TCC Gabriela - Faculdade Alfredo Nasser

Transcrição

TCC Gabriela - Faculdade Alfredo Nasser
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FACULDADE ALFREDO NASSER
INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCACÃO
CURSO DE LETRAS
A VOZ DA DOR NA CONSTRUÇÃO POÉTICA DE FLORBELA
ESPANCA
Gabriella Pinheiro de Macedo
APARECIDA DE GOIÂNIA
2010
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GABRIELLA PINHEIRO DE MACEDO
A VOZ DA DOR NA CONSTRUÇÃO POÉTICA DE FLORBELA
ESPANCA
Trabalho de Conclusão do Curso de Letras,
apresentado ao Instituto Superior de Educação da
Faculdade Alfredo Nasser, sob orientação da
Profª. Dr. Michele Giacomet, como parte dos
requisitos para a conclusão do curso de Letras
APARECIDA DE GOIÂNIA
2010
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FOLHA DE AVALIAÇÃO
A VOZ DA DOR NA CONSTRUÇÃO POÉTICA DE FLORBELA
ESPANCA
Aparecida de Goiânia, ____ de dezembro de 2010.
EXAMINADORES
Orientadora – Profª. Dr. Michele Giacomet – Nota: ______ / 70
Drº. Ademir Luiz – __________________________ – Nota: ______ / 70
Ms. Carlos Andrade Faria Filho – _________________________– Nota: ______ / 70
Média parcial – Avaliação da produção do Trabalho: ______ / 70
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A VOZ DA DOR NA CONSTRUÇÃO POÉTICA DE FLORBELA ESPANCA
Gabriella Pinheiro de Macedo
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a dor na construção poética de Florbela Espanca. Por isso se
faz necessário analisar alguns de seus poemas inseridos em Charneca em Flor, Livro Sóror Saudade e Livro de
Mágoas. O estudo tem também o intuito identificar se existem alguns traços biografemático em sua obra e quais
representações da dor podem ser encontradas. Para melhor compreensão do tema, é relevante conhecer a vida e a
obra de Florbela, tanto as relações de sua vida particular, quanto as suas influências culturais, particularmente as
literárias que são a base para sua construção poética. Para a análise do trabalho é necessário pontuar alguns
conceitos, dentre eles, o termo biografema, Geração Presencista e Literatura Viva, movimento os quais Florbela
fazia parte. A partir desta análise, verificar-se á a existência de elementos biografemático ligados à dor e ao
amor, presentes em sua construção poética.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher. Sociedade. Poesia. Amor. Dor. Biografema
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo a obra poética de Florbela Espanca, de
origem portuguesa e cuja produção se deu nas primeiras décadas do século XX. A referida
autora explorou várias formas literárias, entre elas contos, poesias, diários e ensaios críticos.
Porém, sua preferência recaiu sobre a poesia, na forma de soneto, com predominância de
características do gênero lírico. São poesias em que não se cristalizam personagens nítidos e
que, ao contrario, uma voz central quase sempre um EU - exprime seu próprio estado da alma.
O objetivo principal desse artigo é fazer uma análise do eu poético que se apresenta
nas poesias de Florbela Espanca e que, na maioria das vezes, estão ligados à temática da dor,
decorrente de uma história de vida conturbada, que a nosso ver, se volta para um lado obscuro
e melancólico.
Neste estudo, procura-se compreender a voz da dor em sua construção
poética, assim como as oscilações feitas pelo “eu lírico”. Assim como também é nosso
objetivo analisar a autora como mulher bem a frente do seu tempo, tanto no que concerne aos
posicionamentos estéticos/literários, quanto ideológicos.
A sua condição de mulher foi um enorme impedimento ao desempenho de Florbela.
Num tempo em que apenas algumas liberdades começam a ser reconhecidas às mulheres,
Florbela teve de enfrentar um mundo dominado por homens, que mostrava muito pouca
aceitação às mulheres que se destacavam, por exemplo, nas artes ou na literatura. Acaba por
reconhecer que se sente presa ao casamento, um sintoma de que, de fato, Florbela nasceu
numa época que não era a sua, regida por normas a que dificilmente a poetisa conseguiu
adaptar. Sendo considerada, mesmo depois de morta, bandeira e símbolo dos movimentos
políticos e feministas.
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Para a composição desse trabalho, primeiramente, será feito a leitura de algumas
obras críticas que esclarecem um pouco mais sobre o assunto abordado. Logo em seguida,
será feita a escolha de alguns poemas representativos para nos guiar em nossa temática, os
quais serão analisados para tentarmos chegar ao objetivo do nosso estudo: analisar a presença
da dor em seus poemas, como também identificar nesses poemas uma mulher sempre a frente
do seu tempo.
Analisaremos alguns poemas presentes em Livro de Sóror Saudade, Livro de
Mágoas e Charneca em Flor. Em Livro Sóror Saudade a subjetividade é configurada de uma
forma mais sufocada, pois, a poetisa encontra-se ainda submissa aos valores culturais de sua
época. Em tais poemas podemos ver uma poesia marcada pela dor, pelo desejo e a busca de
uma felicidade nunca encontrada.
Já em Charneca em Flor podemos perceber uma maior ousadia do “eu lírico” e,
consequentemente, poder de luta contra as tradições sócio-culturais de seu meio. Nesta obra, a
voz lírica irá possibilitar um posicionamento de poder e grandeza para o equilíbrio da própria
autora e para o equilíbrio tenso com o mundo a sua volta.
A razão da escolha desse tema se deu a partir da possibilidade de estabelecer um elo
entre a vida de Florbela e a sua construção poética. Para estabelecer uma perspectiva de
análise será importante conhecer a poetisa em seu contexto vivencial, tanto no que diz
respeito a sua vida privada, quanto ao que diz respeito às influências culturais,
particularmente as literárias, que funcionam como base para sua construção poética
estabelecendo uma relação com a teoria biografemática. Para tanto, colocaremos também em
evidencias a Geração Presencista e o Modernismo de Portugal movimentos dos quais
Florbela participa.
1. CONHECENDO A “BELA” FLORBELA ESPANCA
No inicio da madrugada de 8 de dezembro de 1894 nasce, em Vila Viçosa (Alentejo)
ao norte de Portugal, uma grande escritora que marcaria o século XX com suas poesias e com
a sua história de vida.
Florbela D`Alma da Conceição Espanca, filha de Antonia da Conceição Lobo, uma
mulher que trabalhava como empregada doméstica para o republicano João Maria Espanca,
embora nos registros da Igreja Nossa Senhora da Conceição seu pai apareça como incógnito.
O pai de Florbela trabalhava como sapateiro e antiquário casado com Mariana
Inglesa que se torna madrinha de batismo de Florbela. João Espanca mantinha uma relação de
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adultério com Antonia da Conceição, fato que se deu devido à esterilidade de sua esposa
Mariana. De acordo com costumes medievais, nas zonas rurais portuguesas, quando a mulher
não pudesse ter filhos seu esposo poderia ter filhos com outra pessoa, e esses filhos seriam
levados para o lar oficial e seriam criados como filhos de matrimônio oficial.
O romance de Antônia Lobo com João Espanca durou por volta de 7 anos, resultando
no nascimento de mais um filho a quem chamara Apeles que nasceu dia 10 de março de 1897.
Figura muito importante na vida de Florbela. Ambos foram criados pelo pai e pela madrasta
desde o nascimento, e registrados como filhos de pai incógnito.
Em outubro de 1899, Florbela começa a frequentar o ensino primário em Vila
Viçosa. Em 11 de novembro de 1903, aos sete anos de idade, Florbela escreve sua primeira
poesia “A vida e a morte” que ela oferece, sobretudo ao pai e ao irmão, a quem ela dedica
todo seu carinho e a sua atenção.
Em 1908 Florbela entra no Liceu de Évora e nesse mesmo ano morre sua mãe,
Antonia da Conceição, aos vinte e nove anos de idade. Após esse fato sua família muda-se
para Évora para facilitar sua permanência nos estudos até 1912.
Durante sua mocidade teve três namorados, com um deles, José, Florbela criou uma
relação sentimental profunda da qual, confessaria mais tarde nunca se terá refeito: “Fizeramse ruínas todas as minhas ilusões e, como todos os corações verdadeiramente sinceros e
meigos, despedaçou-se o meu para sempre”. (RUI GUEDES, 2000, p. 10)
Com dezenove anos, em 1913, casou-se com Alberto de Jesus Silva Moutinho,
colega de escola, casamento que não deu muito certo. Florbela se dedicava muito aos estudos
e à cultura, enquanto seu esposo adormecia durante a leitura que ela fazia de seus versos.
Apesar das dificuldades financeiras, depois de um ano o casal muda-se para Redondo, na
Serra de `Ossa, onde abre um colégio e Florbela passa lecionar. Em julho de 1917 voltam para
Évora, onde Florbela conclui seu curso de Letras. Aos poucos seu casamento foi se
desfazendo, acabando quando a poetisa decide se mudar para Lisboa para fazer faculdade de
Direito e seu esposo se recusa a acompanhá-la. Dentre os trezentos e quarenta e sete alunos
inscritos, ela é uma das quatorze mulheres. Situação bem diferente na época, pois o curso de
direito era tradicionalmente frequentado por rapazes e não por moças.
No ano de 1919 Florbela publica sua primeira obra, o Livro de Mágoas e se muda
para Quelfes, próximo a Olhão, depois de um aborto involuntário. Em 1921 sai o divórcio de
Florbela e Alberto Moutinho. Nesse mesmo ano Florbela se casa com o alferes da artilharia da
Guarda Republicana, Antônio José Marques Guimarães e se mudam para Matosinhos. Mas
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sua formação machista e seu temperamento forte não o deixam ver Florbela como pessoa,
nem como artista.
Em 1923 é publicado o Livro Sóror Saudade, um dos principais livros de sonetos que
irá consolidá-la como grande sonetista da Literatura Portuguesa. Três anos e meio depois do
casamento Florbela Espanca separa-se de Antônio Guimarães e desabafa:
Sofri todas as humilhações, suportei todas as brutalidades e grosserias, resignei-me a
viver no maior dos abandonos morais, na mais fria das indiferenças; mas um dia
chegou em que me lembrei que a vida passava, que a minha bela e ardente mocidade
se apagava, que eu estava a transformar-me na mais vulgar das mulheres, e por
orgulho,e mais ainda por dignidade,olhei de frente, sem covardias nem franquezas,o
que aquele homem estava a fazer de minha vida, e resolvi liquidar tudo e
simplesmente, sem um remorso, sem a mais pequena mágoa. Estou a divorciar-me e
para me casar novamente, se a lei mo permitir, ou para viver assim, se a moralidade
do Código o exige. (ESPANCA, 2000, p.11).
Em 1925 Florbela casa-se pela terceira vez, agora com o médico Mário Lage, homem
sensível às obras poéticas de sua esposa. Quando tudo parecia está melhorando em sua vida,
uma tragédia acontece com Apeles, seu único irmão querido, com quem a poetisa tivera uma
relação muito intensa, e que era seu ponto de apoio.
Em 6 de julho de 1927 falece Apeles por meio de acidente, jogando se no Tejo, num
hidroavião Hanriot 33, em frente ao porto Brandão. Morte que causou em Florbela uma
fortíssima destruição, o maior choque da sua vida. Após esse acontecimento Florbela nunca
mais foi à mesma.
Após a morte de seu irmão, ela escreve um livro de contos com o titulo As Máscaras
do Destino. Em julho de 1928, Florbela escrevia no prefácio do seu livro As Máscaras do
Destino.
Terminei há pouco um livro de contos que tenciono publicar no próximo inverno,
livro que me deu muito trabalho e muita canseira, principalmente depois do
formidável choque da morte do meu estremecido irmão, do meu morto mais
lembrado que nenhum vivo. (ESPANCA, 2000, p.171)
Podemos perceber nesse livro de contos uma lenta e incessante tentativa de trabalhar
o luto por seu irmão. É como se a escrita, para Florbela, funcionasse nesse caso, como uma
catarse, ou seja, como se escrever trouxesse o refúgio para sua alma, por meio de uma
descarga emocional provocada por um drama.
Com a morte do seu irmão Florbela desequilibrou o seu já frágil estado psicológico, e
nunca mais conseguiu dormir sem a ajuda de seus remédios, nunca mais riu, nunca mais
deixou seu luto. Em uma carta ao seu pai Florbela escreve:
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Morreu. Parece que morreu tudo, que ele não deixou cá ficar nada, parece que levou
tudo. A gente é muito forte, já que não endoidece nem morre depois dum pavor
assim. (ESPANCA, 2000, p.12).
Algum tempo depois Florbela descobre que seu marido mantinha um caso
homossexual com um protegido da Delegacia de Saúde de Matosinhos.
Logo depois dessa descoberta apaixona-se por um pianista, que logo ela descobre
também ter gostos homossexuais. Conheceu um ou dois hipotéticos pretendentes e mais tarde
ela é avisada que um deles é casado. Enfraquecida por tais episódios começa a desistir da
vida:
Tenho a impressão nítida de ter vindo de longe cumprir a pena do crime de ter
nascido. (...) a minha dolorosa experiência ensinou-me que sou só, que por mais que
a gente se debruce sobre o mistério duma alma nunca o desvenda que as palavras
nada exprimem do que se quer dizer e que um grande amor de que a gente faz o
sangue e os nervos e as próprias palpitações da nossa própria vida, não possam duma
pobre coisa banal e incompleta, imperfeita e absurda, que nos deixa iguais,
miseravelmente iguais ao que éramos dantes, ao que continuaremos a ser. Então...
para quê? (ESPANCA, 2000, p.13)
Todos esses acontecimentos acompanhados de tantos outros como: nunca ter sido
registrada pelo seu pai, fazendo isso apenas depois de 19 anos após sua morte, isso para
receber direitos autorais de suas obras; os sonetos que ela viu publicados e que foram
alterados, alguns por completo o que a entretecia muito; o fato de ser mulher e não poder
participar de reuniões literárias e artísticas entre outros.
Ainda mais o fato de ter assumido dois divórcios e três casamentos em uma época
em que a sociedade que era contra o divórcio. Nesse sentido, era criticada e rejeitada pela
sociedade. Sofreu muito com as calúnias, despertando-lhe um sentimento de desgosto e
insatisfação. Fez duas tentativas de suicídio com soporíferos, chegando a afirmar para sua
amiga que morreria no dia do seu aniversário, por ser o melhor presente que ela poderia dar a
si mesma.
Na noite de 7 para 8 de Dezembro de 1930, Florbela Espanca avisou a sua criada que
não ia dormir em seu quarto de casal, mas que iria dormir em outro, pois não queria ser
incomodada e precisava descansar, já que estava com insônia e queria dormir o máximo de
tempo possível.
Mas de manhã, foi encontrada tarde demais. Em sua mesinha de cabeceira estava um
copo de leite e dois vidros de soporíferos debaixo do colchão. Florbela morrera durante a
noite, provavelmente duas horas da manhã, à mesma hora que nascera, há 36 anos atrás.
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2. FLORBELA UMA MISTURA DE SENTIMENTOS
Florbela Espanca tem sido considerada uma das figuras mais importante da
Literatura Portuguesa. Suas poesias tiveram mais repercussão do que seus contos. Tais textos
poéticos são formados por um conjunto de sensibilidade intensa, por fortes impulsos eróticos
correspondentes a um verdadeiro diário íntimo onde a poetisa libera as lutas que trava dentro
de si, tentativa de conciliação entre tendências e sentimentos opostos. Trata-se de uma
poesia/confissão, onde podemos encontrar um lado sincero, toda a experiência sentimental de
uma mulher superior por seus dotes naturais, predestinados a uma espécie feminina.
Com o Livro Sóror Saudade, Florbela se encontra definitivamente como poetisa: o
soneto passa a exprimir de uma forma ideal o seu drama íntimo, numa forma cada vez mais
cuidada e clara. Erótica e emocionalmente insatisfeita, sofre porque a sociedade não
compreende o seu sofrimento e critica-a por querer a realização de seus desejos, que a
sociedade julga imorais. Como Massaud Moisés (1960 p.304) nos mostra: “O que a leva a
sofrer mais é a hipócrita condenação social, a ausência de um “outro”, ou melhor, do “Outro”
para satisfazer-lhe a ânsia de um amor mais forte que a vontade e as convenções burguesas”.
Já em Charneca em Flor e Reliquae temos sonetos menos comoventes do que
aqueles encontrados em Sóror Saudade que condiziam com o seu estado confessional. Vemos
em seus poemas, agora, um refinamento raro e uma força comunicativa, próprios de uma
sensibilidade e de uma voz feminina incomparável.
A respeito das características de Florbela, presentes em sua poesia, José Régio, um
dos fundadores do Presencismo e uma das poucas vozes masculinas que apoiaram Florbela
em sua divulgação e produção, afirma que:
Pelo seu apurado instinto de beleza formal, tão raro em mulheres até boas escritoras;
pelo seu excepcional temperamento e vibrante sensualidade; pela profundeza a sua
alma revolta e ardente; pelo poder de comunicação com que, nos seus versos, se
exprime o seu drama pessoal e o da paisagem que tão bem sentiu, Florbela Espanca
é a maior poetisa portuguesa de qualquer tempo e um dos grandes nomes da nossa
poesia moderna. (ALONSO, 1997, p.57)
Assim, segundo Régio, Florbela é dotada de uma beleza rara, uma escritora única,
ora demonstrando sua sensibilidade, ora sua sensualidade. Exigente como em Charneca em
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Flor por vezes otimista na possibilidade de reforma sócio-cutural, Florbela queria e esperava
ser reconhecida por sua sensibilidade feminina e artística.
Ao nos depararmos com as obras de Florbela Espanca, não nos deparamos com
apenas uma filiação poética. A poetisa escreve na época do primeiro Modernismo português:
o orphismo. Mas, podemos encontrar características de várias escolas literárias. A autora era
grande leitora de obras portuguesas e estrangeiras, por isso podemos observar varias alusões a
outros autores em sua obra poética, tais como Antônio Nobre, Camilo Pessanha, Camões e
Fernando Pessoa.
Segundo Saraiva e Lopes (1996, p.975) a poetisa coloca-se ao lado de Antônio
Nobre, na linha estética finissecular do Neo-Romantismo. Sua obra seria retorno aos temas
tais quais o saudosismo do passado histórico e popular português, a revisitação de seus
lugares de origem, a grande expansão sentimental de seu ego. Porém, no caso da poetisa, ela
se diferencia de Nobre devido à vontade de emancipação feminina nos movimentos literários
da mulher, exprimido uma imensa frustração com relação às opressivas tradições patriarcais.
Na poesia portuguesa, Florbela recebeu influências da coletânea de Antônio Nobre,
autor que escreveu Só. Sua admiração pelo poeta era tamanha que Florbela nomeia por várias
vezes o autor português nos seus sonetos, por abreviatura do seu nome, Anto, como no poema
chamado “ A Anto”:
A Anto !
Poeta da saudade, ó meu poeta qu`rido
Que a morte arrebatou com seu sorrir fatal,
Ao escrever o “Só” pensastes enternecido
Que era o mais triste livro deste Portugal (...)
(...) Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro triste! Achei teu coração... (...)
(ESPANCA, 1999, p. 104)
Antonio Nobre, um poeta hipersensível, voltado pra dentro de si e para suas
lembranças de infância, foi um poeta muito sentimental e emotivo, introspectivo. Passa a
viver sozinho em sua “torre de Anto”, real ou fictícia, entregue a uma solidão doentia. Sentiase melancólico e assombrado com a presença da Morte, ao mesmo tempo desejada e odiada.
Assim podemos perceber em ambos os escritores a dor, a angustiada solidão, a
espera pela morte, ora desejada, ora odiada, também presente na obra de Florbela, que sofre
influências do poeta.
Pelos fins do século XIX e início do século XX, Portugal sofre influências do NeoRomantismo o do Simbolismo-Decadentismo que rondava o continente europeu. O Neo-
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Romantismo e Simbolismo tinham como temas: sonhos evasivos, mística oculta e textos
cheios de símbolos. Esses movimentos já representavam um sentimento Pré-Modernista de
insatisfação.
O Simbolismo-Decadentista influenciou Florbela de uma forma marcante, pois
podemos encontrar em seus poemas uma necessidade quase desesperada de viver o instante, o
momento, o tempo efêmero, características associadas a esse movimento estético literário.
Esta temática, abordada por Florbela, aproxima-se da corrente Simbolista e, sobretudo da
poesia finissecular de Camilo Pessanha com sua grande sensibilidade em relação à morte e
aos símbolos da vida.
Camilo Pessanha e Florbela abordam o tema da Dor universal. Para a poetisa, este
sentimento é algo que naturalmente constitui a vida do ser humano, não havendo mais
remédio para tal mal. Cansada de suplicar por um novo amor, seus sentimentos pedem
repouso no solo e a morte passa a ser o seu novo anseio de vida: “Deixai entrar a Morte, a
iluminada, / A que vem para mim, para me levar, /Abri todas as portas par em par. / Como
assas a bater em revoada.” (Massaud Moisés,1996 p.254). Camilo Pessanha deseja fugir da
dor, mas acaba percebendo que “sem ela o coração é quase nada”, como escreve no soneto de
“Caminho”, a ponto de sentir saudades desta dor que em vão procura.
A poesia de Florbela Espanca corresponde a traços do simbolismo no sentido de
valorizar muito o campo metafísico apesar de sua poesia, por vezes, estar ligada à questões
sociais, podendo perceber em vários sonetos, a procura de uma espécie de descanso em
lugares além dos lugares físicos. Como vemos em seu poema X, presente em seu “Livro
Charneca em Flor”
X
Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;
Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!
E abrir os braços e viver a vida:
– Quanto mais funda e lúgubre a descida,
Mais alta é a ladeira que não cansa!
E, acabada a tarefa…em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança! (DAL FARRA,1999, p.265)
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Outra influência marcante na composição poética da poetisa é Antero de Quental.
Esta influência é bem visível na escolha do tema do panteísmo. Segundo Moisés (2001,
p.254), Florbela com uma forte e poderosa capacidade de amar, sendo incorrespondida,
dedica-se a Natureza, originando poemas de tons panteísticos, logo transformados em
melancolia, sentimento forte pela terra mãe, por Évora, pelos lugares da adolescência e por ela
própria.
Outra grande influência recebida por Florbela Espanca é a da poesia de Camões, que
é considerado pai da lírica. A poetisa usa elementos presentes nas poesias de Camões tais
como: sentimentos da dor de viver e a dor amorosa, o desconcerto do homem perante o
mundo. Um ponto que podemos perceber entre os escritores é o uso da figura de linguagem
(paradoxo) recorrente em alguns dos poemas deles, como neste poema do autor, que se refere
ao amor como algo ambíguo, antitético por excelência e paradoxal:
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.(...) (CAMÕES,1998, p.82)
Percebemos esse mesmo efeito na poesia florbeliana, como em seu soneto conhecido
como “Amar”.
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... Além...
Mais Este e Aquele, o Outro e a toda a
gente...
Amar! Amar! E nao amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!
Prender ou desprender? É mal? É
bem?(FLORBELA, 1999, p.232)
Camões usa as oposições, o jogo dos contrários para descrever a diversidade do
amor, enquanto Florbela Espanca usa-as para exprimir a sua incerteza e medo de amar,
aumentando assim o significado dos seus sentimentos.
Grande também foi sua relação com as vanguardas órphicas. De um modo geral,
vários poemas de Florbela Espanca se identificam com os de Fernando Pessoa,
principalmente, quando a temática gira em torno dos processos de auto reflexão. Pode se notar
como a poetisa sofria dos mesmos questionamentos filosóficos sobre a unidade do ser. Os
dois artistas sentem uma grande necessidade em localizar seu ego em uma ilusória
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tranqüilidade, em um porto seguro. Após estas possíveis filiações, podemos situar Florbela,
predominantemente, à estética em vigor em sua época: o Presencismo.
Em 1927, um grupo de estudantes como (José Régio, João Gaspar Simões e
Branquinho da Fonseca) funda, edita e dirige em Coimbra, a revista literária Presença, cuja
primeira edição sai a 10 de março de 1927. No primeiro número de Presença José Régio
esclarece o programa de ação da revista em seu artigo, cujo nome era “Literatura Viva”. Sobre
a revista Presença Massaud Moisés (2001, p.257) comenta:
Presença sintetiza o programa de ação intitulado “Literatura Viva”: “Em arte é vivo
tudo que é original. É original tudo que provem da parte mais virgem, mais
verdadeira e mais intima de uma personalidade artística. A primeira condição de
uma obra viva é, pois, ter uma personalidade e obedecer-lhe”. E mais adiante:
“pretendo aludir nessas linhas a dois vícios que inferioriza grande parte da nossa
literatura contemporânea, roubando-lhe este caráter de invenção, criação e
descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta
de sinceridade.” E por fim, como a procura de uma síntese programática: “eis que
tudo se reduz a pouco:literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria
vida,e que por isso mesmo passa a viver de vida própria.
Podemos identificar essa temática que José Régio chama de “Literatura Viva”
presente nos poemas de Florbela, onde o autor deixa bem claro: “Literatura Viva é aquela que
o artista insuflou sua própria vida”. Vários fatos reais da vida da poetisa são percebidos ao
longo de seus poemas: sua relação familiar, a perda de seu irmão, sua incessante busca por ser
amada, sua bandeira feminista, são eventos colocados no mundo ficcional que ela cria.
Podemos perceber o encontro do ideário da literatura Viva que já mencionamos. Mesmo
abordando questões de cunho social, nossa poetisa assim como os poetas presencistas,
começam sua produção a partir de uma grande mergulho em si mesmos.
3. TECENDO O FIO DA PRÓPRIA EXISTÊNCIA
Muito se tem dito e escrito sobre as relações entre vida e obra de Florbela. Ao que
parece, a vida deixaria traços na obra que poderiam servir de interpretações para a
compreensão do autor, ao passo que a obra poderia esclarecer pontos obscuros e silenciados
na vida da escritora. Silviano Brandão, sobre a importância de se conhecer a biografia de um
escritor, diz: “Não são simetrias entre vida e obra o que me interessa, talvez sejam
tangenciamentos, pontos de causa de escrita. [...] É o que obriga a escrita”. (SILVIANO
BRANDÃO, 2006, p. 25). Florbela sente uma necessidade de escrita, como se escrever fosse
uma válvula de escape dos seus problemas.
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Há fatos na vida de Florbela, que deixam seus rastros na obra. Não podemos negar
alguns importantes na sua vida, todos conhecidos por todos os biógrafos da escritora: primeiro
a fato de não ser criada com a mãe, nunca ter sido feliz no casamento, a morte de seu único
irmão e não ser aceita na sociedade como ela era. A falta da felicidade fez da dor, versos, que
marcaram muito sua produção poética.
Diante de tal recorrência a fatos biográficos que influenciaram a poesia de Florbela
Espanca recorremos à noção de biografema. O termo biografema encontra-se em Roland
Barthes por Roland Barthes (1975), em sua obra inaugural onde ele diz: “O narrador vive em
processo de leitura do ser e da escrita”. Para Barthes os fatos vivenciados por Florbela
Espanca são transformados em fatos de linguagem. A escrita de Florbela Espanca, marca o
seu estar -no- mundo, como ser e como poeta, encontrando-se pelas mesmas indeterminações,
a busca por conhecer a si mesmo.
Segundo José Régio anuncia no prefácio dos Sonetos ele anuncia que: Florbela é a
expressão poética de um caso humano.
A tê-la conhecido mais cedo, creio que me não teria passado despercebido o que
logo impõe a quem leia os versos de Florbela; a sua poesia é dos nossos mais
flagrantes exemplos de poesia viva. Quero dizer que toda nasce, vibra e se alimenta
do seu muito real caso humano; do seu porventura real caso humano (Régio, 1987,
p.11).
O ato vivencial e o criador destacam-se como laços unidos num mesmo fluxo
desejante. Augustina Bessa Luis (1982, p.10) complementa num outro prefácio, referindo aos
seus contos: “Os contos são como ela - símbolo de permanência no pensamento da terra, fio
de amor que mantém a sua magnética força, saudades de tudo que podia significar felicidades
e expansão de afecto”. Florbela Espanca produziu o que vivenciou como sujeito autor.
De acordo com Maria Lúcia Baltazar (1989, p.23) a proposta biografemática, ressalta
que a função do autor não pode existir em desvinculo com o sujeito (autor), e que os temas
abordados pelo autor têm a ver com os significantes que participam ou participaram do
universo pessoal do sujeito. Assim, “A função do Autor tem uma dupla determinação: por um
lado, as questões que um autor traz à baila, as coisas que pode colher, têm a ver como os
significantes pelos quais passa ou passou um sujeito” (Baltazar, 1989, p.23).
As poesias de Florbela Espanca se rendem aos apelos da existência, e se deixam
levar pelos dispositivos da Dor das emoções vividas. Não há identificação da vidaobra, que
descaracteriza o viver e o escrever, separadamente, porque se caracterizam unidos no mesmo
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fluxo desejante. Ás afinidades do ser e da escritura juntar-se - iam ao mesmo propósito de
decifração.
A vida e a produção inacabadas não permitiram que o signo de uma existência se
deixasse vir a captar o que de fato ela foi apenas deixaram a salvo as investidas do vir-a-ser.
Florbela Espanca tinha um espírito diferenciado pela sensibilidade incomum, sua poesia era
tecida na alma como uma bela música que toca o espírito, escritora de suavidades e
derramamentos de apelos que se dão no limite de uma alma atormentada. Como a própria
Florbela escreve em um dos seus monólogos, como se fizesse um apelo para conhecer a si
mesmo ou para encontra-se no mundo:
Quando morrer, é possível que alguém ao ler estes descosidos monólogos, leia o que
sente sem saber dizer, que essa coisa tão rara neste mundo- uma alma- se debruce
com um pouco de piedade, um pouco de compreensão em silêncio, sobre o que eu
fui ou julguei a ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me. (NORONHA, 2001,
p.13)
A poética florbeliana não se afasta da emoção, transformando os sentimentos como
um elo com a escrita do ato poético. Onde podemos ver os sentimentos fazendo parte da
gênese criadora. Como se a artista transferisse o viver e o escrever um para o outro.
Segundo Augustina Bessa Luis (1979, p. 24) Florbela se utiliza de seus sentimentos
para criar um antimundo protetor através dos seus versos. Procura através do elemento
mágico da poesia proteção contra o mundo exterior. Registra em versos o que lhe era doloroso
viver, sentidos por ela como o sentimento da tragédia de existir. “Toda a vida de Bela decorre
entre o perigo da afecto, da ligação com as pessoas e as coisas, e tenta furta-se a elas pela
fixação num objecto, que é a sua forma poética” (Bessa-Luis, 1979, p.14).
De acordo com Catherine Dunas (1997, p.204) a obra de Florbela é marcada pela
imagem da gestação, ou seja, a poesia é absorvida pela própria poética da romancista biógrafa que insufluou-se nesta mesma poética. Florbela viveu e escreveu em busca do
conhecer-se, personagem principal de uma poética em que a vida participa sem disfarces,
essencialmente como estratégia escritural. A poetisa escreve como se estivesse tecendo os fios
da sua própria existência.
4. A DOR COMO FORMA DE INSPIRAÇÃO
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Uma característica marcante nos poemas de Florbela Espanca é a temática da Dor.
Críticos e estudiosos tem destacado a recorrência da dor como característica mais expressiva,
que dá aos poemas uma dimensão de sofrimento e tédio. Sentimentos resultantes do conflito
existencial
José Rodrigues de Paiva faz referencia ao neo-romantismo de Florbela, em que
traços do simbolismo, referindo-se a seu subjetivismo doloroso são marcantes em suas poesias
como certo estado de tédio, angústia, abatimento e dor. Podemos perceber a presença da dor
de forma explicita, nos títulos de suas obras publicadas em vida: Livro de Mágoas, Livro
Sóror Saudade.
O filósofo Arthur Schopenhauer em 1819, com 33 anos, publica a sua obra O mundo
como vontade e como representação onde contém os pontos centrais de toda a sua filosofia. A
vida, segundo Schopenhauer, é em essência necessidade e dor; na medida em que se consegue
algo há uma satisfação, uma saciedade passageira da dor, mas que logo leva ao tédio. Dessa
forma a felicidade é apenas efêmera, ao passo que o real é a dor e tragédia permanente. A esse
respeito, o autor diz que:
Suficiente feliz é quem ainda tem algo a desejar, pelo qual se empenha, pois assim o
jogo da passagem contínua entre o desejo e a satisfação e entre esta e um novo
desejo – cujo transcurso, quando rápido, se chama felicidade, e quando lento se
chama sofrimento – é mantido, evitando-se aquela lassidão que se mostra como
tédio terrível, paralisante, apatia cinza sem objeto definido, languor mortífero: – Em
conformidade com tudo isso, onde o conhecimento a ilumina, a Vontade sempre
sabe o quer aqui e agora, mas nunca o que quer em geral. Todo ato isolado tem um
fim: o querer completo não (SCHOPENHAUER, 2005, p.231).
Em termos shopehaurianos, a nosso ver Florbela Espanca, assim como todo homem é
movido pela vontade e uma vez que esta não encontra satisfação, pois, vive conflitos
familiares, casamentos fracassados, a morte do irmão e a rejeição por parte da sociedade
como mulher e escritora, vê seu mundo desmotivado e fatalmente resultam em dor e
sofrimento sua vida e seus poemas.
A tendência para o melancólico, apresenta-se desde a sensibilidade doentia, que
Florbela declara ter tido sempre. Sensibilidade essa que parece existir em relação às tragédias
que nos relatos biográficos vão trazendo os sentidos da existência e simultaneamente tecendo
os sentidos de sua estratégia poética, como podemos ver em um trecho de uma carta de
Florbela para Guido Battelli em agosto de 1930:
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Aos oito anos já fazia versos, já tinha insônias e já as coisas da vida me davam
vontade de chorar. Tive sempre esta mesma sensibilidade doentia, esta profunda e dolorosa
sensibilidade que um nada martirizava esta ternura apaixonada pelos bichos inocentes e
simples. (OBRAS COMPLETAS, 1986b: 155)
Os seus conflitos familiares parecem influenciar significativamente seu perfil
psicológico. Tanto que Augustina Bessa-Luiz atribui a falta de sua mãe aos desvios da
personalidade de Florbela, como o da constante evasão da realidade (1979:37).
Ao analisarmos vidaobra de Florbela, reconhecemos que a poetisa une a arte com a
vida como conceituou Roland Barthes em biografemas. Dessa forma, os seus traços artísticos
dizem respeito ao fato de a vida pessoal da poetisa frequentemente invadir o campo ficcional,
como são marcados pelos tons de imagem reconhecido pelo recorte de tragédia, identificada
pelo lirismo melancólico de suas obras.
A MINHA DOR
A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal…
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias…
A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve… ninguém vê… ninguém…
O poema citado se encontra presente em seu Livro de Mágoas, onde o próprio nome
do livro já é bem sugestivo no que se refere ao sentimento da dor e da mágoa. Podemos
perceber nesse poema um desabafo, um grito de solidão e melancolia. Estão presentes
palavras que carregam grande peso ligado ao fúnebre, ao negro, estando à dor associada ao
um convento. O uso dessas palavras e outras como: “convulsões”, “sombras”, “claustros”,
“comovidas”, “funeral”, “roxos”, “grito”, “choro” indicam um ambiente frio, gelado, ligado
ao noturno, por meio dos quais podemos perceber um sentimento de desespero mediante a sua
solidão.
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O belo parece estar associado à morte e à punição (purgatório) como está expresso:
“Há lírios Dum roxo macerado de martírios,/ Tão belos como nunca os viu alguém!”.Há um
paradoxo entre “belos lírios roxo” (uma cor triste e melancólica) e entre a beleza nunca vista,
mas que, ao mesmo tempo, traziam sentimentos de dor e sofrimento.
Florbela começa por descrever sua dor como um convento, sendo esse um lugar
afastado do mundo, um lugar de solidão onde encontram os sinos a gemer de agonias, a bater
a todas as horas, como se a cada hora que se passasse a morte estivesse próxima. O convento
que é descrito é o próprio mundo da poetisa, o mundo em que vivia, onde tudo era dor e que
ninguém, apesar dos gritos e choros vinha ao encontro de seu pedido se socorro.
FUMO
Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!
Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas…
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!
Os dias são Outonos: choram… choram…
Há crisântemos roxos que descoram…
Há murmúrios dolentes de segredos…
Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!…
Florbela foi uma mulher de vida amorosa conturbada e inquieta, que sabia
transformar seus sofrimentos e sua dor em poesias da mais alta qualidade onde despejava o
desejo de felicidade e toda sua erotização feminina. No poema “Fumo” a poetisa portuguesa
compara o amor ao vício, ressaltando a dor daquele que se sente escravo do amor como num
vício que consome suas entranhas e o deixa dependente.
O amor personificado como fumaça faz referência a um sentimento impossível de
segurar e de se ter por muito tempo. Para ela o amor é sempre perdido, mesmo antes de ser
encontrado, desenvolvendo uma busca angustiante e em vão. O amor sempre lhe escapa das
mãos.
A poetisa se sente abandonada e com pena de si mesma: “Meus olhos são dois
velhos pobrezinhos” que suplicam a presença do amado definindo suas mãos: “Tuas mãos
doces plenas de carinho”. Florbela Espanca usa as imagens externas como o clima de outono
em Portugal para demonstrar sua tristeza interior e seu lamento: “Os dias são Outonos:
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choram… choram…”. Neste verso vemos uma amargura ao passar os dias e por não ter o
amado, ela vê o mundo com seus olhos cansados e aflitos perdendo a vontade e o sentido da
vida: “Há crisântemos roxos que descoram…”, percebemos novamente o belo associado à
tristeza e a cor roxa, lembrando solidão e angústia de estar só, a procura do amado. “Há
murmúrios dolentes de segredos...”. Concebe-se intimidade entre a vida e a morte, numa idéia
de que o amor renasce e a ausência do amado são como dias sem esperança. A poetisa
termina o poema concluindo que o amor que ela tanto sonha é apenas uma ilusão. O vício de
amar a impede de enxergar. Ela o procura estendendo os braços, mas sempre o perde porque
ele é: “Fumo leve que foge entre os dedos”.
CHARNECA EM FLOR
Enche o meu peito,num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu bruel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
Florbela Espanca foi uma mulher que não parecia ser da sua época. Vivia em
Portugal numa sociedade moralista e conservadora no início do século XX. Em seu coração,
sonhos e poemas viviam além da realidade de seu cotidiano, ultrapassando a fronteira do
corpo e da alma para mergulhar no mais profundo da existência humana.
No poema “Charneca em Flor”, poema este que dá título ao livro, à poetisa passa a
assumir uma nova posição diante da vida. Não se mostra tão presa ao que era antes em Soror
Saudade, externando uma imagem romântica, repleta de sensibilidades e dor por não alcançar
os seus desejos e que sofre com a vontade de ser aquilo que ela tanto sonhou.
No poema “Charneca em Flor” ela aparece mais ousada “com anseio e asas abertas”,
não se preocupando tanto com a espiritualização da vida, com a adequação dos seus padrões
sociais que eram exigidos. Passa a demonstrar uma harmonia com o mundo, com a vida e com
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ela própria. Como percebemos no verso a seguir: “Dispo a minha mortalha, o meu burel, /E,
já não sou, amor, Sóror Saudade”.
Florbela nesse poema procura esquecer tudo que lhe fez mal na vida, tudo que trazia
dor, agora, ela deseja que onde tenha cinzas, nasçam rosas,e o que a fez chorar por muito
tempo,seja apenas passado. Como podemos ver nesse poema um eu-lirico mais forte e
decidido: “O frêmito das coisas dolorosas.../ Sob as urzes queimadas nascem rosas.../Nos
meus olhos as lagrimas apago”.Florbela decide mudar: “Sou Charneca rude a abrir em flor!”
Mesmo que tenha que enfrentar uma sociedade preconceituosa e a tensão que essa liberdade
provoca.
IN MEMORIAM
Na cidade de Assis, Il Poverello
Santo, três vezes santo, andou pregando
Que o sol, a terra, a flor, o rocio brando,
Da pobreza o tristíssimo flagelo,
Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,
Tudo era nosso irmão! - E assim sonhando,
Pelas estradas da Umbria foi forjando
Da cadeia do amor o maior elo!
“Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água…”
Ah! Poverello! Em mim, essa lição
Perdeu-se como vela em mar de mágoa
Batida por furiosos vendavais!
- Eu fui na vida a irmã de um só irmão,
E já não sou a irmã de ninguém mais!
No poema “In Memória” podemos perceber o que Roland Barthes chamou de
biografema, bem presente nas poesias de Florbela Espanca. O poema é marcado pela presença
da dor devido à perda do seu único e querido irmão. Como o próprio título faz uma referência
em memória ao irmão falecido.
Apeles Espanca era um dos pontos de apoio fortes para Florbela, o irmão parecia ser
uma das poucas coisas boas na vida da escritora. Quando soube da morte de seu irmão,
Florbela escreve ao seu pai dizendo que: “(...) A gente é muito forte, já que não endoidece
nem morre depois dum pavor assim”. (ESPANCA, 2000, p.12)
Após o falecimento do irmão, a poetisa já passando sérios problemas em seu
casamento entrega-se totalmente a angustia e passa assim a dormir apenas sob o efeito de
remédios, assumindo um luto constante.
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Nesse poema há uma exaltação do seu irmão, ela o compara a um santo e convida a
todos a louvá-lo. “(...) Santo, três vezes santo, andou pregando/Tudo quanto há de vil, quanto
há de belo, /Tudo era nosso irmão (...).
Mas, Florbela, no final de seu poema, percebe que realmente perdeu seu irmão e com
o eu-lírico melancólico diz: “Eu fui na vida a irmã dum só Irmão,/E já não sou a irmã de
ninguém mais”.
AMAR!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui...além...
Mais este e aquele, o outro e toda a gente....
Amar!Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar.
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
O soneto “Amar” é um dos mais conhecidos de Florbela Espanca, nele há uma busca
incessante pelo amor, o eu-lírico parece se mostrar desesperado pelo desejo de amar, como
podemos perceber: “Eu quero amar, amar perdidamente! /Amar só por amar: aqui... além...
Mais este e aquele, o outro e toda a gente...” Uma busca intensa em suas palavras, algo
naturalmente humano, mas que muitos naquela época não tinham coragem de expor.
Nesse poema, podemos perceber o eu-lírico mais audacioso que mesmo sofrendo
criticas da sociedade não se deixa dominar, mas percebemos a presença da dor não como em
outros poemas, mas uma dor que força a lutar pelos seus objetivos, uma dor devido a essa
mesma sociedade que a julga por querer a realização da felicidade, através do amor, amor esse
que a poetisa não encontra mesmo tendo tentado várias vezes, e fracassado em seus
casamentos.
O amor é visto como um objetivo, uma procura incessante que começa em cada
primavera, mas em Florbela, o amor é sempre perdido, mesmo antes de encontrá-lo e assim a
procura de encontrar alguém para amar, mesmo que tenha que enfrentar as conseqüências
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para se satisfazer e se encontrar como pessoa como podemos perceber nesse trecho: “Que seja
a minha noite uma alvorada, /Que me saiba perder... para me encontrar”.
O QUE TU ÉS...
És Aquela que tudo te entristece
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha;
A que aos homens e a Deus nada merece.
Aquela que o sol claro entenebrece
A que nem sabe a estrada que ora trilha,
Que nem um lindo amor de maravilha
Sequer deslumbra, e ilumina e aquece!
Mar-Morto sem marés nem ondas largas,
A rastejar no chão como as mendigas,
Todo feito de lágrimas amargas!
És ano que não teve Primavera...
Ah! Não seres como as outras raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera!...
Podemos perceber nesse poema um tom pessimista, em que o eu-lírico se entrega às
frustrações e não vê mais sentido em nada que faz. Sente de modo intenso as humilhações e
injustiças que o mundo lhe traz: “És Aquela que tudo te entristece/ Irrita e amargura, tudo
humilha; /Aquela a quem a Mágoa chamou filha; /A que aos homens e a Deus nada merece.
A dor se torna parte real da poetisa, depois de lutar pela busca de felicidade em seus
casamentos, passar por abortos espontâneos e lutar contra a sociedade que não a aceita como
escritora, o eu-lírico se sente como um mar sem ondas, ou seja, uma pessoa sem valores
perante a sociedade, como uma mendiga como percebemos: “Mar-Morto sem marés nem
ondas largas, / A rastejar no chão como as mendigas, /Todo feito de lágrimas amargas!”.
Na última estrofe parece que a poetisa deseja ser uma pessoa como as outras, deseja
que não tivesse essa grande sensibilidade que a faz sofrer e não tivesse o desprazer de sofrer
pelo que foi e pelo que é, como vemos em seu poema: “Ah! Não seres como as outras
raparigas / Ó Princesa Encantada da Quimera!...”
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A MAIOR TORTURA (Livro de Mágoas)
IMPOSSÍVEL (Livro de Mágoas)
Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite,
E não tenho nem sombra em que me acoite,
E não tenho uma pedra em que me deite!
Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar de olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe ...
Ah! Toda eu sou sombras, sou espaços!
Perco-me em mim na dor de ter vivido!
E não tenho a doçura duns abraços
Que me façam sorrir de ter nascido!
O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por estar contente! Pois então?! ...”
Quando se sofre, o que se diz é vão ...
Meu coração, tudo, calado, ouviste ...
Sou como tu um cardo desprezado
A urze que se pisa sob os pés,
Sou como tu um riso desgraçado!
Mas a minha Tortura inda é maior:
Não ser poeta assim como tu és
Os meus males ninguém mos adivinha ...
A minha Dor não fala, anda sozinha ...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera! ...
Os males de Anto toda a gente os sabe!
Os meus ... ninguém ... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera! ...
Para concretizar a minha Dor!
Podemos perceber nesses dois poemas a presença da dor e da solidão. Em seus
versos existe a angústia de viver, como podemos ver: “Na vida, para mim, não há deleite.
/Ando a chorar convulsa noite, /E não tenho nem sombra em que me acoite, /E não tenho uma
pedra em que me deite!”.
Mas, o que a deixa a mais triste e melancólica nos dois poemas é não ser aceita como
uma mulher escritora. O último terceto de “A Maior Tortura” há uma dedicação a Américo
Durão e já no ultimo terceto “Impossível” Florbela faz uma referência a Antônio Nobre. Em
ambos os poemas, Florbela sofre com sua incapacidade de conseguir ser ouvida, por não
conseguir ser poeta como ela gostaria de ser, aceita pela sociedade.
Florbela, consciente do seu fazer artístico e o fazer artístico de poetas como Américo
Durão e António Nobre, não consegue atingir o estatuto de grande poeta, o que estaria
associado à consciência que ela tinha por ser uma mulher escritora, como Alonso nos
descreve “[...]devendo ser interpretada como a expressão da sua consciência dolorosa da
dificuldade de ser uma mulher escritora numa sociedade onde tradicionalmente as mulheres
não tinham voz” (ALONSO, 1997, p. 93). De fato, o que implica muito na não aceitação de
suas poesias é a identidade de mulher escritora o que a deixa mais dolorosa enquanto mulher.
Florbela Espanca com o seu jeito ora melancólico, ora com idéias libertárias tornouse a maior expressão literária da Literatura Portuguesa. Soube abrir sua vida, apresentando ao
mundo suas dores, suas perdas, suas angústias existenciais e sua vontade de ser reconhecida
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como mulher e escritora. Seus poemas refletem sua vida. Percebemos em sua obra o destino
de uma mulher que buscava sempre um mesmo ideal: a constante luta por uma realização
pessoal em todos os aspectos de sua vida.
A poetisa abordou vários temas em suas poesias, poesias estas que, a nosso ver, a
situavam como personagem principal. Florbela insuflou sua vida em suas obras assim
tecendo-as com o mais puro fio da sensibilidade. Cada poema expressa uma busca constante
da realização plena de sua existência, tentado sempre expor sua dor em relação ao mundo,
mas, também salientando a sua tentativa de amar, como Florbela escreve: “Viver não é parar:
é continuamente renascer”. (ESPANCA, 2000, p.270).
ABSTRACT: This article has as objective to analyze pain in the poetical construction of Florbela Espanca.
Therefore it is necessary to analyze some of its poems inserted in Charneca em Flor, Sóror Saudade e Livro de
Mágoas. The study it has also intention to identify if some biographematics characteristics in its workmanship
and which representations of pain can be found. For better understanding of the subject, it is relevant to know the
life of the workmanship of Florbela, as much the relations of its private life, how much its cultural influences,
particularly the literary ones that they are the base for its poetical construction. To analyze it the workmanship,
its is necessary to specify some concepts, amongst them, the term biographeme, Generation Witness and Alive
Literature, movements which Florbela were part.ftom this analysis it will be verified existence of
biographematics elements connected to pain and love, present inits poetic construction.
KEY WORDS: Woman. Society. Poetry. Love. Pain. Biographeme.
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REFERÊNCIAS
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Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997.
BALTAZAR, M.Lúcia. Face. São Paulo: Educ, 1989.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Coleção signos, nº. 10. Lisboa:
edições 70,1975.
BESSA-LUÍS, Augustina. A vida e a obra de Florbela Espanca. 2ª ed. Lisboa: Arcádia,
1979.
CAMOES, Luis. Poesia Lírica. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de autores Portugueses, 2ª edição,
1988.
DALL FARRA, M. Lúcia. Poemas Florbela Espanca. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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GUEDES, Rui. Espanca Florbela. Contos e Diários. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
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MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 31ª edição, São Paulo: Cultrix, 2001.
NORONHA, Luiza M Ribeiro de. Entreretratos de Florbela Espanca: Uma leitura
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Obras completas de Florbela Espanca. Cartas (1923-1930) v. VI. Lisboa: Dom Quixote,
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SARAIVA, A. J. LOPES, Oscar. Historia da literatura Portuguesa. 17ª edição, Porto: Porto
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SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e Representação São Paulo: Nova
Cultural, 2005.
SILVIANO, Brandão, Ruth. Frivolitê. In: Silviano Brandão, R. A vida escrita. Rio de
Janeiro: 7 letras, 2006.

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