ANTOLOGIA POETICA Antologia Poética

Transcrição

ANTOLOGIA POETICA Antologia Poética
ANTOLOGIA POETICA
Antologia Poética (com base na 2ª edição aumentada), de Vinicius de Moraes
Profª Sônia Targa
Vinicius de Moraes
Antologia Poética
Antologia poética foi publicada em 1954 e apresenta a relação completa dos poemas que integram esse conjunto, a fim de dirimir
possíveis dúvidas dos alunos:
- O olhar para trás
- A uma mulher
- Ilha do Governador
- Ausência
- O incriado
- A volta da mulher
morena
- A mulher na noite
- Agonia
- A legião dos Urias
- Alba
- O escravo
- A música das almas
- Três respostas em
face de Deus
- Poema nº três em
busca da essência - O
poeta
O nascimento do
homem (**)
- Viagem à sombra
- Balada feroz
- Invocação à mulher
única
- A máscara da noite
- Vida e poesia
- Sonata do amor
perdido
- A brusca poesia da
mulher amada
- O cemitério na
madrugada
- Solilóquio
- A vida vivida
- Ariana, a mulher
- Elegia quase uma
ode
- Elegia lírica
- Elegia desesperada
- Elegia ao primeiro
amigo
- A última elegia
- O falso mendigo
- Soneto de intimidade
- Ária para assovio
- Soneto à lua
- Soneto de agosto
- A mulher que passa
- Soneto a Katherine
Mansfield
- Balada para Maria
- Soneto de contrição
- Ternura
- Soneto de devoção
- Soneto de fidelidade
- Marinha
- Os acrobatas
- Paisagem
- Balada do cavalão
- Canção
- Quatro sonetos de
meditação:
I
II
III
IV
- O riso
- Pescador
- Soneto de despedida
- Sinos de Oxford
- Trecho
- Mar
- Balada da praia do
Vidigal
- Soneto de Londres
- Cântico
- A um passarinho
- A estrela polar
- Soneto do maior amor
- Imitação de Rilke
- Balada do enterrado
vivo
- Epitáfio
- Allegro
- Soneto de véspera
- Balada do Mangue
- Soneto a Otávio de
Faria
- Rosário
- O escândalo da rosa
- Soneto ao inverno
- Marina
- Soneto de Quartafeira de Cinzas
- Sombra e luz
- Saudade de Manuel
Bandeira
- Azul e Branco
- Soneto de separação
- Balada de Pedro Nava
(O anjo e o túmulo)
- Soneto de carnaval
- Balada das meninas
de bicicleta
- Poema de Natal
- O dia da Criação
- Balada dos mortos dos
campos de
concentração
- Repto
- A manhã do morto
- Mensagem a Rubem Braga
- Balada da moça do Miramar
- Balanço do filho morto
- Balada das arquivistas
- A Verlaine
- A bomba atômica
- Aurora, com movimento
(Posto 3)
- Balada do morto vivo
- Sacrifício da Aurora
- Soneto da mulher inútil
- O rio
- Bilhete a Baudelaire
- A morte de madrugada
- O assassino
- Poema enjoadinho
- Soneto do só ou Parábola de
Malte Laurids Brigge
- A pera
- A paixão da carne
- A ausente
- A rosa de Hiroshima
- Tríptico na morte de Sergei
Mikhailovitch Eisenstein
- Pátria minha
- O crocodilo
- História passional,
Hollywood, Califórnia
- Epitalâmio
- Conjugação da ausente
- O filho do homem
- Soneto de aniversário
- Poética (I)
- Elegia na morte de Clodoaldo
Pereira da Silva Moraes, poeta
e cidadão
- Desert Hot Springs
- Retrato, à sua maneira (João
Cabral de Melo Neto)
- A hora íntima
- Menino morto pelas ladeiras
de Ouro Preto
- Poema dos olhos da amada
- O poeta Hart Crane suicidase no mar
- A brusca poesia da mulher
amada (II)
- A que vem de longe
- Receita de mulher
- Balada negra
- Soneto do amor total
- Balada das duas mocinhas de
Botafogo
- Máscara mortuária de
- Poemas para todas
as mulheres
- A morte
- A partida
- O poeta e a lua
- Soneto da rosa
- Valsa à mulher do
povo
- Cinepoema
- Mensagem à poesia
- O tempo nos parques
Graciliano Ramos
- O mergulhador
- Poema de Auteil
- O operário em construção
Este livro reúne a maior e a melhor parte da obra de um dos grandes poetas do Brasil.
Vinicius de Moraes nasceu no Rio, em 1913, aqui se formou em Direito e entrou, por concurso, para a carreira
diplomática. Serviu durante quatro anos no consulado brasileiro em Los Angeles e está no momento como secretário de
nossa embaixada em Paris. Seu primeiro livro foi O caminho para a distância, do qual pouco aproveitou nesta seleção,
seguindo-se Ariana, a mulher e Forma e exegese, com o qual conquistou o Prêmio Felipe de Oliveira. Publicou a seguir
Novos poemas, Cinco elegias, Poemas, sonetos e baladas e Pátria minha que firmaram seu nome, no consenso da crítica,
como o melhor poeta da turma que hoje entra pela casa dos quarenta. Alguns desses livros foram feitos em edições
limitadas; todos estão há longo tempo esgotados, o que faz com que grandes admiradores de Vinicius de Moraes conheçam
apenas uma pequena parte de sua obra. Esta seleção, feita pelo próprio poeta com a ajuda de amigos – principalmente
Manuel Bandeira – adquire, assim, uma grande importância, pois possibilita um estudo da evolução do poeta e a admiração
do que ele tem feito de mais alto e melhor.
Vindo de um misticismo de fundo religioso para uma poesia nitidamente sensual que depois se muda em versos
marcados por um fundo sentimento social, a obra de Vinicius tem como constante um lirismo de grande força e pureza.
Ainda com o risco de incorrer na censura dos que levam suas preocupações puritanas ao domínio das artes, não quiseram
os amigos do poeta, principalmente o que assina esta nota, e assim se faz responsável por esta resolução, suprimir algumas
palavras ou expressões mais fortes que de raro em raro aparecem em seus versos. Isso fará com que não seja
recomendável a presença deste livro em mãos juvenis – mas resguarda a pureza de sua poesia, que tudo, em poesia,
transfigura. Estamos certos de que, com a edição deste livro, a obra de Vinicius de Moraes ganhará uma popularidade
maior, e passará a ter, entre o público, o lugar de honra que há muito ocupa no espírito e no sentimento dos poetas e dos
críticos.
O volume abre-se com uma "Advertência" (do autor, sem dúvida, embora sem assinatura, com indicação de local e
data):
Poderia este livro ser dividido em duas partes, correspondentes a dois períodos distintos na poesia .
A primeira, transcendental, freqüentemente mística, resultante de sua fase cristã, termina com o poema "Ariana, a
mulher", editado em 1936. Salvo, aqui e ali, umas pequenas emendas, a única alteração digna de nota nesta parte foi
reduzir-se o poema "O cemitério da madrugada" às quatro estrofes iniciais, no que atendeu o A. a uma velha idéia de seu
amigo Rodrigo M.F. de Andrade.
À segunda parte, que abre com o poema "O falso mendigo", o primeiro, ao que se lembra o A., escrito em oposição
ao transcendentalismo anterior, pertencem algumas poesias do livro Novos poemas, também representado na outra fase, e
os demais versos publicados posteriormente em livros, revistas e jornais. Nela estão nitidamente marcados os movimentos
de aproximação do mundo material, com a difícil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos.
De permeio foram colocadas as Cinco elegias (1943), como representativas do período de transição entre aquelas
duas tendências contraditórias, – livro também onde elas melhor se encontram e fundiram em busca de uma sintaxe
própria.
Não obstante certas disparidades, facilmente verificáveis no índice, impôs-se o critério cronológico para uma
impressão verídica do que foi a luta mantida pelo A.contra si mesmo no sentido de uma libertação, hoje alcançada, dos
preconceitos e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação.
que é uma antologia?
Antes de qualquer coisa é preciso definir o que vem a ser "antologia". Antologia significa, etimologicamente, "coletânea de flores";
o termo remete à idéia de escolha, coleção. Sendo assim, antologia é uma coleção de trabalhos literários; neste caso, coleção de
trabalhos poéticos.
A importância de se ler uma obra como esta ("Antologia Poética") está no fato de que estamos tendo contato com uma seleção de
poemas feita pelo próprio autor.
A divisão da obra de Vinicius
A obra poética de Vinícius de Moraes é tradicionalmente dividida pela crítica em duas fases distintas.
A primeira está dividida em 27 poemas, marcada pelo misticismo,pelos altos voos angustiados que lembram o condoreirismo
romântico e o Simbolismo.
A segunda fase com 109 textos, é marcada pela abordagem do cotidiano,pelo tempo presente, pelo voo rasteiro sobre as coisas
simples da vida. Por haver nessa fase uma renúncia à superstição e ao purismo fortemente presentes na primeira, bem como um
direcionamento para uma atitude mais brincalhona e amorosa perante a poesia, essa segunda fase ficou conhecida como "O
encontro do cotidiano pelo poeta". Nessa passagem do metafísico para o físico, do espiritual para o sensual, do sublime para o
cotidiano, o poeta retoma sugestões românticas (como lua, cidade, samba). Refugia-se no erotismo: há contemplação do amor,
poemas "sobre a mulher" e adoração panteística da natureza. Compôs também poemas de indignação social, cujos exemplares são:
"Balada dos mortos dos campos de concentração", "O operário em construção" e "A rosa de Hiroshima".
E entre as duas estão as Cinco Elegias, que, por assumirem uma posição intermediária, possuem uma mistura de abstração com
objetividade.
O terceiro Vinicius é o compositor, letrista e cantor. Autor de mais de trezentas músicas (como atesta seu Livro de letras, lançado
postumamente, em 1991, onde estão mais de 300 letras de músicas de sua autoria), difundidas pelo mundo com o grande
acontecimento cultural e musical que foi a bossa nova. Seus parceiros, como vimos, vão desde Bach a Toquinho.
Embora a crítica fizesse (faça) tal divisão, colocando de um lado o poeta e de outro o showman, Vinicius nunca concordou que
houvesse diferença entre seus sambas e seus poemas escritos, pois para ele tudo era igual.
Comentários sobre alguns poemas
Selecionei alguns poemas representativos da primeira e segunda fase do poeta para uma breve análise, com maior ênfase aos
sonetos que, como se sabe, é o forte da poesia de Vinícius. Vejamos:
O incriado
Distantes estão os caminhos que vão para o Tempo – outro luar eu vi
(passar na altura
Nas plagas verdes as mesmas lamentações escuto como vindas da eterna espera
O vento ríspido agita sombras de araucárias em corpos nus unidos se amando
E no meu ser todas as agitações se anulam como as vozes dos campos
(moribundos.
Oh, de que serve ao amante o amor que não germinará na terra infecunda
De que serve ao poeta desabrochar sobre o pântano e cantar prisioneiro?
Nada há a fazer pois que estão brotando crianças trágicas como cactos
Da semente má que a carne enlouquecida deixou nas matas silenciosas.
Nem plácidas visões restam aos olhos – só o passado surge se a dor surge
E o passado é como o último morto que é preciso esquecer para ter vida
Todas as meias-noites soam e o leito está deserto do corpo estendido
Nas ruas noturnas a alma passeia, desolada e só em busca de Deus.
Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar
(batendo
No entanto como está longe o mar e como é dura a terra sob mim...
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema fraqueza
E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques onde a
(primavera é eterna.
Na memória cruel vinte anos seguem a vinte anos na única paisagem humana
Longe do homem os desertos continuam impassíveis diante da morte
Os trigais caminham para o lavrador e o suor para a terra
E dos velhos frutos caídos surgem árvores estranhamente calmas.
Ai, muito andei e em vão... rios enganosos conduziram meu corpo a todas
(as idades
Na terra primeira ninguém conhecia o Senhor das bem-aventuranças...
Quando meu corpo precisou repousar eu repousei, quando minha boca
(ficou sedenta eu bebi
Quando meu ser pediu a carne eu dei-lhe a carne mas eu me senti mendigo.
Longe está o espaço onde existem os grandes vôos e onde a música vibra solta
A cidade deserta é o espaço onde o poeta sonha os grandes vôos solitários
Mas quando o desespero vem e o poeta se sente morto para a noite
As entranhas das mulheres afogam o poeta e o entregam dormindo à madrugada.
Terrível é a dor que lança o poeta prisioneiro à suprema miséria
Terrível é o sono atormentado do homem que suou sacrilegamente a carne
Mas boa é a companheira errante que traz o esquecimento de um minuto
Boa é a esquecida que dá o lábio morto ao beijo desesperado.
Onde os cantos longínquos do oceano?... Sobre a espessura verde eu me
(debruço e busco o infinito
Ao léu das ondas há cabeleiras abertas como flores – são jovens que o
(eterno amor surpreendeu
Nos bosques procuro a seiva úmida mas os troncos estão morrendo
No chão vejo magros corpos enlaçados de onde a poesia fugiu como o
(perfume da flor morta.
Muito forte sou para odiar nada senão a vida
Muito fraco sou para amar nada mais do que a vida
A gratuidade está no meu coração e a nostalgia dos dias me aniquila
Porque eu nada serei como ódio e como amor se eu nada conto e nada valho.
Eu sou o Incriado de Deus, o que não teve a sua alma e semelhança
Eu sou o que surgiu da terra e a quem não coube outra dor senão a terra
Eu sou a carne louca que freme ante a adolescência impúbere e explode
(sobre a imagem criada
Eu sou o demônio do bem e o destinado do mal mas eu nada sou.
De nada vale ao homem a pura compreensão de todas as coisas
Se ele tem algemas que o impedem de levantar os braços para o alto
De nada valem ao homem os bons sentimentos se ele descansa nos
(sentimentos maus
No teu puríssimo regaço eu nunca estarei, Senhora...
Choram as árvores na espantosa noite, curvadas sobre mim, me olhando...
Eu caminhando... Sobre o meu corpo as árvores passando...
Quem morreu se estou vivo, por que choram as árvores?
Dentro de mim tudo está imóvel, mas eu estou vivo, eu sei que estou vivo
(porque sofro.
Se alguém não devia sofrer eu não devia, mas sofro e é tudo o mesmo
Eu tenho o desvelo e a bênção, mas sofro como um desesperado e nada posso
Sofro a pureza impossível, sofro o amor pequenino dos olhos e das mãos
Sofro porque a náusea dos seios gastos está amargurando a minha boca.
Não quero a esposa que eu violaria nem o filho que ergueria a mão sobre
(o meu rosto
Nada quero porque eu deixo traços de lágrimas por onde passo
Quisera apenas que todos me desprezassem pela minha fraqueza
Mas, pelo amor de Deus, não me deixeis nunca sozinho!
Às vezes por um segundo a alma acorda para um grande êxtase sereno
Num sopro de suspensão a beleza passa e beija a fronte do homem parado
E então o poeta surge e do seu peito se ouve uma voz maravilhosa,
Que palpita no ar fremente e envolve todos os gritos num só grito.
Mas depois, quando o poeta foge e o homem volta como de um sonho
E sente sobre a sua boca um riso que ele desconhece
A cólera penetra em seu coração e ele renega a poesia
Que veio trazer de volta o princípio de todo o caminho percorrido.
Todos os momentos estão passando e todos os momentos estão sendo vividos
A essência das rosas invade o peito do homem e ele se apazigua no perfume
Mas se um pinheiro uiva no vento o coração do homem cerra-se de inquietude
No entanto ele dormirá ao lado dos pinheiros uivando e das rosas recendendo.
Eu sou o Incriado de Deus, o que não pode fugir à carne e à memoria
Eu sou como velho barco longe do mar, cheio de lamentações no vazio do bojo
No meu ser todas as agitações se anulam – nada permanece para a vida
Só eu permaneço parado dentro do tempo passado, passando, passando...
Rio de Janeiro, 1935
Comentário- Observe como nesse poema, por meio de versos livres e longos dentro do padrão dos famosos versículos bíblicos.
Vinícius se destaca por garantir ritmo,realçado pelas anáforas(repetição de expressões no início do verso). A forma,portanto,
adapta-se perfeitamente à preocupação do poeta de expressar a angústia de saber-se prisioneiro da carne. Condena-a, mas
enxerga nela o alívio de sua angústia. Com o espírito perturbado, entra em processo de satanização, ao se intitular o “Incriado”, ou
seja, a negação da criação de Deus, alguém que não é semelhança e imagem do Divino.O eu-lírico se sente tão maldito que nega
em si o grão divino que, de acordo com o cristianismo, existe dentro de todos os homens. Para se esclarecer o que está expondo, é
importante a leitura de outro poema: O Poeta
O poeta
(...)
Foi muito antes dos pássaros – apenas rolavam na esfera os cantos de Deus
E apenas a sua sombra imensa cruzava o ar como um farol alucinado...
Existíamos já... No caos de Deus girávamos como o pó prisioneiro da vertigem
Mas de onde viéramos nós e por que privilégio recebido?
E enquanto o eterno tirava da música vazia a harmonia criadora
E da harmonia criadora a ordem dos seres e da ordem dos seres o amor
E do amor a morte e da morte o tempo e do tempo o sofrimento
E do sofrimento a contemplação e da contemplação a serenidade ínperecível
Nós percorríamos como estranhas larvas a forma patética dos astros
Assistimos ao mistério da revelação dos Trópicos e dos Signos
Como, não sei... Éramos a primeira manifestação da divindade
Éramos o primeiro ovo se fecundando à cálida centelha.
(...)
Comentário- Mais uma vez se percebe que o uso que Vinicius de Moraes faz do verso livre bíblico, não o torna
enfadonho,monótono.Basta notar na 2ª estrofe do excerto como a repetição de expressões imprime ritmo ás frases.É importante
notar como esse poema mantém coerência com O Incriado, pois desenvolve o mesmo tema da 1ª parte da Antologia.O eu lírico
expressa a ideia de que ser poeta o torna um privilegiado, alguém que participa dos grandes mistérios do funcionamento do
universo, ou pelo menos assiste a eles.Expressa em ambos os poemas, um narcisismo, um egocentrismo que o vinculam
tardiamente ao Romantismo.- um adolescente mergulhado nos conflitos mal resolvidos da religião
Endimião e a lua-mitologia grega nos relata que Endimião faz parte das personagens que traduzem a perseguição ao ideal
de beleza.
“Na lenda, Endimião é um pastor portador de juventude e uma beleza perfeita.
E Endimião, quando adulto, pediu a Zeus que não lhe tirasse nunca o que tinha de mais perfeito e valioso, a juventude e a beleza
rara de um simples mortal.
Zeus, então, realiza o pedido do rapaz e, numa tarde de verão, promete a Endimião que, naquele dia, quando adormecesse, jamais
envelheceria e jamais perderia a beleza,pois sabia que tão logo adormecesse seria jovem e belo para todo o sempre, e adormece
feliz.Mas o que ele não sabia é que jamais iria acordar. Zeus o envolvera em um sono eterno, poupando-o assim, do
envelhecimento e da perda da juventude e da beleza que tanto o envaidecia.
Diz a lenda que à noite, Selene, a Lua, sempre percorre o céu em sua carruagem prateada, avista a figura adormecida de Endimião.
Ela nunca vira um homem com tamanha beleza e apaixona-se imediatamente.
A presença da Lua é marcante na Antologia Poética- no começo pode se dizer que ela é testemunha dos anseios do poeta.Pouco
depois ele se torna mais ousado e começa a associá-la aos seus desejos sexuais, como em “Elegia desesperada.”(...) e eu só tive a
lua/Lívida, a lésbica que me poluiu da sua eterna/Insensível polução...
Há de lembrar que o mito de Endimião está ligado ás poluções noturnas (ejaculação involuntária durante o sono), típicas
de adolescentes que ainda não atingiram sua maturidade sexual.Mais para a frente, Vinícius dirige diretamente sua emotividade a
esse astro, como em ”Soneto á lua”
Fugaz, com que direito tens-me presa
A alma que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:
E és tampouco a mulher que anda na rua
Vagabunda, patética, indefesa
Ó minha branca e pequenina lua!
Até que em “Soneto de despedida” começa a perder o pudor diante dessa deusa implacável diante da luxúria.
Uma lua no céu apareceu
Cheia e branca; foi quando, emocionada
A mulher a meu lado estremeceu
E se entregou sem que eu dissesse nada.
Larguei-as pela jovem madrugada
Ambas cheias e brancas e sem véu
Perdida uma, a outra abandonada
Uma nua na terra, outra no céu.
Mas não partira delas; a mais louca
Apaixonou-me o pensamento; dei-o
Feliz - eu de amor pouco e vida pouca
Mas que tinha deixado em meu enleio
Um sorriso de carne em sua boca
Uma gota de leite no seu seio.
Ainda assim, como um expediente psicológico imaturo de transferência, o desejo é desviado a uma mulher branca como a
Lua.Sente-se atraído por esse astro, porém , ainda não tem coragem de assumir isso. Mas, amadurecido, escancara um claro ato
sexual em “O poeta e a lua”( ainda que em 1ª pessoa, lírica, se disfarce na 3ª pessoa da palavra poeta)
Em meio a um cristal de ecos
O poeta vai pela rua
Seus olhos verdes de éter
Abrem cavernas na lua.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria
O poeta, aloucado e branco
Palpa as nádegas da lua.
Entre as esfera nitentes
Tremeluzem pelos fulvos
O poeta, de olhar dormente
Entreabre o pente da lua.
Em frouxos de luz e água
Palpita a ferida crua
O poeta todo se lava
De palidez e doçura.
Ardente e desesperada
A lua vira em decúbito
A vinda lenta do espasmo
Aguça as pontas da lua.
O poeta afaga-lhe os braços
E o ventre que se menstrua
A lua se curva em arco
Num delírio de luxúria.
O gozo aumenta de súbito
Em frêmitos que perduram
A lua vira o outro quarto
E fica de frente, nua.
O orgasmo desce do espaço
Desfeito em estrelas e nuvens
Nos ventos do mar perpassa
Um salso cheiro de lua
E a lua, no êxtase, cresce
Se dilata e alteia e estua
O poeta se deixa em prece
Ante a beleza da lua.
Depois a lua adormece
E míngua e se apazigua...
O poeta desaparece
Envolto em cantos e plumas
Enquanto a noite enlouquece
No seu claustro de ciúmes.
O caráter sedutor do eu lírico está amadurecido- não mais descarrega em poluções noturnas.
Orfeu- De acordo com a Mitologia Grega Orfeu era um poeta e um músico, filho da musa Calíope. apaixonou-se por Eurídice e
casou-se com ela. Mas Eurídice era tão bonita que, pouco tempo depois do casamento, atraiu um apicultor chamado Aristeu.
Quando ela recusou suas atenções, ele a perseguiu. Tentando escapar, ela tropeçou em uma serpente que a picou e a matou.
Orfeu ficou transtornado de tristeza. Levando sua lira, foi até o Mundo dos Mortos, para tentar trazê-la de volta. A canção
pungente e emocionada de sua lira convenceu o barqueiro Caronte a levá-lo vivo pelo Rio Estige. Finalmente Orfeu chegou ao
trono de Hades.. Eurídice poderia voltar com Orfeu ao mundo dos vivos. Mas com uma única condição: que ele não olhasse para
ela até que ela, outra vez, estivesse à luz do sol.
Orfeu partiu pela trilha íngreme que levava para fora do escuro reino da morte, tocando músicas de alegria e celebração enquanto
caminhava, para guiar a sombra de Eurídice de volta à vida. Ele não olhou nenhuma vez para trás, até atingir a luz do sol. Mas então
se virou, para se certificar de que Eurídice estava seguindo-o.
Por um momento ele a viu, perto da saída do túnel escuro, perto da vida outra vez. Mas enquanto ele olhava, ela se tornou de novo
um fino fantasma, seu grito final de amor e pena não mais do que um suspiro na brisa que saía do Mundo dos Mortos. Ele a havia
perdido para sempre. Em total desespero, Orfeu se tornou amargo. Recusava-se a olhar para qualquer outra mulher, não querendo
se lembrar da perda de sua amada. Furiosas por terem sido desprezadas, um grupo de mulheres selvagens chamadas Mênades
caíram sobre ele, frenéticas, atirando dardos. Os dardos de nada valiam contra a música do lirista, mas elas, abafando sua música
com gritos, conseguiram atingi-lo e o mataram. Depois, despedaçaram seu corpo e jogaram sua cabeça cortada no Rio Hebrus, e ela
flutuou, ainda cantando, "Eurídice! Eurídice!" Chorando, as nove musas reuniram seus pedaços e os enterraram no Monte Olimpo.
Dizem que, desde então, os rouxinóis das proximidades cantaram mais docemente do que os outros. Pois Orfeu, na morte, se uniu
a sua amada Eurídice.
Orfeu é, portanto, o símbolo do artista cuja emotividade é capaz de mudar radicalmente o mundo .- é também o apaixonado sem
limites. Sua história traz em si elementos da condição humana: vida, morte, amor e arte. Diante desse fato, é mais fácil entender a
poesia de Vinícius, a música e a emoção são os ingredientes mais fortes,responsáveis pela qualidade latente da sua imatura 1ª
fase.
O Mar- tem presença marcante na obra de Vinícius, a começar pelo pretenso estilo de vida no R.J. Há nele inúmeras simbologias
que o poeta soube captar.A começar pelo ritmo das ondas, constante e cíclico, faz lembrar a dinâmica existência humana, tendo
facilmente associado aos mistérios da vida e da morte.Seu pulsar é sempre associado ao coração humano e ás suas paixões.Todos
esses são temas recorrentes da Antologia Poética.Observe o poema abaixo :
A lua foi companheira
Na Praia do Vidigal
Não surgiu, mas mesmo oculta
Nos recordou seu luar
Teu ventre de maré cheia
Vinha em ondas me puxar
Eram-me os dedos de areia
Eram-te os lábios de sal.
Na sombra que ali se inclina
Do rochedo em miramar
Eu soube te amar, menina
Na Praia do Vidigal...
É importante notar, a simbiose existente entre ele, ela e o mar.
O Amor- Manuel Bandeira percebeu em Vinícius a “ intoxicação do amor”.A relação sexual é constante em seus textos, mas
percebe-se que o poeta busca algo além do automatismo lascivo, do sexo pelo sexo.Comprova essa ideia o “Soneto da Devoção “
Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica em meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.
Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.
Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.
Essa mulher é um mundo! - uma cadela
Talvez... - mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
1ª estrofe - Repetição sistemática do fonema consonantal “b”- aliteração.
Não houve preocupação em obedecer às regras tradicionais de pontuação.
Versos decassílabos com esquema de rima ABAB, ABB CCD, DCD
Assim como Castro Alves, Vinicius canta o amor físico, o amor livre.
O termo "cadela", bastante forte, pois normalmente funciona como palavrão, como ofensa, dirigida vulgarmente a mulher que
“não se respeita”, que se entrega a qualquer um, tem aqui uma força e um gosto especial.Observe que aborda a sexualidade de
forma fria, direta como afirma Mario de Andrade.
Ao designar a mulher de cadela, dentro do contexto desses versos e da personalidade de seu criador, veste a palavra com novas
roupas e novas cores.
O que se sente ao ler o poema é que ali esta uma mulher que ama o amor, uma mulher que se entrega a relação sexual com força
animal, sem os recatos afrescalhados de uma formação burguesa, cristã, repressora .
Perante a admiração e devoção do eu lírico, tal condição transforma-se em valor, em qualidade, conferindo a musa uma aura de
beleza.
Reforce-se que o sexo só assume valor quando se mostra como meio, não simplesmente um fim em si. Seu objetivo pode ser a
procriação , canal de toda a magia da paternidade, abordado com humor em “Poema Enjoadinho”
.Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!
Entretanto, o que fica mais nítido em Vinícius é que o amor é a grande força de elevação. É o que exprime em “Os Acrobatas”
Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos
Acima do além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
O grande mar de estrelas
Através de milênios de luz.
Subamos!
Como dois atletas
O rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
Com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
Na calma convulsa da ascensão.
Oh, acima
Mais longe que tudo
Além, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!
Tensos
Pela corda luminosa
Que pende invisível
E cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
Do grande mar de estrelas
Onde dorme a noite
Subamos!
Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
A carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta.
Como no espasmo.
E quando
Lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus
Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos.
E morreremos
Morreremos alto,
imensamente
IMENSAMENTE ALTO.
Em uma interpretação vem a mente o 'super homem' de Nietzche, o homem perfeito, belo, bom, mais rápido, mais forte- o ideal
grego, o semi-deus romano,o atleta.Ele faz alegoria do esforço do atleta para fazer o movimento perfeito, no seu tempo, com a
própria revolução humana.O super homem, a possibilidade de irmos muito além nas nossas capacidade humanas, nos faz sentir
vergonha do que somos hoje. Mas vamos além, vamos em frente, vamos seguir até chegar, passar de deus, ou seja, ser o homem
de verdade o que ele deve ser, o centro do universo, acima dele. Morremos porque não seremos mais reles homens.
Nesse soneto a seguir: “Soneto de quarta-feira de cinzas” encontra-se principalmente a busca da mulher amada, das
infinitas mulheres que se concentram e se desprendem de uma mulher, a afirmação do motivo principal: "mudança",
"evolução", "transição". Poeta viril e terno, transcendental e carnal, caudaloso e contido, ele fez de sua obra o lugar do
encontro e da despedida. Enfim, não importa que Vinícius parta do etéreo para chegar ao real, o que mais vale em sua
obra é a busca da fusão com a vida.
Essa “eternidade” do amor pode durar uma vida toda, ou não mais do que algumas meras horas de encantamento e de
prazer. O que conta, no caso, não é a duração, mas a intensidade do sentimento. É a sua autenticidade. São as marcas
deixadas na memória por esse acontecimento de tanta relevância e até transcendência, que nos acompanham enquanto
vivermos.
Qualquer que seja a análise feita da obra de Vinícius de Moraes, não se pode escapar das palavras "mudança",
"evolução", "transição". Sua poesia, além de ser a encarnação do movimento e do transitório, elege a busca como motor
primordial: do divino, da coisa ordinária, do homem concreto, do homem social, do homem banal, do amante e,
sobretudo, da mulher
"soneto de quarta-feira de cinzas"
Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada
Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada
Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura
Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.
O que o poeta apresenta em sua poesia, não é novidade em sua cultura, pois remonta ao neoplatonismo , nascido na Idade
Média.Em outras palavras, um culto ao amor em sua inúmeras facetas.Essa não realização plena do amor é que nascerá acesa sua
chama, mas também provocará sofrimento, melancolia, que lhe parece essencialmente constitutiva. É o que se vê em “ Ausência”
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz
a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
Comentário:
Diz o crítico Carlos Felipe Moisés que este é um dos primeiros poemas em que aparece a tentativa de representar a mulher amada
e a experiência amorosa como ponto de encontro entre a transcendência e os apelos terrenos, entre espírito e matéria. Para o
ideal do amor sobreviver em toda a sua força ,as partidas, as separações são necessárias.A melancolia é essencial,mas Ausência
também mostra a simbiose, ou seja a fusão do eu-lírico com a amada.
Essa faceta também aparece em “ A brusca poesia da mulher amada II”
A mulher amada carrega o cetro, o seu fastígio
É máximo. A mulher amada é aquela que aponta para a noite
E de cujo seio surge a aurora. A mulher amada
É quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos
astros.
(...)A mulher amada
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro
No sem tempo(...) A mulher amada é a mulher amada é a mulher
amada
(...) pois é ela
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita
Na criação. (...) Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas.
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!
A mulher amada é enaltecida com fervor romântico- ela é rainha, pois carrega o cetro, ela faz parte da criação do universo, é o
poder absoluto Emblemático o seguinte trecho: “A mulher amada é a mulher amada é a mulher amada”.Nele a coincidência entre
sujeito e predicativo, permite inferir que o simples fato de a mulher se amada a torna um ente completo, sem necessidade de
nenhum atributo , de mais nenhum adjetivo. .
Observe o tema moderno da mulher que passa, inspirados em “ A uma passante”, do francês Baudelaire.
A rua em derredor era um ruído incomum,
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;
Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que embala e o frenesi que mata.
Um relâmpago, e após a noite! – Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?
Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado – e o sabias demais!
Para alguns estudiosos, o poeta acima é precursor da poesia moderna, pois expressa a influência do mundo urbano, com suas
relações efêmeras e superficiais. Dele decorrem duas obras primas vinicianas. Uma delas é “A mulher que passa”
A Mulher que passa
Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
(...)
Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida?
Para o que sofro não ser desgraça?
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!
(...)
Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.
A outra é “ Balada das meninas de bicicleta”
Balada das meninas de bicicleta
Meninas de bicicleta
Que fagueiras pedalais
Quero ser vosso poeta!
Ó transitórias estátuas
Esfuziantes de azul
Louras com peles mulatas
Princesas da zona sul:
As vossas jovens figuras
Retesadas nos selins
Me prendem, com serem puras
Em redondilhas afins.
Que lindas são vossas quilhas
Quando as praias abordais!
E as nervosas panturrilhas
Na rotação dos pedais:
Que douradas maravilhas!
Bicicletai, meninada
Aos ventos do Arpoador
Solta a flâmula agitada
Das cabeleiras em flor
Uma correndo à gandaia
Outra com jeito de séria
Mostrando as pernas sem saia
Feitas da mesma matéria.
Permanecei! vós que sois
O que o mundo não tem mais
Juventude de maiôs
Sobre máquinas da paz
Enxames de namoradas
Ao sol de Copacabana
Centauresas transpiradas
Que o leque do mar abana!
A vós o canto que inflama
Os meus trint'anos, meninas
Velozes massas em chama
Explodindo em vitaminas.
Bem haja a vossa saúde
À humanidade inquieta
Vós cuja ardente virtude
Preservais muito amiúde
Com um selim de bicicleta
Vós que levais tantas raças
Nos corpos firmes e crus:
Meninas, soltai as alças
Bicicletai seios nus!
No vosso rastro persiste
O mesmo eterno poeta
Um poeta – essa coisa triste
Escravizada à beleza
Que em vosso rastro persiste,
Levando a sua tristeza
No quadro da bicicleta.
Comentário
O poema “Balada das meninas de bicicleta” pertence à 2ª fase de Vinicius de Moraes. Quanto à forma, destaca-se o uso de
vocabulário simples e cotidiano e versos curtos. Quanto ao conteúdo, pode-se apontar o tema do cotidiano, em que se descrevem
simplesmente meninas andando de bicicleta, e o erotismo com que esse mesmo fato é visto pelo eu lírico.
Neste poema, o eu lírico usa a metalinguagem para se referir ao próprio poema e ao papel do poeta. Os dois trechos em que há
metalinguagem estão em “Me prendem, com serem puras / em redondilhas afins” e no sete versos finais do poema. No primeiro
caso, o eu lírico comenta a própria forma do poema, a redondilha maior, forma de sete sílabas poéticas, afirmando que são as
meninas que lhe inspiram a forma do poema. No segundo caso, o eu lírico define o poeta como alguém triste e que persegue a
beleza, afirmando mais uma vez que a beleza das meninas é que inspiraram o poema.
Tal idealização feminina culminará na canção “Garota de Ipanema”- canção mais popular do mundo.
GAROTA DE IPANEMA
OLHA que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela, a menina
Que vem e que passa
Num doce balanço
Caminho do mar...
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado
É mais que um poema
É a coisa mais linda
Que eu já vi passar..
Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha...
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo sorrindo
Se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor...
Pátria Minha
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!
(...)
Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
(...)
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
(...)
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes."
ComentárioEste poema vincula-se á tradição literária de cantar as belezas da pátria, firmada no Romantismo por Gonçalves Dias – Canção do
Exílio.Entretanto,como sempre fez no decorrer de sua obra poética, Vinícius retoma a herança estética para imprimir nela uma
marca própria.A estranha frase inicial-“A minha pátria é como se não fosse”- em que falta o predicativo do sujeito, significa a
recusa dos adjetivos altissonantes que cristalizaram ao substantivo pátria. É como se ele defendesse a tese de que a pátria não
tem os predicados que costumam atribuir a ela, por isso a recusa das palavras e expressões, como “florão”,”ostenta” e “lábaro”.,
presentes no Hino Nacional.Em vez disso, ele assume um tom de afetividade, com abundantes diminutivos, tratando sua terra
como uma criança, em um processo conhecido como “prosopopéia”, personificação ou antropomorfização.Entretanto ,essa visão
edulcorada não impede o poeta de enxergar os problemas sociais.Confirma esse aspecto a referência á pátria “tão pobrinha”.Por
isso, deve ser ressaltado, que, apesar de pertencente á segunda fase poética de Vinícius, em “Pátria Minha” ele trouxe de volta o
hábito de sua fase inicial; A utilização de versos livres extensos.
Balada do Mangue
Analise do poema Balada do Mangue de Vinicius de Moraes?
Vinicius de Moraes é
--------------------------------------…
Balada do Mangue
Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Loelia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilingüidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé.
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
**** perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabra, glúteas cafetinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de cafetinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!
Comentário
Mangues lembram Recife. O eu poético faz uma referência metafórica da vida das prostitutas que se embelezam inclusive mulatas
pintam os cabelos de loiros para atrair rapazes. Há uma nítida comparação das prostitutas com as flores venenosas chamadas no
primeiro verso de "flores gonocócitas" uma alusão à gonorréia. Isto pq, segundo o eu poético, tais mulheres eram transmissoras de
doenças venéreas. Na última linha de verso há uma crítica tb aos homens que as usam tb.
OBSERVE ÁS QUESTÕES RESOLVIDAS
(PUC-RS 2009) Para responder à questão 1, leia o trecho de “Operário em construção”, de Vinicius de Moraes, e as afirmativas,
preenchendo os parênteses com V para verdadeiro e F para falso.
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
O fragmento do poema “Operário em construção”, de Vinícius de Moraes, apresenta
( ) o papel do operário na construção das coisas e a importância da sua profissão.
( ) a consciência dos homens intelectuais sobre a importância do trabalho dos que empilham os
tijolos com suor e cimento.
( ) o conhecimento do operário de que o produto de seu trabalho modifica o mundo.
( ) o crescimento da consciência do operário, que o leva a perceber a dimensão de seu papel na
sociedade.
1. A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é:
a) V – F – F – V
b) V – F – V – V
c) F – V – F – V
d) V – V – F – F
e) F – F – V – F
Leia o poema a seguir, de Vinicius de Moraes, para responder às questões 2 e 3:
A volta da mulher morena
Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo
E estão me despertando de noite.
Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena
Eles são maduros e úmidos e inquietos
E sabem tirar a volúpia de todos os frios.
Meus amigos, meus irmãos, e vós que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos.
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braços da mulher morena
Eles são lassos, ficam estendidos imóveis ao longo de mim
São como raízes recendendo resina fresca
São como dois silêncios que me paralisam.
Aventureira do Rio da Vida, compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a água escorrendo fria.
Branca avozinha dos caminhos, reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena está encurvando os meus ombros
E está trazendo tosse má para o meu peito.
Meus amigos, meus irmãos, e vós todos que guardais ainda meus últimos cantos
Dai morte cruel à mulher morena!
2. A partir da leitura do poema, é possível afirmar que:
a) ele pertence à 1ª fase do poeta, com a presença de linguagem simples e forte erotismo.
b) ele pertence à 1ª fase do poeta, em que a mulher representa o pecado por provocar o desejo no eu lírico.
c) ele pertence à 2ª fase do poeta, em que a mulher é vista de forma mais material e há a consciência do pecado.
d) ele pertence à 1ª fase do poeta, em que os temas transcendentais predominam e a mulher é vista como uma espécie de anjo.
e) ele pertence à 2ª fase do poeta, com a presença do soneto e da indagação sobre as contradições do amor.
3. Em relação à mulher, nesse poema, pode-se afirmar que:
a) ela é vista de maneira espiritualizada e idealizada.
b) ela é descrita como motivação do pecado, mas, apesar disso, o eu lírico mantém-se alheio a seus encantos.
c) ela é vista com naturalidade, e o desejo sexual não apresenta problema para o eu lírico.
d) ela representa o pecado e precisa ser eliminada para que o eu lírico encontre a paz.
e) ela é inalcançável, daí provém a angústia do eu lírico.
QUESTÕES DISCURSIVAS
1. Leia o poema a seguir, de Vinicius de Moraes, e responda ao que se pede.
A mulher na noite
Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste.
A chuva batia nas vidraças e escorria nas calhas – vinhas andando e eu não te via
Contudo a volúpia entrou em mim e ulcerou a treva nos meus olhos.
Eu estava imóvel – tu caminhavas para mim como um pinheiro erguido
E de repente, não sei, me vi acorrentado no descampado, no meio de insetos
E as formigas me passeavam pelo corpo úmido.
Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o meu peito
E muito ao longe me parecia ouvir uivos de lobas.
E então a aragem começou a descer e me arrepiou os nervos
E os insetos se ocultavam nos meus ouvidos e zunzunavam sobre os meus lábios.
Eu queria me levantar porque grandes reses me lambiam o rosto
E cabras cheirando forte urinavam sobre as minhas pernas.
Uma angústia de morte começou a se apossar do meu ser
As formigas iam e vinham, os insetos procriavam e zumbiam do meu desespero
E eu comecei a sufocar sob a rês que me lambia.
Nesse momento as cobras apertaram o meu pescoço
E a chuva despejou sobre mim torrentes amargas.
Eu me levantei e comecei a chegar, me parecia vir de longe
E não havia mais vida na minha frente.
Rio de Janeiro, 1935
a) Comente a que fase da obra de Vinicius de Moraes pertence esse poema e destaque duas características dessa fase, uma quanto
à forma e outra quanto ao conteúdo do poema.
O poema pertence à 1ª fase da obra do poeta. Quanto à forma, pode-se destacar os versos longos e a linguagem abstrata e
alegórica, sobretudo com vocabulário pertencente à natureza. Quanto ao conteúdo, encontra-se nesse poema a angústia do eu
lírico, dividido entre o amor carnal e a sensação do pecado.
b) Neste poema, há uma metáfora do desejo amoroso. Explique essa metáfora e comente os sentimentos do eu lírico que ela
revela.
A metáfora do desejo amoroso está nos elementos da natureza, principalmente na descrição do ato sexual, que é sentido como
atividade dos animais, como em “os insetos se ocultavam no meu ouvido” e “grandes reses lambiam-me o rosto”. O eu lírico
revela sentimentos de angústia a partir dessas metáforas e, por fim, associa o gozo sexual à morte, “E não havia mais vida na
minha frente”.
3. Leia o poema a seguir, de Vinicius de Moraes, e responda ao que se pede.
Soneto de véspera
Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?
Que beijo teu de lágrimas terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?
Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou – fria de vida
Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...
Oxford, 1939
a) Comente o poema acima quanto à forma e ao conteúdo tendo em vista a obra poética de Vinicius de Moraes.
O poema em questão é um soneto, forma que Vinicius de Moraes cultivou em muitos momentos, a partir dos modelos de
Camões e Shakespeare. Quanto ao conteúdo, pode-se destacar o questionamento acerca do relacionamento amoroso, também
muito comum nos sonetos do poeta.
b) Relacione o título do poema à angústia sentida pelo eu lírico.
O título do poema “Soneto de véspera”, relaciona-se à angústia sentida pelo eu lírico ao antecipar a volta da mulher amada que
estivera longe. Dessa maneira, ele mostra-se aflito por perceber que se acostumara à ausência e por não saber o que sentir na
presença da mulher amada. O soneto demonstra uma característica marcante da obra de Vinicius, sobretudo do soneto, em que
a relação amorosa é analisada em suas contradições.
A rosa de Hiroxima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada
Comentário:
Numa postura humanista, em que cria figuras com fortes tintas, o poeta canta contra a guerra. Usando o verbo "pensar" no
imperativo ("pensem"), "convida-nos" a todos a refletir diante das atrocidades causadas pela guerra; e, principalmente, a causada
pelo mais novo rebento gerado pelo ser humano: a bomba atômica. A culpa não é apenas de um indivíduo ou outro. A culpa, a
responsabilidade da destruição não é de um país X ou Y, mas de toda a humanidade. O que está em jogo aqui é a própria
existência, ou melhor dizendo, a própria sobrevivência humana.
Os sonetos
Ao escrever sonetos, Vinicius de Moraes soma-se à distinta lista de poetas que versejaram em língua portuguesa, tais como
Camões, Gregório de Matos, Bocage, Antero de Quental, Olavo Bilac, entre outros, e que escolheram como forma de expressão
esta composição poética clássica.
Mas não é só; o motivo de tal escolha diz muito, também, sobre a atitude do poeta diante do fazer poético. O soneto, forma
literária clássica fechada, é uma composição de quatorze versos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos, seguindo
variavelmente os seguintes esquemas de rima: abab / abab / ccd / ccd; abba / abba / cde / cde ou abba / abba / cdc / dcd., sendo
que o metro mais utilizado tem sido o decassílabo (com acento na 4ª, 7ª e 10ª). Por encerrar o conceito fundamental do poema, o
último verso constitui o que chamamos de "fecho de ouro" ou a "chave de ouro".
Tudo isso faz do soneto uma escolha formal lúcida para o poeta. Porque aí se observa a clareza e a concisão de linguagem, de
características clássicas. Com ela, o poeta mantém a expressão de um lirismo controlado, ou seja, o sentimento e a emoção líricos
contêm-se nos limites do equilíbrio e da harmonia. O poeta procura atenuar os impulsos do "eu", isto é, de sua subjetividade
particular, em favor de uma visão impessoal ou objetiva. Daí dizer que nos sonetos existe a luta de um "eu" que ama e um "eu" que
raciocina.
Soneto de separação
De repente do riso fez-se o pranto
1
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
Oceano Atlântico, a bordo do
Highland Patriot, a caminho da
Inglaterra, 09.1938
Comentário:
Este soneto, um dos mais populares de Vinícius, é quase todo composto num jogo antitético, tais como: riso X pranto; calma X
vento; triste X contente e próximo X distante. O emprego dessa figura de linguagem, ao longo do poema, revela as mudanças na
relação amorosa que se processam de uma forma abrupta e inesperada. O poeta utiliza um outro recurso, num belíssimo arranjo
de antíteses, para acentuar o dinamismo que caracteriza o poema: o emprego da forma verbal "Fez-se" e de sua forma contrária
"desfez". Esse dinamismo expresso no soneto revela, sob certo aspecto, a própria inconstância na vida amorosa de Vinicius.
VEJA UM EXERCÍCIO DE VESTIBULAR
SONETO DA SEPARAÇÃO
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
(Vinícius de Moraes. Poesia completa e prosa).
Este soneto, de um poeta e compositor contemporâneo, foi inserido em uma canção, e pode ser explorado para mostrar que a
Literatura não é estanque; pelo contrário, seus usos atravessam épocas e movimentos históricos. Das características de
movimentos literários citadas abaixo, indique a única que não está presente no poema.
A) O poema apresenta antíteses e outras figuras de estilo, típicas da poesia barroca.
B) O soneto tem em comum com a poesia simbolista a expressão da realidade de maneira vaga e imprecisa, e a musicalidade, com
aliterações e assonâncias.
C) A vertente lírica do Romantismo, com idealização e exacerbação dos sentimentos, está presente no tratamento temático da dor
da separação.
D) O poema é um exemplo da perfeição formal, de rima e métrica, muito valorizadas no Parnasianismo.
E) Do Modernismo, corrente a que pertence o poeta, o poema apresenta, além da linguagem coloquial, expressões de humor.
Resposta
Vinícius de Moraes, poeta modernista da Geração de 30, assinalava que sua obra consistia em duas fases: a primeira,
transcendental, freqüentemente mística, é resultante de sua fase cristã; a segunda fase assinala a explosão de uma poesia mais
próxima do mundo material, com a difícil, mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos. O tema principal desse
momento foi o amor em suas múltiplas manifestações: saudade, carência, desejo, paixão, espanto, separação.
Diferentemente da primeira fase, em que o escritor utilizava poemas longos, com versos extensos, em linguagem abstrata e
declamatória, nesta segunda fase, Vinícius, embora aprecie o soneto e seu teor clássico, adere às idéias dos modernistas de 22,
sendo aberto a novas propostas e incorporando características de diversos estilos de época ao seu texto, o que verificamos em
“Soneto de separação” nas seguintes alternativas:
a) ao longo do poema, está presente a oposição entre o passado e presente (antíteses): “branco como a bruma” – (comparação) –
(Barroco);
b) presença de aliterações: “branco”, “bruma” e de assonâncias: /e/ ; /o/, linguagem vaga: “da calma fez-se o vento” (Simbolismo);
c) verifica-se a vertente romântica a partir do próprio título: “Soneto da separação” – no texto, há descrições desse momento de
intensa dor;
d) o poema está ligado à tradição clássica (Parnasianismo), uma vez que faz uso do soneto, do verso decassílabo e apresenta
sintaxe e vocabulário apurados;
e) são improcedentes no textos as características modernistas: a utilização de uma linguagem coloquial, como foi dito acima,
também não se verifica o humor na mensagem, o eu-lírico demonstra dor em função da separação.
Resposta E
Soneto de fidelidade
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
2
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Estoril - Portugal, 10.1939
Comentário: Este é um dos mais conhecidos e apreciados sonetos de Vinicius de Moraes. Observam-se nele a clareza e a concisão
de linguagem, características clássicas que substituem a tendência alegórica e o derramamento declamatório dominantes na fase
inicial do poeta.
Poética
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.
Nova York, 1950
Comentário:
Segundo Carlos Felipe Moisés (ver bibliografia), a sequência vertical da primeira estrofe manhã-dia-tarde-noite obedece a um
encadeamento lógico: a passagem natural do tempo. Tal encadeamento é rompido na linha horizontal, já no primeiro verso
("escureço" se opõe à "manhã") e ganha ambiguidade no quarto, em que "ardo" conota claridade, em oposição ao escuro da noite,
mas, sobretudo, ganha passionalidade (arder, ardor de amor). Isso aproxima parcialmente os extremos, dia e noite, e sugere a
passagem do tempo como sucessão de contrates, negação de expectativas, em um clima de intenso subjetivismo (1ª pessoa).
Na segunda estrofe, numa atitude de liberdade, de anticonvencionalismo, o eu lírico diz-se guiar pelo "este" e não pelo "norte"
como todos fazem. O último verso da última estrofe privilegia o circunstancial (não é "aquilo que" acontece, mas o "momento
quando" acontece que realmente importa), valorizando a disponibilidade do instante presente, para que seja intensamente vivido.
Observando o aspecto formal do poema, parece haver ali um soneto renovado. Isso confirma a valorização da liberdade e do
individualismo, da insubordinação e da disponibilidade, também para o ato de criação poética.
Curiosidade
Na saída de um show em Portugal, diante de estudantes salazaristas que protestavam contra ele na porta do teatro,
Vinicius declama os versos de "Poética" (De manhã escureço / De dia tardo / De tarde anoiteço / De noite ardo). Um dos jovens
tirou a capa do seu traje acadêmico e a colocou no chão para que Vinicius pudesse passar sobre ela - ato imitado pelos outros
estudantes e que, em Portugal, é uma forma tradicional de homenagem acadêmica.
Elegia desesperada
(O DESESPERO DA PIEDADE)
Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.
Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.
Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.
Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.
Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.
Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe aonde vão...
Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias
Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!
Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.
Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.
Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.
E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende piedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!
Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta – que o homem não presta, não presta, meu Deus!
Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.
Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.
Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.
Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.
Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.
Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.
Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.
Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.
Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.
Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.
Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!
Oxford, 1938
Comentário – Esse poema faz parte de Cinco Elegias que Vinicius de Moraes inseriu entre os textos da 1ª e da 2ª fase de
sua poesia.Como obra de transição, apresenta uma mistura dos elementos dos dois períodos poéticos.Da fase inicial,por
exemplo,há o verso livre extenso que faz lembrar versículos bíblicos. Há também o tom religioso, pois se trata de prece.Já
da 2ª fase pode ser destacado o coloquialismo da linguagem- não há mais o tom altissonante quase sonambúlico,como se
o poeta estivesse em transe- e o prosaico, o cotidiano das cenas apresentadas, tão próximas do banal. Soma-se a essas
características o humor. Por fim, é preciso notar nessa elegia a solidariedade que o eu poemático expressa, o que indica
que abandonou sua fase narcisista e está se abrindo para o mundo, a dedicação a todas as mulheres, ingrediente
essencial na poesia de Vinicius, e a enumeração labiríntica de fatos sugerindo uma idéia de totalidade que estará
presente em um dos melhores poemas do autor: “O dia da criação”.
A última elegia (V)
Greenish, newish roofs of Chelsea
Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis
Forlornando baladas para nunca mais!
Ó imortal landscape
no anticlímax da aurora!
ô joy for ever!
Na hora da nossa morte et nunc et semper
Na minha vida em lágrimas!
uer ar iú
Ó fenesuites, calmo atlas do fog
Impassévido devorador das esterlúridas?
Darling, darkling I listen...
"... it is, my soul, it is
Her gracious self..."
murmura adormecida
É meu nome!...
sou eu, sou eu, Nabucodonosor!
Motionless I climb
the wa
t
e
r
Am I p
i
Am I p
e
Am I s
a Spider?
a Mirror?
an X Ray?
No, I’m the Three Musketeers
rolled in a Romeo.
Vírus
Comentário- Produzido quando Vinícius esteve na Inglaterra a estudo (há um sentimento de expatriado , largado no mundo), esse
talvez seja o seu texto mais ousado , mais moderno e mais inventivo.- inventividade linguística
A manhã do morto
0 poeta, na noite de 25 de fevereiro de 1945, sonha
que várias amigos seus perderam a vida num desastre
de avião, em meio a uma inexplicável viagem para São
Paulo.
Noite de angústia: que sonho
Que debater-se, que treva. ...é um grande avião que leva
amigos meus no seu bojo...
...depois, a horrível notícia: FOI UM DESASTRE
MEDONHO
A mulher do poeta dá-lhe a dolorosa nova às oito da
manhã, depois de uma telefonada de Rodrigo M. F. de
Andrade.
Me acordam numa carícia... O que foi que aconteceu?
Rodrigo telefonou: MÁRIO DE ANDRADE MORREU.
Ao se levantar, o poeta sente incorporar-se a ele o
amigo morto.
Ergo-me com dificuldade
Sentindo a presença dele
Do morto Mário de Andrade
Que muito maior do que eu
Mal cabe na minha pele.
Escovo os dentes na saudade
Do amigo que se perdeu
Olho o espelho: não sou eu
É o morto Mário de Andrade
Me olhando daquele espelho
Tomo o café da manhã: Café, de Mário de Andrade.
Não, meu caro, que eu me digo
A necessidade de falar com o amigo denominador-comum, Pensa
e o ecocom serenidade
de
Busca o consolo do amigo
Manuel Bandeira.
Rodrigo M. F. de Andrade
Telefono para Rodrigo
Ouço-o; mas na realidade
A voz que me chega ao ouvido
É a voz de Mário de Andrade.
0 passeio com o morto
Remate de males
Gesto familiar
E saio para a cidade
Na canícula do dia
Lembro o nome de Maria
Também de Mário de Andrade
Do Poeta Mário de Andrade
Com grande dignidade
A dignidade de um morto
Anda a meu lado, absorto
O poeta Mário de Andrade
Com a manopla no meu ombro.
Goza a delícica de ver
Em seus menores resquícios.
Seus olhos refletem assombro. Depois me fala: Vinicius
Que ma-ra-vilha é viver!
A cara do morto
Olho o grande morto enorme
Sua cara colossal
Nessa cara lábios roxos
E a palidez sepulcral
Específica dos mortos.
Essa cara me comove
De beatitude tamanha.
Chamo-o: Mário! ele não ouve
Perdido no puro êxtase
Da beleza da manhã.
Mas caminha com hombridade
Seus ombros suportam o mundo
Como no verso inquebrável
De Carlos Drummond de Andrade
E o meu verga-se ao defunto…
O eco de Pedro Nava
Assim passeio com ele
Vou ao dentista com ele
Vou ao trabalho com ele
Como bife ao lado dele
O gigantesco defunto
Com a sua gravata brique
E a sua infantilidade.
À tarde o morto abandona subitamente
o poeta para ir enterrar-se
Somente às cinco da tarde
Senti a pressão amiga
Desfazer-se do meu ombro...
Ia o morto se enterrar
No seu caixão de dois metros.
Não pude seguir o féretro
Por circunstâncias alheias
À minha e à sua vontade
(De fato, é grande a distância
Entre uma e outra cidade...
Aliás, teria medo
Porque nunca sei se um sonho
Não pode ser realidade).
Mas sofri na minha carne
O grande enterro da carne
Do poeta Mário de Andrade
Que morreu de angina pectoris:
Vivo na imortalidade.
Operário em construção
Epígrafe
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo
será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas
E assim o operário ia
Onde antes só havia chão.
Com suor e com cimento
Como um pássaro sem asas
Erguendo uma casa aqui
Ele subia com as casas
Adiante um apartamento
Que lhe brotavam da mão.
Além uma igreja, à frente
Mas tudo desconhecia
Um quartel e uma prisão:
De sua grande missão:
Prisão de que sofreria
Não sabia, por exemplo
Não fosse, eventualmente
Que a casa de um homem é um templo
Um operário em construção.
Um templo sem religião
Mas ele desconhecia
Como tampouco sabia
Esse fato extraordinário:
Que a casa que ele fazia
Que o operário faz a coisa
Sendo a sua liberdade
E a coisa faz o operário.
Era a sua escravidão.
De forma que, certo dia
De fato, como podia
À mesa, ao cortar o pão
Um operário em construção
O operário foi tomado
Compreender por que um tijolo
De uma súbita emoção
Valia mais do que um pão?
Ao constatar assombrado
Tijolos ele empilhava
Que tudo naquela mesa
Com pá, cimento e esquadria
- Garrafa, prato, facão Quanto ao pão, ele o comia...
Era ele quem os fazia
Mas fosse comer tijolo!
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
Comentário- Este poema, produzido no final da carreira de Vinícius, mostra que a abertura para a solidariedade provocou no poeta
a simpatia pelos ideais socialistas, o que se percebe na representação da luta de classes a partir da 5ª estrofe do trecho acima
apresentado e principalmente na valorização da consciência de classe, caminho essencial para a revolução libertadora do
proletariado. Vale a pena lembrar que a forma da redondilha e o aspecto dramático-narrativo do texto autorizando a considerá-lo
uma balada.É interessante ressaltar, ainda, que a herança católica do poeta, anunciada na epígrafe bíblica no texto, estabelece um
diálogo entre cristianismo e marxismo, igualando o martírio engrandecedor de Jesus ao martírio do trabalhador.Assim,Vinícius,
sempre antenado no mundo presente, assume os ideais do setor progressista da Igreja Católica que tanta atenção chamou nos idos
dos anos 60 e70 do século XX.
Leia o trecho de “Operário em construção”, de Vinicius de Moraes, e as afirmativas, preenchendo os parênteses com V para
verdadeiro e F para falso.
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

Documentos relacionados

Antologia Poética

Antologia Poética Dessa forma, os poemas da primeira fase revelam os impasses do jovem que busca o sublime. Inicialmente, reiteram-se referências ao branco (pureza) e a figuras femininas etéreas. Mas, aos poucos, ...

Leia mais