primeira e única vendida pelo Bazar que resultou em aniquilação de um seu funcionário que tivera amor frustrado. Não se sabe bem o porquê, mas o diretor tem fixação em armas que… Gosta também das utilizadas em competições olímpicas, modalidade pistola livre. Aquela que está no canto superior esquerdo, calibre .22 LR, foi a de representante brasileiro na Olimpíada de Londres. 1948. Na ocasião, não levou medalha, nem mesmo de bronze. Mas andou abiscoitando vários prêmios do Clube da Caça e da Pesca: aqui em Monlevade... Bem, mas isso cá não nos diz respeito! Mais relaxado, o desconhecido retirou o capuz, mantendo o facho reto da luz de sua lanterna na direção do rosto de Bern. Ao mesmo tempo dirigiu-se para o mostruário de armas para reposição do revólver que retirara. Não queria deixar vestígios. Bern, ainda surpreso pela presença de um terceiro, perguntou vacilante em francês, Qui est vous? (quem é você?) Não sabes quem eu sou, mas sei quem é você! Portanto, relato que sou um dos sócios da Fruit em Cocais. Também advogo e sou especialista em crimes contra empresas e mercado de capitais. Fiz curso noturno. Graduei-me em Colatina no Espírito Santo. Lá minha mulher fez pedagogia na mesma época. Íamos juntos em ônibus de carreira todos os finais de semana. Não sei o porquê de estar lhe dizendo isso, Monlevade, contando detalhes particulares de minha vida e de minha família. Talvez seja para angariar sua 194 Jairo Martins de Souza confiança. Enfim, sou pessoa que fala muito. Então, dentro dessa minha característica, exponho que, na realidade, minha missão é investigar o caso M, pois trouxe graves interferências em nossos negócios. Por exemplo, o affair Banco de La Nación. Sei que ambos estamos aqui, amigo Monlevade, por causa desse caso, e da semente maligna que o germinou, o doc x. Antecipo não estar muito à vontade nessa situação. Sou advogado legalista. Primo por obedecer e cumprir leis. Na realidade, antes de invadir propriedade alheia, tentei, por meio de ingresso na Justiça, que o De La Nación apresentasse o endemoniado x. Batizei-a, estou dizendo da tal representação, com nome comprido que terminava com os termos exibição de documentos. Não surtiu efeito, pois a justiça não me levou a sério. Tudo isso nos trouxe muitos transtornos. Não mais traz. Foi daquele jeito até o momento em que seu cliente, o proprietário do Bazar, assinou a tal confissão. O que, de certa forma, trouxe-nos alguma satisfação e alívio. Com isso, reforço que para a sociedade Fruit essa situação deveria ser água passada, afinal de contas a bomba foi colocada no colo do seu cliente. No entanto, inicialmente, antes de envolver Jaime Raimundo, o de La Nación tentou colocar a Fruit como devedora da negociata pessoal que fizera com M. Causou-nos mágoa profunda. Assim como causou mágoa a atitude tomada contra Raimundo. Todos o têm como homem de princípios. Como expliquei-lhe há pouco, Monlevade, na ocasião, pedimos ao banco que exibisse documentos que comprovassem eventual débito e desdobramentos. Não o fez. Nem o juiz obrigou-lhe a tanto. De todas as formas, fui contratado pelos demais sócios para elucidar toda a trama. Nosso interesse é apenas entender o que realmente aconteceu entre M e o De la Nación. No frigir dos ovos, é por isso que estou aqui. Disseram-me ser missão mais difícil que desvendar o mistério do Santo Graal, ou saber sobre a autenticidade do sudário, ou descobrir onde, finalmente, foram guardados os restos da cruz em que Jesus foi crucificado. Não o foi. Não percebeste que segui todos os seus passos em La Paz? Tenho gravado, inclusive, tudo que falaste e recebeste via telefonia fixa, móvel e internet. Nem eu nem o Bazar nada temos a esconder dos sócios ho- Dossiê Monlevade 195 nestos da Verlon Fruit Shoe, agora foi Bern quem retrucou incomodado com tal invasão de privacidade. No entanto, paradoxalmente tranqüilo. O motivo, mesmo na situação inusitada em que se encontrava, fora a longa exposição do interlocutor, – não se diz na França que chien qui aboie ne mord pas (cão que ladra não morde)? No entanto o senhor sabe, trata-se de procedimento criminoso. – Sim. Contudo sei que não vais tomar ação alguma contra nós. – É verdade, desde que cesse a partir deste exato momento. – Podes considerar encerrado. – Sou-lhe grato, e perdôo a sua nefasta ação anterior. Provo dizendo que já a esqueci. Então, pergunto, conseguiste o doc x? – Sim Saquei cópia com câmera de celular, inclusive arquivo de promissória que sempre o acompanha de mãos dadas. Como Cosme acompanha Damião. – Se é assim, podes ceder-me? – Por e-mail. Não podemos demorar nem mais um minuto aqui. Distraí-me. Peço-lhe desculpas por ter me alongado nas explicações que lhe dei faz pouco. Eram absolutamente necessárias, mas poderia ter-lhe dito tudo aquilo em momento de menor stress. Rápido. Saiamos rápido. O peixe morre pela boca. Não sou um deles, Monlevade, mas alguns amigos me dizem que esta minha prolixidade ainda um dia me mata. Depressa. Depressa. O rodízio da guarda deverá passar em 30 segundos. Repara o marcador digital regressivo que está a sua direita. – Mas o segurança Wilson Palhares, que trabalha conosco, disse-me… – Esqueça, alguém denunciou parcialmente seu esquema para o diretor em La Paz. Acompanhe-me até os fundos da casa, vamos caminhar por trecho de Mata Atlântica monlevadense. Nela, alguns caçadores antigos abriram trilha a facão até alcançar a Vila Tanque. Lá há viatura que nos aguarda. Posso encomendar ao motorista para levá-lo ao Hotel Cassino. Quando chegar, já terás o documento em sua caixa de mensagem. Terás que decodificálo, por meio de senha que lhe passo agora. Basta deslizar esse papel próximo à chama de fogão, o código secreto aparecerá por alguns segundos e se extinguirá para nunca mais voltar. É 196 Jairo Martins de Souza gravação volátil. – Entendo e agradeço. Só preciso avisar a estagiária que me aguarda com o Bel Air. – Não é necessário. Já foi cientificada da mudança de planos pelos sócios de Cocais. Amigo, ela não é somente sua, como também nossa parceira, aliás, todos nós temos também outra missão. – Qual? – Protegê-lo! Dossiê Monlevade S 197 Capítulo 41 Amor e arte. Duas cartas! ei que você também quer sempre me proteger, mamãe, mas digo-lhe o que sinto. Sinto tanto carinho por ela que tenho ímpetos de carregá-la no colo em ocasiões mais inusitadas. É como funciona comigo aqui. Quero proteger Marie! Papai disse-me que era assim que fazia com você quando namorados. Dizendo desse jeito fica melhor para você entender? Então fica claro que não é como a uma irmã que gosto da brasileira, enfim, como faria com a Deneuve que prezas tanto. Aliás, repito, venham aqui, você e Liviah, para conhecer Marie. Isso é uma ordem! O rapaz que você viu sair de Paris cresceu bastante... Aí que está mamãe, peço-lhe não pôr chifres na cabeça de cavalo! E não se preocupe, ainda que não seja somente isso que esteja vendo de excitante aqui no Brésil! Não fazia um ano e já tinha dado para perceber que tudo nos trópicos é diferente. Até mesmo as estações egípcias que, faz séculos, nunca mudaram. O verão é mais forte, as chuvas mais copiosas. No inverno faz frio, mas não tanto. A primavera é feita de cores mais vivas, há profusão de frutas, flores e cores. O outono é menos distinto, com cores menos cobreadas. Aqui tudo é tingido a ouro, mamãe! Aliás, falando em ouro, assim que puder, vou a Ouro Preto. Marie disse-me ser cidade colonial simplesmente maravilhosa... Papai, obrigado pelos depósitos e adiantamento para cuidar dos negócios relativos ao processo de Jaime Raimundo. Estive na casa do Diretor de La Nación e tudo deu certo. Finalmente tenho em mãos a buscada cópia de x. Agora é encaminhar procedimento jurídico, conforme me sugeriu o presidente da 198 Jairo Martins de Souza OMC quando estive em La Paix. Quanto a você, papai, apesar de distante, cada vez mais me sinto enriquecido com sua alma companheira e dedicada. Guardo instintivamente todas as suas orientações. Lembro-me sempre que, com seus conselhos, não deverei temer mal algum. Nunca me esqueço da história do caranguejo que diz ao filho para andar reto, e o filho pede-lhe para mostrar como... Contaste-me quando criança. Agradeço-lhe pelos exemplos, que sei, vieram de sua formação cristã. Prometo pagá-lo com juros que também sei nunca cobrados. Fico feliz em saber que os negócios vão bem em Guéret! Por outro lado, agora entendendo melhor o Brésil, mudo meu humor na escrita e torno-me levemente triste. Os portugueses, papai, perderam oportunidade de ser o povo europeu mais rico do continente. Não entendo porque não participaram das revoluções industriais que mudaram o mundo a tempo certo. Corte atrasada. Povo atrasado! Não me consta ter havido, entre eles, nenhum industrial como meu bisavô que aqui viveu e morreu. Os lusitanos que vieram para cá, começaram buscando pau-brasil. Eram chamados brasileiros e vinham somente levar essa e outras riquezas. Daí nome transferido erroneamente para o povo daqui. Iam e vinham. Tais brasileiros, no fundo portugueses, não pensavam ficar aqui como fizeram os ingleses que viajaram para a América do Norte. Como se não fosse suficiente, alguns poucos daqueles acabaram fixando moradia, mas com o mesmo espírito de extorquir e carregar suas caravelas particulares. Pais, mães, gerações inteiras que continuaram indo e vindo. Tornaram-se, em essência, políticos que, ao longo dos séculos, vêm tentando destruir o muito que aqui tem de bom. Pedro II, cuja tia casou com nosso Napoleão Bonaparte, foi exceção. Uma pergunta, papai... Por que o habitante do Brasil não é brasiliano, tal como os peruanos, bolivianos, italianos?... Sim, estou desviando assunto, deves estar ansioso para saber algo mais de Marie. Faço melhor! Envio-lhe foto exclusiva em que estamos almoçando em floating restaurant às margens do Piracicaba! O dia estava ensolarado e facilitou mostrar os encantos da mulher brasileira. Só vendo, papai... Só vendo... Dossiê Monlevade 199 E o futebol daqui, papai? Vi alguns jogos durante minha estada no Rio de Janeiro. Como disse-lhe, tempos atrás, estive no Maracanã e, quanto a isso, nada mudou. Já em Monlevade, continuo apreciando clássicos locais como o Metalúrgico versus Belgominas. O Real versus o Vigilante. Aliás, já estiveram jogando também por aqui o Atlético Mineiro e o Cruzeiro. Time fundado por italianos. Um antigo estádio daqui, chamado Jacuí, foi reconstruído no local que antes seria cedido à ferrovia da gigantesca Companhia Vale do Rio Doce. A Vale. Lembra que algo semelhante aconteceu com o Wembley dos ingleses? Já o maior clube desse estado teve o seu estádio, o da Colina de Lourdes, transformado em Shopping Center. O torcedor do Cruzeiro chama-se cruzeirense. Tornei-me um deles. Não é a palavra torcedor, vinda do latim torccere: o que distorce a verdade? Bem, tal como fazíamos juntos aí em Paris, acompanho também rodadas de discussões entre comentaristas especializados. De fato, papai, os espetáculos daqui encantam-me tanto quanto ver shows do Cirque de Soleil. O Alegria. O La Nouba… Os brasilianos fazem atuações futebolísticas, acredite, como grandes atores de teatro. Só não os chamam atores, jouers, como o francês chama. Os ingleses, lembra-se, também chamam seus futebolistas de artistas. Chamam-lhes players. Aqui são simplesmente jogadores. O que é absolutamente igual é a falta de compreensão das mulheres quanto a essa paixão masculina. Desesperam-se pela perda momentânea de companhia dos seus queridos. Como em todas as partes do mundo dizem-se desamparadas. Mas estou dizendo de grandes artistas, papai! Levam o público ao delírio. Nem os gladiadores romanos, no gigantesco Coliseu, arrancavam tamanho entusiasmo. Spartacus e Maciste sentir-se-iam pequeninos se comparados a Edson Arantes, o Pelé. Se bem que, quanto a isso, papai, os brasileiros não sejam nada modestos. Têm motivos de sobra. Nunca se sabe o que vão fazer com seu texto ou sua pintura. Aqui a caneta e o pincel têm nome único: a bola. A partir dela fazem arte! Não é arte tudo que tem por missão surpreender pessoas, fazê-las felizes ou simplesmente reflexivas? Beijos para você, mamãe e Liviah. Dossiê Monlevade 201 Capítulo 42 Bern invoca Têmis, a deusa que se faz cega às coisas dos homens U m café forte passado à moda antiga? – Como? – Coado em filtro de pano! Já tomaste dele aqui em casa. – Ótimo, percebo que fica mesmo melhor. É muito superior aos espresso. – Posso servi-lo em canequinha de estimação? É esmaltada em cor verde. Pertenceu a meu avô. Esquenta um pouco os lábios, mas… – O prazer é todo meu. Vai torná-lo mais saboroso. – E então, Bern, foi difícil obter o doc x? – Não. Tudo correu com a graça do Senhor. Parece-me, as coisas se sucederam imperceptíveis como a lei da gravidade. Mas senti os efeitos materializados nas letras da senha do papel que me forneceu o advogado colatinense. – Podes me dizer qual era a senha? – Sim. Iustitia. Justiça. Em latim. – Por que em latim, e por que Justiça? – Creio não haver razão especial. Talvez quem criou o código goste de línguas mortas. Pode ser também dos que sonhe com a força da espada, o equilíbrio da balança, e a imparcialidade da deusa que zera sua tara. Aí está o porquê da deusa Têmis ter máscara nos olhos. – Sonho possível? – Sim. Tal como o que o reverendo King teve e viu tornar realidade. O mesmo que tivemos com os famosos gritos de liber- 202 Jairo Martins de Souza té, egalité, fraternité. Por trás desse tipo de sonho existem muitas lutas. A nossa aqui mal começou. – Entendo… Se é assim, Bern, por onde começamos? – Pelo princípio. Pelo caminho que me deu o presidente da Organização Mundial de Comércio quando estive em La Paz. Vou pedir mudança dos rumos da execução que a justiça tem feito com meu cliente. Tal como nos julgamentos antigos devo invocar a presença de Têmis. O instrumento jurídico é a tal exceção. A de pré-executividade… Dossiê Monlevade 203 Capítulo 43 Onde se diz sobre o milenar jogo de braço de ferro E m qualquer peça jurídica, Marie, deve haver ordenação lógica totalmente de acordo com a prática dos advogados e juízes. Há que identificar o magistrado para o qual segue, tratando-o com o respeito a que faz jus de ofício. É um homem comum, mas em suas decisões solitárias pode ser visto como um Deus. Ocupa cargo atípico na sociedade dos homens. Sendo assim, é de praxe chamá-lo excelência. Não é de todo incomum que sejam pessoas forjadas por ligações sangüíneas. Praticantes do nepotismo. Nesses casos, de geração a geração, tornam-se burocratas que se eternizam debaixo de togas. Perdoa por desviar o foco do assunto, Marie, pois, após seguir profissão de fé que anteriormente disse, o advogado faz exposição inicial. Daí expõe arrazoado. Para enfeitar, borda algumas palavras, enfeita-as, escrevendo-as em latim e, para reforçar, lembra casos passados, e cita jurisprudências. Isso pode contar pontos a favor… No final faz os pedidos, alguns escrevem o óbvio e reforçam clamando por Iustitia. Foi o que fiz aqui, chérie, falta-me somente encaminhá-los. Não. Não fora fácil assim a ponto de todo o esforço de Bern poder ser reduzido a tão simples e pequeno parágrafo. Mesmo não se tratando de processo criminal, o rapaz buscara entrevistar os sócios de Monlevade e os de Cocais. Consultara agricultores, comerciantes, professores, médicos, administradores e exportadores de frutas. Arrolara testemunhas. Obtivera declarações reconhecidas em cartório de pessoas idôneas, conhecedoras do assunto e que acompanharam Jaime Raimundo durante a instalação da Fruit no mercado. Tinha trabalhado bem. Com poucas 204 Jairo Martins de Souza palavras e muitas razões desclassificara e tornara clara as más intenções do De La Nación e de M. A documentação anexada deixava bem clara a inocência de Raimundo. Resumindo, fora convincente. Disso tudo resultou bela peça de defesa. Inócua! Por quê? – Perguntou-lhe Marie. – Ao direito e às leis, chérie, não interessa saber se o indivíduo é inocente ou não. Os maus políticos e cidadãos congestionam os tribunais. Todos alegam inocência. Minha alma já é brasileira, Marie, e, como tal, dou-me o direito de dizer que aqui no nosso país, o foco, parece-me, é dirigido para o processo do julgamento. Não à essência de que trata. Mais especificamente, veja o caso de Raimundo que assinou algo que não devia ter assinado. O fato é que quando o fez, caiu na teia de leis do sistema. Desnecessário é lembrar-lhe, chérie, que aqui, quem aprova as leis é o legislativo. Ah, esses políticos são donos de tudo. Até mesmo no executivo ditam regras com as tais medidas provisórias. Enfim, todo esse sistema dá idéia de não se conformar que alguém que nele entre, ou simplesmente seja citado, possa ter sido ludibriado e, por conseqüência seja considerado inocente. Metáfora boa é a de uma aranha que captura um inseto e deixa-o à mingua em sua prisão eterna. Não o mata por definitivo, mas também não o libera de suas algemas. Não é nada pessoal contra Raimundo. O Estado versus Raimundo. Ou contra qualquer que seja. O sistema legal dificilmente vê como alguém pode ser inocente se nele entrou pela porta de trás. Aliás, chérie – digo isso só para estabelecer paralelos e diferenças –, quando estudante participei de viagem de estudos e troca de informações aos Estados Unidos. Papai foi comigo. Ele, por curiosidade; eu, para confirmar certos dados que levantei durante semestre em que, na Sorbonne, estivemos estudando como funcionavam os tribunais naquelas terras. É claro, papai não era nosso colega de classe. O fato é que estivemos inicialmente na Justiça federal, na Pearl Street. Lá, pouco aprendi. Mas eu e papai rimos muito, ha, ha, ha – Por que, Bern? – Xingos. Xingos, Marie. Por exemplo, em audiência a que assistimos, – de mulher negra que acionava a homem branco, um Dossiê Monlevade 205 ex - empregador –, em dado momento, ela xingou-lhe assim: take care, fellow, I’m going to assassinate your ass (cuidado, fulano, vou assassinar o seu c…). Não preciso traduzir o resto, não é Marie? Não é frase um tanto inusitada? Achei-a divertidíssima. Enfim, querida, aquele povo faz ameaças e diz frases daquele tipo como poucos. Não é assim que funciona nos seus filmes? No entanto, na ocasião tomei proveito mesmo foi de visita à Centre Street, número 100. Foi também na cidade de Nova Iorque. É onde funcionam, não é que sejam julgamentos, mas algo como sessões, eles chamam arraignaments, com ritual característico, e que podem definir destinos de casos de pequena relevância social. Denunciada a má ou boa intenção de a ou de b… Pronto. Define-se logo. Em regime de 24 horas por dia. Não há disputa entre o sistema, que quer condenar para dar satisfação à comunidade que paga impostos, e o advogado de defesa, que é pago para defender o acusado dentro dos furos da lei. Há também outras diferenças, enfim, casos são definidos rapidamente, pois muitos outros estão na fila de espera. No Brésil, para os juízes, isso tanto faz, tanto fez. É triste, mas no Direito brasileiro, repito, o que interessa é a disputa pela decisão final. Imaterial. Não há interesse pela pessoa, em particular. Raramente se faz justiça. Que se acumulem os processos! Grosso modo, são tantos os artifícios legais para procrastinar decisões que muitos deles acabam morrendo por inanição nas gavetas do Supremo. Os processos normalmente caminham enfeitados, pois ao longo dos andamentos há batalhas verbais belíssimas: isso desde os tempos de Rui Barbosa. Fato comum. É tradição nacional. Basta lembrar, Marie, as que travam os senadores e deputados da república nas dependências do Congresso Nacional. Algumas se tornaram peças literárias apreciadíssimas e, por isso, muitos doutores que litigavam, e litigam, foram eleitos para a Academia Brasileira de Letras. Os advogados mentem muito. Claramente. Na televisão. Nos jornais. Muitos seguem a carreira de políticos. Mas todas essas querelas, no fundo, tratam de jogos de poder específicos. Uma queda de braços entre os envolvidos. Um braço de ferro. Às vezes, mesmo com definição prévia de quem perde e de quem ganha, não há beleza alguma se não acontece contestação de um ou de outro. 206 Jairo Martins de Souza – Pelo que dizes, Bern, passa-me idéia de ser como venda de objeto por negociante marroquino. O mais importante é a intriga durante oferta e aceitação de preço. Se não há disputa, a transação perde a graça. – De certa forma foi o que o juiz entendeu, Marie. Com seu despacho, deixou claro que o presidente da OMC não foi feliz na instrução que nos aconselhou. Foi o porquê de ter enviado carta à população, informando que a ferramenta jurídica proposta para a desoneração de Jaime Raimundo não procede. – Considerou isso porque não houve o braço de ferro? – Sim. Mas também porque desconhece o caráter do nosso amigo Jaime. Além disso, disse-nos não porque na exceção de pré-executividade não se convoca presença do outro participante da lide jurídica. O de La Nación. – Ele, quero dizer o Jaime Raimundo, ficou triste? – Sim. Como também a esposa e filhos. Mas não desanimou. Nem eu. A verdade tem que vencer. Quando informei-lhe, por telefone, citou-me textos bíblicos sobre os sofrimentos de Jó. Concluiu dizendo que se Deus está por nós, quem estará contra nós? – E você? – Fiquei calado. Não podia dizer-lhe que o pessoal do De La Nación buscará manter sua condenação a todo custo. – Como? – Fazendo-se de morto! É o que tem feito desde que o primeiro juiz disparou o processo dessa execução. Com isso, o processo encontra-se paralisado: mas não a execução. Seus efeitos persistem. Nem está parada a nefasta parcela da sociedade que vive da desgraça alheia. – Nefasta? – Sim. Órgãos e instituições com características medievais que inibem crédito pessoal e envergonham pessoas como Raimundo. O coitado nem mesmo tem direito a cheque bancário. – E então, o que fazer? – Apelar. Apelar para junta de desembargadores. Podem revogar decisão do juiz. – Então vamos recorrer da decisão? Dossiê Monlevade 207 – Sim. Mais precisamente, vamos agravá-la. – Temos chance de mudar o que definiu o magistrado? – Talvez. O desembargador corrige o que o juiz faz. Às vezes, funciona como seu professor. Dá puxão de orelhas. Aprova ou não. Tem força para tanto. Alguns dizem que não há espírito de corpo entre juízes e desembargadores. Outros dizem que costumeiramente formam grupo fechado carne e unha. Aliás, dizer que o juiz é pai do desembargador é afirmação um tanto freudiana, mas não posso contradizê-la. Mas, Jaime, mesmo que a segunda hipótese seja a verdadeira, continua acreditando na existência da exceção. Não são elas que justificam a existência das regras? Dossiê Monlevade O 209 Capítulo 44 O tribunal de Apelação Banco do Brasil quebrou em 1829. João VI havia raspado seu cofre quando retornou para Lisboa anos antes, em 21. Foi recuperado por Mauá. A Panair quebrou. O governo tomou-lhe as linhas. Não se recuperou. A Real aerovias... A Verlon Fruit Shoe está se extinguindo. Por abandono. M gostara do exemplo do imperador português... Bern olhava-os com respeito. Dois ou três eram conceituados juristas e professores nas escolas de direito de Monlevade. Os desembargadores entreolharam-se descontraídos. Nada do que acima deduziram havia sido posto a público pelos jornais e artigos de economia da semana. No entanto, pelos termos da representação do De La Nación, contra certo Raimundo, foi-lhes fácil concluir. Haviam finalizado os preliminares no salão de café e vestiam togas de acordo com o cerimonial demandado para a ocasião. No momento encontravam-se assentados em cadeiras modelo Luiz XVI e passavam os olhos sobre recurso de agravo de instrumento, levado às barras do egrégio tribunal pelo advogado Bernard Monlevade. Quem estava com a palavra era o relator, que funciona como guia e dá o ritmo ao processo sendo julgado. A pauta, como sempre, se mostrava cheia, e a audiência, tanto na parte central do salão, quanto nas galerias, estava repleta e composta de cidadãos ansiosos. Alguns como Raimundo aguardavam definição. Toda a audiência permanecia calada. Não se ouvia um pio que fosse. Uma mosca que batesse as asinhas seria ouvida de um a outro extremo do salão. Nem se fale, caso fosse uma borboleta. Os advogados destacavam-se pelo modo 210 Jairo Martins de Souza distinto de se vestir. Por deveres de ofício, normalmente falantes, aqui, primam por manter comportamento discreto. Desde a entrega do seu pedido de reforma de decisão, já havia passado cerca de três anos. Agora finalmente aqui estava, prestes a receber a decisão do relator quanto à possível reforma, digo, mudança, da decisão do juiz de primeiro grau. Nada no ambiente há de teatral ou romântico. Não como nas películas de tribunais do cinema norte-americano. O relator do pedido de agravo era homem experimentado. Mas parecia triste. Uma exceção. Parecia doente. Quem sabe fosse o seu último dia de serviço. Parecia ser dos que estavam prestes a passar para período de aposentadoria compulsória: fosse assim o final de semana seria totalmente voltado para homenagens. Aparentava não prestar atenção ao que lia. Parecia indiferente. Ah, Bern constatou, a justiça estava distraída. Ao lado estavam Jaime Raimundo e esposa. Também ansiosos. Passemos aos fatos. Escrevi que o relator era homem experimentado. Agora escrevo cansado. Um juiz cansado. Um desembargador cansado. Ao iniciar leitura de sua conclusão, fê-la cometendo grave erro. De pronto errara o nome do agravante. Dissera qualquer coisa que soou como James Raimundo e por aí seguiu enfadonhamente dirigindo a sessão. Estranho, Bern pensou. Talvez melhor ponderar que o equívoco fora conseqüência da conhecida lei de Murphy, ou considerar o ocorrido como fruto da senilidade do agente público. Então, encurtando o assunto, e colocando-o conforme anotações de próprio punho de Bern... Depois de cometer tão grande deslize, o desembargador que relatava deu parecer contrário ao que eu, como advogado, julgava justo acontecer. Imediatamente foi seguido pelos demais, seus pares. Em política, diz-se voto da bancada. Diz-se seguir o líder da bancada. Aqui no judiciário nacional não sei como se diz. O que sei é que tenho que partir para outra batalha. Procurar outro caminho. Rapidamente. Com a agilidade que Napoleão movimentava seus exércitos! Dossiê Monlevade O 211 Capítulo 45 O juiz juiz de Primeira Instância não tinha agido tão errado assim. Mas errou. Deixou faltar-lhe algo. Faltou-lhe disposição. Como também aos desembargadores que julgaram o agravo no tribunal. Não. E não é que seu cliente seja culpado. Faltou-lhe, agora volto a falar do juiz de Primeira Instância, talvez um pouco de coragem. Coragem para chamar Raimundo, e o de La Nación, e saber o que realmente aconteceu. Face a face. Pois o que não está de acordo, de forma límpida e clara com as regras do direito nacional, é que a decisão do juiz não poderia ser tomada sem se ouvir as razões do banco. Mesmo que desonestas. Precisa-se de um contraditório. Precisa-se de uma discussão entre as partes que anteriormente não houvera. Mesmo tendo tudo isso em conta, o juiz que inaugurou a execução não trabalhou bem. Agiu mecanicamente. Como um autômato. Fez tal como no casamento quando a mulher, acuada pela histeria, acusa o marido. Não permitiu o contraditório. Alguns fazem assim. Lavam as mãos. Como Pilatos. Não vão a campo. Tornam-se homens solitários, pois não tiram o traseiro de cadeira honorífica. Ex officio. Fazem parte de sistema, e nem mesmo sei se podem ser condenados. Alguns, sim. Estão lembrados do Rocha Mattos e do Leopoldo? São milhares de processos! O juiz é obrigado a fazer como o médico que trabalha na rede pública. Do tipo que receita remédios, não para o doente, mas para o resultado de exames que vêm de um laboratório. Como se o paciente não existisse. Não conhece os seres humanos: seus antigos semelhantes. Por fim, o juiz julga a letra e o escrito. Lá está, solitário, frente a frente com um nome lido como Raimundo. 212 Jairo Martins de Souza Nessas condições é que define o destino daquela palavra. Escreve bonito, parece fazê-lo em língua alemã. Duríssima. Entregam sua alma, sua inteligência, a textos sem poesia. Desconhece, mais das vezes, palavra antiga chamada caráter. O olho no olho. O bom caráter. Não pesquisa. Ou não tem tempo de pesquisar o mundo. Faz juízo de valor sem conhecer a pessoa com quem lida na frieza dos autos. Há exceções brilhantes. No entanto, na maioria dos casos, julga tudo iluminado por sol de outro mundo. O jurídico. Que parece superior à inteligência humana, pois que baseado em leis propostas e votadas por políticos que se curvam a quantidades monetárias. Não disse Bismarck, o chanceler prussiano, que o povo arrepiaria os cabelos caso soubesse como se produzem as lingüiças e as leis? É claro, há aqui também algumas exceções. Em alguns países, tais como os Estados Unidos e Inglaterra, muitas vezes a lei não é tudo, e sim a tradição e a prática dos julgadores de boa vontade. Um crime de quilate já cometido no passado é punido conforme séculos atrás. Mantém-se a tradição, conforme saudável para a sociedade, enfim, a política, prezado doutor Bernard, é o câncer do sistema legal e do estado de direito. Já os desembargadores são seres superiores normalmente em fim de carreira. Procuram fazer justiça. No entanto, há casos em que... Tudo isso e muito mais fora relatado pelo presidente brasileiro da Organização Mundial do Comércio que se tornara amigo de Bern quando de sua estadia em La Paz. Tecnicamente o juiz estava certo, mas... A conversa ocorreu enquanto navegavam em suas poderosas estações de trabalho. Um em Monlevade. O outro em Bruxelas. Via skype. – Jaime Raimundo tem caminhado como um morto-vivo pelas ruas de Monlevade, foi o que o moço, em dado momento, respondeu-lhe durante andamento da conversa. Tinham passado a falar da influência das decisões judiciais, em sua maioria malignas, nas vidas dos cidadãos de bem. O cadáver de Marilyn Monroe nada significa para ela mesma, doutor Bernard. Significa sim para a sociedade que a apreciou e Dossiê Monlevade 213 que continua viva. Nesse sentido a morte funciona como um fato sem solução para quem morre. Não existem livros, obras de artes etc. para quem já morreu. Quem disso usufrui são os que restam vivos nesse mundo de sombras e cores. No caso do seu cliente, temos muita terra para caminhar. Por pior que seja a situação, não estamos nos tempos em que, indiretamente, Maria, a Louca, regia os destinos do Brasil. Leve-lhe ânimo. Tens ainda cartuchos a serem gastos, algumas cartas a serem retiradas do colete, alguns... Lembre-se do instrumento do embargo de execução por terceiros. Copiâmo-lo também do direito romano... Com isso poderias manter a paralisação do processo de execução e fundamentar o pedido de exclusão do seu cliente da lide mantida pelo De La Nación. Usando-o adequadamente, e com todos os documentos e confissão obtidos pelas suas investigações e as de Chan, a chance de livrá-lo de tudo é grande. Tens aí a oportunidade de apresentar o contraditório que o juiz pediu e que o desembargador confirmou. O banco tem que dar as caras e apresentar novas razões. Não as tem. Daí o nome de Jaime Raimundo poder ser retirado desse tortuoso processo. Dizem que nele já constam milhares de páginas. Então Bern disse-lhe que já havia pensado sobre o assunto e que, inclusive, tinha iniciado redação de texto a ser enviado para tribunal adequado. Sim. Ficava feliz por ter opinião e suporte de tão grande autoridade etc. e tal. O que temia era a atual falta de interesse dos magistrados pelo processo. Não gostam de ler os de grande volume e de tal monta. Ou então, leitura superficial, pelas beiradas. Poderia gerar erro crasso. Dá trabalho, um deles comentou despretensiosamente. Se me debruço sobre ele, como terei tempo de alcançar meta estabelecida para a minha vara, aqui, em Monlevade? Minha produtividade, minha estatística, cairia escandalosamente. E as promoções por merecimento? Iriam para o ralo! Fosse designado para mim, só abriria suas páginas se for intimado ao dever, ou pelo Supremo, ou pelo Gerente do Ministério Público, ou se diretamente solicitado pelo Presidente da República... Dossiê Monlevade M 215 Capítulo 46 Bern segue conselho de *** arie, veja se está tudo aí anexado. Contratos societários da Fruit, doc x, relatórios confidenciais de Charlie Chan, declarações de grupos Católicos regulares, Carismáticos, Metodistas, Kardecistas, Maranatas, Testemunhas de Jeová, Budistas, Batistas, Muçulmanos, Judeus, Adventistas... Parece-me que o mundo religioso apóia nosso amigo, não é Bern? – Sim, Marie. Aliás, não somente eles como também associações centenárias como os Maçons, Rosa-cruzes, Templários e outros grupos citados por Dan Brown no seu famoso Código Da Vinci. Anexe também, por favor, o manifesto de presidente francês, o Marechal De Gaulle. Por cautela, retire a parte em que se supõe dizer que o Brasil não é país sério. O magistrado pode julgar que aí incluímos o nosso sistema de julgamentos processuais. Pode ficar enfezado. Pode comprometer minha tese de defesa. Então, chèri, vais entrar mesmo com a ação de embargar o processo por meio de terceiros? Sim. Sigo conselho do brasileiro atual presidente da Organização Mundial do Comércio. Já lhe disse sobre ele. Lembras? Seu nome é ***. Homem competente. Nessa ação, o terceiro que vou considerar é o próprio Jaime Raimundo. Vou considerá-lo como ausente de qualquer responsabilidade da cobrança pelo De La Nación. Nessa situação ele pode solicitar que tudo seja arcado por quem de direito. No caso, M e família. Há previsão para despacho do juiz, Bern? – Não. Nunca se sabe. Pode demorar séculos. Há muitos 216 Jairo Martins de Souza casos assim na crônica judiciária nacional. No nosso – mesmo sendo de decisão rápida – é erro crasso se pensar em prazo certo. – Então nada garante que o juiz que iniciou análise é quem dará o despacho final? – Não. E com isso há complicador. Explico. Provavelmente quem vai julgar, nunca teve contato humano com as partes. Nunca esteve face a face. Não conhece Jaime Raimundo. Tudo fica frio. Nesse processo o juiz muda a cada semana. Declaram-se incompetentes e passam-no de um para outro. Parecem brincar de passar o anel, entendeu? – Ah… – Marie disse consternada – um pretendente a magistrado contou-me que às vezes funciona assim para casos como esse. Antigos. Volumosos. – Por acaso, não lhe disse também que, para tanto, são treinados pelo próprio sistema? – Não diretamente, mas isso ficou claro nas entrelinhas. A despeito de tudo, a decisão sairá a nosso favor? – Aqui acontece a mesma coisa. Nunca se sabe. Aliás, não estranhe, mas falando de assunto que você gosta de ouvir, o assunto bebês, de metáforas com bebês, dizia-se que o pensamento deles, dos juízes, antes dos tempos da ultra-sonografia, era como sexo de neném: só se conhecia depois do parto. No entanto, sempre foram influenciados por fatores que prevalecem até hoje. – Quais, chéri? – Amizade, parentesco … Há mesmo casos em que nem precisam estudar nada de leis. Mais ainda: nada de nada. – Como? – Os juízes não togados da Justiça do Trabalho. Os classistas. São do povo comum e indicados pelos sindicatos e pela gerência do governo. Um juizossauro rex. Felizmente, há indícios de que estão em processo de extinção… – Vamos mudar de assunto, Bern? Agrada-me mais voltar às referências que fizeste a bebês… – Boa idéia! Gosto de crianças pequenas, Marie. Adoro fazer, com elas, aquela brincadeira do apareceu, sumiu, apareceu, sumiu. Encanta-me a alegria de tão simples ato. Aliás, essas surpre- Dossiê Monlevade 217 sas de aparece, some – aí digo de uma mesma pessoa a sumir e aparecer novamente – dão segurança e renovação de amor que elas simplesmente adoram. Freud explica… Caro leitor, pode virar a página. Escrevo isso bem à moda de Machado, explicando que encaixei o próximo envelope do dossiê conforme minha conveniência. Envelope pequeno. A razão? Nele não havia qualquer referência, ou data, que indicasse sua localização na linha do tempo. Antecipo que, no seu texto, Jaime Raimundo veste “carapuça” e protesta, não se surpreenda o leitor, fazendo suas algumas palavras de conhecido burro monlevadense. Um burro operário. O do Geo. Estão lembrados? Dele já fizemos referência. Dossiê Monlevade C 219 Capítulo 47 O burro do Geo (capítulo especial) hama-me mais uma vez de filho de uma égua, patrão. Estou acostumado! Tens na mão o chicote e a palavra, a balança e a espada, essas não tenho nem nunca vou ter. Vai. Vai. Continua a vergar-me com peso que continuarei puxando na carroça que impuseste à minha vida. Sustento-te com suor e impostos. Nem com isso lhe pago a minha liberdade. Não olho para os céus, com isso bem conheço o caráter tantas vezes dramático do homem e do mundo. O do seu chão. Compro-te a comida, e alimento sua mulher e filhos. O mesmo feno que insistes em me negar. No fundo sou mais que tu. No entanto não deixas de ser a minha esperança! (a)um burro João de Monlevade. Na cabeça do documento de número 47 há registro de aprovado! A assinatura? Ilegível! O carimbo, já com tinta sumida, mal mostra o mês da liberação para exposição pública. Que aqui nem se mencione do nome do oficial responsável! Mas essas falhas de registro, o caráter de fábula dado a esse dossiê, não nos devem causar contransgimentos. Decerto não trazem aborrecimentos de qualquer natureza. Justifico que até mesmo em processos de alto interesse nacional, juízes togados e autoridades costumam mencionar fábulas para fundamentar decisões. Até mesmo não é incomum, em estudos sociais de extensa profundidade filosófica, dar-se voz a animais. Lembro aqui a Rebelião dos Bichos de Orwell. Como também o uso da arte. Recordam-se os senhores como o prefeito Graciliano Ramos, de Palmeira dos Índios, prestava suas contas antes de conhecer sucesso literário? 220 Jairo Martins de Souza Razão bastante? Então sinto-me justificado por ter acima incluído um semovente nesse livro cujo assunto principal é processo que tramita no judiciário! Admito terem sido palavras breves, e se nelas houve alguma metáfora a ser aplicado ao nosso sistema legal, que seja tarefa do leitor descobri-la. Garanto ser fácil! Há, no entanto, algo mais. As palavras do burro devem ser seriamente tomadas por conta de ser ele, além de tudo, o ícone do esforço do homem monlevadense. Um deles não esteve ao lado do menino Jesus na manjedoura? Por fim, homenageio-lhe, trazendo outras de suas próprias palavras para constar neste processo. A fonte é a primeira edição da obra Bazar Monlevade (Por Trás das Vitrines). Lá, em determinado momento, dizia: O armazém do meu patrão ficava bem no meio da ladeira, lado esquerdo de uma carroça que sobe. Às suas costas, a popular Praça do Mercado. Do lado direito via-se o imponente muro do Grupo Escolar que servia como contenção de enorme barranco. Lá se estuda para não ficar um burro como eu… Paro por aí. Para o leitor mais interessado nos detalhes desse processo, e na gente de Monlevade, a importância da existência do burro do Geo pode ser melhor avaliada em capítulo de título longuíssimo: a importância dos burros no cotidiano de Monlevade, em particular, a do chamado burro do Geo. A obra é a mesma acima citada. Dossiê Monlevade J 221 Capítulo 48 A fuga oão Monlevade. 01 de novembro de 54. 23h30min. No bairro de Luanda, área quase que totalmente dedicada a empresas prestadoras de serviço da área petrolífera, Torquato Viglioni e associados dão andamento à reunião secreta de alguns sócios remanescentes da Verlon Fruit Shoe. O local era armazém abandonado: fora um dos redutos de prosperidade da empresa. O próprio Torquato está com a palavra e, após introdução de praxe e solicitação de desligamento de todos os celulares, diz. Senhores, o Jaime Raimundo e o José Brás saíram da sociedade há alguns meses. Então, eu e O. Costa visualizamos oportunidade e adquirimos as partes que lhes cabiam na sociedade. Com os segredos que Charlie Chan e sua equipe puseram a descoberto, aí incluo o advogado francês Bern Monlevade, conseguimos finalmente expulsar M da nossa sociedade. O bastardo mentiu! Como muitos aqui presentes sabem, ele não tinha contrato especial com a Verlon com cláusula de exclusividade. No entanto, é ainda Torquato quem prossegue, o homem ainda deverá continuar nos trazendo percalços. Por exemplo, recentemente, descobrimos que contratara filho para os quadros da nossa empresa. Até aí, nada demais. O diferente é que constava trabalhar simultaneamente em dois locais Fruit. São Paulo e Monlevade. Com a saída do pai, o filho acionou-nos nos tribunais da Justiça do Trabalho. Queria receber horas extras. Aí que está. Com simples afirmação de que dois corpos não podem ocupar ao mesmo tempo espaços diferentes, nessa 222 Jairo Martins de Souza oportunidade, a 500 km de distância, o juiz negou-lhe pedido. Essa possibilidade, disse-lhe o magistrado, – homem interessado em física quântica –, só é possível a elétron quando salta de um para outro nível de energia de um mesmo átomo. Pode sumir de um deles. Pode aparecer simultaneamente no outro. Com isso concluiu ser o filho de M mais um de seus laranjas, estou dizendo novamente de M. Situação inusitada. No entanto, prezados, esse foi caso isolado, no qual a verdade prevaleceu, a justiça foi, eventualmente, feita, pois, como na historinha de Joãozinho e Maria, M deixou-nos muitas mais sementes no caminho. Do mal. Daninhas. As quais explico a todos aqui presentes, incluindo o leitor das notas deste dossiê, como sendo ações fiscais, penais, trabalhistas, etc. Em quantidade superior aos grãos de areia das praias artificiais do Rio Piracicaba. Não estou exagerando. Nisso M era criativo. Quase posso dizer a palavra inovador. No mau sentido. O desgraçado deixou a nossa empresa em frangalhos, inclusive fazendo-nos depositários infiéis de contribuições sociais de IAPI, etc., de algumas centenas dos nossos obreiros. Os oficiais de justiça lotados em todo o Brasil não conseguem cumprir, a tempo e hora, todos os mandados expedidos por juízes em centenas de varas cíveis... Por outro lado, a São Paulo Alpargatas também recuou na proposta que havia nos ofertado pela empresa. Tinham opção de compra. Não conseguimos fechar negociação com a indústria automobilística para colocação de bancos de couro frutados nos carros de fabricação nacional. A justiça do trabalho, a prefeitura e outras várias representações do governo, e do povo, têm-nos infringido multas e despesas referidas à administração de M. E assim, Torquato, em tom apocalíptico, foi descrevendo todas as desgraças que o diretor impôs à Fruit Shoe. Por fim, um dos sócios perguntou-lhe: – Disso sabemos, Viglioni. Na sociedade não se diz outra coisa. Nosso noticiário suplanta inclusive notícias boas, como a recente utilização de células-tronco, agora comprovadamente eficazes na cura contra a síndrome de ausência de imunidade adquirida, a tal aids. Os espanhóis chamam-na sida. Dossiê Monlevade 223 – Não sejas dispersivo, Costa. És famoso por sua prolixidade. Vá direto ao ponto. Estamos em reunião séria. De definição de novos rumos… – Agora sou quem peço ser mais objetivo, Viglioni. Onde queres chegar com os fatos que disseste? Lembro que são mais cruéis para nós do que foram as sete pragas para os egípcios que caíram em pecado no velho testamento. – Entendo a sua angústia. É a mesma que tenho. Profetizo que nunca terá final. A solução provisória é fazer olhos e ouvidos de mercador para essa empresa que se acaba. Vamos deixar que morra de inanição. Como acontece em muitos casamentos. Nada de injeção de recursos que nunca serão suficientes, nem mesmo para cumprir fechamento de passivo… – Não entendo a resposta que deste a Costa, Torquato. Quem comentou agora foi um sócio que viera de Cocais às pressas. Estivera em viagem de férias com a família pela América do Norte e sofria com o calor do ambiente em que acontecia a reunião. Por economia, o ar condicionado estava desligado: por recomendação expressa da diretoria, utilizava-se ventiladores de teto controlados por sistema eletrônico de geração recente – há minutos o homem pensava meios para derrubar tal deliberação. Por fim, perguntou: o que fazer? – Fuga, caro sócio de Cocais. Fuga. Por exemplo, a partir de hoje não possuirei endereço fixo. Sou médico por formação acadêmica. Jamais exerci a profissão, pois optei por dar seqüência ao negócio dos meus pais. Não mais. Já adquiri unidade portátil de imagens. Dormirei em hospitais, ambulatórios, casas de saúde, casas da morte – como as do Egito antigo – asilo de velhos, orfanato de crianças, hotéis, pousadas, albergues, enfim, não mais darei condições a qualquer oficial de justiça que venha aborrecer-me por problemas herdados de M. É a minha decisão. Calo-me. Com isso, passo o bastão para o sócio O. Costa que dará seqüência a esse encontro. – De minha parte, caro Torquato, é Costa quem fala assumindo a palavra, meu pai era fazendeiro e como ele pretendo voltar a ser. Largo o comércio e a indústria. Procurarei refúgio 224 Jairo Martins de Souza nas fazendas, nos estábulos, nos currais, nos pastos, nas matas e nos rios que atravessam esse Brasil sem fim. Com isso passo a palavra a… E assim caminha a humanidade e essa reunião. Em fuga de si mesma e de seus desígnios. O último sócio, ao terminar, passou a palavra ao Brás que ali, juntamente com Jaime Raimundo, figurava apenas como convidado especial. Mencionou sucintamente que se esconderia em grota localizada próxima à antiga barragem do Jacuí. Vida de Robinson Crusoé sem Sexta-feira. Há ainda onças pintadas por lá, finalizou. Ninguém, nem mesmo minha família, irá até lá. Por final, foi dada a palavra a Jaime Raimundo. Emocionou-se. Disse palavras simples, desconexas, fruto de seu estado de consternação. Coisas antigas foram misturadas com novas, seus pais, a educação rigorosa, seus irmãos, o orgulho que tem pelos filhos, sua vida e sua formação. Fala fragmentada. A saída da roça, a chegada até Monlevade, a fundação do Bazar, o sapato Passo Doble pedido pelo filho, o encontro com M, a desilusão com a fábrica de frutados, o corte de fornecimento da linha vulcabrás, e por aí vai (amigo, juro que há momentos em que discerni-lo – refiro-me ao discurso de Raimundo – pelos sentimentos nele contidos, torna-se mais difícil que resolver um cubo mágico. Coisa complexa. Um algoritmo de Deus. Então, por ser assim, poupo o leitor de ouvi-lo com suas próprias palavras, conforme texto original. Cubro essa lacuna, cumprindo promessa feita e, resumo, a seguir, o que de minha parte entendi. Meu recurso? A de escritor. O da arte literária. Bem, foi mais ou menos assim. O comerciante disse ter resolução contrária. Disse até hoje não entender bem esses processos. Principalmente o da execução bancária. Sinto-me de certa forma como o senhor K de Franz Kafka. Alguém nesta mesa leu o seu O Processo? Ou como o inseto do seu fantástico Metamorfose. Não vou fazer como seu protagonista que, psicologicamente, transformou-se em bicho rasteiro. Metáfora da humilhação do homem moderno. Não vou desanimar como Mersault de O Estrangeiro. Pobre homem. Talvez condenado por ter tomado café no dia do velório da mãe de quem cuidava, final- Dossiê Monlevade 225 mente, como o próprio Raimundo, por ter assinado... Paro por aqui, sigamos com Jaime Raimundo. Passo novamente ao rigor do texto original). A fuga, senhores, não é solução. Não para quem vos fala. É minha mãe e meu pai que sussurram aos meus ouvidos. Vou lutar como fez o homem da máscara de ferro. Como Davi que enfrentou Golias. Como o pigmeu que enfrenta gigantes. Como ensinou-me meu filho, não fugirei como João VI que correu de Napoleão com as calças arreadas. Além do que, não tenho alternativa. Fui o único envolvido por M no caso do banco de La Nación. Absortos em pensamentos e lembranças, os demais sócios prometeram-lhe apoio à distância e disseram-lhe rezar por seu sucesso. Um deles aconselhou-o a manter consigo o advogado Bernard. Desse conselho não preciso, Jaime Raimundo respondeu-lhe, já o tenho comigo. Não somente como advogado, mas como grande amigo. Finalmente, deram-se as mãos, proferindo ao mesmo tempo a palavra adeus. Dossiê Monlevade B 227 Capítulo 49 Cinco anos depois ern já se acostumara a freqüentar a biblioteca da casa de Marie. Por liberalidade do pai da moça, fora colocada à sua disposição para lá manter coleção de assuntos jurídicos. Assim podia, à noite, passar longas horas pesquisando jurisprudências e estudando leis gerais à medida do necessário. O seu escritório ia de vento em popa. Questões polêmicas e de alta complexidade jurídica chegavam procedentes de clientes de todo o Brasil. Escrevera e publicara dois livros já incluídos em ementas de cursos de direito em diversas faculdades. Nos meios acadêmicos era conhecido somente por Monlevade. Doutor Monlevade. Como o Doutor Zerbini. Como o Doutor Louis Ensch - o diretor da Belgo. Seu foco era a lentidão do andamento dos processos pelos tribunais da nação. No entanto, tornara-se referência em Direitos do Cidadão. Por outro lado, enquanto fazia seus trabalhos, Marie já mantinha procurado escritório de arquitetura. Com seu poder de sedução e inteligência havia convencido políticos e, com isso, conseguido tombamento de diversas edificações antigas de Monlevade. Gostava de trabalhar com o pessoal do Patrimônio Histórico. A duras penas tombara a Praça do Mercado, as instalações do antigo Grêmio Monlevadense, o Cine Monlevade, o Clube Ideal, a Praça do Cinema e o popular Morro do Geo. Soubera haver novos planos de ocupação dessas áreas pela proprietária, a Belgo-Mineira. O objetivo era expansão de negócios. O fato que não mencionei é que estava, há coisa de dois anos, freqüentando escola de prestígio aberta por Oscar Niemeyer em Monlevade. Era talentosa. Na ocasião, o famoso arquiteto havia completado 228 Jairo Martins de Souza belíssimo projeto na Pampulha belorizontina e decidira se ajuntar a grupo de empreendedores monlevadenses. Cândido Portinari, que participara também com genial contribuição no projeto cultural daquela lagoa, era um outro seu associado. A cidade não somente não parava de crescer, como também era cada vez mais próspera na cultura. Por exemplo, a Academia Monlevadense de Letras, durante solenidade de posse de recente presidente eleito, recebera visita dos escritores Saramago e Umberto Eco. A sociedade local ainda festeja tão relevante acontecimento. Aliás, segundo discreto relato do José Brás a alguns amigos, os fantasmas de Machado e Kafka também lá estiveram apreciando obras de alguns dos acadêmicos monlevadenses. O Brás e o Jaime Raimundo foram alguns dos leigos especialmente convidados para o evento. Na ocasião, ao vê-los, Bern observou que outro fantasma andava rondando a face do amigo Jaime: o do quase eterno Processo do Bazar que padecia por falta de decisão. Já decorriam cinco anos do dia em que Bern desembarcara em Graal e o processo de Jaime Raimundo prosseguia em andamento. Parado. Não se sabe se postado na direção certa. Como há dias comentara com Marie: vez por outra, um ou outro despacho de juiz aparecia nos seus autos. Dissera também que o magistrado procede assim somente para fazer constar que não está morto. Recentemente viajara com Marie e família até a cidade do Rio de Janeiro onde, pela vez primeira, desfrutara a dois as belezas da capital dos cariocas. A cidade continuava deslumbrante. Como se fora uma procissão de fé, acompanhado pela namorada, refizera todos os caminhos e visitara todos os lugares em que estivera quando de sua chegada ao Brasil. Os contrastes da natureza, o azul da baía da Guanabara, o verde das florestas, o amarelo-avermelhado do pôr do Sol, as flores do Jardim Botânico, tudo lhe pareceu ainda mais belo. De volta, ainda encantado, ao contemplar os morros receptivos de Monlevade, mais do que nunca afirmou sua disposição de aqui permanecer até o fim dos seus dias. Refletiu sobre essa verdade, sorrindo. Não era ficção. Na realidade, tomava ciência desta certeza todo nascer e apagar Dossiê Monlevade 229 dos dias. Isso começou, estejam lembrados, desde a primeira vez que vira Marie. Mesma varanda. Mesmas cadeiras. Há anos fazemos assim. Passa da hora de mudar. A pequena basset, a Baby, que pertencia a Marie já está velha e preguiçosa. Quando pela primeira vez a vira, era nova e cheia de vida. Não, Bern, a moça disse-lhe, o animalzinho está velho e cansado. A tristeza na voz demonstrava leve e desconhecida angústia. As sombras na face inconscientemente denunciavam pressentimento de que sua companhia, desde os românticos tempos de adolescente, não teria muito mais tempo de vida. Não mais persegue pequenos besouros, formigas e cigarras. Não levanta as orelhas em estado de alerta. Repara, querido, ela não corre mais com tanta rapidez quando jogo essa pequena bola de borracha para um ou outro lado. Sei que lhe agrada a brincadeira. Sempre agradou. Mas não mais a traz de volta para mim. Não se anima a entregá-la. Fica com ela entre as patas. No máximo traz-me uma vez. Não mais. Não se coça mais com tanta sofreguidão. Não balança o rabo com a energia de antes. Não late mais quando alguém se aproxima de sua dona. O marrom da face torna-se branco flácido. A causa? Essa doença de carrapato, êta diacho, que é coisa que se arrasta. Não consegue cura. Está quase cega. Dorme muito. Não mais ouve sons e ruídos que passam despercebidos pelos humanos. Falta-lhe faro. Ficava agitada. Hoje é surda. Por exemplo, não mais foge para os cantos da casa, ou para os meus braços, aterrorizada, quando trovões e raios cruzam e riscam os céus da Vila Tanque em tardes tempestuosas. Não mais toma conhecimento de rojões disparados por torcedores durante celebrações de vitórias de times de futebol. Papai dizia-me que sabia estar eu chegando às vizinhanças de casa, por meio dos latidos dessa cachorrinha. Ela não é um tamagoshi, Bern. Um pet eletrônico. Um tipo de Game Boy. Bastaria trocar-lhe as pilhas! Com o coração apertado, Marie tentava afastar a idéia de um dia ter que enviá-la ao veterinário para sacrifício final, enfim... Uma cachorrinha não pode ser o centro do mundo. Nem foi preparada pela natureza para tal. Foi o que Bern lembrou-lhe, 230 Jairo Martins de Souza tentando consolá-la. Ah, Hegel! Não consigo afastar a filosofia e o fantasma desse alemão... ser vivo. Germe de contradição: A hora do seu nascimento dispara o processo de morte… Começamos a morrer, chérie, a partir do momento em que nascemos. Com a Baby acontece o mesmo... Lembra, meu amor, para ela o tempo passa mais rápido. Quinze anos de vida desse pet equivalem a quase 80 dos humanos! Dossiê Monlevade N 231 Capítulo 50 Filhos o texto do cofre não fica bem claro o porquê do assunto que passo a relatar ainda não ter vindo à baila. Quem sabe pelo fato de aqui essencialmente tratarmos de processo que andou rolando por centenas de varas cíveis da nação. No entanto, lembro que há nele algumas pinceladas de romance. Vejamos de que se trata. Mãos à obra! Bern finalmente estava por decidir-se. É tempo e hora de assumir, juntamente com Marie, novo lar e filhos. A moça era filha única e não era de hoje que andara ouvindo pressões veladas da família. Ele. Não ela. Não cedera. Não se considerava profissional feito em condições de manter padrão que a moça tinha na casa dos pais. Pensava aguardar ocasião certa, quando já absolutamente não dependesse mais nada de adaptações ao sistema brasileiro. Em termos profissionais, há anos já avisara ao pai não precisar das ajudas de Guéret. Dava-se, inclusive, ao luxo de reverter antigo fluxo de caixa. Enviava presentes caros com constância para a mãe, o pai e a irmã. Foi pensando em tudo isso que prosseguia animada conversa com a namorada. O local era o de sempre. A biblioteca ou a varanda da Vila Tanque. Falavam sobre crianças. Falavam sobre as de celebridades como as de Brad Pitt e Angeline Jolie: além dos próprios, andaram adotando outros, enfim, a moça dizia-lhe que o casal cumpria mais uma função social de artistas. O amor... – Sabes, chérie, que hoje se pode comprovar que bebês dão sorrisos mesmo antes de nascer? – Sim. Mas não podem ser somente contrações faciais? 232 Jairo Martins de Souza – Não. Os exames a quatro dimensões mostram que não é assim. Fiquei encantada com um desses. Vi recentemente... – E qual é essa quarta dimensão que dizes? A que conheço é apenas a do tempo. – Não sei bem. Talvez seja a do sorriso que falei. Ou a do amor, da alegria e, quem sabe, alguma tristeza que porventura o bebê já tenha vivido… Ah, o menininho é filho de pessoa querida e… Falando nisso, Bern interrompeu-a com sorriso suave, não andas pensando em ter os seus próprios? Dossiê Monlevade 233 Capítulo 51 Monlevade e Guéret: cidades irmãs N ão diz nem o dia nem o ano. A nota simplesmente cita que o prefeito e alguns vereadores de Monlevade foram convidados a visitar a França. O assunto fora costurado por Bern junto às autoridades de ambos os países, seguindo passo a passo todos os rituais diplomáticos. O objetivo inicial fora troca de experiências administrativas. É no terreno fértil das diferenças que surgem as grandes idéias, dissera o prefeito em mensagem ao povo. Com essa, e outras frases de efeito, justificara com sobras a intenção de viagem ao exterior. Que não se surpreendam com o tamanho da caravana, sentenciou. Todos os meus convidados são absolutamente necessários: inclusive o contingente de jornalistas, empresários e comentaristas esportivos. Guéret nos comprará aço e petróleo. Degustaremos seus vinhos. Exportaremos jogadores de futebol. E vice-versa, finalizara. A coisa ampliou-se. As duas prefeituras acabaram por firmar fortes laços culturais, finalmente ligadas pela figura comum do fundador. Fizeram-se irmãs! Dossiê Monlevade 235 Capítulo 52 Bern reflete sobre a instituição casamento A s notícias circularam por meio de relatos ocasionais de terceiros. Torquato Viglioni continuava a praticar a medicina em lugares ignotos. Prospera mais a cada dia. O. Costa, escondido sob a cortina protetora de sociedades amigas, mantinha promessa e exportava grãos. Tem vida confortável. O Brás, por falta de informações, supõe-se ainda estar levando vida solitária na grota do Jacuí. Solitária? Nem tanto assim. Acompanham-no amigos desencarnados. O Jaime Raimundo, sabemos, tocava a vida insistindo em manter endereço fixo na Vila Tanque. Bern disse-lhe ser o último dos moicanos, ele sorrira com a comparação. Os filhos já lhe haviam falado gostar desse seriado na tradicional tevê Itacolomi. Enfim, sabia ter em Bern um companheiro, não um mero cliente, e observavam, dia e noite, todos os movimentos e despachos do processo. Ok, a amizade entre advogado e cliente, tal como parentesco entre cirurgião e paciente, às vezes não é muito recomendável, mas sabemos tratar-se de caso especial e, ambos, optaram de coração por tal caminho. Por outro lado, é notório que o assunto casamento já foi direta e indiretamente citado nestas anotações. Aliás, não seria surpresa, nem para mim, nem para o leitor, pressentir que cá nos escapa o tempo certo de núpcias entre Bern e Marie. O próprio já declarou ser seu destino passar o restante dos seus dias nessa aprazível metrópole do Vale do Aço mineiro. Da moça nem se fale. É daquelas apaixonadas pela terra e pela família. Basta recordar o empenho com que se entrega às causas locais, por exemplo, a preservação do seu patrimônio cultural. Já se considera parente do próprio 236 Jairo Martins de Souza Monlevade, o fundador. Já do descendente ambiciona somente anel de casamento e todas as suas implicações sociais e amorosas. Laços. Elos definitivos de família. Amava o moço. Que por acaso amanhecera o dia com estranha inquietude. Lembrou-se nem alegre, nem triste, das palavras do poeta, tem dias que a gente se sente… Um vazio existencial: normalmente com ele não funcionava assim. Normalmente amanhecia sorrindo e iluminando o dia dos que o cercavam. Dormira bem, o que é próprio da idade. Inconscientemente, lembrou-se das breves queixas relatadas ultimamente pelo pai em última correspondência. Quem sabe fosse explicação do seu estado de angústia. Guillaume escrevera-lhe que os olhos mostravam-se cansados com pouca leitura (sofro de miopia e astigmatismo!). A próstata já o incomodava e fazia-lhe buscar alívio na madrugada. A idade vem avançando, filho, e com elas as agruras e desvantagens da velhice. Temos troco de sobra que é a experiência e o aprendizado que se acumula e nos fazem felizes. No entanto, o sono demora a voltar e o jeito, às vezes, é caminhar alguns minutos pelos arredores da casa, próximos ao vinhedo, aqui em Guéret. Ah, e as coceiras na perna! Coisa de família. De DNA. Falta de sebo na pele: comum entre os nossos depois dos cinqüenta. Às vezes um banho quente resolvia. Não resolve mais! Daqueles inconvenientes o filho ainda não compartilhava, mas o fato é que o dia amanhecera atípico. Nem bonito nem feio. Alguns cumulus bem altos e longínquos indicavam que... A arrumadeira, mulher falante, comentara com Bern sobre o seu desconsolo quando não conseguia, por si só, prever a quantas andariam as horas e o próprio céu de sua terra. Por dentro reclamara ainda não ter se acostumado com o fato de trabalhar para um estrangeiro. Ouvindo-a, o moço ainda não entendera racionalmente o tal desconforto de espírito que acima dissemos. A carta do pai? Não. Não temia por ele. Era de família longeva: viviam muito. Sim, havia tomado alguns chopps com Marie na noite anterior. Não muitos. O local tinha ar festivo. Nada mais aconchegante que o delicioso Spetacollo que recentemente abrira portas na Vila Tanque. Restaurante famoso. Procedia de Vitória Dossiê Monlevade 237 no Espírito Santo. Não jantaram. Por fim, animados, rumaram para a antiga Rua Siderúrgica no velho centro da cidade. Até aí tudo bem. Nada de mal estar. Nada de Engov. Nada de bicarbonato. Naquela área onde residiram os primeiros moradores, as antigas casas de operários da Rua Siderúrgica abrigavam, mantida arquitetura original, procurado centro de gastronomia de receitas elaboradas por chefs capixabas. Por exemplo, aqui estão funcionando a pleno vapor, em Monlevade, o Oriundi, o Cantinho do Curuca (famosa casa de moquecas), e muitos outros templos de boa comida como o La Cave e o La Salsa. Lá, após breve conferência e indecisão, o casal optou por jantar delicioso prato à base de bacalhau norueguês. No La Cave. O La Cave há alguns anos funcionava nas proximidades do Hotel Cassino e, em especial, era onde, privilegiados por tratamento diferenciado que lhes proporcionava o proprietário, Marie e Bernard gostavam de celebrar datas significativas. Degustaram a iguaria, refiro-me novamente ao bacalhau, acompanhado por vinho de qualidade. Até então nada de dor cabeça e mal estar. Nada de Cibalena. Nada de Pepsamar. Bern sorriu de forma diferente, misto de satisfação e agonia, e lembrou-se novamente de Guillaume e seus antiácidos. Daí comera pão com queijo e manteiga e saboreara café forte – costume monlevadense já arraigado no seu cotidiano. Leite? Nem pensar! Fazia-lhe correr acelerado para o banheiro. Ao fazer alguns alongamentos na varanda do quarto, resolveu preguiçosamente que não iria à academia de ginástica. Não hoje. Hoje é domingo. Decidira somente por exercícios de aquecimento, algumas flexões e polichinelos. Finalmente, após 10 minutos de corrida dentro de casa, – a esteira elétrica andava ruidosa e perturbar-lhe-ia mais ainda a alma –, tomara ducha fria. Para concluir, um pouco de relaxamento e suaves práticas respiratórias. Estava pronto para a vida! Mãos à obra. Passara vista em seus e-mails: dos quase 100 não abertos, em torno de 50 foram religiosamente deletados. Ah, esses spams e porcarias de mau gosto que circulam à solta pela rede mundial. Quanto lixo! Quanta perda de tempo! Que falta fazem bons livros! Então, lera avidamente alguns matutinos. Mesmas notícias de sempre: o futebol de Monlevade enviara nova 238 Jairo Martins de Souza leva de valores para o futebol europeu. Ninho de talentos, diz o cronista. A economia. O progresso. A política e suas artimanhas. Os crimes que fazem crescer estatísticas. A violência contra a mulher: isso nunca muda desde os tempos de Moisés. A municipalidade, inspirada no modelo de sucesso do prefeito nova-iorquino Rudolfo Giuliani, intenta implantar programa de tolerância zero. Estilo policial infalível. Falta-nos apenas suporte do governo federal, relata o jornalista em inflamado editorial. Bern sentiu-se impotente e, para desviar pensamentos desagradáveis, fora até a caixa de correspondências. Lá encontrou cartão postal da mãe e de Liviah que passavam alguns dias na Noruega. Estivemos também em Londres, disseram. Suas tensões já haviam tomado destino ignorado. Foi até o Bel Air, estou precisando lavá-lo, constatou ansioso. Os papéis de trabalho que nele deixava, de forma improvisada, sempre postergavam tal pequeno arranjo. Então, os vidros dianteiros mostravam marcas bem distintas do vai e vem dos limpadores do párabrisa. O trânsito nos últimos dias, por algumas áreas ainda de piso de barro seco na cidade velha, ruas preservadas, fizeram-no utilizá-los, enquanto lançava generosos esguichos de água. Diacho! Água mais terra é igual a barro. No entanto, os anos de uso do veículo só faziam realçar o seu arrojado design. Esse carro é como mulher bonita, mas caída na lama. Basta pequeno banho para transformar-se em princesa. Consolou-se. Afastado o desassossego, rumou para a Vila Tanque, sentindo-se absolutamente bem. A tempo certo, pois lembrando-se que, aqui no Brésil, cultiva-se ainda o domingo como o dia do Senhor. Dia de descanso e lazer. Há muito dissemos que certas ruas da metrópole de Monlevade deverão ficar definitivamente preservadas. Nem que seja somente nestas anotações: agora dispersas e esquecidas do pobre Jaime Raimundo que aguarda decisão judicial a favor. Por exemplo, na Vila Tanque, um logradouro, que alguns reconhecem como Rua dos Cabritos, fora mantido no estado. Sem calçamento: por trás disso havia o dedo de Marie que conseguira convencer as autoridades que, afora a manutenção de cenário que deveria Dossiê Monlevade 239 se eternizar para os vilatanquenses, sem a colocação de piso asfáltico, haveria menor velocidade das águas no período de chuvas, menos inundações, etc. Localizada nas imediações de antigo Centro Comercial da Vila Tanque, da Rua dos Cabritos, se vê privilegiadamente o hipódromo de Areia Preta. É de lá, prossigo ainda dizendo da Cabritos, que postado em uma de suas extremidades que dá para um vale suave, Bernard apreciava as montanhas que ficavam além do próprio bairro que abrigava as competições de cavalos. Ainda mais, para compor e aumentar o seu encantamento, a vista de dois aviões que se aproximavam para pouso em Graal dava harmonioso toque de modernidade ao quadro que contemplava. A contrapartida ficava por conta de bando de andorinhas que se mantinham pródigas em quantidade nessa antiga vila operária. Estava agachado. À sua direita, fosse o caso, poderia observar o movimento de gente na Rua do Contorno; à sua esquerda, eterna plantação de eucaliptos. Não. Não retornaria à velha Paris para fixar residência. Meu lugar é aqui nessa Vila Tanque. Foi isso, de forma direta, sem subterfúgios, que pensou alto ao observar pequena formiga que deslizava suavemente nos pés calçados com antiga sandália, fabricação Fruit. Essas não mais existem no mercado, lembrou conformado. Nas suas tiras, já que feitas exclusivamente para consumidor europeu, estava inserida delicada bandeira francesa. Há pouco, antes de a formiguinha subir no seu pé, Bern observou-a transportar pedaço de folha de goiabeira que deveria ter no mínimo quinze vezes o seu próprio peso. O inseto talvez tivesse em torno de metade de um grama. Tinha em torno de 80 quilos. Imaginou-se com peso equivalente às costas. 1200 quilos. 1,2 toneladas! Ah, o bichinho nasceu para o trabalho. Riu. Rememorou tempo de criança e da fábula de La Fontaine: a da Cigarra e a Formiga. Assim, fazendo contas com resto de pedra de carvão que encontrara próximo, Bern prosseguiu observando a tal formiga que mantinha rápidos deslocamentos em seus pés e sandálias. Parecia não saber para onde ir. Ao deslocar-se para a planta dos 240 Jairo Martins de Souza pés do moço, provocou-lhe cócegas. Ah, ainda bem que não é das cabeçudas ou das minúsculas lava-pés. Marie disse-me serem pródigas nesse bairro. As primeiras, as cabeçudas, a moça complementara, têm garras que servem como ferrões: as crianças daqui gostam de colocá-las para brigar. Embolam os ferrões. Às vezes tornam-se tanajuras. Aí elas ficam com o derrière enorme. Uma bola. As segundas, as lava-pés, são donas de picadas que ardem como pimenta malagueta ainda verde... Mas foi com as cócegas que Bern sorriu, lembrando-se de antigas brincadeiras com a irmã em Guéret. Gostava de deslizar penas de galinha nos pés e orelhas da moça enquanto ela dormia ou estava distraída. Curiosamente analisou-a com cuidado, trazendo-a para o dorso da mão direita, que virava e revirava com vagar. Sorriu. Mesmo de cabeça para baixo a formiga permanecia caminhando colada à sua pele. Será que tem goma nos pés como as lagartixas? Macho ou fêmea? Riu novamente. Talvez dentro do seu espírito repousasse algum ancestral do inglês Darwin que, com alma nascida para a pesquisa, gostava de olhar minuciosamente tudo que habita ou cresce na América do Sul. Seu pensamento voou longe. Muitos homens do século dezenove sonhavam em aventurar-se no exótico e desconhecido mundo tropical. A despeito disso, aquele Darwin foi especial. É claro, Bern não estava fazendo exatamente como o inglês. Esse verificava não somente a posição das constelações distantes como também a existência de tipos especiais de bactérias amontoadas sobre rochas marinhas. Foi o que andou fazendo nos Galápagos... Entretanto, o advogado tinha lá também seus momentos de reflexão sobre a natureza e seus habitantes. Por exemplo, enquanto tem consigo o pequeno membro da família dos formicídeos. Uma coisa puxa a outra. Questionou-se por estar se lembrando de nome que não mais usara desde as classes de biologia de curso secundário em Guéret. Concluiu que o fato deveu-se a sua afeição ao uso do latim na ciência jurídica. Na realidade o substantivo formiga e seus derivados originam-se do vocábulo latino formica. Enquanto isso, sua curiosidade crescia na medida em que Dossiê Monlevade 241 avaliava a fantástica velocidade do bichinho. Buscava razões para ser tão veloz assim. Intrigado, com algumas contas mais, procurou fazer comparações com a velocidade do caminhar dele próprio. Não logrou resultado satisfatório. Então, abruptamente, passou a refletir sobre a solidão. Sim. Esse inseto estava sozinho. Havia um vazio ao seu lado. Nada. Nem mesmo ninguém pode ser assim. Até o próprio átomo, que é o máximo de impessoalidade, é estranhamente preenchido pelo vazio. Ele é consistente porque ocupado quanticamente por partículas. Não fosse assim a velha Paris afundar-se-ia sobre si mesma. A falta de companhia constante não é comum. Como a que ocorre com ele mesmo aqui nesse país distante. Essa formiguinha é inseto gregário. Não pode ficar sozinha. É bichinho famoso também por viver em sociedade qualquer que seja o lugar que esteja. Na terra. Debaixo dela. Nas árvores. O homem também é animal gregário. De família. Desde criança Bern soubera o sinônimo dessa palavra quando o pai, Guillaume, deu-lhe exemplo de um formigueiro. Não por acaso. Nele as formigas trabalhavam, comiam e viviam juntas. Um homem arrasara o formigueiro. Muitas morreram pisoteadas. As que sobraram criaram forças e auxiliaram-se uma às outras. O formigueiro renasceu. Sabe o porquê, filho? Porque fazia parte de uma família. Era uma família. Família é assim. Briga-se. Ama-se. Nela, ao lado do amor, corre a passos firmes a esperança de cooperação. Esses pensamentos perseguiam-no constantemente. Lentamente amadurecia a idéia de casar-se imediatamente com Marie. Desde que a conhecera soubera ser ela a escolhida. Faltava-lhe sempre a ocasião. Raciocinara muito sobre o tema. Casamento é opção. É como aceitar a Jesus. Pensar como Pedro. Não como Paulo. Com mais fé do que razão. De há muito decidira aceitá-lo. Faltava-lhe o batismo. Com isso acatava testemunho de fé que ouvira de velho monlevadense que mantinha bonita relação com a esposa por décadas a fio. O homem não dizia isso de boca para fora. Não é que tudo que fizera com a esposa fosse eterno, comentara sorrindo, o brinquedinho dos meninos é de levantar, o das meninas é de abrir… Não obstante, Bern reparara que sem- 242 Jairo Martins de Souza pre mantinha e caminhava de mãos dadas com a mulher pelas ruas da cidade. Dizia também que para manter tal fé tinha que ser santificado. No fundo, explicou, há que se ter paciência de santo. Tanto ele quanto ela. Bern sorriu quando lembrou-se de outra de suas recomendações: tens que ter a paciência de Jó. E a tua mulher, a bondade e capacidade de doação de uma Teresa de Calcutá. Dossiê Monlevade C 243 Capítulo 53 Preocupações de futuro marido e pai asar. Em termos gerais, Bern tinha muitos modelos positivos para definitivamente ter em conta que se tratava de procedimento indispensável para a manutenção da sociedade civil. Particularmente, tanto ele, como nós, sabemos que seu destino estava traçado pelos olhos de Marie. O bisneto de Jean Monlevade tinha visão de futuro e não temia qualquer dificuldade futura para tornar-se noivo, marido, pai, avô, e por aí sua vida deveria seguir. Na França, não fora Simone de Beauvoir o amor de toda a vida de Sartre? Aqui não é Glória Menezes a eterna paixão de Tarcisio Meira? E olhe que todos seguiram e seguem profissões que obviamente dificultam e embaraçam os compromissos e deveres de um lar. Ele e Marie. Um advogado e uma arquiteta. Temos tudo para dar certo. Ímãs de polaridades opostas! Não dizem os sábios que as diferenças enriquecem e fazem as coisas funcionarem como pólos de atração? Os exemplos de Fábio Júnior, Richard Gere, Michael Douglas, e outros tantos, não serviam de modelo para suas idéias. Não lhe restavam preocupações do porquê do primeiro deles ter se separado da Glória Pires (chamava-a Pirê): o cantor da famosa música “Pai” é reconhecidamente desajustado para enlaces duradouros. Mania de Don Juan. No entanto… e o desquite do Chico e a Marieta Severo? Bem, Bern prosseguiu divagando, é certo que há casamentos especiais em que os verdadeiros noivos são empenhos políticos de nações. Aqui no Brésil, por exemplo, foram casados os portugueses de João VI com os espanhóis de Carlota Joaquina. Tam- 244 Jairo Martins de Souza bém Pedro I casou-se com os interesses austríacos de Leopoldina. Qual foi mesmo a que assinou a lei de libertação dos escravos? Nenhuma delas. Foi Izabel. Enfim, na Europa, nem se diga quantas centenas desses matrimônios aconteceram… Ah, essas breves palavras não têm força para dar ponto final ao assunto. Tema inesgotável. Pois há os que começam por amor e prosseguem mantidos pelo poder da política: como os de Hillary e Bill Clinton, Jacqueline e John Kennedy etc. Ufa, deixe-se isso para lá! Afinal de contas, nunca se sabe o que ocorre entre as quatro paredes em que habita um casal de seres humanos: sejam artistas, monarcas ou jogadores de futebol. Como dizia sua mãe, para conhecer uma pessoa é preciso comer um saco de sal junto com a mesma. Demora tempo. Sabia que, por mais nobre que seja a relação de um casal, tem que ser baseada em um orçamento. Riu. Casa que não tem pão, todo mundo briga e ninguém tem razão! Portanto, no casamento, há necessidade indispensável de bom ganho, já que a manutenção de uma família envolve custos inesgotáveis. Quanto custa a formação de um filho desde tenra idade até profissional formado e integrado na selva de pedra do mercado capitalista? Em outra página já dissemos quanto à sua necessidade de não se abaixar o padrão de vida de sua futura mulher. Aí há algumas variáveis que o rapaz analisava com cautela. Senão vejamos, a direção política do Poder Executivo do país muda como mudam as nuvens, mas o que sempre fica de seguro é o aparecimento de novos impostos e tributações. Não dá para enumerar a causa de tantos infortúnios. A despeito do grande progresso nacional, empurrado por mundo ávido das matérias-primas brasileiras, a toda semana eram ofertados ao povo novos pacotes de medidas entregues embrulhados para presente. Presente de grego. Alguns ornados com laços cor de rosa, pois muitos dos novos ministros eram mulheres. Portanto listo apenas um. Por exemplo, o governo federal, por iniciativa de presidente sindicalista, havia mudado a sede para o estado de Alagoas e Maranhão. Em termos materiais, não fiz nada de novo, dissera. Psicologicamente isso já ocorre desde a fundação da república. As bancadas nordestinas há décadas são numerosas e facilmente Dossiê Monlevade 245 seduzíveis. Na primeira sede funcionava o centro de decisões administrativas; no segundo, o da política. Copiara, segundo ele, o bem sucedido modelo boliviano de La Paz e Sucre. Foram essas suas palavras! Por conseqüência disso, e de outros milhares de fatores menores, o judiciário, perfeitamente sintonizado com os demais poderes, gerava outras tantas milhares de decisões por ano. Os processos que Bern conduzia caminhavam a contento, se bem que nunca se encerrassem. De todas as formas, os honorários eram bons, e havia sempre a perspectiva de ganho adicional por sucumbência do adversário. É bem verdade que aqui viveria sempre na corda bamba, pois tais processos, mesmo que fechados, poderiam ser reabertos a qualquer momento em alguma instância secreta do judiciário nacional. Para tanto havia exércitos de procuradores de justiça espalhados por todo o Brasil. Outros tantos são contratados a cada ano. Bern havia se acostumado com essas contingências. Não mais o incomodavam, sabia isso ser parte, digamos assim, da personalidade burocrática nacional. Com uma exceção: o caso Jaime Raimundo. Não avançava nem retrocedia. Teimava em ficar no mesmo escaninho. Nisso pensou, consolando-se, não estava sozinho. Lembrou-se que, cansados, todos os demais sócios da Fruit haviam batido em retirada. Alguns deles, soubera por meio de telefonemas anônimos, haviam se suicidado como cidadãos. Simularam mortes, velórios e enterros. Agora com novas certidões de nascimento, carteiras de motoristas e CPFs estavam livres das garras da presidência da república. Não. Não se disseram equivocados. Disseram que, no Brasil, estamos na França do século dezoito. Aqui o presidente Getúlio ainda é o próprio Estado. Basicamente, um rei. Independente disso, colocavam-se à disposição para colaborar com Jaime Raimundo em qualquer caso de necessidade. Um deles finalizou, ironizando, não descansar até segunda morte, agora real, para vingar-se de M. Dossiê Monlevade A 247 Capítulo 54 Divagações sseguro que não se trata de impessoalidade da minha parte. A verdade é que, de um momento para o outro, as anotações do cofre passaram a ter caráter um tanto frio. Sem emoção. Sem vida. Tal como algo que se apresenta nas mãos de juiz para despacho. Parece-me que houve solução de continuidade dos analistas da documentação. Talvez tenham sido trocados sistematicamente, – como tem ocorrido com os magistrados do caso Raimundo–, e o trabalho tenha passado para outro grupo com outra orientação. Circunstâncias como essas é que me fizeram, ao longo do texto, tomar atitude para tornar mais amenos estes escritos. Aliás, não estou trazendo à baila nada de novo. Foi posição que dei conta ao leitor logo no início das notas deste livro. Não vendi mercadoria falsa! Sendo assim, novamente adulterarei a escrita, suavizando-a, de forma que, principalmente as mulheres que me lêem, tenham com maior intensidade o gosto de sorver os preparativos do casamento de Bernard e Marie. Poucos. Prometo! Dossiê Monlevade 249 Capítulo 55 O Casamento. Onde se diz de possível ideal do velho Monlevade A poltrona era confortável e o cabeleireiro absolutamente gentil. Dissera não ter muito que fazer para preparar cabelos bonitos como o de Marie. Um detalhe aqui, outro acolá. Um ajuste na grinalda, e com mais esse retoque final, senhorita, ficas por conta do maquiador. Esse também confessara ganhar dinheiro fácil no dia de hoje. Afora alguns pozinhos tom pastel, para evitar pontos de luminosidade indesejáveis, e discreto batom de costume, a noiva estava pronta para brilhar na cerimônia de algumas horas mais. O vestido bem ajustado e rodado em sua base, muito antes de esconder, realçara-lhe o corpo delgado e elegante. Marie não era alta, mas nem tão baixa. Com pequena ajuda de salto Luís XV, desfilaria como uma princesa. Na porta, acompanhada pelo pai, aguardava-a um reluzente Buick preto. Para conduzi-lo, estava lá um velho amigo da família que, não se pasme o leitor, por inusitada decisão paterna, fora batizado com o solitário nome de Oliveira. Oliveira. Somente Oliveira. Nada demais, dizia. Não existe um diplomata brasileiro que se chama Vasco Leitão da Cunha? Melhor que ter muitos nomes é ter somente um. De qualidade. Sigamos para a bela matriz de São José do Operário. Já nas suas proximidades, o pai lembra estar se dirigindo para a maior igreja católica do mundo com planta baixa em formato de um vê. Feita assim, reza a tradição, para que homens e mulheres a freqüentassem suas celebrações em alas separadas. Tenha sido essa a intenção, não funcionou! O fato concreto é que, Monlevade, ultimamente, tem vivido de superlativos! 250 Jairo Martins de Souza A entrada da noiva na igreja teve como pano de fundo a belíssima Marcha Nupcial de Mendelsson – Tan Tan Tan Tan. Escolha da própria. Bernard, tranqüilo, aguardava-lhe conversando com amigos: há muito tinha alma preparada para a ocasião. Que belle fiancée, exclamaram alguns parentes e amigos de Bern que não a conheciam pessoalmente. Que bela noiva! Radiante! Estrangeiros e nacionais, impressionados, usaram as mesmas expressões, cada um em sua língua, que é verdade sem fronteiras de territórios e mundos. A França estava presente em grande número. Monlevade, contudo, superou todas as expectativas. O pai de Marie era pessoa que não gozava de muito prestígio social. Fazia o tipo urso que gosta de ficar em casa a desfrutar das pequenas benesses de ser um pai de família. Amava o futebol, mas não era daqueles que passam as manhãs de domingo pelos bares aguardando horário de início das partidas. Pelo contrário. Vestia pijamas de calças de pano arejado e, apreciando o belo panorama dos morros monlevadenses, dirigia-se para a varanda, onde, sorvendo um cafezinho tomava conhecimento das últimas nacionais. Não era adepto de reuniões noturnas com amigos durante os dias de semana. A mãe era caseira. Casal de formigas. Toda essa postura tornavase compensada pela popularidade da filha e do noivo. Gomos de laranja doce. O fiel da balança pendia para elevada atividade social. Daí a igreja ter concordado em colocar alguns bancos adicionais em certos pontos do adro. Da família de Bern, lá estavam o pai, a mãe, Liviah e namorado brasileiro que conhecera há tempos. Todos elegantes e felizes. Do pai da noiva nem se diga. Vímo-lo, orgulhoso, entrar com a moça há minutos. A princípio parecia manquitolar. Disse a posteriori ter sido tal a emoção que resultou em breve descontrole do caminhar. Recuperou-se rapidamente. Tudo muito bonito! Segundo palavras de discreto cronista local. No tradicional arremesso do bouquet de flores, Liviah, sorrindo, abiscoitou o prêmio. Não é que não tenha ficado envergonhada. O rosto, embora feliz, tornou-se rubro. Mais ainda quando o irmão lembrou-lhe antigo apelido de criança. Chamou-lhe mo- Dossiê Monlevade 251 ranguinho. De lá os convidados seguiriam para Rio Piracicaba. A caravana de pessoas e carros era bastante extensa, mas todos chegaram a tempo e hora ao belo sítio que pertencia a Jaime Raimundo e que, gentilmente, cedera a propriedade para a recepção do casamento dos seus jovens amigos. Considerava-os parentes. O amplo centro de convenções deixado como legado pela Fruit fora mantido em excelente estado de conservação. A festa foi plena de encontros entre velhos amigos e animadamente conduzida pelos noivos e por banda regional de renome. Casamento de princesa. Festa de princesa. De arromba. De acordo com os dizeres dos anos 60. Não demorou muito e os nubentes, despedindo-se apressadamente, rumaram para o aeroporto Internacional de Graal. Pelo avançado da hora, perderam o avião! Não se tem aqui anotado onde passariam dias em lua-de-mel. No entanto, seguramente, passaram-na sob manto protetor de bons desejos e felicidades. Na despedida dos pais de Bern em Graal, o prefeito de Monlevade declarara aberta a ponte aérea Monlevade – Paris – Guéret. Com os novos jatos intercontinentais da Aço Airlines, dez horas são suficientes para cruzar de Monlevade a Paris, comentou sorrindo. É, o pai de Marie disse, dando-lhe mais razão, há poucas décadas gastava-se 90 dias em navio a vela. O nosso sonho é constituir família única. Quem sabe não fosse o ideal do velho Monlevade? Dossiê Monlevade 253 Capítulo 56 Aqui fica confirmado que o que não tem remédio, remediado está! O sentimento que tenho a respeito do seu processo é o de eternidade. Algo indefinido. Algo que nunca se esgota. Algo que teve um início, mas que jamais terá um final dentro da linguagem dos vivos. Talvez nem mesmo Aristóteles, com suas lógicas de infinito, de vazio, de espaço e de tempo, conseguisse enquadrá-lo dentro de sua lógica clássica. É cheia de furos, mas a ela nada escapa. Não foi em cima dela que Tomás de Aquino montou o arcabouço da igreja cristã? Foi o que Bern disse a Jaime Raimundo. Parecia conversar consigo mesmo, pois sabia que o interlocutor nada conhecia sobre a filosofia e a cultura da antiga Grécia. Passaram a conversar sobre M. Relembraram que, quase por encanto, ressurgira, há meses, por chamada de juiz em outro processo contra a Fruit, e indiretamente contra Raimundo. Tinha, estou dizendo de M, um dos braços sob tipóia. Na ocasião não justificou o porquê. Nem lhe foi perguntado. Ironicamente, parece que sob efeito de doping espiritual, confessara indiretamente, ao magistrado, todos os seus atos contra o pessoal de Monlevade. Parecia contar vantagem. Perspicaz, o juiz compreendeu bem a situação e isentou Raimundo da ação legal que conduzia. Bernard diz ter tomado proveito e anexara tal decisão judicial ao processo do De La Nación. Mais uma evidência de peso a favor do seu cliente e amigo. Por fim, encerrou essa parte da conversa dizendo, vamos ver se Vossa Excelência vai levar tal fato em consideração adequada, – sem deixar de notar que o amigo Raimundo já tinha os cabelos totalmente brancos: o processo fizera-lhe ace- 254 Jairo Martins de Souza lerar traços de velhice. Estavam na luxuosa sede dos escritórios da Bernard Raymond Monlevade – Advogados Associados – em Graal. No fundo, entendo o que dizes, o comerciante respondeu-lhe. Tanto é que vou seguindo a vida, como dizia o poeta, apesar de você. Nesse caso, é claro, novamente o você significando a estrutura exdrúxula do nosso estado. Quando achas que podemos ter decisão final? – Nunca se sabe. Fiz acompanhamento desse processo todos os anos que se passaram. Todos os meses. Todas as semanas. Inclusive a que passou e a que está em andamento. Vou ao fórum todos os dias. A situação do embargo é a mesma. Nas mãos do juiz para decisão. – E vai decidir? – Não sei dizer. Por acaso, soube, ontem, por telegrama, que o processo novamente mudou de juiz e de vara. – Sabes a razão? – Não ao certo. O funcionário disse-me ser rotina. – E então? – Tudo segue como sempre seguiu. – Por experiência aprendi a entender o que queres dizer. O juiz que vai decidir não participou de parte crucial do processo, as oitivas, as audiências… É onde realmente se conhece os litigantes, as pessoas, os indivíduos... Ah, amigo, se o novo julgador não for daqueles que se debruçam sobre a justiça, – daqueles que o presidente da OMC disse a você haver poucos –, vai decidir sobre o papel. Vai decidir sobre documento antiético. Imoral. Vai decidir sobre o texto cheio de buracos daquela confissão. É, Bern, fiz papel de tolo. Fiz tolice. Fiz papel de Jerry Lewis… Meus meninos gostam desse ator. Lembra daquele filme, O otário? – Lembro-me. Também gosto do Jerry. É engraçado. O que não tem graça alguma é a possibilidade que levantaste anteriormente. Tens razão. Os acusadores do banco mudaram o foco da coisa. Ladinos. De forma proposital, no andamento dessa execução, eles só destacam as palavras da confissão, aliás, um deles, passo a dizer de um juiz, disse-me ser ela um castelo de areia sustentado por termos legais. Aparentemente, legais. Enterraram Dossiê Monlevade 255 o contrato de empréstimo fraudado. Um buraco negro. Vá lá, amigo Jaime, espero que não fiques cansado, pois tenho comigo uma comparação com a astronomia. Uma supernova e uma anã branca. Não vivemos de comparações? A primeira, a confissão, a supernova, transforma-se num pulsar. Fica brilhando a tempo certo. Luz fortíssima. Pode cegar a visão do julgador. A segunda, a fraude contratual, a anã branca, foi transformada pelo de La Nación, equivocadamente, em buraco negro. Ninguém o vê. Só sente seus efeitos. O de La Nación agiu como um deus. Entendeu? Se o juiz for fraco em direito comercial... Enfim, também o De La Nación é composto por poder constituído. Mais acreditado sem maiores questionamentos. – Não entendi bem. – Então resumo. A corda sempre arrebenta no lado mais fraco… Como na brincadeira do cabo de guerra. Lembra? – Sim. – No entanto, não quero dizer que, com tudo isso, você já esteja condenado. – Como também não quer dizer que serei absolvido. – E a fé? E a cruz? Não é com esse signo que já me disseste vencer? – Sabes que a tenho, estou dizendo da fé, com sobras. Aliás, também a cruz, por via da aflição, de toda a angústia, que todo esse processo que M e o De La Nación fizeram aflorar. Faz parte. – Estás certo. Interessa ao sistema que sintas assim. A instabilidade parece fazer bem ao regime atual. É um tanto quanto maquiavélico, mas tanto no seu caso, como em muitos outros, alguns juízes costumam deixar o fiel fora da balança. É mais cômodo. – Então o meu sofrimento faz parte de contexto que atende aos poderes estabelecidos? – Não sei. Tecnicamente, não. No entanto, na prática, você pode considerar sim. O alongamento infinito do perfil dos processos parece dar poder à autoridade. Valoriza os seus trabalhos e as estatísticas de crimes. Milhões e milhões deles sempre deverão estar em andamento. Dá noção de poder. Podes constatar nas colunas sociais acreditadas. Os magistrados vivem isolados, mas 256 Jairo Martins de Souza sempre unidos em associações e em eventos de gala. Exibem-se a si e as suas famílias. Normalmente são feios, mas vestem-se bem. Normalmente têm belas mulheres e apresentam aos poucos os filhos e filhas. Rapazes e moças. Futuros juízes. Formam, aos poucos, nova família forense. Petrificada pelo sistema. Tornam-se incrédulos. Aí é que se tornam feios. Com o passar dos anos, desenvolvem outras doenças, ficam aborrecidos, frios e calculistas. Daí tornam-se pais de futuros juízes que virão. – Entendo. Cartórios judiciais. – De certa forma. A despeito disso, siga em frente. Quanto a eles, terão o seu apocalipse. Que Deus nos ilumine para encontrar um dos que constituam exceção e que esteja fora daquele circuito. Eles existem. Um dos que ande transitando pela porta estreita. Um dos que consiga no futuro entrar no reino dos céus. Um dos que separe o joio do trigo. Um dos que… – Entendo e agradeço, Bern. Confesso que é saída única que meu coração vê. Falo isso sem mágoa. Não sou homem de guardá-las. Inclusive chamei-lhe para informar algo importante. – Diga. – Recebi telefonema de São Paulo há pouco. Charlie Chan chamou-me. – Chan? Há muito não ouço falar dele. – Pois é. Comunicou-me a morte de M. – Como? Foi assassinado? – Talvez por sua consciência. Por remorso. Ataque cardíaco fulminante. Morreu ontem aqui mesmo em Monlevade. Mesmo após tantos anos, Chan mantinha-o sob vigilância, por meio de agente local 24 horas. Ininterruptas. Tinha microchip implantado na sola dos pés e não sabia. Daí sabia-se que M havia se tornado maníaco depressivo: alguns chamam transtorno bipolar. Não limpava os dedos nem fazia as unhas. Achava que tais atitudes levavam a desgaste prematuro da pele. Morreu em trânsito dentro de uma das jardineiras que circulam ainda a pedido da Secretaria de Turismo. Dirigia-se da Praça do Cinema para encontro secreto na Vila Tanque. Chan trabalhava com a hipótese que M mantinha esperanças de ganhar controle acionário de empresa de chine- Dossiê Monlevade 257 ses que andou, há anos, clonando os produtos da Fruit. O homem era incorrigível. Segundo Chan, M sustentava que espíritos desconhecidos sempre interrompiam sua linha de pensamento. Um deles afirmava ser o do Brás. Daí, para despistá-los, tinha consigo sete CPFs e sete carteiras de identidade. Andou fazendo várias plásticas para melhor disfarce e achava-se invisível como as ondas de voz que rasgam o ar. Acabou por mutilar a face. Não fosse o apoio de Charlie teria sido difícil identificá-lo para liberar funeral. A confirmação veio por meio de análise genética feita em exame de amostra de cabelo. A municipalidade agradeceulhe e enterrou o homem no cemitério do Baú. Como Mengele, que foi despojado em cemitério paulista, M lá ficará e não mais trará inconvenientes para a população. Eu mesmo não tinha conhecimento, mas com suas negociatas, era considerado inimigo público número um aqui no Vale do Aço. Para todos os efeitos, a morte não deve ter alterado o seu caráter, mas pelo menos para nós vivos, digo que repouse em paz. Então pergunto, Bern, em que essa nota funerária afeta nosso processo? – Nada! – Nada? – Nem mesmo para os parentes de M. Certo filósofo disse que a morte quita todas as dívidas. Aqui não funciona assim. Os herdeiros de M pagarão por parte dos seus pecados. Não dizem as escrituras que os filhos pagarão pelos erros dos pais por gerações e gerações? – Dito assim até que concordo. Sabes que sou homem temente a Deus. A propósito, Bern, acreditas na salvação? – Sim. Mas não da forma que enxergas. Acredito piamente que... Dossiê Monlevade A 259 Epílogo lguns anos depois, Bern e Marie, convidados pela família de Jaime Raimundo, voltaram ao sítio que pertencera ao próprio. Ele e a esposa já não mais se encontravam nesse mundo de Deus. Conversaram sobre o passado, o presente e o futuro. Riram e se emocionaram. A família informara-lhes que, por infortúnio da vida, lá não podia estar presente o amigo Brás. O Brás, disseram-lhes, rumara tranqüilo para o caminho que sempre dissera acreditar. O de viver outras vidas e aprimorar virtudes pelo refino do sofrimento. Os anfitriões tinham também procurado localizar, por todos os meios possíveis, alguns antigos sócios da Fruit como O. Costa e Torquato Viglioni. A idéia era ajuntar pessoas de bem que trouxessem sentimentos de amizade, boas lembranças e compreensão. Dia de recordações. Tarefa que se mostrou impossível, disseram consternados. Tanto Viglioni, quanto Costa, e tantos outros, conforme tinham prometido, ou jurado, tinham desaparecido à custa desse e de outros processos engendrados pelo falecido M. Na ocasião, Bern e Marie moravam em belo apartamento em condomínio de luxo chamado Central Park. Idéia de Marie. Essa área de Monlevade fazia parte de projeto revolucionário de revitalização da cidade. Fora idealizada nos moldes do famoso parque de Nova Iorque. Daí o nome estrangeiro. Ficava próximo à casa dos pais de Marie na parte alta da Vila Tanque. A família de Bern mantinha apartamento no mesmo condomínio e fazia constantemente a ponte aérea Paris – Guéret – Monlevade. O jovem casal caminhava vagarosamente pelas vizinhanças da antiga casa sede do sítio. Almas grudadas. Estame e pistilo. 260 Jairo Martins de Souza Lembravam tempos passados e se alegravam. Aqui, pelo rádio ouvimos a notícia que Gagarin fora enviado ao espaço. Debaixo daquele pé de mangas soubemos dos primeiros passos de Neil Armstrong na Lua... Finalmente, entre uma ou outra opção, – dispunham de poucas horas –, decidiram apreciar antiga edificação onde existia um mais antigo, ainda, moinho de grãos. Era local onde Jaime Raimundo gostava de levá-los. Não iriam até o seu interior, pois a velha construção – ainda dos tempos do Brasil Colônia – ficava em parte baixa de difícil acesso. Marie estava em estado de gravidez facilmente identificável, – isso é chegar aos céus, dizia. Sendo assim, seguia com calma, escondendo-se, cautelosamente, sob a sombra de uma ou outra árvore ocasional. Não queria correr riscos. O dia era cálido e de poucas nuvens. A alguns metros de subida que antecipava a visão do destino, já um pouco cansada, alertou estranhamente ao marido: veja, querido, há algo bizarro aflorando no chão daquele morro. – Qual? – O que fica paralelo à pequena subida para o mirante de onde se vê o moinho. Não lhe parece ponta de grande caixa retangular? Daqui, Bern, dá impressão de ser pintada de verde. – Não. Não vejo, Marie. A posição do Sol me atrapalha. – Proteja os olhos com as mãos, Bern. Olhe do lado de cá. Ele está um pouco escondido por aquela rocha maior... – Agora percebi, Marie. Visão atípica. Um tanto quanto assustadora. Você consegue ir até lá? – Sim, querido. Desde que devagar… – Ufa, olha, na verdade é um armário de metal. Um cofre. Olha a fechadura. É enorme, Marie! – É mesmo, chéri. Lembra a de cofres subterrâneos de bancos. Acho que só estamos vendo a ponta do iceberg. Um tanto sujo, não é? – Tens razão. No entanto, do lado que estou, Marie, há cava no solo que está bem lavada. Por meio dela posso ver que há nele uma estátua de mulher. Gravada grosseiramente. Parece-me feita com punção! – É verdade. Observa o traje. Dá idéia de deusa grega... Bern, Dossiê Monlevade 261 aquilo lá próximo aos olhos, dando impressão de caído, não é uma viseira? Espera. Espera um pouco. Tem mais. Olha só, meu amor, à esquerda dela há também uma espada solta: um pouco ali ao lado... Querido, não atino por que me passa uma imagem pela cabeça. Não estou sabendo exatamente expressar o nome, pois não é que seja idêntica... – Não seja idêntica a quê, Marie? – Ah, Bern, de repente ficou claro para mim. A posição dessa imagem, saindo aí da terra, lembra-me algo como a visão da Estátua da Liberdade, a de Nova Iorque, que apareceu no final do Planeta dos Macacos. – Onde? – No filme do Charlton Heston, lembra? – Ah, claro. Não foi aquele em que os macacos mantinham os homens em gaiolas? Lembro sim. Lembro que terminou com Heston galopando sobre cavalo sem sela e dando de frente com a Estátua enterrada em curva de praia deserta. Fugia de exército de gorilas. Foi final belíssimo. Não é difícil de entender o porquê de você ligá-lo ao cenário que aqui temos. O impacto é parecido. – Também acho isso... No entanto há ali mais alguma coisa... Algo peculiar. Ainda não me acudiu o que é… – Sim, Marie. O que dizes não é o que está gravado, a marcação é rasa, bem naquele cantinho da parede? Parece-me desenho rústico de balança de dois pratos. Sabe, querida, daquelas usadas por mercadores em feiras antigas. Repara bem se não é o que estou falando! – Bern… – Sim… – Fico trêmula em dizer isso, mas estas inscrições espalhadas nesse cofre: a deusa, a viseira, a espada... agora essa balança... tudo isso se ajuntado não é o mesmo que esculpir a imagem, o símbolo, da palavra Iustitia? – Sim. Justiça. O equilíbrio. A independência. A força. – Então o que temos aí dentro, chéri? – Não sei. Nem mesmo tenho vaga idéia. Mais ainda de como, e por que esse objeto foi enterrado neste sítio de Jaime Raimun- 262 Jairo Martins de Souza do. No entanto, acho que podemos concluir que esse achado, Marie, é propriedade do governo. Da Justiça! No livro que aqui termina, meu amor, Iustitia, foi senha de acesso aos escritos do doc x… – Isso quer dizer que pode vir a ser senha para abertura de caixas pretas de tudo de misterioso que nos cerca, Bern? Como a desse cofre? Como a desse Processo? – Pode. Pode, querida. Não obstante a injustiça que vem acontecendo nos seus autos, e com o que, neste livro, imaginariamente, escrevi, continuo acreditando nas doutrinas que aprendi na faculdade de Direito. É claro, a vida tem sido minha grande mestra, mas procuro manter sempre em mente que uma das missões da Justiça é proteger... Dossiê Monlevade 265 Post Scriptum No corpo deste Dossiê, mencionei duas vezes sobre o que se passa na cabeça de um escritor quando às voltas com a escrita de um livro. Naqueles momentos, não disse tudo. Faltaram muitas outras coisas. Por exemplo, faltou dizer que entregar um livro ao público é trabalho de muitos. É tarefa de um time. Ah, aqui, muito a propósito, cabe recordar antigo ditado do futebol, e assegurar que literatura também é association. Associação. Para tanto, no caso do andamento desta obra, leram inicialmente meus rascunhos, profissionais de áreas diferentes. Equipe pequena, mas eficiente. Gente escolhida a dedo. Todos, cada qual à sua maneira, fizeram leituras preciosas. Incentivaram-me. Fizeram-me refletir melhor. Fizeram-me controlar minhas fantasias, corrigir meus excessos, enfim, não perder de vista que mesmo o universo fantasioso da literatura possui lá suas limitações. Em pouquíssimos casos não atendi às suas recomendações. Em particular na parte jurídica, onde eventuais distorções de termos técnicos e situações devem ser totalmente atribuídas à minha pessoa. A partir daí, o livro foi feito com muito cuidado. Não obstante, não nego possibilidade de existência de erros de outras naturezas. Como não poderia deixar de ser, assumo também, de forma integral, os seus créditos negativos. Por outro lado, tal como no primeiro livro que escrevi (O Bazar Monlevade), eu já tinha a história do Dossiê na minha cabeça. No coco. Pronta para ser contada. Lembro, aí, novamente, algumas palavras proferidas pela escritora Zélia Gattai, durante conhecida entrevista concedida à Televisão Educativa (TVE). Dizia da forma 266 Jairo Martins de Souza em que Jorge Amado aconselhara-lhe escrever seu primeiro livro. Na ocasião desse relato, o marido já era morto. Mas voltando ao Dossiê, reforço que é história de vida. Só ela produz casos assim. Portanto, fica fácil deduzir que os tais achados do cofre não se tratam somente de fantasia do escritor. É alegoria de fato real. M existiu. O banco de La Nación é o Banco do Brasil. Quanto aos outros personagens, todos foram forjados em pessoas que conheci ao longo de minha existência. Entretanto, escrevo essencialmente sobre os amores que tenho. Meu processo de criação é simples. Bern, Bernard, é nome afrancesado do meu recém-chegado primeiro netinho. Projetei nele as características e caráter de todos os homens que apreciei, e admiro: inclusive meu filho. Sua mãe francesa é uma médica. Tal como o é a brasileira, a de verdade, que é minha filha mais velha. Liviah, a irmã de Bern, que mora na região de vinhedos de Guéret, cristaliza presença da minha outra filha, a mais jovem, que é estudante de engenharia civil. Dela também extraí o desejo da personagem Marie de fazer algo em relação à arquitetura. A jovem senhora que Bern segura as mãos, durante vôo sobre os altiplanos da Bolívia, é minha própria esposa. Ela morre de medo de viagens aéreas. O pai de Bernard é o cardiologista Guilhaume. Guilherme. Como na vida real. Meu pai é o próprio Jaime Raimundo. Sua esposa, Alice, minha mãe, foi ingênua como o personagem que leva seu nome. Fazendo dessa forma, torna-se fácil escrever. Os demais aqui lembrados na história são amigos de velha data. Todos têm, em comum, o fato de seus personagens terem retrato fidedigno de suas personalidades. A eles agradeço pelo subsídio. Teria que escrever outro livro para descrever suas qualidades. Negligenciaria defeitos. É pecado antigo. Para mim, tão velho como o de Adão. Deveria finalizar por aí, no entanto, não posso deixar de mencionar João Monlevade, minha terra natal, pela ambientação deste romance. E a Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade, que, à custa do seu pioneirismo, em termos finais, acabou por dar nome à nossa cidade. Imagino a aventura que, naquela época, significou abandonar a Europa, o Velho Mundo, e fundar peque- Dossiê Monlevade 267 na fundição no obscuro interior de Minas Gerais. Por fim, faço distinção especial à minha esposa, Olívia. Foi ela quem fez a revisão final da obra. Trabalho minucioso. Cirúrgico. De formiguinha. De quem segue à risca as regras da difícil gramática portuguesa. Os erros que restaram devem novamente ser creditados à minha teimosia de escritor. Sem ela, esse romance não teria sido escrito. Ah, faltou falar sobre o principal: Faltou falar sobre você, o leitor. Afinal de contas, é o objetivo final da feitura de um livro. Buscá-lo, trata-se de outra luta. Difícil. Demanda estrutura de marketing e distribuição. No entanto (como escrevi no texto deste romance, gosto de fazer contas), se consigo um de vocês, leitores, por dia, ao final de um ano, são 365; ao cabo de dois anos são 730, então... * * * Esse livro foi editado e impresso em papel Renova solf 75g/m2 e Capa Triplex 250g/m2 pela Grafer Editora em 2008 * * * Grafer Editora Rua: Fagundes Varella, 135 Soteco - Vila Velha - ES Tel.: 27 3219-3524 - email: [email protected]
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