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Matrixologia ou bem-vindo ao deserto do real ou ainda: O Evangelho
Segundo os Wachowsky
Elias Pereira
“Porém, o espectador das salas obscuras é, quanto
a ele, sujeito passivo no estado puro.
Não tem qualquer poder, não tem nada para dar,
nem sequer aplausos. Paciente, suporta. Subjugado,
sofre. Tudo se passa muito longe, fora do seu alcance.
Mas ao mesmo tempo, e sem mais, tudo se passa
dentro de si na sua coenestesia psíquica, se assim
se pode dizer. Quando os prestígios da sombra e do duplo se
fundem na tela branca de uma sala noturna, perante
o espectador, enfiado no seu alvéolo, mônada fechada
a tudo, exceto à tela, envolvido na placenta dupla de uma
comunidade anônima de obscuridade, quando os canais
da ação se fecham, abrem-se então as comportas do mito,
do sonho e da magia.”
E. Morín
Matrix foi lançado em 1999 pela Warner Bros. Pictures. O filme foi escrito e dirigido por
Andy e Larry Wachowski. Matrix é estrelado por Keanu Reeves, Laurence Fishburne, CarrieAnne Moss, Hugo Weaving e Joe Palomino.
A história acontece em 2199. Os seres humanos perderam a guerra contra a
Inteligência Artificial que eles mesmos haviam criado. Em Zion, cidade localizada no núcleo da
Terra, estão os seres humanos que ainda não se renderam à vitória das máquinas. De Zion
partem naves como a Nabucodonozor, cuja tripulação invade a Matrix para resgatar homens da
ilusão da Matrix. Para isso enfrentam os agentes que lutam para perpetuar e sacramentar a
soberania das máquinas; outros seres humanos, no entanto estão nos campos de cultivo, onde
são cultivados como plantas, de onde são levados para um tipo de útero artificial, onde
permanecem como fetos, fornecendo energia para a manutenção das máquinas. Nesses úteros
artificiais também estão „plugados‟ a uma rede virtual de informações onde tem a sensação de
terem um trabalho, uma família, um emprego, uma religião ou um título acadêmico - enfim, uma
„vida normal‟. Nesse estado de alucinação programada, a rede virtual de informações simula a
vida humana no ano de 1999.
Slavod Zizek, professor de Filosofia na Universidade de Ljubljana, Eslovênia, comparou
Matrix aos “borrões de Rorschach” (Zizek, in Irwin, 2003. p. 259), onde cada um enxerga os
conteúdos que já os constituem.
Mas o que vem a ser “borrões de Rorschach”? Hermann Rorschach, psiquiatra suíço
(Zurique, 1884 - Herisau, 1922), foi o criador de um tipo de teste baseado na interpretação de
manchas de tinta, e destinado a revelar a estrutura da personalidade. Esse teste projetivo
consiste em interpretar uma série de figuras que são manchas de tinta simétricas obtidas por
dobragem. A análise das respostas do paciente permite esclarecer certos aspectos de sua
personalidade, a partir do entendimento de que o examinando teria projetado nas manchas
seus conteúdos constituintes de personalidade. Mais uma vez estamos no terreno das
identificações, pois o que é a projeção, senão uma das faces da identificação?
Seguindo a linha de raciocínio de Zizek, quando o telespectador se assenta para
assistir Matrix, a compreensão que terá do filme será determinada por conteúdos já
internalizados, conscientes ou inconscientes. Esses conteúdos já internalizados teriam sido, por
sua vez, constituídos por imagens do mundo religioso, mítico, folclórico ou mesmo
cinematográfico. Nessa junção do que chamamos religioso, mítico, folclórico ou cinematográfico
constitui-se a cultura.
Qual seria então, o sentido evocado por Matrix, para os telespectadores
provenientes de cultura judaico-Cristã?
Matrix é a história humana tantas vezes contada e recontada, como se não
houvesse outra história para ser contada: e realmente não há. “Existem apenas duas ou três
histórias humanas, e elas vão se repetindo sem parar, teimosas, como se nunca tivessem
acontecido antes.”(Cather, in Vogler, 1997. p. 23).
Matrix é da mesma escola de Prometeu Acorrentado, Medeia, Édipo rei, Hamlet, ou
ainda algum personagem das obras de Racine, Corneille ou Machado de Assis. O princípio do
prazer em luta perene contra o principio da realidade. É nesse enredo que os heróis são
forjados e o messianismo se estabelece. Matrix é a mesma história tantas vezes contada, mas
que nunca cansamo-nos de ouvir, pois é a historio do homem. Essa história adquire um sentido
para o indivíduo em cada período da Historia. É a história de nós mesmos.
Matrix só poderia surgir no atual estágio científico da humanidade pós- moderna,
quando é possível revisar acuradamente os personagens construtores da ocidentalidade.
No crepúsculo do Séc. XX e aurora do séc. XIX, engendrou-se Matrix: “De uma
sociedade cientificamente tirana, imersa numa rede cibernética tirana e sem sabor, emerge
Matrix, virtualmente fantástica, moldada no imaginário pós moderno da cultura norte-americana,
arqueologicamente arraigada nos mitos construtores das utopias ocidentais” (Palma, p. 13).
Pois “não importa se você é analfabeto ou tem doutorado: vai encontrar no filme alguma coisa
que lhe sirva.” (Schuchardt, in Yeffeth, 2003. p. 21). Ou seja, vai Identificar-se com Matrix.
O Evangelho segundo Matrix
Cada época e cultura cria seus heróis. Cria-os como projeção de seus ideais, por meio
da fantasia para conformar-se a esse ideal. O herói também pode ser ainda um personagem da
história que é significado, também projetivamente como um ideal de ego.
Matrix lança mão, portanto, da mais primitiva forma de contar uma boa história e criar
identificação. Recorre à premência do herói. “O herói solitário que salva a comunidade – aquele
que quase sempre possui uma aptidão ou percepção superior.” (Gerrold, in Yeffeth, 2003. p. 7).
Ao falar de Neo, o herói de Matrix, Gerrold não reluta ao afirmar que:
“o arquétipo cultural é, obviamente, Cristo, que veio ao mundo com percepção e
poderes superiores; foi mal compreendido; salvou a alma daqueles que confiaram e acreditaram
nele; foi traído por alguém em quem confiava e punido pela autoridade que desafiara. Mas fez
o mundo mudar para melhor por ter passado por isso.” (idem, p. 8).
Quando os irmãos Wachowski fazem convergir em Neo traços tão distintivos da vida e
atuação de Cristo, creio que entendem ser esse o caminho seguro para a Identificação do
telespectador.
“Matrix é um novo testamento para um novo milênio, uma parábola religiosa da
segunda vinda do Messias da humanidade, numa era que precisa da salvação mais
desesperadamente do que nunca” (Schuchardt, in Yeffeth. 2003. p.11).
Vejamos como os Wachowski fazem sua proposta de Identificação.
Numa das primeiras cenas do filme, vemos Thomas Anderson (Ander vem do grego
andrós, que significa homem, e son, também do grego, que significa filho, ou seja filho do
homem; Cristo se autonomeclaturou “Filho do Homem”, (Mc 13:26 -Bíblia). Ainda sobre esse
nome, no primeiro capítulo do livro escatológico do Apocalipse, João ouve alguém que lhe dirige
a palavra, e ao voltar-se para ver quem lhe falava, relata do seguinte modo:
“ao voltar-me, vi sete candelabros de ouro e, no meio dos candelabros, alguém
semelhante a um filho de Homem, vestido com uma túnica longa e cingido à altura do peito
com um cinto de ouro. 0s cabelos de sua cabeça eram brancos como lã branca, como neve; e
seus olhos pareciam uma chama de fogo. 0s pés tinham o aspecto do bronze quando está
incandescente no forno, e sua voz era como o estrondo de águas torrenciais. Na mão direita ele
tinha sete estrelas, e de sua boca saía uma espada afiada, com dois gumes. Sua face era
como o sol, quando brilha com todo seu esplendor. Ao vê-lo, caí como morto a seus pés. Ele,
porém, colocou a mão direita sobre mim assegurando: „Não temas! Eu sou o Primeiro e o
Último, 0 Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as
chaves da Morte e do Hades‟” (Apoc. 1. 12-18).
Thomas Anderson vende por dois mil dólares um programa de computador a um
personagem chamado Choi, que exclama: “Você é o meu salvador cara! É o meu Jesus Cristo
particular”. Creio que já no começo do filme os Wachowski dão a deixa para a identificação que
será alimentada desde então até a última cena.
Morpheus, mentor de Neo, refere-se a ele como o Predestinado, ou seja, o que já tinha
um destino previsto. Essa expressão nos remete ao campo religioso cristão, onde se diz de
alguns são predestinados à danação eterna e outros predestinados às delicias do paraíso. No
imaginário cristão, o Cristo é um Predestinado à morte, morte vicária e também à ressurreição.
Essa predestinação específica cumpre-se em Cristo, e em Neo também: Neo passa pela morte
assim como pela ressurreição. Neo morre para salvar (quando volta à Matrix para resgatar
Morpheus, e quando dá à Trinity a oportunidade de sair primeiro da Matrix, morrendo
vicariamente) e ressuscita para continuar salvando (a continuidade da missão fica claro nas
cenas finais de Matrix, quando num telefonema se propõe a continuar a missão, e ascende ao
céu, tal qual Cristo). Quando Cristo ascendeu ao céu no intuito de dar continuidade à missão
de salvar, disse: “vou preparar-vos lugar...virei novamente e vos levarei comigo.” ( Jo 14: 2 e 3,
-Biblia). Jesus também prometeu continuar sua missão.
“Matrix é uma dessas obras, em que se nota a presença do predestinado em busca de
sua aventura redentora. O Aparato técnico, a linguagem cinematográfica de última geração e o
discurso da informática criam o fantástico mundo digital, virtual, futurista, mas mal desfazem a
visão mítica e mística subjacente à narrativa.” (Palma, 2004. p. 28). Penso que os criadores de
Matrix não querem disfarçar a visão mítica e mística subjacente, pois aí, e exatamente aí está o
projeto Identificatório de Matrix. É precisamente no acesso que o espectador tem a esse
subjacente que lhe é permitido reviver suas próprias vivências míticas e místicas. Disfarçar a
visão mítica e mística, seria correr o risco de limitar as Identifições do telespectador, tudo que
os irmãos Wachowski não iriam querer.
Na cena que Morpheus está demostrando a nave Nabucodonozor a Neo, logo acima
do nome da nave pode ser lido a inscrição Mark III no. 11. A referência é inequívoca ao
evangelho de Marcos, capítulo 3 e versículo 11, o qual diz: “E os espíritos impuros, assim que o
viam, caiam a seus pés e gritavam Tu és o Filho de Deus!” (grifo nosso). Uma referência à
soberania de Cristo e de Neo que passou de Filho do Homem para Filho de Deus ou mantém
simultaneamente o status de Filho do Homem e Filho de Deus, assim como Jesus. A inscrição
na nave é uma espécie de profecia sobre a vitória do Filho de Deus e a derrota de seus
inimigos.
Neo não está sozinho em sua missão de salvar. Conta com outros dois aliados:
Morpheus e Trinity.
Morpheus é o mentor de Neo. É o mestre responsável pela iniciação de Neo na
concretização de sua missão. Na mitologia grega Hipnos (daí a axpressão hipnose), é o deus
do sono e um de seus filhos é Morpheus, o deus dos sonhos. Morpheus tomava forma humana
e aparecia às pessoas durante o sono. „Estar nos braços de Morfeu‟ significa estar dormindo. A
droga morfina tem seu nome derivado de Morfeu. Esta droga, indutora do sono e do reino dos
sonhos, mas é também a droga que tira a dor (o estado de alerta é doloroso). Em Matrix
Morpheus faz a condução de Neo desde um simulacro de vida, nos sonhos, até o estado de
alerta, ou “o deserto do real”. Morpheus o ajuda a adaptar-se ao estado de alerta, chegando a
assumir um cuidado paternal, lembrando a Neo que seus olhos doem porque ele não está
acostumado a usá-lo, lembrando a Neo que este apenas sonhava. É notável que é Morpheus –
deus dos sonhos -, que explica a Neo como funciona a Matrix, onde a vida se dá apenas no
sonho. Em determinado momento Trinity se refere a Morpheus dizendo que este „seria como
um pai para a tripulação da Nabucodonozor‟.
A trindade é completada com Trinity. Trinity é a parteira de Neo. Ela o visita quando
ele ainda está confinado na Matrix. No primeiro encontro entre ambos, Neo diz que sempre
imaginou que se tratasse de um homem. Embora Trinity seja mulher, aí parece estar dada a
dica para a apresentação de Trinity como o terceiro membro da Trindade – ora seu nome é
Trinity. Trinity é representante do amor eterno, infinito e incondicional ao dar em Neo, no fim,
um beijo que é como um sopro de vida, dizendo: “você não pode estar morto, porque eu o
amo”.
O personagem de Judas, se chama Cypher. Schuchardt o desccreve da seguinte
maneira:
“Assim como Judas na última ceia, Cypher assume o seu destino de traidor durante
uma refeição. Tal qual Judas, que bebe com Cristo na última Ceia, Cypher e Neo bebem juntos,
enquanto Cypher manifesta suas dúvidas sobre toda aquela cruzada, com a frase: -Por
quê...ah...por que não tomei a pílula azul? Vemos Neo afastar-se de Cypher e dar a ele o que
restava da bebida. Cypher não tem boas intenções quando desobedece à convenção social de
higiene bebendo por Neo o resto da bebida, assim que este sai. Cypher também se veste com
um casaco de pele de réptil, uma alusão à figura bíblica de Satanás na forma de serpente. O
que leva Cypher a trair a causa são suas dúvidas a respeito da certeza de Morpheus de que
Neo é o Predestinado (note o inteligente anagrama de Neo = One), porque não está
convencido de que luta do lado certo, ou pelo menos do lado vencedor” ( Schuchardt in Yeffeth,
p. 16).
No texto onde Schuchardt mostra o diagrama Neo = One, há uma indicação para a
nota de rodapé onde a nota do tradutor lê-se: “No caso, one significa „predestinado‟, „ungido‟,
„eleito‟”. No universo religioso do Ocidente são expressões típicas que claramente se aplicam a
Jesus.
Assim, se a Bíblia traz o evangelho segundo Mateus, Marcos, Lucas e João, o
cinema trouxe o Evangelho segundo Matrix.
A nave Nabucodonozor tripulada por Neo e seus amigos é proveniente de Zion. Zion
é uma cidade localizada no núcleo da Terra, onde estão os seres humanos que ainda não se
renderam à pretensa vitória das máquinas. Mas o que é Zion?
“Possivelmente o vocábulo tem relação com o árabe tsâna, da raiz ts-w-n, que
sugnifica “proteger”, “defender”; por conseguinte tsîyon pode ter tido o sentido de “lugar de
defesa”, “fortaleza”... “Sião é a elevação fortificada entre os vales do Cedrom e do Tiroponeon,
a qual Davi capturou, tomando-a dos Jebuseus (II Sm 5. 7 -Bíblia). Subseqüentemente tornouse conhecida como a cidade de Davi”... “Desde a época em que Salomão construiu o templo,
Sião tornou-se o centro da atividade de Iavé. Iavé identificou-se como aquele “que habita no
monte Sião” - (Is. 8. 18) (Harris, 1998. p. 1282).
Sião tornou-se o mais importante de todos os lugares sagrados da Palestina JudaicoCristã. O sionismo dá testemunho da mística que envolve essa Sião. “Sionismo” é a doutrina e
movimento nacionalistas judeus, que visavam ao restabelecimento do Estado de Israel e à
concentração do maior número possível de judeus numa comunidade nacional autônoma,
situada na Palestina. A formação do recente Estado de Israel foi uma vitória do sionismo. O
sionismo ativo começou no séc. XIX e levou à fundação do Estado de Israel em 1948.
O sionismo, atualmente, apóia vários projetos em Israel e atua como ponte cultural
entre Israel e os judeus de outros países. Os sionistas trabalham para reviver a língua e a
cultura naturais judaicas e para estabelecer as instituições políticas e sociais necessárias à
recriação da vida nacional judaica.
Uma série de pogroms na Rússia, durante o séc. XIX, incitou a primeira onda
significativa de emigração judaica da Europa. Em 1882, grupos de jovens que se denominavam
Hoveve-Zion (Amantes de Sião) formaram um movimento a fim de promover a imigração rumo
à Palestina. O Hoveve-Zion iniciou o que veio a ser chamado sionismo prático, que apoiava a
criação de colônias na Palestina. Theodor Herzl, jornalista austríaco, incrementou o sionismo
político, que trabalhava pelo reconhecimento político da reivindicação judia de uma pátria
palestina. Os sionistas proclamaram o Estado de Israel em 1948. Assim no imaginário JudaicoCristão, Sião evocaria segurança, prosperidade e paz permanentes - vitória, enfim. Em Matrix,
Sião é a única e última fortaleza onde os seres humanos ainda podem viver segurança,
prosperidade e paz. É de Sião que parte a tripulação que invade a Matrix, resgata Neo e
posteriormente sacramenta a derrocada da Matrix. Embora Neo não seja proveniente de Sião, o
roteiro propõe uma espécie de naturalização de Neo à Sião: Neo adota Sião como sua cidade.
No antigo testamento, “nascer em Sião” equivalia a ter participação na salvação divina (Sl. 87. 5
–Bíblia), não importando a real nacionalidade da pessoa, pois “os pagãos são adotados por
Sião, que se torna sua verdadeira pátria” (Comentário da Bíblia de Jerusalém ao texto Sl. 87. 5).
Sem dúvida seria desatino, senão ignorância, se ao escrever sobre Sião fosse direto ao
tópico seguinte sem mencionar a estreita relação entre Sião e Jerusalém. Jerusalém em seu
nome primitivo é Salém, quando Abraão honra o rei-sacerdote de Salém Melquisedeque, sendo
que na Teologia Cristã, Melquisedeque é uma figura de Cristo como exposto pelo escritor de
Hebreus no capítulo 7. Salém – Shalem – significa “completo, próspero, pacífico” ((Harris, 1998.
p. 665). Quando Davi a conquistou dos Jebuseus, passou a ser denominada “Cidade de Davi” (I
Rs. 3. 1 - Bíblia), ou “cidade do Grande Rei” (Sl. 48. 2 -Bíblia). Jerusalém foi profetizada “como
centro do futuro reino messiânico” (ibid., 665). De fato, o Apocalipse fala da “Nova Jerusalém”
como lugar pleno de bem aventuranças (Ap. 21. 2 -Bíblia). Por Cidade do Grande Rei faz-se
referência ao grande rei que a conquistou, Davi, mas a escatologia cristã entende a aplicação
do termo ao próprio Cristo; o “Grande Rei”, ou “Rei dos Reis e Senhor dos Senhores” (Ap. 19.16
-Bíblia), sendo Ele mesmo ainda o “Filho de Davi” (Mt. 21. 9 -Bíblia), e “Raiz de Jessé” (Rm. 15.
2 -Bíblia). Assim, há uma relação muito íntima entre a fortaleza de Matrix, quartel-general de
Neo, Zion e a Sião = Jerusalém Bíblicos. Sião e Jerusalém são expressões carregadas de
afeto e significação para os habitantes do Ocidente de Cultura Judaico-Cristã. No Apocalipse o
Cordeiro (metáfora para Cristo) inicia seu reinado paradisíaco de paz e segurança com seu
grupo de escolhidos sobre o monte Sião (Apoc. 14. 1-5 -Bíblia). Tanto o texto bíblico como as
imagens de Matrix são uma evocação da contínua busca do paraíso perdido, elemento caro à
subjetividade do homem Ocidental, de onde Milton claramente baseou sua principal obra.
Neoplatonismo
Uma das passagens mais conhecidas da sabedoria Ocidental é o mito da caverna.
Platão a escreveu colocando as palavras na boca de Sócrates quando de um diálogo com
Glauco. Embora apareça de forma dialogal no Livro VII de A República, aqui a alegoria está
adaptada em formato de monólogo preservando a integridade da fala de Sócrates.
“Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada
aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de
modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os
Impedem de voltar a cabeça; a luz chega-Ihes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue
por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao
longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os
apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de
toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda
espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em
silêncio.
Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham
alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais do que as sombras projetadas
pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?
E com, as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo? Portanto, se pudessem
se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras
que veriam?
E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores
falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?
Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos
fabricados.
Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das
suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele
obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para
a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os
objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que
não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para
objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que
passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e
que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe
mostram agora?
E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a
vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais
distintas do que as que se lhe mostram?
E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e
escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente
e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos
ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?
Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior.
Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e
dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso,
poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a
noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e a sua luz.
Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em
qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar
tal como é.
Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os
anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele
via com,os seus companheiros, na caverna.
Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e
daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a
mudança e lamentará os que lá ficaram?
E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que
se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse
das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso
era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os
prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil
vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no
mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?
Imagina ainda que esse homem volte à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não
ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?
E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram
de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os
seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante
longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a
vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e
conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-Io?” (Platão, 2000, pp. 225228).
O mito da caverna é a um só tempo um pré-cinema (as pessoas estão assentadas
numa caverna escura, voltados para o fundo da caverna, onde se projetam simulacros da
realidade e há uma censura quanto a conversas paralelas: “Platão descreveu minuciosamente o
mecanismo imaginário da sala escura de projeção” (Machado, 1997. p. 13 ) e uma parábola da
ascese do conhecimento. A ascese do conhecimento materializada no instinto epistemofilico
resultou no atual estágio científico. A alegoria da caverna descreve um prisioneiro que
contempla dia-a-dia, no fundo de uma caverna, os reflexos de simulacros que - sem que ele
possa ver - são projetados ao fundo da caverna por um fogo artificial. Como sempre viu essas
projeções de artefatos, toma-os por realidade e permanece iludido, crendo contemplar cenas
reais de vidas reais. A situação desmonta-se e inverte-se quando o prisioneiro se liberta:
reconhece o engano em que permanecera, descobre a "encenação" que até então o enganara
e, depois de galgar a rampa que o conduz à saída da caverna, pode lá fora começar a
contemplar a verdadeira realidade e compreender o simulacro. Aos poucos, ele, que fora
habituado à sombra, vai podendo olhar o mundo real: primeiro através de reflexos - como o do
céu estrelado refletido na superfície das águas tranqüilas, até finalmente ter condições para
olhar diretamente o Sol, fonte de toda luz e de toda realidade.
Esta alegoria de múltipla dimensão pode ser vista tanto como fabulação da ascese
religiosa como da filosófica e científica. Aquele que se liberta das ilusões e se eleva à visão da
realidade é o que pode e deve governar para libertar os outros prisioneiros das sombras: é o
filósofo-político, aquele que faz de sua sabedoria um instrumento de libertação de consciências
e de justiça social, aquele que faz da procura da verdade uma arte, um desilusionismo.
O parágrafo acima bem poderia constar no prefácio de uma virtual biografia de Neo, no
entanto trata-se de uma tentativa de esclarecer o roteiro do Mito da Caverna. É notória a
similaridade da história contada por Platão da que é contada pelos irmãos Andy e Larry
Wachowski.
Os primeiros pensadores cristãos amalgamaram as idéias de Platão com a teologia
paulina, unindo Filosofia e Teologia. Santo Agostinho foi o principal deles e com seu
neoplatonismo praticamente inaugurou a Teologia Católica. Os Wachowski amalgamaram o
mito da caverna de Platão e traços marcantes da religião judaico-cristã reeditando a junção do
platonismo com o evangelho. Um novo encontro entre Filosofia e Teologia. Dificilmente um ser
humano já inserido na cultura do Ocidente Platônica e Cristã não se identificaria com Matrix.
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém: Nova edição, revista e ampliada. São Paulo:
Paulus, 2003
HARRIS, R. Laid (org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 1998.
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MACHADO, Arlindo. Pré- cinemas & pós- cinemas. Campinas, Papirus,1997.
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VOGLER,
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YEFFETHT, Glenn. A pírula vermelha – Questões de Ciência Filosofia e religião em Matrix. São
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