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Matrixologia ou bem-vindo ao deserto do real ou ainda: O Evangelho Segundo os Wachowsky Elias Pereira “Porém, o espectador das salas obscuras é, quanto a ele, sujeito passivo no estado puro. Não tem qualquer poder, não tem nada para dar, nem sequer aplausos. Paciente, suporta. Subjugado, sofre. Tudo se passa muito longe, fora do seu alcance. Mas ao mesmo tempo, e sem mais, tudo se passa dentro de si na sua coenestesia psíquica, se assim se pode dizer. Quando os prestígios da sombra e do duplo se fundem na tela branca de uma sala noturna, perante o espectador, enfiado no seu alvéolo, mônada fechada a tudo, exceto à tela, envolvido na placenta dupla de uma comunidade anônima de obscuridade, quando os canais da ação se fecham, abrem-se então as comportas do mito, do sonho e da magia.” E. Morín Matrix foi lançado em 1999 pela Warner Bros. Pictures. O filme foi escrito e dirigido por Andy e Larry Wachowski. Matrix é estrelado por Keanu Reeves, Laurence Fishburne, CarrieAnne Moss, Hugo Weaving e Joe Palomino. A história acontece em 2199. Os seres humanos perderam a guerra contra a Inteligência Artificial que eles mesmos haviam criado. Em Zion, cidade localizada no núcleo da Terra, estão os seres humanos que ainda não se renderam à vitória das máquinas. De Zion partem naves como a Nabucodonozor, cuja tripulação invade a Matrix para resgatar homens da ilusão da Matrix. Para isso enfrentam os agentes que lutam para perpetuar e sacramentar a soberania das máquinas; outros seres humanos, no entanto estão nos campos de cultivo, onde são cultivados como plantas, de onde são levados para um tipo de útero artificial, onde permanecem como fetos, fornecendo energia para a manutenção das máquinas. Nesses úteros artificiais também estão „plugados‟ a uma rede virtual de informações onde tem a sensação de terem um trabalho, uma família, um emprego, uma religião ou um título acadêmico - enfim, uma „vida normal‟. Nesse estado de alucinação programada, a rede virtual de informações simula a vida humana no ano de 1999. Slavod Zizek, professor de Filosofia na Universidade de Ljubljana, Eslovênia, comparou Matrix aos “borrões de Rorschach” (Zizek, in Irwin, 2003. p. 259), onde cada um enxerga os conteúdos que já os constituem. Mas o que vem a ser “borrões de Rorschach”? Hermann Rorschach, psiquiatra suíço (Zurique, 1884 - Herisau, 1922), foi o criador de um tipo de teste baseado na interpretação de manchas de tinta, e destinado a revelar a estrutura da personalidade. Esse teste projetivo consiste em interpretar uma série de figuras que são manchas de tinta simétricas obtidas por dobragem. A análise das respostas do paciente permite esclarecer certos aspectos de sua personalidade, a partir do entendimento de que o examinando teria projetado nas manchas seus conteúdos constituintes de personalidade. Mais uma vez estamos no terreno das identificações, pois o que é a projeção, senão uma das faces da identificação? Seguindo a linha de raciocínio de Zizek, quando o telespectador se assenta para assistir Matrix, a compreensão que terá do filme será determinada por conteúdos já internalizados, conscientes ou inconscientes. Esses conteúdos já internalizados teriam sido, por sua vez, constituídos por imagens do mundo religioso, mítico, folclórico ou mesmo cinematográfico. Nessa junção do que chamamos religioso, mítico, folclórico ou cinematográfico constitui-se a cultura. Qual seria então, o sentido evocado por Matrix, para os telespectadores provenientes de cultura judaico-Cristã? Matrix é a história humana tantas vezes contada e recontada, como se não houvesse outra história para ser contada: e realmente não há. “Existem apenas duas ou três histórias humanas, e elas vão se repetindo sem parar, teimosas, como se nunca tivessem acontecido antes.”(Cather, in Vogler, 1997. p. 23). Matrix é da mesma escola de Prometeu Acorrentado, Medeia, Édipo rei, Hamlet, ou ainda algum personagem das obras de Racine, Corneille ou Machado de Assis. O princípio do prazer em luta perene contra o principio da realidade. É nesse enredo que os heróis são forjados e o messianismo se estabelece. Matrix é a mesma história tantas vezes contada, mas que nunca cansamo-nos de ouvir, pois é a historio do homem. Essa história adquire um sentido para o indivíduo em cada período da Historia. É a história de nós mesmos. Matrix só poderia surgir no atual estágio científico da humanidade pós- moderna, quando é possível revisar acuradamente os personagens construtores da ocidentalidade. No crepúsculo do Séc. XX e aurora do séc. XIX, engendrou-se Matrix: “De uma sociedade cientificamente tirana, imersa numa rede cibernética tirana e sem sabor, emerge Matrix, virtualmente fantástica, moldada no imaginário pós moderno da cultura norte-americana, arqueologicamente arraigada nos mitos construtores das utopias ocidentais” (Palma, p. 13). Pois “não importa se você é analfabeto ou tem doutorado: vai encontrar no filme alguma coisa que lhe sirva.” (Schuchardt, in Yeffeth, 2003. p. 21). Ou seja, vai Identificar-se com Matrix. O Evangelho segundo Matrix Cada época e cultura cria seus heróis. Cria-os como projeção de seus ideais, por meio da fantasia para conformar-se a esse ideal. O herói também pode ser ainda um personagem da história que é significado, também projetivamente como um ideal de ego. Matrix lança mão, portanto, da mais primitiva forma de contar uma boa história e criar identificação. Recorre à premência do herói. “O herói solitário que salva a comunidade – aquele que quase sempre possui uma aptidão ou percepção superior.” (Gerrold, in Yeffeth, 2003. p. 7). Ao falar de Neo, o herói de Matrix, Gerrold não reluta ao afirmar que: “o arquétipo cultural é, obviamente, Cristo, que veio ao mundo com percepção e poderes superiores; foi mal compreendido; salvou a alma daqueles que confiaram e acreditaram nele; foi traído por alguém em quem confiava e punido pela autoridade que desafiara. Mas fez o mundo mudar para melhor por ter passado por isso.” (idem, p. 8). Quando os irmãos Wachowski fazem convergir em Neo traços tão distintivos da vida e atuação de Cristo, creio que entendem ser esse o caminho seguro para a Identificação do telespectador. “Matrix é um novo testamento para um novo milênio, uma parábola religiosa da segunda vinda do Messias da humanidade, numa era que precisa da salvação mais desesperadamente do que nunca” (Schuchardt, in Yeffeth. 2003. p.11). Vejamos como os Wachowski fazem sua proposta de Identificação. Numa das primeiras cenas do filme, vemos Thomas Anderson (Ander vem do grego andrós, que significa homem, e son, também do grego, que significa filho, ou seja filho do homem; Cristo se autonomeclaturou “Filho do Homem”, (Mc 13:26 -Bíblia). Ainda sobre esse nome, no primeiro capítulo do livro escatológico do Apocalipse, João ouve alguém que lhe dirige a palavra, e ao voltar-se para ver quem lhe falava, relata do seguinte modo: “ao voltar-me, vi sete candelabros de ouro e, no meio dos candelabros, alguém semelhante a um filho de Homem, vestido com uma túnica longa e cingido à altura do peito com um cinto de ouro. 0s cabelos de sua cabeça eram brancos como lã branca, como neve; e seus olhos pareciam uma chama de fogo. 0s pés tinham o aspecto do bronze quando está incandescente no forno, e sua voz era como o estrondo de águas torrenciais. Na mão direita ele tinha sete estrelas, e de sua boca saía uma espada afiada, com dois gumes. Sua face era como o sol, quando brilha com todo seu esplendor. Ao vê-lo, caí como morto a seus pés. Ele, porém, colocou a mão direita sobre mim assegurando: „Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, 0 Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves da Morte e do Hades‟” (Apoc. 1. 12-18). Thomas Anderson vende por dois mil dólares um programa de computador a um personagem chamado Choi, que exclama: “Você é o meu salvador cara! É o meu Jesus Cristo particular”. Creio que já no começo do filme os Wachowski dão a deixa para a identificação que será alimentada desde então até a última cena. Morpheus, mentor de Neo, refere-se a ele como o Predestinado, ou seja, o que já tinha um destino previsto. Essa expressão nos remete ao campo religioso cristão, onde se diz de alguns são predestinados à danação eterna e outros predestinados às delicias do paraíso. No imaginário cristão, o Cristo é um Predestinado à morte, morte vicária e também à ressurreição. Essa predestinação específica cumpre-se em Cristo, e em Neo também: Neo passa pela morte assim como pela ressurreição. Neo morre para salvar (quando volta à Matrix para resgatar Morpheus, e quando dá à Trinity a oportunidade de sair primeiro da Matrix, morrendo vicariamente) e ressuscita para continuar salvando (a continuidade da missão fica claro nas cenas finais de Matrix, quando num telefonema se propõe a continuar a missão, e ascende ao céu, tal qual Cristo). Quando Cristo ascendeu ao céu no intuito de dar continuidade à missão de salvar, disse: “vou preparar-vos lugar...virei novamente e vos levarei comigo.” ( Jo 14: 2 e 3, -Biblia). Jesus também prometeu continuar sua missão. “Matrix é uma dessas obras, em que se nota a presença do predestinado em busca de sua aventura redentora. O Aparato técnico, a linguagem cinematográfica de última geração e o discurso da informática criam o fantástico mundo digital, virtual, futurista, mas mal desfazem a visão mítica e mística subjacente à narrativa.” (Palma, 2004. p. 28). Penso que os criadores de Matrix não querem disfarçar a visão mítica e mística subjacente, pois aí, e exatamente aí está o projeto Identificatório de Matrix. É precisamente no acesso que o espectador tem a esse subjacente que lhe é permitido reviver suas próprias vivências míticas e místicas. Disfarçar a visão mítica e mística, seria correr o risco de limitar as Identifições do telespectador, tudo que os irmãos Wachowski não iriam querer. Na cena que Morpheus está demostrando a nave Nabucodonozor a Neo, logo acima do nome da nave pode ser lido a inscrição Mark III no. 11. A referência é inequívoca ao evangelho de Marcos, capítulo 3 e versículo 11, o qual diz: “E os espíritos impuros, assim que o viam, caiam a seus pés e gritavam Tu és o Filho de Deus!” (grifo nosso). Uma referência à soberania de Cristo e de Neo que passou de Filho do Homem para Filho de Deus ou mantém simultaneamente o status de Filho do Homem e Filho de Deus, assim como Jesus. A inscrição na nave é uma espécie de profecia sobre a vitória do Filho de Deus e a derrota de seus inimigos. Neo não está sozinho em sua missão de salvar. Conta com outros dois aliados: Morpheus e Trinity. Morpheus é o mentor de Neo. É o mestre responsável pela iniciação de Neo na concretização de sua missão. Na mitologia grega Hipnos (daí a axpressão hipnose), é o deus do sono e um de seus filhos é Morpheus, o deus dos sonhos. Morpheus tomava forma humana e aparecia às pessoas durante o sono. „Estar nos braços de Morfeu‟ significa estar dormindo. A droga morfina tem seu nome derivado de Morfeu. Esta droga, indutora do sono e do reino dos sonhos, mas é também a droga que tira a dor (o estado de alerta é doloroso). Em Matrix Morpheus faz a condução de Neo desde um simulacro de vida, nos sonhos, até o estado de alerta, ou “o deserto do real”. Morpheus o ajuda a adaptar-se ao estado de alerta, chegando a assumir um cuidado paternal, lembrando a Neo que seus olhos doem porque ele não está acostumado a usá-lo, lembrando a Neo que este apenas sonhava. É notável que é Morpheus – deus dos sonhos -, que explica a Neo como funciona a Matrix, onde a vida se dá apenas no sonho. Em determinado momento Trinity se refere a Morpheus dizendo que este „seria como um pai para a tripulação da Nabucodonozor‟. A trindade é completada com Trinity. Trinity é a parteira de Neo. Ela o visita quando ele ainda está confinado na Matrix. No primeiro encontro entre ambos, Neo diz que sempre imaginou que se tratasse de um homem. Embora Trinity seja mulher, aí parece estar dada a dica para a apresentação de Trinity como o terceiro membro da Trindade – ora seu nome é Trinity. Trinity é representante do amor eterno, infinito e incondicional ao dar em Neo, no fim, um beijo que é como um sopro de vida, dizendo: “você não pode estar morto, porque eu o amo”. O personagem de Judas, se chama Cypher. Schuchardt o desccreve da seguinte maneira: “Assim como Judas na última ceia, Cypher assume o seu destino de traidor durante uma refeição. Tal qual Judas, que bebe com Cristo na última Ceia, Cypher e Neo bebem juntos, enquanto Cypher manifesta suas dúvidas sobre toda aquela cruzada, com a frase: -Por quê...ah...por que não tomei a pílula azul? Vemos Neo afastar-se de Cypher e dar a ele o que restava da bebida. Cypher não tem boas intenções quando desobedece à convenção social de higiene bebendo por Neo o resto da bebida, assim que este sai. Cypher também se veste com um casaco de pele de réptil, uma alusão à figura bíblica de Satanás na forma de serpente. O que leva Cypher a trair a causa são suas dúvidas a respeito da certeza de Morpheus de que Neo é o Predestinado (note o inteligente anagrama de Neo = One), porque não está convencido de que luta do lado certo, ou pelo menos do lado vencedor” ( Schuchardt in Yeffeth, p. 16). No texto onde Schuchardt mostra o diagrama Neo = One, há uma indicação para a nota de rodapé onde a nota do tradutor lê-se: “No caso, one significa „predestinado‟, „ungido‟, „eleito‟”. No universo religioso do Ocidente são expressões típicas que claramente se aplicam a Jesus. Assim, se a Bíblia traz o evangelho segundo Mateus, Marcos, Lucas e João, o cinema trouxe o Evangelho segundo Matrix. A nave Nabucodonozor tripulada por Neo e seus amigos é proveniente de Zion. Zion é uma cidade localizada no núcleo da Terra, onde estão os seres humanos que ainda não se renderam à pretensa vitória das máquinas. Mas o que é Zion? “Possivelmente o vocábulo tem relação com o árabe tsâna, da raiz ts-w-n, que sugnifica “proteger”, “defender”; por conseguinte tsîyon pode ter tido o sentido de “lugar de defesa”, “fortaleza”... “Sião é a elevação fortificada entre os vales do Cedrom e do Tiroponeon, a qual Davi capturou, tomando-a dos Jebuseus (II Sm 5. 7 -Bíblia). Subseqüentemente tornouse conhecida como a cidade de Davi”... “Desde a época em que Salomão construiu o templo, Sião tornou-se o centro da atividade de Iavé. Iavé identificou-se como aquele “que habita no monte Sião” - (Is. 8. 18) (Harris, 1998. p. 1282). Sião tornou-se o mais importante de todos os lugares sagrados da Palestina JudaicoCristã. O sionismo dá testemunho da mística que envolve essa Sião. “Sionismo” é a doutrina e movimento nacionalistas judeus, que visavam ao restabelecimento do Estado de Israel e à concentração do maior número possível de judeus numa comunidade nacional autônoma, situada na Palestina. A formação do recente Estado de Israel foi uma vitória do sionismo. O sionismo ativo começou no séc. XIX e levou à fundação do Estado de Israel em 1948. O sionismo, atualmente, apóia vários projetos em Israel e atua como ponte cultural entre Israel e os judeus de outros países. Os sionistas trabalham para reviver a língua e a cultura naturais judaicas e para estabelecer as instituições políticas e sociais necessárias à recriação da vida nacional judaica. Uma série de pogroms na Rússia, durante o séc. XIX, incitou a primeira onda significativa de emigração judaica da Europa. Em 1882, grupos de jovens que se denominavam Hoveve-Zion (Amantes de Sião) formaram um movimento a fim de promover a imigração rumo à Palestina. O Hoveve-Zion iniciou o que veio a ser chamado sionismo prático, que apoiava a criação de colônias na Palestina. Theodor Herzl, jornalista austríaco, incrementou o sionismo político, que trabalhava pelo reconhecimento político da reivindicação judia de uma pátria palestina. Os sionistas proclamaram o Estado de Israel em 1948. Assim no imaginário JudaicoCristão, Sião evocaria segurança, prosperidade e paz permanentes - vitória, enfim. Em Matrix, Sião é a única e última fortaleza onde os seres humanos ainda podem viver segurança, prosperidade e paz. É de Sião que parte a tripulação que invade a Matrix, resgata Neo e posteriormente sacramenta a derrocada da Matrix. Embora Neo não seja proveniente de Sião, o roteiro propõe uma espécie de naturalização de Neo à Sião: Neo adota Sião como sua cidade. No antigo testamento, “nascer em Sião” equivalia a ter participação na salvação divina (Sl. 87. 5 –Bíblia), não importando a real nacionalidade da pessoa, pois “os pagãos são adotados por Sião, que se torna sua verdadeira pátria” (Comentário da Bíblia de Jerusalém ao texto Sl. 87. 5). Sem dúvida seria desatino, senão ignorância, se ao escrever sobre Sião fosse direto ao tópico seguinte sem mencionar a estreita relação entre Sião e Jerusalém. Jerusalém em seu nome primitivo é Salém, quando Abraão honra o rei-sacerdote de Salém Melquisedeque, sendo que na Teologia Cristã, Melquisedeque é uma figura de Cristo como exposto pelo escritor de Hebreus no capítulo 7. Salém – Shalem – significa “completo, próspero, pacífico” ((Harris, 1998. p. 665). Quando Davi a conquistou dos Jebuseus, passou a ser denominada “Cidade de Davi” (I Rs. 3. 1 - Bíblia), ou “cidade do Grande Rei” (Sl. 48. 2 -Bíblia). Jerusalém foi profetizada “como centro do futuro reino messiânico” (ibid., 665). De fato, o Apocalipse fala da “Nova Jerusalém” como lugar pleno de bem aventuranças (Ap. 21. 2 -Bíblia). Por Cidade do Grande Rei faz-se referência ao grande rei que a conquistou, Davi, mas a escatologia cristã entende a aplicação do termo ao próprio Cristo; o “Grande Rei”, ou “Rei dos Reis e Senhor dos Senhores” (Ap. 19.16 -Bíblia), sendo Ele mesmo ainda o “Filho de Davi” (Mt. 21. 9 -Bíblia), e “Raiz de Jessé” (Rm. 15. 2 -Bíblia). Assim, há uma relação muito íntima entre a fortaleza de Matrix, quartel-general de Neo, Zion e a Sião = Jerusalém Bíblicos. Sião e Jerusalém são expressões carregadas de afeto e significação para os habitantes do Ocidente de Cultura Judaico-Cristã. No Apocalipse o Cordeiro (metáfora para Cristo) inicia seu reinado paradisíaco de paz e segurança com seu grupo de escolhidos sobre o monte Sião (Apoc. 14. 1-5 -Bíblia). Tanto o texto bíblico como as imagens de Matrix são uma evocação da contínua busca do paraíso perdido, elemento caro à subjetividade do homem Ocidental, de onde Milton claramente baseou sua principal obra. Neoplatonismo Uma das passagens mais conhecidas da sabedoria Ocidental é o mito da caverna. Platão a escreveu colocando as palavras na boca de Sócrates quando de um diálogo com Glauco. Embora apareça de forma dialogal no Livro VII de A República, aqui a alegoria está adaptada em formato de monólogo preservando a integridade da fala de Sócrates. “Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os Impedem de voltar a cabeça; a luz chega-Ihes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas. Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio. Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte? E com, as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo? Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam? E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles? Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados. Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora? E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram? E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras? Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e a sua luz. Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como é. Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com,os seus companheiros, na caverna. Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram? E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia? Imagina ainda que esse homem volte à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol? E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-Io?” (Platão, 2000, pp. 225228). O mito da caverna é a um só tempo um pré-cinema (as pessoas estão assentadas numa caverna escura, voltados para o fundo da caverna, onde se projetam simulacros da realidade e há uma censura quanto a conversas paralelas: “Platão descreveu minuciosamente o mecanismo imaginário da sala escura de projeção” (Machado, 1997. p. 13 ) e uma parábola da ascese do conhecimento. A ascese do conhecimento materializada no instinto epistemofilico resultou no atual estágio científico. A alegoria da caverna descreve um prisioneiro que contempla dia-a-dia, no fundo de uma caverna, os reflexos de simulacros que - sem que ele possa ver - são projetados ao fundo da caverna por um fogo artificial. Como sempre viu essas projeções de artefatos, toma-os por realidade e permanece iludido, crendo contemplar cenas reais de vidas reais. A situação desmonta-se e inverte-se quando o prisioneiro se liberta: reconhece o engano em que permanecera, descobre a "encenação" que até então o enganara e, depois de galgar a rampa que o conduz à saída da caverna, pode lá fora começar a contemplar a verdadeira realidade e compreender o simulacro. Aos poucos, ele, que fora habituado à sombra, vai podendo olhar o mundo real: primeiro através de reflexos - como o do céu estrelado refletido na superfície das águas tranqüilas, até finalmente ter condições para olhar diretamente o Sol, fonte de toda luz e de toda realidade. Esta alegoria de múltipla dimensão pode ser vista tanto como fabulação da ascese religiosa como da filosófica e científica. Aquele que se liberta das ilusões e se eleva à visão da realidade é o que pode e deve governar para libertar os outros prisioneiros das sombras: é o filósofo-político, aquele que faz de sua sabedoria um instrumento de libertação de consciências e de justiça social, aquele que faz da procura da verdade uma arte, um desilusionismo. O parágrafo acima bem poderia constar no prefácio de uma virtual biografia de Neo, no entanto trata-se de uma tentativa de esclarecer o roteiro do Mito da Caverna. É notória a similaridade da história contada por Platão da que é contada pelos irmãos Andy e Larry Wachowski. Os primeiros pensadores cristãos amalgamaram as idéias de Platão com a teologia paulina, unindo Filosofia e Teologia. Santo Agostinho foi o principal deles e com seu neoplatonismo praticamente inaugurou a Teologia Católica. Os Wachowski amalgamaram o mito da caverna de Platão e traços marcantes da religião judaico-cristã reeditando a junção do platonismo com o evangelho. Um novo encontro entre Filosofia e Teologia. Dificilmente um ser humano já inserido na cultura do Ocidente Platônica e Cristã não se identificaria com Matrix. BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém: Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2003 HARRIS, R. Laid (org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. IRWIN, William. Matrix – bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Madras, 2003. MACHADO, Arlindo. Pré- cinemas & pós- cinemas. Campinas, Papirus,1997. PALMA, Glória Maria (org.). Literatura e Cinema – A demanda do Santo Graal Matrix Eurico O Presbítero A Máscara do Zorro. Bauru: EDUSC – Fundação Veritas, 2004. PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Col. Os Pensadores). VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor. Ampersand, 1997. YEFFETHT, Glenn. A pírula vermelha – Questões de Ciência Filosofia e religião em Matrix. São Paulo: Publifolha, 2003.
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