CAMINHADAS - Observatório de Favelas

Transcrição

CAMINHADAS - Observatório de Favelas
UFRPE Universidade Federal Rural
de Pernambuco
Caminhadas de universitários de origem popular
UFRPE
UFRPE
Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.
O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.
Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
Organização da Coleção:
Monique Batista Carvalho
Francisco Marcelo da Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Aline Pacheco Santana
Programação Visual:
Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ
Coordenação:
Claudio Bastos
Anna Paula Felix Iannini
Thiago Maioli Azevedo
C183
Caminhadas de universitários de origem popular : UFRPE / organizado por Ana Inês Souza,
Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.
236 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)
Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares.
Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-89669-44-3
1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.
Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.
V. Universidade Federal Rural de Pernambuco. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
CDD: 378.81
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Organizadores
Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
UFRPE
Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ
Rio de Janeiro - 2009
Coleção
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade – SECAD
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Secretário
Armênio Bello Schmidt
Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI
Leonor Franco de Araújo
Coordenação Geral de Diversidade – CGD
Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e
as comunidades populares
Jorge Luiz Barbosa
Jailson de Souza e Silva
Coordenação Geral
Alexandre Cardoso Tenório
Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFRPE
Heloisa Flora Brasil Nóbrega Bastos
Coordenação Pedagógica
Kilma da Silva Lima
Hugo Jose Guedes Moura
Letícia Maciel de Oliveira
Coordenação Pedagógica Adjunta
João Morais de Sousa
Coordenação de Ações Afirmativas
João Gilberto de Farias Silva
Coordenação de Pesquisa
Aldenise Chagas Curvelo
João Gonçalves Moreira Neto
Joseana Genuíno Dourado
Coordenação Adjunta Administrativa
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
Valmar Corrêa de Andrade
Reitor
Reginaldo Barros
Vice-Reitor
Paulo Donizete Siepierski
Pró–Reitor de Extensão
Autores
Adnna Paula da Silva
Adriano José da Silva
Adriano Sotero da Silva
Alcione Lenita da Silva
Alessandro Rodrigues de Farias
Alexsandra Silva de Lima
Aline Maria Lima de Souza
Analécia Quirino Barros
André Almeida da Silva
Andrea Avelino da Silva
Andréia Cibelly Marques Ferreira
Andresa Priscila de Souza Ramos
Janaína S. Santana
Aracelli Gomes da Silva
Bárbara Tatiane da Silva Vilela
Carlos André da Silva Mendes
Cintia Maria da Silva
Cláudia Ferreira Alexandre Gomes
Cláudia Fidélis da Silva
Cláudio de Araújo Castro
Cristiane Farias Brandão da Cruz
Cristiane Rodrigues de Araújo
Dayane Cristina da Costa
Debora Bezerra de Santana
Deise Haas
Deyve André Silva de Lira
Edjane Oliveira dos Santos
Elizabete Honório da Silva
Emmanuel Ramos de Freitas
Ericka Carneiro Leão de Oliveira
Euclides Leonardo da Silva Pedrosa
Felipe Gomes da Silva
Fernando Bruno Vieira da Silva
Fernando Tiago N. Medeiros
Francisco Ernandes Braga de Souza
Gabriel Soares Santos
Gutembergue Francisco da Silva
Isabelle Susan de Andrade Pereira
Jacilene dos Santos Clemente
Janecleide de Oliveira Sales
João Carlos Dias de Almeida
Jonata de Arruda Francisco
José Edson de Lima Torres
Joseane Maria do Nascimento
Joseane Maria dos Santos
Josias Ferreira de Mendonça
Karina Fabiana da Silva
Leidiana Lima dos Santos
Leonardo Barbosa da Rocha
Linalva Maria de Barros
Luciano dos Santos da Silva
Luis Carlos Cipriano
Magda Maria da Silva Santana
Malike Erike
Manoel José da Silva
Marcio André Mendes
Maria Aparecida dos Santos
Maria Cristina Balbino Ribeiro Cabral
Maria das Dores Soares da Silva
Maria do Socorro Fonseca Freire Filha
Maria Madalena Barbosa de Lima
Marília Avelino da Silva
Mitaliene de Deus S. Silva
Natália Josefa do Nascimento
Natália Miranda Bezerra
Nelma Maria Pereira Roza
Pollyanna Accioly de Souza
Rafael da Veiga Pessoa Portela
Raffael Campos dos Santos
Renata Shirley de Santana Barbosa
Renato de Souza Freitas
Roberta Cristina da Silva
Rosangela Ferreira de Mesquita
Rosângela Lima da Silva
Selineide Bezerra da Silva
Sílvia Carla de Assis Alexandre
Suelâeny Aparecida de Andrade
Suzanna Kelly da Silva
Taciana Silva de Miranda
Tânia Lúcia da Costa
Tássia de Sousa Pinheiro
Themistocles Alves de Souza
Thiago da Silva Barbosa
Valéria Verônica dos Santos
Viviane Rodrigues de Araújo
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela
melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma
intensa e sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.
Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na
cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de
Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,
inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos
o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,
UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os
estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,
UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,
UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.
Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,
ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como
pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em
comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de
1
A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem
popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,
ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19
publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das
camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os
cursos com menor prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais
justa e uma humanidade cada dia mais plena.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Sumário
Memorial
Adnna Paula da Silva ....................................................................................... 13
Família: berço na infância e suporte na vida
Adriano José da Silva ....................................................................................... 15
Memorial
Adriano Sotero da Silva ................................................................................... 18
Lições de casa e de vida
Alcione Lenita da Silva .................................................................................... 21
Memorial
Alessandro Rodrigues de Farias ....................................................................... 23
Lutas e vitórias
Alexsandra Silva de Lima .................................................................................. 25
Depois da queda...
Aline Maria Lima de Souza .............................................................................. 28
Dificuldades: estímulos para vitória!
Analécia Quirino Barros ................................................................................... 33
Minha caminhada estudantil...
André Almeida da Silva .................................................................................... 35
Memorial
Andrea Avelino da Silva ................................................................................... 39
Persistência = superação
Andréia Cibelly Marques Ferreira ................................................................... 44
Memorial
Andresa Priscila de Souza Ramos .................................................................... 46
Memorial
Janaína S. Santana ........................................................................................... 49
O que ser quando eu crescer...
Aracelli Gomes da Silva ................................................................................... 53
Desistir? Jamais!
Bárbara Tatiane da Silva Vilela ....................................................................... 56
Escola e vida – exercício de perseverança e aprendizado
Carlos André da Silva Mendes ......................................................................... 57
História de uma longa caminhada
Cintia Maria da Silva ....................................................................................... 60
O Conexões de Saberes facilitando minha permanência estudantil
Cláudia Ferreira Alexandre Gomes ................................................................. 65
De como cheguei onde estou
Cláudia Fidélis da Silva ................................................................................... 67
Uma história de determinação
Cláudio de Araújo Castro ................................................................................ 69
O começo de tudo...
Cristiane Farias Brandão da Cruz ................................................................... 71
Vitória sobre a vida
Cristiane Rodrigues de Araújo ....................................................................... 74
A óptica de meu ser
Dayane Cristina da Costa ................................................................................ 77
Medo. Que medo?
Debora Bezerra de Santana ............................................................................. 79
Memorial
Deise Haas ........................................................................................................ 82
Retroceder às vezes é preciso, mas nunca desistir
Deyve André Silva de Lira ................................................................................ 84
Quem acredita sempre alcança
Edjane Oliveira dos Santos .............................................................................. 87
Memorial
Elizabete Honório da Silva .............................................................................. 89
O caminho de pedras que...
Emmanuel Ramos de Freitas ............................................................................. 91
Memorial
Ericka Carneiro Leão de Oliveira .................................................................... 94
Meus pais, minha vida
Euclides Leonardo da Silva Pedrosa ............................................................... 96
Assim é a vida...
Felipe Gomes da Silva .................................................................................... 100
Memorial
Fernando Bruno Vieira da Silva .................................................................... 103
Memorial
Fernando Tiago N. Medeiros .......................................................................... 106
O caminho se faz caminhando
Francisco Ernandes Braga de Souza ............................................................. 108
Como bom brasileiro, não desisto nunca
Gabriel Soares Santos .................................................................................... 110
Sonhos: utopias possíveis
Gutembergue Francisco da Silva ................................................................... 113
Caminho sem fim
Isabelle Susan de Andrade Pereira ................................................................ 115
Memorial
Jacilene dos Santos Clemente ........................................................................ 116
Memorial
Janecleide de Oliveira Sales .......................................................................... 119
Ambiente familiar: um bom lugar para nascer
João Carlos Dias de Almeida ......................................................................... 122
... as armas de Jorge ...
Jonata de Arruda Francisco ........................................................................... 124
Conquistas vividas
José Edson de Lima Torres ............................................................................. 130
Partes da parte de um todo
Joseane Maria do Nascimento ....................................................................... 133
Um pouco de mim
Joseane Maria dos Santos .............................................................................. 136
Um sonho em andamento
Josias Ferreira de Mendonça ......................................................................... 140
Todo sonho é possível de concretizar-se
Karina Fabiana da Silva ................................................................................ 143
Lutar contra as dificuldades
Leidiana Lima dos Santos .............................................................................. 146
Caminhos de esperança
Leonardo Barbosa da Rocha ......................................................................... 149
O sonho, o despertar, a vida e o desafio
Linalva Maria de Barros ................................................................................. 152
Eu, “gostosinho”
Luciano dos Santos da Silva .......................................................................... 154
Caminhadas: a história de minha vida
Luis Carlos Cipriano ...................................................................................... 157
Escrevendo uma história e modificando o convencional
Magda Maria da Silva Santana ..................................................................... 159
Memorial
Malike Erike .................................................................................................... 162
Minha trajetória
Manoel José da Silva ...................................................................................... 164
Minha vida
Marcio André Mendes .................................................................................... 167
Memorial
Maria Aparecida dos Santos .......................................................................... 170
Acreditar que é possível
Maria Cristina Balbino Ribeiro Cabral ........................................................ 174
Memorial
Maria das Dores Soares da Silva ................................................................... 176
Caminhadas: um novo olhar
Maria do Socorro Fonseca Freire Filha ......................................................... 178
Batalhas e vitórias, assim sou eu
Maria Madalena Barbosa de Lima ................................................................ 182
“Sem saltar fora da ponte e da vida”
Marília Avelino da Silva ................................................................................. 184
Um pouquinho de mim
Mitaliene de Deus S. Silva .............................................................................. 187
Persistências
Natália Josefa do Nascimento ....................................................................... 189
Tudo é possível
Natália Miranda Bezerra ............................................................................... 191
Memorial
Nelma Maria Pereira Roza ............................................................................. 193
Memorial
Pollyanna Accioly de Souza ........................................................................... 195
Meninos não choram
Rafael da Veiga Pessoa Portela ..................................................................... 196
Em busca da vitória
Raffael Campos dos Santos ............................................................................ 198
Memorial
Renata Shirley de Santana Barbosa .............................................................. 200
Horizontes
Renato de Souza Freitas ................................................................................. 202
Uma luz no fim do túnel
Roberta Cristina da Silva .............................................................................. 206
Memorial
Rosangela Ferreira de Mesquita .................................................................... 208
Nunca desista de seus sonhos
Rosângela Lima da Silva ................................................................................ 210
Espelho
Selineide Bezerra da Silva ............................................................................. 212
Silvinha no País das Maravilhas
Sílvia Carla de Assis Alexandre ..................................................................... 214
Ninguém me segura
Suelâeny Aparecida de Andrade .................................................................... 216
A importância de aprender é recriar
Suzanna Kelly da Silva ................................................................................... 218
Caminhadas Conexões de Saberes
Taciana Silva de Miranda .............................................................................. 220
Caminhar sem fronteiras
Tânia Lúcia da Costa ..................................................................................... 222
Uma mensagem de incentivo
Tássia de Sousa Pinheiro ................................................................................ 225
Memorial
Themistocles Alves de Souza .......................................................................... 228
Memorial
Thiago da Silva Barbosa ................................................................................ 230
Memorial
Valéria Verônica dos Santos .......................................................................... 232
Minha história
Viviane Rodrigues de Araújo ......................................................................... 234
Memorial
Adnna Paula da Silva*
Meu nome é Adnna Paula da Silva. Caçula de Paulo e Cícera, que tiveram, além de
mim, outros dois filhos: Ricardo e Ana Paula. Meus pais começaram a trabalhar muito cedo
e por isso, não conseguiram concluir o Ensino Fundamental.
Desde o meu primário, sempre gostei de estudar. Os professores diziam que eu tinha
potencial e passaram a dedicar-se ao meu desenvolvimento. Aprendi a ler rápido e nunca fui
reprovada. Sempre almejei ter uma profissão em que pudesse desempenhar minhas habilidades
e que, ao mesmo tempo, pudesse dar-me um retorno financeiro. Só que não sabia como
proceder para conquistá-lo.
No terceiro ano do Ensino Médio, por meio do Programa “Rumo à Universidade”,
surgiu a vontade de ingressar em uma universidade. Fiz a inscrição. Por ter sido meu primeiro
vestibular, estava muito ansiosa e esperançosa também. Só passei na primeira fase. No ano
seguinte, inscrevi-me novamente, mas passei a ter dificuldades para estudar, devido ao
cansaço advindo do trabalho e apesar de trabalhar, às condições me impossibilitavam de
freqüentar um pré-vestibular. Comecei, então, a assistir às aulas na escola em que havia
estudado e tirava minhas dúvidas com os professores. De vez em quando, ia a um cursinho
particular, com uma colega, e assistia aos “aulões”, com revisão dos assuntos de prova dos
vestibulares. Algumas pessoas me acusavam de “penetra”.
Já que não tinha condições de comprar livros, estudava na Biblioteca Pública Presidente
Castelo Branco e levava os livros para as leituras em minha casa. Enfrentei o desafio de
passar noites, acordada, estudando; abdiquei de muitos entretenimentos, porque tinha a
consciência de que esses desafios só seriam vencidos com muita garra.
Chegou o momento decisivo: uma prova iria medir os conhecimentos obtidos durante
toda minha vida. Passei na primeira fase, mas fiz a prova da segunda fase um tanto temerosa.
No dia em que saiu o resultado, eu não queria saber, pois tinha certeza da desclassificação.
A ansiedade, porém, não me deixou dormir. Então, liguei para o Fera-online e escutei que
havia sido aprovada. Não acreditei. Achei que delirava por causa do sono e liguei mais três
vezes. Meus pais ficaram super contentes. Minha mãe, em sua simplicidade, achou que eu
havia conseguido um emprego. Esboço um sorriso, ainda hoje, quando me lembro da reação
dela e de suas muitas perguntas. Só acreditei, quando fiz a matrícula no curso de Licenciatura
em Ciências Biológicas, no segundo semestre de 2005.
Ouso uma abordagem mais direta, meus caros leitores, para lhes dizer que, com palavras,
fica difícil expressar a alegria e a imensa satisfação de saber que minha dura rotina de
Graduanda em Biologia
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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estudos valeu a pena e que minha origem - comunidade popular e escola pública - não me
levou à estagnação, ao contrário, me estimulou a crescer ainda mais. Sinto-me feliz por estar
aqui; sinto-me feliz por participar de um Programa, como o “Conexões de Saberes”, que
utiliza como critério a origem de seus participantes, com o objetivo de auxiliá-los e incentiválos a permanecerem na universidade e a integrarem-se tanto à comunidade acadêmica,
quanto à comunidade popular.
Felizmente, eu e meus colegas, conseguimos contrariar as estatísticas e estamos aqui.
Há muitos desafios a serem superados, mas nada que não possamos, com a mesma vontade
de sempre, vencer!
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Caminhadas de universitários de origem popular
Família: berço na infância e suporte na vida
Adriano José da Silva*
Assim como muitos brasileiros, tenho um sobrenome comum: Silva. Considero que
esse nome transmite a idéia de simplicidade, humildade, pobreza, mas também é sinônimo
de luta. Luta de muita gente que enfrenta a batalha da vida, em busca de melhorias em sua
realidade e na realidade dos demais à sua volta.
Chamo-me Adriano José da Silva, tenho 20 anos, filho de Erasmo José da Silva,
pedreiro, e de Maria de Fátima da Silva, dona de casa. Estudei todo o Ensino Fundamental
e o Médio em escola pública, mais precisamente na Escola Dona Leonor Porto, no Município
de São Lourenço da Mata-PE. Nasci em Paudalho-PE, mas São Lourenço é minha morada
desde os 7 anos. Sou um lutador, mas lutador que age sob pressão; são às circunstâncias que
me levam a tomar decisões ou a executar qualquer tipo de ação.
Grande parte do que sou hoje devo aos meus pais, que sempre se esforçaram
bastante para me manter estudando, apesar de ambos terem origem muito humilde são filhos de agricultores - e lamento por eles não terem concluído (meu pai) o Ensino
Fundamental e (minha mãe) o Ensino Médio.
Quando tinha cerca de três anos e meio, meus pais decidiram colocar-me na escola,
não me lembro se queria ir, mas fui. Na escola, quando criança, sempre estive entre os alunos
mais aplicados, embora gostasse muito de brincar. Só conseguia conciliar brincadeiras e
estudo, porque minha mãe (que chamo carinhosamente mainha) ficava no meu pé o tempo
inteiro. Só podia brincar, se fizesse as tarefas. Recordo-me de um episódio em que estava em
uma casa de jogos, na época chamada de Play Time, e mainha chegou com um pedaço de
fio, dizendo que, se eu não fosse para casa, iria apanhar ali mesmo. Graças a Deus ocorreu
tudo bem e eu não sofri nenhum arranhão, embora merecesse.
Minha família tem uma base religiosa muito forte. Eu não fugi à regra e sempre me
interessei por assuntos religiosos. Creio que isso tenha influenciado a escolha do curso
que faço, pois, ao contrário do que muitos pensavam - que faria Filosofia ou Teologia
para tornar-me padre -, decidi por História. Não me tornei, porém, um ateu por ter feito
essa escolha.
Na adolescência, relaxei um pouco, apenas me interessavam a diversão e o passar de
ano, não queria nada mais do que isso. Quando cheguei ao terceiro ano do Ensino Médio,
pouco sabia sobre o vestibular, que, também, até então, não me interessava. Isso começou a
mudar quando a diretora adjunta da escola em que estudava, a professora Emilia, avisou
que haviam iniciado as inscrições para o Rumo à Universidade, pré-vestibular oferecido
Graduando em História.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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pelo governo do Estado para alunos de escola pública. Optei por fazer a prova e fui aprovado.
Daí, então, comecei a interessar-me pelo vestibular. Nesse pré-vestibular, ocorreu um fato
curioso, que considero ter mudado o percurso de minha vida. Surgiu uma espécie de
promoção: quem escolhesse um curso de licenciatura teria desconto de 50% na taxa de
inscrição do vestibular. Mais uma vez, minha família teve grande participação, pois
liguei para casa e perguntei à minha mãe se poderia fazer a inscrição, já que seriam
meus pais que pagariam essa taxa. Minha mãe disse que por ela estaria bom e que eu
fizesse o que achasse melhor. A dúvida era: qual curso fazer? Não tinha afinidade com
a área de exatas, não gostava nem de Letras nem de Geografia, então, lembrei-me da
história da Igreja e das duas grandes guerras, assuntos dos quais gostava muito, e disse
a mainha que iria fazer Licenciatura em História na Universidade Federal Rural de
Pernambuco - UFRPE. Ela concordou.
Infelizmente, não passei no primeiro vestibular, mas isso me serviu de lição. Agora, eu
já sabia o que queria, tinha amadurecido em minhas escolhas.
No ano seguinte, meus pais decidiram pagar um cursinho para mim. Eu não queria,
porque seria um gasto a mais, mas com a ajuda de alguns amigos, meus pais conseguiram
pagar, e eu fiz minha parte: estudei para passar. Nesse período, meu pai ficou desempregado,
tendo que fazer bicos para manter os custos da casa e de meus estudos. Algumas vezes,
quando eu podia, ia ajudá-lo (meu pai, apesar de sua simplicidade, nunca me forçou a
trabalhar, sempre priorizando meus estudos e enfatizando para que eu estudasse e não
tivesse que trabalhar como ele). Com muita dificuldade, consegui cursar todo o pré-vestibular,
e no final do ano de 2004, a recompensa: fui aprovado no, agora, tão sonhado vestibular
para o curso de Licenciatura Plena em História, da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Como pede a tradição, o primeiro passo a ser tomado, depois de saber da aprovação no
vestibular, no caso dos homens, é raspar a cabeça. Antes que me levassem à força, fui por
vontade própria. Não fiquei mais bonito, mas a felicidade era intensa. Alguns amigos também
passaram, o que deu maior brilho à festa. Fui o primeiro da família a entrar em uma
universidade pública, pensem na alegria!
Depois das férias (tão merecidas), em 2005, é chegada a hora de encarar a Universidade.
Lugar cheio de mitos e expectativas. No dia da matrícula, conheci alguns dos novos
universitários e revi colegas de caminhada no pré-vestibular, inclusive alguns que estudariam
comigo, o que fez com que o nervosismo fosse aplacado.
No primeiro dia de aula, estava receoso, só conhecia três pessoas de toda uma turma de
quarenta alunos, sem falar que estávamos sérios, tensos, com medo de cometer alguma gafe
e “pagar mico”. Pensava estar em uma turma chata, mas com o decorrer do período, pude ver
que era somente uma impressão inicial.
O caminho percorrido até aqui não foi fácil. Apesar da Universidade ser pública, não
se nota muito empenho em se manter os universitários de renda baixa. Tive sorte (fruto de
minha competência) de entrar, ainda no primeiro período, em um Programa chamado Bolsa
de Incentivo Acadêmico (BIA), que tem como objetivo, alcançar alunos vindos de escolas
públicas, que tenham tirado melhores notas no vestibular, e fazer com que voltem às suas
escolas e nelas exerçam algum tipo de atividade, servindo de exemplo - de que é possível
ser aprovado no vestibular de universidades públicas - para os demais alunos.
Com muita dificuldade, fui vencendo o primeiro, o segundo e o terceiro períodos,
sendo um aluno regular e passando em todas as cadeiras - umas com mais facilidade, outras
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Caminhadas de universitários de origem popular
nem tanto. Antes de iniciar o quarto período, um susto. Meu pai, então provedor da família,
sofreu um acidente grave e passou uma semana no hospital. Ao voltar para casa, ainda ficou
alguns dias sem conseguir andar. Teve como principal conseqüência, a quebra de um braço,
ou melhor, o esmagamento do punho. Tal fato me desestabilizou, pois, além de quase ter
perdido meu pai, ele ficou impossibilitado de executar seu trabalho de pedreiro.
Vi-me sem saída: estava desempregado e gastando muito. Pensei em trancar o curso,
mas minha mãe não permitiu, dizendo que esta seria a única coisa que eu não faria. Muito
preocupado, fui à igreja. Lá, encontrei um amigo que estuda comigo e ele me disse que
ocorreria uma seleção para um Programa, chamado “Conexões de Saberes”, que beneficiava
os escolhidos nessa seleção, dentre outras coisas, com uma bolsa de trezentos reais. Não
perguntei mais nada. Providenciei a documentação e me inscrevi. Tive a alegria de saber
que nós dois tínhamos sido selecionados.
O “Conexões de Saberes” surgiu para mim como uma “válvula de escape”, auxiliandome e proporcionando atividades que me reanimaram acadêmica e humanamente.
Não mencionei no início de meu texto, mas tenho uma irmã que, neste momento,
passa pela seleção do vestibular. Acredito bastante nela; sei que é muito persistente e
convicta de suas idéias e objetivos. Ela presta vestibular para Serviço Social.
Hoje, passando para o quinto período, vejo como foi difícil chegar onde estou. Tantos
caminhos, tantas escolhas e sempre com dúvidas sobre quais as melhores escolhas.
Reconheço que minha família tem muita importância em minha vida: apóia-me em tudo,
fazendo com que nunca desistisse. Sei que, um dia - e ele deve estar perto -, terei que “criar
asas e voar”, seguir meu próprio rumo, deixando a família um pouco de lado. Tenho planos
e pretendo respeitá-los, alcançá-los, não esquecendo o cunho ético-religioso da formação
que recebi de minha família.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Memorial
Adriano Sotero da Silva*
“Sonho que se sonha só é apenas um
sonho, sonho que se sonha junto se torna
realidade”
Paulo Freire
Reportando-me ao pensamento expressado pelo grande educador Paulo Freire,
relembro e até mesmo vivo esta metáfora durante a minha caminhada. Ingressei na
Universidade aos 26 anos de idade, passando por diversas aprovações que me fizeram
seguir em frente.
Sempre morei em Caetés I, bairro de Abreu e Lima, onde dei meus primeiros passos na
Escola Vila Sezamo, passando todo meu ensino fundamental beneficiado por uma bolsa de
estudo, pois meu pai era funcionário da Hering Nordeste Indústria Têxtil, sua profissão era
estampador e tinha uma renda de um salário-mínimo. Nossa família era grande, juntamente
comigo, tenho mais três irmãs e minha mãe. Nossa situação econômica sempre foi muito
limitada. No ano de mil novecentos e noventa e seis, a fábrica entrou em crise e muitos
funcionários foram demitidos, inclusive meu pai.
Diante desta nova realidade, todos em casa tiveram que trabalhar, eu como irmão mais
velho sempre trabalhei, mas desta vez a situação era mais seria, não trabalhava mais para o
meu sustento e sim para ajudar na renda familiar. Aos quatorze anos, vendia picolé a estudava
na Escola Isaura de França, cursando a 6ª série, continuei vendendo picolé até os 16 anos e
repetindo a mesma série, foi um momento muito difícil pois estava na adolescência e a
realidade na qual eu convivia não me mostrava outra saída se não ir trabalhar de cobrador de
lotação de kombi. Saía as cinco horas da manhã de casa e chegava as cinco e meia da tarde,
indo para a Escola João Barbalho que fica em Recife. Passei mais dois anos nesta profissão,
convivendo com todo tipo de pessoa, tendo a oportunidade para vivenciar e presenciar
experiências da marginalidade ao do mundo das drogas, mas nunca me envolvi em nenhum
desses fatos.
Aos 18 anos de idade no primeiro ano do ensino médio, surgiu a oportunidade de ser
bolsista do Salesiano na qualidade de seminarista, onde vivenciei experiências riquíssimas
de formação religiosa, moral e cidadã que me mostraram novas oportunidades e me fizeram
crer que eu poderia superar a minha própria realidade.
A experiência no Salesiano não passou mais de um ano, mais continuei participando
dos trabalhos na comunidade Eclesiais de Base dos Caetés, onde permaneci estudando na
Graduando em Normal Superior.
18
Caminhadas de universitários de origem popular
Escola Profª Isaura de França. Participei dentro da escola do movimento estudantil, ingressei
na entidade dos estudantes de Abreu e Lima como secretário, promovendo diversas atividades
de mobilização estudantil. Concluí nessa escola o meu segundo grau, mas a luta pela
sobrevivência sempre esteve presente em minha família, meu pai continuava desempregado
e eu não gostaria de voltar a ser cobrador de kombi. Desta forma, a solução foi arrumar
emprego em fábricas perto de minha casa, nesta época, já tinha concluído o segundo grau
no ano de dois mil e um.
Em dezessete de janeiro de dois mil e um, começo a trabalhar na empresa Fibrasa
Nordeste do Brasil, como auxiliar de produção, recebendo um salário de duzentos e quarenta
reais, após seis meses, fui promovido a operador de máquina de serigrafia, nesta época, parei
os estudos, pois o trabalho não me dava condições de estudar, começava às quatorze horas
e largava as vinte e duas horas. Passei dois anos e três meses trabalhando nesta empresa
onde conquistei uma profissão, tornando-me serigrafista de artes plásticas, com essa profissão,
trabalhei em outras empresas durante cinco anos, participei de vários cursos na área de
recursos humanos e gestão social, que me ajudaram na minha formação profissional.
Todo este tempo de trabalho, não apagou o meu desejo de me tornar um professor, mas não
tinha base para passar no vestibular, entrei em diversos grupos de estudos mais eu sempre
desistia no meio do caminho por diversos motivos, inclusive a falta de tempo por causa do
trabalho. Mais a minha luta não acabaria neste momento. Foi quando em dois mil e quatro,
montamos um grupo de estudos entre amigos, onde todos se ajudavam, no intuito de ingressar
nas Universidades Públicas, e neste ano não fiz o vestibular, sendo que quatro dos meus amigos
do grupo de estudos conseguiram ser aprovado nas Universidades Federais de Pernambuco.
Nesse momento, trabalhava como gazeteiro (vendendo jornal) nos sinais da Imbiribeira
e Boa viagem bairros do Recife. Então, todos estavam na universidade e eu permanecia
longe do meu sonho. Mas como diz o ditado popular, “ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA,
TANTO BATE ATÉ QUE FURA”, eu não desisti, fiquei estudando em casa e ao mesmo
tempo trabalhando de vendedor de jornal e locutor de anúncios nas lojas do comércio do
Recife. Saía para vender jornal às quatro da madrugada e ia até as dez da manhã e das treze
horas as dezessete e trinta como locutor.
No mês de agosto do ano de dois mil e cinco, estava sem saber o que fazer, não tinha
dinheiro para inscrição do vestibular e não iria fazer mais uma vez. Quando consegui obter
uma quantia que daria para pagar a minha inscrição, mas me faltava confiança, por nunca ter
tentado por falta de preparo. Sabendo que a inscrição tinha prorrogado, não gastei o dinheiro,
mas fiquei em dúvida quanto a minha aprovação no vestibular, já que a quantia iria fazer
falta para outras prioridades.
Neste mesmo dia, encontro um grande amigo chamado Edílson que tinha participado
do grupo de estudo e já era universitário, na incerteza perguntei o que deveria fazer naquele
momento, ele como sempre não parou para pensar e respondeu:
- “Vou levar você para fazer a inscrição”. Me deu carona até o centro da cidade e fiz a
minha inscrição através da internet. Desse dia em diante, comecei a estudar como nunca,
sofrendo uma certa resistência por parte da minha família que não entendia o meu objetivo
de maneira clara. Alguns colegas me gozavam dizendo que não teria condições, porque tem
pessoas que passam o ano todo estudando e eu com apenas três meses não iria passar.
Esses meses foram decisivos entre estudar até altas horas da madrugada e trabalhar
durante o dia como vendedor de jornal. E, finalmente, chegou o grande dia da primeira fase
Universidade Federal Rural de Pernambuco
19
do vestibular, foi uma grande tensão, saí da prova completamente arrasado, pois física e
matemática estavam muito difíceis, logo pensei que não passaria. Mas estava enganado,
fiquei entre os classificados. Passado a primeira fase, senti que o sonho estava mais próximo,
então as horas de estudo foram intensas, até o dia da prova.
Novamente estava com medo de não ter conseguido me sair bem na redação, dias de
angústia foram vividos durante um mês. Mas finalmente, no dia dezoito de janeiro de dois
mil e seis, saiu o resultado. Fui à casa de amigos saber o resultado pela internet e vi o meu
nome como classificado no curso de licenciatura Normal Superior da Universidade Federal
Rural de Pernambuco, mesmo assim, não acreditava no que tinha visto. No outro dia quando
fui vender jornal tive a felicidade de ver o meu nome no listão dos aprovados da COVEST.
Após a aprovação veio a luta para conseguir toda a documentação, pois não tinha
dinheiro suficiente para tirar xérox e autenticar documentos e nem passagem para me deslocar
até a universidade, então, contei com ajuda de amigos da comunidade.
O meu primeiro grande dia foi cheio de emoção, finalmente, havia conseguido realizar
o meu sonho, estava em frente a Universidade Federal Rural de Pernambuco, quando olhei
para cima e disse obrigado SENHOR por estar aqui neste dia, e fiz uma promessa que iria
entrar com o pé direito e só sairia da Universidade como doutor em educação, para poder
ajudar muitos outros “ADRIANOS” da vida.
A minha história não se encerra por aqui ela continua...
20
Caminhadas de universitários de origem popular
Lições de casa e de vida
Alcione Lenita da Silva*
Quando nasci, no inverno de 1979, na cidade de Recife, meus pais decidiram me
batizar com o nome de Alcione Lenita da Silva. Meu pai, José Pereira da Silva, era comerciante
e minha mãe, Lenita Regina da Conceição, era empregada doméstica e já tinha dois filhos:
Aldo, de oito anos, e Aldenise, de seis anos.
Meu irmão ajudava meu pai e minha irmã. Não muito feliz com a união de nossa mãe
com meu pai, fui embora de casa com menos de dez anos.
A união não muito estável de meus pais, provocou um enorme abalo não só em minha
vida escolar, mas também, na vida escolar de meu irmão.
Recordo-me, de forma muito nítida, as milhares de vezes que meu pai batia em minha mãe
e nós tínhamos que ir embora, antes mesmo de chegar a conhecer todos os colegas de turma.
Mas foi no ano de 1987, que por motivos financeiros, fomos morar em uma favela
chamada Roda de Fogo. Só no ano seguinte, já aos nove anos de idade, fui estudar no
Centro Pré-escolar Creusa de Freitas Cavalcante, cursando a 1ª série do primeiro grau.
Permaneci nessa escola por mais três anos, quando, em 1990, na 3ª série, engravidei e perdi
o ano letivo. No ano seguinte, mesmo grávida, fui para a Escola Estadual Diário de
Pernambuco. No mês de agosto de 1991, tive meu filho: Tiago Rocha.
Um ano mais tarde, quando meu filho fez seu primeiro aniversário, saí da casa de meus
pais e fui morar com meu marido e filho em nossa própria casa.
Dessa época, lembro-me da importância de minha mãe - desde o nascimento de meu
filho até bem depois de ter saído de casa -, porque foi ela quem tomou conta dele, enquanto
eu estudava, e foi assim por longos anos.
Em 1996, fui estudar na Escola Municipal Arraial Novo do Bom Jesus, onde concluí
o Ensino Fundamental II. Foi lá também que percebi, de maneira muito clara, que alguns
professores ajudavam alunos a construírem seus sonhos, e outros contribuíam em destruílos na mesma proporção em que destruíam esses alunos.
Neste meio tempo, não posso deixar de perceber e reconhecer, talvez a figura mais
importante de minha trajetória de sucesso tenha sido meu marido. Ele sempre me forneceu
apoio, inspiração e motivação para nunca pensar em desistir.
Em 1997, fui estudar no Colégio Municipal Pedro Augusto, onde fiz o segundo grau,
Técnico em Contabilidade. Foi lá, que de novo, deparei-me com bons professores, que
faziam jovens, como eu, sonhar e transformar suas aspirações mais utópicas em verdades
Graduanda em Biologia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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concretas; já outros professores, não tão bons, se ocupavam em derrubar muralhas de
esperanças de alunos, talvez não tão sonhadores quanto eu.
Concluí o curso Técnico em Contabilidade em 1999. Tomei conhecimento de um
cursinho pré-vestibular na Universidade Federal de Pernambuco, chamado de Pré-acadêmico.
Em 2000, fiz a seleção e passei. Foi quando entrei em pânico, porque descobri que não
sabia praticamente nada. Enxerguei daí a necessidade real e imediata de estudar com dedicação
para superar as dificuldades de todos os dias. Dificuldades que, aos pouco, conseguia superar,
quando, neste mesmo ano, passei na primeira fase do vestibular das federais para Biologia.
Mesmo não passando na segunda fase, firmei a intenção de continuar tentando.
No ano seguinte (2001), passando pelo mesmo processo seletivo do Pré-acadêmico e
travando antigas e novas batalhas em prol de minhas opções, fiz o vestibular do Centro
Federal de Educação Tecnológica de Pernambuco, o CEFET-PE, onde fui aprovada no
curso Técnico de Segurança do Trabalho.
O CEFET, mais importante do que um curso técnico, foi para mim uma pré- universidade,
onde percebi bem cedo que uma universidade que traz sonhos de uma boa vida, status, bom
emprego e estabilidade financeira, pode muito bem se tornar uma selva de perigos e decepções.
Nesse mesmo ano, logrei aprovação na Universidade Federal Rural de Pernambuco –
UFRPE - em Licenciatura Plena em Ciências Biológicas. No terceiro período, inicie um estágio
como professora de aulas práticas de Ciências e Biologia na Universidade Federal de Pernambuco.
Foi quando passei a perceber que trabalhar e estudar estava exigindo muito de mim.
Já em 2004, iniciei um estágio, como professora do Ensino Fundamental II, em uma escola
municipal nas disciplinas de Ciências, Matemática e até Religião. Paralelo a essas atividades
docentes, também lecionava Ciências em uma escola particular. Nesse mesmo ano, separei-me
de meu marido, reprovei três cadeiras na Universidade e passei a morar só com meu filho.
Em abril de 2006, saí das duas escolas em que lecionava, tendo, por isso, que voltar a
morar com minha família. Hoje, no 9º período de Ciências Biológicas, leciono em uma
escola estadual próxima ao bairro onde moro.
No início do segundo semestre, fui selecionada pelo Programa Conexões de Saberes.
Ironicamente, o Programa me locou para as duas escolas onde vi professores brilhantes, construindo
sonhos, e outros, não tão brilhantes, construindo “pesadelos” e carimbando definitivamente a
“incapacidade” de milhares de alunos, que anos após anos, têm passado por essas escolas.
Hoje, graças principalmente aos bons professores que tive, retorno às minhas escolas,
onde fui aluna cheia de problemas, dilemas e sonhos, e lanço um novo olhar, talvez não
sobre as minhas escolas, mas sobre a vida, a vida de meus alunos, de meus amigos, cujas
histórias são tão parecidas com a minha. Jamais vou querer destruir o sonho de uma viagem
de descobertas pela vida.
Hoje, não vejo meu pai há quase dez anos; minha irmã nunca mais voltou para casa,
porque agora ela já tem sua família; meu irmão, agora com trinta e cinco anos, talvez, pelas
negativas da vida nunca se alfabetizou; meu filho, com quinze anos, tem somente um metro
e oitenta; meu ex-marido é meu amigo e um super-pai; minha mãe fabulosamente me ensina
todos os dias que desisti não é preciso nunca; e eu, com vinte e oito anos, sou feliz por
reconhecer que: caminhos a gente escolhe, não importando as dificuldades.
Não termino, mas inicio uma nova fase de minha vida, que se inspira e se sustenta
nas fases passadas.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Alessandro Rodrigues de Farias*
“Eu nasci...”
Charles Dinkens
Pode parecer uma frase curta, mas é onde tudo começa. Eu nasci em Guarulhos,
Município do Estado de São Paulo, em 4 de março de 1973. Foi em uma terça-feira de
carnaval - o mais estranho é que nem de Carnaval eu gosto. Meus pais são de Pernambuco.
Meu pai foi um dos muitos que partiram do Nordeste para tentar uma vida melhor em São
Paulo. Mas claro, isso era o começo da década de 50, muito emprego e pouca mão-de-obra.
Meu pai empregou-se em uma firma de metalurgia e se profissionalizou nesse ramo. Alguns
anos depois, ele voltou para Pernambuco e se casou com minha mãe. Então, eles foram para
São Paulo. Mais alguns anos, e nasceu minha irmã, que é oito anos mais velha do que eu.
Nossa família passou um bom tempo lá, mas em 1975, devido a problemas de saúde de
meu pai, voltamos para Pernambuco. Minha mãe, fala até hoje, que foi uma das viagens
mais loucas que ela fez na vida, pois chegamos aqui depois de três mil quilômetros,
percorridos em uma Kombi. Pode tamanha tortura?
Quando chegamos, meu pai estava aposentado, por causa de um acidente de trabalho,
mas nada que o impedisse de fazer uns bicos. Moramos os primeiros anos na casa de meu avô
paterno. Tive bons amigos na infância. Pouco tempo depois, meu avô morreu. Não me lembro
de ver meu pai chorar. Ele e meus tios eram bem durões para isso. Passado algum tempo, fomos
morar na casa de meus avós maternos. Lá, eu vivia com meus primos. Como era bom! Com
cinco anos, entrei para a escola (Naquele tempo era o Jardim da Infância. Nome meio bobo).
Mas aprender a ler mesmo só na primeira série, com sete anos. Eu estudava em um SESI, e após
seis meses, já estava alfabetizado. Em parte, pela vontade de ler revistas em quadrinhos, que
minha mãe ou meus primos tinham de ler forçosamente para mim.
Depois disso, mudamos para a nossa casa, onde até hoje moro. Lá, comecei a 3ª série e a
mudar de escola (quatro diferentes escolas). Nunca fui um espetáculo de aluno, mas também
não fui uma mediocridade. Minha mãe sempre dizia: “Estuda, menino, pra ser alguém na
vida.” Ela estava certa o tempo todo. Ainda hoje moro com ela. É uma relação até pacífica.
Voltemos à história. Em 1990, terminei o segundo grau. Eu tinha dezessete anos e a
cabeça cheia (ou vazia) de sonhos. Fui rejeitado pelo Exército. Bem, o que fazer com
dezessete anos? Vestibular, nem pensar. Falta de grana e o ensino público, que não deixava
a desejar, era simplesmente ridículo. Emprego? Anos noventa foram péssimos para isso.
Graduando em História.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Fiquei no ócio por quatro anos. Situação financeira: uma droga; perspectivas de futuro:
quase zero. Até que arrumei um emprego em uma fábrica de peças de carro. Fiquei dois anos
e onze meses nesse trabalho. Novamente, fiquei desempregado durante quatro anos.
Empreguei-me em uma fábrica de refrigerantes, onde trabalhei por um ano e oito meses.
Dizem que aprendemos onde trabalhamos. Têm razão: aprendi que fábrica não era a minha
praia! Ganha-se mal, trabalha-se muito e nada se lucra. Percebi que havia alguma coisa
errada em minha vida.
Adorava ter conhecimento, lia duas revistas científicas por mês, assistia até quatro
jornais por dia. Algum benefício eu tinha de tirar disso. Em 2002, fiz o meu primeiro
vestibular - bacharelado em História. Não passei na segunda fase. Em 2003, fiz outra tentativa,
e mais uma vez, não passei. Maldito cursinho mequetrefe. Em 2004, fiz sem freqüentar
cursinho. Mudei de curso. Em vez de bacharelado, optei por licenciatura. E aqui estou.
Nossa, isto aqui é outro mundo, outra visão de vida, em que as probabilidades
parecem não ter fim. Em 33 anos de vida, foi a coisa mais inteligente que eu fiz. Entrar
para a Universidade.
Um dos bons aspectos de estudar em uma Universidade é o fato de poder participar do
dia-a-dia acadêmico. Onde mais você poderia discutir um assunto pelo qual tem grande
interesse e com um professor que é especialista nele?
Minha vida acadêmica é bastante proveitosa, pois tento tirar o máximo das aulas e dos
professores. Há também o lado das amizades que eu fiz nesse tempo em que estou aqui:
pensamentos diferentes, sonhos diferentes, mas também, sonhos como os meus. Isso é o que
faz as coisas funcionarem: as diferenças. Em minha turma de História, há de tudo: ateus,
evangélicos, católicos, adoradores da Terra, pessoas que bebem, pessoas que não bebem,
marxistas, capitalistas... tudo o que se puder imaginar. Nessa grande diversidade, por incrível
que possa parecer, fundou-se uma amizade sólida, com objetivos em comum.
Para falar a verdade, eu quero ser um grande historiador. Aquele cara que pode fazer a
diferença em História. Pode ser meio infantil, mas é meu sonho e minha meta!
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Caminhadas de universitários de origem popular
Lutas e vitórias
Alexsandra Silva de Lima*
“Há tempo de chorar e tempo de rir; tempo
de prantear e tempo de saltar.”
Eclesiastes, 3:4
Chamo-me Alexsandra Silva de Lima, nasci em 18 de novembro de 1982, em Serinhaém Pernambuco. Minha família é composta por quatro pessoas: pai - Edson Cabral de Lima;
mãe - Josefa Sueli da Silva; irmão - José Alexandro da Silva; e eu. Eles são as pessoas mais
importantes da minha vida. É por eles e para eles que eu dedico todos os meus esforços, a
fim de retribuir tudo que eles me proporcionaram. Não conseguirei por completo, acredito,
mas o que estiver ao meu alcance, farei. Isso podem acreditar.
Logo depois de meu nascimento - não sei se por capricho ou por superstição de minha
mãe, que fez questão de que eu nascesse em sua terra natal, e da aceitação de meu pai, pois
lá não morávamos - voltamos a Recife, no bairro de Casa Amarela, onde morávamos em uma
casa pequena e alugada. Apesar das dificuldades, principalmente as de ordem financeira,
vivíamos bem. Permaneci nessa casa até os três anos de idade.
Naquela época, meu pai trabalhava como feirante; ele possuía uma banca de inhame,
batata e macaxeira na feira de Casa Amarela. Não ganhava muito, mas não passávamos
necessidades. Minha mãe, por sua vez, trabalhava em uma confecção, para ajudar meu pai
com o sustento da casa. Quando tinha aproximadamente três anos e meio, saímos de Casa
Amarela e viemos morar em Prazeres - Jaboatão dos Guararapes. A casa foi relativamente
barata; ela era pequena, de tábuas e em uma área considerada bem perigosa, por seus altos
índices de criminalidade. Estamos lá até hoje e as coisas não mudaram muito, mas graças a
Deus, nossa casa de alvenaria foi construída. Ainda continua pequena, isso é fato, porém,
está bem mais confortável que a princípio. O bairro ainda continua violento, acho até que
a violência aumentou, mas ainda não perdi a fé que esse quadro, que parece perpétuo, acabe
ou diminua um dia.
Comecei a estudar aos quatro anos de idade, graças à iniciativa de meus pais que,
apesar do baixo grau de instrução - eles não concluíram o Ensino Fundamental -, tinham
consciência da necessidade e da importância da educação. Fui matriculada na Escola
Municipal Costa e Silva, onde passei dois anos. Lá aprendi muita coisa. Desde cedo, despertei
em mim o desejo de estudar, fazia sem reclamar minhas tarefas e tinha um gosto enorme pela
escola. Minha primeira professora, Maria do Carmo, sempre me elogiava, dando ótimas
Graduanda em Ciências Sociais.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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recomendações sobre mim à minha mãe, o que a deixava feliz e orgulhosa. Aos seis anos,
passei a estudar na Escola Estadual Felipe Camarão, mais próxima de minha casa, permaneci
lá ate a 8ª série.
Minha infância foi tranqüila, porém ativa: muitas brincadeiras, festas e amigos. Gostava
de estudar e tirava boas notas; nunca ficava em recuperação. No início de minha adolescência,
as coisas começaram a mudar: o desempenho escolar continuou o mesmo, no entanto,
minha família começou a se desequilibrar. Meu irmão tinha largado a escola e entrava em
caminhos perigosos, o que obrigou minha mãe a mandá-lo para o interior, onde ele ficou
por mais ou menos, quatro anos. Nesse período, meu pai deixou a feira e passou a vender
picolé, em casa e na rua - faz isso até hoje; minha mãe saiu da confecção e hoje é doméstica,
em casa de família. Apesar de tudo isso, conseguimos nos manter firmes e unidos, não
permitindo que as adversidades acabem com a nossa força de vontade para lutar.
Passados quatro anos, meu irmão voltou para casa totalmente mudado; não voltou mais
a estudar - infelizmente -, mas conseguiu um trabalho, casou e hoje tem uma família linda.
Ao terminar a 8ª série, consegui passar para a escola técnica - ETEPAM -, onde fiz o
curso de saneamento básico por quatro anos - de 1998 a 2001. Como meus pais não
tinham como me bancar financeiramente, pois a escola era um pouco distante de minha
casa, tive que receber ajuda de minha tia, que me auxiliava com as passagens e a
compra de materiais.
No ano de 2000, consegui meu primeiro estágio - na Companhia Pernambucana de
Saneamento - e meses depois, consegui mais um - na Prefeitura da Cidade de Recife -,
passando a estagiar nos períodos da manhã e da tarde e a estudar ‘a noite. Nesse momento,
optei por não mais aceitar a ajuda de minha tia e por arcar com as minhas despesas, ajudando
no sustento da família.
Nesse período de estudo e de trabalho, meu desempenho escolar caiu um pouco;
comecei a faltar e até a fazer recuperações, mas nunca reprovei e consegui concluir o curso
no tempo previsto. Ao terminar o curso, não sabia direito o que faria a seguir; foi quando
pensei na possibilidade de tentar o vestibular. Meus pais hesitaram um pouco diante da
idéia - posição efêmera -, pois diziam que faculdade era “coisa para ricos e não para pobres”.
Decidi, então, fazer o vestibular.
Ainda estava estagiando nos períodos da manhã e da tarde e sem muito tempo para
estudar; mesmo assim, no ano seguinte (2002), fiz as provas, passando apenas na primeira
fase. Fiquei decepcionada, mas prometi a mim mesma, que no próximo ano, passaria e
comecei a estudar.
Matriculei-me em um cursinho comunitário, pois não havia recursos para pagar um
outro. Em 2003, fiz novamente o vestibular para o curso de Ciências Sociais, na Universidade
Federal Rural de Pernambuco - UFRPE - e felizmente, consegui passar. Foi uma festa. Muito
choro de alegria. Meus pais ficaram orgulhosos por terem uma filha universitária. A notícia
se espalhou logo pela vizinhança, entre amigos e parentes.
Comecei a estudar no segundo semestre de 2004. Estava ansiosa e com um certo
medo do que enfrentaria, mas permaneci firme. Durante o primeiro período, ainda
estava estagiando e consegui manter-me sem a ajuda de ninguém. No segundo, o estágio
havia terminado, e novamente, fui obrigada a receber o auxílio de minha querida tia
para continuar estudando. Hoje, estou no quinto período. Ainda não trabalho, contudo
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Caminhadas de universitários de origem popular
isso não me faz desistir, ao contrário, considero-me uma guerreira. Não desisto nunca!
Pretendo concluir meu curso e avançar: fazer o Mestrado e o Doutorado. Sou bolsista do
Programa Conexões de Saberes e minha relação com a instituição mudou substancialmente.
Acredito que realmente consegui criar identidade com a Universidade e que encontrei meu
lugar. Por meio do Programa, minha participação nos movimentos sociais se ampliou, junto
com a noção de responsabilidade. Acredito poder contribuir para tornar minha comunidade
mais democrática, mais plural e mais humana.
Esta é a minha história. Construída mediante lutas e vitórias. Vida de páginas tristes e
alegres. Agora, prossigo minha caminhada, acreditando sempre que a perseverança é a
esperança de que dias melhores virão.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Depois da queda...
Aline Maria Lima de Souza*
Olá caro leitor! Tudo bem? Vou contar um pouquinho de minha trajetória de vida
escolar para você. Me permite? Espero que a resposta seja sim, pois lá vou eu.
Nasci no Hospital Barão de Lucena - Iputinga-Recife, no ano de 1980. Sou filha de
Adalberto Antonio Oliveira de Souza, um exemplar medalhado e reconhecido militar que
nunca fez corpo mole para o trabalho. Tinha uma grande admiração pelo grupo inglês de
Liverpool: The Beatles, já passou até pela minha mente que ele gostaria de ter sido o
próprio George Harrison (o guitarrista da banda), mas nunca cheguei a confirmar isto. Meu
pai era meio durão, não sei se isso é seqüela de uma vida militar... contudo, no caso dele
acredito que sim. Entretanto, creio que por trás daquela dureza ele sentia orgulho e admiração
pelos filhos que tinha, embora não soubesse demonstrar de maneira afetuosa. E de Maria
José Lima de Souza uma criatura nota 1000 na categoria mãe (me desculpe o ilustríssimo
leitor, mas acho que ela não perde para nenhuma outra). Dona de casa altamente competente,
excelente cozinheira, organizada, econômica, inteligente, criativa, bem humorada e muitíssimo
dedicada ao marido e aos filhos: eu e meu irmão Marcos, um ano e sete meses mais novo.
Posso dizer sem hesitar que Dona Maria (mãinha) foi a minha primeira e mais significativa
professora de meu currículo da vida.
Pois bem, mas agora voltemos para 1984, nesta época, eu tinha saído de Paulista e
estava recentemente morando no Município de Cabo de Santo Agostinho. Este foi o ano
que iniciei minha “vida acadêmica”, na verdade, meus pais já tinham feito outras tentativas
para que eu iniciasse um pouco mais cedo, porém, não era de meu interesse, só queria
começar a estudar quando meu irmão também começasse, já pensou? Então, deixaram
Marquinho completar três anos, para que agora fôssemos, ele e eu juntos e munidos de
nossas lancheiras ao primeiro passo de uma realização.
Como eu já tinha quatro anos e meio de idade a diretora Gorette achou melhor me
matricular direto no Jardim I, pulando o maternal I e o maternal II (que ótimo, me livrei de
dois anos). O nome da escola era: Escola os Três Patinhos - da rede privada de ensino - era
uma das melhores da área. Quando terminei o Jardim II, a diretora pediu para ter uma
conversa com minha mãe, confesso que fiquei muito apreensiva, o que ela queria dizer aos
meus pais? E por que não diz logo? Nossa, que aflição passei! Até que chegou o grande dia
da conversa. Sabe o que ela queria dizer aos meus pais? Que eu não precisaria fazer a
alfabetização, pois já sabia ler e escrever muito bem palavrinhas e palavrões - esta última no
sentido saudável da palavra - Ela queria saber se eles concordariam em me matricular na 1ª
Graduanda em História.
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Caminhadas de universitários de origem popular
série sem precisar passar pela alfabetização. A sugestão foi aceita. Ufa! Que alívio! E eu
viajando em minhas imaginações... crianças!
Lá, estava eu na 1ª série, vendo meus ex-coleguinhas numa série anterior a minha,
senti falta deles e me achei meio perdida na nova sala. Tive bastante dificuldade para
copiar do quadro, os demais alunos sabiam fazer isso muito bem porque adquiriram a
habilidade justamente na alfabetização que eu tinha pulado. Quando todos tinham acabado
de copiar, lá estava eu, ainda na terceira linha do quadro, não foi fácil amigo leitor, não foi
fácil. A professora perguntava se podia apagar o quadro e todos respondiam que sim e eu
não tinha copiado nem a metade, que lástima! Resolvi ficar calada e não mais dizer: não
tia, ainda tô copiando!
Pois, já estava servindo de piada pra sala. E sei que ela iria dizer a mesma coisa: pegue
com o coleguinha do lado, não agüentava mais essa frase e chegava em casa com o caderno
cheio de anotações incompletas e já estava lá minha valente mãe tentando decifrar os enigmas.
Mas nem tudo são espinhos, fui a primeira da sala a terminar as lições, a professora até colocou
uma mensagem de parabenização no livro, me congratulando pelo feito. Me lembro até hoje
da observação que ela fez: olha gente! Aline foi a primeira da turma a terminar as leituras das
lições do livro e ela não fez nem a alfabetização, tá vendo! Parabéns Aline!!!
Para reduzir, senão você não vai ter mais paciência de ler até o final, quero que saibam
que só estudei nesta escola até a 2ª série e que dela trouxe muitas lembranças. Lembranças das
primeiras lágrimas para não ficar na escola, lembranças da minha primeira professora Tia
Fátima, que chorei escondida quando fiquei sabendo que ela não seria mais minha “tia” no
jardim II, lembranças de Tatianne, a minha amiguinha que eu gostava de verdade e sei que ela
sentia o mesmo por mim, nunca mais a vi ou se vi não reconheci, gostaria muito de ter a
oportunidade de reencontrá-la.
Também tenho lembranças da minha falta de apetite na hora do lanche, minha mãe
preparava um lanche tão saboroso e mesmo assim eu só comia a metade e quando comia, eu
era meio complicadinha pra comer (era/passado). Lembro-me de uma vez que ela só colocou
um pacote de biscoito Wafer que continha apenas seis biscoitos e fiz a proeza de comer só três.
Também não poderia esquecer de Washington - meu “amiguinho” mais que especial. O dito
cujo foi responsável por despertar em mim sentimentos confusos (rs). Não era nenhum padrão
de beleza, mas encheu minha vista e meu coração de uma forma até então nunca sentida.
Grande Washington, ou melhor, pequeno Washington ele não passava da altura de meus
ombros, mas fez a diferença - tá vendo aí, que tamanho realmente não é documento - ele nunca
soube disso (eu acho), cultivei esse sentimento platônico até sair de lá. Também é outro que
nunca mais vi, contudo gostaria de revê-lo.
Pronto, agora já me encontro em Jaboatão, morando em apartamentos da COHAB e foi
aí que iniciei minhas aulas no Colégio Cenecista Padre Chromácio Leão. Meu pai não
estava em condições financeiras mais favoráveis e tivemos que passar a estudar num Colégio
Cenecista, onde pagava na época apenas uma pequena taxa. Senti logo a diferença na
qualidade de ensino. Cursei da 3ª à 8ª série, fiz algumas amizades, principalmente masculinas,
pois as meninas só queriam falar de namoradinhos e eu me achava muito nova para me
enquadrar nesse tipo de papo, sem falar que eu era naturalmente excluída, não me restando
muita opção. Então, os meninos me ofereciam o papo que gostaria de ter para minha faixa
etária, entre outras coisas eles conversavam sobre o filme O Rei Leão e o álbum de figurinhas
que estava sendo lançado por uma marca de goma de mascar famosa. Destas amizades
Universidade Federal Rural de Pernambuco
29
destaco Alexsandro, o conheci na 6ª série, e permanecemos amigos até quando já estávamos
estudando em escolas diferentes. Ele merece destaque pela bela pessoa que é e por uma
atitude que tomou que me deixou bastante reflexiva, mas desta vez não vou dizer para você
caríssimo leitor do que se trata ok. Assim é querer saber demais!
Também destaco duas amizades: Andreza e Heidi onde até hoje mantemos contato,
um tanto quanto esporádico, porém, ainda cultivamos o relacionamento. Andreza casou e já
tem um filhinho: Apolo, e Heidi hoje mora em São Paulo com seu pai e sua irmã.
Nesta escola, eu era meio taxada de “CDF”, mas quero que acredite em mim, nunca fui,
simplesmente acho que o seguinte ditado popular diz tudo: “em terra de cego quem tem um
olho é rei” e foi o que ocorreu.
Terminada a 8ª série, saí deste colégio e fui prestar prova para tentar entrar na Escola
Senador Paulo Pessoa Guerra, conhecida na década como uma das dez melhores do Estado
de Pernambuco (doce ilusão!).
Estudei e fiz prova para o curso: técnico de laboratório em patologia clínica. Cheguei
em casa muito decepcionada por achar que não havia me saído bem no exame seletivo. Mas
tamanha foi a minha surpresa, quando vi meu nome na lista de aprovados. Foi um total de
105 selecionados para o curso citado e eu ocupei a sexta colocação. Quem diria!
Passei três anos nesta escola, 1995 a 1997, e pude constatar as deficiências do ensino
público estadual. Quase não tive aulas de Física, e muitas outras disciplinas eram dadas de
forma precária e superficial. Tudo isso em nada me ajudou no que almejava fazer: prestar
vestibular. Duas amizades tento cultivar até hoje da Escola Paulo Guerra: Renata, hoje
casada e concluinte do curso de psicologia pela FACHO e Márcia, estudante do curso de
Biologia na FUNESO. Terminei a minha trajetória até o nível médio sem reprovações e
comecei a trabalhar aos dezesseis anos de idade ainda cursando o 3º ano no turno da noite.
E agora chegou o momento de prestar vestibular! Tentei a primeira vez por experiência
assim que estava concluindo o curso técnico, por ter conseguido a taxa de insenção. Nada
feito, também não esperava um resultado diferente, ainda consegui passar na 1ª fase, para
mim serviu de grande estímulo. Fiz esse vestibular para Farmácia, no intuito de dar
continuidade ao curso que havia escolhido.
Para a minha segunda tentativa meu pai se esforçou e pagou um cursinho particular,
queria muito ter passado, para fazer valer seu empenho, mas infelizmente não consegui.
Cheguei mais uma vez a segunda fase, porém, não passei disso... foi uma pena! Queria muito
ter dado essa alegria aos meus pais e a mim também, lógico.
Na terceira tentativa, meu irmão e eu recorremos a cursinho pré-vestibular popular,
PRU (Projeto Rumo à Universidade), que funciona apenas aos sábados com aulas extras aos
domingos, cursinho este que hoje voltamos não mais como alunos, porém, como
contribuidores para continuidade do projeto.
Chegou o dia “D” e ainda não foi dessa vez. Tentava vestibular para o curso de
História e já era a segunda tentativa para esse mesmo curso. Estava ficando cansada, mas
confesso que nestes três anos de cursinho não havia me empenhado como deveria e ainda
não tinha criado forças para abrir mão de umas coisas para conquistar outras. Foi então que
decidi: esse será o ano - estávamos em 2002, me empenharei de verdade na conquista de
meu objetivo. E lá fomos nós, meu irmão e eu na conquista de uma vaga nas Universidades
Federais do Estado, ele tentando para Licenciatura em Geografia na UFPE e eu para
Licenciatura em História na UFRPE.
30
Caminhadas de universitários de origem popular
Estudamos de verdade, e estávamos nos sentindo mais preparados desta vez. Sai o
listão da primeira fase: fomos aprovados! Meu irmão ocupava a 69ª posição de seu curso
de 80 vagas e eu a 24ª posição do curso de história num total de 80 vagas. Rumo à
segunda fase.... Muitos de nossos colegas antes mesmo de sair o resultado já queria
parabenizar nossos pais por ter dois filhos aprovados nas Universidades Federais. Sai o
listão (nunca tive coragem de ir ver o listão) preferia ver no Jornal, na internet ou pelo
serviço telefônico Fera on line. Viva!
Felicidade já garantida meu irmão consegue aprovação na UFPE e sobe sua colocação
para a 50ª posição. Hoje meu irmão Marcos Antonio Lima de Souza, conhecido
profissionalmente como Marcos Lima já está concluindo o curso. E quer saber, não é porque
ele é meu irmão não, mas o camarada se garante no que faz, altamente elogiado por onde passa.
Não tô aumentando não, é simplesmente a verdade. Quando crescer quero ser assim! (rs).
Ok, mas ainda não disse meu resultado, só fui saber quando cheguei em casa e já
passava das 19h e o listão havia saído as 16h. Chegou o momento tão esperado, peguei o
telefone, liguei para o FERA ON LINE. Gostaria que você arriscasse um resultado.
Arriscou? Pois bem, eis que escuto a voz eletrônica do serviço alternativo oferecido pela
COVEST dizendo: seu argumento de classificação NÂO FOI SUFICIENTE...
Meu nobre leitor essa voz ecoou por minha cabeça durante muito tempo, se é que
ainda não ecoa. Diante de tal resultado, prostrei-me deitada na cama afirmando que
jamais tentaria vestibular para as universidades públicas novamente. Pois, se o ano que
mais cheguei perto não consegui, então estava decidida, nada de vestibular para
universidades públicas.
Grande foi minha surpresa quando ainda no mesmo ano iniciei os estudos, agora me
encontrava mais que determinada. Renunciei muitas coisas, mas também não estudei para
enlouquecer não. Entretanto, o empenho foi bem maior. E vejam como as coisas são: se eu
tivesse sido aprovada, não teria talvez conhecido uma pessoa tão especial, que hoje faz
parte de meu grupo seleto de amizades: Fábia Patrícia de Lima, eita criatura inteligente e
desenrolada, acredito que você, digníssimo leitor, ainda vai ouvir falar muito neste nome...
deixa o tempo passar e depois você me conta.
Chegou o dia, fiz as provas e fiquei no aguardo do resultado. Mais uma vez sai o
listão - desta vez não tive mais coragem de ligar para o fera on line estava traumatizada,
não nego. Deixei essa tarefa para o meu irmão, ele fez a busca pela internet e ligou para
mim. Como de costume havia passado na 1ª fase (pasmem! Desta vez fui ainda melhor,
ocupei a 8ª colocação). Mas desta colocação só quem ficou sabendo foi meu irmão,
minha mãe e eu, não estávamos dispostas a maiores constrangimentos.
Rumo a 2ª fase, realizadas as avaliações, resta apenas o resultado e como demorou
para ser divulgado, foi um verdadeiro massacre. Contudo, chega o dia 17 de dezembro de
2003, a COVEST libera o listão com o nome dos aprovados e? Deixo para você arriscar mais
uma vez. Já lançou um palpite? Vou dizer então, lá vai: APROVADO. AMÉM!!!!!!!!!!! Já não
agüentava mais e acho que vocês também não. Desculpe-me se tornei a leitura cansativa,
mas tinha de ser fiel ao acontecido.
Hoje, estou no 7º período do curso de Licenciatura Plena em História e lá fiz algumas
amizades tais como: Cleide (muito humana essa criatura e inteligente também), Karina (um
exemplo de dedicação), Deise (possuidora de grande desenvoltura no falar) e Fábio (sedento
por conhecimento, show de bola!).
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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A minha aprovação no vestibular pela UFRPE me trouxe outra grande oportunidade,
o de fazer parte como bolsista de um projeto digno de reconhecimento: Conexões de Saberes.
Agradeço a todos que compõe essa família de conexistas.
Quero deixar aqui meus sinceros e especiais agradecimentos a Deus - sem sua
permissividade nada teria alcançado - aos meus queridos e amados pais - que hoje não mais
se encontram entre nós - aos meus amigos e professores que muito contribuíram para a
realização do percurso desta CAMINHADA.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Dificuldades: estímulos para vitória!
Analécia Quirino Barros*
Chamo-me Analécia Quirino Barros, nasci em Diadema - São Paulo e, no dia 26 de
abril de 1981. Sou estudante da Universidade Federal Rural de Pernambuco, estou terminando
o 3° período do curso de Economia Doméstica.
Acho importante começar relatando minha história a partir desse momento, pois sei
que ela terá influências marcantes e decisivas no decorrer de minha vida, claro, também não
posso deixar de relatar alguns fatos e acontecimentos de meu passado.
Na minha infância, tive alguns problemas de saúde. Meus pais sempre lutaram muito
para poder cuidar de mim, chegando ao ponto até de mudarem de cidade, pois onde morávamos,
em Paulo Afonso (Bahia), não havia os devidos serviços médicos de que precisava.
Em 1990, meus pais, meus irmãos e eu, vinhemos então morar em Recife. Graças a
Deus fiz meu tratamento e fiquei curada dos problemas que tinha. A vida em Recife não foi
fácil, mas o pior de tudo para mim naquela época, sem dúvida, foi a saudade que sentia de
meus parentes que tinham ficado na Bahia (meus avós maternos e meu tio). Afinal de contas,
sempre fomos todos muito apegados, e sempre moramos bem próximos.
Finalmente, em 1992, meus avós e meu tio vinheram também morar aqui em Recife.
Para mim e minha família foi uma alegria muito grande. Também, não poderia deixar de
relatar algo bastante triste que me aconteceu no ano de 2005, poderia dizer que foi a coisa
mais triste que me aconteceu em toda a minha vida até hoje, foi a perda do meu avô. Mas
Deus na sua infinita sabedoria, no ano que tive a maior decepção de minha vida, também foi
o ano que me concedeu a maior conquista, algo bastante esperado por mim, que era conseguir
entrar em uma universidade.
Apesar de muitas dificuldades encontradas ao longo de minha vida, me sinto muito
vitoriosa, pois apesar de tudo, consegui vencer todas as barreiras. E como já falei um
exemplo de minhas vitórias, é a faculdade que hoje eu curso, pois, sabemos o quanto é
difícil conseguir entrar em uma universidade pública. Principalmente, para pessoas que,
assim como eu, sempre estudaram em escolas públicas. Mas não foi fácil conseguir estar
aqui onde estou, foi necessário prestar seis vestibulares, e como eu sempre digo, eu prestaria
mais quantos fossem necessários, pois jamais desistiria de algum sonho. Hoje, me sinto
muito feliz, pois graças a Deus, a cada dia que passa me sinto mais realizada profissionalmente,
pois o curso que faço (Economia Doméstica) é bastante abrangente, e me deixa bem a
vontade para escolher a área que mais me identifico, e poder atuar nela.
Graduanda em Economia Doméstica.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Um fato curioso que também acho interessante relatar, é que, o mesmo motivo que
dificultou a minha entrada na universidade (ser de origem popular), foi o mesmo que me
ajudou e permitiu estar hoje fazendo parte de um programa, o Programa Conexões de
Saberes.
Em julho deste ano (2006), quando ainda estava de férias, me escrevi em um projeto,
o qual não sabia muita coisa a respeito, ou melhor, não sabia nada. Sabia apenas que o
principal requisito para seleção era que os escritos fossem de origem popular. Requisito no
qual eu me enquadrava.
Enfim, fui selecionada, e hoje, depois de tantas dificuldades me sinto feliz por
poder estar fazendo parte desse projeto tão importante para as comunidades envolvidas
nele. Devo toda as minhas conquistas a minha família e principalmente a Deus que
sempre me deu força para que eu não desistisse, e nada me empediu de lutar por meus
objetivos, pelo contrário, sempre busquei cada vez mais correr atrás de meus objetivos.
Sempre fiz e tento fazer de minhas dificuldades não empecilhos, mas sim, um estímulo
para seguir em minha caminhada.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Minha caminhada estudantil...
André Almeida da Silva*
Chamo-me André Almeida da Silva. Nasci aos 11 dias de janeiro de 1979, na capital
pernambucana, Recife. Aos três anos de idade, meus pais foram morar no sítio dos meu avós
paternos, em Lagoa de Itaenga, cidade interiorana do estado, localizada a 90 km de Recife,
onde vivi toda a minha infância, assim como boa parte da minha adolescência. Morei com
meus pais até os seis anos, daí então passei a morar “ao lado de casa” - na casa de uma tia uma das três casas que existem no sítio, sendo este o único bem que meus avós teriam
deixado por herança. Minha tia Luiza era professora do 1° grau menor, algo que praticamente
não influenciou nos meus estudos, pois já não exercia a profissão há um bom tempo.
Meus primos freqüentavam uma escola de excelente qualidade. Eles estudavam na
escola da Usina Petribu S.A., porque meu tio era funcionário dela. A Usina é a única indústria
de grande porte até hoje na cidade, sendo mais um empreendimento do Grupo Petribu, que
atua em diversos setores da economia. Praticamente a cidade vive dela. Quando meus
primos iam para a escola, ficava aos prantos, não por saber que iriam passar o dia inteiro fora
de casa, mas por desejar, já nesta época, freqüentar a escola, uma vez que eles tinham
transporte, atividades recreativas, culturais e esportivas, sem falar que achava as fardas
muito bacanas, e como não poderia ser incluso como dependente do meu tio, ficava apenas
com a promessa de logo mais fazer parte desta escola.
Aos sete anos, minha tia me matriculou na 1ª série da Escola Municipal Santa Rita,
onde prestava serviço como merendeira, mas mesmo tendo a companhia dela nas caminhadas
até a escola, não estava satisfeito, por não estar na escola “certa”, me sentindo o próprio
“peixe fora d’água”. Apesar da imensa insatisfação e decepção com a minha primeira escola,
aos poucos fui me adaptando, o que de fato me serviu de certa forma como injeção de
ânimo, pois meus primos já liam e eram um exemplo vivo de uma alfabetização sólida.
Minha empolgação era, no entanto, uma válvula de escape, visto que teria desenvolvido
aversão a escola, algo que ficou explícito durante os dois primeiros anos letivos do meu
ingresso aos sete anos de idade. Repeti a 1ª série por dois anos consecutivos, a professora
alegava que não estava apto a ir para uma série subseqüente, pois tinha “dificuldades” de
aprendizagem. Na realidade, não estava feliz, e portanto, não tinha motivação. A paisagem
bucólica era algo tão comum do meu cotidiano que tinha até tédio de ir à escola, apenas
aquele espaço me servia de refúgio nas manhãs de segunda à sexta-feira.
Graduando em Engenharia de Pesca.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Em 1988, aos nove anos, tia Luiza matriculou-me na Escola Estadual Tristão Ferreira
Bessa, ainda na 1ª série. Esta escola era situada no perímetro urbano, onde cursei o ensino
fundamental menor sem mais repetir ano algum. Já no colegial, reprovei a 8ª série, em
matemática, desgostei-me do professor da disciplina. No ano seguinte, em 1996; cursei a 8ª
série na Escola Estadual José de Lima Júnior, em Carpina-PE, cidade circunvizinha. A única
forma de obter permanência na nova escola não era por estudar à noite, mas particularmente,
pelo fato de ir no ônibus que a Prefeitura Municipal de Lagoa de Itaenga disponibilizava de
segunda à sexta-feira aos universitários residentes na minha cidade, da FFPNM - Faculdade
de Formação de Professores de Nazaré da Mata, da Universidade de Pernambuco, em Nazaré
da Mata. Foi um ano bastante cansativo, uma vez que o ônibus não fazia percurso no
perímetro rural, tendo que me deslocar a pé todos os dias à tardinha. Ao retornar de Nazaré,
o motorista pegava estudantes secundaristas em Carpina, chegando em Lagoa de Itaenga
por volta das 00h00.
Nessa época, dormia na cidade, num bar de uma prima, num quarto que mais parecia
um depósito de bebidas. Lá estava eu, num colchão no meio das pilhas de grades de cervejas
e refrigerantes. Mas estava feliz por ser um dos alunos mais aplicados na sala. Pela manhã
fazia minha peregrinação até o sítio em que morava. Em dezembro de 1996, prestes a fazer
18 anos, fiz seleção para a Escola Agrotécnica Federal da Vitória de Santo Antão-PE.
Infelizmente não passei pelo processo seletivo. O resultado veio às vésperas do Ano Novo,
imagine o quanto fiquei desapontado...
No ano seguinte, já em janeiro de 1997, uma prima que morava em São Lourenço da
Mata - cidade da região metropolitana de Recife, me falou a respeito do CODAI/UFRPE Colégio Agrícola Dom Agostinho Ikas, vinculado à Universidade Federal Rural de
Pernambuco, que tinha aberto inscrições. Mesmo sem saber ao certo como faria para me
manter no CODAI, localizado também em São Lourenço, fiz planos para estudar nesta
escola. A única certeza que tinha era que moraria com minha prima. Das 50 vagas oferecidas
pelo CODAI/UFRPE, em 1997, para o 2° grau técnico em agropecuária, conquistei o 30º
lugar sem praticamente ter estudado.
No Colégio Agrícola Dom Agostinho Ikas, cursei o 2º grau seqüencial, que equivale
ao ensino médio atrelado ao 4º ano técnico, técnico em agropecuária. Entre 1997 a 2000,
período em que estudei no CODAI, tive que viver e conviver em uma favela, na casa da
minha prima, onde passei um pouco mais de oito meses. Morei também com familiares,
amigos, e até num alojamento da EECAC - Estação Experimental de Cana-de-açúcar do
Carpina, campus da UFRPE, em Carpina - mata norte pernambucana. A EECAC fica um
pouco distante do Colégio Agrícola, onde, de fato, “valia” a pena estagiar, mesmo sem
remuneração, e ficar alojado. Isso reduziu significativamente as despesas com as passagens.
Sou muito grato a Srª Suzana da EECAC (aposentada), que muitas e muitas vezes me forneceu
cestas básicas. Retornava à casa da minha família nas sextas-feiras à noite, e à tardinha do
domingo, já estava providenciando a volta a Carpina.
Em outubro de 1999, prestes a concluir o 3º ano do ensino médio, trabalhei na Usina
Petribu S.A., das 16 a 00h00 do dia seguinte. Trabalhava em pé, coletando amostra de canade-açúcar dos caminhões para serem analisados os teores de açúcar. Apesar de ter estudo e
credencial para trabalhar no laboratório industrial de sacarose, fazia parte da equipe braçal,
a qual pegava pesado, na área externa do laboratório. Muitos dos que trabalhavam comigo
me criticavam por me submeter à função de servente, enquanto a maioria deles nem sequer
36
Caminhadas de universitários de origem popular
sabia ler e escrever. Na verdade, eu próprio achava uma atividade árdua e bastante
desanimadora por se tratar também da minha primeira experiência de trabalho. Dormia
apenas quatro horas por noite. Levantava-me às 6h. Minhas aulas começavam às 8h. Foi um
tanto sacrificante o período que fiquei na Usina, mas foi muitíssimo gratificante a experiência,
pois aprendi a valorizar coisas que até então não dava a mínima. Pude ajudar a minha tia,
não apenas com um “trocadinho”, durante a safra que passei trabalhando, mas sobretudo,
por não depender financeiramente mais dela.
Em 2000, solicitei a taxa de isenção à COVEST/COPSET para me submeter ao processo
seletivo do Vestibular 2001 da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Às vésperas do
término das inscrições, recebi o comunicado, via Correios, da COVEST, que me isentava da
taxa total, por causa do meu perfil socieconômico. Prestei vestibular para Engenharia Florestal.
A escolha pelas ciências agrárias veio ainda na época do Colégio Agrícola. Na realidade,
o que me fez optar por esse curso foi o fato de a concorrência ser baixa. Para a minha
surpresa, Florestal, neste ano, tinha batido Agronomia na relação candidato/vaga. Passei no
“peneirão”, como é chamada a primeira etapa das federais aqui em Pernambuco. Não quis
fazer a segunda etapa, tanto por não acreditar que poderia ingressar numa universidade
pública e gratuita, quanto para não decepcionar as pessoas que criaram mais expectativas
do que eu. Era um sonho um tanto que “impossível” para quem estudou toda a sua vida em
escolas públicas, e para quem não teve acesso a cursinho pré-acadêmico. Mas pedi ao
Senhor Jesus que se fosse da vontade dele, eu passasse.
É um tanto comum entre vestibulandos usar dos artifícios dos “chutes” na prova de
química, física, matemática... comigo isso não foi diferente, mas independentemente dos
“chutes”, eu venci e passei na 2ª etapa. Eu creio, tenho fé que só temos o que merecemos e/
ou acreditamos. Enfim, ingressei na Rural de Pernambuco no curso de Engenharia Florestal,
na segunda entrada de 2001. Dias antes da matrícula, recebi um comunicado que teria sido
remanejado para a 1ª entrada de 2001. No dia em que me apresentei na universidade para
efetivar a matrícula, ao sair fui ao DAE - Departamento de Assistência Estudantil da UFRPE
- obter maiores informações a respeito da residência universitária para aquele semestre. Para
a minha surpresa, as inscrições já tinham acabado no dia anterior, mas como fui remanejado,
abriram uma exceção, visto que eu era do interior. As aulas começariam em fevereiro de
2001, mas o resultado da seleção para a residência chegou quase dois meses depois. Nesse
ínterim, morei na casa de uma tia em Piedade, Jaboatão dos Guararapes-PE.
Há três Casas de Estudante masculina na UFRPE. Morei na residência estudantil nº 1
durante um semestre, solicitando transferência para a casa nº 3, no semestre seguinte, por
essa ser mais centralizada e bem localizada. Para muitos, a casa do estudante pode significar
um espaço de “liberdade assistida”, por se tratar de um ambiente predominantemente
estudantil, onde tudo é festa e algazarra. Eu encarava a casa como um lar; afinal passávamos
mais tempo lá em companhia dos colegas que com os nossos entes. Encarava a casa como
sendo um ambiente favorável para desenvolver meus estudos, e acreditava também que os
outros colegas residentes pensassem desta forma.
Isso, porém, foi frustrado. Após um ano e meio de convivência, os problemas eram
cada vez mais aparentes, sendo impossível ignorá-los como antes. Fiz o possível para remediar
as situações difíceis. Sem que eu soubesse, havia conspirações o tempo todo contra mim,
simplesmente pelo fato de não partilhar das “idéias” de alguns companheiros ou de não
ser conivente com determinadas ações e brincadeiras que considerava de mau gosto.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Tentava ter uma conduta neutra e omissa, para não criar nenhum tipo de atrito ou confusão.
Muitas vezes, omitia situações que poderiam ser levadas a instância máxima, com o intuito
de conseguir viver num “clima” melhor. Tudo foi em vão.
Em uma madrugada de novembro de 2003, eu estava dormindo em meu quarto quando
acordei com o barulho que vinha de fora: as camas eram de alvenarias chumbadas na parede,
o que favorecia o eco. Ouvi um colega embriagado falando para um outro, também morador
da casa, que iria bater em mim. Permaneci na cama tentando adormecer, mas não consegui,
pois ele estava agressivo e fora de si. Fiquei perplexo, uma vez que aparentemente nos dávamos
bem, na medida do possível. Isso era algo, portanto, que bebida alguma explicava.
A partir disso, me encorajei em falar ao DAE, e contar o que teria se sucedido. Depois
dessa “denúncia”, o cerco fechou para mim na casa, a ponto de até receber ameaças de
morte, não dessa pessoa, mas de seus amigos.
Nunca fui tão humilhado e massacrado como fui na minha experiência em residência
universitária. Eu fazia “vista grossa”, e passava situações completamente constrangedoras.
Já não dormia com freqüência na casa, por temer coisa pior, tendo que buscar casas de
colegas para ficar até que a “barra limpasse”. Quando dei por conta já estava morando com
minha amiga Liliane Barros, que cursava Engenharia Florestal comigo. Ela desistiu do
curso e um semestre depois foi tentar a sorte nos EUA. Passei definitivamente a morar na
casa da mãe dela. A partir daí, ganhei uma família. Lá, todos me acolheram, e até os dias
atuais me acolhem como filho da casa. Minha gratidão a minha amiga e a toda a sua família
é indescritível por tudo o que fizeram e fazem por mim...
Coincidentemente ou não, também acabei desistindo de Engenharia Florestal no 6º
período, prestes a ir para o 7º. Pleiteei então uma vaga no curso de Engenharia de Pesca
através do processo de reopção – transferência interna de alunos da UFRPE para outro curso
afim a área de conhecimento do curso original.
Ingressei como acadêmico de Engenharia de Pesca em 2004.1, cursando disciplinas
do 1º e 2º períodos. Hoje, estou cursando o 8°. Em termos de condições de permanência na
universidade, estou vivendo minha melhor fase, uma vez que, depois de ter sofrido uma
reprovação em matemática III (integrais), ainda em florestal, por causa do “carma
matemática”, consegui uma bolsa de auxílio. Ela chegou em boa hora, com a
implementação do Programa Conexões de Saberes na UFRPE, o que, de fato, está ajudando
na minha permanência na universidade.
Venho de uma família de quatro irmãos, e até agora sou o único a concluir o ensino
médio e o primeiro de toda a família a ingressar numa Academia. Agradeço a Deus por tudo
que Ele é e representa na minha vida, pelo seu infinito Amor e Misericórdia, por todas as
vicissitudes que eu tive que enfrentar, nesta trajetória, até chegar à Universidade. Estar na
universidade é uma vitória que consegui alcançar com esmo, determinação, luta e muita fé no
Deus vivo. Agradeço a todos que até aqui acreditaram em mim, mesmo com minhas limitações.
Jesus, eu não sou merecedor da Tua misericórdia, mas Tu estás comigo sempre!
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Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Andrea Avelino da Silva*
“No final tudo dá certo, e se ainda não deu
certo é porque não chegou o final”
Fernando Sabino
Sou Andrea Avelino da Silva, nasci no dia 29 de Fevereiro de 1984, no município do
Paulista , localizado na Região Metropolitana de Recife. Porém, considero o Município
de Igarassu minha terra natal, pois é nesse local onde vivo desde os meus primeiros dias
de vida até hoje. Sou filha de Amaro Severino da Silva, motorista e comerciante e de
Marlene Maria Avelino, dona de casa. Possuo ainda uma única irmã, Marilia, sendo eu a
filha mais nova do casal.
Meu pai não teve tanta oportunidade para estudar. Filho de trabalhadores rurais no
Município de Escada, ele não possui ao menos a 4ª série do Ensino Fundamental. Já minha
mãe, filha de uma dona de casa e de um funcionário da Usina Ipojuca, em Ipojuca-PE
completou o Ensino Médio. Eles nunca exigiram que as filhas continuassem os estudos:
esta foi uma decisão única e exclusivamente nossa.
Aos quatro anos, comecei a freqüentar a Escola Municipal João Leite Nogueira Paz,
localizada próxima à residência de minha avó paterna. Eu ia para acompanhar minha irmã, que
chorava de medo da professora, então eu ficava para “substituí-la”, até porque nessa época o
meu ingresso na escola como matriculada não era permitido devido a minha pouca idade. No
ano seguinte, iniciei de fato minha vida escolar nesta mesma instituição, onde permaneci até
1992, aos oito anos, na 2ª série. Aos nove anos, na 3ª série ingressei na Escola Estadual Brasilino
José de Carvalho. Foi uma época um tanto conturbada, na qual encontrei dificuldades em todos
os aspectos: tanto no emocional (pois estava no auge da adolescência) como no escolar, pois
haviam disciplinas que não tiveram professores na escola para ensinar. No entanto, também
cultivei amizades que existem até os dias atuais. Em meio a tantos conflitos, quando estava na
7ª e na 8ª série tive um professor que pra mim foi essencial na caminhada rumo ao ensino
superior: o professor Joel Alcântara, que lecionava Língua Portuguesa. Suas aulas eram magníficas,
mas como era muito nova, não imaginava o quanto essas aulas seriam importantes para mim no
futuro. Em 1998, aos 14 anos concluí o ensino fundamental.
No ano seguinte, fui estudar na Escola Estadual João Pessoa Guerra, escola que sempre
tive muita vontade de ingressar, por ser uma das mais tradicionais da cidade. Este período
foi decisivo em relação à minha vida acadêmica. Foi uma temporada de muitas descobertas,
Graduanda em Agronomia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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através das quais pude deparar-me com todos os tipos de pessoas e situações, passei a pagar
transporte para ir à escola, e também, conheci pessoas com as quais tenho laços de amizade
até hoje. Nesta escola, tive uma enorme dificuldade com diferentes disciplinas, entre elas a
de química, pois quase não tive aula desta matéria . Não imaginava que num futuro próximo
essas e outras disciplinas seriam essenciais para mim, mas fiquei feliz porque continuei com
o mesmo professor de português que concluí o ensino fundamental, o Joel, e com isso, esta
disciplina para mim não era problema, pois já conhecia a metodologia dele e assim fui me
aperfeiçoando, aprendendo e gostando mais de português, posso até dizer que sei um
“pouquinho” da Língua Portuguesa.
Em 2001, aos 17 anos estava no 3º ano do Ensino Médio. Nesta época tinha uma idéia
de prestar o vestibular, mas nada concreto, até porque na escola, até então, não exploravam
muito a questão, mas o tão estimado professor de português sempre incentivava para que
tentássemos uma vaga no ensino superior. Foi então que no mês de abril deste ano surgiu a
oportunidade de um cursinho pré-vestibular, o “Rumo à Universidade” promovido pelo
Governo do Estado. Este cursinho dava oportunidade aos alunos “terceiranistas” de terem
aulas preparatórias nos finais de semana com uma ajuda de custo de R$ 50.00. Fiz a prova
e passei na seleção. Novamente tive a oportunidade de conhecer ainda mais pessoas oriundas
de várias localidades (pois a escola era um pólo situado no Município de Olinda-PE). As
aulas eram em regime intensivo, e como não poderia ser diferente, houve bastante conteúdo
que nunca tinha visto na escola.
Já que não havia mais tempo para aprender este conteúdo não visto, eu ia “empurrando
com a barriga” e levando desse jeito até as provas do vestibular, lembrando que ainda
tinham as aulas do 3º ano do Ensino Médio para assistir. Confesso até que deixei um pouco
de lado minhas obrigações com a escola por um tempo, ficando até em recuperação em uma
disciplina (pois só queria estudar mais para o vestibular).
Chegada a época das inscrições, a comissão de vestibular abriu a oportunidade para
que os alunos de escolas públicas, por meio de um requerimento, solicitasse a isenção da
taxa de inscrição. Eu e minha irmã resolvemos tentar esta isenção. Para o meu requerimento
tive a ajuda do Professor Joel, que me orientou a redigi-lo. A comissão de vestibular
instituiu um prazo para a chegada das correspondências informando aos alunos de quanto
seria a isenção e no último dia chegou a nossa informando que tínhamos conseguido um
desconto de 50% da taxa. Foi então que resolvi inscrever-me para o curso de Economia
Doméstica na UFRPE, por sugestão de minha professora de química do 3º ano, mas na
verdade, quando vi o manual do vestibular fiquei tentada em me inscrever para o curso de
Agronomia (porque sempre me agradei da área rural). Mas por pensar que seria muito
difícil o meu ingresso por conta da “temida matemática 3”, disciplina específica para a 2ª
etapa do concurso, resolvi seguir a sugestão da professora, enquanto minha irmã se
inscreveu para o curso de Pedagogia na UFPE.
Fizemos a primeira etapa, eu totalmente insegura, mas para minha surpresa obtive uma
pontuação necessária para as provas da 2ª fase. Fiquei feliz também por minha irmã que
também passou. Fizemos os exames da 2ª fase mas não tivemos aprovação. Porém, não
ficamos tristes, pois nos encontrávamos cantando vitória por termos passado em ao menos
uma etapa. Valeu mais pela experiência.
No ano seguinte, em 2002, aos 18 anos e terminado o Ensino Médio, surgiu a
oportunidade de um cursinho pré-vestibular nos finais de semana promovido por um grupo
40
Caminhadas de universitários de origem popular
de universitários do Clube Rotary de Igarassu. Ingressei neste cursinho e quase na mesma
época houve mais uma chance de reingressar no “Rumo a Universidade”, onde novamente me
submeti aos exames e tive aprovação. A diferença era porque dessa vez aconteceria no mesmo
bairro onde morava e não teria gastos com passagem, entre outras coisas. Nessa ocasião, como
era de se esperar, também fiz muitas amizades. Então, passei a freqüentar ambos os cursinhos,
enquanto minha irmã durante a semana freqüentava um cursinho popular noturno.
Quando as inscrições começaram novamente, tive a isenção de 50% da taxa e me
inscrevi outra vez para Economia Doméstica, pensando eu que seria mais fácil o meu ingresso
na universidade (mas sempre com a vontade contida de cursar Agronomia) e minha irmã,
por incentivo meu, dessa vez se inscreveu para o curso de Ciências Sociais na UFRPE. Mais
uma vez tivemos aprovação na 1ª etapa e na 2ª foi uma alegria porque minha irmã conseguiu
ser aprovada, mas fiquei triste por mim, porque ainda não tinha sido daquela vez. Na ocasião,
uma prima nossa, a Elizangela também passou para o curso de Pedagogia na UFPE e ficamos
muito contentes pelas duas, no entanto, fiquei arrasada por mim.
No início de 2003, me submeti ao teste de seleção para a Escola Agrícola Dom
Agostinho Ikas (instituição vinculada a UFRPE), onde tentei o curso Técnico em
Agropecuária. Obtive aprovação, mas fui impedida de matricular-me pois meu pai não me
deu permissão de fazê-la. Fiquei arrasada por um certo tempo, ficando até desestimulada
em continuar os estudos. Foi então que, por incentivo de minha irmã, decidi inscrever-me
no mesmo pré-vestibular que ela tinha feito no ano anterior, onde passei a freqüentar as
aulas sem a mínima vontade. Lembro-me que o 1º dia de aula foi um “terror”, pois realmente
não queria mais estar naquele local.
Com um mês após o início e de tanto freqüentar o curso, decidi que tentaria o vestibular,
e desta vez, para o que sempre desejei - Agronomia. Passei então a estudar com mais vontade
e no decorrer do curso foi divulgado em um telejornal um curso pré-vestibular para alunos
concluintes ou egressos de escolas públicas: o Prevupe, que era promovido pela Universidade
de Pernambuco. Fui para a reitoria da Universidade inscrever-me e fui selecionada. Daí, então
engrenei com toda garra e empenho, acordando-me às 4:30 da manhã, tomando dois ônibus.
Em meio a tudo isto ainda vieram “de brinde” alguns problemas de saúde, como o de alergia,
que me acompanhou durante toda a caminhada rumo à Universidade, e também a cobrança de
meus pais pelas obrigações de casa.
Durante esta última etapa a caminho da Universidade, convivi com duas pessoas que
caminharam junto comigo neste último cursinho que foram Íris (que já conhecia, pois
fomos colegas de turma na 2ª parte do Ensino Fundamental) e Joceni, popularmente conhecida
como Nina. Sempre tomávamos os ônibus juntas, já que moramos no mesmo bairro. A
convivência com elas foi essencial pra mim, pois estudávamos juntas nos finais de semana
e sempre nos ajudávamos no que fosse preciso. Também tive a oportunidade de conhecer
minha amiga Cristiane, que fazia o curso de Engenharia da Computação na UPE - ela
também me incentivava e me ajudava demais.
Chegando a época das inscrições, pairava a dúvida de para que curso concorrer. Economizei
a quantia suficiente para a inscrição, já que não tive possibilidade de isenção da taxa e na fila do
banco decidi enfrentar meu medo da matemática e me inscrevi para o que realmente desejava
que era Agronomia (na UFRPE) e na UPE me inscrevi para Engenharia da Computação. Apartir
de então, passei a estudar com muito mais intensidade, freqüentando os aulões aos domingos à
tarde e todas as revisões que o cursinho proporcionava, submetendo-me aos simulados.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
41
Então, o dia mais esperado para mim chegou: 1ª etapa do vestibular das Federais. Com
muita fé me submeti às provas, mais segura de mim pela experiência de dois vestibulares,
mas ao mesmo tempo temendo não passar. Mas estava tudo entregue nas mãos de Deus.
Enquanto estava aguardando o resultado das primeiras provas, realizei os exames da
UPE e após o prazo estimado pela comissão do primeiro vestibular, obtive aprovação na 1ª
fase, com uma melhora significativa na nota em relação aos outros anos.
Passei a revisar todo o conteúdo com empenho na esperança de que obteria sucesso na
2ª fase. Enquanto isso, havia saído o listão da UPE, onde não tive sucesso, e com isso, temi
a possibilidade de não ser aprovada para Agronomia. Mas mesmo assim, continuei na
esperança de passar, fiz os exames e passei a aguardar o resultado.
Exatamente no dia 17 de Dezembro de 2003, quando estou em casa aflita para saber se
teria passado ou não, minha amiga Nina liga para minha casa e minha irmã atende (estava
tão nervosa que não queria nem atender ao telefone). Ela pergunta meu nome à minha irmã
e ela diz com todas as letras o que passei praticamente um ano todo esperando: que tinha
passado no vestibular. Foi uma dos melhores momentos de minha vida: gritei, chorei, rezei
à beça, agradecendo a Deus por esta graça. Nina também tinha sido aprovada na UFPE e na
UPE, porém, estava triste por Íris (e por mais alguns outros) por não ter conseguido ingressar
em nenhuma das duas Universidades.
Meus pais não manifestaram alegria por eu ter passado (principalmente meu pai). Já
minha mãe dizia para os conhecidos e para meus familiares o acontecido. Minha irmã
também ficou muito contente e orgulhosa por eu ter alcançado um objetivo tão esperado
por todos nós e também muitas pessoas me parabenizavam por minha conquista. Fui aprovada
para a 2ª entrada do ano de 2004, no turno da tarde.
Providenciei toda a documentação necessária e fiz minha matrícula no dia indicado
para os aprovados no curso de Agronomia. Durante os meses que aguardava para meu
ingresso às aulas fiz alguns cursos (para manter a mente ocupada) e no dia 14 de Setembro
iniciaram-se as aulas na UFRPE.
O período como “pé de cadeira” foi muito bom: novo ambiente, novas pessoas, e
muita expectativa com a graduação que estava só começando a cursar. Como era de se
esperar tive muitas, mas muitas dificuldades, principalmente, com as “químicas” e as
“matemáticas” da vida. Tinha momentos onde realmente sentia a dificuldade de ser egressa
de escola pública, pois muitas coisas que os professores julgavam “termos visto na escola”
na verdade só aprendi ou vi pela 1ª vez na Universidade, mas conheci pessoas amigas que,
na medida do possível, me ajudavam a superar esta deficiência.
Passado dois anos de meu ingresso na tão conhecida “Rural”, hoje, mais do que nunca
sinto ainda na pele o que vem a ser um estudante de origem popular. Minhas notas não são
aquelas notas altíssimas, pois só uns poucos privilegiados conseguem esta proeza (seja de
origem popular ou não). Por dificuldade e deficiência minha, fui reprovada ainda em 2
disciplinas no 1º período, mas não desisti e continuo levando até hoje com vontade de
aprender, e em meio a tantos obstáculos, lembro-me do grande número de pessoas que
gostariam de estar em meu lugar. E agora, concluindo o 5º Período, tenho certeza de que se
estivesse cursando outra graduação não estaria tão satisfeita como estou hoje. Apesar das
imensas dificuldades com os cálculos, cada vez mais estou certa de que se Deus quiser serei
no futuro uma Engenheira Agrônoma.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Quando tomei conhecimento das inscrições para o Programa Conexões de Saberes
na Universidade e o objetivo deste, fiquei bastante contente, pois é muito lamentável a
situação de alguns alunos, que como eu, são egressos de escolas públicas. O papel que o
Conexões traz para mim é o de uma maior valorização dos estudantes de origem popular
na Universidade Pública em relação a todos os aspectos: desde o financeiro até o intelectual.
Este é um tema que mesmo antes do programa ser instalado na universidade eu já levantava
e agora passei a difundi-lo ainda com mais intensidade, pois, por mais incrível que pareça,
ainda existem preconceitos com relação aos estudantes de origem popular nas
Universidades pelo Brasil afora.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Persistência = superação
Andréia Cibelly Marques Ferreira*
Embora a vida não seja fácil, fui escolhida por Deus para participar deste mundo que
por diversas vezes se torna tão difícil e sacrificado, principalmente para pessoas como eu
que não têm poder aquisitivo considerável que permita uma vida tranqüila e confortável.
Essa realidade é uma característica marcante e comum a nós bolsistas do Conexões.
Nascida em Recife, Pernambuco, em 1983, tendo pais de origem e vida popular, minha
vida desde o início nunca teve tantas facilidades, mas graças a Deus as dificuldades eram
contrabalançadas e postas em equilíbrio com as alegrias que existiram quando criança um dia.
Meus estudos iniciaram-se e decorreram até a 8ª série numa escola particular
filantrópica, num colégio de freiras. Isso graças à generosidade e boa disposição da “Irmã”,
no caso a diretora da instituição, que recebia as mensalidades com atrasos, atendendo a
constantes pedidos da minha mãe. Ainda hoje, continuo devendo 1 ano de mensalidade,
pois a diretora disse a minha mãe em certa situação, que ela pagasse no dia em que ela
tivesse o dinheiro, me deixando comovida com tal atitude.
Não posso deixar de falar das dificuldades citadas acima. Uma delas era a falta de
livros, e na maioria das vezes, reaproveitava os usados por meu irmão ou por conhecidos
que emprestavam, ou até mesmo do professor. Todo ano era assim que acontecia, minha luta
em prol dos estudos. Faltava também material escolar, dinheiro pra participar de outras
atividades extra-escolares, para comprar farda nova, tênis, mochila etc.
Ao chegar a 8ª série fiz vestibular para a prova do Cefet-PE, não passei. Mas com a
persistência sempre se chega à vitória. E foi assim que pela segunda vez fiz, então passei e
entrei no Cefet-PE, antes na época ETFPE. Fiz o ensino médio lá, onde adquiri muito
conhecimento, experiência e amizade que até hoje são as mais valiosas que eu posso
constatar em toda minha vida. Apesar de ser uma ótima escola, com muitos dos melhores
professores, uma parte do ensino era bem defasada, pois como era uma Escola Técnica, a
parte de saúde e humanas, em especial biologia e geografia, ficavam em falta, e o pior de
todos os obstáculos, eram as greves de 3 meses que tínhamos que enfrentar. Foi isso que
aconteceu quando estava no 3º ano, daí veio a prorrogação em passar no vestibular. Neste
ano fiz o vestibular para pra farmácia. Não passei, mas descobri que não era o que eu queria.
Reluziu, então, minha paixão por animais e conquistei a vitória passando em Medicina
Veterinária. Conquista, pois após ter feito cursinho gratuito no Prevup. Por sinal num local
onde eu fazia um percurso longo no qual pegava duas conduções. Além dessa dificuldade,
estagiava na área de telecomunicações, um curso no qual adquiri muita experiência e lucros
Graduanda em Medicina Veterinária.
44
Caminhadas de universitários de origem popular
para minha vida profissional. Estagiei numa empresa pública, cuja remuneração era toda
utilizada na minha manutenção na Escola Técnica e num cursinho particular, abdicando,
assim das diversões e de algo que quisesse comprar para mim. Acredito que para tudo que se
quer são necessários sacrifícios e escolha de coisas em detrimento de outras. Enfim, consegui
conciliar escola, estágio e cursinho e foi nesse ano que eu passei na Universidade Federal
Rural de Pernambuco.
Hoje em dia, sou feliz por estar no curso que eu gosto, apesar das dificuldades, dentre
elas a manutenção na faculdade e obstáculos impostos pelos professores, até muitas vezes
injustos. Dificuldades que eu vejo como incentivo, para me tornar melhor, superar e atravessa-las.
A melhor coisa para min agora em 2006, foi entrar para o Conexões, onde absorvi as
melhores experiências e aprendizagens a respeito de consciência e cooperação que obtive
com monitores, alunos e coordenadores. Pessoas que se mostraram muito amigas as quais
pretendo conservar.
É a partir de discussões e reflexões como estas que nós estamos conseguindo progredir
e trabalhando para melhorar o projeto. Identifiquei-me muito com todos do projeto, deve
ser pelo fato de sermos de uma mesma raíz, enfrentar as mesmas dificuldades, e mesmo
assim, sermos pessoas boas e divertidas que se preocupam e se empenham com os alunos do
projeto Escola Aberta, experiência a qual eu estou gostando muito, em razão de poder,
como diz o lema do Programa, trocar saberes.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Memorial
Andresa Priscila de Souza Ramos*
Meu nome é Andresa Priscila de Souza Ramos. Nasci, na cidade de Jaboatão dos
Guararapes - litoral de Pernambuco -, muito pequena e magrinha, com apenas dois quilos e
duzentos gramas. Antes de completar um ano de vida, fui com meus pais morar em São
Miguel dos Campos, município, naquela época, isolado de Alagoas. Fomos morar lá, porque
meu pai conseguiu emprego em uma fábrica de cimento. Morávamos na vila da fábrica.
Minha mãe, muito apegada à família, não suportou a saudade, então, em menos de seis
meses, voltamos para Jaboatão.
Em agosto de 1989, mudamos para um lugar chamado Bonança, que é distrito do
Município de Moreno. É um lugar pequeno, pacato, parado, mas é onde eu vivi a maior
parte da minha vida (e ainda vivo!). Viemos morar em Bonança pelo mesmo motivo que
saímos de Alagoas: saudade. Meus avós mudaram-se primeiro, e em seguida, nós fomos
também. Moramos um bom tempo num quartinho ao lado da casa de meus avós, e foi
nessa casa em que passei meus melhores anos. Foi ali também que comecei a estudar com
minha tia Luciene (para nós, sobrinhos, era tia Tica, apelido que ela detestava, mas não
tinha jeito... até hoje, ela é chamada assim), que passava boa parte das manhãs ensinandome as primeiras vogais.
Aos cinco anos, iniciei o pré-escolar na Escola Municipal 5 de Julho, e minha irmã
Angélica, com três anos, que não queria ficar sozinha, ficou ao meu lado, como “assistente”,
pois a escola era pública e o início dos estudos era permitido apenas a partir dos cinco anos.
Passei o Pré-escolar e a Alfabetização nessa escola. Foi uma época muito boa, mas
como era uma escola pública, pequena e com condições um pouco precárias, eu não consegui
aprender a ler. Cheguei a ficar na hora do recreio - hora sagrada para qualquer criança copiando a tarefa que a professora havia colocado no quadro, mas sem entender uma letra
sequer do que escrevia.
Observando isso, no ano seguinte, meus pais resolveram me colocar numa escolinha
particular, em Bonança, chamada Educandário Santa Terezinha. Em vez de ir logo para a 1ª
série, tive que refazer dois meses de alfabetização, e só assim, pude “pular” para a 1ª série.
Chegando a essa escolinha, aprendi a ler e aprendi, também, a gostar de ler - mania que me
persegue até hoje. Só não leio mais, por falta de tempo.
Como nem tudo são flores, quando eu estava no fim da 3ª série, as coisas apertaram e
meu pai teve que me tirar da escolinha, pois não podia mais pagar as mensalidades e o
material escolar (que já era dividido entre mim e minha irmã).
Graduanda em Agronomia.
46
Caminhadas de universitários de origem popular
Então, na 4ª série, fui estudar na Escola Municipal Jornalista Édson Régis, no extinto
horário intermediário: das onze horas às quinze horas e trinta minutos. Não me gabo, mas
sempre fui uma aluna dedicada, ou melhor, esforçada e me destaquei nessa escola; por isso,
minha mãe resolveu me colocar para estudar em um colégio em Vitória de Santo Antão,
chamado Colégio Municipal três de Agosto, que, na época, era o colégio público com o
melhor ensino da região. Para entrar nesse colégio, na 5ª série, era necessário fazer um teste
de seleção, ou seja, uma prova de conhecimentos. Minha mãe fez até promessa para eu
passar. Resultado: estudei, passei no teste e fiquei devendo a promessa ao Santo... (vim
pagá-la este ano!!). Esse foi só o primeiro teste.
Eu tenho um defeito nos joelhos que me tem causado problemas em minha coluna.
Quando cursava a 8ª série, mais precisamente em janeiro de 2000, foi realizada uma operação
para tentar corrigir esse problema. No começo do ano letivo, perdi quase um mês de aulas,
e quando apareci... lá vou eu de muletas para a escola. Foi uma das piores sensações que já
experimentei. Todos olhando para mim. Não saberia nem explicar.
Ocorreu um problema no pós-operatório e eu não conseguia mais esticar a perna
normalmente; então, em junho, segui para mesa de operação de novo: dessa vez, para
corrigir o problema e colocar um parafuso. Perdi, mais uma vez, um mês de aula, e mesmo
assim, consegui passar, sem ficar em recuperação.
Desde criança, sempre fui inclinada para a área das Ciências Naturais. Decidi tentar a
Escola Agrotécnica Federal de Vitória de Santo Antão. Era necessário passar no teste de
seleção. Mais um teste! Eu queria tentar Técnico em Agricultura, mas minha mãe, receosa
com o problema de meu joelho, pediu-me que tentasse Técnico em Agroindústria: curso
muito mais concorrido que Agricultura.
Fiz a seleção, e felizmente, não passei, pois não era o que eu queria. Então, a secretária
propôs meu remanejamento justamente para Agricultura, que era o que eu aspirava desde o
início. Agradeço a Deus até hoje por não ter passado em Agroindústria, pois no Agro,
apelido carinhoso para o nome da escola, foi onde eu passei a melhor época de minha vida
(que saudade da minha turma!) - depois da infância - e foi onde eu realmente tomei gosto
pela área de Ciências Agrárias: não é à toa que, hoje, faço o sexto período de Agronomia...
mas isso não vem ao caso agora.
Entrei no Agro em 2001, e me formei em 2003, com o título de Técnico em Agropecuária,
pois cursei Agricultura, e depois, Técnico em Zootecnia. 2003 foi bem marcante, pois, além
de ser o último ano no Agro, onde eu passava o dia todo, quando chegava em casa, ainda ia
ao cursinho à noite, e às vezes, aos finais de semana, quando havia os “aulões”.
Para entrar nesse cursinho, foi outro dilema. Meu pai não queria deixar que eu me
inscrevesse. Era, no entanto, uma oportunidade única, visto que o cursinho era oferecido
pela Prefeitura de Moreno, e além disso, ainda tinha o transporte para voltar. Como meu pai
não queria deixar, eu “meti a cara” e fui fazer a inscrição. Outro teste de seleção... passei
novamente, pulei mais um obstáculo, porém, o maior ainda estava por vir.
Passei um ano nessa dupla jornada, mesmo contra a vontade de meu pai, abdicando de
minha vida social, que nunca foi lá grande coisa. Tudo valeu a pena, e eu provei que era
capaz e que, se realmente tivermos certeza do que queremos, mais cedo ou mais tarde, o que
buscamos se realizará. Mesmo que eu não tivesse passado de primeira, seria de segunda, de
terceira, de quarta, mas passaria, nunca desistiria de tentar. É aí que entra o antigo ditado:
“quem espera sempre alcança”; em meu caso: “quem luta sempre alcança.”
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Parecia mentira... ver que todos os meus esforços e minhas lágrimas tinham valido
a pena, pois conseguira o que mais almejava, mesmo oriunda de uma escola pública e
de um cursinho público. Ao mesmo tempo, foi triste ver os meus amigos, que fizeram o
vestibular junto comigo, sendo reprovados.
Após o resultado do vestibular, guardei ansiosamente o início das aulas, que foram
meio impactantes: já na Universidade percebi que minhas bases de Química, Física e
Matemática eram fraquíssimas. E essas são disciplinas básicas no curso de Agronomia.
Quase reprovei em Química, mas com esforço, estudo e ajuda dos colegas, como Hercylio e
Renato (que estuda comigo desde o tempo do Agro), eu consegui passar. Outro grande susto
foi a quantidade de xérox que era, e ainda é, necessário tirar, o que, para um estudante de
origem popular, é um absurdo.
Comecei a estagiar logo no primeiro período, para ver se conseguia uma bolsa que me
auxiliasse com as despesas da Universidade. Finalmente, quando apareceu uma oportunidade:
voilà... reprovo em Matemática II e perco a bolsa. Nem tudo estava perdido: a pessoa que
conseguiu a bolsa, minha amiga Zil, dividiu-a comigo, por mais ou menos três meses. Foi
quando eu saí desse estágio e fui para outro, também voluntário, com esperança de bolsa.
Tentei novamente, e apesar de meu esforço, não consegui. Até que, como uma luz, surgiu a
oportunidade do “Conexões de Saberes”, e finalmente, consegui a tão desejada bolsa, que
me vem auxiliando bastante.
Pude concluir que se manter na Universidade é mais difícil que passar no vestibular!
Na verdade, percebi que sempre é necessário um esforço de nossa parte para que possamos
realizar nossos desejos e que os obstáculos do caminho garantem um gostinho bom na
vitória. Eu ainda continuo batalhando, pois tenho muito chão pela frente e as dificuldades
só tendem a aumentar. Então, é tentar ao máximo ultrapassar esses obstáculos, e se não
conseguir na primeira, para quem tenta, sempre haverá uma nova chance.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Janaína S. Santana*
Sempre fui esforçada, desde o começo de minha vida escolar. Não apenas para passar
de ano ou para ganhar um presente (já estava acostumada com essa promessa que nunca se
cumpria), mas principalmente, porque sempre fui curiosa e queria conhecer tudo. Na
realidade, ainda sou assim.
Quando criança, nunca dei trabalho à minha mãe por causa da escola, e ela me disse,
há poucos dias, que eu raramente chorava quando ela me deixava e ia para casa. Dos meus
primeiros anos na escola, tenho vagas lembranças.
Sempre estudei em escolas públicas, e a primeira delas foi a Professor José Eduardo de
Brito, em Igarassu, em 1985. Lá, aprendi o básico: as primeiras letras e os números. Depois,
vieram outras três escolas que seriam importantes e serviriam para aguçar ainda mais minha
curiosidade: Escola Santos Cosme e Damião, Dalila de Melo Fonseca e Eurico Pfisterer.
Nessa última, entrei na 5ª série e só saí ao concluir o Ensino Médio.
Quando eu estava na 5ª série, ouvia-se muito a música Unchained Melody, tema do
filme Ghost, e uma vizinha, que estava na 7ª série, me mostrou a letra da música. Pela primeira
vez, “encontrei-me” com a língua inglesa. Cismei de aprendê-la, mas como, se minha mãe não
poderia pagar um curso? A teimosia às vezes pode ser uma virtude, e em meu caso, foi. Tinha
uma raiva muito grande da escola pública, porque só teria inglês na 7ª série. Seriam dois
longos anos de espera e não estava disposta a esperar. Fui estudando como podia, até que o
ano tão esperado chegou: 1993. Comecei a estudar inglês na escola, e com muito esforço,
minha mãe comprou-me uma gramática da língua inglesa. Nessa matéria, nunca conheci o
nove; para mim, ele não bastava. Foi na 7ª série, aos treze anos, que descobri qual seria minha
profissão: professora de línguas. E, assim, nasceu um sonho.
Se, por um lado, a professora de inglês era ótima, faltavam professores para Física,
Química, Geografia e Biologia - eu nem fazia idéia de como isso me afetaria no futuro. A
Escola Estadual Eurico Pfisterer, nesse ponto, não diferia muito das outras escolas públicas
da cidade. Era muito ruim ir à escola, de baixo de sol ou de chuva, para ter apenas uma aula.
Dava preguiça e acho que por isso, a cada mês, minha turma ficava menor. Quando havia
greve, era uma alegria geral: era como se fossem férias-bônus. Achava as férias uma chatice,
por não ter os colegas e raramente sair de casa... imagine, então, com greves! Todos diziam
que era bom, porque passávamos de ano sem fazer provas. Greve vai, greve vem e o meu
rendimento foi diminuindo, juntamente com minha vontade de estudar. Não havia estímulo.
O resultado desse desestímulo, veio na 8ª série: reprovação. Essa reprovação foi
encarada numa boa... as piores viriam mais tarde. A única vantagem de repetir foi que, em
Graduanda em História.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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1995, chegaram duas estagiárias de Química e Física. Meus problemas com a velocidade
média e com os nêutrons começariam. Definitivamente, este foi um romance que não deu
certo: Física, a Química e eu. Passei muito tempo achando que foi ótimo as ter encontrado
apenas na 8ª série. Gigantesco engano!
Nessa época, já sabia que a faculdade que cursaria se chamava Letras e mal podia
esperar por ela. Quando estava prestes a concluir o Ensino Fundamental, todos me
aconselhavam a fazer o magistério. Para mim, isso era algo fora de cogitação: não queria
ensinar o “a, b, c”, queria ensinar “one, two, three... I am... congratulations!”. Ficar em uma
escola cheia de crianças pequenas não era, nem de longe, o meu objetivo, meu sonho. E aí,
fui fazer o Científico (atual Ensino Médio), porque os professores diziam que era um modo
de me preparar para o vestibular. Era 1996.
O ensino em nada havia mudado. Os professores eram os mesmos, as metodologias
eram as mesmas, a escola era a mesma. Apenas eu havia mudado (na realidade, me aprimorado).
E, na medida em que melhorava meu inglês, perdia a vontade de ir à aula. Para piorar,
comecei a trabalhar e quase perdi o segundo ano por ter faltado a muitas aulas. Vocês, meus
leitores, poderão até pensar: muita gente trabalha e estuda e ninguém morre por isso. Eu
estava, no entanto, com dezesseis anos, e embora não fosse uma necessidade, minha mãe
achava importantíssimo que eu trabalhasse para não ficar o dia todo em casa, ouvindo Guns
N’Roses e Roling Stones. De certa forma, foi bom trabalhar, porque podia comprar o que eu
queria e ainda dava uma força à minha mãe.
Foi um tempo difícil e cansativo. Eu acordava às seis horas da manhã para estar no
centro de Recife às oito horas. É, meus caros, Igarassu é longe (e muito). Eu tinha de sair de
Recife por volta das dezessete horas e trinta minutos para chegar na escola às dezenove.
Quando chegava, já sem paciência, geralmente estava com dor-de-cabeça, fome e sem dinheiro
para comer. Raramente tinha aula e parecia proposital: quando eu ia à escola, não havia
aula, e quando eu faltava, havia! Achava que era marcação! No mês de maio, dava vontade
de chorar só em pensar que ficaria uma hora e meia em pé, em um ônibus abafado (por causa
da chuva, as pessoas fechavam as janelas) e ter que andar um bocado, embaixo d’água, para,
talvez, assistir às aulas. O terceiro ano em nada foi diferente. Era 1998.
A parte realmente complicada desta história, começa agora. Depois que concluí o
Ensino Médio, cometi o pior erro de todos... dei um tempo de quatro anos. Meu negócio era
trabalhar e a idéia de fazer o vestibular ficava cada vez mais para depois (eu trabalhava à
noite). Entrei num dilema, quando saí do emprego: quando eu tinha tempo para estudar, não
tinha dinheiro para pagar um cursinho, e quando tinha dinheiro, faltava tempo. Finalmente,
em 2002, consegui conciliar a pouca renda e os estudos graças a um cursinho bem mais em
conta, que chegou em minha cidade (patrocinado por candidatos a cargos políticos). Na
época, estava desempregada e minha renda era a pensão que meu pai pagava.
Meu primeiro vestibular foi um desastre! Para começar, apaixonei-me e não conseguia
me dedicar por completo aos estudos. Não pensem que não estudava. Eu estudava pouco, mas
não parava. No primeiro vestibular, a gente sempre pensa que Deus vai ajudar, que a sorte vai
estar do nosso lado e que vai dar tudo certo no final, mas nem sempre é assim. E, em meu caso,
não foi. Quando dei de cara com a prova, percebi que teria que ter muita sorte para passar de
primeira, e infelizmente, não foi assim. O sonho de “Letras” ficou para o ano seguinte.
Em março de 2003, lá estava Janaina se preparando para o vestibular outra vez.
Dessa vez, estudei muito mesmo. Não havia lugar em que alguém me encontrasse sem um
50
Caminhadas de universitários de origem popular
livro na mão. Desde 2002, meu ideal havia mudado: já não queria mais ensinar língua
inglesa, porque estava deslumbrada com o fantástico mundo da literatura, e perdidamente
apaixonada por José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos. Esta foi minha
segunda e pior reprovação no vestibular, e dessa vez, a coisa foi séria, pois menos de meio
ponto afastou-me da UFPE.
Depois do resultado da segunda fase, entrei numa tristeza sem fim. Perdi o ânimo e o
gosto por tudo. Já não saía com meus amigos e nada mais me interessava. Comecei a pensar
que era o último dos seres humanos e que, talvez, meu destino não fosse a UFPE. Em uma coisa
estava certa: aquela Universidade não me teria como aluna nunca. Depois de muito sofrimento
por causa dessa grande decepção, minha vida fugiu do controle e quase desisti de estudar para
sempre. Só que a aprovação no vestibular virou uma questão de honra para mim!
Em meados de maio de 2004, comecei a me recuperar e voltei aos livros. Tornou-se um
fato raro me encontrarem em festas, praias ou qualquer outro tipo de diversão que não fosse
uma roda de amigos falando sobre a bomba de Hiroshima, a invasão holandesa, a chuva
ácida, o tecido epitelial ou sobre Machado de Assis. Minha dedicação era absurda, fazia de
tudo para aproveitar o tempo: dormia tarde, acordava cedo, não saía (salvo raríssimas
exceções), não namorava, e de vez em quando, tinha crises de choro, porque me sentia
cansada e achava que o que estudava não era o suficiente. Enfim, não vivia. Finalmente,
chegou o vestibular 2005, e adivinhem? Não passei! Ao contrário do que possam pensar,
dessa vez não doeu nada. Já estava indiferente a toda e qualquer dor relacionada a isso.
Mantinha a convicção de que, no ano seguinte, eu faria vestibular outra vez. Um dia
conseguiria, disso tinha certeza.
Vocês devem ter pensado: por que ela não fez o PROUNI? Eu fiz e ganhei uma bolsa
integral pra fazer o curso de Publicidade. Lembrem-se: esse não era o meu objetivo. Assim,
2004 se foi e veio 2005. Se conseguirem adivinhar o que fiz logo após o Carnaval, posso
afirmar que já me conhecem bem.
Neste ano de 2005, tudo foi diferente. Meu lema foi: “ARRASE NAS PROVAS DE
HUMANAS E LIVRE-SE DAS EXATAS!”. Bem, com Física, Química e Matemática não
tinha jeito... era na base do chute, pois, como vocês sabem, duas delas só vi uma vez na
escola e no cursinho. Tive aversão às três. Com a Biologia era diferente, porque a achava
muito interessante. Eu já não estudava literatura, para quê? E o restante das matérias tirava
de letra, exceto uma: História. Lembrar de todos os seus detalhes era complicado, mas ela é
extremamente prazerosa, quando estudada com amor. Num dia, você acorda no meio da
Revolução Russa, e no outro, na Itália Renascentista. Passa o fim de semana com gregos e
volta para casa com a Princesa Isabel. É fantástico!
Como afirmei, esse ano foi diferente e eu deixei de ficar em casa o tempo todo. Passei
a ir com freqüência para Olinda, dançar afoxé e samba no Alto da Sé. Lá, conheci muitos
universitários de diversas instituições, mas foi o grupo de um lugar muito especial que me
chamou a atenção. Manterei, ainda por instantes, o suspense sobre esse lugar.
O ano foi passando e chegou a hora da inscrição no vestibular 2006. Eu queria distância
do curso de Letras e da UFPE. E agora, fazer o quê? Devo adiantar que minha escolha foi
uma das melhores coisas que já fiz na vida. Pois é, finalmente passei no vestibular! A cada
dia que passa, eu me apaixono mais por meu curso, pelos professores, por meus novos
amigos e até mesmo pelos três ônibus que pego todo dia para chegar à minha segunda casa.
Cheguei à conclusão de que Letras não era mesmo para mim.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
51
Hoje, estou aqui, em uma das salas de minha nova casa, escrevendo a história da
minha vida escolar, que começou lá em Igarassu, e agora, está em Recife. Lembrando da
Escola Dalila de Melo Fonseca, onde aprendi a cantar “Aquarela”, de Toquinho, e o Hino
Nacional, em 1987 ou 1988. Lembrando dos amigos que conquistei nas escolas onde estudei.
Estou aqui, numa cadeira de minha segunda casa, lembrando do quanto eu chorei, quando
fui reprovada em um desses vestibulares e vi aquele comercial de TV que dizia: “Eu sou
brasileiro e não desisto nunca!”. Eu não desisti.
Hoje, graças aos grandes homens e mulheres que encontrei em minha nova casa, vejo
que o futuro se mostra com mais possibilidades e novos sonhos para realizar. Um dia, quero
ser como eles, grandes mestres e doutores.
Aqui, eu começo uma nova caminhada!
Eu sou Janaina Silva de Santana, tenho vinte e seis anos e sou estudante do curso de
Licenciatura em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
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Caminhadas de universitários de origem popular
O que ser quando eu crescer...
Aracelli Gomes da Silva*
Luz, quero luz,
Sei que além das cortinas
São palcos azuis
E infinitas cortinas
Com palcos atrás
Arranca, vida
Estufa, veia
E pulsa, pulsa, pulsa
Pulsa, pulsa mais
Mais, quero mais
Nem que todos os barcos
Recolham ao cais
Que os faróis da costeira
Me lancem sinais
Arranca, vida
Estufa, vela
Me leva, leva longe
Longe, leva mais...
Vida, Chico Buarque
Eu não sabia. Eu já sabia, porém, o que não queria ser: professora - apesar de ter
crescido vendo minha mãe e minha irmã tornando-se e sendo professoras, respectivamente.
Não conseguia ter interesse no que via: montes de trabalhos e de provas corrigidos por
minha mãe, durante boa parte de minha infância, o que a deixava sem tempo para mim.
Confesso que não sei explicar o que me levou a escolher não ser professora. Sempre cresci
ouvindo meus pais dizendo que estudar para ser professora era a saída; talvez fosse a saída,
para eles, porque minha mãe é professora e esta profissão proporcionou muitos sucessos a
todos. Como filha dessa professora, aprendi que qualquer coisa que eu quisesse ser quando
crescesse, só conseguiria por meio dos estudos. Entre outras coisas, aprendi com a minha
mãe que, mesmo vivendo numa sociedade patriarcal como esta, uma mulher pode sonhar e
ser, tudo o que quiser.
Graduanda em Ciências Sociais.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Quando eu terminei a 8ª série, o cerco já se fechava contra mim, porque, afinal de contas,
eu estava perto do vestibular. Eu adorava desenhar casas; ficava horas inventando modelos de
casas. Com o passar do tempo, desenhar casas foi-se tornando algo muito relaxante e divertido.
Então, decidi: vou estudar Arquitetura. Essa vontade de ser arquiteta perdurou durante todo o
meu curso do Ensino Médio. Quando eu terminei o terceiro ano, confesso que o sonho de ser
arquiteta ainda estava aqui dentro, mas minha realidade não permitia que eu, com sucesso,
tentasse o vestibular para Arquitetura. Eu morava no interior e lá não tinha Faculdade; para
que eu pudesse estudar, teria que me deslocar para a capital, Recife.
No colégio municipal em que estudei durante todo o Ensino Médio, principalmente
no último ano, não se via nenhuma preocupação por parte da direção em orientar os alunos
a prestarem vestibular. Entre cursar Magistério e Contabilidade, já sabem a minha escolha?
Contabilidade, eu tinha certeza, não queria ser professora. Creio que aprendi com a postura
da direção a esquecer de ser arquiteta. Quando eu terminei o Ensino Médio, vagamente me
lembrava da Arquitetura.
Aceitei a sugestão de minha mãe, fui estudar Administração, numa faculdade particular
que ficava na cidade vizinha a minha. Cursei até o terceiro ano. E mesmo já na faculdade, eu
ainda não sabia o que queria ser quando crescesse. Durante todo o tempo, eu estudava
apenas para passar, não tinha consciência da importância do que é ter conhecimento. Queria
terminar meu curso e trabalhar. Eu vivia angustiada, porque, afinal de contas, uma mulher
pode sonhar e ser o que quiser, no entanto, eu não tinha o que sonhar, não sabia o que sonhar,
e o que seria quando crescesse.
De repente, joguei a Administração para o alto e resolvi prestar vestibular novamente;
a escolha do curso ficou para o final. Eu decidi que tinha que, de uma vez por todas,
escolher o que ser quando crescesse, e o fiz. Eu consegui vir a Recife para estudar. E, ao final
do primeiro ano de pré-vestibular, eu já sabia o curso que estudaria. Na primeira tentativa,
eu não consegui passar. Sabe como é: estudante de origem popular, vinda do interior. Mesmo
não passando no primeiro vestibular, é sonho conseguir passar em uma universidade pública.
Eu resolvi começar estudando Ciências Sociais; entrei na Universidade super curiosa,
com um certo receio do novo, da responsabilidade que assumi. Saibam todos que, agora, eu
já sabia o que queria ser quando eu crescesse. Que felicidade, eu já tinha o que sonhar!
Acho que ter demorado dois anos para passar no vestibular foi essencial para que eu
pudesse desfrutar da felicidade que é estudar na Universidade Federal Rural de Pernambuco
- UFRPE -, pois, quando fiz vestibular pela primeira vez, eu tentei em uma outra Universidade.
Vim parar na UFRPE, porque o curso é noturno. Aqui, de fato, eu fui saber o que eu queria
ser quando crescesse. Eu quero ser socióloga, e discordando do que já tenho afirmado,
quero ser também uma professora.
Eu quero, sim, ser professora. Ver minha mãe e minha irmã sendo professoras me influenciou,
sim, a querer ser professora. Só fui ter certeza disso, depois que conheci a Sociologia.
Fazer parte do Conexões de Saberes, para mim, é estar presente em um mundo mágico;
aquele mundo com o qual sempre sonhei participar, quando ainda era estudante do prévestibular. Não posso deixar de expressar minha felicidade de estar presente nesse
Programa, assim como, a influência dele recebida, tanto em minha disposição em ser
professora, como em minha vida de socióloga. O Programa mostrou-me diversas maneiras
de trabalhar com a Sociologia para que a sociedade se torne mais sensível à presença do
54
Caminhadas de universitários de origem popular
outro. Hoje, eu sei que foi preciso eu conhecer a Sociologia para entender que preciso
ensinar pedagogicamente o que é ser um indivíduo, qual o seu poder de transformação
dentro dessa rede que é a sociedade.
Tentar ensinar que a vida cotidiana é a materialização do que a gente é ou será quando
crescer e que a construção da vida do ser humano é tão bonita, e é ela que contribui
intimamente com todas as mudanças sociais capazes de sustentar os sonhos dos indivíduos.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Desistir? Jamais!
Bárbara Tatiane da Silva Vilela*
Em 1988 iniciou-se minha vida escolar, com apenas dois anos de idade freqüentei
pela primeira vez uma sala de aula. Cursei em escola particular do Jardim I a 5ª série do
ensino fundamental, sempre na mesma instituição, o Colégio Menino Jesus. Eu adorava a
idéia de iniciar um ano letivo na mesma escola, já que havia criado um vínculo afetivo
muito forte com os alunos, os professores e os demais funcionários.
Porém, após concluir a 5ª série recebi a triste notícia de que deixaria de estudar no
colégio que tanto gostava para começar a freqüentar uma escola da rede pública, pois a
minha mãe não possuía mais condições de pagar o colégio. Então, iniciei a 6ª série na
escola João Barbalho, que fica localizada no centro da cidade do recife.
Ao chegar à escola, tive que me adaptar a esta nova realidade: matérias que deveriam
ser ministradas, mas não havia professores para isto, professores que não lecionavam com
vontade e faltavam bastante, material didático em péssimas condições de uso, falta de
limpeza da escola, e principalmente o desnível intelectual entre os alunos.
Fiquei decepcionada, mas nunca senti vontade de desistir, pois já sabia onde queria chegar.
Eu enfrentaria todas as dificuldades para ser alguém na vida e obter um futuro digno e honesto.
Após concluir o ensino fundamental, consegui se aprovada na seleção para estudar no
Liceu de Artes e Ofícios, uma instituição gratuita que possuía melhores condições de ensino
que minha antiga escola. Cursei todo o ensino médio nesta instituição e mesmo sendo melhor
do que a escola onde cursei o ensino fundamental eu sabia que enfrentaria bastantes
dificuldades para conseguir uma vaga nas universidades federais, mesmo assim eu não desisti.
Em 2003, concluí o ensino médio, mas só consegui entrar em uma universidade gratuita em
2006 após duas tentativas. Por não ter condições de arcar com os custos das universidades particulares
eu passei por dois anos de cursinho pré-vestibular a fim de diminuir a diferença de conhecimentos
entre uma aluna oriunda de escola pública para os demais alunos de escola particular.
Hoje, me considero uma vencedora, lutei pelo que quis e entre lágrimas e sorrisos
alcancei meu espaço na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Agora, sei dos novos
desafios que encararei para concluir o curso de bacharelado em ciências biológicas, pelo
qual sou apaixonada.
Entretanto, projetos de afirmação como o Conexões de Saberes estão sendo
implementados para auxiliarem alunos como eu, vencedores que lutam pelos seus sonhos e
hoje estão nas universidades federais pelo Brasil. Depois de todo este percurso, olho para
trás e penso: Desistir? Jamais!
Graduanda em Biologia.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Escola e vida – exercício de perseverança
e aprendizado
Carlos André da Silva Mendes *
A trajetória da vida escolar não é fácil. E chegar até aqui, também não foi diferente.
Porém, durante esse percurso muitas coisas aconteceram e tentar explicá-las, é sem dúvida,
não esquecer as motivações geradas pela família, pela comunidade escolar, pelos professores,
e por todo o processo que envolve a formação acadêmica dos indivíduos.
A vida está em constante mutação, requer a cada minuto uma nova atitude, um novo
gesto, um novo caminho a ser trilhado. Já imaginou um jogo em que as regras mudam a cada
instante e o principal objetivo seja manter-se na jogada? Pois é assim que tenho me sentido
ao longo de todo este período como estudante.
Aluno da cidade de Limoeiro, interior da zona da mata do Estado de Pernambuco,
durante toda minha vida, tive restrições em relação às condições financeiras. Meus pais são
de origem humilde. Ele, “José Mendes da Silva”, era vigilante e ela, Maria de Lourdes da
Silva Mendes”, costureira, e sua única preocupação era a de não ter uma herança para
deixar, mas com muita sabedoria, ensinaram-me a necessidade de olhar para o outro,
percebendo a difícil tarefa de dividir aquilo que já é pouco. Dividir esse “quase nada” é
regra mais que necessária para continuar jogando.
E foram gestos como esses que me fizeram ser notado. Humildade leva à solidariedade
e foi então que, mesmo sem as devidas condições, o filho de simples profissionais, ganhou,
aos nove anos de idade, a oportunidade de estudar, com bolsa, em uma escola particular
considerada, por muitos, como uma boa escola. Mas os mundos eram diferentes demais.
Sem tantas “metáforas”, dizendo de forma nua e crua, considero que não tive as condições
necessárias para viver como toda e qualquer criança sua escolaridade. Estudar gratuitamente,
sabendo da generosidade das pessoas a seu redor, não é uma das melhores condições, mas se
percebermos bem, é mais um aprendizado. Meus colegas não precisavam, mas para mim,
trabalhar e estudar ao mesmo tempo durante o ensino fundamental foi mais que preciso.
“Mas como pode esse garoto estar estudando aqui? É o filho do vigilante”, alguns
colegas meus questionavam. Estudar com filhos de gente de posse foi difícil, pois,
preconceito dói, mas ao mesmo tempo desafia, gera força, clama por justiça.
E lá fui eu trabalhar. A renda da família não dava conta dos cadernos, dos materiais,
das condições básicas para os estudos. Vender pipoca não era bem o que eu queria, mas foi
aos dez anos de idade o que a vida, em sua nova regra, reservou-me, e humildemente,
adaptei-me a essa situação. Durante muito tempo trabalhei para poder estudar; com muito
orgulho, diga-se de passagem.
Graduando em Química.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
57
Era preciso buscar a tábua de salvação. Ir para a escola pública representaria o fato de
me livrar do preconceito. Isso porque aprendi que generosidade e pena não eram atitudes
suficientes para me livrar do estigma de ser conhecido entre os meus colegas como o filho
dos pobres. Foi na Escola Pública que descobri a necessidade de continuar trabalhando, e
assim, permaneci até a conclusão do ensino básico e do ensino médio.
Greves, faltas, economias, minha nossa! As restrições econômicas. Tudo era tão difícil de
decidir: uma sandália ou um caderno? A comida ou os livros? O sonho ou o fato de enfrentar
a realidade pela busca de uma vida melhor através da educação? Meus pais sempre deram
importância aos estudos. E foi isso que me estimulou a continuar estudando cada vez mais.
Veio a oportunidade de um vestibular conseguido com o auxílio da própria Universidade,
que dava a oportunidade de fazer gratuitamente suas provas. Dei graças por isso, senão não
teria realizado a seleção. Foi a primeira vez na vida que tive a oportunidade de ver que não
estava sozinho. Quantos alunos, quantas histórias diferentes, talvez inseridas em um mesmo
contexto, porém, cada uma com sua particularidade. Foi o que eu chamei de “a reunião dos
filhos dos pobres”, e eu estava lá. A essa altura já morávamos, na capital, Recife, e sentia a
dor da ausência de um ente querido. Eu havia me transformado no filho da costureira, pois
meu pai morrera de câncer.
Aos dezenove anos, trabalhar e me desgastar, ser homem antes do tempo foi necessário.
Compreendi que o treinamento como vendedor de pipocas na infância foi muito útil na
hora em que minha família mais precisou. Nossa casa, nossa vida não era mais a mesma,
porque as regras do jogo haviam mudado novamente; morávamos em um pequeno espaço
e era nele que descansava após anos levantando, muitas vezes, antes do sol nascer,
trabalhando até mesmo depois dele se pôr e estudando até meu corpo tombar em um
colchão no cantinho de um quarto, ao qual eu e minha família chamávamos de “nossa
casa”. O vigilante fazia tanta falta! Queria que ele tivesse visto o dia em que o “filho dos
pobres” tinha conseguido passar no vestibular. Seria químico, seria professor, como o
vigilante e a costureira tanto queriam.
Imaginava que agora seria possível seguir em frente, seguir em paz. Seria possível
prosseguir. Era a hora de voar, voar cada vez mais alto, pois chegara a minha oportunidade.
Mas minha nossa, a vida sempre muda as regras, e quando menos esperava, o desejo de
continuar a viver meus sonhos quase sucumbiu. Apesar de cansado, as regras do jogo não
são passíveis de escolha, elas nos são impostas, cabendo a nós o poder de adaptação. Do dia
para a noite me vi acometido de uma doença degenerativa. O “filho dos pobres” ironicamente
iria voar, não como havia desejado, mas para fora do Estado, iniciando um urgente, doloroso
e necessário tratamento - longe da Universidade, longe de meu sonho, longe de meu curso.
E doeu muito quando o médico me falou: “seu problema é de origem desconhecida, fique
longe de produtos químicos”.
Ironia?! Que regra difícil de ser cumprida, mas necessária de ser vivida. E continuei!
E lutei, lutei para viver! Por mais de uma vez a adversidade me serviu de estímulo, pois
viver era mais que uma obrigação. Viver se tornou a possibilidade de lutar para a realização
de um sonho do qual eu não desistiria: estudar numa universidade federal. Estou em
tratamento clínico aguardando um transplante de medula óssea não aparentado, pois os
meus familiares não são compatíveis. Mesmo com restrições, voltei a estudar o curso de
Química na UFRPE.
58
Caminhadas de universitários de origem popular
Assim, estou aqui, agradecendo a oportunidade de lhes contar o quanto é possível
caminhar, o quanto essa vida muda, o quanto os sonhos nos alimentam, mas muito mais
importante que isso é dizer que há uma força maior que nos move a buscar o conhecimento
e realizar trocas. Sonhos se fazem no coletivo, mas a concretização deles se faz também no
individual, com muita força de vontade, e pela simples necessidade de resgatar muitos
“filhos de pobres” que existem espalhados por aí; aqueles que assim como eu precisam e
terão a oportunidade de viver, mas principalmente de continuar jogando até obterem aquilo
que hoje eu chamo de minha vitória.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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História de uma longa caminhada
Cintia Maria da Silva*
Meus pais, Luciano Maurício e Eliane Maria, ambos nordestinos, se conheceram em
uma viagem de ônibus com destino à cidade de São Paulo. Eles estavam retornando das
férias que passaram com a família em Pernambuco. Ao chegar em São Paulo, eles continuaram
o namoro por carta, pois a minha mãe residia na capital e o meu pai em Cosmópolis, cerca
de 99 km de distância. Após um mês, entre cartas e encontros, minha mãe engravidou e meus
pais casaram-se.
Nasci em São Paulo, capital, na maternidade do Braz, no ano de 1983. Minha mãe foi
quem escolheu o meu nome, Cintia Maria da Silva.
Cheguei ao Recife ainda pequena, antes de completar dois anos de idade. Cresci em
um dos bairros do Recife, Vasco da Gama, próximo ao de Casa Amarela, onde estudei parte
do ensino fundamental. Iniciei meus estudos no Serviço Social da Indústria - SESI. Lá,
cursei o Jardim I e II, no ano de 1986 a 1987. Isso só foi possível por causa de um convênio.
No início, para que eu pudesse chegar até o SESI, minha mãe necessitava da ajuda dos
vizinhos, parentes e amigos, pois ela já se encontrava grávida, da minha “segunda” irmã, a
Luciane, e não agüentava mais subir e descer duas vezes por dia as ladeiras do bairro. Na
realidade, ela é a minha terceira irmã, a segunda, Cristiane, faleceu após 24 horas, no ano de
1984, na cidade de São Paulo, devido a uma desnutrição e a falta de cuidados médicos.
Do pré-escolar à 2ª série do ensino fundamental, tive que estudar na escola Municipal
Otávio de Meira Lins, pois o convênio entre a transportadora, em que meu pai trabalhava e
o SESI havia encerrado. Dessa escola municipal tenho ótimas recordações. Lembro da
dedicação da professora Faraílde da 1ª série, do arroz com verduras e do macarrão com
almôndegas servidos na hora da merenda, e das amizades conquistadas que perduram até
hoje. Infelizmente, por causa das preocupações da minha mãe com a violência no local, tive
que ser transferida para a Escola Padre Nércio Rodrigues, situada no bairro de Linha do
Tiro. Que contradição! Na “Linha do Tiro”.
Lembro-me que nessa escola as professoras das disciplinas Português, Estudos Sociais,
Matemática e Ciências, Severina e Lidinei, tiveram a preocupação em preparar a turma para
enfrentar as mudanças de carga horária e matérias que brevemente iram ocorrer quando
ingressássemos na 5ª série. Graças a Deus, me adaptei sem dificuldades ao revezamento de
horários e matérias proposto pelas professoras.
Em 1993, com apenas 10 anos, eu fui estudar na Escola Cura D’Ares (Osca), no bairro de
Beberibe, pois na escola anterior só havia 5ª série no turno da noite. Foi a professora Lidinei
Graduanda em História.
60
Caminhadas de universitários de origem popular
que indicou essa escola a minha mãe. Esta lutou muito para conseguir uma vaga para mim,
pois na época o Osca, como também é chamada, tinha um excelente nível de ensino.
Modéstia à parte, sempre fui uma aluna muito dedicada. Passava de uma série para
outra com excelentes notas e com pouquíssimas ou quase nenhuma falta. Era adiantada em
um ano em relação à idade de série que cursava. Porém, problemas com a minha visão,
miopia, a troca da professora de matemática e as dificuldades de aprendizagem nessa matéria
fizeram com que eu viesse a reprovar a 6ª série. Isso foi terrível para mim! Mas superei a fase.
Penso que essa reprovação não foi por acaso.
Foi na 6ª série, no ano de 1995, que conheci o professor Ricardo. Ele me ensinou
temporariamente no Osca a disciplina de História. A sua passagem pela minha vida realmente
fez a diferença. Seu método pedagógico totalmente diferente do Behaviorista, com o qual
eu e a turma estávamos acostumados, modificou a forma como eu compreendia a História.
Por esse motivo é que eu passava as noites estudando a matéria, pois sabia que o professor
não pediria datas, nem tão pouco nomes decorados em sua prova, mas sim, a nossa opinião
sobre os textos lidos.
De toda a turma eu fui a primeira a tirar dez em sua matéria. Esse fato, além de me
deixar muito feliz, me motivou a comprar o meu primeiro livro de história, solicitado pelo
professor, na 7ª série - “História Integrada”, de Cláudio Vicentino. Insisti muito para que
meu pai o comprasse. A argumentação foi: “Nunca possuí um livro nesses 13 anos de vida!”.
No ano de 1997, estava concluindo a 8ª série, satisfeita, pois o ensino público que tive no
Cura D’Ares, em relação às outras escolas públicas, foi de excelente qualidade.
Parti do Osca para o curso de Edificações da Escola Técnica Professor Agamenon
Magalhães - ETEPAM, localizada no bairro do Espinheiro, no Recife. Graças às boas notas
que obtive, no ensino fundamental, fui aprovada no teste de seleção da ETEPAM. Além
desse, passei também no teste para ingressar no curso de Patologia da Escola Soares Dutra,
situada em Santo Amaro. Sim, mas o que estudaria em Patologia ou Edificações?
Difícil responder quando se tem 14 anos. Optei pelo curso da ETEPAM devido à
localização da escola e também porque não me agradei do curso de Patologia, porque
estava ligado à área de saúde. Ano de 1998. Ano de Copa do Mundo, do filme “Titanic”
e de muitas revoluções em minha vida.
Foi na ETEPAM que adquiri amizades sólidas, o primeiro namorado, e dei os primeiros
passos em direção à responsabilidade. Paralela à vida escolar, mantive-me em outras
atividades, como na Catequese da Capela Imaculado Coração de Maria, de Linha do Tiro.
Foi nessa capela que iniciei a minha caminha religiosa como catequista, após crismar-me
em 1998. A catequese foi um passo muito importante em minha vida. Como catequista
ensinei e aprendi muito por meio das formações religiosas que recebi. Além disso, passei a
conhecer de perto a dura realidade das comunidades adjacentes ao meu bairro, por causa
das reuniões mensais da capela da qual eu participava.
Da catequese, parti para o Movimento Eucarístico Jovem - MEJ, pertencente à Paróquia
Nossa Senhora da Conceição, em Beberibe. Foi a minha experiência como catequista que
me ajudou bastante a coordenar um dos grupos do MEJ, Liturgia e Acolhida. Esse ambiente
religioso fez-me crescer muito espiritualmente e como pessoa. Foi graças a Deus e a esse
amadurecimento que tive forças para enfrentar os problemas que começaram a surgir em
meu lar, a separação de meus pais.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
61
Ainda estava no MEJ e estudando na ETEPAM quando os conflitos agravaram-se em
minha casa. As cobranças, por parte do meu pai, para que eu trabalhasse, começaram a surgir.
Passei então a dar aulas de reforço para diminuir as despesas em casa, mas não era o suficiente.
“São passagens, cursos, xérox, custos e mais custos e um emprego que é bom, nada!”, assim
falava o meu pai. Todavia, o que não sabíamos é que ele sustentava outra família, e por esse
motivo, as despesas, para ele, eram sempre altas. Nessa época, pela primeira vez, senti medo
em minha vida. Meus pais vão se separar? Como viveremos nós, minha mãe, irmã e eu?
Em 2001, com 18 anos, estava cursando o último ano, técnico, na ETEPAM. Foi nesse
ano que, depois de quatro testes e de quatro meses de espera, comecei a estagiar na área de
edificações na Prefeitura da Cidade do Recife.
Esse foi um ano de muitas conquistas, porém, de muitas tristezas. Os conflitos que eram
apenas verbais entre meus pais, passaram a ser físicos também. Minha irmã, Luciane, e eu, em
certo momento, acabamos nos envolvendo em um deles. Chegou o fim do ano e meu pai saiu
da nossa casa, acabei não assistindo à cena, pois estava no estágio. Da família só restavam nós
três, minha mãe sem trabalhar há 16 anos, minha irmã, com idade insuficiente para trabalhar e
eu, com apenas um estágio remunerado de R$ 180 reais para sustentar a família.
Ainda no ano de 2001, eu havia feito planos para custear um cursinho no ano seguinte.
Graças a Deus, pensei a tempo e juntei algumas economias.
Ano de 2002. Concluí o meu curso de Edificações e permaneci no estágio, que passou
a ser curricular e se estendeu até o mês de dezembro daquele ano. Nessa época, para nós nos
mantermos, recebíamos a ajuda de alguns amigos da igreja e familiares que nos forneciam
cestas básicas. Além disso, minha mãe começou a fazer alguns serviços de limpeza para
ganhar alguns trocados.
Mesmo diante de todas as dificuldades, nesse ano, encontrei um cursinho em conta e
com as minhas economias o custeei. Devido aos aumentos, só deu para pagá-lo até o mês de
setembro, contudo, pelo fato de manter os pagamentos sempre em dia, cursei o mês de
outubro de graça.
Chegou o vestibular, passei na primeira fase, para o curso de Licenciatura em História, na
Universidade Federal Rural de Pernambuco, porém, na segunda fase, não obtive o mesmo êxito.
Ano de 2003, o abalo emocional era maior do que o financeiro em minha vida. Mas
como diz a canção: “Quem acredita sempre alcança”, eu acreditei nas mudanças.
Pela graça de Deus, o meu estágio foi aprovado mais uma vez até dezembro. Como
nesse ano não havia mais nenhuma economia, minha amiga de fé, de escola e de estágio,
Rosimary Costa, sabendo da minha situação, indicou-me o cursinho Pré-vestibular Portal,
na época, recém-criado pelos alunos de medicina da Universidade Federal de Pernambuco
- UFPE. Nós fizemos todos os testes, e no final, apenas eu fui aprovada. O curso era à noite,
na Cidade Universitária, no Centro de Ciências da Saúde da UFPE. Isso significava para
mim um local longe e perigoso. Aceitei o desafio, pois sem dinheiro, livros e bagagem, não
havia outra opção. Nesse ano, tive que me afastar um pouco das atividades religiosas que
vinha desenvolvendo no MEJ, para me dedicar mais aos estudos, já que meu objetivo era
chegar à Universidade Pública.
Novo ambiente, novos amigos, muito incentivo e fé na vitória. Preparei-me muito ao
longo do ano, estava realmente confiante que iria garantir uma vaga na Universidade Federal
Rural de Pernambuco - UFRPE.
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Caminhadas de universitários de origem popular
O problema financeiro persistia, mas Maria Santíssima, com sua intercessão, e Deus,
com suas palavras confortantes, sempre me pediam paciência:
“Meu filho, se entrares para o serviço de Deus, permanece firme
na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a provação:
humilha o teu coração e espera com paciência, dá ouvidos e
acolhe as palavras de sabedoria; não te perturbes no tempo da
infelicidade, sofre as demoras de Deus; dedica-te a Deus, espera
com paciência, a fim de que no derradeiro momento tua vida se
enriqueça. Aceita tudo o que te acontecer. Na dor, permanece
firme; na humilhação tem paciência”.
Eclesiástico 2, 1 – 4
Estudei muito, fiquei entre as 80 vagas na primeira fase do vestibular, novamente para
o curso de História, porém, não fui aprovada. Isso me desestimulou bastante. Contudo, os
alunos de medicina, que lecionaram como professores no cursinho, me incentivaram a fazer
novamente o teste de seleção do Portal. Fui aprovada. A luta começou outra vez.
Iniciei o ano de 2004 sem estágio e sem esperança de ser aprovada no vestibular. No
entanto, os alunos-professores do Portal tentaram me estimular, bem como, a turma do
cursinho, com essa canção: “Veja, não diga que a vitória está perdida, tenha fé em Deus,
tenha fé na vida. Tente outra vez!”, dos compositores Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo
Motta. O meu sonho foi sendo reconstruído aos poucos mais uma vez.
Ao longo do ano fui chamada para trabalhar na Prefeitura da Cidade do Recife-PCR,
no local onde estagiei pela primeira vez. Além disso, minha mãe conseguiu um trabalho
como empregada doméstica. Enfim, a situação financeira começou a melhorar.
Depois de muitas batalhas travadas ao longo do ano de 2004, chegou o dia de uma
batalha final, o terceiro vestibular. Fui muito confiante fazer a primeira fase. Recordei de
todas as minhas dificuldades e das pessoas que estavam orando e acreditando em minha
vitória. Consegui ser aprovada em 33ª colocação das 80 vagas. Permaneci com a mesma fé
e confiança na segunda fase. Fiz a prova no CEGOE, prédio localizado na UFPE. Nesse dia
eu tive a plena certeza da minha aprovação.
No dia em que saiu o listão, pedi permissão na PCR para ir até a COVEST ver o resultado.
Fui com minha amiga Chaleny que tentou o vestibular para o curso de administração.
Nos separamos no local. Achei a lista de História, porém, estava tão nervosa que não consegui
enxergar o meu nome. Não pude crer, pois eu tinha a certeza que eu havia sido aprovada.
Voltei e olhei novamente o listão. E lá achei o meu nome: CINTIA MARIA DA SILVA APROVADA NA 34ª COLOCAÇÃO.
Fiquei muito feliz. Porém, uma felicidade incompleta. Primeiro, porque meus amigos,
que lutaram tanto comigo ao longo do ano, não conseguiram a aprovação. E segundo,
porque o meu pai não estava lá para ver a minha vitória: vitória no vestibular, vitória
emocional, espiritual, financeira, enfim, na vida.
Sofri as demoras de Deus e esperei com paciência. Planejei para o ano de 2005 um
novo emprego, minha primeira Habilitação, uma especialização em Edificações, ensinar no
Portal como voluntária, e a primeira aula na Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Enfim, tudo se concretizou.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
63
“Espera no Senhor, mesmo quando a vida pedir de ti mais do que
podes dar e o cansaço já fizer teu passo vacilar. Espera no Senhor,
mesmo se a solidão teu peito machucar e te der vontade de ir
embora e tudo abandonar. Espera no Senhor! Há um Deus que te
ama, Ele tudo pode transformar, Seu amor te sustentará espera
Nele e Ele tudo fará. [...] Espera no Senhor, mesmo que as suas
promessas demorem a se cumprir e a vontade Dele seja sacrifício
para ti. Espera no Senhor!”
Eliana Ribeiro – CD Espera no Senhor
64
Caminhadas de universitários de origem popular
O Conexões de Saberes facilitando minha
permanência estudantil
Cláudia Ferreira Alexandre Gomes*
Comecei estudar muito cedo com a ajuda de uma tia e nos primeiros anos escolares
(em escola pública), eu já sabia ler e escrever, sempre fui uma criança muito esforçada. Para
desenvolver as tarefas de casa passadas pela a escola, sempre tive facilidades e quando
surgia alguma dúvida, eu às tirava com minha tia.
Minha mãe sempre trabalhou, e portanto, não tinha tempo para me ajudar nas lições,
e outro fator também a impedia, ela só havia feito o ensino fundamental 1 e portanto tinha
dificuldades para me auxiliar nas lições.
Devido a fatores financeiros nunca tive acesso ao ensino particular, mesmo sendo esse
um dos sonhos, tanto de minha mãe, como meu, pois ele poderia me oferecer melhores
condições de ensino e aprendizagem.
Minhas melhores notas eram voltadas para as disciplinas da área de humanas, assim,
eu me desenvolvia com o sonho de tornar-me advogada.
Com o tempo este sonho ia ficando longe e eu me dava contas das dificuldades que me
cercavam sempre, das privações e escolhas sempre presentes, das desigualdades e competições
desleais e assim meu sonho ficava cada vez mais distante. Mesmo assim, eu persistia com os
estudos, com a idéia fixa de poder um dia retribuir todo o esforço e dedicação que minha
mãe me ofertava.
Já no Ensino Médio, eu senti uma mudança de identificação por determinadas áreas,
antes eram as disciplinas de humanas, agora eu me envolvia mais e mais pelas de Exatas.
Sentindo tanta objetividade nesta área, minha admiração crescia ainda mais, e no mesmo
ritmo minhas notas em física, matemática e química.
No 3o ano resolvi tentar vestibular para Engenharia Eletrônica na UFPE. O único voto
de confiança que recebi foi de minha família, pois os demais não acreditavam que eu fosse
passar, mesmo sendo muito esforçada, mas eu era aluna de escola pública.
Na hora do vestibular eu senti na pele as deficiências do ensino público que havia
recebido e como resultado: não consegui ser aprovada.
No ano seguinte, tentei buscar um curso que não houvesse tantos cálculos e que a
concorrência fosse razoável. Optei então por Ciências Contábeis, também na UFPE, e mais
uma vez não fui aprovada.
Eu já estava tão desmotivada, mas o fato de ter a meta de ajudar minha família me fez
relutar. Fiz uns testes para o cursinho preparatório do PREVUPE e fui aprovada. Passei
então a assistir aulas no sábado e no domingo.
Graduanda em Economia Doméstica.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Estando eu sem muitas perspectivas de aprovação e o medo de reprovar mais uma
vez, pesquisei um curso que a concorrência fosse mínima e a nota também, e dessa vez
seria um curso da UFRPE. Daí então, escolhi Economia Doméstica e para minha satisfação
fui aprovada.
Ingressando na Universidade minhas maiores dificuldades eram de custear meus gastos,
porque minha família possui uma renda baixa e eu não trabalho.
Surge então o Programa do Conexões de Saberes, que oferece bolsa para alunos de
escola pública desenvolverem oficinas em escolas. Mas eu não fui selecionada no primeiro
momento, fiquei no remanejamento e depois me chamaram, para minha sorte.
Fazer parte de um projeto desses me ofereceu outras possibilidades, pois com a bolsa
passei a custear meus gastos com passagem, lanches, xérox compra de livros, cursos. Enfim,
tive a possibilidade de me capacitar ainda mais, além de viver uma nova experiência realizando
oficinas e conhecendo novas pessoas.
66
Caminhadas de universitários de origem popular
De como cheguei onde estou
Cláudia Fidélis da Silva*
Meus pais se casaram em plena juventude. Desde o primeiro momento desejaram ter
um filho, sonhavam com um menino, até que um belo dia a minha mãe engravidou e deu a
luz a uma menina a qual chamaram Cláudia. Esta sou eu.
Bem cedo comecei a estudar. Tinha uns quatro anos de idade quando entrei para o
jardim da infância. A minha escola ficava no térreo da Associação de Moradores de Brasília
Teimosa, no Recife, onde concluí todo o ensino fundamental.
Sempre fui uma aluna esforçada, que nunca deu dor de cabeça aos professores, em
compensação, um pouco desligada nas aulas, por ter facilidade com artes, gostava mais de
desenhar do que dos estudos que autrora, para mim, eram muito chatos. Na 1ª série fui
estudar na Escola Municipal Luís de Camões, nesse tempo eu tinha uns sete anos e ainda
não sabia ler, alias, cheguei até a 3ª série do fundamental sem saber ou ao menos soletrar
corretamente. Foi a partir do meu mau desempenho na escola que os meus pais passaram a
se dar conta do problema real. Eles ficaram furiosos, não imaginavam que “naquela altura
da minha vida ainda não sabia ler”, Eles não cobravam muito da minha aprendizagem já
que eu era uma aluna ganhadora de concursos de arte na escola. Levei uma surra. E meu pai
resolveu me ensinar da “maneira dele”, tive tanto medo que acabei aprendendo num piscar
de olhos.
Depois que descobri a leitura o mundo se abriu pra mim. Passava horas e horas lendo
e relendo seja lá o que fosse, e assim, fui aprendendo sobre história, geografia, português e
sobre sexo, que não se falava dentro de casa. Quando cheguei ao ensino médio, já tinha me
mudado do Recife para o município de Igarassu, lá, me matriculei no curso técnico de
contabilidade da Escola Estadual João Pessoa Guerra. Nesse tempo eu já sonhava em fazer
um curso superior, Jornalismo, mas fui esquecendo do sonho, em virtude das minhas
condições financeiras e educacionais. A escola vivia sofrendo com greves, falta de recursos
e professores. Quase não tínhamos aulas. Tudo isso prejudicava o meu rendimento escolar.
Concluí o ensino médio em 1999, aos dezoito anos, ao término decidi parar de estudar
para procurar um emprego. Passei quatro anos a procura de trabalho sem nada conseguir, foi
então que resolvi, depois de três anos, voltar a estudar e tentar o ensino superior, dessa vez,
eu já sabia o que queria, iria tentar o vestibular para História, o curso que eu me identificava
de verdade. Comecei a estudar sem parar. Como não tinha dinheiro para pagar um cursinho
pré-vesibular tive que me virar sozinha, passei a visitar a biblioteca do Estado, das
universidades e “chatear” todos os meus amigos com pedidos de empréstimos de livros.
Graduanda em História.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
67
Todo o esforço foi válido, pois na segunda tentativa do vestibular da COVEST passei no
curso de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco em 2005. Agora faltava a
parte mais difícil: como conseguiria permanecer na universidade morando em Igarassu sem
estar trabalhando? Fui morar novamente no Recife, dessa vez com o meu namorado para
baratear os custos com passagem e alimentação.
Mesmo assim, não conseguia dar conta das despesas, pois ainda havia os gastos com
livros, xérox, viagens, material escolar, entre outras coisas. Foi então que apareceu o Programa
Conexões de Saberes, em conjunto com a pró-reitoria de extensão, que desenvolve atividades
de extensão universitária, pesquisa e permanência dos alunos de origem popular oriundo
de escolas públicas.
Participar do projeto Conexões de Saberes foi de grande importância, tanto para a
minha vida pessoal, quanto acadêmica, pois tive a oportunidade de continuar estudando,
de vivenciar a pesquisa de campo, de participar de capacitações que me ajudaram a
perceber o outro, a minha comunidade, a escola pública e seu entorno por um outro olhar.
Bem mais positivo.
68
Caminhadas de universitários de origem popular
Uma história de determinação
Cláudio de Araújo Castro*
Chamo-me Cláudio de Araújo Castro, minha história se iniciou no dia 28 de janeiro de
1976, dia, mês e ano em que nasci. Este acontecimento se deu decorrente da bela união de
meus pais, o Sr. Manoel Mendes de Castro e a Sra. Eunice Bezerra de Araújo Castro, as pessoas
mais importantes da minha vida. Meu nascimento aconteceu na maternidade do bairro da
Encruzilhada na cidade de Recife, cidade esta que eu amo, acho linda, porém, nunca morei.
Toda a minha vida, até os dias de hoje, morei em Olinda, inicialmente no bairro de Jardim
Brasil I, posteriormente em Rio Doce até aos 6 anos e de lá pra cá em Ouro Preto.
Minha infância foi maravilhosa mesmo pobre. Meus pais sempre fizeram o possível para
nos dá tudo o que queríamos, queríamos porque somos 5 filhos, eu o mais velho e o único
homem, seguido por quatro mulheres, Jucélia, Vanessa, Flávia e Cláudia. Lembro de muitos
momentos bons, ruins e hilárias de quando criança. Desde pequenininho estudo em escola
pública, a primeira delas foi em Rio Doce, o nome não me lembro mais, mas chamavam de
PROAP, lá, eu detestava tudo, odiava aquela escola pois a merenda era horrível, todos os dias
pão doce com leite quente eu achava péssimo. E o que fazia? Jogava tudo fora às escondidas
e ficava morrendo de fome. Era muito tímido e isso era motivo de chacota para os demais que
apesar de bem mais velhos que eu, me batiam muito. O medo e a timidez eram tão grandes que
nunca falei nada em casa, minha mãe só veio perceber que algo estava errado quando comecei
a chegar cedo em casa, ou seja, estava fugindo do colégio. Aí ela procurou a direção que
passou junto com os professores a me observar melhor. O problema se agravou quando um
garoto de 14 anos quebrou o meu braço, eu com 5 anos e junto com o problema o trauma da
escola. Resultado, o garoto foi expulso e eu transferido para outra escola, onde estes problemas
já não aconteciam mais, porém, o medo insistiu a me perseguir por vários anos.
Alguns outros episódios marcaram a minha infância. Lembrando de coisas boas, logo
vem meus avós à mente, tanto por parte de pai como por parte de mãe. Dos meus avós
paternos, tenho a maravilhosa lembrança do interior, era lá que eles moravam, mas
precisamente em Glória do Goitá. A casa era simplíssima de taipa, luz só de candeeiro e água
de rio e açude que transportávamos em cavalos de cangaia. Eram fins de semanas
maravilhosos, meu maior lazer andar a cavalo, soltar pipas gigantes feitas com armação de
bambu que eu mesmo confeccionava. Mas minha verdadeira paixão no interior era casa de
farinha que meu avô tinha e funcionava a todo vapor. Eu passava horas vendo as pessoas
fazendo farinha de mandioca, também, não posso deixar de registrar a excelente comida
feita por minha avó em fogão a lenha e panela de barro. Já dos meus avós maternos apesar
Graduando em Engenharia Florestal.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
69
de também serem do interior as melhores lembranças são em sua residência no bairro de
Engenho do Meio onde ocorria o encontro de toda a família no último dia de cada ano.
Os piores momentos da minha infância foi a perda dos meus 4 avós, sofri muito com a
partida de cada um deles pois as minhas avós eram também como uma mãe para mim.
Na transição da infância para a adolescência também tenho muitas boas lembranças.
Uma delas foi a participação nas bandas marciais das escolas, sempre tive uma queda para
a música e por isso adorava participar tocando instrumentos de percussão como, tarou,
atabaque, surdo e surdão. Neste período, também pratiquei muitos esportes como futsal,
futebol de campo e karatê, nesta época, também descobri meu lado responsável, íntegro,
minha personalidade forte e marcante. Todas as manhãs meu pai levantava as 4:30h para
trabalhar e instintivamente eu também acordava, ficava chateado comigo mesmo por não
estar trabalhando e ajudando no sustento da família, mas eu só tinha uns 12 ou 13 anos. Eu
achava que por ser homem tinha que ter essa responsabilidade, e isso foi ótimo na minha
formação como pessoa. Logo comecei a trabalhar, meu primeiro salário lembro como hoje,
Cr$ 200,00 por semana que ganhei ajudando em uma marcenaria.
Comecei então a comprar minhas próprias roupas, sapatos e outros objetos, daí
nunca mais parei.
Aos 18 anos, após ter terminado o 2º grau, conheci uma garota com quem tive os meus
filhos, porém, o relacionamento não deu certo e os problemas de se criar os filhos separadamente
foram inevitáveis. Ergui a cabeça e continuei trabalhando em um desses empregos, meu
patrão por tanto me ver estudando nas horas vagas se ofereceu a pagar minha faculdade caso
passasse no vestibular, assim aconteceu. Comecei a realizar meu sonho de cursar uma faculdade
na FUNESO fazendo licenciatura plena em matemática. Com a empolgação logo veio a
decepção, meus patrões tiveram que mudar para o seu país de origem, a França e tive que
abandonar meu sonho, pois não tinha como mais bancar o curso.
Continuei perseguindo o sonho do diploma sem muitos recursos, trabalhava de dia e
varava as madrugadas estudando em minha própria casa com livros que tomava emprestado.
Assim, passei meses e meses até que decidido por fazer engenharia florestal consegui a
isenção da taxa de inscrição, tentei o vestibular e para a minha felicidade me deparei com o
que eu mais queria, meu nome no listão, parecia um sonho, finalmente, poderia cursar o
nível superior sem problema algum, utopia! Logo quando começaram as aulas percebi que
aqueles próximos 5 anos seriam os mais difícieis da minha vida. Sendo o curso diurno não
tinha mais como trabalhar e passei a me sustentar fazendo bicos como garçom nos finais de
semana, tive ajuda de alguns amigos, horas com passagens, horas com alimentação, pois
muitas vezes fez-se necessário passar o dia todo na universidade. Como se fosse pouco, por
muitas noites dormi nas bancadas de cimento dos defasados laboratórios da instituição,
onde procurava me capacitar melhor estagiando gratuitamente.
Hoje, passados quase 5 anos completos estou próximo finalmente da realização daquele
sonho, serei enfim engenheiro florestal, motivo de muito orgulho para mim e para todas as
pessoas que me ajudaram, me apoiaram e sempre estiveram do meu lado, acreditando que
tanto esforço não seria em vão, em especial os meus pais.
Espero servir de exemplo para os meus filhos e em condições melhores das que eu tive
poder ajuda-los em todos os sentidos.
Para os demais que lerem essa história finalizo dizendo que “a melhor forma de prever
o futuro é construí-lo”.
70
Caminhadas de universitários de origem popular
O começo de tudo...
Cristiane Farias Brandão da Cruz*
Quem fui?
Nascida em Recife, estudo em escola pública desde a adolescência. Conheço a árdua
realidade do ensino público no Brasil.
A escola onde estudei, dentre muitas públicas, era sem dúvida, uma das mais
organizadas, mas ainda assim, era muito carente em verbas e em vontade de mudanças.
Nessa escola, formei-me em 1999 como Auxiliar Técnica em Química, e em 2002,
Técnica em Química. Mas eu tinha grandes sonhos em minha vida desde criança, e um deles
era o de ingressar numa universidade federal.
Tendo que trabalhar e estudar, adiei o sonho de ingressar na universidade por quatro
anos. Tentei várias vezes passar no vestibular, mas não obtive êxito, somente após uma
decisão radical, e que mudou completamente a minha vida, pude realizar o sonho de ingressar
numa universidade federal. Decidi pedir o desligamento da empresa onde trabalhava, no
propósito de me dedicar apenas aos estudos pré-vestibulares.
Não tinha dinheiro para pagar um cursinho, então, estudava em casa oito horas por dia
ou mais, inclusive de madrugada. Eu sabia que se me dedicasse, poderia, enfim, realizar esse
projeto de vida.
Quando chegou a hora da inscrição do vestibular, procurei um curso em que pudesse
ajudar pessoas como eu, então, decidi fazer Licenciatura Plena em Química. Tornar-me uma
professora, era agora a minha meta, mas para isso, teria que ser aprovada no vestibular.
Foram vinte e cinco dias aproximadamente de desespero, entre a primeira e a segunda fase
de provas, e então, por telefone soube da minha aprovação... ainda me emociono ao lembrar, foi
um momento de Glória, no qual pude agradecer a Deus por tudo o que Ele havia feito por mim,
agradecer aos meus pais, que me apoiaram na decisão de desligamento da empresa...
Chorei muito, mas foi um choro de alegria e de sensação do dever cumprido, ao menos até ali.
Em abril de 2004, iniciei o trajeto do meu sonho na Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Do sonho à realidade...
Enfim, a Universidade...
Quando ingressei na Universidade Rural de Pernambuco, senti o impacto da “falta de
base” nos estudos de ensino médio, percebi que teria que estudar muito mais do que outros
colegas, que tiveram uma boa base no ensino médio.
Graduanda em Química.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
71
A minha turma a princípio era composta de 85% de estudantes provenientes de escola
pública, e apenas 15% provenientes de escolas particulares.
A maior dificuldade, tem sido no estudo das ciências exatas (Física e Matemática),
alguns professores não querem entender que devido à baixa qualidade de ensino de escolas
públicas (infelizmente), a maioria dos alunos tem dificuldades de entender coisas simples...
então, por falta de preparo de alunos e professores, o índice de reprovação nessas matérias
(ao menos no meu curso) é altíssimo.
Apesar das dificuldades, a universidade oferece algumas poucas oportunidades de
extensão (aprimoramento do ensino científico), e uma delas tem sido o Programa Conexões
de Saberes, do qual faço parte.
O Programa Conexões de Saberes...
A proposta básica desse projeto maravilhoso é a de aproximar o ensino/conhecimento
científico (da universidade) do conhecimento popular. O projeto propõe o intercâmbio de
conhecimentos, experiências e sonhos, entre a universidade, representada pelos estudantes
universitários de origem popular, e a sociedade.
Através desse projeto, podemos incentivar e mostrar aos estudantes de origem popular,
que é possível sim ingressar na universidade vindo de escolas públicas... também são
desenvolvidas pesquisas de campo, a fim de identificar o perfil dos estudantes universitários,
por exemplo etc.
Na Universidade Federal Rural de Pernambuco, o Programa Conexões de Saberes está
“aliado” simultaneamente a outro excelente projeto, o Escola Aberta, que propõe a abertura
das escolas nos finais de semana, a fim de que os estudantes e a comunidade possam ter uma
alternativa de diversão e aprendizagem lúdica nos finais de semana.
Conexões de Saberes e o Escola Aberta...
Ajudando no desenvolvimento de sonhos e talentos...
Através de oficinas, aulas pré-vestibulares, aulas de dança, teatro dentre outras
atividades, ajudamos a comunidade a entender e mudar a sua realidade. Estimulamos os
sonhos e a realização dos mesmos através da educação.
A oficina que dinamizo, trata da Língua Portuguesa e de Técnicas de Redação. No
início, percebi que os desenvolvimentos da língua e linguagem não eram estimulados nos
jovens como deveriam, e os adultos da comunidade, não percebiam a real importância do
saber falar e escrever bem.
Nas oficinas, as noções de leiturização, cidadania, direitos humanos, e meio ambiente
estão inseridas de um modo bastante lúdico e interessante. Por exemplo, nas proximidades
das eleições do ano de 2006, juntos montamos urnas eletrônicas com caixas de papelão,
criamos dois partidos políticos e alguns políticos que defendiam sua plataforma eleitoral
perante eleitores indecisos... o objetivo era o de tornar a realidade do poder do voto visível
à comunidade, bem como, estimular a todos a participarem das decisões políticas. Foi
importante porque de fato todos compreenderam a importância do voto e da política, e os
jovens puderam ter o contato com o “clima” de eleição pela primeira vez.
Hoje, perto do fim da primeira etapa do projeto, sinto-me gratificada porque sei que
ajudei e estimulei os jovens e adultos da minha comunidade a sonharem com um futuro
72
Caminhadas de universitários de origem popular
melhor. Um futuro de menos ignorância e mais oportunidades. Percebi no decorrer do projeto
que, felizmente, a escola ainda é a alternativa que muitos escolhem para ter um futuro
melhor, e como futura educadora, só espero que continue assim e que de alguma forma o
ensino público de base passe a ser de qualidade para todos, para que do mesmo modo todos
tenham as oportunidades, independentemente de onde estudaram.
Esse é um resumo das minhas memórias, sinceramente, espero que quem as lê possa
sentir-se estimulado de algum modo, através do texto, a perseguir o seu sonho sempre!
Universidade Federal Rural de Pernambuco
73
Vitória sobre a vida
Cristiane Rodrigues de Araújo*
Todo mundo tem uma história de vida, seja fascinante, ou não. Alguns podem achar
que sua história de vida é sem graça, mas se formos analisar, todos nós temos algo de
importante nas nossas vidas; momentos memoráveis, que ficam nas nossas lembranças,
fazendo-nos voltar ao passado (em pensamento) , recordando tudo que foi de bom ou ruim
nas nossas vidas.
Com isso, começo a pensar sobre a minha história, que para muitos não é uma super
história, mas que para mim é uma vitória. Vitória sobre a morte e sobre as dificuldades.
Tudo começou no ano de 1982, no dia 13 de maio, com o meu nascimento. Nasci
muito doente, abaixo do peso, não querendo ser dramática, mas quase a beira da morte.
E por motivos de desavenças, a minha mãe era brigada com a família dela por ter
casado com meu pai, mas meu nascimento fez com que unisse de volta a família, deixando
de lado as mágoas. Depois desse período, consegui me recuperar e cresci como qualquer
outra criança. Com o passar do tempo, ganhei mais dois irmãos (Viviane e Marcos) e cresci
na companhia deles e da minha mãe. Passei um pouco da minha infância com pai, pois ele
separou-se da minha mãe. Meus pais trabalhavam, e com isso, pude fazer minha alfabetização
numa escolinha particular (Escolinha da Tia Zinha). Mas com o passar do tempo às
dificuldades financeiras foram aumentando, eu e meus irmãos ingressamos num colégio
público. Estudei da 1ª a 3ª série no colégio Nossas das Madres. Lá, foi tudo bem, o ensino,
mesmo por ser um colégio público foi de qualidade, sempre tínhamos gincanas (revertidas
para abrigos) com a arrecadação de donativos. Era um colégio bom para estudar. Quando
cheguei na 3ª série, acabei repetindo, daí minha mãe acabou me transferindo para outro
colégio também publico, o Dom Crisóstomo, onde lá o ensino era mais puxado, lá estudei
a 3ª e 4ª série. Todos esses dois colégios tinham uma metodologia boa e eram bem
estruturados para serem colégios públicos. Mesmo gostando do colégio Dom Crisóstomo,
tive que ser transferida pois neste só ensinavam da 1ª a 4ª série. Nesse período meus pais se
separaram, eu e meus irmãos ficamos morando com nossa mãe.
Ao ser transferida desse colégio para o outro, ocorreu uma queda na qualidade de
ensino, pois o colégio que fui estudar não era bem estruturado. Os professores não tinham
aquele prazer em nos ensinar (por não serem valorizados pelos seus trabalhos, tanto pela
escola quanto pelos alunos). Vi-me no inferno, não pude absorver muita coisa. Sempre
quando tinha algum evento como gincana ou feira de ciências, eu participava. Era uma
forma de aprender o que muitas vezes eu não aprendia nas aulas. Mas nem tudo era ruim,
Graduando em Economia Doméstica.
74
Caminhadas de universitários de origem popular
havia uma professora de História, era a única que realmente dava uma boa aula. Lá,
estudei da 5ª a 8ª série, pois não pude terminar o ensino fundamental, pois minha família
teve que se mudar. Morávamos em Olinda e mudamos para Barra de Jangada (Jaboatão
dos Guararapes). Fui estudar num colégio que não era nada diferente do Lion, era da
mesma forma, eu não tinha estímulo nenhum para estudar, como dizem, estava empurrando
com a barriga os estudos.
Quando eu já tina passado de ano, eu e meus irmãos recebemos um convite do meu pai
para morarmos com ele. Meu pai residia no Rio Grande do Norte, numa cidade chamada de
Açu. Passamos um ano lá, estudamos num colégio em que o ensino era razoável exceto o
ensino da professora de matemática (Zazá) que era muito puxado. Daí, percebi minha
deficiência nesta matéria. Mas consegui passar, graças à ajuda dessa professora. Como o
ensino deixava a desejar e a cidade era pequena, não via um futuro para mim, lógico que é
bom morar em cidade pequena, por ser mais tranqüila, mas não ocorreu uma adaptação, daí
voltamos para Olinda (PE) e a morar com nossa mãe.
Como deu para perceber, eu era praticamente uma “cigana”. Vivia “pulando” de colégio
em colégio. Mas isso foi bom de certa forma, pois tive uma fase boa e outra ruim nestes
colégios, fazendo com que eu conhecesse os diversos tipos de ensino (metodologia)
empregados nos colégios públicos.
Depois dessa “vida cigana”, terminei meus estudos num colégio só. Fiz o meu segundo
grau no colégio Estadual de Olinda. Entrei lá no ano de 1998. Além de estudar para terminar
o meu segundo grau, procurava me ocupar com outras coisas: fazia curso de informática e
depois de língua estrangeira. Todos eram públicos, oferecidos pela Agência do Trabalho,
pois não tinha condições de pagá-los, mas eram de ótima qualidade, que até hoje uso o que
aprendi. Além de me ocupar com estes cursos, procurava emprego para ajudar na renda
familiar, pois minha mãe era quem sustentava a casa desde a separação com o meu pai não
recebemos nenhuma ajuda financeira (pensão).
No colégio, o ensino não era lá aquelas coisas mas deu para aprender. Mesmo com a
dificuldade que teve durante o segundo grau, já pensava alto (fazer Pré-vestibular). O meu
primeiro ano foi tranqüilo, mas no segundo, começou a minha preocuparão, reprovei em
matemática (meu desafio), e fui para o terceiro ano, tendo que pagar esta disciplina. Foi
nesse período que perdi uma das pessoas que eu mais amava: minha vó Ilza, que me faz
muita falta. Fiquei totalmente desestimulada, não tinha nem vontade de ir para o colégio,
mas eu sabia que se eu não fosse seria pior. Daí, continuei e consegui passar, tanto na matéria
reprovada, quanto no terceiro ano. Mas mesmo assim, não me sentia pronta para enfrentar
um vestibular, mesmo minha mãe insistindo.
No ano seguinte, me matriculei no cursinho pré-vestibular, como a situação financeira
da minha mãe havia melhorado, consegui estudar como bolsista no Radier. Daí, eu percebi
realmente a diferença entre o ensino público e privado; a estrutura e o ensino eram
maravilhosos. Por eu ter uma deficiência nas áreas de exatas, não consegui acompanhar o
ritmo. Por isso não passei no meu primeiro vestibular para publicidade na federal. Como
não passei, minha mãe não pagou mais cursinho pré-vestibular. Daí, tive que correr atrás de
cursinho pré-vestibular gratuito. Fiz a prova de seleção para o Prevupe (curso oferecido
pela UPE), passei e fiz. Era bom, mais também não consegui passar.
Enfim, quando cheguei na minha terceira tentativa me matriculei no Líder (curso
particular). Por ter uma mensalidade baixa, minha mãe conseguiu pagar. Fiz seleção para o
Universidade Federal Rural de Pernambuco
75
curso de Economia Doméstica. No início eu sofri preconceito pela escolha do curso, mas
tive o apoio do meu namorado (Paulo Henrique) e posteriormente, da minha mãe e família.
Quando chegou próximo do vestibular, fiquei doente e não pude continuar o
cursinho. Só me restou estudar em casa. Mas graças a Deus consegui passar e estou aqui
hoje estudando na UFRPE.
Eu passei minha vida ouvindo que o ensino público era ruim. E que o ensino superior
público é o melhor. Por isso, que muitos alunos do colégio público não conseguem ingressar
na universidade pública, enquanto os alunos do colégio particular conseguem obter esse
êxito. Isso é injusto, deveria ter uma política pública para melhorar essa situação.
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Caminhadas de universitários de origem popular
A óptica de meu ser
Dayane Cristina da Costa*
Como é que se escreve? Que é que se diz? Como se diz? Como se começa? E se não
soasse infantil a pergunta das mais sinceras, como disse Clarice Lispector? Restaria fazer
alguns rabiscos de minha vida, que é com poucas personagens e sem grandes aventuras.
Meu nome é Dayane Cristina da Costa. Nasci em 22 de janeiro de 1988, na cidade de
Natal, no Rio Grande do Norte. Meus pais são de Boa Saúde, interior pobre, como tantos
outros do sertão. Minha mãe, filha de agricultores, teve boas chances de estudar, porque
minha avó já foi professora, mas como nunca teve interesse, hoje mal assina o nome,
como os demais irmãos. Meu pai chegou a fazer o primeiro grau. Casaram-se jovens,
mudaram-se para Natal. Ele trabalhava como motorista de um supermercado. Meus avós
também os ajudavam. Após quatro anos de casados, eu vim ao mundo, e para falar a
verdade, só tenho uma lembrança desse período de minha infância: quando tinha três
anos, meu pai batia muito em minha mãe e eu o mordia, para que ele parasse. Logo em
seguida, ele nos abandonou.
Passamos dois anos com meus avós auxiliando-nos, até que minha mãe se amasiou, se
assim se pode dizer. Minha avó, então, me colocou numa “escolinha” particular, aos meus
cinco anos, onde fiquei até a 3ª série e realmente fui criança. Em minhas primeiras leituras,
aprendizados e brincadeiras, a tristeza está em recordar que mainha não sabia me ensinar as
tarefas e eu pedia aos vizinhos que me ajudassem.
Não posso deixar de escrever sobre a mangueira enorme que existia no quintal de
nossa casa; nela subia todos os dias para acariciar galhos e folhas. Fazendo-me de médica,
cuidava de seus “machucados” – a seiva que escorria pelas frutas. Havia também os gatinhos
que, abandonados, eram lançados no fundo desse quintal: tratava deles até que pudessem
prosseguir sozinhos.
Meus dois irmãos nasceram, eu fui crescendo e os problemas familiares acentuandose. Não me entendia com o marido de minha mãe; de alguma forma, ele sempre me assediava,
quando não era com olhares, fazia gestos e proferia palavras que me torturavam. Sentia-me
cercada e ameaçada. Em meio a esse terrorismo mudo, fiz a 4ª e 5ª série em escolas diferentes,
mas com momentos bem aproveitados. No finalzinho da 5ª série, mudamo-nos para o interior
por dificuldades financeiras. Passei a morar com meus avós, e como era num sítio, a escola
ficava distante; o único meio de transporte era o caminhão pau-de-arara, que utilizei para
terminar a 5ª e fazer a 6ª série. Nessa época, descobri as paixões da adolescência e da leitura,
Graduanda em Economia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
77
fazendo amizade com a professora de português, que me ajudou muitíssimo nas armadilhas
da gramática. Também adorava mexer nos livros da mulher de meu tio, que era professora.
Voltando para Natal, no ano seguinte, mainha logo veio buscar-me, pois queria que a
ajudasse com uma pequena “venda” (também o seu companheiro era analfabeto), precisava
de mim. Ele deixou de me assediar diretamente, mas interferia em horários, companhias, ou
seja, demonstrava sentimento de posse, havendo brigas e mais brigas.
Com os meus catorze anos, consegui participar do Projeto “Agente Jovem”, realizado
pela Prefeitura de Natal, que assistia os jovens em oficinas de cidadania, meio ambiente,
artes, sendo uma ajuda complementar do Ensino Fundamental, que estava concluindo.
Também tentava uma vaga no CEFET, para o Ensino Médio, participando de aulões nos
finais de semana. Infelizmente não consegui passar.
Comecei, então, a planejar metas, sabia que os meus estudos é que me fariam sair de
dentro de casa e ter condições de lá tirar minha mãe e meus irmãos, pois sofríamos todos
com a brutalidade daquele homem.
O Ensino Médio foi mais angustiante do que as outras etapas de estudo: no primeiro
ano, não havia professor de Química nem de Português; no 2º ano, consegui, com dificuldade,
uma vaga no Winston Churchill - uma escola estadual tradicionalista -, na qual tomei gosto
pela leitura. Acabara de receber livros de uma prima, e quando não estava ocupada com os
afazeres de casa, estava sempre estudando.
Nesse ínterim, saí de casa, por não agüentar mais as agressões que o marido de minha
mãe fazia contra ela. Passei, então, a morar com uma tia, onde fiquei por nove meses, até
tomar conhecimento de que a irmã da viúva de meu tio, Regina, que morava em Olinda,
queria uma menina para cuidar de seu bebê. Não pensei duas vezes, vim morar com eles e
cuidar de Lícia, fazendo o terceiro ano à noite e logo também o Rumo à Universidade, nos
finais de semana.
Não sabia bem o que queria cursar, mas estudei, e estudei muito, para conseguir uma
vaga. Apenas na hora da inscrição, optei por Ciências Econômicas - a maior felicidade que
já tive até hoje: entrar numa Universidade Federal. Para mim, uma fada me transformou de
Gata Borralheira em Cinderela. Mesmo que a minha família não tenha dado tanto importância,
foi um degrau que eu subi com muito esforço.
Hoje, terminei o primeiro período com notas razoáveis e com o “Conexões de Saberes”,
que oferece a oportunidade de me apresentar e ser apresentada aqui na Federal Rural e na
comunidade onde moro atualmente, que é em Casa Amarela.
Sou uma pessoa um pouco solitária, mas perspicaz e esperançosa quanto à vida que
ainda tenho que construir e vou construir. Almejo dar continuidade, em outros níveis, aos
meus estudos; possuir um lar digno, para poder morar novamente com minha mãe; viver um
grande amor; e engajar-me em projetos sociais - o Conexões confirmou por meio do “Escola
Aberta” a necessidade de pessoas que contribuam, com ações, e principalmente, com afeto,
com as mudanças em sociedade.
Agradeço às pessoas que estiveram e a outras que estão comigo, que conheceram os
pormenores da minha trajetória, em especial os recentes, que tanto me abalaram. Tenho
apenas dezoito e acredito que o homem não é produto das circunstâncias, mas que as
circunstâncias é que são produtos do homem.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Medo. Que medo?
Debora Bezerra de Santana*
Meu nome é Debora Bezerra de Santana. Tenho vinte anos e uma história repleta de
conquistas, se comparada com as possibilidades e impossibilidades presentes em toda minha
vida. Nasci em São Lourenço da Mata-PE; cresci em um determinado bairro e vivo nele até
hoje. Foi nesse bairro pobre, com essa comunidade pobre, que aprendi riquíssimos valores:
alguns deles adquiridos com exemplos de pessoas que tomaram parte de meu dia-a-dia e
outros aprendidos na escola do bairro, a Escola Estadual Professor Agamenon Magalhães,
onde cursei até a 8ª série do Ensino Fundamental.
Tive bons professores, no entanto, a falta de comprometimento de parte deles inviabilizava
muitas coisas, principalmente para mim, que era uma menina cheia de sonhos, de desejos e
de vontade de construir - qualidades raras de se perceber naquela escola e em muitas outras
escolas públicas, onde a vontade apenas de passar de ano parecia ser o mais constante. Eu
tinha outras ambições, mas me sentia perdida, sem saber por onde começar; então resolvi
começar mudando de escola.
No término da 8ª série, no ano de 2000, surgiu a possibilidade de ir para o colégio
Dom Agostinho Ikas (CODAI), uma escola agrícola muito bem conceituada em minha cidade,
uma das melhores, todos almejavam estudar lá. Para nela ingressar, era necessário fazer um
teste de seleção, que até hoje é muito concorrido. Muitos de meus amigos queriam fazer o
teste, mas desistiam, alguns por medo e outros por motivos financeiros, uma vez que a
inscrição só era possibilitada mediante pagamento.
Eu não tinha medo, minha família também não possuía recursos, mas tinha confiança
e apostava tudo em mim, pois eu era o espelho do que eles queriam e nunca fizeram, nunca
puderam ir além das possibilidades. Apesar das condições, conseguiram pagar a taxa de
inscrição, eu fiz o teste, e para minha felicidade e mais ainda da minha família, fui aprovada
e consegui ingressar nessa escola, o que me garantiu uma trajetória de vida totalmente
diferente das minhas amigas que ficaram na outra escola e das meninas da minha comunidade.
Ano 2001, início de ano letivo, escola nova, pessoas novas e muitos sentimentos
novos em minha cabeça: eu não sabia como os coordenar. Meninas “patricinhas”, meninos
“playboyzinhos”, a maioria oriunda de escola privada... o tempo ia passando e eu tentado
criar o pensamento de que ninguém ali era melhor que eu. Foi difícil, mas a convivência me
mostrou que todos eram iguais a mim, que o poder aquisitivo de cada um não nos tornava
melhor ou pior que ninguém.
Graduanda em Biologia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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No segundo ano, em 2002, fiz o teste para o curso técnico em Agropecuária, no mesmo
colégio. Passei e comecei o curso. Nessa época, ficava o dia inteiro no colégio, mas passei
apenas um semestre nesta rotina. Ao passar para o terceiro ano, a professora de Informática
me convidou para ser sua estagiária e monitorar a Sala de Informática da escola. Aceitei na
hora, sem ao menos pensar: pensar que eu era tímida demais para monitorar uma sala que era
muito freqüentada pelos alunos e só vivia lotada; pensar que eu não sabia tanto de
Informática, sabia apenas o que tinha aprendido nas aulas da própria professora; e pensar
que seria difícil conviver com ela, pessoa muito rígida e exigente. Mas mais uma vez, não
tive medo, visto que seria muito bom para mim, principalmente porque o estágio era
remunerado e a confiança que a professora tinha em mim me deu forças para ir em frente.
Tranquei o curso Técnico em Agropecuária sem nenhum remorso, pois, além de não ser a
área de que eu gostava, descobri que emprego nessa área estava cada dia mais escasso.
Passei todo o ano de 2003 como estagiária e fazendo o terceiro ano de meu curso; foi
um dos melhores anos de minha vida escolar. Como era o último, procurei fazer tudo que me
fazia feliz e fui, realmente, muito feliz. Eu nunca tinha sido tão popular na escola; no final
do ano, conhecia todos, sabia o nome da maioria dos alunos e falava com boa parte do
alunado, tinha aprendido muito mais coisas sobre Informática, e sem perceber, a timidez
que me perseguia no início já não era mais a mesma.
Concluí o Ensino Médio e passei de uma fase de minha vida para outra que me dava
medo: medo do desconhecido, medo de fazer igual às meninas de minha comunidade.
Embora eu tivesse medo do desconhecido, tinha coragem de me arriscar; então, arrisquei
fazer vestibular, apesar de nunca ter pensado nisso, por me achar deficiente em muitas
matérias. Fiz a inscrição e o pagamento da taxa levou embora todo o dinheiro de um mês
inteiro da minha remuneração.
Para minha surpresa, consegui passar na primeira fase do vestibular da COVEST. Um
contentamento tomou conta de mim e o desejo de passar na próxima fase foi enorme. Eu
sabia que tinha chances - pouquíssimas chances, se comparadas às das pessoas que se
prepararam o ano inteiro para aquele momento -, mas o entusiasmo foi tão grande, que me
deu vontade de estudar, em dez dias (tempo que tinha até a segunda fase), o que eu não tinha
estudado uma vida inteira. E estudei, mas não foi o suficiente. Não consegui ser classificada.
Foi a desclassificação que me empurrou, no ano seguinte, a fazer um pré-vestibular e
tentar novamente. Participei de uma seleção para um pré-vestibular gratuito, o Pré-acadêmico,
destinado a pessoas vindas de escolas públicas. Passei nessa seleção. Minha família, sempre
me apoiando, enfrentou todas as dificuldades financeiras para que eu pudesse fazer o Préacadêmico, uma vez que era em outra cidade e eu teria que pagar passagem todos os dias.
O medo de decepcioná-los me fazia tremer em alguns momentos.
Enquanto fazia o pré-vestibular, reabri minha matrícula no CODAI e voltei a fazer o
curso Técnico em Agropecuária. O curso tomava muito de meu tempo e fiz do vestibular o
meu objetivo principal; pensando nisso, desisti, mais uma vez e definitivamente, do Técnico.
O Pré-acadêmico trouxe-me muitas coisas boas: novas experiências, novos amigos e
um bom aprendizado, o que me deu boas chances de ingressar em uma universidade. Ele
também influenciou na escolha de meu curso, pois dava isenção na escolha de algum curso
de Licenciatura em Exatas.
Final de 2004, época de vestibular, apesar da angústia e do receio que me perseguiam,
fiz uma boa prova, passei nas duas fases, consegui aprovação e classificação. Uma alegria
80
Caminhadas de universitários de origem popular
muito forte tomou conta de mim; de imediato, lembrei quem eu era, de onde eu vim, o
que eu consegui, aonde eu cheguei, e principalmente, o que ainda posso fazer. A
felicidade também tomou conta de meus pais: minha aprovação foi motivo de choro e
de emoção por vários dias.
Hoje, aluna do quarto período do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas na
Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE, já vivenciei muitas coisas, boas e
ruins, mas todas gratificantes por me oferecerem aprendizados inéditos. Os meus velhos
conhecidos - os sentimentos de incapacidade, de deficiência, de inferioridade e de medo não me perturbam mais, deixei-os para trás e esqueci-me de que, um dia, possuí alguns
deles. Por vezes, vejo esses sentimentos expostos no rosto de algumas pessoas e me sinto
muito útil, quando uso meu próprio exemplo para mudar o pensamento deles, mostrar que
é necessário não ter medo e arriscar-se sempre por seus ideais.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Memorial
Deise Haas *
A escola primária foi muito divertida, até porque conhecia as pessoas que estudavam
comigo desde o pré e continuei nessa mesma turma até a 4ª série, havia algumas meninas
que eu não gostava, elas eram muito metidinhas e sempre faziam de tudo para chamar a
atenção da tia. Sempre fui uma boa aluna, pelo menos era o que as professoras falavam para
minha mãe, tirava boas notas, porém não em todas as disciplinas, detestava a tal da matemática,
tanto que devido a ela e minha falta de interesse em aprende-la acabei por reprovar a 3ª série
do ensino fundamental.
A partir da 5ª série fui para uma escola mais longe de casa, estadual, pois além da
escola em que eu estudava antes ser só de ensino fundamental, minha família não tinha mais
condições de me manter em uma escola particular. Foi difícil para mim, pois deixava para
trás todos os amigos feitos na infância. Na escola nova, fiquei muito triste, não conhecia
ninguém, me via perdida e insegura, sempre fui muito tímida e calada, o que dificultou
ainda mais o processo de aproximação das outras pessoas.
Até pouco tempo não entendia porque gostava tanto de trabalhos em grupo, e
escrevendo o caminhadas agora, me dei conta de que essa era uma das formas mais fáceis de
me aproximar das pessoas da minha sala. O tempo foi passando e finalmente terminei o
segundo grau e junto com a conclusão vinha o grande desafio: passar no vestibular.
Por três vezes não consegui passar no vestibular que queria fazer, Odontologia ou
Medicina Veterinária, mas como em João Pessoa, lugar onde mora minha família, não havia
o curso de Veterinária, tentei Odontologia mesmo, mas não passei, foi quando resolvi que
não ia fazer vestibular mais coisa nenhuma, o que eu ia era arrumar um emprego. Mas não
era tão fácil assim como eu pensei, e acabei voltando a pensar que fazer faculdade talvez me
desse maiores chances de me inserir no mercado de trabalho.
Dessa vez estava decidida que tentaria vestibular onde tivesse provas no meio do ano e
que seria para qualquer um dos dois cursos, veterinária ou odontologia, pois via meus amigos
todos na faculdade e isso me angustiava, pensava que não era capaz, que era burra demais para
passar em qualquer vestibular, foi aí que assistindo televisão em casa, um programa que
passava todas as manhãs na Bandeirantes soube de um guia de faculdades brasileiras onde eu
encontraria todas as informações sobre as universidades brasileiras, estaduais, particulares e
federais e que estava à venda em bancas de revistas, fui correndo comprar.
Quando comecei a ler, vi dentre outras tantas que havia uma faculdade em MossoróRN (ESAM) que realizava as provas semestralmente, era federal, e ainda oferecia residência
Graduanda em Veterinária.
82
Caminhadas de universitários de origem popular
para os alunos que fossem de outros estados, lendo isso, agradeci a Deus imediatamente,
pois era tudo que eu poderia querer, vestibular no meio do ano, pra veterinária, curso e
moradia de graça, corri pra casa e falei com minha mãe sobre essa oportunidade.
Aí começaram os problemas, não tinha o dinheiro da inscrição, nem tampouco o
dinheiro necessário pra viagem e hospedagem que seriam em Natal-RN e agora, como seria?
Nessas horas sempre aparecem os amigos que conhecem outras pessoas que moram
exatamente no lugar para onde você precisa ir. Alguns chamam isso de acaso ou coincidência
eu, acredito que seja obra da providência Divina. O problema da hospedagem já estava
resolvido só faltavam as passagens.
Estávamos há uns três meses da data das provas e quando eu era pequena sempre via
minha mãe fazendo ovinhos e chocolate para nós, arregacei as mangas e mãos à obra, foi um
período muito cansativo, dormia tarde e acordava cedo, fazia pirulitos, bombons, gostosos
por sinal, e vendia na padaria, numa locadora e em um mercadinho perto de casa, sem contar
os amigos que compravam só pra ajudar, e assim consegui o dinheiro das passagens, minha
mãe me ajudou com mais alguns trocados para outras despesas e lá fui eu para Natal. Foram
três dias de provas, cansativo, mas valeu a pena. No dia 13 de junho de 2001 (sexta-feira)
recebi o resultado, havia passado no vestibular, graças a Deus, mas para Agronomia. Não era
o que eu queria, mas pelo menos estava fazendo faculdade e também havia chances de
conseguir uma transferência para veterinária. Não agüentei por muito tempo, e no terceiro
período, voltei pra casa.
Houve então abertura de vagas para transferência na Esam, foi quando eu passei para
veterinária e voltei para lá, onde fiz até o quarto período, como Mossoró era muito longe de
João Pessoa-PB cidade onde mora minha mãe, era muito difícil eu ir visitá-la.Vivia querendo
voltar pra casa, ou pelo menos ir para um lugar que eu pudesse vê-la com mais freqüência,
foi aí que entrei no site da UFRPE e vi que havia vagas para ingresso extra-vestibular na
Rural, e foi assim que eu vim parar aqui.
Em Recife, tudo era mais difícil, não havia vagas na residência universitária, tive que
procurar um lugar para morar e pagar aluguel, as coisas ficaram bem difíceis lá em casa
depois da minha vinda para cá, mesmo tendo conseguido um lugar para morar, dividindo
apartamento, próximo da Rural não tendo assim despesas com transporte.
Agora, estou no oitavo período de Medicina Veterinária na UFRPE e no ano passado,
em 2006, entrei no Programa Conexões de Saberes e estou bastante feliz por estar aqui na
universidade. Por estar fazendo um curso que me realiza profissionalmente, e pessoalmente
por ter tido a oportunidade de participar desse projeto social tão enriquecedor que, com
certeza, tem muito a acrescentar à minha vida pessoal e profissional.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Retroceder às vezes é preciso,
mas nunca desistir
Deyve André Silva de Lira*
Ao longo da minha jornada, vejo a continuidade de uma história conjunta que vem
sendo escrita por cada membro da minha família, tanto do presente como no passado ao
migrarem no Brasil em busca de dias melhores, dias e memórias da minha família que me
projetaram para o que sou hoje. Me chamo Deyve André Silva de Lira, hoje tenho 28 anos,
casado, pernambucano e recifense, filho de José Pessoa de Lira e Maria das Graças Silva de
Lira, estudante do 9º período de Engenharia Florestal e do 1º período de Licenciatura em
Ciências Agrárias da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
A minha infância foi repleta de alegrias, de amor, carinho, companheirismo e repreensões,
pois eu era muito levado. Graças a estes eventos me tornei neste ser humano que sou hoje,
como toda a família de origem popular brasileira meus pais passaram por grandes dificuldades
financeiras ao terem que formar uma família, dificuldades estas que foram vencidas pouco
a pouco. Casaram-se no ano de 1976 e no ano de 1978 nasceu o primeiro filho que é este que
vos escreve. Minha mãe teve complicações no parto e tive meus primeiros dias de vida
complicados e que exigiam cuidados, pois nasci com um sério problema de saúde do qual
foi necessário uma transfusão de sangue, pois estava anêmico. Travada e vencida esta
batalha passei um tempo na casa da minha avó materna, Edith, em Palmares onde minha
mãe sempre contou com seu apoio. Lá, passei a minha infância até os 4 anos e era sempre
levado e incentivado pela minha avó de ir à igreja com os meus primos. Passado este tempo,
voltei para a região metropolitana do Recife e fui matriculado na minha primeira escola,
Casinha Feliz, tenho boas lembranças de lá, o fato que mais me marcou e que lembro até
hoje foi a festinha da páscoa, pois pintaram o meu rosto e colocaram orelhas de coelho.
O ano de 1983 foi um ano marcante, pois no dia 17 de fevereiro nasceu a minha única
irmã, Deyze Andréa, ela nasceu na cidade de Palmares e graças a Deus ela tinha uma saúde
perfeita, me lembro bem que por ter apenas 5 anos naquela época era proibido entrar crianças
no hospital e meu pai deu um jeito pra eu ver a minha irmã. Ela parecia uma beterraba de tão
vermelhinha que era. Este ano também foi um marco na minha vida escolar pois estava indo
para a 1ª série e meus pais me matricularam na Escola Estadual Professor Benedito Cunha
Melo em Barra de Jangada, Jaboatão e lá convivi a uma nova experiência de aprendizagem
com os colegas, fiz boas amizades, tive também boas brigas, a minha professora foi um
marco pois até hoje me lembro do nome dela, Salveline, pois era uma pessoa paciente que
transmitia com muita clareza todas as disciplinas e que nos foi uma grande incentivadora
no aprendizado, estudei também com ela a 2ª série. Já na 3ª série os professores estaduais
Graduando em Engenharia Florestal.
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Caminhadas de universitários de origem popular
passaram por grande dificuldade e não houve outra alternativa a não ser a greve, greve esta
que foi de longa duração, meu pai preocupado com a minha formação esforçou-se e me
matriculou em escola particular chamada Educandário Cinderela também em Barra de
Jangada dos quais cursei a 3ª e 4ª séries.
O que marcou nesse período foi o fato de ter entrado nesta escola quase que no meio
do ano letivo por causa da espera do fim da greve do estado. Foi complicado pra mim ter que
acompanhar os colegas que já estavam adiantados com as disciplinas mas foi nesta época
que meu pai foi meu grande aliado nos estudos pois estudamos juntos todos os dias em
ritmo acelerado e graças a ele não perdi o ano.
No antigo ginásio do 1º grau, meu pai teve condições de me matricular em uma escola
particular, pois o ensino público estava em ampla decadência e sendo assim fui estudar no
colégio Souza Leão de Candeias, foram imensas as dificuldades, pois o processo de educação
pedagógico era bem mais elevado e exigia um esforço maior para passar de ano, mas graças
a ajuda de meu pai que me dava reforço esta dificuldade foi superada. Na 6ª série já
“maiorzinho” tive um pouco mais de liberdade, tais como, ir só ao colégio. Fiz boas amizades
e já acostumado com o ritmo da escola privada o ano letivo foi mais tranqüilo e assim
permaneceu até a 7ª série.
Quando finalmente cheguei a 8ª série meu pai se viu em situação financeira desfavorável
para me manter no Souza Leão, pois a inflação ainda assolava esse país, e passei a estudar na
escola pública Dom Carlos Coelho, onde foi um grande passo de retorno ao passado que me
fez ver o presente e buscar por um futuro melhor.
Chegada a hora de fazer o 2º grau optei por fazer um curso técnico na escola Dom
Carlos Coelho onde não tive problemas e fui bem-sucedido com boas notas durante todo
esse trajeto, mas veio a decepção e frustração de não conseguir vaga na área técnica e ao
mesmo tempo que o curso técnico não me deu suporte suficiente para fazer um vestibular.
No ano em que terminei, 1996, meu pai não teve condições de pagar o vestibular e
sendo assim no ano seguinte trabalhei para ajudar em casa como caixa em mercadinho perto
de casa, passados o tempo de experiência no trabalho meu pai saiu da ruim condição
financeira e pediu para que eu voltasse a estudar, e assim fiz, procurei fazer vários cursos de
informática, pois meu pai havia comprado com muito esforço um computador de segunda
mão para mim, e passei quase que todo o ano de 1997 me especializando na área. No final
de 97 as inscrições para o vestibular foram abertas e eu não havia me preparado para tal, mas
mesmo assim meu pai acreditou em mim e deu um “jeitinho” de pagar a minha inscrição.
Como não havia estudado o suficiente para o que eu queria, o curso de Direito, passei
a procurar pelos cursos de menor concorrências nas federais e me deparei com os cursos de
Engenharia de Pesca e Engenharia Florestal, que alguns colegas já estavam cursando, na
dúvida, pedi a Deus que me orientasse pois eu passei a ser protestante da denominação
Batista e ouvi fortemente de Deus que deveria fazer florestal e assim foi feito, mesmo sem
estudar e apenas utilizando um pouco do aprendizado técnico numa escola pública, passei
no vestibular, foi uma alegre surpresa pois eu mesmo não acreditava neste feito e a partir
desta conquista passei a enxergar novos horizontes.
Feito a matrícula na UFRPE deu-se início as aulas e logo vieram as dificuldades tanto
dentro da universidade como fora, estas eram algumas: eu era técnico em contabilidade e
passei em um curso de engenharia, a matemática, a física e a química do básico me
castigavam, e a distância da minha casa eu levo (resido ainda no mesmo local) 3h por dia
Universidade Federal Rural de Pernambuco
85
dentro de um ônibus para ir e voltar para minha casa, perdi algumas disciplinas e
obrigatoriamente tive que refaze-las a tarde, pois os cursos diurnos na Rural são no sistema
seriado, portanto, passava o dia na universidade sem ter como me alimentar.
Foi daí que perdi o estímulo e o interesse e tentei achar outras “oportunidades” e até
que achei, colegas que moravam nos Estados Unidos me chamaram para morar lá e fui em
agosto de 2000 como turista e fiquei trabalhando por lá um ano e meio, mas sempre mantive
o curso em aberto, pois deixei meu pai como procurador para fazer a matrícula por mim e eu
era reprovado por falta, pois na UFRPE não havia jubilamento. Ganhei muito em experiência
residindo em outro país, aprendi a ser persistente, a dizer “não”, a ter e fazer valer minhas
opiniões, aprendi que o que me faz realmente feliz é está perto de meus pais e parentes e não
o dinheiro, aprendi a valorizar meus país e meu nordeste, pois coisas regionais que eu não
dava valor outrora passei a sentir falta delas e pedindo mais uma vez a orientação de Deus,
Ele me respondeu que era hora de retornar e assim fiz em fevereiro de 2002.
Procurei retornar o curso e assim foi, estudei um semestre, passei, mas quando foi no
semestre seguinte fui pego com uma péssima surpresa, havia sido jubilado e procurei o
motivo e vi que havia um erro nesta decisão, procurei o coordenador do curso e o mesmo me
mandou procurar a pró-reitoria e me orientaram em entrar com um processo pelo qual me foi
negada a reintegração. Todo este acontecimento ocorreu um pouco após da inscrição do
vestibular de 2004 no qual graças a Deus me escrevi com o intuito de limpar o meu currículo
e após estes fatos o que era apenas uma forma de limpar as reprovações passou a ser obrigação
e faltam menos de um mês para a primeira fase do vestibular.
Não tento tempo de estudar fiz a primeira fase e me classifiquei para a segunda na 70ª
posição, no curso de engenharia florestal tem apenas 50 vagas e foi quando mais uma vez
deixei de acreditar em mim, mas Deus novamente foi bondoso comigo e passei no vestibular
na 46º posição na 2ª entrada e a partir daí pedi dispensa das disciplinas que já havia pago e
hoje estou no meu último ano, consciente e feliz com o meu curso, pois me identifiquei com
o mesmo e aconselho aos que me pedem informações que o façam.
Fico feliz de hoje participar do Conexões de Saberes programa este de extensão
onde as ferramentas são aquelas lapidadas pelas dificuldades sociais e econômicas deste
país e que têm como foco principal a permanência dos estudantes de origem populares da
minha região e país, faço votos para que este incentivo cresça a cada ano, tentando
sempre proporcionar integração dos que já alcançaram a universidade e aqueles que
ainda chegarão nela, pois isto é um começo de valor inestimável de inclusão social bemsucedida e justa, certamente, assim poderemos cantar com orgulho que somos filhos desta
mãe gentil, pátria amada Brasil.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Quem acredita sempre alcança
Edjane Oliveira dos Santos*
Chamo-me Edjane Oliveira dos Santos. Nasci no dia 17 de agosto de 1985, e resido no
município de Camaragibe, cidade da região metropolitana de Recife. Filha de Antônio
Cassimiro dos Santos, cozinheiro de uma indústria, e Maria Gertudes Oliveira dos Santos,
dona de casa. Aos três anos e meio comecei a estudar na escola particular Menino Jesus, em
Camaragibe, e adorava aprender coisas novas, apesar de ser um pouco introvertida. Com o
passar dos anos, tive que ser matriculada em outra escola, já que nesta não havia a 1a série
do Ensino Fundamental. Comecei a estudar em uma nova escola particular, chamada Instituto
São Luiz, na mesma cidade, mas não gostava do ambiente, nem das minhas professoras.
Na 4a série, conheci uma professora chamada Luzinete. Ela me mostrou que eu poderia
ser qualquer coisa, desde que primeiro eu pudesse acreditar nisso; foi assim que me interessei
fortemente pelos estudos e inclusive pela vida. No final da 4a série, meus pais tiveram que
me tirar dessa escola por motivos financeiros, e fui estudar na escola estadual Professor
Antonio Carneiro Leão, também em Camaragibe. Logo de início, não me adaptei a essa
nova estrutura, tampouco aos meus novos amigos, mas aos poucos, fui gostando. Na 8a
série, conheci um professor chamado Nivaldo, que assim como Luzinete, minha antiga
professora, ensinou-me a desenvolver algumas habilidades em matemática. Ele foi meu
professor até o 3º ano do ensino Médio, ano que seria o mais difícil de toda a minha vida,
pois seria um ano de decisões.
No começo do 3º ano, resolvi que iria prestar vestibular, e como não dispunha de
condições para pagar um cursinho, inscrevi-me no pré-vestibular do Rumo à Universidade,
oferecido pelo governo do estado. Com muito esforço, consegui passar. Não era fácil ter
que estudar para as matérias do 3º ano durante a semana, e no fim de semana, me preparar
para o vestibular. No primeiro simulado, atingi a média para não pagar a taxa de inscrição
no vestibular da UPE e UFRPE, mas percebi que havia muita gente inteligente e que
minhas chances eram quase mínimas de passar. Fiquei pensando sobre este assunto durante
semanas, e sentia que meu sonho de torna-me uma matemática estava longe de ser
concretizado. Foi assim que uma semana depois, ouvindo uma música de Renato Russo,
Quem acredita sempre alcança, que, por sinal, era o “hino” do Rumo à Universidade,
percebi que não podia desistir sem antes lutar. Sabia que não seria fácil, mas também
sabia que não era impossível.
Comecei a estudar com tanta serenidade e força de vontade que nem percebia as horas
passarem. Acordava-me às 6h da manhã e estudava até às 12h; às vezes nem almoçava, pois
Graduanda de Matemática.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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tinha que ir às pressas para a escola, porque tinha que me dedicar para passar de ano. No fim
de semana, era muito mais cansativo pra mim, porém, era maravilhoso perceber que o Rumo
havia tornado-se a minha segunda família.
Enfim, passei na Universidade Federal Rural de Pernambuco e na Universidade de
Pernambuco com boas notas, tanto que elas me fizeram ganhar uma bolsa, o que me ajudou
muito nos primeiros períodos da faculdade.
Hoje, estou no sétimo período de matemática, na Universidade Federal Rural de
Pernambuco, porque acreditei em mim, confiei em Deus e não deixei de sonhar. Futuramente
pretendo cursar o mestrado em matemática pura, e talvez, um doutorado.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Elizabete Honório da Silva *
Foi no dia três de janeiro de 1984 que eu nasci, na cidade de Paulista, região metropolitana
do Recife, em Pernambuco. Eu era o segundo filho da minha mãe, e do meu pai era o terceiro,
pois ele já havia tido um filho em seu primeiro casamento.
Nasci numa família bastante simples, com pai mestre de obras, ou “pedreiro”, como
ele gosta de ser chamado, mãe dona de casa, e dois irmãos mais velhos. Sempre moramos em
casa própria, pois em um dos trabalhos do meu pai, ele obteve como pagamento um terreno
no qual ele construiu o seu projeto de casa, desenhado por ele mesmo, embora ainda não
tenha conseguido concluir. E foi no bairro de Maranguape Um, em Paulista, que eu passei
toda a minha vida. Também, foi neste bairro que eu tive os meus primeiros contatos com a
escola, aos quatro anos de idade.
Bastou eu aprender o alfabeto, para sair lendo tudo o que eu visse pela frente.
Quando fiz seis anos de idade, me pularam da alfabetização para a 1ª série, daí por
diante nada me segurava. Eu era aprovada todos os anos. Nem tudo, porém, era tão fácil,
pois a danada da matemática me mandava para a recuperação sempre. Minha mãe me
dizia que pra eu aprender a trabalhar com os números, só abrindo minha cabeça e
colocando um livro dentro.
Aos quatorze anos eu estava no primeiro ano do ensino médio, que era misto, com o
curso profissionalizante em Patologia Clínica. Um pouco mais distante da minha casa, na
Escola Soares Dutra, em Santo Amaro, na cidade de Recife.
Tive que interromper os estudos durante um período de um pouco mais de dois meses,
por conta de uma equistossomose, a qual me deixou inválida, por ter atingido o meu sistema
nervoso. Após a administração de algumas drogas, me livrei da doença, e com algumas
seqüelas, retomei a minha vida estudantil.
Foi na escola que tive uma professora de bioquímica, admirável, por isso, almejei
estar no mesmo lugar que ela.
Ao término do ensino médio/técnico fui estagiar no laboratório de análises clínicas
da Maternidade Barros Lima, em Recife. Surpresa, me deparei com a minha professora de
bioquímica, que exercia a função de bióloga analista do laboratório. Estreitamos nosso
convívio e ela me ensinou um pouco de tudo. Nesta mesma época, eu presenciava a
agonia do meu irmão mais velho por causa de uma prova chamada vestibular, a qual ele
nunca conseguia aprovação.
Como eu já estava concluindo o ensino médio/técnico, eu me dei conta de que,
para alcançar a posição da minha professora de bioquímica, eu tinha que prestar
Graduanda em Biologia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
89
vestibular. No ano de 2000, aos 16 anos, eu prestei o meu primeiro vestibular, para
licenciatura em biologia.
Consegui classificar-me na primeira fase, todos se surpreenderam e me elogiaram
bastante, porém, na segunda fase, não consegui a classificação. Daí eu me dei conta de que
era necessário estudar bastante para passar no vestibular.
Para isso, tive que penar por quatro anos, em cursinhos gratuitos, federais ou que
cobravam taxas simbólicas. Durante esse período de pré-vestibular, deu pra arrumar um
namorado e notar o quanto eu era deficiente em química. Por causa disso, eu fiz química
industrial no CEFET-PE, no ano de 2003, e é claro, arrastei meu namorado comigo. Ele
fez edificações e assim iniciamos nossos cursos juntos. Esse novo curso foi a alavanca
para a minha classificação no vestibular, pois, no ano de 2004, eu consegui uma das
oitenta vagas do curso de licenciatura em ciências biológicas na Universidade Federal
Rural de Pernambuco.
Hoje em dia me encontro atuando na área de química, graças ao meu curso técnico.
Participo de um projeto de extensão da UFRPE “Conexões de Saberes”, no qual eu capacito
alunos de classes populares dos bairros de Paratibe e Maranguape Um, em Paulista,
desenvolvendo um trabalho de artes plásticas muito bonito, no qual todos podem se expressar
através da pintura e ler o mundo de uma nova forma. Além de fazer o que gosto, também
estou sendo remunerada; isso faz com que eu me sinta valorizada e digna.
Eu me chamo Elizabete Honório da Silva. Sou estudante de origem popular, brasileira,
universitária, artista e sonhadora, porém, com os pés no chão.
90
Caminhadas de universitários de origem popular
O caminho de pedras que...
Emmanuel Ramos de Freitas*
Eu, Emmanuel Ramos de Freitas, sou aluno do curso de licenciatura em química na
Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). E neste momento sinto-me desafiado
a romper o silêncio pálido do papel para mostrar as minhas pegadas que ficaram marcadas
na minha longa jornada. Sei que ainda tenho muito a percorrer, mas por ser a caminhada tão
longa e o caminho ser tão pedregoso. Muitas vezes já pensei em desistir, mas ao olhar para
as pegadas que para trás ficaram, tomo fôlego e digo pra mim mesmo: “eu não posso desistir”.
Como já cantava Milton Nascimento “só estou na estrada... meu caminho é de pedra...”
e como também dizia o poeta Carlos Drummond “tinha uma pedra no meio do caminho e no
meio do caminho tinha uma pedra”. No caminho encontrei pedras de todos os tipos estando
quase sempre sozinho.
No começo da estrada, lembro-me como se fosse hoje, como tudo aconteceu. Sou
filho de pais separados como muitos que aqui chegaram. Para alguns a minha história não
passa de mais uma história que compõe este livro, mas quero que saiba que a minha
história é diferente, pois aos três anos de idade a primeira pedra apareceu-me, pois o fato
de ter presenciado o meu pai jogar a minha mãe dentro do canal (rego) - que ficava em
frente de casa - consumando a separação. Depois disso tive, que ir morar na casa do meu
avô, na qual já moravam dez pessoas, e com a minha chegada, o que já era difícil ficou
mais ainda, pois a casa era mantida com dois salários e com o dinheiro das lavagens de
roupas que minha tia fazia.
Recordo-me que pelo fato de ser o menor da casa, e por passarmos dificuldades
financeiras, as roupas do meu primo mais velho que não cabiam nele eram reaproveitadas
por mim e as roupas novas que ganhava era sempre no natal ou no dia do meu aniversário.
Quando tinha quatro anos, comecei a ir a uma escola da comunidade, que tinha a
função de preparar os alunos da comunidade para que no ano seguinte não enfrentassem
tanta dificuldade ao ingressarem nos barracões - escola municipal, feita de madeira que só
tinha uma sala, onde estudava os alunos da pré-escola, alfabetização e 1ª série. Mas para
poder estudar nessa escola a comunidade precisava ter o fardamento, bermuda, camisa
branca e alpercata, mas pelo fato do meu primo não ter ido estudar nessa escola o meu
fardamento não estava garantido. Então, com muito esforço da família, a bermuda e a
alpercata foram compradas e a camisa foi doada pela professora da escola.
Nessa escola, modéstia a parte, eu era tido como o aluno mais interessado e o mais
aplicado da turma. Já no barracão outras pedras eu encontrei, pois para chegar até lá tínhamos
Graduando em Química.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
91
que andar cerca de um quilômetro e meio em pleno sol da tarde. Mas as pedras que aqui
relato são pedras que o tempo ajudou a lapidar.
Quando fui estudar na escola estadual Maciel Pinheiro aos pouco tudo foi melhorando.
Deste período, me recordo dos cadernos encapados com o papel da sacola do supermercado
ou do embrulho das compras feitas na barraca, do esforço para fazer o sapato não aparentar
ser tão velho, das pastas que tinha que durar por mais de dois anos, das tarefas de casa feitas
à tarde, e da merenda da escola, que fazia questão de repetir.
Neste colégio, estudava pela manhã e quando chegava em casa, a minha tia dizia
logo: só vai brincar depois de estudar. E muitas vezes tomava toda tarde, pois enquanto ela
engomava as roupas em uma das pontas da mesa, do outro lado ficava eu e minha prima
estudando, e quando dizíamos que tínhamos terminado a tarefa da escola ela sempre mandava
a gente ler algum livro ou uma história, sendo que essa leitura sempre resultava em um
ditado, e ai de quem errasse alguma palavra, porque cada palavra errada era reescrita no
mínimo umas cinco vezes. Eu sempre errava mais que minha prima que logo era liberada
para brincar.
Pelo fato de estudar à tarde junto com minha prima, que era uma série a minha frente,
a professora da 1ª série tentou me passar da 1ª série para a 3ª série, mas quando ela aplicou
as provas da 2ª série a mesma verificou que realmente tinha condições de ir para a 3ª série,
porém, eu iria ter muita dificuldade na leitura, optando por fazer a 2ª série.
Sempre fui um menino muito quieto e que gostava de evitar briga, lembro que para
fugir de uma briga tive que convencer um colega, pra não me bater, com uma promessa de
passar cola pra ele durante a prova, entretanto na hora da prova passava as resposta todas
erradas, o que aumentava a vontade dele de me bater, e quando ele vinha me bater ou eu o
convencia novamente ou me escondia depois do toque de saída, até ter certeza que ele já
tinha ido para casa.
Quando estava para estudar na escola Martins Junior, a minha tia pegou algumas
pernas de causas jeans velhas e as transformou em uma mochila pra mim, pois estava
indo para a 5ª série, além da mochila pude experimentar uma outra emoção a de estar
usando o primeiro caderno de matéria, coisa que agora é tão normal, mas naquela ocasião
foi a glória.
A minha primeira bolsa, que não tinha sido usada por ninguém ou feita por minha tia,
foi adquirida por mim quando estava na 8ª série, com o dinheiro que ganhava por lavar as
cadeiras e cuidar do jardim da igreja. Foi neste período também que uma das minhas tias
resolveu pagar um curso preparatório para a prova da escola técnica, esse curso funcionava
na própria escola técnica. No dia da matricula, a minha tia, a mais nova, me levou pela
primeira vez à escola técnica, e naquele momento ao entrar no prédio parecia que estava
entrando na esplanada dos ministérios para falar com o presidente, apesar de ter visitado
alguns museus e outros locais quando pequeno, devido às dificuldades a minha rotina era
escola, casa e igreja, e tudo ficava um perto do outro. Foi a partir desse dia que comecei a
andar de ônibus sozinho.
Apesar de não ter sido aprovado na prova, esse curso foi de muita importância pra
mim, porque ajudou a superar as dificuldades do ensino da escola, referente aos conteúdos
da 5ª a 8ª série. E para enfrentar o segundo grau, atual ensino médio, eu e alguns colegas
formamos um grupo de estudo, que não limitava só em estudar os assuntos visto na
escola, desse momento, lembro que resolvemos fazer um curso de eletrônica, e mesmo
92
Caminhadas de universitários de origem popular
tendo feito a matricula não consegui concluir devido dificuldades financeiras que
enfrentávamos naquela época.
Na escola enfrentamos o problema mais comum que é a falta de professores. E por isso
retomo o ano em que fazia o primeiro ano científico, no início do primeiro semestre ficamos
sabendo que não tínhamos professores de química e nem de física e só quando terminou o
primeiro semestre foi enviado um professor de física para a escola, e para nossa surpresa o
professor não sabia falar português direito, pois o professor tinha chegado ao Brasil a menos
de um mês. As nossas aulas de física eram ministradas em francês ou em inglês, sendo
necessário à tradução das professoras de inglês ou de francês. No segundo e terceiro ano
tivemos menos problemas, pois tínhamos professores em todas as disciplinas e o que é
melhor em nosso idioma. Lembro-me das professoras de física e química que se esforçaram
para dá todo o conteúdo da disciplina em um ano e meio, para ajudar quem ia prestar o
vestibular naquele ano.
Quando terminei o terceiro ano, tive medo de enfrentar o vestibular sem um preparo,
e foi nessa época que conheci o pré-vestibular da universidade, pré-acadêmico, que é
destinado a alunos de ensino público que pretende ingressar nos cursos de licenciatura.
Tendo sido aprovado na seleção para fazer o pré-acadêmico, e após um ano de preparação,
prestei o primeiro vestibular para UFRPE, ficando pra remanejamento, e outro para a
faculdade integrada de Vitória de Santo Antão (FAITVISA), tendo aprovação, mas optei por
não cursar devido o serviço militar. Após o serviço militar entrei no pré-vestibular perto de
casa, e no meu segundo vestibular para UFRPE tive a aprovação.
No primeiro semestre encontrei muitas dificuldades, uma delas foi o dinheiro para as
passagens de ônibus, a falta de compreensão dos professores e a falta de contato com os textos
científicos. Foram essas dificuldades que quase me fez reprovar as três cadeiras logo de cara.
Quando fiquei sabendo do Programa Conexões de Saberes, já no sétimo período, fui
me escrever sem acreditar muito que poderia ser selecionado, pois tinha receio que um dos
critérios de seleção fosse o de não ter reprovação no histórico, pois já contava com algumas.
Mas pra minha surpresa tinha sido selecionado, mesmo sem saber muita coisa do projeto. E
quando foi passado o que seria o projeto, senti-me desafiado a enfrentar os meus medos, e a
cada vez mais que tenho me envolvido no programa fico certo que posso fazer algo mais
pela minha escola e minha comunidade, sempre respeitando os seus saberes. Às conquistas
pessoais que o Programa Conexões de Saberes me proporcionou foram a superação do medo
de enfrentar uma sala de aula para estabelecer a relação professor/aluno, vencer a dificuldade
de expor minhas opiniões, e vencer as dificuldades de comunicação.
Na nossa caminhada sempre encontraremos pedras no meio do caminho que nos fazem
tropeçar e nos machucam, mas o mais importante é que ao passar do tempo, e quando
olharmos essas pedras que para trás ficaram e ao avistá-la procurar a sua real beleza. Pode
encontrar as mais belas pedras preciosas. Sei que todos têm a sua caminhada a percorrer e
que nenhum de nós poderá deixar de fazer esse caminho de pedras, a todos uma boa jornada.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
93
Memorial
Ericka Carneiro Leão de Oliveira*
“Coragem, coragem
Se o que você quer é aquilo
que pensa e faz
Coragem, coragem
Eu sei que você pode mais...”
Raul Seixas
Minha caminhada tem sido difícil. Sempre me valí, no entanto, de coragem e de
determinação para alcançar meus objetivos, ainda que eles não estivessem tão claros para
mim. Sempre pensei que não poderia continuar a realidade de meus pais, avós, tios... desde
cedo, minha vida aponta para uma realidade mais justa e inclusiva.
Sinto-me vencedora por ser a única, de três gerações, que faz universidade, que é
universitária. Esse nome é até considerado um mérito em minha família. Para mim, é
apenas parte da busca.
Em 1987, já pensava em grandes realizações e agia, mesmo tendo apenas seis anos e cursando
a 1ª série, queria ser professora! Alimentei esse sonho por alguns anos e sua maior conseqüência
foi perceber meu irmão de cinco anos, que aprendeu a ler e a escrever comigo, já na 1ª série.
No ginásio, da 5ª a 8ª série, “mudei de profissão”. Adquiri conhecimentos e afinidades
com o Português e a Literatura. Decidi que seria jornalista. Passava as tardes recortando fotos
e inventando os textos. Essa minha nova busca perdurou até o primeiro vestibular.
Filha de pais separados, estudei em algumas escolas diferentes, morando com meu pai,
minha avó e até com minha madrinha. Mas nenhuma escola teve tanta influência sobre as
minhas perspectivas quanto ao Ginásio Pernambucano. Como sempre estudei em escolas de
bairros, estudar no centro da cidade foi uma ascensão e tanto - por se tratar de um ensino nos
padrões das melhores escolas particulares. Fiquei muito mais convencida de que alcançaria
o objetivo de ser jornalista quando conheci Géber Accyoli, professor de Literatura, com
quem aprendi a gostar de João Cabral de Melo Neto e tantos outros escritores, em especial
os de nossa região. Ele possuía uma maneira singular de ensinar e dialogar com seus alunos,
nem sempre compreendida por todos, que me fez enveredar por novos caminhos, embora
continuasse sendo jornalista...
As oportunidades começaram a aparecer e me inscrevi no primeiro cursinho prévestibular da Faculdade de Direito - gratuito para os alunos do Ginásio Pernambucano (GP).
Graduanda em Engenharia de Pesca.
94
Caminhadas de universitários de origem popular
Esta nova empreitada fez-me acreditar na possibilidade de ser aprovada no vestibular para
Jornalismo, cuja concorrência era alta demais, mas passível de ser suplantada. Então, estudava
incansavelmente. No período da manhã, no GP; à tarde, no cursinho; e à noite, em casa.
Meus esforços, porém, não foram suficientes. Não fui aprovada. E minha vontade foi-se
esvaindo, talvez pela frustração.
Resolvi, por conseqüência da não-aprovação, que faria um curso Técnico, para não
interromper os estudos. Como diria minha avó, não iria “nadar, nadar e morrer na praia”.
Então, no mesmo ano, prestei vestibular para Turismo no CEFET e passei. Cursei Turismo
por um ano e meio, mas não estava satisfeita com alguns resultados. Estava perdida. O que
mais me agradava no curso eram as aulas de línguas estrangeiras. Sabia, entretanto, que ser
turismóloga não implicava tão-somente conhecer línguas, e as demais práticas da profissão
não me convinham.
Até que, ainda no CEFET, Cybelle, uma amiga de sala, me falou que faria Engenharia
de Pesca. Eu, até então, nem sabia do que se tratava no curso. Fizemos, Cybelle e eu, uma
pesquisa e senti-me encantada pela profissão. Tratar da natureza, das ciências do mar...
fizemos, as duas, vestibular para Engenharia de Pesca, na Universidade Federal Rural de
Pernambuco - UFRPE -, e o resultado foi surpreendente: minha amiga, que havia me
apresentado essa possibilidade, não passou e eu passei! Foi uma felicidade e tristeza, por
causa dela, ao mesmo tempo...
Após a entrada na Universidade, minha vida mudou radicalmente. Sofri bastante as
agruras por proceder de escola pública e estar no meio da Engenharia. Nunca tive afinidade
com as ciências exatas, e para falar a verdade, estando no penúltimo período do curso, ainda
não adquiri. Talvez por essa dificuldade, pensei várias vezes em trancar o curso, desistir ou até
mesmo trocar de área, mas no fundo, tinha a certeza de que encontraria o que buscava aqui
mesmo. Afinal, estava em uma universidade pública e sabia que outras oportunidades surgiriam.
No oitavo período, comecei a ter aulas de Extensão Pesqueira, que chamou muito
minha atenção por seu poder de transformar a realidade de muitos brasileiros e até a
minha própria. Fiquei fascinada por interagir e trocar conhecimentos com as comunidades
e por ter a chance de usar a ciência como forma de inclusão. Esse fato foi concomitante
com minha entrada no Programa Conexões de Saberes e se tornou a confirmação de que
havia encontrado o meu caminho.
Voltar às minhas origens, para ensinar e aprender a ser cidadão/cidadã, gerando
perspectivas às comunidades populares, propiciou que minha experiência acadêmica se
tornasse mais cheia de vida e de satisfação pelas escolhas feitas. Todas as incertezas foramse esvaindo... ao final do curso, que está bem perto, cheguei à conclusão de que seria
professora “novamente”. Que ironia! Passei na seleção para Licenciatura em Ciências Agrárias
e sinto-me bem realizada, e agora, com objetivos muito maiores: de mudança não só de
minha realidade, mas de toda uma sociedade, de todo um país.
Minha caminhada foi permeada por novos caminhos aos quais nunca me abstive de
seguir, com o respaldo de minha mãe, que sempre compreendeu e apoiou minhas mudanças.
Ela sempre soube, como eu também sei, que os nossos caminhos têm muitos percalços,
obstáculos econômicos e sociais, mas que, de posse de muita coragem para nos lançarmos
ao novo, vamos encontrando nossos caminhos. O meu, nem é tão novo assim, aos seis anos
já queria isso, só demorei para entender. Todas as experiências que tive configuraram-se
bagagem valiosíssima e me trouxeram até aqui.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
95
Meus pais, minha vida
Euclides Leonardo da Silva Pedrosa*
Minha primeira escola foi uma creche, o Lar Fabiano de Cristo, na Várzea. Lembro
vagamente da primeira menina que gostei: Gabriela, parecia uma princesa, morena clara de
cabelos longos, pretos, bem lisinhos, olhos castanhos vivos, uma maravilha. Também, tenho
na memória a primeira professora, Tia Conceição. Eu, adorava a comida da escola (arroz com
almôndegas). O que toca profundamente meu coração é a maneira que meu pai levava a mim
e a meus irmãos àquela escola. Pois bem, éramos muito pobres, às vezes, painho - modo
carinhoso como chamo meu pai - não tinha as passagens para levar-nos para a escola (creche).
Às vezes tinha só uma, a ida. Dessa forma, íamos logo cedo de ônibus e ele voltava a pé.
Quando não tinha as duas passagens, íamos caminhando, o ruim era acordar mais
cedo, calçávamos um sapatinho tipo conga azul, meias brancas, vestíamos uma camiseta
branca, um calção azul e levávamos a tiracolo uma bolsa de pano azul. Meu pai juntava os
quatro, eu, Ricardo, Eduardo e Andréa. Eu e Andréa ele levava de mãos dadas, do outro lado
ele agarrava Ricardo em suas mãos, Eduardo como era o mais novo, ele levava-o na carcunda.
Andávamos da Universidade Rural até a Praça da Várzea, cerca de uns sete quilômetros, isso
dava aproximadamente uma hora a pé. Minha mãe ficava em casa costurando. Às vezes
costurava roupas para as mães dos meus colegas. Quando não estava costurando, lavava as
roupas dos vizinhos e este trabalho ela trocava até por comida. Quanto mais lembro das
dificuldades que meus pais encontravam para nos manter na escola, mais aumenta o meu
amor e admiração por eles.
No Lar Fabiano de Cristo, tive meu primeiro contato com a agricultura, adorava plantar,
fazer os canteiros e ver os lindos pimentões, tomate e coentro que colhíamos e levávamos
para casa. Mainha achava lindo esse trabalho. Quando entrei no primário, minha mãe me
matriculou na Escola Mundo Esperança, no Sítio dos Pintos. Lá, tive minha segunda paixão,
a professora, como era bonita: loira, magra, lábios carnudos e seus dentes era o que mais me
chamavam atenção, bem feitinhos e branquinhos; o interessante é que me esforço e não
consigo lembrar seu nome.
No ano seguinte (1988), fui matriculado na Escola Lions de Parnamirim, lá, passei
dois anos, 3ª e 4ª séries, em 1990, na eleição para presidente do Brasil. Lembro-me com
grande ênfase das leituras dos jornais que eu fazia para meu pai e meu avô, os dois se
deliciavam com minha leitura. No período ginasial, matricularam-me na escola Municipal
Sociólogo Gilberto Freyre, esse foi o melhor período de nossas vidas até aquele momento,
pois minha mãe passara num concurso para costureira de um hospital pelo governo do
Graduando em Engenharia Agrônoma.
96
Caminhadas de universitários de origem popular
estado. No ano de 1993, fomos morar no município de Petrolândia, no sertão, lá, a vida era
difícil, mais complicada, mãe perdeu alguns benefícios com essa transferência, tive que
trabalhar o ano seguinte com meu tio.
Esse meu tio era vendedor de carne de boi, o que no interior chamam de marchante,
acordava as quatro horas da manhã e ia para a feira de Jatobá com ele, vender carne; perdi o
ano escolar. Em 1995, voltamos a morar no Recife, minha mãe pedira retorno para sua
locação de trabalho, por motivo destas dificuldades, novamente voltei a estudar no Gilberto
Freyre, onde concluí o ensino fundamental. Essa época foi uma das piores de minha vida,
pois, era excluído por alguns colegas, tanto na sala de aula como na vizinhança, era louco
para namorar e as meninas não me aceitavam só aceitavam com alguma coisa em troca, se
ensinasse a elas para passar de ano.
Nós éramos muito pobres, mesmo com o salário minguado que minha mãe ganhava,
não dava nem para comprar roupas, usávamos umas roupas velhas, essas roupas já eram
doadas por alguns estudantes da Universidade Rural amigos de meu pai, as vestimentas
passavam anos e anos, papai era desempregado.
Nesse período entre 1996 e 1997, conheci dois grandes amigos, que foram meus
professores no Gilberto: Lívio Joaquim e Ísaias Mendonça. Eles me estimularam a fazer
provas no Colégio Agrícola de Vitória de Santo Antão, onde prestei os exames e passei.
Esta foi a primeira conquista da minha vida, meu pai era só alegria, mãe achou ruim tal
êxito, pois, ela queria que eu seguisse carreira em medicina, é que sempre tive um bom
rendimento escolar, era ótimo aluno, estudioso, atencioso, notas altas etc.
No dia da matrícula no colégio agrícola, fomos eu, minha mãe, meu pai e Livio, meu
ex-professor. No ato da matrícula, a secretária nos passou um boleto de pagamento de taxa
de manutenção no valor de cinqüenta reais e um carnê anual no valor de seiscentos reais
dividido em seis vezes. Vi logo a expressão de tristeza no semblante de minha mãe ao
pegar o boleto, ela com lágrimas nos olhos disse: “Deixe pra lá, ele ao menos é um
menino vitorioso, passar no exame de seleção sem experiência foi bom, mas... Deus é
grande.” Nunca esqueci essas palavras.
A alegria que eu sentia se transformou numa angústia enorme, naquele momento eu
nunca queria ter feito àquela prova. Lívio, ao ver o testemunho de minha mãe e as lágrimas
de meu pai, olhou para a secretária e falou para ela não parar a matrícula, saiu feito louco
para a cidade e retirou a quantia que deveria ser paga no ato da matrícula, daí me matriculei.
Os seiscentos reais restantes, minha família arranjava, meu pai fazia biscates, meus irmãos
vendiam picolés e frutas na Rural, minha irmã trabalhava de doméstica para uma médica
amiga de mãe, e eu estudava o dia todo na agrotécnica.
Viajava na segunda e voltava na sexta-feira à tarde. Tinha dias de domingo que
chegava já de noite para painho e pedia a passagem para viajar, ele saía, conseguia o
dinheiro emprestado e me dava. Nos outros dois anos, 1999 e 2000, meu pai conseguiu
uma bolsa na escola, fiquei isento da taxa de alimentação. Os médicos davam suspeita de
câncer no colo do útero em mamãe, a psicóloga da escola, professora Cantaluce, conseguiu
esta bolsa de estudo, então, terminei o curso técnico e me formei no final do ano 2000. Fiz
vestibular para pesca e não passei.
Em 2002, consegui ficar num cursinho pré-vestibular oferecido por um deputado.
Em maio deste mesmo ano, viajara para Itapiúna no Ceará, e lá fiquei até final de
julho estagiando como técnico agrícola de uma fazenda de piscicultura. No mês de
Universidade Federal Rural de Pernambuco
97
agosto voltei a Recife, paguei minha inscrição no vestibular com o dinheiro que
tinha recebido da fazenda.
Consegui outra bolsa de estudo num outro cursinho pré-vestibular intensivo e meu
pai arrumou um trabalho de auxiliar de serviços gerais na Universidade Rural. No fim do
ano, fiz a prova e passei para o curso de engenharia agrícola na UFRPE. Dessa vez eu
dormia e acordava, mas não acreditava que tinha conseguido passar no vestibular, isso
todo dia, durante toda a semana, eu morria em sonhos e planos para o resto da vida. Minha
família era uma alegria só, eu era motivo de orgulho para eles, para algumas pessoas da
comunidade e para meus amigos.
No ano de 2005, fui desligado da universidade, pois, tinha sido reprovado em física pela
quarta vez. Nesta época, caiu um dilúvio sobre minha cabeça. As pessoas me olhavam nas ruas
e achavam bom eu ter ficado fora da universidade, meu pai chorava o tempo todo; eu era o
orgulho dele. Eu era taxado por pessoas que eu tinha como ícone dentro da instituição.
Ouvia gracinhas do tipo: “Ta vendo, já viu pobre na universidade”, “mas rapaz, tome
vergonha na cara”, “outra chance desta você não terá nunca mais”; neste período, também
recebi apoio de muitos amigos. Dois professores da universidade, Prof. Gilberto Farias,
junto com o Prof. Paulo Donizetti, arranjaram-me um trabalho de ajudante de pedreiro na
reforma de um anfiteatro. Neste “trampo”, recebi muito estímulo de Senhor Correia, Baixa,
Tony, Maciel Véio e Severino Biu.
Essas pessoas me apoiaram em tudo, palavras morais, sempre faziam algo para mostrarme que a universidade era um grande avanço para minha carreira profissional, dentre outras
coisas boas. Considero estes homens, como grandes pessoas, verdadeiras pérolas de grande
valor, fizeram-me ressurgir das cinzas.
Resolvi então fazer novo vestibular, tentei isenção da taxa de inscrição, não foi possível,
e o dinheiro que ganhava era todo para cobrir às necessidades minha e de meus familiares.
No último dia destinado ao pagamento da taxa, Maciel “Veio” chamou-me num canto,
entregou-me um envelope. Quando abri o envelope, fiquei surpreso, nele continha a quantia
de cem reais em espécie. Olhei para ele e disse que não seria necessário, pois, já tinha
recebido o dinheiro da semana, ele voltou-se pra mim, e disse: - Guarde seu dinheirinho,
servirá para você fazer sua feira. Com ênfase, o agradeci. Ele voltou-se para mim, e falou: você me alegra passando no vestibular.
Foi um grande momento para mim. No fim do ano, prestei vestibular para agronomia,
e hoje em 2006, curso o segundo período e pretendo terminar e me especializar na área de
floricultura. Retomei a confiança e o orgulho de meus pais e meus irmãos, estou esperançoso
com meu futuro.
Hoje, estou no Programa Conexões de Saberes, recebo uma bolsa, e este incentivo me
faz continuar na universidade. Este projeto é inigualável, mostra que a universidade é acesso
de todos, sem distinção de raça, gênero ou posição social, é maravilhoso. Estou muito feliz no
Conexões de Saberes. Continuo lutando e agradecendo a Deus o apoio de todos que acreditam
na minha pessoa. A família, os amigos, os professores e minha linda esposa. Isto está me
fazendo continuar a caminhada para uma formação de qualidade, em busca de meu legado.
98
Caminhadas de universitários de origem popular
Caminhar
Queria poder lembrar-me
Só dos momentos felizes,
Mas gosto de lembrar os
Momentos ruins;
Ele ajuda-me a lutar.
Aprender com meus erros,
Correr atrás dos prejuízos,
Trabalhar para crescer,
É um prazer que traz felicidade.
Assim aprendo a viver,
Sem morrer como muitos,
Perdidos na carcaça da preguiça,
Invasora de suas imaginações,
Onde esbarram em seus medos,
Perecendo presos em seus destinos.
Agradeço a Deus por ser feliz,
Mesmo com minha face em lágrimas,
Ainda assim tento sorrir.
Ao menos sei que ela lava meu rosto,
E em minutos volto a encarar a luz
No sentido de minha caminhada.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Assim é a vida...
Felipe Gomes da Silva *
Não foi em um 5 de março qualquer; foi em 5 de março de 1984, em Pernambuco, plena
segunda-feira de Carnaval, que o mundo se preparou para me receber. Creio, porém, que eu
não estava preparado para receber o mundo. Talvez, naquela época, as coisas não fossem tão
ruins como agora, mas como tudo na vida pode mudar, a minha própria vida mudou.
Da estabilidade de que tanto gostava e que tanto me proporcionava, sinto falta dos
finais de semana no parque, nas feirinhas, e principalmente, da situação financeira regular.
Comecei a estudar em uma escola particular, em São Paulo. Adorava as lições e as
festinhas. Os professores eram ótimos e eu adorava quando eles pintavam uns quadrinhos
que deveriam ser entregues aos meus pais. Até chegar à alfabetização, nada mudou muito, a
não ser o fato de que foi nessa época que meus pais decidiram voltar para Pernambuco.
Ainda assim, não houve grandes mudanças: continuava a alfabetização em um colégio
particular em São Lourenço da Mata; o colégio, os professores, as festas, tudo muito parecido.
A diferença estava nos novos colegas, mas logo me adaptei.
O tempo foi passando e tudo continuava praticamente na mesma. Algo aconteceu,
porém, que mudou o rumo de minha vida. A minha avó ficou doente - câncer - e tudo ruiu:
aquela vida certinha, com encontros felizes nas festas e ao longo do ano, na casa de praia em
Ponta de Pedra, tudo isso não tinha mais graça.
Diante da gravidade da doença de minha avó, todos os esforços da família foram para
a sua recuperação. Aquela estabilidade financeira já não existia mais. Eu estava na 8ª série
quando meu pai e toda a família gastaram tudo o que tinham no tratamento da doença de
minha avó. Foi nessa época que ele me comunicou que eu deveria passar em uma escola
federal ou seguir para uma escola pública. Minha avó faleceu e tudo mudou.
Consegui passar no CODAI, da Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE
- foi, ao mesmo tempo, bom e ruim. Ruim, porque deixava todo o mundo que conhecia, o
Santa Sofia, colégio em que estudei da 5ª a 8ª série. Bom, porque o colégio não era o que
imaginava, as pessoas eram boas e eu estava gostando muito de lá. Foi quando alguma
coisa em minha vida se revelou diferente: eu ficava esperando para saber, sem certeza do
que aconteceria.
Com a morte de minha avó, nossa situação financeira mudou muito; foram feitas
muitas dívidas e isso nos obrigou a desfazermo-nos da casa de praia. Tudo concorria
para que eu e meus irmãos tivéssemos que deixar os colégios particulares e entrar em
escolas públicas.
Graduando em Engenharia Florestal.
100
Caminhadas de universitários de origem popular
Agora, começava a minha caminhada: quando eu realmente tive que suar para vencer.
Com todas as dificuldades que eu e minha família tivemos de enfrentar, fiquei meio sem
rumo. Tive que me esforçar mais nos estudos. Não era como nas escolas particulares, que os
professores ficavam em cima dos alunos. Tinha de correr atrás. As novidades, no entanto,
não eram todas boas: meu pai não conseguiu se recuperar do rombo financeiro. Tínhamos
um negócio - uma granja -, que ele acabou fechando. As coisas, então, começaram a piorar;
o que eu não achava que fosse possível acontecer: perdemos também a loja de bombons.
Estávamos totalmente quebrados.
Isso começou a interferir diretamente em meus estudos. O primeiro ano correu bem,
mas, apartir do segundo, as dificuldades foram muitas. Eu estava totalmente “enturmado”;
tinha feito tantos amigos, como nunca o fizera antes; era conhecido; fundei, com os colegas,
o primeiro Grêmio Estudantil do CODAI; estava me esforçando nos estudos; conseguia
boas notas, com muita luta... mas a falta de dinheiro tornou essa luta muito mais dura.
Em pleno meio dia, atravessava o viaduto, num “sol de rachar”, e guardava os poucos
recursos para lanchar, mas me sentia ainda aquele garoto de antes, de quando tudo era bom.
Ainda não entendia a nossa situação e reclamava com meus pais por não me darem dinheiro.
Cheguei ao terceiro ano, era o último. Já era época de pensar no vestibular, mas não
dei muita importância para isso. Fui levando a minha vida normalmente, como se ainda não
entendesse a minha condição. O ano passou e eu também. Meu pai fez um esforço tremendo
e pagou três meses de aulas preparatórias para o vestibular. Não dei muita importância e o
resultado foi “bomba” nas provas.
Mais um ano... teria de me reorganizar e tocar a vida em frente. Meus pais não me
cobraram muito, mas falaram que eu deveria me esforçar e aproveitar as oportunidades,
enquanto as tinha; diziam-me que, um dia, eu aprenderia a dar valor às conquistas,
principalmente quando eu pagasse por isso, santas palavras do sr. Caio.
Apesar de ter concluído o Ensino Médio, continuava estudando no CODAI. Fazia o
curso Técnico em Agropecuária - gostava muito dele - e no tempo vago entre o curso e os
estágios, estudava para o vestibular. Só que, ainda uma vez, sem dar muita importância a
ele. Tinha algumas incertezas dentro de mim: que curso fazer? Era isso que eu queria?
Estava me preparando? Havia muitas perguntas sem respostas. Estava muito empolgado
com o curso Técnico; pensava em me formar e trabalhar.
Em casa, começaram as perguntas: “você já sabe que curso tentará no vestibular?” E
agora? Começaram as pressões, mas infelizmente, fui levando, levando... agora sim, cobranças
e mais cobranças (e com toda razão): eu estava ficando mais velho, concluí o curso Técnico,
comecei a entender a minha vida (eu já sabia dela) e briguei com meu pai, quando ele me
dava mais uma lição de moral, dizendo que passaria no vestibular com minhas forças e
recursos.
Comecei a trabalhar em uma dessas lojas de fast food. Pagava-se pouco e trabalhavase muito, muito mesmo. Ouvi a célebre frase: “Agora você vai saber o valor das coisas!”
Acredito que, neste ano (2005), com o trabalho conciliado aos estudos, com o cansaço,
com a revolta de trabalhar tanto e ganhar tão pouco e com outras coisas mais, encontrei
forças sobre-humanas para seguir em frente, e mais forte do que nunca, passar por uma
prova que não era escrita, a mais difícil de todas as provas: meu pai adoecia. Meu pai,
aquele homem forte, alegre, cheio de vida, ficava sentado, com dores no estômago, na
poltrona da sala.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
101
O tempo passava, o fim do ano se aproximava, o vestibular também. Meu pai foi
operado... era o fim. Meu tio Paulo nos ajudou muito; ele próprio fez a cirurgia de meu pai
e descobriu que ele tinha câncer no estômago. Meu pai, aquele mesmo das brincadeiras e
das brigas, dos gritos e sorrisos muito fáceis de se ver; aquele que eu amava e sabia o quanto
amava, estava frágil, e cada vez mais fraco.
Chegou o dia: prova na Rural. Passei na primeira fase (não me lembro a nota). Era
bom, mas havia passado nos dois anos anteriores... era só a primeira fase! Podia ver nos
olhos de meu pai a satisfação por me ver realmente lutando; minha mãe, figura de importância
infinita em minha vida, ficou alegre; e outra pessoa que me ajudou e apoiou nessa fase de
minha vida foi Priscilla, minha namorada.
Continuei minha rotina: trabalhava, fazia o cursinho, voltava para casa e tudo
recomeçava. Meu pai piorava e eu ficava preocupado, muito preocupado. Chegou o dia da
segunda fase. Eu estava pronto; agora, tinha uma meta e a cumpriria. Era o sonho de meu
pai. A prova foi boa... era só esperar. Comecei a ficar impaciente, queria saber se tinha sido
aprovado no vestibular. Paralelo à minha ansiedade, crescia minha preocupação: meu pai
ficava pior. Não sabia o que fazer.
“Parabéns!”, todos diziam, havia passado no vestibular. Só queria chegar em casa,
abraçar minha mãe, beijar minha namorada, receber abraços de meus irmãos e dizer: “Pai,
consegui!”. E o fiz. Meu pai, no entanto, parecia não estar empolgado; a tristeza dele
parecia entrar em mim. Eu também não estava feliz. Trocaria minha vitória por um sorriso
dele, um amarelo mesmo, mas não ganhei. Meu pai era internado. Quanta dor... passava no
vestibular e estava perdendo uma das pessoas mais importantes para mim. Sentia-me triste,
queria chorar, mas não podia. Alguém tinha de ficar firme e elegi a mim mesmo para isso.
Em 2006, fui morar nas Graças com Silvana, uma amiga da família. Ela me ajudou
muito. Passei todo o primeiro período com ela. Meu pai piorava muito; até que me ligaram,
dizendo: “Felipe, vem pra cá, teu pai não vai agüentar mais”. Se houver dor maior do que
aquela, que eu nunca sinta. Fui ao hospital. Larguei a apresentação de um seminário e fui
ficar com ele. Passamos as últimas horas de sua vida juntos, de mãos dadas, enquanto
conversávamos sobre a vida, a Universidade, sobre tudo... foi quando a morte o levou.
Passei para o segundo período, mas não havia graça nem sentido. Eu amava meu pai
(amo-o ainda), assim como amo toda minha família. Por eles, devo levantar e lutar. Assim é
a vida: uma luta constante, com perdas e conquistas.
102
Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Fernando Bruno Vieira da Silva*
Chamo-me Fernando Bruno Vieira da Silva. Nasci no dia 27 de novembro de 1986,
num belo verão, em Maceió, capital alagoana. Sou filho de José Severino da Silva, um pai
que nunca conheci, não por força do destino, mas sim, por desprezo, pois ele abandonou
minha mãe e eu, quando ainda era pequenino.
Minha mãe chama-se Jaquilene Vieira da Silva, empregada doméstica. Logo quando
nasci fui abandonado também por minha mãe, traumatizada com o ato do meu pai. Diante
disso, minha avó materna, Benedita Vieira da Silva (aposentada, uma grande mulher,
destemida em vencer na vida), e meu avô materno, José Ramos Marques (mecânico,
trabalhador e um grande batalhador na vida), decidiram me criar. Minha avó tinha se casado
pela segunda vez. Mãe de oito filhos, logo cedo ficou viúva, quando seu primeiro esposo
faleceu, pai biológico da minha mãe. Quando com eles fui morar, todos os seus filhos já
tinham saído de casa, então com isso acabei sendo o primeiro filho do segundo casamento
de minha avó. Minha mãe teve ainda mais dois filhos (um casal) e como eu, passaram
também a ser criados pelos meus avós.
Em 1991, quando tinha cinco anos, entrei numa escolinha particular, para fazer Jardim
II; era uma escola bem humilde, chamada Circo Peráltas, no bairro da Pitanguinha, na
cidade de Maceió.
Era difícil a vida financeira lá em casa, principalmente quando meu avô estava
desempregado, mas isso nunca foi motivo para atrapalhar os meus estudos, pois eles
sempre deram prioridade a nossa educação. Lembro que, na minha primeira escola, cursei
a alfabetização, pois nos mudamos para uma usina chamada Cucaú, na cidade de Rio
Formoso, Pernambuco. Isto ocorreu em 1993. Lá, ingressei numa escola pública e fiquei
até a 3ª série e em 1995, tivemos que nos mudar de novo, agora para Caruaru. Comecei a
estudar no colégio estadual Dom Vital, onde só fiz a 4ª série, pois o colégio era muito
violento; nele, muitas vezes, fui roubado. Saindo do Dom Vital, fui para o colégio
municipal Álvaro Lins, ainda em Caruaru, e de lá tenho, até hoje, boas lembranças. Estudei
nesta escola da 5ª à 8ª série. Tive que sair de lá, porque outra vez precisamos nos mudar.
O próximo destino foi uma cidade litorânea de Alagoas, chamada Barra de São Miguel.
Ela é uma bela cidade coberta por perfeitos recursos naturais. Foi nesta cidade onde meus
avós decidiram ser comerciantes.
Comecei a trabalhar e estudar à noite, era muito cansativo para mim, e por causa
deste cansaço, acabei cedendo a tentação de parar os estudos. Minha avó ficou bastante
Graduando em Agronomia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
103
preocupada e logo me forçou a ir a escola à noite; neste tempo, estudei numa escola
municipal da cidade; era horrível, pois só havia pessoas mais velhas do que eu.
Consegui suportar esta fadiga durante três meses. Logo depois, acabei parando de vez.
Continuei o resto do ano de 2000 só trabalhando de manhã até a noite no estabelecimento
comercial dos meus avós.
Este mesmo ano foi marcado por uma grande tristeza em casa: nossos recursos financeiros
ficaram escassos. Por causa disso, acabei ficando longe dos meus irmãos: minha irmã foi
morar com uma tia minha, em Caruaru, e meu irmão mais novo foi embora para Roraima,
morar com minha mãe, pois ela já tinha se casado de novo.
Eu continuei morando com meus avós, mas era triste toda vez que chegava em casa e
sentia falta deles. Tive, no entanto, que aceitar a perda. No outro ano, em 2001, meu avô
colocou uma pessoa para nos ajudar, daí voltei a estudar, agora no colégio municipal Floreano
Peixoto, em Maceió. Lá, estudei até o segundo do ensino médio. Neste mesmo ano fiz
dezessete anos. Tinha chegado a hora de me virar na vida. Foi aí que saí de casa para
conquistar o meu futuro. Aquele dia foi o segundo mais triste da minha vida. Chorei muito,
pois sabia que iria sentir muita saudades daqueles que não eram meus pais biológicos,
porém cuidaram de mim e me amaram como se fossem. O meu próximo destino foi Araçoiaba,
uma pequena cidade da região metropolitana de Pernambuco.
Meu ano de chegada nesta cidade foi 2005. Fui morar com meus tios, juntamente com
meus três primos filhos deles. Logo comecei a trabalhar com o meu tio nos finais de semana,
no seu estabelecimento comercial, e durante a semana estudava no colégio Maria Gayão
Pessoa Guerra. Esta é uma escola estadual que se localiza no centro da cidade; nela estudava
no período da tarde e durante o resto do dia, estudava para concursos públicos que surgiam.
Meus estudos foram intensos neste período, pois grande era a minha vontade de me
estabelecer na vida, porém, de todos os concursos que fiz tive a infelicidade de não ser
aprovado em nenhum.
Chegando o final do ano de 2005, e como eu estava cursando o terceiro ano do ensino
médio na escola estadual, resolvi me inscrever para o vestibular no curso de agronomia. De
início era como se fosse uma idéia sem sentido, pois antes nunca tinha me interessado em
fazer um curso de nível superior.
Contudo a vontade veio e com muita força, me esforcei um pouco mais nos estudos
e no dia 27 de novembro de 2005, na data do meu aniversário, iniciei a primeira fase
do vestibular.
Quando saiu o resultado da primeira fase do vestibular e fiquei sabendo que tinha sido
aprovado, a minha vontade cresceu de forma extraordinária em relação a ser um universitário.
Comecei então a estudar mais e a me preparar para a segunda fase. Confesso que, pra mim,
a segunda fase foi mais tensa que a anterior, mas fiz e fiquei na espera do resultado.
Depois de vários dias, e isso já em janeiro de 2006, saiu o tão esperado resultado pra
mim, lembro que neste dia me reuní com colegas que também tinham prestado vestibular
comigo e que também estavam na mesma situação que eu - todos ansiosos pelo resultado.
Então, fomos a uma loja na cidade em que havia internet e começamos a verificar o
resultado de cada um. Era um grupo de quase oito pessoas, e entre elas, fiquei por último,
para obter o resultado. A cada resultado negativo que saía era uma expressão de choro na
face daquele que o recebia.
104
Caminhadas de universitários de origem popular
Quando chegou a minha vez (nenhuma das pessoas antes de mim tinha sido aprovada),
pra minha surpresa, eu tinha sido aprovado em engenharia agronômica na Universidade
Federal Rural de Pernambuco. Aquela noite compensou todos os dias tristes da minha
vida. Só queria saber de rir e dizer a toda população daquela cidade que eu tinha sido
aprovado no vestibular.
Daquele dia em diante, senti algo mudar dentro de mim, ou seja, senti-me capaz de
conquistar tudo o que quero - tão-somente com a confiança em mim mesmo.
Hoje na universidade, indo para o terceiro período do curso, me vejo já como um
grande vitorioso por conseguir vencer muitas batalhas dentro e fora da academia. Diante de
tantos obstáculos, alcancei vitória, e até o fim serei vitorioso.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
105
Memorial
Fernando Tiago N. Medeiros*
Nunca gostei muito da escola, atrasei minha entrada no maternal por chorar muito,
talvez saudades de minha mãe. Aprendi a ler cedo e tive várias oportunidades de adiantar
meus estudos, mas minha mãe não permitiu, pois estava numa idade aceitável dentro dos
padrões, se não reprovasse nenhum ano, acabaria o ensino médio com 18 anos.
Minha formação primária aconteceu sem maiores problemas pois estudei em uma
escola particular até a 2ª série do ensino fundamental, por motivos financeiros, passei a
estudar em escola pública municipal e minha antiga escola deu para dar conta sem maiores
problemas até a 5ª série.
Nunca fui mal aluno, apesar de não gostar muito de estudar, mas a partir da 5ª série as
coisas mudaram. Ingressei na escola estadual Barão do Rio Branco, que mais tarde mudou
de nome para Ariano Suassuna.
A 5ª série foi muito problemática para mim. Talvez não tenha me adaptado a tantos
professores, mas naquele ano minha principal dificuldade foi matemática. Matéria na qual
fui para recuperação final. Graças a Deus passei, por ironia, o destino apronta em minha
educação de base, por ter me dado mal logo em matemática.
As coisas saíram bem na 6ª e 7ª série, pois passei por média sem dificuldades. Talvez
agora sim eu tenha me adaptado a esse modelo de escola. Um fato importante que acontecia
até então sem eu perceber, era que eu chegara na 8ª série com o mesmos colegas da 5ª e
alguns ainda da 3ª série, que tiveram papel fundamental no incentivo de meus estudos.
Tive dificuldades ao chegar na 8ª série, não sei ao certo o que aconteceu. Talvez,
tenha mudado minha atenção para diversões paralelas, meu interesse de fato tinha mudado,
e como resultado fui para final novamente em matemática, passei nas últimas.
Ao entrar no ensino médio, tive uma imediata preocupação com meu futuro
profissional. Não iria entrar numa universidade pois minha família não tinha condições de
pagar. Uma universidade pública seria inviável, visto que nenhum de meus amigos e familiares
tiveram acesso até então.
Nesse período, comecei a mexer com computadores desde o básico até manutenção,
ao ganhar meu primeiro computador aprendi ainda mais coisa na área.
Meu foco mudou, agora, queria saber de garantir meu futuro profissional na área de
computação. Mesmo assim, não me dei mal no colégio. Este ano, ao final do 2º ano, já tinha
uma visão melhor do que eu queria fazer, um curso superior em computação. Pois no ano
Graduando em Matemática.
106
Caminhadas de universitários de origem popular
anterior o irmão de um de meus colegas foi o primeiro no colégio a conseguir uma vaga numa
universidade pública, logo após sair da escola. Ele cursa licenciatura em física na UFRPE.
Nesse período, conheci meu pai que até então não tinha participado de minha criação,
ele me incentivou junto com minha mãe. Apesar de tudo eu continuava desacreditado, pois
até alguns familiares colocavam barreiras. Fiz minha inscrição em 2 pré-vestibulares o Préacadêmico e o Portal na própria Universidade Federal. Para mim, fazer parte de um prévestibular dentro da UFPE já era um sonho distante. No dia de fazer a prova do Portal não
lembrei, só no outro dia fui me dar conta que perdi a prova. Bem, acho que foi reflexo de
minha baixa estima quanto à aprovação. Mesmo assim, com incentivo de meus amigos fiz
a outra prova no qual estava inscrito. E, por sorte, acabei passando. Bem, para escolha de
meu curso no vestibular, foi até importante eu faltar a primeira prova, pois o pré-vestibular
que eu tinha passado era de incentivo a licenciatura e a docência.
Durante o curso, minha perspectiva mudou. Talvez eu tivesse me dado bem com a
computação, mas o curso me envolveu com a matemática. No meio da greve dos colégios
estaduais, fizemos grupos de estudos onde cada um de nós “ensinava” uma matéria e eu
fiquei com a matemática, me identifiquei com o ofício.
Tínhamos uma competitividade muito grande, o que foi muito bom, pois nenhum de
nós queria ficar para trás. Conquistamos muitas coisas juntos para o colégio, aumentando,
assim, nossa estima. Neste ano, fui o 13º colocado na etapa de Pernambuco da Olimpíada de
Matemática. O colégio teve o primeiro lugar do Estado. Também, fiz o Rumo à Universidade,
que ajudou ainda mais a aumentar minha confiança e fazer uma ótima prova de vestibular.
Hoje curso 2° período de Licenciatura em Matemática e tenho uma visão mais aberta
quanto à meu futuro pessoal e profissional. Pois dou aula em cursos pré-vestibular
comunitários e fico muito feliz em saber que estou ajudando pessoas com o mesmo sonho
que eu. Além disso, tenho pessoas maravilhosas ao meu lado que tanto me incentivaram a
chegar aqui como me orientam a chegar mais longe.
Talvez, ate eu possa seguir para um mestrado em Biometria e ser professor de nível
superior, pois apesar de ser um sonho distante, hoje, sei que é possível. Na verdade, até
passar pelo Conexões de Saberes não tinha uma perspectiva de prosseguir na área de
educação, apenas pensava em matemática pura, hoje, me questiono se não seria bom seguir
nesse ramo da educação. E ser professor de nível superior.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
107
O caminho se faz caminhando
Francisco Ernandes Braga de Souza*
A proposta do Memorial é uma idéia muito interessante: faz-nos rever nossa história e
perceber toda a trajetória realizada até o presente. Confesso que essa proposta deixou-me
inquieto. Relatar um pouco de minha história, ainda que suscintamente, tem me causado
emoções. Estou convencido de que contar um pouco dessa história me fará bem, e ao mesmo
tempo, permitirá que rememore tantas coisas que aconteceram - os muitos passos significativos
que foram por mim dados.
Nasci aos quatorze dias do mês de outubro, no sertão do Ceará, no Município de
Acopiara. Filho de pais agricultores e com uma irmã que se chama Elizângela.
O contato com os estudos deu-se muito cedo. Tivemos aulas particulares com uma
prima lá em nossa casa. Quando chegamos à idade ideal, fomos matriculados na escola
municipal da comunidade. Não senti dificuldades; logo aprendi a ler e a escrever, sendo
designado a escrever as cartas para nossa família em São Paulo. Lembro de que gostava de
estudar e nunca fui “obrigado” a fazer as atividades propostas pela professora.
Minha mãe sempre nos ajudava nas tarefas que deveriam ser feitas em casa. Ela nos
ajudou até quando foi possível, pois só estudou até a 3ª série do Fundamental. Meu pai é
analfabeto e sempre foi muito compreensivo com o meu desejo de estudar. Nunca mediram
esforços, sempre nos incentivando.
Recordo muito bem que, às vezes, ele lamentava, porque trabalhava sozinho. Sempre
falava que, se a minha escolha era estudar, que estudasse! Proporcionou-me a oportunidade que
ele mesmo não pôde experimentar. Disso, jamais me esquecerei. Foi o melhor presente recebido
de meus pais, já que, economicamente, eles não tinham condições de nos oferecer outros.
Estudei na escola da comunidade até a 2ª série. Hoje, essa escola, que se chamava
Pedro Alves Feitosa, se encontra fechada, pois na comunidade não há número suficiente de
crianças para o seu funcionamento.
A minha primeira professora do ensino regular foi Raimunda, conhecida por Mundica.
Quando vou de férias à casa de meus pais, não a deixo de visitar. Tenho grande admiração
por ela. Como dizem: das primeiras experiências a gente nunca esquece.
A escola oferecia até a 2ª série. A partir daí, tínhamos que estudar na escola da vila,
chamada Isidoro, que ficava razoavelmente distante. O percurso diário era feito a pé. Éramos
uma turma numerosa. Fazíamos muitas brincadeiras pelo caminho. Muitas vezes era
divertido. Outras tantas vezes, “castigante”... pelo sol do meio-dia e o cansaço da ida e da
volta. Mas o prazer de estudar nunca faltou.
Graduando em Normal Superior.
108
Caminhadas de universitários de origem popular
Foram quatro anos de caminhada da minha casa, no sítio Riacho do Meio, à Vila
Isidoro, onde cursei da 3ª a 6ª série. A opinião que tinha sobre o lugar onde morava não era
legal. Sempre reclamava, pois achava isolada, sem estrada e transporte e não tinha energia
elétrica. Quando precisava estudar à noite, tinha que usar a lamparina.
Há quase cinco anos, a comunidade foi beneficiada com a tão sonhada energia elétrica.
Outra questão muito polêmica é a seca. Faltava água e muita gente também não tinha
comida. Lá em casa, passamos por muitas dificuldades, mas nunca ficamos sem comer.
Graças a Deus e ao esforço de meus pais.
E a vida de estudante continuava... a partir da 7ª série, tínhamos que estudar na cidade.
O caminho ficava mais comprido. O percurso de minha casa até a estrada onde o transporte
“pau-de-arara” nos apanhava era muito distante. Muitos de meus amigos desistiram, outros
foram embora. Concluí a 8ª série sozinho, pelo mesmo caminho, pois os poucos persistentes
mudaram de rota.
Esse caminho que fazia todos os dias era cheio de ladeiras, altos e baixos, buracos e
pedras. Sem falar do sol quente do sertão e da fome. Chorei tantas vezes porque não tinha
dinheiro para fazer um lanche. Apesar de tudo isso, jamais pensei em desistir, mas muitas vezes
senti-me desanimado e irritado. Reclamava muito da Prefeitura, pela falta de assistência mais
digna aos estudantes. Reclamava também do lugar onde morava, pois achava que, morando
lá, as dificuldades eram maiores. Estudar era como se fosse um refúgio e a oportunidade de
estudar seria a garantia de conquistar algo melhor na vida: superação daquela realidade.
Alguns anos se passaram. Estava no Ensino Médio, próximo de concluir os estudos. O
dilema aumentou de proporção, tinha que estudar à noite. Todos os meus amigos, agora
sim, já não estavam mais comigo. Restávamos apenas eu e minha vontade. Nunca planejei
desistir. Mas estava vendo uma alternativa. Ao mesmo tempo, surgiram as dúvidas se iria me
matricular no Científico ou em Contabilidade. Por várias razões, fiz o Técnico em
Contabilidade; até hoje lamento a escolha mal-feita (sem comentar tanto a péssima qualidade
do curso e as sucessivas greves ocorridas).
Passei alguns anos após concluir o segundo grau, sem saber o que fazer de prático. Fui
funcionário público por dois anos, com aquele tipo de contrato conquistado por meio de
apadrinhamento político. Neste período, comecei a fazer parte de grupos ligados a Igreja
Católica. Militávamos apoiados à ideologia dos movimentos sociais. Foi uma fase muito
interessante em minha vida.
Decidi, depois, fazer uma experiência missionária na Congregação Redentorista. Nunca
acreditei que seria padre. De fato, esse não foi o meu objetivo. Queria ser missionário
consagrado. Essa história durou cinco anos. Durante este período, cursei o Bacharelado em
Teologia, na Universidade Católica de Pernambuco. Há um ano, desisti dessa idéia. Resolvi
permanecer aqui em Recife. Não gostei do curso. Não foi tempo perdido, porém, não me
vejo atuando como profissional dessa área.
Tracei alguns objetivos, entre eles, fazer uma outra graduação: uma licenciatura. Sempre
quis ser professor e quero ser professor. Fiz vestibular para Licenciatura em Normal Superior
na Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE. Não acreditava que passaria, em
função das dificuldades com as disciplinas de Exatas. Mas foi possível! Estou numa
universidade federal e pública, fazendo um curso do qual estou gostando. Tem sido difícil
conciliar tudo - os estudos e a luta pela sobrevivência -, mas estou convencido de que só se
faz um caminho caminhando!
Universidade Federal Rural de Pernambuco
109
Como bom brasileiro, não desisto nunca
Gabriel Soares Santos*
Caro leitor, quero iniciar este relato, informando-lhe que não desejo apenas falar do
quão difícil foi chegar até a universidade pública e como é complicado garantir minha
permanência na mesma. Meu objetivo é que ao ler esse breve relato sobre minha vida, você
que não é oriundo de comunidades populares possa ser sensibilizado. Mas não apenas isso.
Que a partir desta leitura, você venha a ser estimulado a dar sua contribuição para construção
de uma sociedade mais justa. E você que vem de comunidades populares e viveu ou vive
dificuldades comuns ou até piores que as minhas, sinta-se ainda mais forte para enfrentá-las.
Chamo-me Gabriel Soares Santos, nasci no dia 12 de outubro de 1981 na cidade do
Recife. Não me lembro, mas minha mãe falou-me que nasci prematuro e fiquei por um
tempo na incubadora do hospital. Tive pneumonia, quase morri, todavia, creio que aprendi
a vencer desafios a partir do meu complicado nascimento, pois, consegui ser mais forte que
a morte e lutei pela vida.
Mas grandes dificuldades ainda estariam por vir. Fui o segundo de uma família de
quatro filhos. Como toda família de origem popular, passamos por grandes dificuldades
financeiras, e por muitas vezes, faltou o leite para aquelas quatro crianças, e minha mãe
ficava desesperada. Aos oito anos de idade, iniciei a 1ª série em uma escola pública de
ensino fundamental-1, Escola Municipal do Jordão. Lembro-me que tive uma grande
admiração pela minha professora da 1ª série, acho que foi uma daquelas paixões que algumas
crianças têm pelos seus professores por estarem muito próximos a eles.
Durante minha infância, não saía muito de casa, brincava muito com meus irmãos, na
escola era uma criança fechada no meu mundo particular. Em 1993, aos doze anos de idade,
estava na 5ª série do ensino fundamental-2, na Escola Professor Fernando Mota, onde
terminaria o ensino médio em 2001. Ainda em 1993, vivíamos um grande drama familiar,
pois meu pai estava no ápice do alcoolismo e quase todos os dias chegava bêbado em casa,
e muitas vezes, chegou a bater na minha mãe. Tudo isso me machucava muito por dentro e
eu ficava pelo colégio para não chegar em casa e ter que vivenciar tudo aquilo outra vez.
Em 1999, aos dezessete anos de idade, cheguei ao primeiro ano do ensino médio. Neste
período, meu pai estava desempregado e minha mãe teve que trabalhar. Neste ano, passei a
preocupar-me mais com o meu futuro e comecei a estudar mais.
Em 2000, aos dezoito anos de idade, era ano de alistamento militar, mas decidi que
não queria passar um ano sendo humilhado e depois sair de um quartel com uma mão na
frente e outra atrás. Por isso, fui alistar-me depois dos dezoito anos na esperança de não ficar,
Graduando em Física.
110
Caminhadas de universitários de origem popular
e como esperado, não fiquei. Em 2001, estava no terceiro ano do ensino médio e decidi
fazer vestibular para Física. Nesse mesmo ano o Governo de Pernambuco lançou um projeto
o “Rumo à Universidade” . Era um curso pré-vestibular nos finais de semana. Escrevi-me
para a seleção, fiz a prova e passei. Nesse projeto, recebia uma bolsa de cinqüenta reais para
estudar nos finais de semana. Após um ano de muitos estudos, chegou o dia do vestibular.
Não fiz uma boa prova na primeira etapa, mesmo assim consegui passar à segunda fase,
porém, devido à nota muito baixa da etapa anterior não consegui passar, chorei muito, mas
disse a mim mesmo: “não vou desistir”.
Em 2002, já com o ensino médio concluído, não queria ficar em casa sem estudar. Fiquei
sabendo de uma seleção que iria ter para o curso de Técnico em Contabilidade. Fiz a prova e
passei. Comecei a estudar Contabilidade, entretanto, não esqueci que meu sonho era estudar
Física. Sendo assim, mais uma vez, fiz a prova de seleção para o “Rumo à Universidade” e
mais uma vez passei. Então, além de estudar Contabilidade, estava estudando para o vestibular.
Estudei por cima das dificuldades que tive no primeiro vestibular.
No meio do ano, consegui um estágio numa prestadora de serviços do Banco do
Brasil. Foi meu primeiro “emprego”, fiquei feliz na hora, mas depois vi que não iria fazer
nada na área de Contabilidade e para o meu curso não era interessante. Apesar disso, gostava
muito do meu chefe e ele me incentivava a nunca desistir.
No final de 2002, fui fazer a prova de vestibular com mais confiança. Quando saiu o
resultado, eram 40 vagas para o curso de Física, e eu fiquei entre os cinqüenta melhores.
Não consegui a vaga, mas não desanimei, pois tinha melhorado consideravelmente em
relação ao vestibular anterior. Em 2003, estava no último ano do curso de Técnico em
Contabilidade, não podia mais fazer “Rumo à Universidade”. Escrevi-me então em outro
projeto do Governo de Pernambuco o “PREVUPE” - pré-vestibular da UPE. Passei na seleção
e comecei a estudar para o meu terceiro vestibular. Nesse período, ainda estava no estágio e
ia para o “PREVUPE” pela manhã e quando largava, ia correndo para o estágio, saindo de
lá para o Liceu de Artes e Ofícios onde cursava Contabilidade. Quando tinha dinheiro,
comprava “biscoito Treloso” para almoçar, quando não, esperava o lanche do estágio que
era um pão com margarina e café. Esse lanche era o que ia segurar meu estômago até as onze
da noite quando chegava em casa.
No final de 2003, quando estava próximo da data do vestibular, passei a ter crises de
choro constantes, pois, o medo do fracasso começou a tomar conta de mim. Porém, o incentivo
de professores e amigos ajudou-me a superar meus medos. Enfim, chegou o dia do vestibular,
fiz a prova da primeira etapa e passei à segunda etapa, fiz o exame intelectual e fiquei
esperando a lista dos aprovados. Quando saiu a lista, não acreditei, havia passado, consegui
enfim ingressar no ensino público superior. No final de 2003, além de ter passado no
vestibular, concluí também o curso de Técnico em Contabilidade. Porém, apesar do diploma
da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), estava desempregado, pois, havia
acabado o meu contrato no estágio. Em 2004, entrei na UFRPE cheio de expectativas e
vontade de crescer. Quando comecei o curso, percebi que assim como foi difícil entrar na
universidade, mais complicado ainda seria permanecer e concluir o curso de Física. Senti
os reflexos da má qualidade do ensino que havia recebido na escola pública.
No primeiro período, tive dificuldades em quase todas as disciplinas. Na primeira
verificação de aprendizagem, 1ª VA, entrei em desespero, tirei 1,5 na prova de Calculo
Diferencial Integral. Conheci as madrugadas, perdi e ainda perco parte do meu sono estudando
Universidade Federal Rural de Pernambuco
111
para as provas da universidade. Na segunda verificação de aprendizagem, 2ª VA, tirei 9,5 na
disciplina que havia tirado 1,5. Quando terminou o período, fiquei com uma reprovação no
histórico escolar, reprovei a cadeira de química geral. No primeiro semestre de 2005, estava
no segundo período do curso e o nível de dificuldades foi aumentando a cada período que
passava, mas apesar de toda dificuldade, consegui terminar o período sem reprovações. No
segundo semestre de 2005, estava no terceiro período do curso, e para tentar melhorar o meu
rendimento, saía de casa pela manhã e ficava na sala de estudos da biblioteca até o horário
das aulas, porém, tinha muitas dificuldades, porque não tinha dinheiro para comprar almoço
e passava o dia a base de biscoito.
Em 2006, estava no quarto período, e nesse período, consegui um estágio para dar
aulas numa escola estadual. Esse estágio ajudou-me muito financeiramente, pois, às vezes
faltava aulas por falta de passagem. Passei seis meses lecionando na Escola Brigadeiro
Eduardo Gomes, mas queria fazer algo dentro da universidade por achar que seria melhor
para o meu currículo, todavia, nunca tinha tido tal oportunidade.
Fiquei sabendo do “Projeto Conexões de Saberes”, realizado pela universidade em
parceria com o programa Escola Aberta. Resolvi escrever-me e fui selecionado para participar
do projeto. Saí do estágio e hoje estou realizando atividades dentro da universidade e
também ajudando pessoas em comunidades populares, que, como eu, também têm
dificuldades para chegar à universidade.
Aqui, termino este breve relato. Sei que ainda vou encontrar muitas dificuldades,
porém, tenho certeza que as adversidades que estão por vir não me farão desistir dos
meus sonhos. Hoje, estou no sexto período do curso de Física, faço parte do Programa
Conexões de Saberes e não vou desistir, pois, como bom brasileiro não desisto nunca.
Nunca desista dos seus sonhos.
112
Caminhadas de universitários de origem popular
Sonhos: utopias possíveis
Gutembergue Francisco da Silva*
Um de Outubro de mil novecentos e oitenta e oito. Ano da promulgação da Constituição
Federal e de tantos outros acontecimentos importantes.
Num distante município do interior de Pernambuco, chamado Barra de Guabiraba,
às duas horas da manhã, ouve-se um choro. Acaba de nascer Gutembergue Francisco da
Silva. Filho de Maria Luciene da Conceição e Cloves Francisco da Silva, de quem
herdou o sobrenome.
Maria, dona de casa e cheia de zelo, trata de mostrar ao marido, um jovem pedreiro,
seu novo filho, o segundo do casal.
Assim, começa minha vida. Em meio àqueles fatos historicamente importantes, eu
nasci. Quis meu pai que me chamasse Gutembergue, mas não o grande inventor alemão cuja
invenção revolucionou a história. Não sou tão ilustre, embora inventivo.
Meu pai, junto com minha mãe, foi em busca de melhores condições de vida para a
família humilde, e mudamo-nos (eu, meu pai, minha mãe e minha irmã, um pouco mais
velha que eu) para a capital do estado. Chegando ao Recife, meu pai tratou de achar um
local, e depois disso, procedeu à construção de uma casa muito simples, mas que era
meu novo lar.
Depois de estabelecido, fui a dor de cabeça e ao mesmo tempo a alegria de Dona Maria
Luciene, minha mãe. Sempre curioso, estava eu mexendo em algo, pulando e brincando.
Como era muito traquina, como qualquer criança, fui algo assaz cansativo conter-me, visto
que não parava quieto. Tanto que, mais ou menos aos quatro anos de idade, com a
incumbência de proteger a casa do senhor Antônio nosso vizinho, assassinei à pauladas é isto mesmo leitor - um pequeno felino negro, julgando que fosse um monstro que oferecia
grande perigo, não só àquela casa, mas a toda vizinhança.
Mas sem mais delongas acerca das travessuras que cometi, avancemos um pouco mais
no tempo. Aos cinco anos, fui conduzido por minha mãe à escola Cecília Brandão, contudo,
as brincadeiras eram mais interessantes que as aulas. Isto até chegar à alfabetização. Daí em
diante, dividia o tempo, entre brincadeiras e lições escolares, encarava com um pouco mais
de seriedade os estudos.
Futebol, bolinhas-de-gude, pipa, esconde-esconde, eram algumas das diversões
que me deleitavam. Não esquecendo que era o terror das lagartixas - estas sim, não
simpatizavam comigo, nem eu com elas. Ressalto que não era tão sádico quanto pensam,
mas isso não convém explicar.
Graduando em Biologia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
113
Quando freqüentava o ginásio, passei e ler mais e planejar um futuro para os estudos.
Foi quando saí da escola Simon Bolívar, onde cursava, e fui para uma outra escola chamada
Escola Professor Moacyr de Albuquerque. Lá, busquei uma maior qualidade de ensino, fiz
amigos e comecei a jornada rumo ao vestibular. Defini-me entre tantos outros cursos. Já na
escola tinha uma “inclinação” por Biologia, pronta e paulatinamente cativada por amigos
que também se preparavam para o vestibular como eu.
No terceiro ano do ensino médio, eu fiz uma prova de seleção e fui aprovado num prévestibular público que oferecia aulas nos finais de semana e uma bolsa em dinheiro para
despesas com alimentação e transporte. Isso foi possível graças à iniciativa do governo
estadual em reparar um mal que atinge um sem número de estudantes de origem popular,
não só em Pernambuco, mas também no Brasil.
Não me abati pelas dificuldades, empenho e superação foram o lema até os últimos
minutos antes do vestibular. Fiz os exames. Infelizmente não fui aprovado numa das
universidades, mas esperei o resultado da Universidade Federal Rural de Pernambuco
e passei.
Concretizei um sonho, meu e de minha família, que me apoiou tanto, até o dia do listão.
E o melhor: estava no curso que eu planejava. Na família, foi uma alegria só, todos me
parabenizavam embora não estivesse eufórico, estava feliz. Aceitei com naturalidade o resultado
e fiz o que muitos que vieram de família humilde não tiveram chance de fazer , só de sonhar.
Este pensamento, me vinha à mente com freqüência, depois que comecei a estudar na UFRPE.
E foi lá que conheci o programa Conexões de Saberes, uma iniciativa interessante que quer
trazer o estudante de origem popular para a universidade e mostrar que, assim como eu, é
possível que muitos outros consigam ingressar no ensino superior e provar que eles são
capazes de ingressar e permanecer numa instituição de ensino superior público e de qualidade.
Nesse projeto, fiz amigos e tive a oportunidade de trabalhar junto com pessoas que
pensam do mesmo modo e ajudam a construir um novo cenário na educação nacional.
Agora, penso em vôos mais altos e preparo-me para terminar o curso pensando já na
Pós-graduação. Isto é outro sonho, mas creio que as limitações são criadas por nossa mente.
114
Caminhadas de universitários de origem popular
Caminho sem fim
Isabelle Susan de Andrade Pereira*
Nasci em oito de novembro de 1982, chamo-me Isabelle Susan de Andrade Pereira.
Dois anos depois, nasceu meu irmão. Nós dois começamos a estudar em uma escola particular
de bairro, chamada Nossa Senhora da Conceição. Quando cheguei a 3ª série, tive que
encerrar meus estudos em colégio privado, e fui, junto com ele para uma escola de rede
pública, Argentina Castelo Branco, pois minha mãe tinha de fazer 3º grau e não tinha
condições de se preparar para o vestibular das Federais, então, deu entrada em uma Faculdade
privada. Algo muito importante acontecia: a separação dos meus pais.
Lembro-me que os primeiros dias na escola do Estado foram horríveis, mas acabei por
me adaptar; ao sair de lá, cinco anos depois, senti muitas saudades.
Acabando a 8ª série do Ensino Fundamental II, eu e meu irmão fomos para o Ginásio
Pernambucano, uma escola pública que, naquela época, se encontrava na rua do Hospício
por motivos de reforma do prédio original, na rua da Aurora.
Logo no primeiro ano do Ensino Médio, ganhei de presente de uma tia da minha mãe
uma viagem a Roma para ficar hospedada na casa de minha tia, irmã de meu pai. Foi maravilhoso,
meu melhor presente de quinze anos, mas mal sabia eu que estava por vir outro presente,
muito importante, que mudaria minha vida, virando-a do avesso. Estava grávida!!!
Em 28 de maio de 1999, nascia Lara. Morei dois anos com o pai dela e nos separamos.
Meu Ensino Médio não foi interrompido, me formei e prestei meu vestibular para Letras na
Federal. Não passei nem na primeira fase.
Conheci o Pré-acadêmico e freqüentei-o por um ano. Prestei vestibular para Licenciatura
Plena em Ciências Biológicas e passei. Foi muita felicidade!
No primeiro período de Biologia, comecei o curso de recepcionista no SENAC, que
viabilizou meu primeiro emprego em uma clínica, onde eu ganhava por dia de trabalho. Lá,
ia uma ou duas vezes por semana. Meu segundo emprego, foi em uma escola particular de
bairro; a experiência foi inesquecível, mas infelizmente, o salário atrasava e tive que sair.
Passei quase um ano à procura de um emprego e esta fase de minha vida possibilitoume dar mais atenção à minha filha e à minha avó, que precisa de ajuda para se locomover.
Continuo estudando. Estou no nono período e pretendo ingressar no Mestrado em
Entomologia Agrícola. Agradeço a Deus por todas as experiências vividas e por toda força que Ele
me tem dado. Agradeço muito ao meu noivo, por ele existir e estar do meu lado. Agradeço à minha
filha, por toda a compreensão diante de minhas ausências. Agradeço, por fim, à minha mãe por ter
me ajudado em minha formação profissional, mas principalmente, por ter forjado meu caráter.
Graduanda em Biologia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Memorial
Jacilene dos Santos Clemente*
Meu nome é Jacilene dos Santos Clemente, sou estudante do curso de História na
Universidade Federal Rural de Pernambuco, filha de José Rafael Clemente, motorista e
Gercina Francisca dos Santos Clemente, dona de casa. Nasci no dia 30 de maio de 1986 em
Recife-PE, moro em Nova Descoberta, sou a mais velha entre meus dois irmãos, José Rafael
Clemente Júnior e Rafaela dos Santos Clemente, mas não fui à primeira filha dos meus pais.
Antes tiveram uma menina chamada Jaqueline Francisca Clemente, que morreu aos oito
meses, nove meses antes do meu nascimento, o que marcou muito minha infância.
Aos 3 anos comecei (devido a influência dos irmãos de minha mãe, que eu via sempre
cheios de cadernos) a querer estudar, meu pai não gostou da idéia, devido ao meu tamanho
e ao fato de, na época, não ser hábito em nossa família, colocar crianças tão cedo na escola.
Mas um ano depois, minha mãe se impacientou, e fazendo-se valer do convênio que a
empresa onde o meu pai trabalhava tinha com o SESI, me matriculou no SESI CAD Presidente
Dutra, localizado no Vasco da Gama, onde eu estudei do jardim I a alfabetização e onde eu
li aos 6 anos a minha primeira palavra sozinha: GARIMPEIRO.
O interessante sobre a primeira palavra que li, é que minha mãe não faz idéia da
primeira palavra que falei, mas ela nunca esqueceu a primeira que li. Esse foi o momento
máximo da minha infância, junto com o dia que meu irmão, muito pequeno, chegou a
nossa casa nos braços da minha avó, e o dia em que vi minha irmã, muito branca, deitada
na cama da minha mãe.
Aos 7 anos, concluí a alfabetização e fui estudar na Escola Estadual Gilberto Freyre,
localizada no Alto Treze de Maio, no Bairro do Vasco da Gama, onde estudei até a 3ª série
e tive três grandes professoras, Shely, ela me apresentou o primeiro livro que li; Mônica, que
tinha um grande sorriso; e Rita, que tinha uma voz muito suave e um rosto muito tranqüilo
e amável. Nessa escola tem uma pequena biblioteca, e foi nela que eu comecei a pegar
emprestado e ler os primeiros livros da minha vida, e aprender palavras que deixavam
minha mãe assustada e a família do meu pai tão preocupada, que fui parar em uma psicóloga,
ninguém achava normal uma criança viver lendo.
Aos dez anos, fui transferida para a escola Clotilde de Oliveira, na Avenida Norte,
Casa Amarela, onde cursei da 4ª série do Ensino Fundamental ao terceiro ano do Ensino
Médio. Lá, por falta de atenção das pessoas que efetuaram minha matricula, terminei em
uma sala onde a maioria dos alunos tinha mais de quatorze anos, essa diferença de idade
causou um conflito, pois eu tirava notas maiores que eles e era muito menor e mais nova.
Graduanda em História.
116
Caminhadas de universitários de origem popular
Esse não foi um ano fácil, o melhor desse ano de 1997, foi à descoberta da biblioteca da
escola, que me pareceu enorme, ensolarada e cheia de estantes repletas de livros dos mais
diversos tipos e tamanhos. Eu adorava a biblioteca, e toda semana pegava um livro emprestado,
o que me valeu o apelido de “Mundo da Lua”.
Nesse ano, ainda ocorreram algumas coisa desagradáveis, meu pai ficou desempregado
e as minhas colegas de classe passaram a ficar agressivas comigo, minha mãe teve de intervir
junto à direção da escola. As coisas se resolveram e eu passei para a 5ª série e o ano de 1997
havia acabado e eu não lamentei nem um pouco o seu fim.
O ano de 1998, foi infinitamente melhor. Meu pai conseguiu um novo emprego; eu
conheci minhas amigas mais queridas, Aline, Nataly Cristina, Natally Paiva e Rafaela
Dantas; conheci Monteiro Lobato, antes tarde do que nunca; fiz da biblioteca uma segunda
casa, como quase não tinha aulas, passava a tarde toda lá; e li muitos livros maravilhosos,
“A marca de uma lágrima” de Pedro Bandeira, “Momo e o senhor do tempo”, “Evanhoé”,
“Entre a espada e a rosa”, “Flores para Cecília” e “Jardim secreto” são os que eu mais
me recordo hoje.
A partir de 1998, nós cinco passamos a ficar praticamente a tarde toda lendo livros
juntas na biblioteca, coletivamente interessava-mos pelos livros infantis cheios de figuras
ou poesias românticas. E individualmente líamos o que interessava a cada uma em particular,
se nós gostávamos do livro fazia-mos todas as outras lerem também, para poder comentar
depois, assim, todas acabamos lendo “A marca de uma lágrima” e “O jardim Secreto”. Até
hoje eu e Aline, minha amiga mais querida, quando lemos um livro e dele gostamos fazemos
a outra ler, exatamente como nessa época; ainda víamos as enciclopédias Barça com uma
curiosidade enorme e mexia-mos nos livros didáticos de todas as séries.
Mais no ano de 2001, o idílio viu seu fim, eu estava acabando a 8ª série, e a escola já
estava de tal modo sucateada, que uma reforma teve de ser inciada. A biblioteca foi fechada,
ela ia mudar para um local melhor, ia ganhar novas estantes e aumentar seu acervo de livros.
Além disso, algumas amigas começaram a se interessar, com mais afinco pelo sexo oposto,
os interesses mudavam.
O ano letivo de 2002, começou tarde e foi de uma dificuldade sem igual. As aulas
começaram no dia 21 de março e nós do Ensino Médio tivemos que ficar no anexo, um
galpão onde as salas eram divididas por maderitos e onde era possível ouvir a aula de
geografia do 1º A, de história do 2º A, Inglês do 2º C e a nossa de física ao mesmo tempo. Foi
aí que começou meu desespero, no tocante ao vestibular. No ano anterior eu tinha feito um
cursinho no NUCE (Núcleo de Concursos Especial), para me preparar para o vestibular do
CEFET-PE, não passei, mas percebi o quão defasado é o ensino público no Brasil e senti que
se eu quisesse estudar em uma instituição federal teria que me esforçar muito e trabalhar
duro em cima dos livros.
Eu entrei em desespero, mas minha mãe estava por perto e me deu muito apoio, e Aline
também. Eu sou cristã protestante e foi um porto seguro, pois a Bíblia sempre tinha um
versículo para me estimular e me incentivar a continuar estudando. Nesse ano de 2002, eu
ainda descobri uma outra biblioteca e de lá tirei os livros de literatura de que precisava,
junto com o de diversos outros títulos das ciências humanas, eu não tinha professores de
Ciências Exatas, então não sabia por onde começar a estudar esses temas, logo, só estudava
matemática. Foi ainda no ano de 2002 que o professor de português, Inaldo, me apresentou
Fernando Pessoa, foi amor à primeira vista, até hoje o “Eu profundo e os outros eus” é um
Universidade Federal Rural de Pernambuco
117
dos meus livros de cabeceira. No meio de 2002, voltamos ao prédio de nossa escola, que
permaneceu em reforma por meses.
O ano de 2003, não mostrou muitas novidades, a não ser a eleição escolar e a produção
de um jornal escolar apoiado em uma pesquisa de opinião que deu muito trabalho, mas
levou meu amigo Espedito Lourenço a ir apresentar o nosso trabalho em São Paulo em um
evento do IBGE.
No final do ano, uma amiga da minha família avisou a uma de minhas tias, Maria
Rafael, que estava havendo inscrição para um pré-vestibular na Área 2 da UFPE, eu fui lá e
descobri que não se tratava de um pré-vestibular comum, mas sim do Pré-acadêmico. O Préacadêmico é um curso que tem por objetivo ajudar estudantes oriundos de escolas públicas
interessados em fazer uma licenciatura em alguma ciência exata, a entrarem nas universidades
federais e concluírem o curso com sucesso, dando a eles uma boa base em matemática,
biologia, física e química.
Estudei bastante, e no início de 2004, fiz a prova e comecei a esperar pelo resultado
com muita ansiedade. Na data marcada para a saída do resultado, meu pai foi na Área 2 e viu
meu nome na lista dos aprovados para realizar o curso no Departamento de Matemática da
UFRPE no horário da tarde, foi um dia de festa em minha casa.
Daí para frente, eu comecei a estudar matemática, química, biologia e em especial,
física, foi muito difícil, o pré-acadêmico, passei por muitas dificuldades naquele ano,
professores faltavam, não se tinha dinheiro para as xérox, livros nem pensar. Eu não entendia
os assuntos muito bem, tudo parecia muito complicado, eu me envolvi com um rapaz que
estudava comigo e cometi alguns erros para com ele, tudo era horrível e quando eu cheguei
ao mês de julho, parecia que eu não ia conseguir mais nada da vida.
Mas as coisas começaram a mudar, as amigas e amigos do pré-acadêmico, Genilza e
Adriana, Ivaldo Igor e os outros, começaram a me estimular a estudar, minha mãe também me
incentivava e Aline me dava apoio na escola. As aulas do Rumo a Universidade começaram,
eu havia passado na seleção, lá, conheci Ivone e Janayna, pessoas que foram cruciais nesse
momento, assim, recomecei a ter ânimo e me reencontrei me dedicando aos estudos em tempo
integral, de segunda a segunda, sem parar para desanimar ou pensar duas vezes.
No Rumo a Universidade eu conseguia boas notas nos simulados e graças a isso
consegui a inscrição para o vestibular das federais, pensei muito bem e optei pelo curso de
História na UFRPE, lembro que eu preenchi o formulário em uma das salas do CEGOI junto
com Genilza. Daí, tudo ocorreu bem e graças a Deus consegui a tão esperada aprovação.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Janecleide de Oliveira Sales*
Nasci em 5 de março de 1982, na cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará. Meus pais
são Raimundo Sales e Julia Claudino. Tive meu primeiro contato com a escola aos quatro
anos de idade. Em princípio, só fazia chorar, por isso, quase sempre minha mãe tinha que me
buscar antes da aula acabar. Dessa fase, a lembrança maior que tenho é de um escorrega que,
na minha recordação, era enorme. Nela me vejo subir uma escada muito grande, e nessa
imagem, quando chego no topo, desisto e retorno pela mesma escada por onde subi. Todos
os dias eu subia e o medo não me permitia escorregar.
Logo chegou a fase da alfabetização e recebi então “A Cartilha de Talita”, cheia de pequenos
textos, ou melhor, pequenos versos (porque rimavam). Minha mãe me ajudava com as tarefas,
sempre lia para mim, e eu os recitava na sala de aula quando a “tia” pedia que lêssemos.
Certa vez a professora impressionada com a perfeição da minha leitura, pediu para que
eu lesse o texto posterior. Ocorreu então minha primeira decepção em sala de aula. Sabe, eu
não lia na verdade, eu decorava-os quando minha mãe os lia em casa.
E o “chororô” começou e perdurou, até que minha mãe comprou um quadro negro e
uma caixa de giz colorido. Com esses recursos em mãos, ela me alfabetizou e logo eu já
estava lendo. A leitura não era perfeita, no início, mas era leitura e não um texto decorado.
Ler logo virou vício; eu lia tudo o que passava diante dos meus olhos. Quando andava de
ônibus, pela janela, lia outdoor, anúncios, nomes de ruas, de escola, tudo mesmo.
Os livros, que antes eram lidos para mim desde antes de completar um ano de idade,
naqueles dias, os dos meus 6 anos de idade, eram lidos por mim para as visitas, os vizinhos, as
crianças. Meus pais ouviam-me ler todo o tempo que estavam perto de mim e prestavam atenção.
Nunca negligenciaram ou se calaram, sempre houve incentivo e estímulo da parte deles.
Seguiram-se os anos. Até a quinta série do ensino fundamental, eu troquei muito de
escola. Foram exatamente oito escolas, neste espaço de tempo de 9 anos. Meu pai sempre
era transferido, porque trabalhava em uma fábrica de refinamento de óleo e havia máquinas
que só ele e poucos, na época, sabiam operar. Por causa disso, ele prestava cursos em
refinarias de várias cidades e estados. Eu não gostava muito, mas me acostumei, as mudanças
já eram parte da rotina.
Quando eu tinha nove anos, meu pai se desempregou e mudamos para Recife, pois as
irmãs da minha mãe e ela própria eram naturais da capital pernambucana. Minha mãe sentia
muito a falta da sua família e sempre pedia para morarmos no Recife. Desempregado, meu
Graduanda em Biologia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
119
pai recebeu seis meses de seguro-desemprego. Quando terminou esse período, não conseguiu
outro emprego e ficou mais uns três anos sem renda alguma.
Eu era uma criança que tinha muita imaginação e vivia atravessando a ponte entre
sonho e realidade. Isso transformava a minha maneira de sentir e ver as mudanças. No
começo, não mudou nada para mim, porque meus pais cuidavam ao máximo para que não
me atingisse a fase difícil que estávamos passando.
Sem a bolsa de estudos que a fábrica oferecia ao meu pai, para os meus estudos, a
escola particular parecia ter a cada mês as portas mais estreitas para mim. Nós insistíamos
nela porque, no fundo, tínhamos preconceito com a escola pública. Eram muitos os
comentários negativos a respeito dessa instituição. Minha mãe sozinha costurando, todos
os dias, conseguia pagar a casa, a água, a luz, a comida e a escola particular. Bem, a casa não
era mais bem uma casa, e, sim, um quarto no fundo do quintal de uma casa semelhante a que
morávamos. Os gastos com água e luz eram incluídos no preço do quarto. Eram três quartos
neste quintal, um só banheiro para todos e pias de prato e roupas também comuns.
Foi inevitável que eu fosse para a escola pública. Houve choro, mágoa, revolta e,
após uma sincera conversa, compreensão e aceitação Quando comecei aos 10 anos na
escola publica Monsenhor Fabrício, na cidade de Olinda, bairro de Peixinhos, as coisas
não eram exatamente iguais, as pessoas, principalmente, não eram como os comentários
descreviam. Retornando as lembranças, quando pus os pés na escola pública, na verdade,
me senti leve e livre. Vou explicar o porquê: a rede privada priva do ensino àqueles que
estão inadimplentes com o seu sistema.
A diretoria não entregava mais as provas, até que o pagamento fosse efetuado. Eu
lembro da professora chamando os nomes dos alunos para o recebimento das provas. No fim
da chamada, ela dizia os nomes das crianças que não receberiam as provas, porque os pais
deveriam comparecer à secretaria para pôr em dia o pagamento. Eu passara a ficar sempre
nesta lista de três ou quatro crianças. Ela sempre chamava o meu nome e os de mais dois ou
três colegas, que se alternavam.
Eu gostava de receber as provas para saber das notas, mas gostava principalmente de
receber as notas dos trabalhos de pintura e colagem. Eu sempre gostei de artes: sempre
caprichava nos trabalhos, mas nunca os recebia depois que me tornei uma inadimplente.
Tinha fardamento para a educação física, fardamento para as aulas em sala, materiais extras
para serem usados em aulas especiais. Qualquer falta, até a cor de tênis diferente do que a
norma exigia, era motivo para não entrar na escola, ficar de fora de determinada aula. Por
esses entre outros motivos, não me senti mal quando cheguei ao Monsenhor Fabrício
porque, naquele grupo, com menor poder aquisitivo, eu tinha a mesma condição financeira
dos meus colegas e podia me inserir.
De fato, a qualidade do ensino era “inferior”. Não tínhamos livros, materiais para aulas
práticas, a educação física, a artística eram quase inexistentes, professores faltavam, assuntos
eram cortados, pulados; e essa situação se estendeu por todo o meu ensino fundamental e médio.
Fiz o ensino médio na Escola Dom Bosco, situada em Recife, no bairro de Casa Amarela.
As condições de ensino eram as mesmas. Quando eu estava no terceiro ano, o vestibular
começou a ser assunto comum entre os alunos do terceiro ano. Sonhávamos e ao mesmo
tempo duvidávamos que pudéssemos estar, no ano seguinte, em uma Universidade.
Nesta época, meu pai já estava trabalhando e com sacrifício pagou um curso prévestibular intensivo numa escola particular do mesmo bairro. Esta escola estava
120
Caminhadas de universitários de origem popular
começando na época, por isso era uma das mais famosas: o Colégio e Curso Base. A
escola tinha professores com nomes reconhecidos, porque também ensinavam no Colégio
Contato, entretanto nós não éramos os alunos do Contato. Nossa base educacional
era bem diferente.
Foi quase desesperador para mim. Era um de puxar da memória lembrança do ensino
que eu não tive. Resultado, passei na primeira fase, mas não na segunda, o que para mim não
pareceu derrota, mas, sim, esperança, porque a prova não me pareceu um monstro.
No ano seguinte, minha mãe conseguiu para mim uma vaga em um cursinho prévestibular gratuito, para alunos vindos de escola pública. Este era localizado na Faculdade
de Direito da Universidade Federal de Pernambuco, no centro da cidade do Recife. Em
2000, era o segundo ano do curso Vestibular para Todos. Essa experiência restringiu-se aos
alunos oriundos do Ginásio Pernambucano, escola estadual de grande renome em
Pernambuco. Entretanto de tanto minha mãe insistir, eu acabei entrando. O curso era
ministrado pelos alunos de Direito.
Neste cursinho, eles consideraram o fato de sermos alunos de escola pública. Dessa
forma, os assuntos eram estudados do começo e as bases reforçadas sempre. Dos sessenta
alunos que iniciaram o curso, apenas quinze estavam presentes na conclusão. Desses, oito
passaram, ou seja, mais de 50%, e eu estava neste grupo. Entrei no curso Bacharelado em
Ciências Biológicas da Universidade Federal Rural de Pernambuco, no ano de 2001.
Eu fiquei feliz com essa vitória, mas estranhei o status de estudante universitária. No
ano anterior, eu tinha convivido com descrédito de alguns, porque muita gente não acredita
na entrada de um estudante de escola pública na Universidade Pública. Essas mesmas
pessoas agora davam, da sua forma, as congratulações a mais nova universitária.
Agora, sabe o escorrega do jardim de infância? Aquele que sempre tinha medo de
escorregar? Guardada na memória também me vem, como última lembrança desse escorrega,
alguém, que eu não lembro bem da fisionomia, me dando a mão e segurando-a para que eu
escorregasse finalmente. Depois disso, eu perdi o medo.
Na vida o que faz crescer realmente é esse entrelace de mãos que encontramos no
nosso caminho. Mãos que seguram, soltam, empurram, dão carinho, apontam caminhos,
ajudam, se estendem ou se fecham. Sejam mãos anônimas ou mãos de pessoas conhecidas,
quando elas entrelaçam, não é mais um apenas: são dois, três, quatro... somos muitos, na
verdade, não estamos sós.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Ambiente familiar:
um bom lugar para nascer
João Carlos Dias de Almeida *
Meu nome é João Carlos Dias de Almeida. Sou filho de Maria Guedes de Almeida e
João Batista Dias de Almeida. Nasci em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, no dia 15 de
maio de 1984. Tenho duas irmãs: Betânia, a mais velha, e Carla, a segunda mais velha. Além
disso, tenho dois sobrinhos: João Mateus, filho de Carla, e Gabriel, filho de Betânia.
Atualmente moro com minha mãe, minha avó, Arlinda Guedes da Silva, Carla e meu
sobrinho João Mateus.
Durante a minha vida, e boa parte da minha adolescência, fui uma pessoa muita
tímida, mas, ao longo dos anos, venho superando esta dificuldade.
Minha família, como tantas outras, sempre lutou por preservar um bom ambiente
familiar. Meu pai e minha mãe eram os que sustentavam financeiramente a casa. Além disso,
eles sempre nos incentivaram a estudar (ambos tinham pouca escolaridade, entre 1ª e 4ª
série do ensino fundamental).
A mudança de vida e de lugar
Aos seis anos de idade, no ano de 1990, me mudei para cidade de Olinda, onde moro
atualmente. Estudei na escola pública Raymundo Diniz até o 1° ano do ensino médio. Este
colégio fica em Águas Compridas, bairro olindense para o qual me mudei e no qual ainda moro.
Esta escola nunca me motivou a ingressar em uma universidade. Ela era muito precária
e o único objetivo que eu tinha, enquanto estava estudando nela, era o de concluir o ensino
médio. Porém, lá fiz muitos amigos. Foi por causa de alguns desses amigos que eu decidi ir,
juntamente com eles, estudar na cidade do Recife, capital de Pernambuco. Foi com este
propósito que em 2000 fui estudar na escola pública Ginásio Pernambucano, na qual concluí
meu ensino médio. Assim, durante esses dois anos da minha vida, 2000 e 2001, tive a
motivação necessária para ingressar na universidade. E desta forma foi que começou a
minha mudança de vida, cultural e acadêmica.
Tentei o vestibular por três vezes. A primeira vez foi para arquitetura e as duas últimas
para licenciatura em Física. Ainda mais, participei de cursinhos pré-vestibulares gratuitos
durante essas tentativas.
Uma dor familiar
Nasci em uma família pobre, que, como tantas outras, tinha suas dificuldades. Um
delas era o alcoolismo do meu pai. Por causa deste problema, haviam muitas brigas entre ele
e minha mãe. Estas brigas lá em casa foram a causa de um lar desestruturado.
Graduando em Física.
122
Caminhadas de universitários de origem popular
Desta forma, depois de vários conflitos, veio a separação de meus pais, que foi mais
uma dor a ser vivida. Infelizmente, após a separação deles, meu pai continuou bebendo e
teve várias internações em hospitais. Desta maneira, em agosto de 1998, quando eu tinha 14
anos, meu pai faleceu. Foi uma perda irreparável para todos nós. E, neste momento, o
silêncio era a única coisa da qual era capaz.
Vivendo, sobrevivendo e seguindo em frente...
No ano de 2004, ingressei na Universidade Federal Rural de Pernambuco, para o curso
de licenciatura em Física. Atualmente, ano de 2006, estou na metade do meu curso e pretendo
fazer mestrado e doutorado. Sempre tive dificuldades na vida. Uma delas foi “entrar” na
Universidade; uma outra é que, estando nela, tive e tenho dificuldades em assimilar os
conteúdos das matérias lecionadas; sempre faço prova final e já reprovei uma cadeira.
Atualmente sou evangélico, desde 2001, e desta maneira venho superando essas
dificuldades com muita fé. Além disso, sempre tenho contado com o apoio da minha família
e dos meus amigos. Ainda mais, sou uma pessoa otimista e acredito que as pessoas, e a nossa
vida, podem ser transformadas a cada dia, tornando assim o nosso mundo um ambiente
melhor e mais íntegro. Desta forma, continuo prosseguindo e tentando fazer a diferença.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
123
... as armas de Jorge ...
Jonata de Arruda Francisco*
Chamo-me Jonata de Arruda Francisco. Nascido em Paulista, litoral norte de
Pernambuco, e no dia 18 de maio comecei minha história nesse planeta. Filho exclusivo de
minha mãe, Tatiana Galiza Arruda, ex-empregada doméstica e atualmente auxiliar de farmácia
no Hospital público de Hanseníase do Estado de Pernambuco e minha avó, Edite Galiza
Arruda, paraibana ex-manicure e aposentada como auxiliar do laboratório de análises clínicas
do Hospital Central Privado de Paulista.
Minha mãe e minha avó criaram-me juntas. Elas sempre indicando o melhor caminho.
Além dessa indicação, minha curiosidade de conhecer o mundo me levou a tomar gosto
pela escola. Sempre fui um aluno aplicado, mas também gostava de perturbar muito na
escola. Em Maranguape II, bairro no qual resido desde criança, cresci e aprendi boa parte de
minha malandragem, mas ainda assim continuava vidrado na escola, pois sabia que lá
havia algo que me levaria longe.
Cursei minha alfabetização na escola Municipal Abigail Basto Russel. Na escola
Municipal Maria Conceição da Paz, estudei até a quarta série. Prestei meu primeiro exame
de seleção para uma vaga na quinta série na Escola Municipal José Firmino da Veiga. Passei
um mês trancado em casa estudando para conquistar essa vaga. Valeu! Era a realização de
um desejo, estudar no centro de minha cidade.
Em minhas horas livres, dedicava-me a malandragem. A turma de minha rua sempre
procurava emoções. Ir para um pedaço de Mata Atlântica próxima de minha casa e lá tomar
banho de açude era uma das melhores coisas. Formávamos uma equipe com muita disposição
para “tirar onda” no bairro à noite. Mas, no fundo, não gostava muito da forma como era feito.
Apesar de me sentir um membro do grupo, não havia um respeito mutuo. Quando alguém da
turma era o centro das gozações, esse realmente ficava humilhado. E esse, geralmente, era eu!
O menor e franzino da turma. Provar que era tão malandro tanto quanto eles era quase uma
meta. Carreguei tudo isso para minha vida escolar e tratei logo de me encaixar em uma equipe
lá também. Perturbar nas aulas e perturbar no pátio era o melhor, mas sempre corria para
recuperar minhas notas baixas, pois sabia que isso era muito importante.
Dinheiro, somente com algum tipo de trabalho e isso me frustrava, pois nunca era
nada de concreto. Trabalhava no transporte coletivo clandestino. Vendia picolé no
final de semana só pra ver como funcionava. Não havia emprego. Trabalhar e estudar
não era fácil, e eu descobri isso quando passei a trabalhar durante a madrugada como
cobrador de Kombi. Isso foi durante a sétima série. Tive minhas piores notas durante
Graduando em Biologia.
124
Caminhadas de universitários de origem popular
esse período. Na oitava série me envolvi realmente com o álcool, hábito que levei
até a faculdade.
Durante o primeiro ano do segundo grau tomei realmente gosto pela ciência. Através
do professor Neônio da disciplina de Química. Ele foi minha referência. O cara foi demais.
Com aquela energia toda para organizar a feira anual de Química. Tenho quase certeza de
que não fui o único a despertar interesse pela ciência por influência dele. Preciso agradecer
muitas coisas a ale. Aquelas aulas de Química estimulavam-me a investigar o mundo. Foi
durante essa época também que mudei meu círculo de amizades no bairro, pois estava
cansado das humilhações e da falta de conteúdo dos caras da minha rua, gostaria que eles
também mudassem, mas não mudaram. Infelizmente, perdi alguns deles para o mundo da
malandragem. Foram assassinados ou estão presos.
Minha mudança de idéia exigia pessoas que me respeitassem por minhas idéias também,
não que meus amigos de infância fossem inadequado para meus círculos de amizades, mas
eles realmente não respeitavam minhas idéias.
Deixei de ouvir o “funk carioca”, que tocava no programa Xuxa aos sábados e que era
sucesso nos bailes “funks” do Recife gerando brigas entre as galeras e passei a ouvir “Rock’n
Roll” nas fitas cassetes cedidas gentilmente pelos meus novos amigos. Essa foi minha
primeira mudança de idéia. Deixei de ouvir músicas que falavam apenas sobre violência e
mulheres balançando a “bundinha” e passei a ouvir músicas de protesto em português,
inglês e espanhol. O “funk” carioca também falava sobre desigualdades sociais, culturais e
econômicas, mas a turma gostava mesmo dos temas violentos e pornofônicos.
Sempre gostei da idéia de curtir a vida e manter a meta de pelo menos passar de ano na
escola. É claro que com o mínimo de esforço já era o suficiente para uma aprovação por
média. Na década de noventa, as escolas públicas já não eram mais as mesmas, os números
do Ministério da Educação não refletiam mais a realidade, se é que algum dia esses números
representaram alguma coisa. As escolas públicas já garantiam diplomas de analfabetos.
Tenho certeza que se eu estivesse limitado minhas informações a minha escola do segundo
grau, provavelmente estaria estagnado até agora.
Concluído o segundo grau em 1999, passei então a ter preocupação exclusiva com
meu primeiro emprego, enquanto concluía o curso gratuito de língua espanhola, mas foi
triste a visão de meu currículo simplesmente vazio de capacitações. Era o reflexo da falta de
formação e de oportunidade de meu mundo limitado a zona norte de Pernambuco. Aqui não
é diferente do resto do Brasil, pois as poucas oportunidades que existem estão nos grandes
centros comerciais, a Região Metropolitana do Recife. Busquei cursos de formação
profissional, mas sempre esbarrava nas altas mensalidades que os salários de minha mãe e
minha avó juntos não podiam pagar.
Não desisti e sempre estava atento às oportunidades de cursos gratuitos que vez ou
outra eram oferecidos por entidades não governamentais e órgãos públicos no centro de
Recife. Participei de capacitação para auxiliar de farmácia, montagem de micro e
administração de redes em informática, curso de eletricista e de refrigeração, qualidade
no atendimento e informações turísticas, curso de línguas, espanhol e inglês. Resultado,
meu currículo tornou-se melhor e apresentável, mas não era o suficiente para o exigente
mercado de trabalho do Recife. Deixei currículo em algumas senzalas modernas como:
Mc Donalds, Bompreço e alguns Shopping’s Centers. Continuei desempregado, nada de
primeiro emprego e apenas algumas entrevistas sem êxito. O mercado de trabalho não perdoa.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
125
Experiência é o mais importante no currículo. Nem as forças armadas, como a Aeronáutica
e o Exército, foram capazes de absorver minha mão de obra-escrava durante o
alistamento. Pela manhã estava em casa cuidando de minha irmã, a tarde andava de
“skate” e durante a noite reunia-me com a galera do bairro para tomar álcool diariamente.
Desmotivado de procurar emprego e não conseguir nem trabalho resolvi buscar uma
alternativa para acabar com meu ócio. Pois sentia falta de muitas coisas. Uma ocupação
concreta para não perder tudo que o professor Neônio me ensinara. E assim foi durante
o ano de 2000.
Em janeiro de 2001, conheci um grupo de jovens que se reunia para estudar com
objetivo de prestar exame de vestibular. Um trabalho interessante, pois as informações eram
trocadas entre eles. Cada aluno era responsável por uma disciplina. Enquanto um ensinava
Matemática, o aluno responsável pela disciplina de Português assistia aula e vice-versa.
Comecei a participar das aulas dando então início a minha caminhada visando conquistar
uma vaga nas universidades públicas.
Com o passar das aulas assumi a disciplina de Biologia, envolvendo-me cada vez mais
com o trabalho voluntário prestado pelo grupo. Este grupo foi criado por iniciativa de
Michel e Vanessa, um casal de namorados e alunos do curso de Química que também
conquistaram suas vagas na educação superior formando grupos de estudos como esse.
Informação é uma chave que abre portas. Descobri também, perguntando a um e a
outro, um cursinho gratuito promovido pela Universidade de Pernambuco. Seria necessário
passar por um processo seletivo para ter a vaga garantida. Logo me candidatei e um mês
após já estava assistindo às aulas no Colégio Estadual Aníbal Fernandez.
Na busca pelo sonho da universidade requeri isenção de inscrição do vestibular das
Federais e consegui cinqüenta por cento de abatimento, foi uma verdadeira vitória pois é
alto o valor a ser pago apenas para tentar uma vaga. Freqüentei as aulas do cursinho até
prestar meu primeiro vestibular para o curso de Ciências Biomédicas da Universidade Federal
de Pernambuco. Superei a primeira etapa, porém ainda não estava preparado o suficiente e
não superei a segunda parte da seleção. No final deste ano sentia-me fortalecido, não era o
mesmo cara desnorteado e sem fundamento.
Em janeiro de 2002, já estava agarrado aos livros e às intermináveis listas de questões
de vestibulares. Mesmo aproveitando o carnaval, tentei outra vaga no mesmo cursinho
gratuito da Universidade de Pernambuco e passei. Até que foi fácil pois já tinha a experiência
de um ano atrás. Minha vida girava entorno do vestibular, sabia de meu potencial para
conquistar uma vaga e começar 2003 bem onde gostaria de estar.
Nós somente conhecemos o tamanho do desafio quando o enfrentamos pela primeira
vez. Prestei vestibular em novembro, a inscrição eu paguei com o dinheiro das aulas de
reforço que dava a criançada lá da rua. Agradeço a cada um deles pela ajuda.
Começaram as provas e garanti uma vaga logo na primeira fase com uma nota razoável,
precisava então manter minha nota ou aumentar a pontuação. Não aconteceu nem uma
coisa nem outra, minha nota caiu mas não sendo o suficiente para me tirar a vaga no curso
de Bacharelado em Ciências Biológicas da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Conquistei minha vaga após dois anos de muito trabalho, após ter desistido de procurar
emprego e somente encontrar portas fechadas para um jovem sem experiência e finalmente,
após ter recebido, acima de tudo, o apoio de minha mãe e minha avó que sempre acreditaram
no meu êxito e sempre depositando muita fé em Deus.
126
Caminhadas de universitários de origem popular
Por incrível que pareça não fiz disso uma festa de arromba, não raspei minha cabeça,
nem sai por aí pulando de alegria, apenas comemorei com uma cerveja, um amigo e uma
namorada ouvindo um reggae. Segredo, no fundo do peito estava muito feliz. Estava quase
explodindo, mas preferi deixar tudo com modestos sorrisos em agradecimentos aos poucos
porém sinceros parabéns que recebia.
No primeiro dia de aula na universidade, encontrei Mônica, uma amiga do curso de
inglês e vizinha de bairro, logo concluí que não fui o único a enfrentar a guerra e ultrapassar
as barreiras do bairro Maranguape II. O mais interessante foi descobrir que seriamos colegas
de turma também, pois ela estava matriculada na mesma turma que eu. Mas um exemplo de
que no lado Norte e esquecido do estado de Pernambuco existem muitos jovens com talentos
e com capacidade de mudar ao menos seus destinos. Imagine você se os que estão lá, a beira
da ociosidade ou ocupando seu tempo na “correria” diária por drogas, recebessem uma
ajuda com educação e trabalho? Eu sei que muitos até ficam diante de boas oportunidades
e as desperdiçam, mas acredito que é preciso algo ou alguém que mostre o caminho melhor
e aí então tomarão para si o que é deles.
Particularmente, não sofri com o preconceito por dois motivos: primeiro fui bem
aceito por quase todos, principalmente, meus verdadeiros amigos desde o início das aulas.
E segundo sempre me achei superior a toda essa hipocrisia. Mas não posso deixar de falar
que o preconceito realmente existe dentro da universidade também. Uma vez fui chamado
de neguinho por uma pessoa que se julgava de cor branca, logo ela nascida no Brasil, esse
país profundamente miscigenado, considerar-se exclusivamente branca na cor. Bem, eu
considero-me marrom escuro e, sei que sou escuro por conta do gene dominante para cor
negra. O bom disso é que hoje ela me respeita pelo que sou, pois conhece minha história.
Outro momento preconceituoso ficou por conta de um comentário que fizeram ao meu
respeito, dizendo que eu teria inveja da boa posição social que alguém possuía. Como é
possível orgulhar-se desse privilégio enquanto há tantos na miséria, neste país? Como disse
Marcelo D2: “Com dinheiro é muito fácil todo mundo é feliz, eu quero ver você tirar onda
sem dinheiro como eu fiz”.
Relevei esse acontecimento, pois descobri que foi tudo um grande mal entendido.
Droga é algo muito comum na Universidade, a começar pela cerveja que é consumida nos
bares que rodeiam a nossa universidade, principalmente, nas sextas-feiras. Maconha aparece
aos quilos via celular. Por conta de meu jeito cabeludo e doidão usando roupa folgada,
quase fui convidado a sair de um laboratório. Pois é, prefiro considerar esses fatos grandes
equívocos superados que não me deixaram nenhum rancor. Estou tranqüilo! Descobri que
conquistar as pessoas com atitudes era o suficiente para superar os preconceitos.
Foram muitas as dificuldades enfrentadas. Transporte até a universidade, alimentação
adequada, e material didático são importantes para garantir um bom rendimento acadêmico.
Morando distante, cerca de duas horas da universidade, não por conta da distância e sim
pelo péssimo planejamento do roteiro da linha utilizada como acesso, costumava almoçar
às onze horas da manhã em casa e chegar por volta das trezes horas morrendo de fome.
Quando não era dessa forma, a coisa funcionava na base da “quentinha”, ou melhor da
“friinha”. Apesar de existir um Departamento de Assistência Estudantil (DAE), as atividades
deste não são bem divulgadas aos calouros, as informações são passadas aos alunos pelos
alunos. Somente fiquei ciente dos programas de assistência ao estudante quando comecei
a almoçar com um amigo que fazia parte do programa de alimentação. Ele dividia o
Universidade Federal Rural de Pernambuco
127
“bandejão” dele comigo. Mesmo assim, obtive uma vaga no quadro dos alunos
beneficiados com o programa de alimentação, é claro que isso foi depois de “pentelhar”
bastante o pessoal do DAE.
Comecei a estagiar no Museu/Laboratório de Malacologia do Departamento de Pesca
e Aqüicultura no final de 2003. Lá dei meus primeiros passos na pesquisa. Em 2004, sai
minha primeira bolsa, foi uma bolsa de extensão, durante o terceiro período de curso, o que
resolveu temporariamente o problema das passagens de ônibus, tirando a responsabilidade
das mãos de minha mãe. Em 2005, minha primeira viagem para fora do estado de Pernambuco
foi até Natal, participar de um treinamento de sobrevivência para o Arquipélago de São
Pedro e São Paulo, uma viagem de avião e por conta do CNPq. Muito feliz pois nunca havia
saído de Pernambuco, nem de ônibus.
Nesta viagem fiz muitos amigos, Emilio (RJ), Gasparinne (ES), Sue (RS), Larissa (RS),
Natalino (RN), Natasha (RJ) entre outros que já conhecia, entre eles, minha amigona Simone
que viajou comigo. No quinto período participei de meu primeiro congresso nacional, XIX
Congresso Brasileiro de Malacologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com as
passagens de avião por conta da universidade. Sexto período, foi importante pois meu
projeto de pesquisa, projeto de iniciação científica (PIBIC), através do museu de malacologia,
foi aprovado. Passaria a desenvolver uma pesquisa com bolsa durante um ano. Durante esse
período, realizei outra viagem ao Rio de Janeiro, dessa em vez maio até Niterói. I Congresso
Nacional de Biologia Marinha e comprei meu computador com o dinheiro da bolsa e
importantíssima ajuda de minha avó. Entrei em uma ONG chamada Instituto Oceanário, na
qual trabalho até hoje e me trouxe muitos amigos e experiências. Não posso deixar de
mencionar que durante esse período descobri outra pessoa que me deu ainda mais força para
enfrentar essa luta, porém junto comigo, Juliana Gabriele, minha namorada.
Foi no final do meu projeto de iniciação científica (PIBIC) comecei a preocuparme como continuaria a faculdade pois estava próximo do final do curso e estaria sem
dinheiro para continuar a pagar as passagens. Sabia que o mais importante nesse momento
era continuar freqüentando as aulas e o laboratório de malacologia para continuar os
trabalhos de pesquisa. Foi quando Juliana Gabriele ligou pra mim dizendo que precisava
falar comigo com urgência. Contou-me sobre um edital do Programa Conexões de
Saberes da Pro - reitoria de Extensão.
Ainda sem muita informação, cuidei logo da documentação e fiquei aguardando o
resultado. Descobri posteriormente que o projeto tinha uma proposta voltada a alunos com
histórias parecidas com a minha. Alunos de universidades públicas federais e que cursaram
o segundo grau exclusivamente em escolas públicas e que seriam responsáveis por
desenvolver oficinas de cidadania, leitura e direitos humanos no Programa Escola Aberta
nos finais de semana.
Fui selecionado e passei a compor o Conexões de Saberes, estava diante da
oportunidade que sempre quis. Assim como minha mãe, minha avó, meus amigos Neônio,
Michel, Vanessa e outros que fizeram a diferença na minha vida, eu poderia agora fazer a
diferença na vida de alguém. Recompensar o que eles fizeram por mim e dar ajuda para que
alguém ultrapasse os limites impostos pelos muros das desigualdades socio-econômicas. A
minha historia é somente mais uma. É uma historia igual à de algumas pessoas que lutam, se
jogam, como eu me jogava nas manobras de “Skate”. Acreditar que dar certo e muita atitude
é o primeiro passo.
128
Caminhadas de universitários de origem popular
No Programa Escola Aberta, já tive algumas boas experiências, já falei que o tubarão
não é mal, pelo contrário, ele é uma criatura que sofre como qualquer outra nesse mundo de
injustiças. Também procurei deixar claro aos meus alunos que o transporte público coletivo
não é público coletivo e sim transporte privado coletivo, pois os ônibus que nos levam aos
shoppings, hospitais, escolas, praias e outros lugares de uso público ou privado, têm dono.
E que as passagens dos policiais, idosos e deficientes, incluindo a meia passagem dos
estudantes, não são gratuitas, o restante da população que realmente paga passagem inteira
assumem todo o tipo de gratuidade. Nada é de graça.
Bem, minha luta pessoal para conquistar uma qualidade de vida para mim e para os
que estão ao meu redor não acabou. Estou concluindo o curso de bacharelado em Ciências
Biológicas faltando apenas a monografia para apresentar em junho de 2007. Prestarei exame
de seleção para vaga de mestrado em Oceanografia no Departamento de Oceanografia da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tenho que buscar um bom controle de meu
açúcar no sangue para não sofrer complicações da Diabetes que descobri a dois meses atrás.
E por fim tenho que conquistar um emprego como biólogo ou que seja em outra área para
dar continuidade a meus sonhos de tornar um fragmento de mata atlântica próximo a minha
casa uma reserva ecológica de verdade, o Parque Ecológico do Tamanduá Mirim em Paulista.
Ver minha família feliz, morando em um sitio bem arborizado cheio de insetos e outros
bichinhos e ter meu filho com a pessoa que descobri me completa nesta luta.
Não posso mudar o mundo, mas posso influenciar por onde eu passar. Antes disso,
precisa-se mudar o mundo interior. A maior transformação para mim foi o autoconhecimento
com ajuda de pessoas que gostariam de ver um jovem fazer a história diferente de tantas
outras iguais nesse Brasil.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
129
Conquistas vividas
José Edson de Lima Torres *
Deparo-me hoje com vinte anos de idade, descobrindo um mundo que sempre tinha
almejado, o da universidade. Vivendo coisas que a pouco tempo não pensava em
experimentar. Descubro-me a cada dia dessa nova fase da minha vida aprendendo a aproveitar
e amar as pessoas que sempre estiveram do meu lado.
Pois bem, me chamo José Edson de Lima Torres, filho de Maria José Pereira de Lima e
Salvador Rodriguez Torres Júnior. Venho de uma família de cinco filhos, dos quais três são
homens e duas mulheres. Sou o mais velho de todos.
Meu trajeto começa assim. Morando na cidade de Itambé, Zona da Mata Norte de
Pernambuco, começo a estudar com sete anos idade. A partir daí fico até a 3ª série do Ensino
Fundamental na Escola CERU Frei Orlando. Depois peço a meus pais que me matriculem no
Colégio Municipal de Itambé, como era conhecido na época, pois lá dispunha de uma
estrutura melhor de ensino. Passo então todo meu Ensino Fundamental nessa escola, mesmo
com todas as dificuldades encontradas no caminho.
Meu pai, funcionário público da prefeitura Municipal de Pedras de Fogo-PB, cidade
vizinha a Itambé, recebia um salário-mínimo para manter a família com oito pessoas mas a
pensão da minha avó materna, que no final de 1999 nos deixara eternamente, abrindo um
enorme vácuo em minha vida, pois tinha por esta pessoa um amor intenso. Mesmo assim,
concluo a 8ª série e recebo o convite da minha avó paterna para ir morar com ela no Recife.
Empolgado com a idéia e já confortado com a perda recente, resolvo aceitar o convite em
busca de uma oportunidade de um ensino de qualidade. Mudo-me no ano seguinte para
estudar na Escola Estadual Olinto Victor. Começo o ano motivado pela nova vivência, mas
à medida que o tempo vai passando, sinto falta do que tinha me direcionado ao Recife. A
realidade é outra, o ensino apresenta vários problemas, dentre eles a falta de muitos
professores, principalmente de Matemática e Física. Este fato deixou-me com certa defasagem
de conhecimentos essenciais para a vida acadêmica.
Após a conclusão do 1º ano do Ensino Médio, retorno a Itambé deixando pra trás bons
amigos, que me ensinaram que o mais importante na vida é poder continuar sem baixar a
cabeça, e não desistir na primeira dificuldade. Assim que retorno à minha cidade, começo a
trabalhar numa lanchonete para poder ter uma independência financeira. À medida que o
ano vai passando, vou tendo bastante experiências, e sou convidado para ser tesoureiro do
Grêmio Estudantil Edson Luis, do Colégio Municipal de Itambé, onde aprendo que temos
muitos direitos diante da escola e passo a ter um contato maior com a direção da escola e os
Graduando em Engenharia Florestal.
130
Caminhadas de universitários de origem popular
próprios alunos. Essa experiência foi-me bastante produtiva, pois proporcionou uma maior
desenvoltura com o público e a escola.
Já no 3º ano do Ensino Médio, começo a direcionar interesse em prestar vestibular,
então me deparo com a enorme dúvida, para que fazer? Que curso escolher? Sem saber ao
certo o que queria seguir, prestei o primeiro vestibular para Turismo na UFPB. Embora
tivesse feito o cursinho aos sábados na própria escola, não consegui obter vitória, passei na
primeira fase e na segunda não fiquei em boa colocação. Mesmo, assim, não desisti e junto
com meus amigos que sempre estiveram comigo, decidimos levantar a cabeça e retornar a
batalha. Acreditávamos que um dia poderíamos chegar lá, que o sonho da “Federal” não era
só para os que podiam pagar um cursinho de qualidade, nem muito menos para separar por
pessoas e etnias.
Acreditávamos que poderíamos vencer, que juntos chegaríamos lá. Longe da escola e
trabalhando, ficava mais difícil um outro vestibular. Estudava aos poucos com meus amigos
e sempre buscávamos pessoas que fossem fazer vestibular para estudarmos juntos. Soubemos
então de uma ONG onde alguns universitários davam aulas de reforço e ajuda para quem
fosse prestar vestibular. Foi onde tirei muitas dúvidas de coisas que nem tinha visto no
Ensino Médio, de fato, uma enorme ajuda para minhas notas no vestibular. Em 2004, prestei
novamente vestibular na UFPB e o da CEFET-PB, animado e confiante fiz os dois
vestibulares, estava com expectativa de obter um bom resultado, mas como Deus sabe o que
faz não fui contemplado com a vitória. Talvez tivesse ido com muita sede ao pote, e isso
tenha me levado a certa arrogância, pois já me considerava vitorioso. Depois aprendi que
devemos dosar as coisas com um pouco de confiança e também com a consciência de que só
temos aquilo que lhe é merecido.
Chega 2005 e com ele novas oportunidades aparecem, faço concurso público da
Prefeitura Municipal de Pedras de Fogo – PB e consigo ser colocado entre as vagas, fico
muito feliz com a vitória, mas nem por isso tinha desistido de entrar na Universidade.
Chegam os dias da inscrição para isento da taxa do vestibular da UFPE e UFRPE, como já
estava sem trabalhar e não tinha sido nomeado no concurso referido, foi tentar a isenção. Fiz
tudo que era necessário para a solicitação. Espero então o resultado ansioso. Tinha três
opções de isenção: 100%, 50% e 30%. Mesmo comprovando baixa renda não fui sorteado
para receber os 100% da isenção, me liberaram apenas 30%. Como eu já estava sem estudar
e trabalhar, resolvi que não iria fazer o vestibular, iria adiar para o ano seguinte. Ligo para a
minha avó, pois ela tinha me informado do período de isenção, e aviso que não poderei
fazer vestibular naquele ano.
No dia seguinte, minha avó liga dizendo que minha tia, sua irmã, iria me dar o dinheiro
que precisava para fazer a inscrição. No outro dia, vou ao Recife para fazer a inscrição, fico
em dúvida em que curso escolher, pois descubro que não me identificava com Turismo, e
depois de ler todo o manual decido fazer para Engenharia Florestal, a partir daí eu entrego
totalmente a Deus minha vida e coloco em suas mãos o vestibular. Tento estudar durante o
pouco tempo que me resta. Chega o dia das provas, já com certa experiência dos vestibulares
anteriores, faço a prova na espera e consciência de um bom ou mau resultado.
Passo na primeira fase, e, por surpresa, fico colocado entre as vagas, chega o dia das
provas finais e tento fazê-las com calma e confiança. Em janeiro de 2006, dia 09 para ser
mais exato, sai o resultado. Apreensivo, fui junto com meus amigos olhar o resultado na
internet. Vimos que tinha sido aprovado, não nos agüentamos de alegria. Um dia inesquecível
Universidade Federal Rural de Pernambuco
131
que ficara guardado na memória. Uma sensação única e o melhor de tudo era poder
compartilhar com todos que me apoiavam e davam força para seguir em frente.
Já aqui na Universidade tenho encontrado pessoas que se tornaram verdadeiros amigos,
que me fazem saber suportar a distância de casa e das pessoas que eu gosto. Estou feliz em
ter encontrado essas pessoas que sabem valorizar uma amizade.
Depois de todas as provações, vitórias e aprendizados vividos, aprendi o quanto é
importante dar valor às pequenas coisas da vida, que cada um é capaz de alcançar um
objetivo, que não depende de ninguém a nossa própria conquista. Hoje sei dar ainda mais
valor a família, que se torna cada vez mais próxima de mim, mesmo à distância.
Hoje, aqui na Universidade, podendo ter a oportunidade de crescer e aprender a cada
dia, como começar a trilhar novos caminhos e horizontes, aprendo o quanto sou pequeno
diante de Deus e o quanto posso crescer, vivenciando novas experiências junto com o
Conexões de Saberes que abre portas para oportunidade de permanência na Universidade
ao aluno de origem popular, proporcionando diálogos entre a universidade e os alunos de
escola pública, que, assim como eu, podem e devem ter a mesma oportunidade de ingresso
na universidade pública.
Morando hoje na residência estudantil, tenho a UFRPE como uma nova casa, ciente
de todos os benefícios e males que por aqui posso encontrar. Considero-me vitorioso diante
de todas as batalhas que enfrentei, sei que virão muitas, mas confio em Deus e sei que Ele é
meu único refúgio e amparo.
Um dos maiores desejos do ser humano e conquistar novas fronteiras e eu estou
conseguindo isso, sabendo que a cada dia é um novo aprendizado diante de um mundo de
coisas fantásticas a serem aproveitadas.
Dedico este memorial a Deus, que é o principal responsável por todas as minhas
conquistas, aos meus pais que sempre me deram força, aos amigos Fabiana, Márcia, Gabrielle
e Rubens que sempre estiveram do meu lado e aos novos amigos Silvinha e Rubens Souza
que me dão maior força, a toda minha família, primos, irmãos, tias, avó madrinha uma
enorme satisfação. A minha avó materna: Eliza Pereira de Lima (em memória), tia avó: Necy
Severina da Silva (em memória). Por fim ao Conexões de Saberes que me proporcionou
novas experiências.
132
Caminhadas de universitários de origem popular
Partes da parte de um todo
Joseane Maria do Nascimento*
Em 1983, nove meses após uma competição bastante acirrada de espermatozóides,
nascia, no Município de São Lourenço da Mata, Joseane Maria do Nascimento, a primogênita
de Lindalva e Mariano. Quatro anos depois, nasceu o outro filho do casal, Josinaldo.
Joseane iniciou seus estudos, aos seis anos de idade, numa escola municipal de São
Lourenço. Sua primeira professora se chamava Daniela, uma pessoa doce, carinhosa e muito
paciente. Essas características fizeram com que Daniela se tornasse, para Joseane, uma
pessoa inesquecível.
Um ano depois, em 1990, Joseane passou para a primeira série. Esse ano foi muito
complicado para ela, pois o casamento de seus pais não ia bem. Não só seu pai, mas também
sua mãe passaram a consumir bebidas alcoólicas em demasia. No mês de abril, após uma
discussão, seus pais se separaram e sua mãe foi embora.
Esse período foi o mais difícil na vida de Joseane, uma vez que ela, até aquele momento,
nunca tinha sido separada de sua mãe. Um mês depois, sua mãe voltou e foi buscá-la na
escola. Ao ver sua mãe, ela não conseguiu controlar as emoções e chorou muito, abraçou sua
mãe com saudade e revolta, devido ao sentimento de abandono. Nesse mesmo ano, ela foi
morar em Recife com sua mãe, abandonando a escola.
Em 1991, Joseane foi matriculada na primeira série da Escola Lions, de Parnamirim,
onde estudou durante toda sua vida escolar. Em 1999, ela estava na oitava série do Ensino
Fundamental. Na escola, sofria com a falta de professores, pois ela sabia que essa questão
interferiria na realização de seu sonho de ser médica. Nesse mesmo ano, após quatro
meses sem professor de Biologia, chega à escola o professor Bartolomeu, um educador
excelente, no qual ela se espelhou. No final do ano, ela decidiu que queria ser bióloga.
No ano seguinte, estava na primeira série do Ensino Médio, dessa vez, sem professores de
Biologia, de Química e de Física. Além dessa dificuldade, tinha que arrumar um emprego
para ajudar seus pais.
Certo dia, quando Joseane vinha da escola, viu um cartaz que dizia: “Precisa-se de
moças e rapazes para trabalhar de panfletista. R$ 10,00 a diária”. Após ler esse cartaz,
decidiu que, no dia seguinte, iria ao endereço indicado. Chegando lá, pediram que ela
começasse no mesmo dia. Lá estava Joseane, entregando panfletos no sinal. No primeiro dia
de trabalho, ouviu piadinhas e reclamações de seu encarregado. Ao chegar em casa, disse à
sua mãe que não voltaria àquele emprego e nem a outro qualquer e que se dedicaria apenas
ao seu sonho de ser bióloga. Sua mãe não tinha outra alternativa a não ser aceitar.
Graduanda em Biologia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
133
Em 2002, já na terceira série do Ensino Médio, Joseane se preparava para o vestibular.
Ela freqüentava um pré-vestibular que funcionava em sua escola, custava R$ 8,00 mensais
e tinha aulas nos fins-de-semana .
Nesse mesmo ano, sua mãe ficou doente e Joseane parou de freqüentar o cursinho para
diminuir as despesas; diminuiu também seu tempo de dedicação aos estudos. Mesmo
assim, Joseane fez a inscrição para o programa Rumo à Universidade. Ela tinha que passar,
pois essa era a única maneira de continuar tendo aulas nos fins-de-semana, pois sua família
não podia pagar mais os R$ 8,00 do cursinho. Além disso, esse programa pagava uma bolsa
de R$ 50,00 mensais para os alunos e ela precisava desse dinheiro para fazer sua inscrição
no vestibular. Ela fez o concurso e foi a única da sala que passou.
Após vários exames atrasados, devido às greves dos hospitais públicos, os médicos
descobriram que sua mãe tinha câncer no colo do útero e, por isso, tinha que fazer uma
cirurgia. Foi um choque para toda a família. Após a cirurgia de sua mãe, Joseane ficou por
todo o tempo de recuperação com ela.
Nesse período, Joseane não conseguia estudar. Chegou o final do ano, ela fez a
prova do vestibular e, para sua surpresa, passou na primeira fase. Ficou muito feliz, afinal
estava perto de realizar seu sonho e era motivo de orgulho para sua escola e para sua
família. Um dia antes da prova da segunda fase, sua amiga de escola Claudiane foi
assassinada, o que a abalou muito.
No outro dia, ela fez a prova e, dias depois, saiu o resultado: Jô, como todos a chamavam
ficou muito triste, pois não passou; como se não bastasse a dor de não ter passado, ainda
tinha que explicar a todos que não havia se dado bem na prova.
Em 2003, Jô se inscreveu no Pré-acadêmico, um cursinho pré-vestibular da UFRPE/
UFPE e UPE. Para ser aluna desse cursinho, ela teria que passar por uma seleção. Fez a prova
e obteve êxito. Foi um ano de preparação para o vestibular. Lá, ela viu assuntos que nunca
tinha visto em sua vida escolar. No Pré-acadêmico, Joseane contava com três professores
para cada disciplina, sem ter que pagar nada.
No final do ano, Joseane prestou vestibular novamente e a história se repetia: passou
na primeira fase, mas não na segunda. Por causa desse resultado, sua família e seus vizinhos
sugeriam que ela desistisse, argumentavam que universidade era para filho de gente rica e
que ela tinha que arrumar um emprego. Ela, muito triste, olhou aquelas pessoas e disse: “Eu
vou conseguir, nem que passe toda minha vida tentando, mas não vou desistir”. Todos a
olhavam com pena, mas sua mãe pediu desculpas e disse que, se ela se dedicasse, conseguiria.
Em 2004, Joseane estudou de novo no Pré-acadêmico. No final do ano, prestou seu
terceiro vestibular. Passou na primeira fase... até aí a história se repetia. Fez a prova da
segunda fase; dias depois, saiu o resultado. Ela foi olhá-lo e, quando chegou perto de sua
casa, sua mãe estava à sua espera e, de longe, iniciou-se um diálogo entre elas:
Mãe - E aí, passou?
Joseane - Passei não!
Mãe - Tem nada não minha filha, o ano que vem você faz de novo.
Joseane - É não, mainha. Eu passei no curso de Ciências Biológicas da UNIVERSIDADE
FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO.
Sua mãe começou a chorar, abraçou sua filha e começou a contar a todos, com muito
orgulho, que sua filha havia passado no vestibular. As vizinhas, que antes pediam para
134
Caminhadas de universitários de origem popular
Joseane desistir, agora lhe davam os parabéns. Jô mal conseguia falar de tanta felicidade e
sua mãe, muito emocionada, fez questão de raspar sua sobrancelha.
Em fevereiro de 2005, Joseane iniciou o curso e foi muito bem nas disciplinas, graças
ao Pré-acadêmico, que, além de preparar para o vestibular, prepara o aluno também para a
vida acadêmica. A maior dificuldade de Jô é a de manter-se na Universidade, uma vez que
o transporte, a alimentação e os livros têm um custo muito alto. Já no primeiro período, ela
ministrava aulas de alfabetização em sua comunidade.
Hoje, final de 2006, Joseane tem vinte e três anos, mora na Caxangá, é voluntária em
uma escola de Informática e Cidadania da ONG CDI-PE (Comitê para Democratização da
Informática) e bolsista do “Conexões de Saberes”. Jó é uma referência em sua comunidade,
acabou de passar para o quinto período do curso de Biologia. Seu objetivo é fazer Mestrado
e Doutorado e continuar ajudando sua comunidade. Sabe que não será fácil, mas não pensa em
desistir. Essas são partes de uma parte da história de vida de uma estudante de origem popular...
Universidade Federal Rural de Pernambuco
135
Um pouco de mim
Joseane Maria dos Santos*
O nascimento dos filhos, para a maioria das famílias, é motivo de bastante alegria e
felicidade. Eu, Joseane Maria, que nasci em Jaboatão dos Guararapes – PE, no ano de 1981,
pude (mesmo sem disso saber) propiciar tais sentimentos à família Santos. Esta que, no ano
de minha chegada ao mundo, era composta por Rafael Felix (pai), Elisabete Maria (mãe),
Joseli Maria (primogênita) e Jorbson (irmão do meio); hoje essa formação mudou: uma
pessoa se foi (Elizabete), outra chegou (Juliana, primeira neta desta família).
Na cidade de Paulista – PE, o Tio Patinhas1 era (pois não sei se ainda funciona) uma
escolinha de grades e partes das paredes pintadas de vermelho. Tinha balanço, escorrega e
“tias” legais que todas as manhãs me aguardavam com carinho para mais um dia de aula.
Nesse local de ensino, aprendi os primeiros passos da alfabetização. Não consigo lembrar
muitas coisas, porém o que ficou marcado do Tio Patinhas foi o desfile de 7 de setembro do
qual participei; senti-me muito feliz e importante, embora estivesse vestida com uma roupa
de pato. Outro acontecimento importante foi uma “bronca” que levei2 do filho da dona da
escola (não tenho certeza, parece que ele era coordenador). Fiquei tão triste que passei o
resto do turno com aspecto de doente. Se o rapaz tivesse sido menos grosseiro, eu não teria
ficado tão triste, mas passou e no dia seguinte, nem lembrava do acontecido.
Por motivos financeiros, fomos morar na cidade de Jaboatão dos Guararapes. Nessa
cidade, no colégio Padre Cromácio Leão, terminei a antiga pré-escola (hoje Ensino Básico).
Foi bom estudar ali, porém, por ser uma instituição de ensino particular, era muito difícil
para mim, pois eu não tinha as mesmas condições econômicas dos outros alunos. Quase
nunca participava das festas da escola; lanchar na cantina era raro. Isso me deixava triste e
com sentimento de inferioridade (acho normal, criança não consegue entender muito bem
as diferenças de classes sociais).
Ah, mas ter sido transferida no início do ano da alfabetização para a primeira série foi
algo que me deixou muito orgulhosa. Ao término do mesmo ano, concluí a pré-escola. Eu e
meus irmãos deixamos a escola, pois meus pais não a podiam pagar.
Chegar ao Bernardo Vieira de Melo, um colégio enorme do Estado, foi um “baque”.
Além de minha mãe não ter ido ao primeiro dia de aula conosco, a cidade, a escola, era um
mundo novo para mim e fiquei apavorada. Lembro que fiquei rodando na escola, sem saber
Grtaduanda em Economia Doméstica.
1
2
Minha primeira escola.
Por mastigar um chiclete.
136
Caminhadas de universitários de origem popular
onde era minha sala, turma, professora; foi quando uma mãe, que acompanhava a filha,
sensibilizou-se e me ajudou a me encontrar na escola. Enfim, achamos a sala, lá estava a tia
Dulcinéia,3 que me acolheu com bastante carinho.
Fui privilegiada, pois todos falavam que criança que estudasse com a professora
Dulcinéia acabava saindo da escola como excelente aluno/a (acho que era verdade, pois a
turma da Dulcinéia era a mais comportada e estudiosa do Bernardo). Os dias passaram, a
normalidade veio, aos poucos me acostumei com tudo, comecei a gostar desse novo mundo
e, principalmente, da biblioteca, que era pequena e cheia de livros que me faziam sonhar.
O saputi, a manga, a pitomba, frutas4 que faziam parte do cenário da escola ajudavam
a “enrolar a barriga” antes da merenda – aliás, as merendas tinham preparações bastante
gostosas. Gostosa também foi a situação do primeiro beijo, no fundo da escola. Todos os
colegas achando o máximo; eu, assustada, nem pude aproveitar muito, mas foi legal. Hoje
dou risada desse episódio.
Na terceira série, fui homenageada como a melhor aluna da turma, mais uma vez,
fiquei orgulhosa de mim mesma. O difícil foi não ter a presença de meus pais nesse momento,
pois as outras crianças tinham a companhia dos seus. Mesmo assim, foi maravilhoso. No
ano de conclusão do Ensino Básico, novamente tive que mudar de residência.
O ano passou, a quinta série (Ensino Fundamental) chegou; com ela, também veio a mudança
de bairro. Fui morar em Cavaleiro, onde resido até os dias de hoje, bairro longe do Bernardo. No
começo, foi legal morar longe, pegar ônibus; depois, tornou-se cansativo e enjoativo.
Em janeiro do ano seguinte, morreu minha mãe. Ficava a perguntar: e agora? Apesar
dela trabalhar e não ser muito presente em minha infância, era meu porto seguro, sempre podia
contar com ela. Aos poucos, a vida da família foi tomando rumo, meio torto, mas tomou.
No ano seguinte, casa nova (a que moro até a presente data – “própria e quitada”),
colegas novos e escola nova. No colégio Ministro João Alberto, estudei a quinta série (por
completo). Sendo o Murilo Braga5 a escola em que tinha vontade de estudar, consegui, por
intermédio de uma colega muito querida, me matricular. Lá me tornei adolescente e descobri
as dificuldades da vida. Fiz “bagunça”, tive as primeiras paqueras (de verdade), dancei no
clube de aeróbica, fui às festas da escola com os colegas: foi a construção de uma nova fase
da vida, de novos colegas.
No último ano para conclusão do Ensino Fundamental, me transferi para o turno da
noite. Foi muito difícil deixar os colegas, a bagunça, a quadra de futebol e a praça onde
passávamos horas conversando, mas era preciso. Eu precisava trabalhar; terminei a oitava
série sem os colegas que conquistei. Estudar tinha se tornado coisa chata, pois gostava de
estudar (conhecer o novo), mas tinha que ter, junto dos estudos, os colegas.
No Moacyr de Albuquerque, estudei o Ensino Médio. Naquele momento, meu tempo
dividia-se em estudar à noite e trabalhar durante o dia. Aos poucos percebi o quanto o/a
aluno/a que estuda em colégio público é prejudicado/a pelas greves, ausência de professores
e pelo pouco valor que é dado à educação no Brasil. Isso me fez descobrir as dificuldades
que o/a jovem brasileiro de origem popular enfrenta para crescer profissionalmente. Apesar
disso, não desisti, pois percebia na educação um caminho para crescer na vida.
3
4
5
Uma mulher morena, com aproximadamente 38 anos, de voz forte.
Gostosas para comer em baixo do pé no vento e sombra fresca.
Era a “menina de meus olhos”.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
137
No segundo ano do Ensino Médio, os professores pincelaram o que é vestibular,
universidade, profissões, entre outros. Tais informações aumentaram meu interesse em fazer
vestibular. No último ano em que estudava o ensino médio, quase não comparecia à escola:
o trabalho consumia boa parte de meu tempo. Mesmo com todas as dificuldades consegui
terminar; festa de formatura não houve, apenas uma festinha da turma no pátio da escola.
No ano que se iniciava, decidi me dar um descanso: ficaria apenas trabalhando. Foi
ótimo, pois me diverti bastante, consegui juntar um dinheiro, além de dedicar mais tempo a
cursos que melhorassem a função6 que exercia no salão de beleza. Aliás, foi nesse salão que
conheci pessoas que me motivaram a não parar de estudar, fazer faculdade. No ano seguinte,
deixei o trabalho para estudar e comecei a fazer um cursinho preparatório para o vestibular.
Inicialmente foi difícil: eram tantas coisas para lembrar, estudar e, principalmente,
aprender, que me faziam pensar em desistir de tudo. Graças a Deus e aos colegas que
conquistei, não o fiz. Esses mesmos colegas me convidaram para participar de um grupo de
estudo. Passávamos as tardes discutindo e resolvendo exercícios; quando chegava a preguiça
e a falta de motivação, um incentivava o/a outro/a. Em alguns momentos, pensei em desistir;
sentia-me um “peixe fora d’água” junto a pessoas de um nível de conhecimentos maior7 que
o meu. Logo, pensava: “Não posso desistir; esta é a chance de crescer na vida.”
O grande dia, enfim, chegou. Na Universidade Católica – UNICAP, fiz a primeira fase.
Passei. Fiquei sem acreditar. Para a última etapa do vestibular, estudei como nunca. Um
professor do cursinho orientou-me sobre quais assuntos deveria estudar com mais ênfase
para a segunda fase. Fiz a prova. Veio o resultado: não consegui passar. Foi péssimo. Chorava
e pensava estudar mais um ano, acho que não vai ser possível; o dinheiro que economizei
havia acabado; começava a sentir necessidade de voltar a trabalhar. Os colegas me deram
apoio e decidi tentar mais uma vez fazer o vestibular.
No período de remanejamento das universidades federais, uma colega8 ligou-me e
disse que eu tinha sido remanejada, fiquei sem acreditar. Foi a melhor sensação que tive em
minha vida. Até hoje, não houve outra que me proporcionasse tamanha alegria. No dia
seguinte, sem saber ao certo o que deveria fazer, fui à Universidade Federal Rural de
Pernambuco – UFRPE e consegui fazer minha matrícula no curso de Economia Doméstica.
Por motivos financeiros voltei a trabalhar e, como conseqüência, tive que trancar o
curso de Economia Doméstica; por isso só o iniciei no ano seguinte. Ter dupla jornada, não
foi novidade para mim, porém, na universidade, as coisas são bem diferentes se comparadas
à escola. Por esse motivo, tomei coragem e, mais uma vez, deixei o trabalho. Foi o melhor a
ser feito; só assim pude me dedicar mais à Universidade e participar de pesquisas, estágios
e eventos acadêmicos.
Ficar sem uma renda não é nada fácil; há horas em que bate um desespero, dá vontade
de voltar a trabalhar. Compro roupas e sapatos apenas quando estou precisando (mesmo),
passeios foram reduzidos. Em casa, percebo o quanto meu dinheiro faz falta, para
complementar as despesas. Isso me deixa bastante angustiada, então, rezo, digo a mim
mesma que é por pouco tempo e que logo as coisas vão melhorar.
6
7
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Função de manicure e depiladora.
Todos vinham de escolas particulares.
Essa colega acreditava que eu seria remanejada.
138
Caminhadas de universitários de origem popular
Hoje sou outra pessoa, a UFRPE me proporcionou conhecer coisas que estavam bem
distantes de minha vida; por meio dela, pude realizar sonhos e construir novas amizades.
Entrar e permanecer em uma universidade, principalmente na pública, é tarefa árdua. No
entanto, digo a todos/as que tiverem a oportunidade de ler este Memorial: “Não desistam de
lutar pelo que desejam fazer”.
O mundo da Academia encanta, envolve e apaixona de tal forma que se torna difícil
deixá-lo. É o cenário onde posso viver os meus sonhos, afinal “eu tenho uma espécie de
dever, dever de sonhar sempre, pois sendo mais do que uma expectadora de mim mesma,
eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso e, assim, construo a ouro e sedas, em
salas supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho entre luzes brandas e
músicas invisíveis9”.
9
Fernando Pessoa (Livro do Desassossego).
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Um sonho em andamento
Josias Ferreira de Mendonça*
Meu nome é Josias Ferreira de Mendonça, nasci em 24 de julho de 1985, na cidade de
Timbaúba-PE. Era um domingo, onze horas e dez minutos de uma manhã muito ensolarada,
assim, conta minha mãe. Ela sempre recorda que teve um parto normal. Mesmo assim, ela
tinha muito cuidado com a minha pessoa, quando eu tinha um aninho de idade, uma formiga
me mordeu e eu fiquei doente, a doença era conhecida naquela época de vermelhão, daí em
diante minha vida começou a ser acompanhada mais de perto pelos médicos.
Lembro de minha existência desde os três anos de idade. Sou o filho mais novo, na
minha terra meus pais diz em que eu sou o caçula, eu tendo mais três irmãos e duas irmãs.
A primeira lembrança que tenho foi quando eu morava em um engenho chamado
“Cancela”, no ano de 1989, onde nesta época eu tinha três anos de idade e estava começando
a estudar na Escola Maria de Fátima, mas no meio do referido ano meu pai teve que ir morar
em outro engenho chamado “Maribondo”, por motivo de trabalho, toda minha família
também foi morar junto com meu pai. Eu e os meus irmãos pegamos transferência para a
escola perto de onde nos íamos morar, onde era chamada de Escola Nossa Senhora de
Lurdes, essa escola, era muito pequena, tinha apenas quatro salas de aula onde essas salas
eram de pré-escolar, da primeira série, mais eu ia muito pouco a escola, pois brigava muito
com a professora Maria de Fátima e por esse motivo minha ida a escola era mais dificultada.
Antes do início do ano letivo de 1990, nós tivemos que ir morar em outro lugar
denominado de Usina Musurepe, desta vez o local onde fomos morar era muito mais legal
que os anteriores, pois havia mais pessoas com quase a mesma idade que eu e meus irmãos,
e nós podíamos brincar mais pelo fato de ter mais gente para participar da brincadeira. Eu,
meus irmãos e amigos, brincávamos muito de chimbra (bola de gude) e gostávamos muito
de jogar futebol. Mas meu pai sempre foi muito rígido e não queria que a gente jogasse bola
pelo fato de sermos evangélicos. Mas não era só por esse motivo que o local era melhor, a
escola onde iríamos estudar era bem maior e melhor que as anteriores, sem falar da estrutura
que a mesma tinha.
Quando eu tinha cinco anos de idade, minha mãe ia me matricular na 1ª série mas as
pessoas que trabalhavam na direção da escola falaram que eu era muito novo para ir para a
primeira série, daí então eu tive que cursar a alfabetização novamente. Mais no meio do ano
letivo de 1991, meu pai teve uma discussão com o patrão dele e acabou deixando o emprego
e logo em seguida recebeu uma nova proposta para ir trabalhar na Usina Matary, que fica
localizada na cidade de Itaquitinga-PE. Mas para ir trabalhar nesta usina ele teria que morar
Graduando em Agronomia.
140
Caminhadas de universitários de origem popular
em um local mais próximo deste novo trabalho e para isso eu e toda a minha família tivemos
que nos mudar novamente e fomos morar no Engenho Cangauzinho no qual pertence à
cidade de Aliança.
Ao chegar a Aliança, minha mãe foi à escola denominada de UEPA (Unidade
Educacional da Prefeitura da Aliança) para realizar a minha matrícula e a dos meus irmãos,
ao começar a estudar nesta instituição no meio do ano letivo de 1991 na alfabetização, eu
encontrei muitas dificuldades, pois o ensino da referida instituição era muito exigente se
comparado com as instituições de ensino que eu havia freqüentado anteriormente. Com o
passar dos meses eu não consegui pegar o ritmo com que os conteúdos eram transmitidos e
acabei perdendo o ano sendo reprovado, mas nem por isso eu desisti.
No ano de 1992, eu me matriculei novamente na alfabetização, e com o passar dos
meses, consegui aprender e a passar de ano. No ano seguinte, cursei a 1ª série e as demais até
a 4ª série, sem perder nenhum ano da alfabetização, eu sempre estudei no período da manhã,
mas quando passei a cursar a 5ª série toda a história mudou.
No ano de 1997, me matriculei na 5ª série do ensino fundamental, mais minha vida de
estudante era difícil pois tinha que acordar cedo toda manhã, por volta das 5 horas para ir
tirar capim para os animais que meus pais compraram, isso era toda manhã, e acabava
dificultando um pouco pois na hora da aula estava muito cansado. Nem por isso desisti da
minha vida de estudante, entre tantas dificuldades pedia força a meu pai do céu para conseguir
na luta pelos meus objetivos que era me formar e chegar a cursar uma universidade pública.
No ano de 2000, eu estava concluindo a 8ª série do ensino fundamental. No fim desse
mesmo ano participei de uma seleção para estudar na EAFVSA (Escola Agrotécnica Federal
de Vitória de Santo Antão), sendo selecionado para estudar na referida instituição, eu
juntamente com meu pai compramos todos os materiais e fardamentos que iria utilizar no
ano seguinte.
Em 2001, ano no qual começaria a cursar não só o ensino médio, mas também, o
ensino profissionalizante de Técnico em Agropecuária eu escutei uma frase que dizia “aqui
nós temos duas alegrias, uma quando entramos e outra quando saimos”, mas no entanto eu
encontrei muitas dificuldades pois era muito apegado a meus pais e a escola ficava situada
muito longe da minha casa, e a mesma era de regime interno.
O regime de internato funcionava da seguinte forma, durante o dia eu tinha aula de
manhã no ensino médio, e a tarde no ensino profissionalizante, isso sem falar que a escola
ficava localizada a 2 km de distância da cidade, e os alunos do regime interno não podiam
sair da escola durante a semana, só quando fossem para casa, no período da noite só ficavam
homens na escola e isso era muito ruim, se não fosse a qualidade do ensino e a estrutura que
a escola tinha eu teria desistido.
Mesmo assim, para que o tempo passasse rápido, a noite eu sempre procurava ler
um bom livro, estudar, ir para o salão de jogos local onde eu poderia jogar sinuca, tênis
de mesa, xadrez, dominó e outros jogos, sem falar que o ginásio poliesportivo ficava
aberto a noite e tinha um professor responsável para que os alunos pudessem jogar uma
bolinha ou vôlei.
O período da noite na escola era muito ruim e por isso eu desisti, continuei estudando
até o ano de 2003 o qual eu me formaria. Chegando ao fim do ano eu colei grau e percebi
que a frase tinha uma falha, é que nós não temos duas alegrias apenas e sim uma alegria,
porque passamos na seleção e iríamos estudar numa escola excelente, e outra porque nos
Universidade Federal Rural de Pernambuco
141
formamos, e também uma tristeza, que é a de perder o contato com todos os amigos que
fizemos na escola.
No fim do referido ano de 2003, eu prestei vestibular para Engenharia de Pesca, no
entanto não consegui passar, fiquei muito triste e cheguei a pensar que não iria conseguir
ingressar numa universidade pública, pois muitos amigos meus que tentaram antes e não
conseguiram, desistiram, mas eu levantei a cabeça e vi que se eu desistisse não valeria a
pena lutar.
No ano de 2005, eu estudei mais e prestei vestibular novamente, sendo que desta vez
para Engenharia Agronômica, passei para a 1ª entrada e comecei a cursar Agronomia no
início de 2006. Ao entrar na Universidade, encontrei muitas dificuldades, e hoje ainda
estou encontrando. Agora, estou no 5º período do curso de Agronomia, mas o sonho ainda
não está totalmente realizado.
Hoje, eu digo, se você acha que não vale a pena lutar muito para alcançar os seus
objetivos, eu falo que: “tudo vale a pena se a alma não é pequena” (Fernando Pessoa).
142
Caminhadas de universitários de origem popular
Todo sonho é possível de concretizar-se
Karina Fabiana da Silva*
Sou Karina Fabiana da Silva, nasci em 20 de março de 1981 e moro desde muito
pequena na comunidade do Morro da Conceição, localizada na cidade do Recife-PE.
Aos cinco anos de idade, fui pela primeira vez à uma escola comunitária que ficava ao
lado de minha casa. Como sou a irmã mais nova de uma família de seis filhos, quando meus
irmãos iam à escola, eu ficava em casa brincando de boneca enquanto minha mãe costurava.
Tinha muito desejo também de ir à escola, então, no segundo semestre de 1986 minha mãe
resolveu atender minha vontade. No primeiro dia de aula, estava eufórica! Logo queria
aprender a escrever meu nome e aprendi, mas não no primeiro dia.
Fui uma criança alegre, que gostava de brincar com os irmãos e vizinhos no quintal de
casa. Os brinquedos eram, em sua maioria, improvisados, pois meus pais não tinham dinheiro
para comprar presentes para todos os filhos. Sempre quis uma bicicleta, mas nunca ganhei.
Contudo, nada de ficar parada! Brincava de barra-bandeira, pula corda, elástico, espeto,
bola de gude, pique-esconde, corrida... não cansava de usar a criatividade e a imaginação
para me divertir.
Estudei apenas alguns meses na escola comunitária. Com seis anos fui para a Escola
Estadual Pe. João Barbosa, a qual também se localiza no Morro da Conceição, onde estudei
do pré-escolar à 4ª série do ensino fundamental I. Lá, fiz amizades que ainda hoje prezo.
Gostava muito de estudar nesta escola, porque era próxima à minha residência, a escola era
tradicional - fazíamos fila antes de entrar na sala de aula, rezávamos e pintávamos as capas
das provas, o que gostava muito de fazer.
Quando saí da Escola Pe João Barbosa, fui com a mãe de uma colega de escola
procurar outra. Consegui matricular-me na Escola Estadual Matias de Albuquerque, em
Casa Amarela, próximo ao bairro onde moro. Esta nova escola era diferente. Havia um
professor para cada disciplina e educação física fora do horário das aulas. Contudo,
consegui adaptar-me e fazer novos amigos.
Estudei nesta escola da 5ª à 8ª série do ensino fundamental II, pois nela não possuía
ensino médio Ao longo dos anos fui uma aluna calma, tímida. Gostava de estudar, mas
sempre tive minhas limitações. Algumas vezes, fiquei em recuperação em história, matemática
e português. Minha mãe, que, mesmo trabalhando, esteve mais presente em minha vida que
meu pai, algumas vezes ensinava-me as tarefas de educação artística, outras, ela não
conseguia, porque ela é analfabeta. Meus irmãos estudavam em outro horário, e às vezes,
não tinham tempo para ensinar-me. Muitas vezes tive que aprender sozinha!
Graduanda em História.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
143
Quando concluí a 8ª série começou novamente a corrida para matricular-me. Minha
amiga de classe Débora e eu fomos a diversas escolas à procura de vagas. Depois de tantas
idas e vindas, nos matriculamos na Escola Dom Bosco, também em Casa Amarela.
Gostei bastante de ter estudado na Escola Dom Bosco. Ela era “modelo”. Possuía
laboratório de física, teatro, aula de canto em francês, grêmio estudantil, futebol masculino
e feminino, feira de conhecimentos, palestras, informativo-educativas e biblioteca. O
secretário Arlindo Barbosa escutava nossas reivindicações, estava disposto a nos ouvir e
nos ajudar. Trabalhava por uma escola melhor.
Quando estava no terceiro ano, fizemos um passeio à Caruaru e Brejo da Madre de
Deus, agreste de Pernambuco, dois lugares muito bonitos que, até então, não conhecia. Foi
construtivo e muito divertido. Aprendemos geografia, história e biologia ao ar livre. Quem
nos acompanhou foram os professores Bernadete, de geografia, e José Carlos, de inglês. Foi
inesquecível! Neste mesmo ano, os professores começaram a falar do vestibular. Eu não
entendia muito bem como funcionava todo o processo e como era a universidade. Queria
fazer a prova do vestibular, mas não tinha dinheiro para pagar. Alguns colegas de sala
fizeram, mas não conseguiram passar na segunda fase. Mesmo assim, me serviu de estímulo.
Queria ser dentista, porém, vi que não daria certo, pois tenho medo de sangue. As aulas de
história dos professores estagiários Fábio e António Carlos me fizeram descobrir uma paixão
oculta pela história.
Então, pensei: - vou tardar meu sonho porque não tenho dinheiro para pagar a inscrição
do vestibular, porém, um dia farei história. Como não tinha informação, dinheiro nem
emprego, não queria ficar em casa sem fazer nada. Ganhei uma bolsa para estudar
contabilidade no centro do Recife. Havia de ser minha chance de conseguir um estágio ou
emprego. Passei o ano de 1999 estudando, fazendo curso de informática, inglês e espanhol
e não consegui nenhum trabalho.
No ano seguinte, um grupo de moradores do Morro da Conceição que já estava na
faculdade, montou um grupo de estudos, o qual funcionava no fim de semana, na Escola
Municipal Júlio Vicente, pra estudar pro vestibular. Estudei com o grupo, não o quanto
desejava porque consegui um estágio de três meses em uma empresa de cobranças. Quando
saí do estágio dediquei todo o meu tempo para estudar. Ganhei a isenção da taxa de inscrição
do vestibular das universidades federais e prestei seleção para o curso de história na UFPE.
Passei apenas na primeira fase, mesmo assim, considerei uma vitória. Minha amiga Saula,
que estudou comigo durante o ensino fundamental I e no grupo de estudos, passou em
geografia na UFPE. Senti-me feliz. Isso me serviu de estímulo. No ano seguinte não desanimei
e continuei no grupo de estudos. Prestei vestibular para história, agora na UFRPE. Não
passei na segunda fase.
Como sou muito persistente continuei a estudar, todavia o grupo de estudos acabou.
Procurei um cursinho gratuito localizado na comunidade Córrego José Grande, também no
Recife, o NAP (Núcleo de Apoio Pedagógico) Comunidade, pré-vestibular oferecido pelo
colégio NAP em que seus ex-alunos, universitários, eram professores voluntários. Novamente
comecei a estudar com toda a garra. Prestei vestibular mais uma vez para licenciatura em
história, na UFRPE, novamente não passei, então, fui à sede da COVEST (órgão que realiza as
provas do vestibular das federais) e vi que eu havia ficado em primeiro, mas infelizmente não
houve remanejamento.
144
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha irmã Andréia foi quem me ajudou a pagar o segundo e o terceiro vestibulares
que prestei. Minha família me dava força para eu continuar estudando, contudo, não
gostavam da idéia de eu ser professora e fazer história. Queriam que eu fizesse odontologia.
No ano de 2003, percebi que eu precisava de reforço. Não que os professores do NAP
Comunidade fossem incompetentes, a defasagem estava em minha base escolar. Meu
aprendizado na escola pública foi deficitário. Sem nenhum dinheiro no bolso, pedi socorro
a minha irmã Andréia, que se dispôs a pagar um cursinho para mim. Fui a vários, com minha
amiga Monique, pedir desconto. Conseguimos cinqüenta porcento de desconto para estudar
no Contato da Boa Vista Bairro do Recife. Prestei vestibular para licenciatura em história na
UFRPE, disse que sou persistente, e odontologia na UPE, para agradar minha família. Estudei
de domingo a domingo e como lá em casa a primeira a prestar vestibular fui eu, elas não
entendiam e não respeitavam meus horários de estudo, faziam barulho e cobravam a minha
presença nas festas dos familiares.
Quando fui ver o resultado final das provas, fiquei muito nervosa e com medo de não
ter passado, pois minha irmã estava pagando. Queria ver resultados de seu investimento.
Procurei meu nome, ele estava lá. Passei! Passei! Passei! Comecei a gritar e a pular de
alegria. Ficava olhando várias vezes, pois eu quase não acreditava. Em um instante comecei
a pensar em todo o meu esforço, em minha luta durante quatro anos, para entrar na
universidade pública. Não foi fácil! Mas também não foi impossível. Eu consegui! Minha
família, meus amigos e meu namorado Dalmo, todos estavam orgulhosos de mim.
Hoje, nesse universo de conhecimento, quanto mais leio, estudo, pesquiso, mais
quero me aperfeiçoar, porque, para minha sorte, descobri que história é minha paixão, e
estar na universidade pública é um sonho que consegui realizar. Foi uma “luta armada”
entrar na universidade. Agora que estou aqui, passei a servir de exemplo para outros
jovens de minha comunidade: Morro da Conceição. Dificuldades irão surgir, mas temos
que ser fortes para superá-las
O Conexões de Saberes veio à UFRPE em boa hora e está me ajudando financeiramente,
me dando oportunidade de aprender e de ensinar de forma construtiva, pois não paro por
aqui. Há alguns anos estarei escrevendo minha dissertação de mestrado.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
145
Lutar contra as dificuldades
Leidiana Lima dos Santos*
Meu nome é Leidiana Lima dos Santos, nasci no dia 19 de março de1988, na cidade
do Recife, em Pernambuco. Moro desde esta data no bairro de Forno da Cal, na Ilha de
Itamaracá, no mesmo Estado, com os meus pais: Aguinaldo Gonçalves dos Santos, pedreiro
autônomo; e Jacilene Lopes de Lima, dona de casa, e com a minha irmã mais velha Lucilene
Lima dos Santos, estudante. Tive uma infância muito feliz, porém, marcada por problemas
de saúde. Apesar do preconceito que as pessoas têm com a cidade onde resido, pelo fato de
sediar dois presídios (sendo um de regime semi-aberto) e um manicômio judiciário, levamos
uma vida muito tranqüila. O maior problema é que essa cidade fica muito longe do centro
do Recife, apesar de fazer parte da Região Metropolitana.
Em 1993, comecei a estudar na Escola Municipal Abdias de Oliveira no mesmo bairro
onde moro. Fui matriculada na alfabetização. Conheci uma professora e diretora, Zélia
Cardoso, muito importante no meu desenvolvimento escolar e pessoal. Ela passou a me
observar durante as aulas e resolveu me passar para a 1ª série do ensino fundamental por
causa do meu bom desempenho. Tive que deixar essa instituição porque não oferecia ensino
a partir da 5ª série. Fiquei receiosa, pois nela contava com professores compreensivos e
sensibilizados com meus problemas de saúde (que me impediam de freqüentar as aulas
regularmente) e com uma educação de qualidade, equiparada com instituições particulares,
diferente de hoje em dia.
Com nove anos, passei a estudar na Escola Estadual Alberto Augusto de Moraes
Pradines, na mesma cidade, mas em outro bairro. Meus colegas e eu contávamos com um
único ônibus velho para transporte escolar e que, inúmeras vezes, faltava por problemas de
manutenção. Hoje em dia, uma empresa faz o transporte dos estudantes, entretanto, com a
mesma irresponsabilidade de antes.
Tinha medo de ser reprovada nessa escola, pois diziam ser uma escola rígida e superior
às outras. E era mesmo, muito diferente do que é atualmente. Mas nunca fui reprovada e
obtive boas notas, apesar das faltas.
Concluí um bom ensino fundamental maior. Quando me preparava para mudar de
escola, recebi a notícia de que a minha escola iria ampliar-se para atender ao ensino médio,
não fisicamente, mas pedagogicamente. Então, me matriculei no 1º ano. Não tínhamos sala
de aula fixa, fazíamos rodízios com outras turmas. Faltavam professores de matemática,
português, física, e os que tinham, deixavam a desejar quanto ao conteúdo. Foi o meu pior
ano na escola. Tive uma crise alérgica tão forte que fiquei dois meses afastada, me atualizava
Graduanda em Biologia.
146
Caminhadas de universitários de origem popular
quanto aos assuntos com um colega. Quando voltei, o quadro de professores já estava
completo, também pudera, estava quase no final do ano letivo!
No 2° ano, matriculei-me na escola vizinha, Senador Paulo Pessoa Guerra, também
estadual, só que o terreno da mesma era da igreja católica, o que impedia sua ampliação. Não
tinham salas suficientes para todas as turmas e nós assistíamos a aula numa sala de madeira
improvisada num corredor entre as salas de aula, fato que dificultava muito a aprendizagem.
Apesar das deficiências físicas dessa instituição, os professores eram mais capacitados.
Nessa época, vivi a angústia de escolher uma profissão, para então fazer o vestibular. A
minha irmã já estava na UFRPE, no curso de Bacharelado em Ciências Biológicas havia um
ano. Ela sempre me mostrava os conteúdos de suas disciplinas e eu, interessada nos assuntos,
aprofundava-me nas leituras dos livros de zoologia, botânica, embriologia. Foi quando
decidí que queria ser bióloga.
No 3° ano, fiz a prova de seleção para o PREVUPE (Pré-vestibular da Universidade de
Pernambuco) e passei. Fazia este curso gratuitamente aos sábados e domingos no Recife. Parei
de fazê-lo porque fui aprovada em outro pré-vestibular também gratuito, o Rumo à Universidade
(do governo estadual) que funcionava nos finais de semana, porém, com uma bolsa auxílio de
R$ 50,00. Infelizmente, muitas pessoas não tiveram a mesma oportunidade que eu.
Nesse ano, 2004, eu estudava todos os dias e ia me destacando no pré-vestibular. Na
minha escola, assim como em muitas outras, alguns profissionais da parte pedagógica
não acreditavam no potencial dos pré-vestibulandos, desta forma, não nos incentivavam
de nenhuma forma. Consegui, através do Rumo, a isenção da taxa do vestibular (por sinal,
muito abusiva para nós estudantes de origem popular) para a UPE e UFRPE, ambas para o
curso de Bacharelado em Ciências Biológicas. Não passei na 2ª fase, apesar de ter
ficado no remanejamento.
É claro que a sensação de não ter passado é horrível, afinal de contas, você estuda para
passar. Mas eu não tive a sensação de que foi um ano perdido, e sim, que foi um ano
proveitoso nos estudos. Além do mais, eu era jovem e tinha fé de passar, mas tinha que ser
uma universidade pública e de qualidade, porque nós estudantes de origem popular temos,
mais do que ninguém, esse direito.
No ano seguinte, fiz novamente o PREVUPE e o Rumo à Universidade. Estudava todos
os dias. O maior empecilho era a distância entre a minha casa e as escolas. Por semana, pegava
48 ônibus e gastava dentro deles e em integrações cerca de 30 horas. Mesmo assim, não desisti
e fui até o final. Durante o segundo ano de Rumo à Universidade, por conta da minha nota do
vestibular passado, ganhei uma bolsa para estudar gratuitamente em uma faculdade particular
de Recife em cursos como direito, fisioterapia, engenharia de telecomunicações entre outros,
e recusei a proposta pois queria mesmo era a federal.
Prestei vestibular novamente para Bacharelado em Ciências Biológicas na UPE e
desta vez para Licenciatura em Ciências Biológicas na UFRPE, pois os cursos de licenciatura
nos dão direito a uma profissão que seguramente nos dará emprego. Também, fiz ENEM e
me inscrevi no PROUNI. Apesar de toda a minha família me dar todo o apoio necessário,
estava mais nervosa porque me pressionava demais, uma vez que a minha irmã fez a mesma
trajetória que eu e passou nas provas na primeira vez que fez.
Passei na UPE e me matriculei, ao passo que esperava o resultado da UFRPE. Passei na
federal e também no PROUNI, bolsa integral para nutrição na Faculdade Maurício de Nassau,
onde já havia recusado um curso.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
147
Consegui estudar numa Universidade Federal é mais do que uma conquista pessoal. E
consegui mostrar para jovens e adultos pobres, que eles também podem conseguir esse
feito. Hoje, vejo muitas pessoas que estudaram comigo em faculdades privadas, pagando
para ter um diploma de ensino superior, enquanto as vagas das universidades de qualidade
e gratuitas estão, em sua maioria, ocupadas pela elite econômica.
Para nós, alunos oriundos de escolas públicas, as dificuldades são muito maiores.
Faltam professores, estes, na maioria das vezes, não têm capacitação para preparar os alunos
para concursos, faltam investimentos em bibliotecas, laboratórios e nos salários dos
educadores. Eu entrei na UPE graças aos 20% de cotas para os estudantes de baixa-renda,
mas é triste e inaceitável que nós dependamos de uma cota para termos acesso a um ensino
que é direito de todos. Deveríamos ter a chance de competir igualmente com os estudantes
que tiveram acesso a escolas privadas.
Hoje, estou no 2° período do curso de Licenciatura Plena em Ciências Biológicas na
UFRPE e não me arrependo da minha escolha. Nós, universitários, ex-estudantes de escolas
públicas, sentimos muita dificuldade em algumas disciplinas por conta da defasagem do
ensino que tivemos. Por causa da falta de professores e das dificuldades dos educadores do
ensino fundamental e médio em relação aos conteúdos, nosso rendimento na universidade
cai bastante e muitos de nós sofremos com preconceito de alguns docentes destas instituições,
e pior, vários estudantes não conseguem terminar o curso porque não conseguem aprender
o conteúdo das disciplinas e desistem ou são desligados por reprovações. Tenho dificuldades
nas aulas práticas laboratoriais, pois nas minhas ex-escolas (assim como a maioria) não
eram equipadas com laboratórios de ciências ou informática.
Fiquei sabendo, então, do Conexões de Saberes através de algumas amigas e me
inscrevi. Programas como este devem estar presentes em todas as universidades públicas do
Brasil, pois têm como objetivo ajudar os estudantes universitários de origem popular a
manterem-se nas universidades públicas. Sinto muita responsabilidade por estar trabalhando
no programa Escola Aberta, porque vejo a expectativa de mudança de vida das crianças das
comunidades atendidas. Trabalho na primeira escola onde estudei e em outra do bairro
vizinho, ambas municipais, onde procuro sempre fazer o melhor que posso nas oficinas.
Além do Conexões, pretendo fazer um estágio de iniciação científica em Taxonomia
Vegetal. Quero aprender muito com este estágio, e após terminar a minha graduação quero
fazer mestrado e doutorado. Com meus estudos quero poder ajudar as comunidades populares
através do Programa Escola Aberta. Quero expandir, conectar saber científico à comunidade
e trocar nossos conhecimentos, desta forma, diminuir as desigualdades sociais e lutar para
que mais jovens de origem popular entrem nas Universidades Públicas.
148
Caminhadas de universitários de origem popular
Caminhos de esperança
Leonardo Barbosa da Rocha*
Meu nome é Leonardo Barbosa da Rocha, sou natural de Recife-PE, nasci no dia 2 de
junho de 1987. Sou o filho mais novo de Luiz Epitácio da Rocha Filho, pedreiro, e Maria
Milte Barbosa da Rocha, dona de casa.
Comecei minha vida escolar quando meus pais colocaram-me em uma escola particular
de bairro, saindo dois anos depois para me alfabetizarem em uma escola pública. Terminando
a alfabetização, voltei para a escola particular de onde eu tinha saído. Mesmo com dificuldades
financeiras para me manter nesta escola, meus pais, que têm baixo grau de estudo, conseguiram
deixar-me lá até o término da 6ª série. A partir da 7ª série, voltei a estudar em uma escola
pública. Esta volta me marcou muito, pois senti as diferenças entre as escolas públicas e
particulares. Como a falta dos professores, por exemplo, tendo muitas vezes que voltar para
casa sem ter uma aula no dia.
Na 8ª série, mudei de escola novamente, indo estudar em outra escola pública que era
considerada “melhor”. Nesta escola, concluí o ensino fundamental e o médio. No 3º ano do
ensino médio essa escola teve que ser reformada, em razão de infiltrações, perdendo uns 40
dias sem aula, por não ter um local para estudar. Finalmente, conseguiram o lugar, mas era
um galpão. As salas eram separadas por divisórias de madeira, que só serviam para não
visualizar a sala ao lado, pois todos os sons podiam ser ouvidos nas outras classes. Por
conseqüência disso, o meu professor de biologia teve que se afastar por problemas nas
cordas vocais, ocasionados pelo barulho e pela poeira.
Foi nesta escola onde descobri realmente o que era vestibular. Mesmo tendo uma
irmã que estudava para a prova, nunca tive muito interesse. Talvez por pensar que era
impossível chegar lá. Nessa escola, havia uma coordenadora pedagógica que explicou
para nós o que era o vestibular.
Muito antes da prova, tomei conhecimento através de uma amiga de que havia um
cursinho pré-vestibular para estudantes de escolas públicas. O cursinho era gratuito, mas
havia uma prova de seleção, pois havia um número limitado de vagas. Sabendo disso,
comecei a estudar para a prova de seleção do PREVUPE (cursinho pré-vestibular promovido
pela UPE - Universidade de Pernambuco). Quando o resultado saiu, fiquei muito feliz por
ter conseguido a vaga, mesmo sem saber o que queria realmente fazer (dúvida comum a
muitos estudantes).
Após saber o resultado da seleção, comecei a estudar no cursinho. Esse pré-vestibular
é dividido em turma A, que funciona durante a semana; e turma B, funcionando no final de
Graduando em Biologia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
149
semana. Como cursava o 3º ano escolar pelo turno da manhã, optei por fazer o cursinho no
fim de semana. No começo era tudo muito bom, mas com o passar do tempo comecei a ficar
cansado com a rotina desgastante.
O cursinho era longe da minha casa e eu tinha que pagar passagem para estudar. O
cansaço era grande, pois eu estudava durante a semana na escola e no fim de semana no
cursinho. Com este cansaço não liguei para estudar em casa, pensando que só em freqüentar
aulas era possível passar no vestibular.
Um dia a UPE ofereceu uma feira de profissões. Como era ela quem organizava o curso
pré-vestibular, decidiu levar os estudantes para a feira. Eu ainda não sabia o que iria fazer e
já estava entre junho e julho. Na feira, decidi fazer vestibular para biologia. Tentei, então,
uma vaga para Licenciatura em Ciências Biológicas.
No dia do vestibular, vi que a prova era mais difícil do que pensava. Mesmo assim,
consegui passar na 1ª fase, mas na 2ª fase não obtive sucesso e não passei no vestibular.
Fiquei muito triste por não ter conseguido êxito.
No ano seguinte, decidi fazer um curso de informática, já pensando no mercado de
trabalho. Mas com o incentivo de umas amigas, decidi fazer a prova de seleção do curso prévestibular que havia estudado no ano anterior. Só que neste, eu resolvi estudar durante a
semana, que tinha um horário maior que o final de semana.
Passei novamente na seleção para estudar no cursinho. Meus pais me deram apoio
para estudar, mesmo depois de haver terminado o ensino médio. Como o curso de informática
era pela manhã, eu tinha que faltar um dia no pré-vestibular. Com este curso de informática,
o aluno tinha o direito de estagiar para se preparar para o mercado de trabalho. O estágio era
de segunda a sexta durante o turno da tarde. Então, eu estudava pela manhã e estagiava
durante a tarde. Essa rotina teve duração de 3 meses.
O nervosismo aumentava com a chegada do vestibular. Esse nervosismo é comum
à maioria dos que fazem esse exame, pois a sensação é de que a vida está sendo decidida
em uma prova.
Logo após a 1ª fase do vestibular, saiu a listagem de quem havia passado para a 2ª fase,
e eu havia conseguido passar. A minha nota foi até razoável, mas percebi que teria que
continuar estudando as matérias que tinham importância para o meu curso. Ao final das
provas, eu sempre saía pensando que tinha feito uma má prova, e com isso, no final da 2ª
fase, cheguei a pensar que não conseguiria passar. Quando a lista dos aprovados no vestibular
saiu, fiquei sabendo que eu tinha passado. Com a notícia, fiquei muito alegre, sem querer
acreditar que havia conseguido passar em Licenciatura de Ciências Biológicas na UFRPE.
No início das atividades na universidade, foi tudo muito bom. Mas com o passar de
algum tempo, fui percebendo que não era tudo aquilo que imaginava, pois descobri que se
era difícil entrar na universidade, também era difícil permanecer e terminar o curso. Um dos
problemas é defasagem sofrida no ensino fundamental e médio, o que acarretou na minha
dificuldade em acompanhar certos conteúdos ministrados na faculdade. Outro problema,
era como me manter financeiramente na universidade, pois, como estudo à tarde, a chance
de conseguir um emprego em meio expediente é bem menor. Pensei até em mudar o meu
horário para noite, mas só que não podia.
No dia da matrícula para o segundo período, uma amiga de sala me avisou de uma
vaga em um estágio remunerado e que não ocupava o dia todo. Quando procurei saber
150
Caminhadas de universitários de origem popular
maiores informações, descobri que era um projeto chamado “Conexões de Saberes”, que
visa a entrada, e principalmente, a permanência do aluno de origem popular na universidade.
Fui selecionado para participar desse projeto.
Mesmo passando algumas dificuldades, nunca pensei em desistir, pois quero
conseguir uma vida mais digna. Sempre tentando ultrapassar as barreiras da exclusão
social que afligem o Brasil.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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O sonho, o despertar, a vida e o desafio
Linalva Maria de Barros*
Primeira filha de uma família de cinco pessoas, nasceu, em 9 de janeiro de 1968, uma
bela manhã de terça-feira, Linalva. Como toda criança, aproveitou a infância antes e depois
do nascimento das irmãs. Levou muito puxão de orelha, por gostar de pular o quintal do
vizinho e correr atrás das galinhas. Sua mãe ralhava com ela, pois suas “trelas” incentivavam
as irmãs mais novas.
Aos sete anos, iniciou a vida escolar, em uma escola pública que ficava próxima do
bairro onde morava - Água Fria. A Escola Gabriela Mistral era espaçosa, aconchegante e com
muitas árvores. Dessa época, guardo poucas, mas valiosas lembranças: a professora da 1ª
série, Maria José que estava sempre no portão do pátio para receber os alunos; o porteiro, Sr.
Antônio; e a saudosa merendeira, Dona Esmerinda, ela fazia uma merenda deliciosa, que era
repetida por todos.
Durante o tempo em que permaneceu na escola, da 1ª a 8ª série, Linalva foi,
carinhosamente, apelidada de “Pingo de gente”, por ser pequenina e franzina. Final de
1982, e “Pingo de gente” se entristecia, porque não poderia participar de sua formatura. Sua
mãe, uma humilde lavadeira, ganhava muito pouco - apenas para o sustento da família - e a
participação na festa ficou apenas na vontade.
Muito estudiosa, Linalva optou por outra escola, também estadual, localizada em um
bairro distante daquele em que residia. Seria necessário, portanto, pagar por uma condução.
Sua mãe não aceitou a escolha, argumentando que o dinheiro mal dava para manter a casa
e que não seria possível a tal condução. A pequena não se abatia, porém, muitas vezes,
seguia para a escola a pé.
A vida para ela, nessa nova etapa não foi boa. Teve muitas dificuldades: indiferença,
por não pertencer ao mesmo nível social; ser uma das poucas a usufruir a merenda da
escola... diante desse cenário, o seu despertar foi desolador, intensificando-se nas notas,
teve de amargar a repetência. Mais uma vez, não se deixou abater e seguiu em frente.
No término do ano letivo de 1985, Linalva concluía o segundo grau. Eleita a melhor
aluna, compareceu à sua festa de formatura, com direito a vestido novo, nervosismo, beijo
no rapaz mais bonito da escola e discurso. Saiu de lá com um sorriso nos lábios e cheia de
coragem para enfrentar os desafios que estavam por vir.
Para encarar a vida, precisava de recursos. Foi trabalhar no comércio, desenvolvendo
diversas atividades: balconista, crediarista, operadora de caixa, embaladora, e até gerente.
Graduanda em Ciências Sociais.
152
Caminhadas de universitários de origem popular
Para exercer todas essas funções, empenhou treze anos de sua vida e distanciou-se de seu
objetivo principal: a universidade.
Aos trinta e cinco anos, estava desempregada, endividada, sem nenhuma perspectiva
e sem nenhum dinheiro.
Foi em uma conversa com o namorado que ela decidiu fazer o vestibular. Não foi assim,
de cara. Discutiram muito, pois, independentemente de seu desejo de retomar os estudos,
Linalva, depois de treze anos, não estava tão confiante e usava a falta de tempo para uma
melhor preparação - oito meses... tão pouco! - como motivo para não fazer as provas.
O tempo, porém, era de encarar os desafios e não de impor obstáculos a si mesma. Com
essa consciência, apesar das críticas de sua mãe, ela decidiu correr atrás de seu ideal. Enfrentou
caminhadas, sonolência, cansaço, atraso e muita correria.
No dia marcado, foi fazer a prova do vestibular, a primeira fase. Saiu-se bem, conseguiu
passar. Porém, esse dia, o da prova, foi interessante pelos acontecimentos: ao chegar no
local, duas horas antes, de acordo com orientações. E deparou-se com pessoas nervosas, não
entendia toda aquela agitação. Porém, não se importou, na hora da prova relaxou, tirou uma
soneca, e os sapatos... afinal dispunha de 4 horas.
Dias depois, o resultado, aprovada, felicidade tamanha, venceu o primeiro desafio.
Mas ainda havia outro por vir, a segunda fase, a definitiva.
Esse momento finalmente chegou, pânico, aflição, mãos suadas. Fez a prova, aguardou
dias (ansiedade) e finalmente o resultado: aprovada. Que alegria! Inacreditável, ficou noites
sem dormir, mais uma etapa vencida! Passados todas as comemorações, chegou o momento
de ingressar de fato na Universidade. Com o comprovante de matrícula em mãos, a jovem
finalmente, universitária.
Hoje, cursando o 7o período de Ciências Sociais, a jovem Linalva é conexista, trabalha
no projeto Conexões de Saberes, em parceria com a Escola Aberta para promover a inclusão
Social de jovem e permanências na Universidade.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Eu, “Gostosinho”
Luciano dos Santos da Silva*
Eu queria ser um peixe, pra comer a carne
de charque
Eu queria ser uma abelha pra andar de
caminhão
Eu queria ser uma foca pra jogar bola de
gude
Eu queria ser uma formiga pra tomar
refrigerante
Eu queria...
Em 6 de março de 1987, nascia um menino que se tornaria a promessa de que a Física
do Brasil teria um de seus maiores representantes de todos os tempos... bem, eu acho que
este início está muito profético. É melhor começar escrevendo sobre minha família.
Minha família já foi muito pobre; hoje, continua pobre, só que agora está melhor. Meu
pai, que tem 44 anos, sempre foi um homem trabalhador; logo cedo (na adolescência), teve
que trabalhar para ajudar no sustento de seus irmãos, pois meu avô tinha falecido. Ele
sempre me conta que, naquele tempo, a situação era muito difícil e que chegava a faltar
comida, por isso tinha que trabalhar. Ele nunca se interessou por estudar; quando ia à
escola, parava no caminho para jogar bola de gude. Concluiu apenas a 1ª série do ensino
fundamental. Por não ter estudado, perdeu boas oportunidades de emprego, e angustiado
quanto a isso, resolveu me incentivar a estudar desde cedo.
Minha mãe, que também morava no interior do Estado, ainda jovem, conheceu meu
pai, e depois de algum tempo, resolveram se amasiar. Ela tem 39 anos e teve sua primeira
filha (minha irmã mais velha) aos 18 anos. Depois de dois anos, sabe quem nasceu? Eu!
Luciano (o “Gostosinho”). Ainda nasceram mais dois irmãos, que hoje têm 16 e 14 anos.
Agora sim, começarei a escrever sobre mim. Meu relato, até mesmo pelo título e pelos
versos iniciais, será suficiente para dizer quem sou.
Eu fui criado em um sistema muito rígido de educação familiar. Minha família veio
morar na cidade do Cabo de Santo Agostinho quando eu tinha dois anos de idade. Só
comecei a estudar aos sete anos. Como já estava “velho” para fazer Jardim de Infância, Préescolar e Alfabetização, ingressei direto para a 1ª série do Ensino Fundamental. Ainda
lembro do primeiro dia de aula que, para mim, foi horrível, pois me sentia estranho, tinha
Graduando em Física.
154
Caminhadas de universitários de origem popular
medo da professora e não conhecia nenhuma outra criança da turma. A escola, que era
pública do município, só oferecia ensino até a 4ª série do Fundamental, e depois de seis
meses cursando a 1ª série, fui para a 2ª. Concluí a 3ª e a 4ª série e mudei de escola.
Antes de dizer como foi minha passagem pela outra escola, gostaria de relatar que só
aprendi a ler e a escrever por causa dos puxões de orelhas, quando tinha lição para fazer.
Lembro, ainda, que levei uma surra quando cursava a 3ª série, porque não prestava atenção
à aula e vivia bagunçando. Hoje, agradeço meus pais pela surra - ela foi decisiva em minha
trajetória escolar.
O meu Ensino Fundamental II (da 5ª a 8ª série) foi tranqüilo, devido à facilidade com
que aprendia as coisas. Sempre fui destaque nas turmas. Cheguei ao Ensino Médio sem
saber o que era um vestibular. Foi então que, em 2002, quando estava no segundo ano do
curso e com apenas quinze anos, resolvi fazer minha primeira prova de seleção para um
curso. A prova era para o Técnico de Eletromecânica oferecido pelo Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (SENAI). Soube das inscrições para o curso no dia em que elas se
encerravam; o prazo estendia-se até às 16h e só cheguei ao local às 15h30min. Garanti,
todavia, minha inscrição.
Fiz a prova, e para minha decepção, no dia da divulgação do resultado, meu nome não
estava na lista dos aprovados. Nesse dia, fiquei muito triste. A tristeza foi embora alguns dias
depois, quando o coordenador de educação do SENAI ligou para casa, explicando a ocorrência
de um equívoco: meu nome deveria constar da lista. No dia seguinte, matriculei-me.
Como a prova aconteceu no final de 2002, só iniciei o curso em fevereiro de 2003,
quando também iniciava o terceiro ano do Ensino Médio. Por meio do curso, fiquei sabendo
o que era um vestibular, mas decidi que não o faria, pois acreditava que não teria chance de
ser aprovado, por nunca ter estudado em escola particular.
Em maio de 2003, inscrevi-me para a prova de seleção do Rumo à Universidade, Programa
Pré-vestibular oferecido pelo governo do Estado de Pernambuco, que disponibilizava uma
bolsa de R$ 50,00 para auxiliar no transporte e na alimentação do estudante. Só fiz a inscrição
para esse Programa no último dia e por ter sabido da bolsa-auxílio.
Fiz a prova, e passados alguns dias, o coordenador-geral do Programa ligou para minha
casa e deu-me o resultado, antes mesmo que ele fosse divulgado: havia sido aprovado com nota
dez, por ter acertado as vinte questões da prova (dez questões de Português e dez de Matemática).
Parabenizou-me e perguntou se eu poderia comparecer à Secretaria Estadual de
Educação. Respondi-lhe que seria difícil, pois não saberia chegar à Secretaria, como também
não possuía dinheiro o bastante para a passagem (imaginem a situação: a passagem custava
um pouco mais que cinco reais, ida e volta, mas em casa não tínhamos esse dinheiro). Disseme, então, que eu conseguisse o dinheiro emprestado, o importante era a minha presença o dinheiro seria reposto na própria Secretaria.
Arrumei o dinheiro emprestado e chamei um colega que sabia como chegar à Secretaria.
Ao chegar lá, fui cumprimentado e ouvi a explicação de que dezesseis mil e duzentos
alunos participaram da seleção e que vinte e três foram aprovados com nota máxima, sendo
eu um desses alunos. Fomos chamados para receber uma homenagem no Palácio do Governo,
onde estavam presentes o governador e outras autoridades.
Esse foi meu momento de fama. Fui escolhido dentre os vinte e três, por ser o mais
jovem: tinha apenas dezesseis anos; recebi quatro livros, doados por uma Editora, das mãos
do governador. Como a solenidade contou com a presença da imprensa, dei várias
Universidade Federal Rural de Pernambuco
155
entrevistas para os jornais de circulação no Estado, além de ser filmado pelas emissoras
de TV. No dia seguinte, a foto do governador apertando minha mão, estampava todos os
jornais. Esse feito ainda rendeu-me duas homenagens: uma na Assembléia Legislativa e
outra na escola em que estudava.
Em julho desse mesmo ano, consegui meu primeiro emprego, como aprendiz de
Técnico em Eletromecânica. Começou, assim, uma rotina cansativa. Freqüentava o curso
Técnico pela manhã; do curso, ia direto para o trabalho, à tarde; e do trabalho, ia direto à
escola, à noite. No final de semana descansava, certo? Errado. Agora, tinha de freqüentar
o cursinho do Rumo à Universidade, que se realizava no sábado, durante todo o dia, e no
domingo, por boa parte dele.
Diante da rotina, desestimulei-me. Não faria mais o vestibular. Fiz, no entanto, o
simulado do Programa, e como obtive uma boa nota, ganhei a isenção da taxa de inscrição
dos vestibulares da UFRPE/UFPE e da UPE.
Fiz o vestibular 2004 para o curso de Física na UFRPE e para o de Engenharia Mecânica
na UPE. Não consegui ser aprovado na UPE, e na UFRPE, consegui passar apenas na primeira
fase. O resultado serviu de estímulo, tendo em vista que não esperava passar nem na primeira
fase. Resolvi fazer o vestibular 2005 para os mesmos cursos, e para minha surpresa, fui
aprovado nas duas instituições.
Como não poderia manter os dois cursos, pois teria de trabalhar, escolhi o de Física,
por realizar-se no período noturno. Sempre gostei de Física. Na verdade, a relação mais
intensa com a Física, e que me induziu à sua escolha, deu-se no curso Técnico. Sou um
apaixonado por ela.
No início de meu curso de Física, a professora de Psicologia perguntou a toda a sala
por que tínhamos escolhido Física; quando chegou minha vez de responder, disse: “Porque
Física é muito gostosinho. Eu chego a ficar arrepiado, quando a estudo!” A partir daí, a
turma começou a me chamar de “Gostosinho”.
Cursava o terceiro período, quando fiquei sabendo do Programa Conexões de
Saberes. Resolvi fazer a inscrição, motivado, principalmente, pela bolsa oferecida. Se
essa era a motivação inicial, tive de render-me à sua proposta. Foi no Conexões de Saberes,
dentre outras coisas, que o apelido “Gostosinho” se consagrou: sempre que concluíam as
atividades em nossa capacitação como “oficineiros”, os “facilitadores” perguntavam como
percebíamos aquele momento em que aprendíamos múltiplos conhecimentos, eu respondia
que estava sendo “gostosinho”.
Outro momento muito importante para mim, foi quando recebi o troféu de Destaque
2005 do bairro em que moro. Meu esforço e minha dedicação eram reconhecidos por toda a
comunidade. Fiquei muito agradecido e honrado. A felicidade era muito grande.
Antes de concluir meu Memorial, gostaria de explicar os versos iniciais: eles foram
compostos por minha turma do curso Técnico e são algo que me representa, uma vez que,
assim como esses versos, não vejo muito sentido nas coisas postas no mundo. Talvez,
porque elas devam ser vividas e não, necessariamente, fazerem sentido.
Espero que meu Memorial, apesar de longo, possa ser percebido por seus leitores
como “gostosinho”. Encontros e desencontros, caminhos e descaminhos, idas e vindas,
acontecem e acontecerão, mas eu sempre serei Luciano, vulgo “Gostosinho”.
156
Caminhadas de universitários de origem popular
Caminhadas: a história de minha vida
Luis Carlos Cipriano*
Como é importante perceber o quanto modifiquei nestes 29 anos de vida. Nasci
numa família simples do bairro de tejipió, zona sudoeste do Recife, quase na divisa da
cidade do Jaboatão dos Guararapes, por sinal, sou natural de lá. Minha infância era em
meio às árvores frutíferas da região, hoje, quase que não mais existem, pois, as casas e o
comércio já tomaram conta de tudo.
Quando iniciei minhas primeiras séries, pude perceber o quanto era bom ler, escrever
e porque não dizer, falar. Desde o ensino fundamental II aprendi a gostar de tudo o que
envolvia o ensino, a aprendizagem. Talvez não tivesse tão claro para mim o que era tudo
aquilo, mas já percebia o que o destino me reservava. Neste momento, quero recordar três
mestras que foram importantes na minha formação primária, Solange Mota, Albertina Delmiro
e Maria das Graças Gomes de Freitas, esta última, uma verdadeira mãe.
Sabendo elas de minhas limitações, tanto financeira, quanto de estudo, sempre me
ajudaram no que era possível; reforço, atenção, e até auxiliando na compra de algo que
não podia comprar. Creio que minha maior dificuldade foi deixar aquela escola, porém,
percebo que ali foi apenas o começo, local onde fincava minhas raízes. Um fato que
penso ser importante citar, é que todo meu ensino fundamental foi feito em escola
particular, com bolsa integral patrocinada pela empresa em que meu pai trabalhava em
parceria com o governo federal.
É uma pena que esse tipo de programa não exista mais, pois acredito que ele auxiliaria
no processo de educação fundamental no país. Ou seja, promoveria um acesso maior de
crianças à educação fundamental.
Quando entrei no ensino médio, percebi a fragilidade da escola, mesmo sendo técnica,
faltavam professores, laboratórios, e os poucos que tinham estavam sucateados. Pouco
aprendi na escola as matérias que favoreceriam meu ingresso em uma universidade pública.
Os poucos professores que nos ensinavam incentivavam o nosso ingresso no vestibular.
Mesmo assim, sabiam eles que nem tudo era muito simples.
Em nenhum momento cheguei a desistir, estudei por conta própria, e depois de três
tentativas passei.
Ao entrar na universidade, percebi o quanto esse caminho seria mais tortuoso que os
anos anteriores: dinheiro curto, passagem faltava, fome apertava e xérox a dever. Tudo era
muito novo, mesmo querendo continuar, sentia as dificuldades existentes.
Graduando em Normal Superior.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
157
Buscava informações e maneiras de sanar o problema, mas a burocracia emperrava
qualquer alternativa que procurava. Só escutava: “O governo não envia verba, tudo está
sucateado... aguarde uma bolsa que breve irá sair”. Nossa, quanto tempo esperei...! Porém,
não desisti, foram muitos projetos como voluntário. Isso me fez crescer, e muito. No princípio,
pensei que só seria tempo perdido e que nada me valeria como experiência em minha
formação. Hoje, já observo tudo com outros olhos.
Nesse período, muitas oportunidades apareceram, e dentre elas, o Programa Conexões
de Saberes.
Quando resolvi me escrever para o mesmo, pensei em dar continuidade às atividades
que exercia na extensão universitária, através do programa Escola Aberta. Neste, concorri
com 800 alunos, e consegui estar entre os 108 selecionados do ano de 2006. Atualmente,
realizo oficinas integradas na escola São Paulo, que se localiza em um engenho do município
de Ipojuca, mata sul de Pernambuco.
O Conexões de Saberes além de propiciar um maior desempenho dentro da área de
extensão em que atuo, (comunicação pessoal, vídeo e arte) também possibilitou minha
permanência na universidade.
Nesses quatro meses, pude perceber uma melhora em tudo aquilo que estou desenvolvendo,
inclusive o apoio a minha mantença (passagens, livros, xérox...) na academia.
Portanto, o Programa Conexões de Saberes, acredito ser, um dos mais específicos do
MEC no momento. Pois, possibilita a permanência e o desenvolvimento na universidade de
alunos oriundos de escolas públicas.
Talvez a princípio, este programa aparente ser mais um daqueles que venham para
ocupar espaços na política pública, porém, quando adentramos em sua essência verificamos
sua necessidade em estar presente nos anos que estão por vir.
Enfim, o Conexões de Saberes é um programa ousado que auxilia alunos como eu, no
seu progresso dentro do campi universitário, possibilitando um maior desempenho nas
atividades acadêmicas.
O que percebo é que este trabalho de extensão nos leva a refletir passado e lançar-se
para o futuro, criando uma expectativa de oportunidade para aqueles que mal ingressaram
na universidade pública e já sofrem por não conseguirem manter-se na mesma.
Acredito que com esse programa será possível não só manter-se na academia, mas
possibilitar o ingresso de outros alunos oriundos de escolas públicas ao universo universitário,
criando assim, uma rede de ajuda e auxílio mútuo, governo - universidade - aluno.
158
Caminhadas de universitários de origem popular
Escrevendo uma história e
modificando o convencional
Magda Maria da Silva Santana*
Em 1986, ingresso no ensino fundamental I, em uma escola privada no bairro de
Maranguape II, Paulista. Permaneci nela até a alfabetização. Não tenho muitas recordações,
apenas sei que o nome da escola era Educandário Tio Patinhas e que nela fui muito feliz.
No ano de 1989, aos seis anos de idade, entrei para cursar a 1ª série do ensino
fundamental na Escola Estadual Maria Alves Machado, também no bairro de Maranguape
II. Tive de refazer nesta escola a alfabetização, mesmo já sabendo ler, pois devido ao sistema
da escola que cumpria a determinações, certamente da Secretaria de Educação, não podia
cursar a 1ª série antes dos sete anos de idade. Nesta escola, fiquei até a 4ª série do ensino
fundamental. Na minha história de estudante, não tive grandes dificuldades, a não ser o fato
de estudar em escola pública e sofrer suas conseqüências: ter dificuldades em passar no
vestibular por falta de um devido preparo, enfrentar greves, e com isso, ter um rendimento
escolar abaixo do necessário, encarar a falta de professores, dentre outros exemplos.
Lá em casa, somos três filhos, e eu sou a mais nova. Minha mãe não conseguiu terminar
os estudos, fez a opção de tomar conta da família, talvez ela não conseguisse compreender
a importância deste ato, ou simplesmente era feliz na vida que escolheu. Meu pai, concluiu
o ensino médio e é técnico em contabilidade. Sempre conseguiu manter a família com o
salário que ganhava, claro, dentro das possibilidades, mas nunca nos faltou às necessidades
básicas. Contudo, tivemos de abrir mão de alguns “privilégios”, e um deles foi estudar em
uma escola privada.
Sempre me saí bem nas provas e conseguia passar de ano sem nenhuma dificuldade.
Concluí a 4ª série e meus pais já fomentavam em mim a idéia de estudar no Colégio Municipal
José Firmino da Veiga, no município de Paulista, região metropolitana do Recife, que, na
época, era uma das escolas em que todos os pais queriam que os filhos estudassem.
Eu ainda não compreendia o que significava tudo aquilo, mas entendia que seria bom,
para mim, estudar em uma escola de qualidade. Fiz um preparatório, ainda lembro das aulas
de reforço na rua onde moro, com a professora Andréa. Estudei, fiz o teste de seleção,
embora não tenha obtido uma das melhores colocações, ainda lembro que consegui 6, 8,
classificando-me para a 5ª série A daquela escola.
Foi um barato estudar no Colégio Municipal José Firmino da Veiga, pois eu, aos 11
anos de idade, ia com os demais colegas do bairro, estudar longe de casa. Eu me sentia
muito livre, adulta, responsável; podia inclusive pegar ônibus sozinha. Era muito divertido.
Graduanda em Ciências Sociais.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
159
Fiz todo o ensino fundamental II e ensino médio nesta escola. Após concluir a 7ª série,
uma greve de oito meses assolou a escola e fez cair muito o nível de ensino. Por esta razão,
cheguei até a matricular-me em uma outra escola, lá no bairro de Maranguape II, onde moro
até hoje, mas neste intervalo, as aulas retornaram e acabei voltando para a escola anterior.
Nos anos seguintes, era visível a diferença no que se refere à qualidade do ensino,
no Colégio Firmino da Veiga, se compararmos aos anos anteriores, mas assim mesmo,
continuei a estudar lá.
Após a 8ª série: a grande dúvida! O que fazer depois de concluir o 2º grau. Já era latente,
em especial na minha família, a idéia de que eu deveria fazer um curso profissionalizante,
para que eu pudesse logo arrumar um trabalho.
Influenciada por reconhecer a necessidade de ter um trabalho, por ver em meu pai o
espelho de uma profissão, escolhi fazer ainda, nesta escola, o curso técnico de contabilidade.
Nesta época, ano de 1997, tinha 15 anos, estudava à noite, e paralelamente ao curso, também
trabalhava em um escritório na função de digitadora. Foi neste contexto, que concluí meu
ensino médio, e o curso profissionalizante em 1999.
Não pensava em vestibular no ano em que concluí o ensino médio, mas fazer um curso
noturno e profissionalizante tem lá suas desvantagens. Saí do ensino médio pensando em
fazer um possível cursinho pré-vestibular, para só depois, ou seja, no final do ano seguinte
ao da conclusão, tentar o vestibular.
Concretizando meus planos, fiz o planejado cursinho, só que por falta de recursos,
optei por um pré-vestibular lá na comunidade, numa escola privada. Mas a idéia não deu
muito certo. Alguns professores contratados, desistiram de dar aulas por falta de estímulo
financeiro e acabamos sem professores de algumas disciplinas.
Consegui entrar no CEFET-PE, no ano de 2001, para o curso técnico de turismo,
grandes expectativas mantinha com relação ao curso. Consegui concluí-lo no ano de 2003,
mas meu objetivo de entrar qualificada no mercado de trabalho, mais uma vez, ficou de
lado. Entrar no CEFET-PE, para mim, foi uma grande conquista, porém, terminava o curso
um pouco frustrada com o sistema público de ensino. Apesar disso, foi no CEFET-PE que
percebi a importância de ter um curso superior. Foi lá que a vontade de ingressar na
universidade tomou forma mais concreta.
No final do ano de 2003, ano em que concluía o curso, no CEFET-PE, tentei o vestibular,
fiz o PREVUPE, um preparatório para o vestibular, que a Universidade de Pernambuco
oferece para estudantes oriundos de escola pública, mediante processo seletivo. Estudava
no PREVUPE no fim de semana, e nesta época, ajudava meu pai em seu escritório de
contabilidade. Também prestei vestibular para o curso de Serviço Social, na Universidade
Federal de Pernambuco.
A escolha pelo curso de Serviço Social se deu pelo motivo de estar escolhendo algo
com o qual me identifico. Porém, obtive uma média abaixo da do curso escolhido. Naquele
ano, mais uma vez não passei.
A vontade de estar na faculdade era maior que minhas dificuldades: além de enfrentar
problemas financeiros, fiz no ensino médio a opção por um curso profissionalizante, e por
isso, deixei de estudar algumas disciplinas indispensáveis para quem sonha ingressar numa
universidade pública.
Mas no ano de 2004, fiz novamente a seleção para o PREVUPE e voltei a me preparar
para o vestibular.
160
Caminhadas de universitários de origem popular
As responsabilidades acompanham o tempo, e nesta época, já com 22 anos, percebia
e tinha a necessidade de trabalhar. Foi por esta razão que optei fazer o preparatório no final
de semana, e assim, ter mais tempo para estudar à note, horário em que estava em casa.
Um dos fortes motivos que me direcionou para a escolha do curso que faço hoje:
Ciências Sociais, foi mesmo uma questão de identidade. Sempre gostei de procurar
compreender melhor as pessoas, e claro, dentro do possível, encontrar uma maneira de
ajudá-las. Também o horário do curso e a concorrência contaram bastante; logo, desisti
do curso de Serviço Social, que ainda é um curso apenas diurno na rede pública de ensino,
e escolhi Ciências Sociais, por ser um curso que também trataria do social, de sociedade,
de seres humanos.
Agora, sim! Prestei o vestibular no final do ano de 2004 e fui aprovada. Não quis ver
o resultado. Embora tivesse passado numa boa colocação na 1ª fase, fiquei apreensiva.
Na época, trabalhava em um sindicato, e todos os amigos de trabalho esperavam também
ansiosos pelo resultado. Recebi a notícia por telefone através de uma amiga que viu o resultado.
Chorei bastante, e pude experimentar o gosto de conquistar algo com muito esforço.
Consigo perceber às dificuldades da universidade pública e tenho total consciência
do processo pelo qual passei para entrar, e pelo qual passo para permanecer, na universidade.
Ao longo desta minha jornada, é impossível não reconhecer a ajuda, compreensão, o apoio
moral e financeiro dos meus pais, amigos e namorado, que estiveram comigo em boa parte
de todos estes momentos.
Continuo “escrevendo” minha história, estou trabalhando na função de auxiliar
administrativo, desenvolvo algumas atividades junto a uma ONG. Também, agora, participo
do Programa Conexões de Saberes, e reconheço, neste projeto, a importância de trabalhar
para se ter uma sociedade modificada por meio da educação.
Tenho planos para o futuro. Apesar de me identificar com o curso, não sei se apenas
essa graduação será suficiente para minha realização profissional. Penso numa pós-graduação,
talvez um outro curso superior. Procuro, no entanto, não esquecer de toda a necessidade que
emana da sociedade brasileira, em especial a parte que cabe aos jovens de origem popular,
que assim como eu, sonharam e sonham em ingressar na universidade, por escreverem uma
história parecida, igual ou diferente da minha, conseguindo ou não ingressar na universidade.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
161
Memorial
Malike Erike *
Estudei em escolas públicas e particulares e fiz do primário até a 4ª série onde com
viagens e viagens dos meus pais, por causa de emprego, minha família sempre estava se
mudando entre Maceió e Recife. Tive que passar por vários colégios antes de fazer todo o
ensino médio em Recife.
A 1ª série eu fiz em Maceió, 2ª série vim para Recife em colégio particular, e a 3ª série
como a situação financeira dos meus pais foi ficando pior e sem emprego colocaram a mim
e ao meu irmão na escola estadual Bandeira de Melo, onde fiquei até a 4ª série, fui transferido
para outra escola, também estadual na 5ª série, onde passei maus bocados, sem professor,
roubos, muitas crises de asma, e o colégio muito longe, passei me arrastando.
Na 6ª série voltamos (eu e o meu irmão) para um colégio particular, pois meu pai tinha
recebido os direitos da firma. Mas durou pouco, na metade da 7ª série, ele teve que nos tirar da
escola porque o dinheiro tinha acabado. Só consegui vaga em Recife onde tinha que ir de
ônibus e acordar às 5h para chegar na hora. No final do ano, minha avó me chamou para trabalhar
ganhando um trocado. Eu juntava tudo que ganhava e pagava o colégio, mais uma vez particular.
Passei um ano assim. Foi quando comecei a não ficar em casa nos fins de semana...
No 1º ano fui transferido e voltou a mesma história: acordava às 5h para chegar a tempo
e chegava em casa quase às 14h para almoçar e nos fins de semana saía para trabalhar no “bar
do caranguejo”, onde passei o 2º e o 3º ano nessa. Resultado: 1º vestibular e nada.
O 2ºvestibular passei, mas enquanto esperava o começo das aulas, fui trabalhar na
oficina do meu tio durante toda semana: “bar do caranguejo”, até que, em maio de 2002,
faltando pouco tempo para começar as aulas, num dia de trabalho na oficina me mandaram
ir depositar alguns cheques para firma e no caminho fui atropelado e só acordei 20 dias
depois, estava na UTI do hospital da Restauração, por onde passei mais 12 dias para ter
condições de ser removido para casa, acho que só recobrei a consciência depois de 15 dias
em casa com a diminuição das doses dos remédios para a dor, isto foi uma barra pra mim um
cara esforçado, estudioso, agora sem força nem para levantar da cama.
Após a primeira ressonância, descobriram 2 coágulos no meu célebro, onde os médicos
disseram a minha mãe que eu poderia ficar em estado de semi-consciência por tempo
indeterminado e passaram novos remédios para reverter o quadro, alguns, minha mãe
conseguiu, mas tivemos que comprar os outros. Eu tinha momentos de lucidez...
Graduando em Agronomia.
162
Caminhadas de universitários de origem popular
Meu pai me matriculou no 1º período, mas após 15 dias meu quadro piorou e o médico
me mandou esperar para o próximo período porque daria mais tempo para me recuperar e não
me lembrei de trancar a matrícula, terminei reprovando em todas as sete cadeiras do 1º período.
Após esperar o tempo da recuperação, comecei de novo o 1º período onde aos trancos
e barrancos consegui passar em 5 cadeiras, fui para o 2º período agora com 8 cadeiras,
no total passei em 7, 3º período 7 passei em 6, 4º 8 passei nas 8... e agora estou no 9º período
com 8 cadeiras e trabalhando no “bar do caranguejo” nos fins de semana, onde comecei a
trabalhar a partir do 1º ano do ensino médio.
Faço Agronomia, e trabalhar com coisas que faço desde meus 14 anos e eu tenho
orgulho de levantar todo dia para ganhar mais um dia de trabalho, e agradeço a Deus por me
conceder cada dia da minha vida onde tento conciliar trabalho, estudo, diversão, esporte e
na maioria das vezes orientar outras pessoas.
Cada indivíduo tem que saber que seu futuro, tem que estar relacionado com estudo,
atividade física, diversão e responsabilidade, onde os pais teriam responsabilidade com
esta parte, pois são eles em que nós nos espelhamos para ter sucesso na vida e poder construir
nossa própria família. E será a essa família que passaremos a ter esta obrigação, que nossos
pais tinham e por nossa responsabilidade cumprí-la com toda a atenção necessária para o
sucesso de nossos filhos. Trabalhar, nos traz responsabilidade de cumprir com nossas tarefas,
respeitar regras, nos faz conviver em sociedade, afinal, conhecer nossos direitos é um dever.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
163
Minha trajetória
Manoel José da Silva*
Confesso que, para chegar onde cheguei, a caminhada foi muito difícil, mas com
coragem e fé, consegui obter êxito em meus estudos. Meu nome é Manoel José da Silva,
nasci em 12 de março de 1975, no Município de Aliança, no interior do Estado. Lá, morei
até os 3 anos de idade; logo após, fomos morar em São Lourenço da Mata. Sou filho de
Maria Ana da Conceição, que trabalhava na roça de café e na colheita de banana da região,
e filho de José Inácio da Silva, de cuja função não me recordo.
Quando tinha três anos de idade, meus pais se separaram, por causa de um atentado
contra a minha vida. A partir daí, minha família decidiu mudar de cidade; fomos morar
em São Lourenço da Mata, localizada na região metropolitana de Recife. Foi então que
tive uma nova vida, junto com meus familiares. Aos seis anos, consegui uma vaga no
PROAPI, hoje jardim da infância, na Escola Conde Corrêa de Araújo, graças à iniciativa
de minha mãe que, apesar do baixo grau de instrução, percebeu com consciência a
necessidade de educação.
Minha infância foi ativa e cheia de aventuras e desafios: jogar futebol, jogar bola de
gude, empinar pipa e andar de carro de rolimã, foram as principais atividades realizadas por
mim. Sinceramente, não gostava de estudar, pois achava muito difíceis as disciplinas
Matemática e Português, mas gostava de Ciência e Geografia. Fiquei fora da escola durante
uns três anos, devido às mudanças de cidades, acompanhando minha mãe, prejudicando a
minha trajetória na escola.
Aos treze anos, ingressei na 5ª série do primeiro grau, hoje Ensino Fundamental I,
também na Escola Conde Corrêa de Araújo, onde cursei até a 8ª série, por fim, me formando.
Com catorze anos, comecei a trabalhar em construção como servente, com o intuito de
conseguir dinheiro para auxiliar nas despesas de casa e da escola. Ficava difícil conciliar a
escola com o trabalho, pois se tornava muito cansativo, prejudicando o meu desempenho
na realização das atividades escolares. Mesmo com muita dificuldade, estava enfrentando
esses problemas, juntamente com os problemas familiares, pois não tive muito apoio de
minha família a respeito de estudos.
Em 1992, consegui uma vaga para estudar o segundo grau ou Ensino Médio; foi então
que deixei o trabalho em construção e comecei a trabalhar em uma oficina mecânica, tendo,
da mesma forma, que conciliar estudos e trabalho, mas a partir desse período fui tomando
consciência da importância que a educação tem para o povo brasileiro, que sofre com a
desigualdade, o racismo e o analfabetismo.
Graduando em Agronomia.
164
Caminhadas de universitários de origem popular
Dessa forma, passei um ano e meio trabalhando como auxiliar de mecânico. Foi então
que abriu inscrição em um colégio Agrícola - “Colégio Agrícola Dom Agostinho Ikas” - que
pertence à Universidade Federal de Pernambuco; decidi deixar o trabalho na oficina e
ingressar nesse colégio. Agora, ficaria com uma responsabilidade muito grande, pois estudava
em duas escolas, uma pela manhã e outra no período da noite. Fazia, ainda, um curso de
eletricista no SENAI, no período da tarde, tomando todo o tempo restante.
No colégio agrícola, consegui várias amizades com alunos e professores. Foi lá que
percebi que o mundo funcionava de forma diferente, com novos conceitos, novas tecnologias,
longe da vida que levava, quando vivia sem ter o que fazer. Lá, convivi com a presença do
alcoolismo e das drogas, mas sempre segui os conselhos que minha mãe me dava, coisa que
prezo muito ainda hoje. Foi um período difícil, porque minha mãe trabalhava como lavadeira
de roupas e o dinheiro que ganhava não dava para os gastos da casa e da escola.
Durante o processo educativo, consegui vários objetivos, como: o estágio na estação
experimental de pequenos animais de Carpina, onde fiquei por quatro meses. Lá, tínhamos
que cozinhar nossa própria comida, que não era das melhores, saía muitas vezes do ponto:
ficando salgada ou sem sal, ou até mesmo queimada. Foi a partir dessas experiências, que as
portas se abriram. Surgiu um anúncio do colégio sobre vagas de trabalho no grupo Bompreço
de Supermercados; inscrevi-me, e depois de vários testes, consegui a vaga e tive meu primeiro
emprego com carteira assinada. Lá, trabalhava no período da noite.
Em 1996, quando já tinha terminado o segundo grau, Científico, pois o que cursava
no colégio era o ensino técnico agropecuário, prestei, pela primeira vez, o vestibular, na
Universidade de Pernambuco “UPE”, pleiteando uma vaga no curso de Geografia, mas não
consegui passar. No colégio agrícola, onde estudava já no último ano do curso, estavam
oferecendo a inscrição do vestibular totalmente gratuita, isenta de qualquer taxa. Preparei
a documentação exigida e entreguei-a à coordenação.
Foi então que comecei a me preparar para as provas. Tentei fazer um cursinho prévestibular, mas passei apenas dois meses nele: tive que o abandonar, pois as condições
financeiras não se apresentavam boas na época. A partir daí, comecei a estudar em casa,
usando o material do Rumo à Universidade, programa do governo que tem como objetivo
colocar o aluno de escola pública na universidade. Esse material era lançado toda semana
pelo Jornal do Commercio. Dessa forma, consegui me preparar para as provas do vestibular.
Com a inscrição em mãos, entregue pela direção do colégio agrícola, tentava uma vaga no
curso de Engenharia Florestal.
No dia da prova da primeira fase, fiquei muito calmo; deixando o nervosismo de lado,
consegui passar com êxito por este primeiro desafio. Para a segunda fase, fiz apenas algumas
revisões em Matemática e Química e estudei muita produção de textos. Fiz a prova de
segunda fase, mas não tinha certeza se passaria. Na época, estagiava em Carpina, cumprindo
a carga horária obrigatória do curso. Em uma manhã de segunda-feira, esperávamos o carro
para irmos ao estágio, quando os colegas me disseram que eu tinha passado no vestibular.
Não acreditei e compramos um jornal para conferir se era verdade que havia passado. Com
o resultado garantido, preparei a documentação, realizei minha matrícula e aguardei o
início das aulas.
No decorrer do curso, tive vários problemas para mantê-lo equilibrado: as passagens e
a alimentação foram os principais desafios enfrentados, por isso, foi necessário abandonar
os estudos por determinado período, a fim de trabalhar no Bompreço e no Supermercados S/A.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
165
Trabalhava à noite e não conseguia acompanhar o andamento das aulas, pois eu sempre
faltava para recuperar o sono perdido.
Em 1999, consegui, por intermédio de uma tia que mantinha conhecimento com a
empresa, um emprego no Grupo Votorantim Cimentos S/A, para o cargo de auxiliar
administrativo. Com isso, tranquei o curso por dois períodos, e depois, tranquei-o
alternadamente, ficando afastado da universidade por três anos. Devido a isso, atingi o
tempo limite de curso e obriguei-me a retomá-lo, ainda que não em condições ideais, o que,
em muito, me prejudicou, acumulando reprovações. Esse fato ocorreu no segundo período
e logo depois da retomada dos estudos, mas com muita fé em Deus e com um objetivo na
cabeça - ter uma formação superior -, esforcei-me bastante, superando desafios com a ajuda
de colegas que me socorreram com passagens e alimentação. Muitas vezes, entretanto,
passava fome. Não havia dinheiro nem apoio da família em relação aos estudos.
Quando fazia o nono período, abriu inscrição para o curso de Licenciatura em Ciências
Agrárias. Entreguei a documentação exigida para a prova de seleção, e depois de ter sido
avaliado por meio de entrevista e análise curricular, recebi o resultado da aprovação. Já no
primeiro período desse curso, e enfrentando iguais problemas (senão maiores, visto que o
outro curso estava na reta final), precisei optar por trancá-lo. Ao terminar o curso de
Engenharia Florestal, consegui maior tranqüilidade para cursar a licenciatura.
Foi por intermédio desse curso que consegui uma vaga no Programa Conexões de
Saberes, cujo objetivo está relacionado com alunos de comunidades populares, facilitando
sua inclusão em uma universidade pública. O projeto apresenta propostas maravilhosas,
como a articulação com as escolas abertas em nossas comunidades. No Escola Aberta,
trabalho com o tema Meio Ambiente e busco a sensibilização e conscientização das pessoas
a respeito do lixo, do saneamento básico, da reciclagem etc., para que possamos melhorar a
qualidade de vida e também gerar emprego e renda.
Finalmente, com a força de Deus e a ajuda de pessoas que souberam perceber meus
valores, tive a oportunidade de terminar o curso de Engenharia Florestal e melhorar de vida,
com um emprego melhor e que me permite cooperar mais com minha família. Com essa
formação, observo mais criticamente os acontecimentos que ocorrem no Brasil e no mundo.
Hoje, observo as florestas, os rios, os animais, um assentamento, uma comunidade popular,
com outros olhos, buscando impedir sua destruição e melhorar a qualidade de vida de toda
uma comunidade. No mundo em que vivemos, a vida é cheia de desafios, só que Deus
colocou o homem na Terra para solucionar os problemas provenientes do próprio homem.
Tento fazer minha parte.
166
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha vida
Marcio André Mendes*
Meu nome é Marcio André Mendes da Silva Costa, nasci no dia 20 de maio de 1986,
na Cidade do Recife no Estado de Pernambuco. Sou filho de Marcos Antonio Mendes da
Silva Costa, comerciante dono de uma mini-granja, e de Luciene Maria da Silva Costa, uma
mulher trabalhadora, e dona de casa. Tenho dois irmãos, Marcos Antonio Mendes da Silva
Costa Junior, Marion Anderson Mendes da Silva Costa, eles são bem legais e trabalhadores.
Moro no bairro de Nova Descoberta. Logo ao nascer, tive um pequeno problema de saúde,
ficando alguns dias internado no hospital.
Tive uma infância bem tranqüila, sendo um pouco travesso. Todos os dias eu jogava
futebol e posso dizer que aproveitei muito a minha infância. Aos sete anos eu já tinha minha
turma de bairro onde nós nos divertíamos muito e fazíamos a maior traquinagem.
Aos oito anos fiz a prova para entrar na Escola Estadual Comandante Luiz Gomes, que
fica no bairro de Nova Descoberta, os meus primos fizeram essa prova comigo e uma das
minhas tias, com raiva e com inveja, falou para toda minha família que nós havíamos sido
reprovados, confesso que fiquei um pouco triste, pois tinha certeza que tinha feito uma boa
prova. Enfim, chegou o dia da matrícula e minha mãe quase perdeu a vaga por acreditar que
eu não havia passado, graças a Deus uma vizinha amiga dela viu que o meu nome constava
na lista de aprovados. Eu não tinha sido apenas aprovado, mas sim em primeiro lugar, em
meio a mais de 150 meninos e meninas que haviam feito à seleção para cerca de 40 vagas da
escola. Eu fui o primeiro e isso encheu minha família de orgulho.
Estudei cerca de quatro anos nessa escola (da primeira a quarta série primária). Todos
os anos eu era um dos melhores alunos da turma, adorava ciências e estudos sociais. Eu
gostava tanto de ir à escola e quando ela entrava em greve eu dava o meu jeito para poder
estudar, fosse em casa, fosse na biblioteca (que fica próximo a residência). Um dia, quando
eu estava na segunda série primária, houve uma feira de conhecimentos e cada aluno tinha
que escrever em um papel dizendo qual a profissão que gostaria de exercer no futuro, eu
adorava futebol, mas não sei por que motivo acabei escrevendo professor, e hoje, estou
fazendo Licenciatura em História.
Quando eu fui nessa escola fazer uma visita, a diretora que é a mesma da época em que
estudei naquela instituição de ensino, me mostrou aquela caixa com as nossas profissões, eu
confesso que fiquei perplexo quando vi naquele papel minúsculo ao lado do meu nome,
escrito professor. Como uma criança de oito anos sabia que no futuro, iria ser professor? Achei
esse fato em minha vida super interessante.
Graduando em História.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
167
Aos dez anos, ingressei na Escola Ageu Magalhães, localizada no bairro de Casa
Amarela, é uma das mais respeitadas do bairro. Lá, nessa instituição de ensino, fiz grandes
amigos e comecei a compreender que a vida não é só brincadeiras e estudos, mas que temos
que valorizar o ser humano em si, com todas as suas qualidades e defeitos.
No decorrer do meu ensino fundamental, da 5ª a 8ª série, fiz uma penca de amigos,
entre os quais vou citar alguns com seus respectivos apelidos: Eduardo o dentão, Amon o
virgem, Severino o pacificador, Anderson o ansa, Alex o titã e eu Marcio o cokito, nosso
grupo tinha o nome de OS TUBARÕES. Éramos alunos muito dedicados.
A Escola Ageu Magalhães tem uma estrutura de razoável para boa, como a maioria
das escolas de Casa Amarela, o que a diferenciava das outras era o seu corpo de
funcionários, a diretora às vezes fazia o papel de mãezona, mas ela era linha dura, na
escola não havia bagunça, não havia briga entre gangs rivais, enfim, a grande maioria
dos alunos se dava muito bem.
Foi nessa época da minha vida, que comecei a trabalhar com meu pai, o que era muito
duro e cansativo, pois às vezes tinha que acordar as quatro da manhã para ir trabalhar,
porque minha família não tinha condições financeiras para pagar a alguém para ir no meu
lugar. Nessa época, meu irmão Marcos Junior, quebrou o braço e eu tive que ficar fazendo os
serviços que eram dele. Acordava às quatro da manhã tendo que dormir apenas as dez da
noite. Era muito cansativo para mim, que era apenas um adolescente com seus treze anos.
Nesse período, comecei a freqüentar um curso de informática. Lá, aprendi como a vida
é injusta com os pobres, pois todos os alunos de minha sala fizeram estágio graças ao curso,
eu como era bolsista, fui o único que não consegui o estágio, um dos mais que precisava de
um auxílio financeiro foi justamente o que ficou sem o dinheiro. Para poder acompanhar o
ritmo da turma, tive que fazer mil e um serviços para poder me manter no curso.
Cursei todo o meu ensino médio na Escola Ageu Magalhães, e foi bem tranqüilo, nunca
fui reprovado, tinha bons professores que se esforçaram ao máximo para que eu e minha turma
aprendêssemos os conteúdos ensinados. No terceiro ano do ensino médio, conheci minha
futura esposa, Monalisa, começamos a namorar no dia 8 de maio de 2003, e ela até hoje é uma
das pessoas que mais contribuiu para o meu engrandecimento como homem.
A minha formatura do ensino médio foi uma das datas que me recordo com mais
carinho. Aquele foi o último dia em minha turma da escola, onde se reuniram todos em um
só ambiente. Foi um show a nossa confraternização, um grupo de alunos que estudou sete
anos juntos infelizmente estava se separando, cada um tomando o seu próprio destino. Essa
turma de amigos marcou muita a minha vida.
Ao mesmo tempo em que estava me preparando para o encerramento do meu ensino
médio, também me preparava para o meu primeiro vestibular, e todos ao meu redor falando
que isso era perda de tempo e dinheiro, falando que eu não iria passar, parecia que estavam
torcendo pelo meu insucesso. Quando passei pela primeira fase, todos ficaram contentes e
viram que eu poderia sim entrar em uma universidade pública. Acabei não conseguindo ser
aprovado naquele vestibular, mas provei para muitos que eu tinha condições, e que a data
de engressar na Universidade estava próxima.
Alguns me parabenizaram por eu ter chegado tão longe, já outros, disseram para ir
trabalhar ou fazer algo produtivo na vida, encerrou-se o segundo grau, acabaram-se os
estudos, mas como eu sou persistente, coloquei em minha cabeça “vou fazer essa prova
novamente e vou passar”. Comecei a estudar, tentei ingressar no CEFET-PE, mas infelizmente,
168
Caminhadas de universitários de origem popular
não passei, quando chegou no mês de setembro de 2004, uma bomba estourou em minha
vida, mais um desafio. Minha namorada, Monalisa, estava grávida, o mundo caiu sobre
minha cabeça, sem saber o que fazer ou o que dizer, pensei em desistir dos estudos, em não
prestar o vestibular. Mas Monalisa me convenceu que o melhor que eu poderia fazer, para
ela e para a criança, seria passar no vestibular para dar um futuro melhor, não só para mim,
mas para a família que eu estava começando a construir.
Fiz o vestibular pela segunda vez. Fui aprovado, felizmente a gravidez de Monalisa
foi tranqüila. Meu filho, Allyson vende saúde e hoje é um garoto que está com um ano e sete
meses, e é o meu maior tesouro. Tenho vinte anos e curso o 4º período de história, na
Universidade Federal de Pernambuco.
Eu quero concluir o meu curso e fazer o concurso para entrar na Polícia Federal que é um
dos meus sonhos desde a infância. Planejo, também, fazer mestrado e doutorado, enfim,
continuarei nessa grande caminhada sempre em busca de algo melhor para mim e minha família.
Dedico esse trabalho a todos aqueles que de alguma forma
contribuíram para essa trajetória de vida. Em especial para
minha mãe, meu pai, meus irmãos, para a mulher da minha vida
(Monalisa) e o meu filho Allyson. Que são meu melhor tesouro e a
razão da minha vida nessa caminhada.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
169
Memorial
Maria Aparecida dos Santos*
Como se sentir parte de um mundo social mais justo? Quanto significado deve existir
nessa expressão para muitas famílias que vivem “à margem da sociedade”? Uma sociedade
que muitas vezes esmaga os sonhos e oportunidades ou até mesmo, atrofia a inteligência e
capacidade de pensar dessa gente marginalizada, a qual, ao se sentir parte desta, está sempre
em busca daquela tão almejada ascensão social.
Minhas primeiras lembranças mais marcantes são de quando eu tinha apenas seis anos
de idade. Sou de um ambiente familiar de 6 filhos, 4 mulheres das quais sou a terceira e dois
homens, todos nascidos num Sitiozinho do município de Palmares região da Zona da Mata,
Sul de Pernambuco. Passei toda minha infância no campo, que sem dúvida é um ambiente
que oferece benefícios significativos para uma criança, no entanto, às dificuldades ofuscaram
muitos desses benefícios.
As famílias do campo geralmente passam por muitas dificuldades, como serviços básicos
necessários, especialmente a educação, seja pelo acesso aos centros urbanos mais desenvolvidos,
seja pelas dificuldades financeiras, mais agravada ainda pela quantidade de filhos.
Essas minhas primeiras lembranças são da separação de meus pais, esse fato me marcou
bastante, pois a partir de então me tornei uma criança insegura e desamparada, pois minha
mãe era a pessoa mais importante de nossas vidas e foi embora de casa. Um ano depois, meu
pai se casou novamente.
Para mim e meus irmãos, a situação era cada vez mais difícil, pois a nova esposa do
meu pai não era nada gentil conosco, muito pelo contrário, sentia prazer em nos fazer sofrer.
Diante dela, tínhamos que sufocar qualquer tipo de espontaneidade infantil, sem falar que
éramos obrigados a trabalhar na roça o dia inteiro, não tínhamos tempo para brincar.
Meu ambiente familiar não foi nada estimulante, no entanto, eu estava sempre
buscando estímulos na natureza. sempre estive atenta a toda dinâmica da vida, mas tudo
para mim era às vezes bastante misterioso, no entanto, me sentia inserida nesse complexo
mágico. Com o tempo, fui percebendo que a minha vida também poderia se mover, e foi daí
que comecei a acreditar que eu mesma poderia mudar o meu próprio destino.
Na minha adolescência, contraí uma doença que por falta de condições básicas de
saúde e a cura se tornou muito difícil, mas meu pai apesar de ser um homem com poucos
conhecimentos, buscou alternativas para obter essa cura. Após a viagem do meu pai para
o Recife com meu irmão menor, que também estava doente, os medicamentos foram
enviados pelo hospital Oswaldo Cruz para o posto de saúde de uma cidade vizinha muito
Graduanda em Ciências Biológicas.
170
Caminhadas de universitários de origem popular
longe de minha casa, uma vez que esse posto era o único da região, desde então, tive que
enfrentar uma caminhada bastante árdua em busca do tratamento, e mais árdua ainda era
a volta para casa, pois depois de tomar várias aplicações do medicamento, tinha que andar
vários quilômetros para chegar em casa.
Quando estava quase terminando o tratamento, minha irmã mais velha, que já era
casada nessa época e morava na cidade de Água Preta junto da minha mãe, foi nos visitar no
sítio e vendo que eu me encontrava debilitada com os problemas de saúde que me acometiam,
resolveu junto a meu pai, me levar com ela para passar uns dias em sua casa para que eu
pudesse me cuidar melhor já que a cidade onde ela morava, oferecia um acesso mais facilitado
aos serviços de saúde. Foi então que tudo começou a mudar na minha vida.
Reencontrei meus irmãos que já tinham saído da casa do meu pai para morar com a
minha mãe, inclusive nessa época, só restavam com meu pai eu e a minha irmã mais nova.
Encontrei também a minha mãe já casada novamente e com novos filhos, não quis ficar
morando com ela, preferi morar com minha irmã mais velha que era como uma mãe para
mim, pois foi ela quem ficou cuidando dos irmãos mais novos, quando nossa mãe foi
embora de casa. Tive a certeza, a partir de então, que não mais voltaria a morar no sítio, pois
agora eu poderia realizar o meu grande sonho: o de estudar.
Não podia deixar de contar um pouco sobre minha trajetória escolar, sem contextualizar
com alguns aspectos da minha vida, então, escolhi esses detalhes dentre tantos outros,
porque revelam o quadro da realidade que me foi imposto pelo ambiente que nasci e vivi
durante toda minha infância e parte da adolescência.
No processo de minha formação, não posso deixar de citar as dificuldades para me
adaptar a uma nova realidade, muitas vezes bastante assustadora, pois já estava com
quase quinze anos e era completamente analfabeta e ingênua, acreditava que todo ser
humano era bom e confiável.
O que mais me surpreendeu nisso tudo foi a descoberta de novas relações, exigências
e cobranças, tanto sociais, como educacionais, das quais eu não estava acostumada, além
disso, me deparei com as visões e turbulências da adolescência, com as transformações do
meu corpo e novos sentimentos que surgiram a cada dia.
Desenvolvi meus primeiros anos escolares com bastante dificuldade no processo de
aprendizagem, a diferença de idade entre eu e meus colegas era mais um obstáculo que eu
teria que enfrentar, as pessoas me olhavam meio atravessadas e às vezes faziam comentários
maldosos que me deixavam muito triste, mas logo a tristeza pairava e eu lembrava que
havia um caminho longo a ser percorrido por mim, e precisava vencer todos os obstáculos.
Diante de todo esse quadro que se apresentava para mim, sempre lembrava dos ensinamentos
do meu pai, quanto a ser sempre honesta e respeitar o próximo, esses são valores que eu não
esquecia em nenhum momento.
Em 1988, surgiu a oportunidade de ir morar em Fortaleza, capital do Ceará, e mais uma
vez surgiram mudanças, expectativas e decepções, pois como já estava no segundo semestre
do ano não havia mais vaga em nenhuma escola pública, mais uma vez, fiquei sem estudar,
além disso, tinha que conviver com a saudade de minha família.
Lá, em Fortaleza, fiquei morando na casa de pessoas da minha família, seis meses
depois essa família resolveu ir morar em Recife e eu fui junto, e quando lá cheguei logo me
matriculei numa escola municipal, como eu já estava bastante fora da faixa etária, a direção
da escola achou melhor me matricular no EJA (Educação para Jovens e Adultos). Foi um ano
Universidade Federal Rural de Pernambuco
171
maravilhoso, me tornei a melhor aluna da turma e construí amizades, das quais conservo até
hoje. A situação não era fácil, mas minhas esperanças cresciam a cada dia, sempre estive
muito atenta às deficiências existentes nas escolas públicas, não me sentia satisfeita com os
conteúdos ministrados pelos professores, no entanto, não havia muita coisa a ser feita e às
vezes sentia que estava cada vez mais distante de alcançar o meu destino certo.
A cidade grande, foi uma escola de vida e foi nessa realidade que despertei para
sentimentos que nem uma escola formal consegue mostrar, pois a cada dia apresentavase diante de mim um mundo cada vez mais enigmático, um mundo que eu precisava
descobrir. Concluí o ensino fundamental e médio, tentando conciliar com uma longa
jornada de trabalho; a noite, quando ia para a escola me sentia exausta, mas me sentia
feliz de está na sala de aula.
Quando estava terminando o ensino médio, não tinha muitas expectativas, pois
me perguntava como poderia ingressar no ensino superior? Achava que as universidades
públicas estavam muito distantes da minha realidade e eu não teria condição de pagar
uma faculdade particular.
No meu processo de formação, houve muitas deficiências de algumas disciplinas e
não me sentia com bases teóricas para passar no vestibular e ainda tinha mais um problema,
o meu tempo era bastante curto para me dedicar aos estudos. Contudo, quando terminei o 2º
grau, resolvi me matricular num cursinho pré-vestibular, pagava com quase todo o meu
salário, como o cursinho era perto de casa não precisava pagar passagem, no entanto, o que
me sobrava era quase nada.
Durante o ano todo o esforço foi grande, mas não consegui aprovação no vestibular,
porém, não desisti. No ano seguinte, continuei estudando de forma cada vez mais intensa,
aproveitava qualquer tempo disponível para estudar. No primeiro ano, minha escolha foi
para o curso de história, e persistia com o mesmo pensamento no ano seguinte.
Prestei vestibular e passei novamente na 1ª fase, no entanto, mais uma vez na 2ª fase não
fui aprovada, me senti muito mal, comecei a pensar novamente que nunca passaria no vestibular
da federal. Entrei em depressão, quando olhei o listão e meu nome não estava lá, o apoio dos
meus colegas e professores do cursinho foi de fundamental importância para que eu voltasse
a acreditar de novo em mim, com o tempo, fui entendendo que a aprovação no vestibular só
dependia de mim e de mais ninguém, mas comecei a pensar também na minha escolha
profissional, porque gostava muito de história, mas não via uma possibilidade de trabalho
que me agradasse. Sempre fui contra qualquer forma de destruição da vida e do planeta, com
isso, resolvi optar por biologia, assim, eu poderia conhecer mais sobre a dinâmica da vida, entender
seu processo de transformação e buscar alternativas para a conservação da vida no planeta.
Foi uma escolha acertada, consegui passar no vestibular na 1ª fase logo em 7º lugar e
tive com isso, a certeza de que seria aprovada na 2ª fase. O resultado foi positivo, passei no
vestibular em 2002 para Universidade Federal Rural de Pernambuco, esse resultado, me
deixou bastante confiante na realização de um grande sonho, sentia-me muito feliz. Como
tinha optado pela 2ª entrada fiquei descansando durante o primeiro semestre, e durante esse
tempo de espera para começar as aulas, aconteceram mudanças na minha vida que me
fizeram tomar decisão bastante significativa, pois descobri que estava grávida, foi uma
notícia que me deixou atordoada, principalmente porque eu havia conseguido uma vaga na
residência estudantil da UFRPE, e agora teria que abrir mão de mais essa conquista. Ao
172
Caminhadas de universitários de origem popular
mesmo tempo sentia uma felicidade nunca sentida antes, já sentia um amor inexplicável
pelo meu filho, a minha responsabilidade crescera a partir de então.
Entrei na universidade no 2º semestre de 2002, com 7 meses de gestação e com a
alma cheia de orgulho e uma vontade muito grande de crescer, esse desejo de crescimento
agora era muito maior, por saber que não estava mais só, existia alguém me fortalecendo
a continuar minha caminhada, pois surgiram outras dificuldades, outras pedras estavam
plantadas no meu caminho.
Acredito que a maternidade me tornou uma pessoa melhor e mais confiante na vida. O
meu filho nasceu em dezembro de 2002, estava começando o período das primeiras
verificações de aprendizagem, não pude fazer todas as provas e quando retornei à
universidade, consegui com os professores realizar as provas atrasadas, mas as dificuldades
de conciliar a tarefa de ser mãe e estudar foi tão grande que logo fui reprovada numa
disciplina no 1º período.
O mais grave ainda era o fato de não ter com quem deixar o meu bebê para ir para
faculdade e como não queria parar de estudar decidi leva-lo todas as noites comigo. Sua
presença passou a ser tão comum na universidade, que quando acontecia de não leva-lo
todos logo cobravam sua presença. Não posso deixar de citar a ajuda de pessoas maravilhosas
as quais encontrei durante toda essa caminhada, pessoas como meus colegas de faculdade,
professores, funcionários e minha própria família.
Hoje, faço uma reflexão da minha trajetória de vida, e concluo que: se sentir parte de
um mundo social mais justo não se restringe apenas ao fato de estar inserida nos meios
institucionais de ensino. Esses são apenas os meios para alcançar seu desenvolvimento
profissional, possibilitando, assim, uma sobrevivência mais justa e digna. As escolas e
universidades não são as únicas responsáveis pela formação de pessoas conscientes com
uma visão crítica de mundo, entendo, contudo, que no processo de formação da
personalidade o aprendizado familiar é de extrema importância, mas foi a escola da vida
que me possibilitou esse aprendizado.
Estou quase terminando a graduação e já não preciso mais trazer meu filho com
freqüência para a universidade, hoje, meu filho está com 4 anos e é uma criança muito feliz
e a sua felicidade me ajuda a valorizar bem mais a vida, me fortalecendo a cada dia.
Aqui, encerro meu relato de forma muito breve, espero que minha história ajude a
influenciar a vida daqueles que ainda não sabem como iniciar sua caminhada. Lembrem
sempre que é de fundamental importância a colaboração do outro, porque nenhum sucesso
é conquistado sem a presença e ajuda de pessoas amigas e maravilhosas do nosso lado.
Meu nome é Maria Aparecida dos Santos, faço parte do Conexões de Saberes, e tenho
o privilégio de fazer parte de um projeto que tem tudo a ver com minha história.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
173
Acreditar que é possível
Maria Cristina Balbino Ribeiro Cabral*
Viver em uma usina é ver a vida caminhando em pequenos passos. O tempo não é
rápido e a lentidão fazia com que eu e seus demais moradores vivêssemos uma rotina
pacata, envolvidos com os afazeres da casa. O ônibus que conduzia as crianças para a escola
era o lugar de encontro. Para estudar, o caminho era Santa Rita.
Em um mundo distante de João Pessoa, tinha uma família grande. Meu pai era analfabeto
e muito rude; minha mãe estudou até a 4ª série. Eles pouco sabiam como nos conduzir a um
caminho escolar. Sou Maria, a mais nova de uma família de 23 - vinte e três - irmãos.
A usina São João é a recordação que vivi até os 12 anos. Lá, freqüentei a Escola
Estadual Flávio Ribeiro, no Município de Santa Rita. Minha família veio para Recife e tive
que me adaptar a um mundo agitado. Na Escola Estadual Joaquim Nabuco, encontrei novos
amigos(as). O que eu mais estranhei foi o comportamento: a escola envolvia pessoas de
vários lugares. Eu não imaginava um Recife com uma dimensão tão grande, pois o meu
ontem era restrito à usina.
Nessa nova experiência, conheci professores que se envolviam com causas do bem
ensinar (poucos) e foi assim que conheci a professora de Português, Ana , e a professora de
História, Adalgisa. Eu observava como elas envolviam os alunos, e dentre eles, eu mesma,
fazendo com que procurássemos conseguir nossos sonhos. Para mim, o mais importante dos
sonhos, a Faculdade.
Não haveria de atrapalhar meus estudos, no entanto, uma gravidez não aguardada deu
outro destino à minha vida. Depois desse acontecimento, vieram o falecimento de meu pai,
e quatro anos depois, a pior queda - minha mãe partiu. Eu já tinha concluído o ensino
médio, porém, não aceitava ter parado. Casada com uma pessoa de formação superior, ele
sempre deu apoio para que retomasse meus estudos, mas a vida de casada, com filho, e o
trabalho não colaboraram.
Sempre gostei de estudar, não deixava de ler o que via, no meu trabalho - arquivo de
um hospital -; consegui ser promovida, criei coragem e fiz cursinho pré-vestibular. Percebi
que a idade era outro concorrente; resolvi fazer vestibular em uma faculdade particular. Para
minha surpresa, passei; o problema era como pagar. Falei com uma irmã, Miriam, que me
deu total apoio, inclusive financeiro. Estava indo tudo bem. Quando estava no quinto
período de História, fui demitida; não parava de pensar, só sabia que parar de estudar seria
o fim de um sonho.
Graduanda em História.
174
Caminhadas de universitários de origem popular
Fiquei sabendo que a UFRPE aceitava transferência de alunos provindos de outras
instituições de ensino superior - algo difícil, mas alimentei o meu sonho; fui ao departamento
responsável e expliquei a minha situação. Falaram que eu passaria por uma seleção. Foram
dias de agonia, só fazia rezar, acho que Deus “tava cheio” dos meus pedidos. O meu filho, já
adolescente, falava que eu conseguiria, pois eu estudava bastante, vivia em biblioteca, no
sebo, dava uma maneira de obter livros - comprar era um verbo que não existia no momento,
priorizava a educação de meu filho.
Recebi a notícia de que meu processo foi aceito e eu continuaria a estudar; não sei
como consegui ficar em pé, só lembro que falei para a pessoa do departamento - “O senhor
não tem idéia do que isso significa para mim”.
Estava só estudando, sem trabalho, precisando conciliar o estudo, a família e procurar
um estágio, quando fiquei sabendo do Programa “Conexões de Saberes”. Ao comentar em
casa que participaria do programa, a primeira pergunta foi: “- Como?!?”, a outra foi: “Para quê?!?”. Expliquei que faria algo novo, em que acreditava, que achei o Programa
interessante e que percebi que essa seria uma boa experiência. No momento, ainda estou
me adaptando às situações enfrentadas. As escolas das quais participo fazem lembrar o
meu passado: situadas em localidades distantes (Aldeia), têm pessoas de baixa renda,
simples, precisando de apoio e orientação.
Sinto que tenho muito a aprender e que esses contatos têm de ser aproveitados ao
máximo. Repasso as impressões e experiências para meu filho; como eu fui, ele é aluno de
escola da rede pública de ensino e gostaria que, com essas vivências, ele consiga, assim
como as crianças que partilham comigo os domingos em Aldeia, alcançar seus objetivos.
As pessoas não sabiam como era importante para mim continuar um sonho. Foi isso
que fiz: tenho 36 anos e um filho que pergunta como eu consigo correr tanto para dar conta.
Digo-lhe que poucas oportunidades aparecem e que eu pretendo aproveitar cada uma das
portas que a vida escancara diante de mim.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
175
Memorial
Maria das Dores Soares da Silva*
Eu, Maria das Dores Soares da Silva, nasci em 7 de janeiro de 1982. Apesar deste
nome, todos me conhecem e me chamam por Mércia, que seria meu nome. Mas ainda não
consegui entender o verdadeiro motivo de o terem trocado, pois ninguém me explica muito
bem o que aconteceu.
Minha mãe, se chama Margarida Regina Soares da Silva e meu pai, Manoel Ferreira da
Silva Filho. Tenho duas irmãs mais velhas do que eu. A primeira, se chama Marizal Soares da
Silva de Oliveira (casada) e a outra se chama Maria Gorete Soares da Silva (separada com dois
filhos). Esta última é nove anos mais velha que eu; isto indica que eu nunca tive a companhia
das minhas irmãs quando eu queria brincar. Eu sempre brinquei com os colegas vizinhos.
Fiz a alfabetização duas vezes, pois não fiz o jardim. Tudo porque fui à escola pela
primeira vez, em 1986, quando eu tinha apenas 4 anos de idade. Aos 5 anos, fiz novamente
a alfabetização e só então fui para a 1ª série numa escola maior, que não queria me aceitar
com apenas 6 anos de idade. Por isso, fiz um teste e passei, foi assim que comecei a estudar
nesta escola particular, em 1988, na época - Escola Santa Maria - que ficava localizada no
bairro de Timbó, na cidade de Abreu e Lima, hoje Colégio Santa Maria.
Só pude estudar nesta escola porque minha mãe trabalhava numa fábrica que dava
bolsas de estudo. Eu, diferentemente das minhas irmãs, estudei todo o ensino fundamental
numa escola particular. Não era, porém, uma bolsa integral, de modo que minha mãe pagava
uma parte e a empresa outra. Além da mensalidade, minha mãe pagava também o transporte
escolar que me apanhava na frente da minha casa todos os dias às 6h da manhã. Minha mãe
acordava todos os dias de madrugada para me arrumar, para eu ir à escola e às 12h30 min. ela
ia para a fábrica e só chegava às 22h30 min. O transporte me levava e trazia sempre até eu
completar 12 anos de idade. Meu pai não tinha tempo para ir me buscar na escola, assim como
muitos outros pais, pois trabalhava no comércio, e minhas irmãs e eu, o ajudavam. Além do
comércio, meu pai tinha outra renda da aposentadoria por invalidez.
Lembro que da 1ª à 4ª série sempre tirei notas boas, geralmente, entre 8 e 10. Eu
sempre era a última ou uma das últimas a entregar a prova, da mesma forma que era na 2ª
série a última a sair da sala por não conseguir retirar o conteúdo do quadro com a mesma
eficiência dos meus colegas. Por isso, subiam todos no ônibus e me esperavam. Sempre
ficava aflita, com medo que algum dia o ônibus fosse embora e me deixasse ali.
Sempre fiz muitas amizades, tanto na escola, quanto na vizinhança, perto da minha
casa. Era sempre muito divertido quando nos juntávamos para brincar.
Graduanda em Biologia.
176
Caminhadas de universitários de origem popular
Da 5ª à 8ª série continuei nesta mesma escola, cuja diretora era muito autoritária. Por
isso, nunca gostei dela. Porém, todos os professores eram ótimos. Tenho muitas lembranças
boas da minha professora de ciências, Selma, da 7ª série. Ela sempre foi maravilhosa com
todos os alunos. Quando ela precisou sair da escola porque iria se casar, fiquei muito triste.
Terminei o ensino fundamental com 13 anos de idade, mas tive que estudar numa escola
pública (Stella dos Santos Pinto Barros), no ano de 1996, e no mesmo bairro - Timbó.
No ensino médio, que comecei aos 14 anos, não me senti estimulada, pois alguns
professores faziam de conta que davam aula. Foi difícil conseguir uma vaga nesta escola,
pois era a única de Abreu e Lima em que não havia greve. Fui para o segundo ano sem saber
quase nada de muitas matérias, em especial física e química. Por essa razão, comecei a me
desinteressar um pouco pelas aulas, e mais uma vez passei de ano com muita deficiência no
aprendizado. Ao chegar no 3º ano, tudo continuou da mesma forma e eu sempre tendo como
disciplinas preferidas a matemática e a biologia, porém, não sabia o que fazer no ano
seguinte, após o término do 3º ano em 1998, pois nunca tive informação do que seria uma
universidade, ou até mesmo um vestibular, mesmo assim, fiz um cursinho no ano de 1999,
no qual pagava R$ 30,00 por mês e se localizava no centro de Paulista, e a passagem meu pai
pagava. Neste ano, me inscrevi para o curso de enfermagem na Universidade Federal de
Pernambuco, mas não passei nem na primeira fase, foi mais um ano de deficiência no ensino.
Depois disso, comecei a procurar emprego e fiquei assim até o ano de 2001, quando
voltei a estudar, mas não para o vestibular, e sim, para o concurso dos correios e também do
IBGE. No ano seguinte, fui informada de um pré-vestibular gratuito na UFPE, então comecei
a estudar, e neste ano, a inscrição foi para Medicina Veterinária. Desta vez passei apenas na
primeira fase e iria tentar novamente no ano seguinte, mas tinha que ser um curso que fosse
à noite, para que eu pudesse trabalhar durante o dia. Em 2003, fiz a inscrição para Licenciatura
em Ciências Biológicas, pois o curso era à noite, e foi neste ano que conheci uma pessoa
muito especial e me apaixonei, esta mesma pessoa sempre me ajudou bastante nos
momentos em que eu me achava incapaz de passar, pois já havia sido reprovada por duas
vezes consecutivas, ele mostrava para mim que eu era sim, capaz e sempre acreditou nisso
e me dava muita força.
Mas para chegar até aqui, passei por algumas dificuldades, como a falta de professores
no cursinho, pois eles eram voluntários, falta de dinheiro para lanchar, porque a aula
começava às 13h e terminava às 18h, e eu tinha que sair de casa às 11h30min, para que não
me atrasasse. Algumas vezes, quando eu tinha dinheiro, optava por não lanchar, para juntar
até que pudesse comprar algum livro para estudar em casa. Com o que juntei consegui
comprar alguns de biologia, química e história, porém, todos usados.
Apesar de algumas dificuldades, não desisti e quando vi, meu nome estava no listão,
e neste dia meu namorado mais um vez estava comigo compartilhando àquele momento tão
especial. Finalmente, consegui passar e o que mais me estimulou foi a vontade de melhorar
de vida financeiramente, além de aprender muito mais e crescer. E foi aos 22 anos de idade
que comecei minha vida universitária, no ano de 2004.
Hoje, sei que realmente nada é tão fácil e tenho tido muitas decepções, pois eu sempre
espero muito mais das disciplinas do que é visto em sala. Mesmo assim, não quero parar de
estudar e pretendo fazer um pós-graduação, mesmo sem saber ainda a área em que gostaria
de atuar e talvez chegar até ao doutorado.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
177
Caminhadas: um novo olhar
Maria do Socorro Fonseca Freire Filha*
Como uma releitura, busco
em minha alma traços
marcantes vividos por mim.
Ao deles lembrar,
sinto os mesmos sentimentos
sentidos hoje de forma mais madura.
Tudo isso me trouxe saudade
principalmente de minha infância
com gosto de chocolate, peixinho e
do cheiro de meu pai, sempre tão
presente e hoje tão ausente.
Importa muito esse reencontro
dos nossos “eus”: eu criança,
eu adolescente, eu adulta.
Chorei e sorri... sobrevivi.
Maria do Socorro Fonseca Freire Filha, filha de Antônio Teotônio Freire, paraibano de
Juarez Távora, e de Maria do Socorro Fonseca, pernambucana, do litoral de Nova Cruz. Fui
a última filha, tenho 8 irmãos, sendo o mais velho por parte de pai.
Fui muito feliz em minha infância. Meu pai era comerciante e sempre vendia fiado.
Teve padaria, granja, até uma barraca em casa, mas nada dava certo. Diante disso, tínhamos
que nos mudar sempre, pois morávamos de aluguel. O que papai gostava mesmo era de criar
gado, cavalo, cabra, coelho e galinhas. Eu também gostava muito, quando íamos a cavalo
para Passarinho, onde o rio era limpo e víamos até os seixos, nos banhávamos e flutuávamos
com os cavalos. Eu, meu pai e dois irmãos fazíamos caminhadas de Dois Unidos a Dois
Irmãos, quando íamos ao Horto fazer piquenique no domingo.
Eu estudava em Beberibe, na Escola Curadores do Estado, que ficava ao lado da igreja
e era dirigida por freiras. Cantávamos os hinos de Pernambuco, do Brasil e rezávamos todos
os dias, antes de entrarmos fardados. Na igreja ao lado da escola, fiz minha primeira comunhão
junto com meu irmão Fábio.
Quando fiz sete anos, queria ter uma bicicleta; fazia bilhetes, lembretes: “Não esqueça
a minha Caloi”... espalhava-os por toda a casa, para minha tia Alice, meus pais e até meus
Graduanda em Agronomia.
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Caminhadas de universitários de origem popular
padrinhos, quando nos visitavam aos domingos. Financeiramente, as coisas ficavam cada
vez mais difíceis lá em casa. Minha mãe ajudava meu pai no comércio; minha irmã mais
velha, Lenira, além de estudar, começou a trabalhar em um cartório no Centro; os outros
irmãos estudavam e cuidavam da casa e dos pequenos (eu, Fábio, Irene e Lúcio).
Aos nove anos, comecei a fazer picolé de saquinho para vender; depois fiz dudu (um
outro tipo de picolé, em um saquinho mais forte, que era fechado utilizando-se o calor da
vela); depois, passei a comprar e revender picolé de palito. Também comecei a tomar gosto
por desenho, tentava desenhar todos lá de casa. Aos onze, fazia sanduíche natural e vendia
com meus irmãos, Fábio e Irene, na praia de Boa Viagem, iniciando pelo Hotel Othon
Palace, pegávamos dois ônibus.
Meus irmãos ficavam com vergonha, então eu, que era a menor, gritava, oferecendo os
sandubas. A higiene e a educação eram nossos aliados, por isso, por muito tempo, obtivemos
a credibilidade de clientes fiéis. Os sanduíches, nos sabores frango e atum, eram bons,
receita de minha mãe, todos levavam cenoura, cebola ralada, requeijão, um pouco de maionese
e orégano (às vezes, passas e maçã).
Fui estudar na Escola Santo Inácio de Loyola. Fazia desenhos a bico de pena. Vendendo
alguns para a turma, comecei a tocar flauta; formamos um grupo e tocávamos no recreio, e às
vezes, após as aulas. Minha irmã Irene, mais velha do que eu, estudava em outra turma, mas no
mesmo turno (da manhã); íamos juntas à escola, ela não gostava de me esperar, pois dizia que
eu demorava muito para sair. Certa vez, ela não me esperou, reclamou comigo e desceu a
ladeira sozinha, caiu e rasgou seu melhor jeans, tendo que voltar para casa. Na verdade, ela
não gostava de sair comigo, porque já era uma moça e tinha amigas de sua idade.
Junto com a música, veio a poesia; passava a maior parte do tempo ouvindo o som lá
de casa - Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Edu Lobo, Noel Rosa, Chico Buarque, Maria
Betânia, Gal Costa, Beto Guedes, Olívia Buton e Francis Hime, Gilberto Gil, Caetano, Ney
Mato Grosso, Dorival Caymmi, Jannis Joplin, ou seja, Bossa Nova, MPB e Jazz. Depois
vieram Lulu Santos, Cazuza, Barão Vermelho, Legião Urbana e Marisa Monte.
Meu primeiro beijo, aconteceu no pátio da escola. Gideão era evangélico, possui
olhos azuis e estava de aparelho. O beijo foi horrível! Entre um feio e um bonito, fiquei de
namorico com o feio, só para ouvir suas poesias. Geraldo era muito inteligente e fazia parte
do grêmio comigo, era só admiração. O tempo passou e fui concluir o ensino fundamental
no Luiz Delgado Cila, no Centro.
Comecei a freqüentar um curso de pintura, “Jacques Wayne”, no Derby. Minha irmã
Lenilze, que trabalhava, pagou os primeiros meses, depois conversei com o professor, que
era também o proprietário da escola, para que eu trabalhasse lá, e em troca, estudaria de
graça. Ele concordou e eu agradeci a oportunidade, pois foi muito importante esse curso de
pintura para mim. Desenvolvi técnicas de desenho, pintura a óleo sem tela, natureza morta,
paisagem, Surrealismo, Impressionismo e Cubismo. Tínhamos aula de campo, em Aldeia,
Itamaracá. Conheci, por meio da aula de campo, a famosa praia de Gaibu (meus irmãos iam
acampar e meus pais nunca me deixavam ir). A liberdade é azul! A partir daí, fiquei solta na
buraqueira. Quando o curso acabou, fiz algumas exposições no Museu do Estado, no
Banco do Brasil e no Clube Internacional, mas o lucro era pequeno, pois gastava muito com
o material (tela, pincéis, tintas) e principalmente, com as molduras.
Então, aos dezoito anos, fiz um teste em uma casa de calçados; fiquei trabalhando de
segunda a sábado, como recepcionista de crediário, ainda estava estudando à noite no Cila,
Universidade Federal Rural de Pernambuco
179
onde concluí a 8ª série. Fiquei na Casa Pio por um ano; apesar das dificuldades financeiras
da casa, sofri pressão para abandonar o comércio. Ganhei um violão usado e fiz algumas
composições. Ao dezenove anos, entrei na Escola Técnica Prof. Agamenon Magalhães
(ETEPAM), no bairro no Espinheiro, onde fiz o curso técnico em decoração. Sempre quis
ganhar meu próprio dinheiro para comprar minhas coisas e ajudar minha mãe. Estudava à
noite e trabalhava no Shopping Guararapes, como digitadora em uma franquia de roupas, A
Cantão. Nessa época, ainda dividia o tempo com as aulas de informática/digitação na
Interdata, pois, para que eu conseguisse o emprego, minha irmã havia dito que eu sabia
digitar, por isso corri para fazer o curso, trabalhando ao mesmo tempo e estudando à noite.
Fiquei quatro anos trabalhando no Shopping Guararapes; morava em Beberibe e forneci,
para manter o emprego, o endereço de uma amiga que morava em Boa Viagem. Com isso,
recebia duas passagens e gastava quatro (para contratar, a empresa queria pessoas que
morassem próximo e gastassem duas passagens). Namorei um homem mais velho que eu,
que me ensinou a dirigir; tirei minha habilitação. Aprendi a guiar no carro Escort e fiz a
prova em um Fusca. Ao fazer a rampa, minha perna esquerda tremia muito, tinha medo que
o carro estancasse, mas graças a Deus, fiz todas as etapas bem.
Nessa mesma época de coisas boas, meu pai contraiu leptospirose - achamos que ele
pegou esta doença quando foi tirar uma vaca do rio ou cortando capim. Foram meses
difíceis. Ele ficou internado no Hospital Oswaldo Cruz, passou por todos os estágios da
doença, ficou no setor de isolamento. Fui ao morro, fiz promessa para que ele ficasse bom.
Graças a Deus e à Nossa Senhora da Conceição, ele se recuperou após algum tempo. Foi
muito sofrido para todos; meu pai ficou pele e osso.
Por conta de um bom salário e da proximidade de casa, pedi minhas contas e fui
trabalhar pela Labora (terceirização), na Fábrica da Antarctica, mas para o meu desespero, a
cerveja ficou sendo produzida na Paraíba e muita gente saiu. Inclusive os terceirizados,
como eu. Por indicação de amigos, fui trabalhar no Projeto da Diretoria de Informática do
Palácio das Princesas, executado por dona Madalena. Com a intervenção de uma Srª.
chamada Antonieta, fiquei dois anos como digitadora, e em seguida, fui trabalhar na
Assembléia Legislativa e FISEPE - trabalhava na Assembléia durante o dia e FISEPE à
noite. Já tinha concluído o ensino médio.
Como eram contratos, fiquei por alguns meses desempregada, até que Tadeu, excolega de trabalho da Assembléia, me indicou para uma Loja de Informática (Meta
Informática) que ainda era pequena. Cheguei, fiz controle de caixa, controle de estoque,
anotava o que os clientes queriam e não havia na hora, e passava para o setor de compras (“o
dono”). A loja cresceu e a assistência técnica ampliou (fui vendedora, estoquista, caixa,
auxiliar administrativa). Fiquei por quase quatro anos, pedi as contas. Depois de três meses
sem emprego fui trabalhar em um condomínio, Pathernon Flat Metropolis (grupo francês,
com hotel e condomínio), como auxiliar administrativo. Estava aprendendo muito no
trabalho e fazendo curso pré-vestibular. Mas não deu.
Tive muitas perdas na vida (tios, tias e madrinha), mas a pior foi naquele dia em que
meu pai, como sempre mexia em meus pés e em meu nariz para me acordar, me beijou o meu
rosto e disse “Acorda menina”. Levantei correndo, e atrasada, acabei deixando o celular;
vesti a farda do hotel e fui trabalhar. Ainda pela manhã, a gerência do hotel me mandou para
a construtora CDMC, em Boa Viagem. Saí do Derby para Boa Viagem, e estando lá, recebi
uma ligação da empresa, dizendo que minha prima me buscaria na construtora. Achei estranho
180
Caminhadas de universitários de origem popular
e liguei para a casa de meu irmão. A babá de meu sobrinho atendeu ao meu contato telefônico,
dando-me a notícia de que meu pai havia falecido. A causa fora um infarto fulminante. Ele
estava na rua, num bairro próximo, levando fruta-pão (tínhamos pé de fruta-pão) para alguém
que até hoje não sabemos quem era.
Chovia bastante, minhas primas, Mira e Silvana, me levaram de carro para casa;
minha mãe, medicada, estava na cama, chorando; tentei ser forte, abracei-a e disse a ela
que estávamos ali, todos juntos. O enterro foi na manhã seguinte, no Cemitério Santo
Amaro. Meu pai era um homem simples e muito popular. Por causa disso, foram muitas
pessoas prestar-lhe homenagens.
Ficamos emocionalmente muito abalados. Preocupada com minha mãe, saí do emprego
para ficar com ela, pois, ao saírmos para trabalhar, ela ficava muito tempo só. Era agosto e
logo viriam as provas do vestibular, feitas sem estímulo só por fazer. Não estudei o bastante,
chorava muito e sentia muita falta de meu pai.
No ano seguinte, no mês de março, fui prestar serviços à Prefeitura de Olinda, pela
Secretaria de Saúde, no Laboratório de Fitoterapia, onde cumpri contrato por dois anos.
Nesse mesmo ano de 2003, fiz cursinho pré-vestibular na Universidade de Pernambuco UPE, passei no vestibular para Agronomia na Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE, começando no segundo semestre de 2004.
Senti muita dificuldade para continuar os meus estudos, pois voltei ao comércio,
trabalhando em dois horários. Tranquei em 2005 e neste ano, resolvi voltar. Fiquei
desempregada e me inscrevi no Programa “Conexões de Saberes” . Graças a Deus, o programa
tem contribuído muito comigo, junto com o da “Escola Aberta”, ambos têm me ajudado não
só financeiramente, (nos custos com xérox, passagens e lanche) como quanto pessoa: tenho
enxergado um horizonte de uma amplitude mágica; tenho aprendido muito dentro do
programa e fora dele; e escuto muito os participantes de minha oficina de inclusão digital.
É muito gratificante o brilho que vejo nos olhos deles, e é isso que me conduz até eles - essa
Conexões de Saberes!
Minha paixão por plantas trouxe-me à UFRPE, onde me encanto, período a período,
e vislumbro a conclusão do curso, o trabalho em minha área e o contínuo aprendizado.
Passei muito tempo trabalhando, comecei a estudar e só agora me encontrei. Sei que a
minha caminhada é longa, afinal, são onze períodos, mas é sempre bom aprender e ensinar.
Demorei muito para entrar na Universidade, não quero trancar novamente, pois isso me
distanciaria do sonho. O poder e o sonho devem andar juntos para obtermos a realização.
Tenho 33 anos e se Deus quiser, me formarei antes dos 40.
“Mas é claro que o sol
vai voltar amanhã
Mais uma vez eu sei...
Escuridão já vi pior...
Espera que o sol já vem...
Quem acredita sempre alcança.”
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Batalhas e vitórias, assim sou eu
Maria Madalena Barbosa de Lima*
Eu sou Madalena, tenho 43 anos, e não tive uma infância muito fácil. Minha família
e de 13 irmãos, são 7 homens e 6 mulheres. Em minha casa, lembro de minha infância, meu
pai alcoólatra, gastando todo seu salário com bebidas e “amigos”. Minha mãe é quem
segurava as pontas, e uma de suas preocupações era fazer com que nós (seus filhos) fôssemos
dedicados e esforçados. Por isso, ela nos mandava todos os dias para a escola.
Na escola, além das aulas, tínhamos uma alimentação freqüente, gostosa e que nos
mantinham bem alimentados e hoje pensando no assunto acredito que minha mãe nos
mantinha firme e forte na escola também por causa dessa ajuda alimentar, pois numa época
onde o homem não permitia sua esposa trabalhando e com um ou dois salários alimentar
tantas bocas, não havia dinheiro que chegasse.
Minha vida escolar. Bem, sempre estudei em escolas públicas e nunca me senti pequena
ou pobre por isso, pelo contrário, sempre gostei e não faltava aula, eu gostava de aprender,
de me relacionar com professores, de fazer festa com meus amigos(as).
Nunca fui melhor aluna, nem ganhei prêmio por isso, mas ficar na escola era uma
possibilidade de sair de casa, de ver pessoas, de ser gente, de aprender (mas era só o que me
interessava) para ser sincera eu não tinha objetivo de futuro, de ser aeromoça, de ser advogada
não, eu não me preocupava com o futuro, eu apenas gostava dessa idéia mesmo em criança
eu sabia que fora de casa o mundo prometia e que só cuidar de uma casa não faria minha
felicidade. Porque eu vi minha mãe sofrer para criar tantos filhos, pra manter uma casa limpa
e arrumada pelo amor de um lar que só existia no ideal de vida da mãe dela, já que meu pai
só fazia destruir e destruir na família, onde ele deveria ser exemplo, não, eu não quis isso
para mim e bati o pé e fui diferente, não pelos estudos, nem aprender, mas em busca de algo
que fosse melhor do que aquela minha realidade.
Eu passava de ano, nunca repeti, esses professores são malucos, mas tudo bem, pois
cada ano era diferente, o aprendizado era novo. Eu devia ir a algum lugar guando concluísse
o curso, mas onde?
É muito difícil ter ambição numa família que não tem ambição e o que eu queria ser
quando crescer? Eu não queria ser uma mulher. Nem queria casar nem ter filhos, isso eu já
sabia, mas profissionalmente?!
Nunca falava de universidade, nunca imaginei essa possibilidade. Minha mãe dizia
que isso era pra quem pode, e nós não tínhamos dinheiro para isso (ela foi uma grande
mulher, pena que eu só reconheci isso depois que ela morreu).
Graduanda em Economia Doméstica.
182
Caminhadas de universitários de origem popular
No dia em que resolvi fazer o meu primeiro vestibular eu estava namorando um jovem
(via graça mais velho que eu) que me incentivou jurando que iríamos casar e trabalhar
juntos, e montaríamos uma escola e trabalhando com crianças, adorei. E por que não? Passei
em letras na federal em 85. Comecei então o curso. Minha mãe ficou apavorada, como
pagar? E as passagens? E os livros, meu Deus, o que será de nós?
Uma boa universidade, um bom curso, tudo perfeito, embora em casa, só uma de
minhas irmãs e uns irmãos considerou isso um fato importante, os outros tanto faz.
Meu namoro de quase quatro anos, acabou. Eu então desisti do curso de letras. Era
muito difícil, precisava ser estudiosa, precisava ter um histórico bom de vida estudantil e eu
não tinha, não bastava só não ter faltado as aulas, não era suficiente não ter sido reprovado.
Precisava de mais alguma coisa, mais o quê?
Passaram-se os anos e eu desisti de acreditar no estudo e casei. Tive filhos, virei dona
de casa dedicada ao lar, aos filhos, ao marido. Isso é muito bom, fiquei feliz.
Mas então um belo dia, minha sobrinha, me falou para não desistir de ser alguém
mesmo sendo pobre, e fui tentar vestibular. Tentei e passei, Economia Doméstica em 2001.
Pela primeira vez comecei a desejar ser alguém, mesmo depois de crescida.
Não vou dizer que foi fácil, afinal 39 anos de idade recomeçar num momento onde a
maioria de sua idade já está formada onde a população maior na universidade é de jovem.
Durante todo tempo em que fiquei na universidade, sempre fiz estágios, projetos,
monitoria. Terminou que esses estágios ajudavam muito nas minhas despesas, pois o dinheiro
de minhas passagens, meus lanches, e até “meu pão nosso de cada dia”.
Então, nessa experiência obtidas através da universidade e através dessas oportunidades
eu conheci o “Conexões”. O que me chamou atenção no Programa foi esse interesse por
alunos de baixa renda, pois não é fácil ser pobre num mundo onde tudo é feito e preparado
para quem tem dinheiro, embora eu acredite que as Universidades Federais tenham surgido
com o intuito de atender aos menos favorecidos e acredito que esse apoio deveria ser desde
antes da universidade, ou seja, durante a vida estudantil desses alunos.
Esse projeto, que tem como objetivo, amparar e acompanhar esses alunos (citados acima)
me chamou muita atenção, já que eu me identifico com ele (projeto), pois essa sempre foi
minha esperança de a Universidade ter seus alunos, sentir, ouvir, vê e acompanhar a história e
a vida desses “desconhecidos”, e melhorar a qualidade de vida escolar de cada um.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Sem saltar fora da ponte e da vida
Marília Avelino da Silva*
Meu nome é Marília Avelino da Silva. Não tenho outro de pia, como o de muitos
Severinos de santos de romaria.
Tenho vinte e três anos e uma irmã, sou a primogênita. Amaro Severino da Silva, meu
pai, tem apenas a 1ª série do Ensino Fundamental e minha mãe, Marlene Maria Avelino, o
Ensino Médio completo. Ele é oriundo de Escada e ela de Ipojuca, ou melhor, da Usina
Ipojuca. Minhas avós são analfabetas, e graças a Deus, a situação em que se encontram hoje
é melhor que a de tempos passados.
Meus pais nunca insistiram que nós estudássemos, mas minha mãe foi uma que mais
nos incentivou a ler. Apesar de não gostar muito de estudar, sempre gostei de ler; os gibis
foram nossos - meus e de minha irmã - bons alfabetizadores. Tenho-os até hoje - pena que os
livros de agora sejam bem diferentes dos nossos velhos e bons gibis.
Como já afirmei, não gosto muito de estudar... e isso, desde criança. Tenho, contudo,
objetivos a serem cumpridos e o caminho deles se faz por meio dos estudos. Sei também,
que algumas pessoas dependem e dependerão sempre de um esforço de minha parte.
Iniciei meus estudos na Escola Municipal João Leite Nogueira Paz - em Cruz do
Rebouças/Igarassu -, que fica perto da casa de minha avó. Sempre antipatizei com a professora
da alfabetização e chorava para não ficar na escola. Nas vezes em que voltava para casa,
minha irmã era quem “ficava em meu lugar”. Lá, fiquei até a 1ª série; queria estudar em uma
escola maior; fui, então, para a Escola Estadual Brasilino José de Carvalho, que oferecia
estudos até o Ensino Médio. Nela, cursei da 2ª a 8ª série.
Cansei de lá. Queria um ambiente novo, com novas pessoas. Ao chegar à Escola
Estadual João Pessoa Guerra, na cidade de Igarassu, foi tudo novo. O bom é que tinham
outras pessoas que também moravam em Cruz de Rebouças e eu não ia sozinha para casa.
Achava engraçado o fato de que minha mãe, ao me matricular, sempre fazia amizade com a
mãe da pessoa que se tornaria minha melhor amiga. No Ensino Fundamental, essa pessoa foi
Keila (hoje, coordenadora de uma escola em que atuo aos finais de semana); no Ensino
Médio, foi Wilma (estudante do curso de Economia Doméstica na Universidade Federal
Rural de Pernambuco - UFRPE). Das pessoas com quem ainda tenho algum contato, apenas
Wilma e eu é que conseguimos entrar em uma universidade pública.
No Ensino Médio, tive bons professores - principalmente de História, que me deixou
apaixonada pela História de meu Município. No terceiro ano, o professor de Português
avisou, em sala de aula, que a Universidade de Pernambuco (UPE) abriria inscrição para um
Graduanda em Ciências Sociais.
184
Caminhadas de universitários de origem popular
cursinho destinado a alunos oriundos de escola pública. Uma amiga minha e eu fomos nos
inscrever, e saiu o resultado, apenas eu havia passado. Fiquei lá até setembro, não agüentava
mais acordar cedinho e passar direto para a escola (não tinha resistência física para isso), e
mesmo assim, não tinha decidido em que curso me inscreveria.
Terminei o Ensino Médio e fiquei um bom tempo sem estudar, até que me matriculei
no Normal Médio (antigo Magistério), para passar o tempo. Não me adaptei ao curso, e no
fim do ano, desisti. Foi aí que, no ano de 2002, me inscrevi para isenção da taxa do vestibular
UFPE/UFRPE. Ainda me sentia perdida. Ganhei a isenção de 50% (não só eu como minha
irmã) e no último dia, escolhi Pedagogia.
Neste ano, houve greve nas Universidades Federais e as provas do vestibular foram
adiadas para janeiro de 2003. Meu material de estudo era o jornal do Rumo ao Futuro,
patrocinado pelo Jornal do Commercio. Comecei a estudar um mês antes da prova. Passei
na primeira fase. Que maravilha! Vou me empenhar para a segunda fase. Não passei. Não
fiquei triste: para mim, tudo era alegria.
Como não ia mais à escola, minha mãe dizia: “Menina, arranja alguma coisa pra
fazer!”. Foi aí que entrei num cursinho popular (com taxa de R$ 10,00 por mês), a fim de
prestar vestibular no fim do mesmo ano. Como continuava perdida, minha irmã deu a
idéia de que eu fizesse vestibular para Ciências Sociais, já que gosto muito de História e
Geografia. Lá fui eu.
Primeira fase... passei, que alegria! Na segunda fase, quando me deparei com o colégio
inteiro fazendo vestibular para História, Economia e Ciências Sociais na UFRPE, me
desesperei, mas pensei positivo e - como brasileiros, não desistimos nunca - mentalizei: “Eu
vou passar, eu vou passar, nem que seja em último lugar. Foi isso que aconteceu. Resultado:
APROVADA!! Alegre por mim e triste por minha irmã, que não passou.
Meus pais ficaram muito contentes ao saberem que eu havia passado; eles não são,
entretanto, daqueles que expressam suas alegrias, e acho que meu pai nem sabia direito para
quê e por que insistíamos em entrar em uma universidade. Até hoje, eles sentem muito
orgulho, não só eles, como um tio meu, pois, juntamente com minha prima, fomos as primeiras
da família a ingressarem em uma UNIVERSIDADE e PÚBLICA enquanto tantos outros
estão em faculdade e não em uma universidade. Minha irmã me acompanhou no primeiro
dia de aula - ou aula magna -, foi uma forma dela se sentir parte do processo e um incentivo
para que ela continuasse estudando, tanto que hoje, também, está na UFRPE ou, popular e
carinhosamente, chamada RURAL.
Na Rural, firmei (ainda estou aumentando) laços de amizade com professores, alunos
e funcionários da instituição. Faço parte do grupo de teatro do CEPED, representando a
Bela Inês, atividade da qual gosto muito, e participo do Coral Municipal de Igarassu.
Acredito que ainda tenho muito a crescer e a ajudar outros a chegarem mais além. Na
8ª série, uma senhora pediu permissão para nos filmar na sala de aula. Em uma parte de seu
discurso, falou que sempre estudou em escola pública, que estava no Mestrado e que se
orgulhava muito de ser de escola pública. Passei a crer, com suas palavras, que também eu
poderia viver tal experiência.
Acredito que o Conexões de Saberes, realmente venha a ser um caminho para que
outros de nós não desistam em função de percalços impostos pela vida atual. Nós, hoje, no
programa, somos uma referência para muitos alunos; sabemos que não encontramos apenas
flores em nossos caminhos e que os obstáculos que até hoje enfrentamos são fortes entraves
Universidade Federal Rural de Pernambuco
185
em nosso futuro profissional. Às vezes, penso que a universidade está se tornando micro
diante do processo de globalização e das transformações na sociedade.
Espero que isso mude. Eu, como tantos outros estudantes universitários, enfrentamos
o grande “bicho-papão” que está logo após terminarmos o curso de graduação, dá mesma
forma que, alguns que terminam o Ensino Médio. É o “salve-se quem puder” e o “cada um
por si”. Então:
“Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que se vê, Severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina.
João Cabral de Mello Neto
186
Caminhadas de universitários de origem popular
Um pouquinho de mim
Mitaliene de Deus S. Silva*
Meu nome é Mitaliene de Deus Soares Silva. Tenho 18 anos e moro com meus pais.
Nasci em Recife, mas resido em Olinda. Sou a mais velha entre os filhos, que são três, e
talvez isso me faça ter uma grande carga de responsabilidades com minha família.
Minha mãe morava em Ipojuca, cidade pequena, e conheceu meu pai em Porto de
Galinhas, onde ela trabalhava. Meu pai já era funcionário público e também estava a serviço.
Os dois se apaixonaram, casaram-se e eu nasci.
Quando eu tinha quase dois anos, foi a vez de minha irmã aparecer. A vida não foi fácil
nesses tempos, porém, estávamos sempre juntos.
Eu era muito quieta, coisa que foi se modificando ao longo do tempo. Ainda sou um
pouco tímida, mas tenho facilidade de me relacionar. Nos estudos, fui aplicada, e me considero
uma aluna estudiosa. Minha mãe sempre comenta que a primeira coisa que eu fazia, quando
chegava da escola, era a “tarefinha de casa”.
Até a 8ª série, estudei em colégio particular. No entanto, no ano de 2002, minha
história mudou de rumo. Meu pai, começou a apostar no jogo de bicho e no bingo, coisa
que mudou o padrão financeiro de minha família. As contas começaram a acumular, perdemos
nosso carro e ficava constrangida, quando a diretora ia à sala-de-aula com a lista de devedores
e meu nome estava entre eles. Mas diante de tantas coisas ruins, esse foi o período em que
eu fiz mais amizades, conheci familiares, que moravam distante, maravilhosos e minha mãe
deu a luz ao seu primeiro filho homem. Isso me fez acreditar que o último ano do Ensino
Fundamental II foi o primeiro melhor ano da minha vida.
No ano seguinte, tive que ir para um colégio público. Foi uma decepção: não tinha
aulas, as salas eram sombrias e os alunos mal-encarados, fumavam e bebiam na porta do
estabelecimento. Eu não queria fazer amizades e chegava em casa frustrada. Meu pai não
dava mais dinheiro e via mainha preocupada, vendendo artigos de revistas para nos dar o
alimento. Ficava muito triste vendo-a chorar, porque não tínhamos um almoço digno. Esses
acontecimentos fizeram-me mais forte para nunca desistir.
No segundo ano do Ensino Médio, em algumas noites, meu pai não dormia em casa,
até que ele passou quase um mês desaparecido: não ia nos ver nem trabalhava. Minha mãe
foi procurá-lo e o encontrou dormindo num quartinho de um bingo. Lutamos, então, todos
juntos, para ajudar a reconstruir nossa família.
Um outro marco em meu destino foi o último ano do Ensino Médio. Logo no início,
consegui passar em uma prova para o pré-vestibular de graça. Com esforço, conseguia pagar
Graduanda em Química.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
187
a passagem e não faltava. Logo após, fui aprovada num cursinho do governo. E o sucesso
nas seleções não parou por aí: passei nos dois vestibulares (UFRPE e UPE). A escolha do
curso é que foi um problema: História ou Química. Acredito que fiz o certo em ficar com a
segunda opção.
Antes de entrar na Academia tinha medo do que encontraria, mas quando passou a
primeira semana de aulas, senti confiança em mim e em minha turma. Sou a primeira pessoa
da família a ingressar em uma universidade pública, o que causa grande orgulho a meus
pais. Entrei na Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE determinada a ter um
bom currículo, ser um diferencial e obter conhecimentos necessários e suficientes para ser
uma boa profissional.
Hoje, estou no final do segundo período para Licenciatura em Química. Mesmo tendo
de ouvir os comentários: “Estudar tanto para ser professora?!?”, meus familiares me
incentivam, porque sabem o quanto eu gosto do curso e das pessoas a quem conheci.
Dedico-me bastante às atividades que realizo, esforçando-me para um bom funcionamento
das coisas. Não tenho pretensões a encerrar meus estudos no final da graduação, mas buscar
outras formas de envolvimento com a área de conhecimento que escolhi. Sou uma pessoa
simples e me apaixono facilmente pelas coisas que me fazem acreditar o quanto a vida vale
a pena.
188
Caminhadas de universitários de origem popular
Persistências
Natália Josefa do Nascimento*
Meu nome é Natália, tenho 20 anos, e como todas as pessoas, tenho histórias de
decepções e conquistas. Sou filha da dona de casa Josefa Batista e do pedreiro José Manoel,
a quem agradeço todas as conquistas que obtive em minha caminhada rumo a uma
universidade e a um futuro digno.
Nasci em Recife, e aos três anos, fui morar em Jaboatão dos Guararapes. Iniciei, aos
cinco anos, meus estudos na Escola Municipal Vânia Maria Laranjeira. Saí dessa
escola na 6ª série e fui para a Escola Estadual Alzira da Fonseca Breuel, onde comecei a
admirar Matemática.
No primeiro ano do ensino médio, fui para a Escola Estadual Professor Epitácio André
Dias, na qual concluí todo o Ensino Médio, período que recordo alguns fatos, como: no
terceiro ano, alguns professores acreditavam que eu passaria no vestibular para o curso de
Matemática na Universidade Federal de Pernambuco, porém, não obtive êxito. Com essa
não-aprovação, alguns professores da escola passaram a me ignorar, provei, no entanto, que
não sou incapaz e que a persistência torna em realidade qualquer desejo.
No ano seguinte, fiz novamente vestibular para Matemática, só que, dessa vez,
havia entrado em um cursinho pré-vestibular, que ampliou meu conhecimento nas
disciplinas de Exatas. Tentei vestibular para Matemática, e mais uma vez, fracassei,
porém, melhorei ao máximo minha nota. Nesse mesmo ano, entrei na Escola Técnica,
onde cursei Edificações.
No ano de 2005, fiz vestibular novamente, só que, dessa vez, optei por Química, e no
final de ano, saiu o resultado tão aguardado, consegui, finalmente passar. Fato que levarei,
para sempre, guardado na memória, pois foram muitas tentativas minhas e muito sacrifício
para meus pais.
Em fevereiro de 2006, iniciei as aulas na Universidade. Conheci pessoas que, como
eu, batalharam por uma vaga, e em anos anteriores, experimentaram as mesmas decepções.
Fiz amizades. Na passagem de um semestre para o outro, surgiu a oportunidade de participar
de um Programa - “Conexões de Saberes” - cuja proposta é a de levar os estudantes
universitários a partilharem conhecimentos com sua comunidade de origem. Inscrevi-me e
consegui participar de uma experiência que, em muito, tem contribuído para a minha
vivência, tanto na universidade, como extra-muros universitários.
2006, tem sido um ano de alegrias, mas a morte de meu avô, de quem guardo lembranças
de momentos felizes, e o desemprego de meu pai, depois de dez anos de atividades na
Graduanda em Química.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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empresa em que trabalhava, foram fatos que incomodaram, entristeceram, mas não diminuíram
meu empenho nem minaram meus planos para o futuro.
Ah, futuro... nele, espero continuar persistente, desejosa de que meus planos sejam
concretizados, e apagar da memória todos os problemas enfrentados. Ampliar meus
conhecimentos na vida vivida e na vida acadêmica e ajudar minha família: é o que almejo,
ainda que consciente de que nada é fácil e de que só a persistência torna tudo possível.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Tudo é possível
Natália Miranda Bezerra*
Meu nome é Natália Miranda Bezerra, filha de professora primária e de contador.
Comecei muito cedo a demonstrar interesse em estudar, aprender, talvez pela minha mãe
não ter com quem me deixar pra ir trabalhar dando aulas em sua turma de alfabetização,
me levava todos os dias para as aulas, por isso aprendi a ler cedo, com 4 anos, e desde
então nunca mais parei de gostar de ler, se tornando esta uma das atividades mais prazerosas
da minha vida.
Quando criança gostava muito de desenhos, tanto que preferia passar minhas horas de
folga desenhando meus croquis, já que meu sonho era ser uma estilista. Tinha muita vontade
de estudar desenho, mas nunca tive oportunidade de desenvolver essa minha habilidade,
por isso ainda hoje, me sinto frustrada, por não ter tido as chances de ter desenvolvido essa
minha habilidade.
Mas além de desenhar eu gostava muito de estudar, e apesar de todas as dificuldades
e crises financeiras pelas quais eu e minha família tivemos que passar, nunca pensei em
desistir, na época em que estudei o primário foi uma das épocas mais difíceis, pois muitas
vezes não tinha sequer o lanche para levar pra escola e adorava quando tinha merenda,
principalmente se fosse macaxeira com charque, a minha merenda favorita.
Na minha adolescência, continuei gostando de estudar, principalmente português,
tanto que fui a melhor aluna da minha turma, e ao terminar o ensino médio e prestar seleção
no ENEM fui parabenizada pelo meu desempenho na prova de redação, onde tirei a nota
máxima, ficando entre as melhores notas do país.
Um ano depois da minha conclusão do ensino médio, fiz uma seleção pra participar do
Projeto Professores do Terceiro Milênio, fui aprovada e passei um ano muito puxado, pois
além da rotina exaustiva pré-vestibular ainda tinha que trabalhar. Mas fui recompensada por
todo esforço e dedicação, eu e minha irmã conseguimos passar no Vestibular para Licenciatura
em Química e essa foi uma das maiores felicidades da vida de toda nossa família.
Mas a vida de universitária não é nada fácil, pois trabalhava em comércio e chegava
ao meu curso muito tarde, muitas vezes perdia as aulas e tinha que escolher entre pagar uma
cadeira ou fazer uma hora extra pra conseguir pagar as contas do final do mês. Assim, fui
levando meu curso e apesar de vários percalços, foi através dele que pude ser uma boa
profissional, ainda em construção.
Hoje, graças a Deus, já trabalho fazendo o que gosto, ensinando química e a cada dia
que se passa me sinto uma professora, procurando sempre contribuir para que cada aluno
Graduanda em Química.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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possa ter o privilégio de ensinar e aprender, eu possa tocar o seu íntimo e ser uma
incentivadora e motivadora, pois acredito muito na capacidade de todos os seres humanos
e sei que o que cada pessoa precisa é de um mínimo de oportunidade.
Hoje, além de minhas atividades como professora de química, divido meu tempo
contribuindo como monitora de artesanato e Divulgação Científica (atividades que são
minha paixão) em oficinas oferecidas pelo Conexões de Saberes e Escola Aberta e sinto um
orgulho imenso de fazer parte de um projeto com a intenção maravilhosa de primeiramente
fazer com que nós que fomos alunos de origem popular, nunca nos esqueçamos de nossas
origens e que possamos contribuir, dialogando e trocando os nossos saberes e experiências
visando a nossa contribuição a sociedade.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Nelma Maria Pereira Roza*
Meu nome é Nelma Maria Pereira Roza. Nasci no dia 24 de abril de 1982, na cidade de
Recife-PE. Meus pais, Antonio José Roza e Luzia Maria Pereira Roza, não estudaram o
suficiente para ter uma boa condição financeira e oferecer aos filhos tudo o que eles queriam.
Porém, na minha casa, sempre foi prioridade uma alimentação de qualidade para evitar
possíveis enfermidades. Também, se priorizou a compra de roupas e sapatos que são
indispensáveis para garantir uma boa qualidade de vida, direito de todo o ser humano.
Comecei a estudar aos cinco anos de idade, na Escola Pública 14 Bis, em Boa
Viagem, onde aprendi a fazer meu nome e brincar com outras crianças, começando,
assim, a me socializar. Quando ingressei na 1ª série do Ensino Fundamental, ocorreu a
minha primeira reprovação, ainda nessa escola, devido à constante mudança de
professores e por eu não saber ainda ler e escrever. Durante às férias, no final desse ano,
minha irmã Madja, cinco anos mais velha que eu, se dedicou a me ensinar a ler, escrever
e as quatro operações de matemática.
A outra escola pública, onde ingressei para concluir o Ensino Fundamental, Escola
Brigadeiro Eduardo Gomes, vizinha da escola anterior, foi de grande importância para a
minha vida e para o meu desenvolvimento social e intelectual. Conheci várias pessoas,
tanto alunos, que estiveram comigo durante todo o período escolar, como professores
dedicados ao ensino; outros, porém, não estavam muito preocupados se os alunos aprendiam,
mas eram grandes mestres quando queriam. Nunca mais reprovei durante o período de
ensinos Fundamental e Médio.
Quando cheguei ao Ensino Médio, na Escola Pública Santos Dumont, também em
Boa Viagem, vizinha de muro das outras, percebi que seria difícil essa fase. Comecei a
estudar as matérias de física e química, que nunca havia estudado antes. No entanto, não
havia professor de matemática. Uma vez perdida aparecia um professor, que logo saía da
Escola por algum motivo desconhecido, para nós alunos. Este problema, ocorreu durante
grande parte do Ensino Médio. Nesta época, foi adotado o conceito escolar substituindo a
nota. Este método, facilitou e muito a conclusão do Ensino Médio para a grande maioria
dos alunos, pois o conceito era de acordo com as hipotéticas notas sugeridas pelo professor.
A média da Escola era seis, porém, com o conceito escolar alguns professores passavam
o aluno que tirasse até três, porque o que importava era o conceito na caderneta, quando
saía o Histórico, a surpresa, o aluno estava na média escolar. Hoje em dia, pela demanda de
alunos, os professores ensinam bem, mas as provas são muito mal elaboradas, diminuindo
Graduanda em Economia Doméstica.
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assim o nível de dificuldades, o que facilita a aprovação rápida. Mas se algum reprovar,
ainda pode passar de ano e pagar a outra matéria que reprovou no próximo ano letivo. E as
provas destas matérias que o aluno está pagando são ainda mais fáceis que antes. Não passa
de ano quem realmente não quer nada com a vida.
Diante disso, no último ano de conclusão do Ensino Médio, eu ainda pensava se iria
prestar vestibular ou não, e essa dúvida era também a dos meus colegas e amigos de classe,
que devido a um ensino precário desde a base escolar, acreditavam que seria um verdadeiro
milagre entrar em uma Universidade.
No último momento, eu me inscrevi no Curso de Bacharelado em Economia Doméstica,
na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), porque o curso que eu queria fazer,
Nutrição, era muito concorrido, sendo assim, seria mais difícil.
Enfim, concluí o ensino médio em 2000, e já estava fazendo a 2ª fase do vestibular.
Passei e ingressei no ano de 2001, na 2ª entrada, só que eu tinha solicitado a 1ª e não sabia
o que iria fazer sem estudar um semestre inteiro. Nas escolas públicas, é normal haver greves
todos os anos, mas seis meses sem estudar nunca havia ficado antes. Daí, tive a sorte de
receber um telefonema de uma outra aluna interessada em mudar de turno, que ligou para
mim, e consegui, finalmente, mudar a entrada. Comecei, então, a estudar na Universidade
Federal de Pernambuco (UFRPE), na 1ª entrada de 2001.
Na Universidade, achei tudo estranho, as pessoas não eram mais aquelas que conheci
desde o primário: cada um por si. As provas, então, eram medonhas. Não tinha prática em
usar computador, as pessoas não aceitavam as diferenças individuais das outras, causando
intrigas, porque todos tinham que aceitar as opiniões do grupo maior, (mas até entre eles
havia desentendimento, para piorar ainda mais a situação).
Meus pais, que têm baixo poder aquisitivo, me sustentavam financeiramente na
Universidade durante os quatro anos de curso. Depois, comecei a fazer o Estágio
Supervisionado Obrigatório (E.S.O.) em uma instituição de Educação Infantil no bairro da
Várzea, periferia da Cidade do Recife-PE, e recebia ajuda de custo. Fiquei independente.
Graças a eles e a Deus, que tem suprido as nossas necessidades, sempre tive dinheiro suficiente
para as despesas na Universidade, mas não o suficiente para participar de um Congresso fora
do Estado, pois as condições financeiras eram insuficientes para realizar esta atividade.
Hoje, estou recebendo uma bolsa de estudos do Programa Conexões de Saberes,
promovido pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), que tem me ajudado
muito, e ainda estou terminando o meu curso, pois ainda falta apresentar a monografia.
Estou tendo muitas dificuldades na elaboração desse trabalho. Às vezes me acho incapaz,
mas Deus vai me ajudar e me capacitar para concluir este curso e ser uma profissional
bastante conceituada e realizada, sendo um grande exemplo aonde quer que eu chegue.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Memorial
Pollyanna Accioly de Souza *
Minha história de vida iniciou-se à 25 anos, mais precisamente no dia 14 de
setembro de 1981.
Nasci em um hospital particular da cidade, meus pais na época eram comerciantes
bem-sucedidos, dois anos mais tarde nasceu Eduardo, meu irmão, crescemos estudando nos
melhores colégios da região.
Em meados dos anos 90, meus pais passaram por uma grande crise financeira, que por
conseqüência, levou ao fechamento da padaria. A partir daí, nossas vidas mudaram
bruscamente, pois além das dívidas adquiridas, foram vários funcionários na justiça do
trabalho, e meus pais acabaram ficando sem nenhum dinheiro. Eu e meu irmão então, fomos
estudar em colégios estaduais, meus pais ficaram desempregados e às vezes nós não tínhamos
nem o que comer! Três anos mais tarde, meu pai conseguiu empregar-se como vendedor
externo, nossa vida então começou a melhorar.
Em 2000, ele mudou de emprego, pude então me matricular em um cursinho e passar
no tão sonhado curso universitário, passei em Zootecnia na UFRPE. Em 2003, foi a vez do
meu irmão passar em Fonoaudiologia.
Terminei zootecnia em 2006, hoje, curso Licenciatura em Ciências Agrárias na mesma
instituição de ensino, aí eu pensei, nossa vida agora é só alegria. Puro engano meu. No dia
23 de outubro de 2003, meu pai morre, vítima de enfizema pulmonar adquirido ao longo do
tempo de batalhas. Minha vida mudou de ponta cabeça, eu, minha mãe e meu irmão
“perdemos o chão” com aquela notícia. Pois além da perda sentimental que é inenarrável,
veio por conseqüência a perda financeira, pois meu pai era o único em casa que trabalhava,
e além de tudo vivíamos de aluguel.
Passamos por “maus momentos”, depois de um tempo saiu a pensão do meu pai, não
era grande coisa, mas estava dando para vivermos!
Foi então que, acessando o site da UFRPE, vi que estavam selecionando alunos de
origem popular para participar de um projeto chamado Conexões de Saberes. Este viria só
há me acrescentar, pois além de ajudar minha família com a bolsa que seria oferecida, ainda
poderia “ajudar” pessoas com realidades de vida parecidas com as minhas.
Desde o memento em que saiu o resultado dos selecionados para entregar ao projeto,
minha vida mudou só para melhor, e hoje eu agradeço as oportunidades que o Conexões
me proporciona.
Graduanda em Agronomia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Meninos não choram
Rafael da Veiga Pessoa Portela*
Anunciado por ventos falantes e chuvas constantes, estreei neste mundo em outubro
de 1982. A partir de então, começava o meu grande desafio: “viver”. Viver sem o auxilio de
grandes, andar em minhas próprias leis, respirar sem ajuda de um ser, pular no compasso que
criei, comer sem culpa, beber de fontes mágicas, girar em melodias suaves, explorar territórios
nunca visitados, ouvir um refrão delirante, cantar uma música tocante, dormir e acordar na
sala, diminuir o atraso, admirar um olhar fascinante, tocar nas longas madeixas, acordar no
fim da tarde, pedir bacons turbinados, sucos bem gelados... ou seja, ser somente eu.
Ao passar do tempo, fui percebendo que a isolação me fazia bem, eu me identificava
com o silêncio que encontrava. Era no silêncio onde obtinha as respostas que buscava, as
forças que perdia e as lágrimas não derramadas.
Apesar do gosto pela isolação eu sabia muito bem usufruir momentos de lazer, aventura
e reflexão, e bem logo descobri uma grande explosão sentimental em minha vida: “a música”.
Ela me enfeitiçou antes mesmo dos meus 10 anos e foi cada vez mais me consumindo,
devorando, infectando... fui contagiado letalmente pela arte musical.
Ao passar do tempo, continuei vivendo arriscadamente, pois o ápice da vida, pra mim,
era a adrenalina. Eu tinha que senti-la diariamente e várias vezes por dia. Eu era o menino
mais psicodélico que já conheci. Consegui quebrar meus dois braços ao mesmo tempo,
tomei banho de maré em altas correntezas, curtia muito rock... fiz estripulias! Aproveitei
minha infância com o sol em pleno verão.
A vida tão ligeira, não me preparou para os desafios vindouros e eu logo me reclusava em
meu silêncio. Era no silêncio que a música me surgia como a aurora que emana em dia brilhante
e lua cheia em mar aberto. Consegui chegar até o dia atual sempre acompanhado pela essência
que encontro na arte, aprendi a dominar a música fazendo com que ela me transmita aquilo que
quero ouvir ou falar. O meu mundo era só meu e ninguém podia destruí-lo.
A liberdade que eu gozava me fez descobrir a natureza de forma concreta. No fundo do
mar vi belezas que têm seus motivos de se esconderem. O mar era meu refúgio sereno, minha
montanha, os encantos dos meus desencantos, a Síndrome de Deus, a esperança que vem,
minha isolação, a união dos corpos, a transmissão, meu carregador de energias, as memórias
póstumas.... cada vez que estive pra baixo o mar me levantou.
Graduando em Agronomia.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Em meio a tantos acontecimentos, minha vida estava cada vez mais distante de um
direcionamento profissional. Sem emprego, não consegui passar no meu primeiro vestibular.
E assim, logo chegou o segundo, e o resultado foi o mesmo.
Ao término de um curso técnico em agropecuária, decidi tentar vestibular para um
curso diferente aos dois anteriores, então me escrevi em Engenharia Agrícola e Ambiental
e por obra divina fui contemplado com esta alegria consumidora. Hoje, estudo na
Universidade Federal Rural de Pernambuco, quero ser tudo aquilo que eu não fui e ter
tudo o que não tive.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Em busca da vitória
Raffael Campos dos Santos*
Olá! Chamo-me Raffael Campos dos Santos, tenho 21 anos, e nasci em Recife no dia 24
de fevereiro do ano de 1986. Sou Aluno da Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE) e estou cursando o 5° período do curso de Licenciatura Plena em Ciências Biológicas.
Cursei uma parte do ensino fundamental em escola particular (da 3ª à 5ª série), a outra
parte do Ensino fundamental e todo o Ensino Médio eu cursei em escolas da rede pública.
Fui transferido da escola particular para a pública por motivos financeiros. Foi muito
difícil para mim no início, porque o nível de ensino era muito precário em relação ao que eu
estava acostumado.
No ano em que eu estava cursando a 1ª série do Ensino Médio (2001), eu quase não
tinha aulas o que me deixava muito chateado, porque tinha que sair cedo de casa todos os
dias e gastar uma passagem caríssima para ir ao colégio e ter que voltar porque os professores
não foram dar as suas aulas. De 11 disciplinas que o currículo escolar apresentava para
aquela série, apenas 5 delas tinham professores responsáveis por ensiná-las, mas no final do
ano o boletim estava lindo, ao lado das áreas do boletim que discriminavam as disciplinas
sem professores encontrava-se o seguinte: aprovado por média. Como é que isso acontecia
se nem aula a gente tinha?
Em 2002, mudei de colégio, as coisas melhoraram um pouco, quer dizer, melhoraram
muito. Fui estudar no Colégio Estadual de Olinda, lá, me inscrevi e fui selecionado para
participar de uma ONG, o Projeto Casa Padre Melotto, uma iniciativa de uma congregação
italiana, a Pia. Sociedade de Padre Nicola Mazza. O objetivo principal desse projeto é
auxiliar na educação escolar e formação pessoal de alunos de escolas públicas. Foi quando
comecei a participar desse projeto que vi alguma coisa diferente e foi também quando pude
começar a sonhar em um dia entrar na Universidade. Lá, aprendi muitas coisas. Além das
aulas que assistia, aprendi a conviver e trabalhar em grupo, e a respeitar as diferenças de
opiniões dentro de um grande grupo.
Em 2003, ano em que terminei o Ensino Médio, além de estar estudando no Colégio
Estadual de Olinda e participando do Projeto Casa Padre Melo, me inscrevi no Programa
Rumo à Universidade. Durante esse curso pré-vestibular oferecido pelas Universidades
Federais e Estadual de Pernambuco, foi com todos os alunos um teste simulado, neste teste,
quem conseguisse atingir colocação entre os dez primeiros do prédio receberia isenção total
nas inscrições para os vestibulares das universidades patrocinadoras e mentoras do projeto.
Graduando em Ciências Biológicas.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Graças a Deus consegui o 6° lugar geral e o 1° lugar da minha turma, com isso consegui a
isenção para os vestibulares.
Uma semana antes de terminarem as inscrições eu estava totalmente confuso, pois não
sabia em qual curso me inscrever. Queria Jornalismo, Psicologia e Bacharelado em Biologia
ao mesmo tempo. Graças a um grande amigo meu, Arthur, consegui escolher a Licenciatura
em Biologia. Inscrevi-me para este curso com opções para a 1ª e a 2ª entrada. Quando passei
na 1ª fase, minha família e eu ficamos muito felizes com aquela conquista, mas a guerra
ainda não havia sido ganha, faltava a 2ª fase. Fiz as provas da 2ª fase muito confiante, mas
infelizmente não obtive o mesmo desempenho que na 1ª. Fiquei muito triste, mas mesmo
assim fui ver a lista de alunos que possivelmente seriam remanejados, e mais uma vez fiquei
triste e decepcionado comigo mesmo, pois por menos de 0,001 eu também não entrei na
lista de remanejáveis.
Em 2004, me inscrevi no Pré-vestibular da Universidade de Pernambuco (PREVUPE),
não consegui o mesmo desempenho que havia conseguido no Rumo à Universidade, mas
mesmo assim, continuei confiante e na época das inscrições para o vestibular estava eu lá,
para me inscrever novamente na Licenciatura em Ciências Biológicas. Antes da semana de
provas eu já estava nervoso, com medo de nessa vez não passar nem da 1ª entrada, mas não
deixei ninguém perceber. Sempre que me perguntavam como iria ser naquele ano o meu
resultado, eu respondia: “Com toda a certeza esse ano eu passo!”. Na verdade eu não estava
tão confiante quanto todos achavam que eu estava, mas mesmo assim não desisti.
No dia da prova deixei o medo e a insegurança em casa, e fui à luta em busca da
realização do meu sonho. Fui fazer a prova, fiz muito confiante como da 1ª vez, e no dia do
resultado, da mesma forma que no ano anterior eu havia sido classificado para a próxima fase.
Quando vi o resultado da 1ª fase e percebi que havia conquistado a 35ª colocação fiquei
muitíssimo feliz e minha família também, isso ajudou a melhorar a minha auto-estima. Na 2ª
fase eu já estava bem mais confiante, pois naquela época o meu curso oferecia 80 vagas e pelo
fato de eu ter conseguido aquela colocação eu tinha muitas chances de ser aprovado.
Fui fazer as provas da 2ª fase com um pouco de medo, mas bem melhor do que na 1ª. Nos
dois dias de prova, toda vez que eu terminava de preencher o gabarito, eu dava um jeito de
copiá-lo para poder conferir o que foi que eu acertei e errei. Quando cheguei em casa, procurei
rapidamente ir em uma Lan House para conferir na internet o resultado do gabarito.
Quando cheguei à Lan e abri a página na internet na qual estavam as respostas do
gabarito, SURPRESA! Quase nada conferia com as minhas respostas. Voltei pra casa todo
sem graça, mas quando minha mãe perguntou, eu disse que a prova havia sido ótima e que
com toda a certeza eu havia sido aprovado. Esperei o resultado com muito medo, mas para
todo mundo que me perguntava eu falava que já estava aprovado e que só faltava o resultado
ser divulgado para todos terem certeza do que eu estava falando. Minha autoconfiança me
ajudou muito a superar os dias de espera da divulgação do resultado. No dia em que o
resultado saiu estava lá: RAFFAEL CAMPOS DOS SANTOS - APROVADO.
Foi um dia maravilhoso, todos na minha família estavam felicíssimos inclusive eu.
Neste dia eu pude perceber que não importam as dificuldades e as circunstâncias da luta o
que realmente importa é a determinação e a vontade de vencer.
Hoje, posso dizer que sou um VENCEDOR.
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Memorial
Renata Shirley de Santana Barbosa*
“Só eu sei as esquinas em que passei,
só eu sei”
Djavan
No dia 7 de dezembro, foi divulgado o listão dos classificados no vestibular das
Federais de Pernambuco 2006. Nele, constava o nome Renata Shirley de Santana Barbosa,
aprovada para o curso de Bacharelado em Ciências Sociais - a mesma pessoa que agora,
timidamente, começa a escrever estas linhas. Esse dia tornou-se muito especial. Com o
objetivo de mostrar como se deu a trajetória de minha vida até esse dia, vem à minha
lembrança as figuras de três pessoas fundamentais: Maria do Carmo Silva (minha avó),
Jacilene de Santana Barbosa (minha mãe) e Sheyla Gonçalves Barbosa (minha irmã).
Nasci em 30 de maio de 1984, em Recife-PE, fui criada no bairro de Três Carneiros Ibura, sempre em companhia de minha avó, pois a presença de minha mãe não era constante,
uma vez que ela tinha que trabalhar e morava longe. Foi nesse bairro que me desenvolvi,
que adquiri valores apoiados na ideologia religiosa, protestante e que sonhei em ser
missionária. Mas a adolescência me revelou um desafio. Primeiro, a mudança para um
colégio estadual, o Gerrino Pontes, na Imbiribeira. Nele eu tive a oportunidade de conhecer
um mundo mais amplo e procurar a minha identidade. Nesta época, passei por problemas
que acabaram levando minha avó a me mandar morar com minha mãe. Talvez, um dia, eu
entenda o porquê; talvez, um dia...
A casa de minha mãe no bairro Central concedia-me uma nova visão sobre a vida. Não
era um lar evangélico; não consegui manter minha religião (igreja de bairro é muito diferente
de igreja central), contudo, consegui manter a fé, e esta se renova a cada manhã.
Já na 7ª série do Ensino Fundamental II, tive prova concreta de que “sonho que se
sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade”: foi no
momento em que desejei estudar no Colégio da Polícia Militar, pois achava linda a farda,
sendo assim, vivia pedindo à minha mãe para estudar lá. Foi então que minha mãe ouviu um
anúncio no rádio de que havia vagas para essa instituição. Indo até lá, ela descobriu que as
vagas anunciadas eram para professor mas com insistência, soube que haveria seleção para
alunos civis em breve. Neste momento, recordo a ajuda de meu padrasto, soldado Gomes,
que me inscreveu como sua dependente. Os preparativos para a prova de seleção foram
Graduanda em Ciências Sociais.
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Caminhadas de universitários de origem popular
intensos mas, como o prazo era curto, eu não pude aprender muito. Para provar que sonhar
só faz bem, fui aprovada para o curso noturno.
Minha vida no Colégio da Polícia Militar foi marcada por altos e baixos. Tive muitos
conflitos com minha mãe; aos quinze anos, já estava em meu primeiro emprego (informal).
Era muito cansativo trabalhar o dia todo e estudar à noite, em um colégio que era bastante
exigente. Lembro com carinho da figura de minha amiga Kelly Milena que, junto comigo,
compartilhava os momentos difíceis.
Às vezes estávamos, as duas, pedindo ao Coronel descontos na pequena quantia com
a qual contribuíamos mensalmente com o colégio. É bom recordar o “colo” encontrado nas
conversas com o professor Antônio, de Biologia. Para alguns, ele era o Capitão Antônio;
para nós, ele era um amigão, que me motivou a prestar vestibular.
Até a época do vestibular, tive conflitos gritantes em casa, a exemplo do dia em que
minha mãe juntou minhas coisas (até a minha cachorra Capitu) e me mandou para a casa de
minha avó. Eu chorei bastante, por não querer ir, mas como não tinha opção, disse que iria.
Era época de provas finais no colégio e tudo que coloquei na bolsa foi um livro de educação
integrada, uma blusa de festa e cinco reais que havia ganhado para o transporte até a casa de
minha avó. Tomei a decisão mais difícil: fugir de casa.
Para lembrar desse momento, tão doloroso, sem molhar o rosto, é preciso lembrar o
apoio de “tia” Josy e de Junior (Ah, Junior!), meu primeiro namorado, que, no período da
fuga, ficava até meia-noite comigo na praça, a fim de que eu pudesse ir para uma casa que
minha família havia desocupado recentemente e que eu ainda tinha a chave. De lá, eu
tinha que sair antes das cinco horas da manhã, para que os vizinhos não notassem. Eu
tinha um celular e esperava que minha mãe liga-se preocupada, só que ela não ligou (é...
ela não ligou). Para superar essa crise, após ter sofrido aliciação para drogas e para a
prostituição, tive moradia na casa da “tia” Josy e apoio de minha irmã, Sheyla Barbosa.
Depois, como diz Legião Urbana, “já morei em tantas casas que nem me lembro mais”. O
fato é que não voltei para a casa de minha mãe, mas dizer isso não quer dizer que nunca
voltaria (nunca é muito tempo).
Ao terminar o terceiro ano, estava em harmonia familiar e com a certeza de ter estudado
em um bom colégio que, conseqüentemente, me daria uma boa aprovação no vestibular.
Como é costume dos alunos desse colégio fazer concurso para o CFO (Curso de Formação
Oficial), eu também fiz, e além dele, fiz o ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Foi
quando tive a primeira frustração: fui reprovada nos dois.
Para a Universidade Federal, fiz vestibular duas vezes: uma para um curso de Exatas e
outra para um curso de Saúde. Fui aprovada apenas na primeira fase. A primeira reprovação
gerou um dia intenso de choro, que acabou fazendo com que minha mãe me matriculasse
em um curso técnico de enfermagem, para me manter ocupada (“vantagens” de reprovar!). O
curso Técnico, mesmo com as dificuldades para pagar, renovou a minha estima, até tentei
montar um bloco: “Os quase-feras na folia”, mas faltou adeptos.
Retornando ao dia 7 de dezembro, em que alcancei a minha classificação, após duas
reprovações, não consigo dizer direito como foi possível. Ao continuar escrevendo estas
linhas, vejo que tudo é real e que faço minhas as palavras de Renato Russo: “Quem acredita
sempre alcança”! Chego ao final deste Memorial, salientando que sempre apostei nos sonhos
e devo confessar que alguns deles se perderam em minha trajetória, mas o conhecimento
que ficou, hoje, me serve de alicerce para continuar caminhando.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Horizontes
Renato de Souza Freitas*
Nasci em 27 de dezembro de 1976, e recebi o nome de Renato. Sou o mais novo de
uma família de doze irmãos, sendo seis homens e seis mulheres. Morava com a minha
família na zona rural do município de São Lourenço da Mata, região metropolitana do
Recife. Meu pai era agricultor e tentava proporcionar à família aquilo que lhe foi negado
pela vida: segurança familiar. Minha mãe cuidava da casa e dos filhos.
A minha ligação com a família sempre foi muito forte, chegando, às vezes, à beira da
idolatria. Cresci cercado pelo carinho dos meus familiares, principalmente de minha mãe e
das minhas irmãs. O primeiro sinal que indicasse de alguma forma a separação dos meus
entes queridos, causava-me medo e incerteza.
Pressionado por questões econômicas e de saúde, o meu pai resolveu vender o sítio em
que morávamos e mudar com toda a família para uma chácara mais próxima da cidade.
Neste novo endereço, começava a minha trajetória escolar.
1984
Aos sete anos de idade fui matriculado na Escola Municipal Padre João Barbalho, no
bairro onde morava. Era uma escola simples, com apenas uma sala de aula (posteriormente
reformada e ampliada).
A minha chegada à escola não foi fácil. O primeiro dia de aula foi marcado por choro
e sentimento de abandono, ainda hoje lembrado. Mas com o passar do tempo, as coisas
começaram a normalizar-se, exceto a dificuldade de relacionamento com os colegas, devido
à grande timidez que tinha.
Neste ano, estudei no período da manhã a 1ª série do chamado 1º grau. Procurava ser
um aluno aplicado, mesmo tendo muitas dificuldades com a matemática ou com os exercícios
repetitivos e behavoristas. No ano seguinte, passei a fazer a 2ª série, à tarde.
1986
O ano de 1986, representou muitas mudanças para mim e minha família. Estava
cursando a 3ª série.
Devido a problemas de saúde e à idade, o meu pai, com muito pesar, resolveu vender
a chácara e transferir-nos para a zona urbana de São Lourenço da Mata. Esta decisão
também foi influenciada pela necessidade dos meus irmãos morar em num local mais
próximo do centro para facilitar seus deslocamentos para o trabalho. Fomos morar numa
Graduando em História.
202
Caminhadas de universitários de origem popular
casa alugada, enquanto era providenciada a nossa casa definitiva. Era o período no qual
se realizava a copa do mundo de futebol.
Por causa da distância existente agora entre a escola e minha residência, precisei ser
transferido no meio do ano para uma escola mais próxima. A nova escola chamava-se Escola
Municipal Hermínio Moreira Dias, na qual tive bastante dificuldade de adaptação, inclusive
pela demanda de alunos existentes naquele estabelecimento de ensino, diferentemente
da antiga escola.
Em 1987, cheguei à 4ª série e gastava a maior parte do meu tempo dedicando-me aos
estudos, especialmente ao da geografia, que no momento não estava inserido no currículo
normal. Divertia-me consultando mapas e livros de geografia política, talvez sonhando em
um dia conhecer todos aqueles lugares...
1988-1991
A 5ª série era para mim motivo de orgulho, principalmente pelo fato de poder
relacionar-me com vários professores. Estudei no Colégio Municipal Ministro Apolônio
Sales, onde concluiria a 8ª série. Estes quatro anos foram um misto de alegrias e dificuldades.
O ano de 1990, foi muito importante, pelo fato de que pela primeira vez precisei ir à
recuperação em inglês e matemática. Aprendi a ter mais responsabilidade e humildade,
passando a exigir mais de mim mesmo. Naquele momento foi de grande valia a contribuição
dada pelas aulas de matemática ministradas no Colégio Dom Agostinho Ikas (CODAI),
num pequeno curso oferecido naquela ocasião à comunidade. Ainda guardo com carinho
o certificado recebido neste curso.
1992-1994
Concluída a 8ª série, comecei o antigo 2º grau, na Escola Conde Pereira Carneiro, uma
escola estadual, no curso técnico em contabilidade. Estudava no turno da tarde. Anos
inesquecíveis.
Devido a um problema que afetou a minha coluna, desde o ano anterior, usava um
colete ortopédico que me causava bastante constrangimento e sentimento de inferioridade.
Embora estivesse bem nos estudos, não estava satisfeito comigo mesmo e em 1993 enfrentei
um problema de depressão na adolescência.
Perdi o entusiasmo com os estudos e com a vida. Não conseguia projetar um futuro
profissional e vivia absorvido pelo presente. Apesar de tudo, as aulas de literatura ajudavamme a não perder de vez o gosto pelos estudos. Comecei na ocasião a participar mais ativamente
em atividades religiosas na Paróquia local, onde pude fazer vários amigos e onde obtive
forças para vencer as dificuldades que enfrentava. Porém, não me achava preparado para
prestar um exame vestibular, e além do mais, tinha bastante escrúpulo de pedir à minha
família para pagar a minha inscrição. Acabei o 2º grau e não prestei o vestibular.
1996
No final de 1996, escrevi-me para o vestibular, embora a mais de um ano estivesse
longe da escola. Temia muito, decepcionar a minha família que, afinal de contas, havia
“investido em mim”. Queria estudar Letras, mas não foi daquela vez. Aprovado na
primeira fase, não consegui responder a prova de inglês da segunda fase do vestibular
(sinal da grande deficiência desta disciplina nas escolas públicas). Após este fracasso e
Universidade Federal Rural de Pernambuco
203
o aumento crescente das dificuldades financeiras, concluí que não deveria sonhar com
alguma carreira acadêmica.
Ainda no final deste mesmo ano, comecei a trabalhar num escritório de contabilidade
no centro do Recife, abandonando de vez os estudos. Dividia meu tempo entre o trabalho e
a Igreja. Permaneci nesse trabalho até o final de 2001.
2002-2003
No início de 2002, fui trabalhar num outro escritório, também de contabilidade. Neste
mesmo ano, comecei a perceber quanto tempo havia perdido longe dos estudos. Buscando
auto-afirmação, candidatei-me a uma vaga no curso de História da Universidade Federal de
Pernambuco, ciente, porém, do meu próprio despreparo. Passei na primeira fase e novamente
não consegui passar na segunda. Apesar da reprovação, este ato representou a retomada
daquilo que foi interrompido seis anos antes.
Em 2003, aconteceu o que chamaria de “vestibular perdido” por ter me candidatado a
uma vaga no curso de Ciência Contábeis, cedendo às pressões do ambiente de trabalho,
embora soubesse não ser esta a área que gostaria de dedicar a minha vida. Passei na primeira
fase. A segunda fase...
2004
Chegou o ano de 2004. Resolvi preparar-me verdadeiramente para a prova e matriculeime num pré-vestibular. Abandonei a opinião dos colegas de trabalho e segui a minha
inclinação interior: cursar História. Escrevi-me para este curso na Universidade Federal
Rural de Pernambuco, por esta instituição oferecer maior quantidade de vagas no turno da
noite. Consegui ser aprovado nas duas fases com uma boa colocação.
O estar na UFRPE é para mim fruto da retomada de um projeto de vida que um dia foi
interrompido, mas que renasce à medida que se acredita que nunca é tarde para se buscar os
ideais; ciente também, que, a Universidade não é ponto de chegada, mas ponto de partida
para a concretização desses ideais.
2005
Em março deste ano, iniciaram-se os meus estudos na UFRPE. Foram momentos bastante
agradáveis, principalmente, a relação que pude ter com os professores, os colegas de turma,
a instituição. Desde o início me senti sempre muito à vontade.
Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Foi difícil conciliar a leitura dos textos,
com a falta de tempo disponível para lê-los.
Ao chegar o mês de junho, orientado por colegas, descobri que havia sido selecionado para
participar de um programa promovido pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do
Estado de Pernambuco (FACEPE), denominado Bolsa de Incentivo Acadêmico (BIA). Deixei o
trabalho e dediquei-me às atividades deste projeto, sob a orientação de um professor da Universidade.
2006
O programa da FACEPE, ao qual estava engajado, encerrou-se no final do mês de abril.
Chegado o mês de junho de 2006, através da internet, tomei conhecimento da chegada do
Programa Conexões de Saberes na UFRPE. Prontamente me interessei.
Passada a inscrição e seleção, participei de reuniões, tomando conhecimento das
204
Caminhadas de universitários de origem popular
propostas do programa. O Conexão de Saberes, trouxe para mim uma oportunidade de
ingressar na pesquisa e desenvolver uma ação de extensão junto à comunidade, assim como
tem contribuído para a minha permanência na universidade.
Esta contribuição abrange desde a bolsa que é oferecida, até os projetos que nos
incentiva a desenvolver trabalhos de pesquisas que certamente ajudarão na formação do
currículo universitário. Sou grato ao Conexões de Saberes e espero que possa continuar a
oferecer aos estudantes de origem popular a visibilidade que vem proporcionando.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
205
Uma luz no fim do túnel
Roberta Cristina da Silva*
Chamo-me Roberta Cristina, tenho 29 anos, sou mãe de dois garotos, que são a razão
de meu empenho.
Minha vida teve início em 1976. Tereza Cristina, minha mãe, costureira que estudou
tão-somente até a 5ª série do ensino fundamental, conheceu um rapaz, Arthur, e com ele,
teve um breve relacionamento e uma filha. Arthur sumiu, mas Tereza Cristina foi forte e
seguiu em frente. Três anos depois, conheceu Severino José Gomes da Silva, com quem teve
mais cinco filhos. Tivemos uma boa infância. Brincamos muito, estudamos muito.
Quando eu completei dez anos, Severino (que eu chamava de pai) foi embora de casa.
A partir desse dia, minha vida se modificou. Eu tive que trabalhar como babá: era, na
verdade, uma criança cuidando de outra. Não parei de estudar, mesmo trabalhando. Sempre
estudei em escolas públicas, onde o ensino é deficiente na maioria das vezes. Só passei por
três escolas: fundamental I, na Escola Municipal Lutadores do Bem; fundamental II, na
Escola Estadual José Maria; e médio, na Escola Aníbal Fernandes, todas em Santo Amaro Recife-PE, onde eu nasci e me criei.
Ao completar 18 anos, dei a luz ao meu primeiro filho. Não tive outra opção, se não só
trabalhar. Aos 20 anos, veio o segundo filho e foi naquele instante que percebi que precisava
voltar a estudar, o que só consegui aos 24 anos. Na escola José Maria, conheci dois professores
que me mostraram que eu chegaria a uma universidade, se eu quisesse e eu acreditei naqueles
dois - professora Eliete Lucena, de Português, e Sandro Moura, de Química, que foi mais
direto e disse que eu seria uma boa professora de Química.
Quando completei 28 anos, passei na prova de um pré-vestibular do governo, “Rumo
à Universidade”, realizado aos finais de semana. Em um simulado, ganhei 50% de isenção,
por ter alcançado boa nota e por ser de baixa renda, eu consegui entrar, mas não foi de
primeira. Ao entrar no prédio, no primeiro dia de prova da segunda fase, torci o meu pé.
Mesmo assim, fiz a prova, e no dia seguinte, fui com o pé engessado, pulando num só pé. Ao
terminar a prova, o “presidente do prédio” (COVEST) veio em minha direção e perguntou se
eu tinha feito a prova no dia anterior. Respondi que sim. Ele retrucou, afirmando que não
havia ninguém machucado no dia anterior. Prontamente, afirmei que havia me machucado
ao deixar a sala onde acontecera a prova no primeiro dia, e ele, surpreso, comentou: “Você,
com seu esforço, já é universitária, pois, se fosse um ‘filhinho de papai’ teria desistido.”.
Pode parecer um fato banal, mas isso me fez perder trinta e uma colocações - o curso
de Licenciatura em Química ofertava cento e vinte vagas e caí para a centésima vigésima
Graduanda em Química.
206
Caminhadas de universitários de origem popular
quarta posição - e não fui aprovada. Naquela hora, só pensava no futuro de meus filhos e
pedi muito a Deus que me ajudasse no ano seguinte. Ainda assim, insisti e conferi o
remanejamento. Foi aí que veio a boa notícia: consegui entrar, ainda que em último lugar.
No dia de fazer a matrícula, a Pró-Reitora de Graduação e Ensino, Maria José Sena, me
entregou o comprovante de matrícula (eu ainda não acreditava) e disse: “Uma luz no fim do
túnel”! Ao passar o primeiro mês dentro da universidade, finalmente, acreditei, pude também,
perceber como era difícil para um estudante de origem popular (E.O.P.) se manter dentro da
universidade, sem trabalhar, dependendo apenas de meu esposo, que é um anjo (I.S.L.).
Passei o primeiro período com dificuldades: a compra de cópias xerográficas e de
material didático era uma preocupação a mais... no período de férias, estive na Universidade
para visitar a Feira de Profissões e fiquei sabendo do Programa “Conexões de Saberes”, fiz
a inscrição e fui selecionada.
Entrar no programa foi muito importante para mim: abriram-se novos horizontes,
facilitou-se a minha caminhada dentro da universidade. Por meio do programa, voltei à
escola onde estudei (Escola José Maria), agora, como professora-oficineira, dando reforço
em Matemática e em assuntos transversais, como: leituração, cidadania e direitos humanos.
No bairro onde moro, virei referência; para meus filhos, sou motivo de orgulho. Pretendo
continuar seguindo em frente, passando por cima das barreiras do caminho. Mundos se
abriram para mim, me envolvi, me apaixonei e não pretendo deles sair.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
207
Memorial
Rosangela Ferreira de Mesquita*
“Nosso dia vai chegar, teremos nossa vez.”
Legião Urbana
Nasceu, em 8 de agosto de 1979, Rosangela Ferreira de Mesquita - a caçula entre quatro
filhos. Minha mãe faleceu quando eu tinha nove meses de nascida. A partir daí, meu pai
passou a beber muito e nos deu para nossos tios. Fui morar com minha tia no sítio Bela Vista.
Eu e minha irmã fomos morar neste sítio; meus dois irmãos foram morar com outra tia,
em Cavaleiro. Como minha irmã é mais velha, começou a estudar antes de mim, e depois da
escola, ela me ensinava a ler e a escrever. Fui à escola aos sete anos de idade. Por já saber ler
e escrever, colocaram-me na primeira série. Estudava na Escola Humberto Lins Barrados, na
Muribeca, que ficava a mais de dois quilômetros de onde eu morava. Tínhamos de ir e voltar
da escola caminhando.
Nessa escola, fiz até a terceira série; por causa de problemas causados por meus primos,
tivemos que nos mudar. Fomos para Cavaleiro, onde meus irmãos moravam, e lá, passamos
algum tempo. Em Cavaleiro, estudei na Escola Professor Moacyr de Albuquerque. Depois
de algum tempo, mudamo-nos para o Curado IV e fui matriculada, na sexta série, na Escola
Edmir Arlindo. Foi o ano em que meu pai foi assassinado.
Durante esse período de vida, sofri maus tratos de minha tia e de seus filhos, e aos doze
anos, resolvi sair de casa e fui trabalhar em casa de família. A pessoa que me “acolheu” e
para quem eu trabalhava, também me maltratava, então, fui embora de sua casa. Arrumei
outra casa para trabalhar, ficando um ano sem estudar. Logo depois, matriculei-me, à noite,
na sétima série de uma escola do bairro do Totó, onde minha irmã, que havia saído de casa
antes de mim, estudava. Fui praticamente adotada pelas pessoas com quem trabalhava,
nessa casa, e não voltei mais para morar com a minha tia.
Com essa família para quem trabalhava, mudei-me para Piedade, onde me matriculei
na oitava série da Escola Pedro Barros. Passei para o primeiro ano do Ensino Médio com
boas notas e fui estudar no Santos Dumont, em Boa Viagem. Passava o dia trabalhando e a
noite estudando. Ao concluir o ensino médio, no final de 1999, comecei a trabalhar em um
Instituto de Pesquisa Aplicada e continuei morando em Piedade, com a mesma família. Em
2002, fiz cursinho para tentar o vestibular, mas não passei, pois fiquei dois anos sem estudar.
Graduanda em Ciências Sociais.
208
Caminhadas de universitários de origem popular
Finalmente, após três tentativas, consegui entrar na Universidade Federal Rural de
Pernambuco - UFRPE - e isso levantou muito minha estima. Continuo morando com a
mesma família, em Piedade, e o filho do casal, de quem fui cuidar ainda recém-nascido, e
agora está com treze anos de idade.
Tinha certeza de que meu dia chegaria e teria minha vez, como diria Renato Russo.
Não voltei para a casa de minha tia e nem pretendo voltar. Estou, atualmente, seguindo para
o terceiro período do curso de Ciências Sociais e ficarei noiva agora, em dezembro de 2006.
Tenho ainda muitos sonhos a realizar: a universidade foi apenas o início da realização
desses sonhos e certamente alcançarei, com esforço, meus objetivos. Acredito que seja feliz.
Melhor, SOU FELIZ.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
209
Nunca desista de seus sonhos
Rosângela Lima da Silva*
Era um dia de sol. Por volta das 11h, Maria José fazia compras para o enxoval de sua
segunda filha, que estava por nascer. De repente, ela começa a sentir contrações e vai,
imediatamente, para o Hospital Geral de Jaboatão. Mais precisamente às 12h do dia seis de abril
de 1984, Rosângela Lima da Silva chega ao mundo. Filha de um mestre-de-obras, que concluiu
o segundo grau, e de uma dona de casa, que estudou até a sexta série do primeiro grau.
Morávamos em um loteamento popular do Município de Jaboatão dos Guararapes.
Meus pais tinham muita admiração pelos estudos, e por isso, desde cedo, comecei a freqüentar
a escola comunitária do bairro, acompanhando minha irmã mais velha.
Aos seis anos, iniciei a primeira série do Ensino Fundamental na Escola Estadual
Senador Petrônio Portella, no mesmo bairro em que eu morava. Adorava estudar; não queria
perder nenhum dia de aula. Concluí, nessa mesma escola, os Ensinos Fundamental I e II
(primeira a oitava séries). Fui, então, estudar Magistério, depois de tentar várias seleções em
outras escolas e não consegui passar.
Estudei na Escola Estadual Marcelino Champagnat. No início do curso, estava
desmotivada devido às reprovações e às muitas críticas que faziam ao curso e à profissão que
exerceria. No decorrer do curso, no entanto, fui-me identificando e apaixonando-me pelo
Magistério. Assim, decidi seguir a profissão que mudaria minha vida e a de meus familiares.
Passei a ter olhares bem diferentes sobre a realidade; as formas de tratar as pessoas
modificaram-se; e entendi melhor o mundo ao meu redor. Minha família tinha, agora, uma
professora ao invés de uma arquiteta ou de uma engenheira, como era o sonho de meu pai.
Quando comecei a dar aulas nas escolas e em grupos religiosos da comunidade, todos
tinham respeito e admiração por mim, pois era muito jovem (dezesseis anos). Essas
experiências fortaleciam-me cada vez mais no curso e na profissão.
Foi neste tempo, que conheci Denis, um lindo rapaz, que me conquistou e mudou
minha vida quanto à afetividade. Namoramos e noivamos. Cresceu em nós o desejo de nos
casarmos e vivermos juntos para sempre. Esse desejo foi sendo adiado; tínhamos mais
coisas importantes a fazer, como concluirmos os estudos.
Em minha família, ocorreram alguns problemas e meu pai foi embora de casa. Os
gastos tiveram de ser controlados e o trabalho, agora, era obrigação para mim. Concluí o
Magistério com muito esforço e tracei alguns objetivos de vida: passar no vestibular em
uma instituição federal; casar-me; e conseguir um emprego público.
Graduanda em Normal Superior.
210
Caminhadas de universitários de origem popular
Trabalhava pela manhã e à tarde, dando aulas em escolas particulares, e nos finais de
semana, estudava no Rumo à Universidade. No primeiro ano em que fiz vestibular, não
passei e fiquei muito triste. A tristeza de ter fracassado era um estímulo para continuar
tentando. Tentei novamente, e mais uma vez, não consegui. Fiquei triste e entendi que não
poderia desisti do sonho. Tinha que persistir, e um dia, conseguiria.
Mais um ano passou e não tentei o vestibular por questões financeiras.Tive que deixar
minha profissão de lado, por conta da baixa remuneração, para trabalhar no comércio - era
operadora de caixa. Gostava do que fazia, porém, trabalhava muitas horas por dia e ficava
muito cansada para engajar-me em jornadas de estudo. Nesse trabalho, sempre pensava em
voltar à minha profissão, às minhas aulas. Falava com tanta emoção sobre essas atividades
que minhas colegas ficavam admiradas pela paixão que eu revelava pela educação.
Quando se iniciaram as inscrições para o vestibular, lembrei que não poderia desistir
do sonho. Tinha que tentar. Mesmo sem estudar, busquei isenção para a taxa de inscrição e
consegui 50% de desconto. Paguei a taxa e aguardei o dia da prova, apenas trabalhando
muito. Inscrevi-me no Normal Superior, um curso novo que visa à formação de professores.
Fiz a primeira fase muito tranqüila. Anotei o gabarito para conferir em casa, e pelos
cálculos de minha irmã, a nota alcançada daria para passar na primeira fase. Aguardei o
resultado e passei a primeira etapa. Nunca tinha passado, não acreditei, mas era o meu nome
na lista dos aprovados para a segunda etapa. Fiquei muito feliz, e novamente, aguardei a
segunda fase muito tranqüila.
Minha irmã mais velha, que cursa Serviço Social na Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE), pressionou-me a estudar, pois, nessa fase, a concorrência estava
baixa, e se eu não passasse, “seria uma burra” (disse ela). Não havia mais tempo. Fiz as
provas e a redação, muito serena e esperava, com alguma ansiedade, pelo resultado.
Quando o listão saiu, às 18h de 9 de janeiro de 2006, um colega de trabalho trouxe,
prontamente, a notícia: “Tu passaste!”, disse ele. Não acreditei. Fiquei muito nervosa. Estava
atendendo um cliente e saí pela loja, sem acreditar. Era, mesmo, verdade: meu nome estava
impresso no papel; estava aprovada. Foi muita emoção. Rasparam minha sobrancelha momento inesquecível!
Deixei o trabalho para estudar, pois era ofertado pela manhã e não dava para conciliar.
Estava realizada: era um objetivo de vida que se concretizava. Agora, tinha que “batalhar”
para conseguir o segundo sonho: o do casamento, que, neste mesmo ano, se realizou.
Agradeço muito a Deus e aos meus familiares pelos incentivos e críticas ao longo de
minha vida e a todos que me acompanharam ao longo dessa trajetória. Hoje, sou uma pessoa
muito feliz (apesar dos problemas) e nunca desisto de meus sonhos. Tenho sempre que
tentar, pois, um dia, eu chegarei lá...
Universidade Federal Rural de Pernambuco
211
Espelho
Selineide Bezerra da Silva*
“O que agora vemos é como uma imagem
confusa num espelho, mas depois veremos
face a face. Agora conheço somente em
parte, mas depois conhecerei
completamente, assim como sou
conhecido por Deus.”
I Cor 13:12
Minha história começa como tantas outras que você já leu ou já ouviu alguém contar.
Ela se parece com a de tanta gente que, como eu, de origem popular, teve uma infância
pobre, porém feliz. Momentos que até hoje guardo na memória, como aqueles dias em que
lavávamos a casa; o chão ficava cheio de espuma; e a gente, eu e meus irmãos, brincávamos
de escorregar de um lado para o outro - momento mágico... inesquecível!
Em contraponto, a alegria de criança dava lugar à tristeza, travestida pela violência de
meu pai que, embriagado, batia em minha mãe e nos fazia sofrer também. Em minha
ingenuidade, não entendia o porquê de tamanho desrespeito para com uma mulher tão
batalhadora, como minha mãe, que saíra de sua terra, Natal - ela é natural do Rio Grande do
Norte -, aos dezessete anos, para buscar a felicidade aqui, em Recife. Conheceu meu pai e
com ele teve cinco filhos.
Eu, caçula, infelizmente, presenciei cenas que nunca esquecerei e das quais não quero
esquecer, pois, por meio delas, busquei forças para seguir adiante. Numa noite de violências,
meus irmãos chorando por não poderem fazer nada por nossa mãe, parei, fechei os olhos e
prometi a mim mesma que lutaria e proporcionaria à minha família, principalmente à minha
mãe, uma vida menos dolorosa, menos pesada, mais tranqüila e feliz.
Lembro-me de que comecei a estudar aos seis anos e de que gostava de tudo aquilo:
de ir e vir, de chegar em casa e de fazer a tarefa que a professora passava. Não queria que
ninguém me ajudasse, preferia resolver sozinha. Zelava por meu pouco material escolar;
tinha dele o maior ciúme.
Às vezes eu ia ao centro da cidade com minha mãe fazer compras. Em um belo dia, ao
passar por uma praça de Olinda, um casarão antigo me chamou atenção: era muito grande,
cor-de-rosa, passava uma calma e atiçou minha curiosidade. Passados alguns dias, peguei
Graduanda em Agronomia.
212
Caminhadas de universitários de origem popular
minha bicicleta e fui até lá. Nossa, como era bonito de perto! Logo, descobri, lendo uma
inscrição em sua fachada, que se tratava da Biblioteca Pública Municipal. Entrei e fiquei
olhando aquela quantidade de livros; fiz minha carteirinha de usuária para pegar livros
emprestados. Levava os livros para casa e os devorava - perdi a conta de quantos li. Gostava
de viajar naquele mundo irreal e feliz das novas descobertas.
Minha adolescência, conturbada como tantas outras, não foi nada fácil: às perguntas
que fazia não encontrava respostas; ficava triste pelos cantos, questionando tudo e todos.
Terminei o primeiro grau aos quinze anos. Cursei o segundo grau em Recife e meu mundo
deu um salto, pois tive a oportunidade de conhecer a Biblioteca Pública do Estado. Meu
Deus, como me sentia em casa naquele espaço, se pudesse não sairia mais dali. Grandes
descobertas ainda estavam por vir; comecei a tocar na fanfarra do colégio e fui levada, pelos
acordes suaves, ao mundo da música. Terminei o segundo grau em 1998, aos dezoito anos.
Minhas amigas me perguntavam se me inscreveria no vestibular; respondia que não,
que esperaria um pouco mais, pois queria experimentar outras coisas. Participei, no ano
seguinte, de uma seleção para ingressar numa escola de música, e graças a Deus, passei.
Paralelo aos estudos, trabalho como ajudante de um jardineiro. Trabalhávamos em
domicílio; ele me ensinou a arte de cuidar das plantas, como as tornar mais vistosas, tratar
de suas doenças e pragas.Trabalho que realizava com todo prazer, pois amava o contato
com a natureza, plantas, terra, água, sentir o calor do sol, aprender coisas novas.
Ocorreu, num belo dia em que trabalhávamos na casa de um de nossos clientes, um
fato bem interessante: a dona da casa me sugeriu que fizesse a faculdade de Agronomia, pois
notava em mim um talento especial para cuidar das plantas. Fui para casa naquele dia e
pensei nas palavras daquela senhora; percebi que precisava ir além. Pedi demissão, saí da
escola de música e fiz a inscrição no vestibular para o curso de Agronomia na Universidade
Federal Rural de Pernambuco - UFRPE, no ano de 2001.
Reconheço que tive muita, muita, dificuldade, porém, Deus colocou em meu caminho
anjos (amigos verdadeiros), em forma de gente, que me deram força para não desistir.
Hoje, continuo estudando. Tenho esperança de conseguir terminar a graduação, de me
inserir no mercado de trabalho e de pôr em prática tantos sonhos adiados, tantos desejos
reprimidos. Se Deus quiser, chegarei lá.
Minha trajetória de vida não teria sentido, se não fosse pela fé que ponho em tudo que
faço e pela fé que meu filho, meu marido, meus familiares e meus amigos (que são poucos,
mas verdadeiros) têm em mim.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
213
Silvinha no País das Maravilhas
Sílvia Carla de Assis Alexandre*
Capítulo I
Era uma vez uma bebezinha linda que nasceu no dia 6 de setembro de 1984, na
Maternidade Barão de Lucena no Recife. Seu nome, Silvia Carla, sugestão de sua mãe, mas
conhecida como Silvinha. Esta criança teve uma infância muito feliz ao lado de seu pai
Gustavo, sua mãe, Nice e seus 2 irmãos César e Lana. Estudou em um colégio particular
muito bom do seu bairro, do qual fez alfabetização até a 8ª série. Foi à oradora da sua
formatura do ABC e sempre se dedicou aos estudos. Ao concluir o Ensino Fundamental, fez
um teste de seleção para ingressar no CODAI, Escola de Ensino Agrícola e Fundamental, e
com muito esforço e dedicação conseguiu ser aprovada. Foi aí que tudo começou a mudar
em sua cabeça...
Capítulo II
Silvinha chegou ao CODAI ainda tímida. Mas logo conheceu uma galera muito boa
da qual sente muita falta até hoje. Nesta escola, ela conheceu o que era tirar notas baixas,
gazear aula, às vezes, tomar vinho e outras bebidas com álcool. Fez boas amizades e foi aí
que acendeu o desejo de ser veterinária. Tentou seu 1º vestibular para zootecnia, mas não
conseguiu passar na 2ª fase. Resolveu então estudar muito no próximo ano, e foi isso que
fez. Estudou muito bem e isso refletiu na sua aprovação. Foi aprovada no curso de medicina
veterinária na UFRPE, e no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas na UPE e de
quebra ainda passou no curso Técnico em Segurança do Trabalho no CEFET-PE. Foi uma
alegria só. Nossa heroína ficou muito feliz e enfim, conseguiu lutar na Universidade...
Capítulo III
Na Universidade, Silvinha conheceu pessoas maravilhosas e encontrou vários amigos
do CODAI. No começo, não se identificou com o curso por conta de algumas disciplinas
que “levou pau”, mas depois, começou a se adaptar. Certo dia, ao entrar no site da sua
Universidade, viu a proposta do Programa Conexões de Saberes e se apaixonou. Inscreveuse no processo de seleção e foi selecionada. Com este projeto, obteve várias experiências e
conheceu muita gente boa com muito a partilhar.
Graduanda em Veterinária.
214
Caminhadas de universitários de origem popular
Capítulo IV
Em sua vida, Silvinha sempre foi uma pessoa feliz e até hoje, é muito feliz! Tem uma
família maravilhosa, vai ganhar um sobrinho e possui muitos amigos que são importantes
em sua vida, sem falar no namorado. Agradece à Deus por tudo que Ele lhe deu até hoje e
pede apenas paz e saúde para prosseguir no caminho do bem...
Universidade Federal Rural de Pernambuco
215
Ninguém me segura
Suelâeny Aparecida de Andrade*
Meu nome é Suelâeny, tenho 18 anos, e desde os quatro, moro na cidade de Paulista,
Pernambuco. Nasci em Jaboatão dos Guararapes, onde fiz muitos amigos, mas tive que
me mudar, pois minha mãe precisava trabalhar e seria a minha avó a tomar conta de mim
e de meu irmão.
Moro com meus pais e com meu irmão. Meu pai sempre insistiu muito para que eu e
meu irmão estudássemos. Talvez por ele não ter tido a oportunidade de concluir o Ensino
Fundamental, incentivava-nos todos os dias, e como eu dava uma importância enorme a
tudo que meu pai falava, desde cedo, me dediquei aos estudos.
Minha mãe, desde muito nova, trabalhou e ainda trabalha no comércio. Sempre saía
muito cedo e chegava muito tarde. Conseguiu concluir o Ensino Médio com muito esforço.
Quando eu nasci, ela precisou sair do emprego para cuidar de mim, pois eu tinha um grave
problema respiratório.
Assim que nos mudamos, meu irmão nasceu. Minha mãe, assim que pôde, foi procurar
emprego. Nos dois primeiros anos, uma moça ficava cuidando da gente, mas depois, a
situação financeira apertou e não podíamos mais mantê-la em nossa casa.
Desde então, passei a cuidar de mim, de meu irmão e da casa. Com apenas seis anos, eu
via o esforço de meus pais e queria retribuir de alguma forma: cuidar da casa, foi a melhor
forma que achei.
Meus ensinos Fundamental e Médio foram tranqüilos, com boas notas, ótimo relacionamento
com os professores, em especial com a professora de Português, Alcione. Ela me ajudou muito;
sempre, em todas as aulas, incentivava-nos a não desistir, dizendo que a universidade pública
era o nosso lugar. Nem sabia direito o que era vestibular, mas no dia em que decidi fazê-lo, os
meus pais me apoiaram em parte, pois várias vezes afirmaram que eu estava esquecendo de
minhas obrigações em casa (leiam-se serviços domésticos).
O terceiro ano do Ensino Médio foi o mais difícil para mim, pois cuidava da casa, de
manhã e à tarde, e à noite, estudava. Isso tudo durante a semana, porque, aos finais de
semana, participava de um curso pré-vestibular público, o “Rumo à Universidade”. Esta
“maratona” distanciou-me de meus amigos da escola, da minha rua e das pessoas mais
próximas; por outro lado, o “Rumo à Universidade” trouxe-me coisas boas; entre essas
“coisas boas”, a isenção da taxa de inscrição no vestibular, que tirou um peso de meus pais
e um pouco de minha já grande responsabilidade.
Graduanda em Química.
216
Caminhadas de universitários de origem popular
Foi um grande aprendizado, pois se tivesse recebido esse “reforço”, talvez não estivesse
na Universidade hoje.
Daí veio o grande desafio, a escolha do curso. Tinha, como tenho ainda hoje, vontade
de fazer Medicina Veterinária, pois adoro bichos, mas depois que conheci quatro excelentes
professores de Química, fiquei com vontade de ser como eles, de ajudar o outro, assim como
eles faziam comigo. Primeiro, me apaixonei pela profissão; depois, pela disciplina.
Então, prestei vestibular para Química (a minha paixão, até então) na UFRPE e
Enfermagem, na UPE (a vontade de minha mãe). Surpreendentemente passei; nunca chorei
tanto em minha vida. Foi um momento tão esperado, mas ao mesmo tempo, tão inimaginável.
Quando recebi a notícia, senti-me capaz - algo que estava tão distante, se colocava, agora,
tão próximo.
Durante o primeiro período na Universidade, senti muita dificuldade, pois a defasagem
do Ensino Médio, didaticamente falando, é muito grande. Consegui, no entanto, passar em
todas as matérias.
Hoje, estou cursando o segundo período de Licenciatura em Química, mas com algumas
incertezas com relação ao curso, pois foi uma escolha muito rápida.
Agora, participando do “Conexões de Saberes”, estou muito motivada, não só a
permanecer na Universidade, como também a dar continuidade aos meus estudos, em nível
de pós-graduação. O programa ampliou minha visão de mundo.
O meu grande sonho, que antes era o sonho de minha mãe, é fazer um curso
superior de Enfermagem, e sei que vou conseguir, porque, agora que percebi que sou
capaz, ninguém me segura.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
217
A importância de aprender é recriar
Suzanna Kelly da Silva*
No dia 16 de março de 1985, depois de dezesseis dias de atraso, nasceu a caçula de três
filhos do casal Maria Aparecida M. da Silva e Severino Luís da Silva, que se chamou
Suzanna Kelly da Silva - esse bebê era eu.
Nasci numa família pobre; meus pais fizeram apenas parte do Ensino Fundamental,
pois tiveram dificuldades para concluir os estudos.
Quando completei três anos de idade, minha família viajou para São Paulo, com o
intuito de buscar melhores condições financeiras. Ao chegar à cidade paulista, deparou-se,
no entanto, com uma realidade totalmente diferente da antes imaginada. Com isso, fomos
obrigados a viajar para o Rio de Janeiro. Nesse Estado, as coisas melhoraram um pouco,
pois meu pai começou a trabalhar e estabilizou-se lá.
No início da década de 90, devido a vários motivos, minha família retornou a Recife.
Logo após nossa chegada, minha mãe colocou minhas irmãs no colégio. Eu ficava em casa,
por ser ainda muito pequena para estudar.
Quando minhas irmãs retornavam da escola, tinham sempre aulas de reforço com a nossa
mãe. Ficava prestando atenção na aula, enquanto as meninas brincavam na hora de estudar.
Aos cinco anos de idade, iniciei minha vida escolar; eu já sabia ler e escrever, e devido
a isso, tive facilidade em aprender os conteúdos ensinados pela professora da alfabetização.
Meu primário foi em escola religiosa.
Já nessa época, eu apresentava bastante interesse pelos estudos, lia livros, revistas,
jornais e gostava de brincar de professora com minhas bonecas e irmãs.
Meu interesse pela escola sempre despertou em meus pais um grande prazer, pois,
como os mesmos não tiveram a oportunidade de estudar, depositaram nas filhas a esperança
de vê-las formadas.
Estudei em escola pública e isso dificultou um pouco a minha educação escolar, por
causa das dificuldades apresentadas por essa rede de ensino. Mas busquei outros conhecimentos
fora da escola, e de certa forma, isso assustava meus pais, pois eu tinha apenas poucos amiguinhos
e não gostava de sair de casa.
Meu interesse pela leitura aumentou ainda mais no Ensino Fundamental; nessa época,
o acesso aos livros era mais fácil e também o apoio dos professores ajudou-me em muito na
conclusão desse período.
Em 1998, meus pais separaram-se. Foi o momento mais difícil de minha vida. Fomos
morar na casa de minha tia. Meu pai retornou à casa dos pais, por estar desempregado.
Graduanda em Biologia.
218
Caminhadas de universitários de origem popular
Passaram-se dois anos: minha mãe conseguiu um emprego e isso facilitou nossa vida;
minha tia havia se casado novamente e deixado a casa para morarmos. Nesse período, eu
estava ingressando no Ensino Médio, em uma outra escola. Nessa instituição, conquistei
grandes amigos, a confiança e a admiração de meus professores, principalmente, em função
das boas notas tiradas nas avaliações. Meu pai ficou, por dois anos, ausente, não sabíamos
sequer onde ele residia; só reapareceu quando eu estava no último ano do Ensino Médio.
Até então, não havia decidido a profissão que queria; apenas pretendia fazer o curso
de Comissária de Bordo. No fim deste ano, prestei vestibular para Educação Física. Tive
como base apenas um cursinho pré-vestibular - “Rumo à Universidade” -, oferecido pelo
governo aos alunos de escola pública. Não fui aprovada.
No ano de 2004, voltei a estudar e estava decidida a prestar o vestibular novamente.
Fiz um curso pré-vestibular chamado pré-acadêmico, por meio do qual adquiri vários
conhecimentos que me capacitaram à aprovação no vestibular da Universidade Federal
Rural de Pernambuco - UFRPE - para o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas.
Ao ingressar na Universidade, no ano seguinte, deparei-me com grandes dificuldades.
Além da adaptação ao novo modo de ensino, a questão financeira incomodava. Aos poucos,
porém, venho conseguindo vencer os obstáculos encontrados e acredito que as oportunidades
aparecerão. Para isso, é necessário não desistir dos sonhos!
Hoje estou no quarto período e participo do Programa “Conexões de Saberes”. Esse
programa possibilitou-me grandes experiências, porque a volta para minha comunidade de
origem está sendo um grande desafio a ser superado a cada dia, e cada vez mais. Sei que o
término do curso não significa que as dificuldades serão todas suplantadas, mas acredito
que, com muita força de vontade, poderei buscar novos caminhos e novos conhecimentos.
Experiência é sempre bem-vinda, mesmo quando adquirida por vieses tão pouco
convencionais. O que importa, de fato, é aprender e ensinar algo novo. Criar e recriar a si
mesmo e a seus sonhos!
Universidade Federal Rural de Pernambuco
219
Caminhadas Conexões de Saberes
Taciana Silva de Miranda*
A minha trajetória até a chegada a Universidade não foi fácil, como os demais estudantes
oriundos de escola pública, as limitações financeiras e a falta de preparo, dificultam a
caminhada rumo ao profissionalismo.
Quando criança, estudei até a terceira série em escola pública, onde na época concorri
a uma bolsa de estudos que me deu a chance de ir estudar em uma outra escola conceituada
do Recife, lá, encontrei diversas pessoas que transmitiram um pouco do seu conhecimento
que me ajudou e muito na minha formação como cidadã. Em especial um professor de
história que me doava livros, pois, a minha família não tinha condições para comprá-los.
Este mesmo professor não ensinava só história, tinha a capacidade de estimular os seus
alunos a raciocinar e principalmente formar um senso crítico.
Anos mais tarde, eu voltaria a estudar na mesma escola pública do início de minha
vida estudantil, a estrutura da escola não era mais a mesma, as greves e falta de professores
era constante. A possibilidade de concorrer a uma vaga na universidade ficava a cada dia
mais distante. Até que conversando com um companheiro de turma que falou a respeito da
Escola Agrotécnica da UFRPE. Logo eu tive o interesse de participar do teste de seleção.
Fui aprovada em 10º lugar, junto com a felicidade de ter sido aprovada, vinham os problemas,
mais uma vez a falta de recursos atrapalhava a longa jornada. A minha família não tinha
condições de custear as passagens de ônibus, pois a escola fica no interior e eu moro na
capital, as cobranças para que eu fosse trabalhar no comércio e deixasse de estudar foram
muitas. Apesar de toda dificuldade consegui de forma árdua terminar o curso técnico.
No último semestre do curso agrotécnico, descobri que estava com dois meses de
gravidez do meu atual marido, os primeiros meses foram de muita dificuldade, porém, me
surpreendi com a minha família que me deu total apoio para que eu tivesse o meu filho.
Prestei o segundo vestibular, na época eu estava no quarto mês de gestação, apesar da
situação não ser das mais favoráveis pois eu estava abalada com toda esta situação e fui
aprovada para o curso de engenharia florestal, na UFRPE. Quando começaram as minhas aulas
na Universidade alguns dos professores me apoiaram a continuar estudando após o nascimento
do meu filho, não vou dizer que seja fácil conciliar a vida acadêmica com filhos mas estou na
luta para futuramente poder oferecer ao meu filho condições de uma boa formação e ajudar
aos meus pais que fizeram o possível para que eu chega-se até onde eu estou.
Graduanda em Engenharia Florestal.
220
Caminhadas de universitários de origem popular
Fiquei sabendo do Programa Conexões de Saberes através do meu marido que
estuda na UFRPE, rapidamente eu fui fazer a inscrição para bolsista, sendo selecionada
em seguida. Hoje, agradeço a todos do programa que contribuíram e deram a
oportunidade aos estudantes de origem popular a terem condições de permanecer na
Universidade e conquistar um lugar ao sol.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
221
Caminhar sem fronteiras
Tânia Lúcia da Costa*
31 de julho de 1985, a partir daqui, começa minha história. Meu nome é Tânia Lúcia
da Costa, e hoje diante dos meus 21 anos de idade, às vezes me surpreendo quando paro
para refletir todas as abdicações e dificuldades que tive que enfrentar para chegar a uma
universidade. Dificuldades financeiras, podem acreditar foi o mínimo diante do descaso do
meu pai e irmão quando eu tentava expor todo o meu anseio em construir um futuro
profissional melhor. E foi, a partir daí que eu levei meu primeiro baque psicológico.
Lembro-me de um fato que marcou muito a minha caminhada. Certa vez, aos 12 anos, eu
nem sabia direito o que era uma universidade, qual o seu funcionamento, mas sabia que era
algo bom. Cheguei em casa e comuniquei a minha família: quero entrar na universidade. Meu
irmão olhou para mim e disse: você pensa alto demais. Fiquei triste, mas isso acabou me
servindo como incentivo, pois o legal da vida é quando nós aprendemos a transformar pontos
negativos, ou até mesmo derrotas, em símbolos de incentivos, independente de sua realidade.
Estudei minha vida toda em escola pública. Não tenho muito do que reclamar, pois
me deparei com homens e mulheres que eram mais do que simples professores. Foi uma
ótima fase, pois a escola era pequena, praticamente todos se conheciam. A turma foi crescendo
e aprendendo junta. Porém, quando passei para o primeiro ano do ensino médio me vi
diante da dura realidade, na qual era cada um por si. Sentia tanta raiva quando me lembrava
das privações que passei, recordava-me da minha sexta e sétima séries, piores anos de minha
vida, nos quais eu tinha que me virar para conseguir os materiais escolares que eu precisava.
Além disso, eu me via tão indignada por estudar em uma escola de péssima qualidade.
Aquilo me fazia sentir que todo o meu esforço seria em vão, e em muitos momentos, eu
cheguei a acreditar naquilo que muita gente dizia e que, de certa forma, acredito até hoje,
que filho de pobre não tem vez. Às vezes eu brigava com os meus professores, pois era
difícil para mim pagar o transporte e quase sempre não havia aula como devia ter.
Hoje, quando eu lembro, acho até irônico estar fazendo um curso na área de Licenciatura
em Biologia, pois era justamente essa a matéria mais defasada em minha turma. Em alguns
momentos eu me pergunto, qual seria minha reação diante dessas pessoas que não tinham o
menor compromisso em sala de aula, e acabo dando graças a Deus por não ter deixado que
fatos como esses me desanimassem.
Em 2003, foi o ano do meu primeiro vestibular, não tinha condições de pagar um
cursinho para preparar-me melhor, mas mesmo estudando sozinha, meti a cara e fiz. Foi aí
que passei pelo o meu segundo baque, não tive êxito. Passei na primeira fase, mas fiquei em
Graduanda em Biologia.
222
Caminhadas de universitários de origem popular
uma posição na qual não tinha a menor chance de passar. Pensei em desistir, pois não tinha
emprego ou qualquer outra renda para continuar investindo nos meus estudos. Mas logo
que o ano acabou, bateu-me novamente a vontade de continuar. Enchi-me de coragem e
recomecei a jornada.
Em fevereiro de 2004, saí recolhendo com os meus amigos o máximo de livros possíveis.
Montei um verdadeiro acervo em casa e todas as noites e madrugadas eu estudava sozinha.
Fazia muitas loucuras para me manter acordada: misturava coca- cola com café e energéticos,
escondidos dos meus pais, e quase passei mal por causa disso. Mas nada me detinha diante
dos meus objetivos. Quase não saía de casa para passear ou fazer outras coisas, pois eu sabia
que estava em desvantagem diante de alunos que se preparavam nos melhores cursos da
cidade. Não foi fácil, muitas vezes eu parava para chorar em cima dos livros por não conseguir
responder uma questão e em alguns momentos acabava duvidando do meu potencial. Passava
uns dois dias mal e depois continuava nos meus estudos.
Novembro de 2004, atravessei meu terceiro baque, novamente não obtive êxito. Não
consegui esboçar nenhuma reação diante do listão da covest, apenas perguntava a Deus nos
meus pensamento, porque ele estava sendo tão injusto comigo, porque tantos outros oriundos
de classes mais favorecidas tinham o direito de ter aquela alegria e eu que tinha tão pouco,
ficava sempre por último. Hoje, me envergonho de ter sido tão fraca num momento que
Deus queria-me mais forte. Apenas lembro-me ao chegar em casa do olhar de tristeza da
minha mãe. Naquele momento, perdi todas as minhas esperanças, força, coragem. Apenas
chorava, porque sabia que talvez aquela teria sido minha última oportunidade. Passei 2
meses em depressão, quando me recuperei, só pensava em arrumar um emprego. Trabalhei
uns 3 meses como babá e já não pensava em enfrentar um vestibular novamente. Até que no
começo de março de 2005 em um Centro de Solidariedade ao Trabalhador eu estava sentada
diante de uma senhora que verificava se havia algo para mim e ela viu que não tinha nada.
Fiquei triste e a resposta dela foi: jovem, vá estudar. E, ouvindo isso, voltei para casa
pensativa e no mesmo dia por um milagre recebi um telefonema de um amigo indicando
que ali no bairro iria abrir um pré-vestibular a preço popular. Aquilo me encheu de esperança
novamente, pois a minha mãe vendo-me tão entusiasmada, com muito sacrifício pagou a
minha matrícula. E, a partir daí, passou a economizar e vender algumas coisas para que eu
não parasse de estudar, e quer saber? Tudo valeu a pena, cada lágrima, cada esforço dedicado.
Confesso que não sei se teria disposição para passar por tudo novamente, mas quando eu me
recordo da minha terceira tentativa (novembro de 2005) de passar no vestibular, cada questão
disputada a tapa. Pergunto-me de onde retirei tanta coragem, mas graças a Deus, ao final de
tudo consegui.
No dia 9 de janeiro de 2006, finalmente, pude chegar em casa e dizer a minha família que
eu tinha conseguido. Esse fato ficará para sempre na minha memória. Todo mundo gritando,
felizes com minha alegria, pois todos sabiam de toda luta pela qual tive que passar.
Sei que o vestibular não é tudo e nem tão pouco deve ser o máximo na vida de uma
pessoa, mas através dele eu agora posso continuar crescendo mais e mais, pois a dor e o
sofrimento me amadureceram muito e me fez crescer como pessoa. Aprendi também que não
conseguimos nada sozinhos, os amigos, a família, podem ser peças fundamentais na vida de
uma pessoa, mas Deus é a porta para os nossos projetos.
Hoje, dentro do Conexões de Saberes eu trabalho na minha comunidade com preservação
ambiental para crianças, e danças populares para pré-adolescentes. No começo não gostava
Universidade Federal Rural de Pernambuco
223
muito, mas hoje sinto uma satisfação no que faço, pois sei que com o pouco que estou
fazendo, posso ajudá-los na construção de uma identidade e mostrar que nada é impossível
quando realmente acreditamos em um objetivo.
Aqui, dentro no mundo acadêmico, as coisas são bastante difíceis, principalmente
quando se vem de uma origem popular, e o mais engraçado, é que hoje eu vejo que o
vestibular é o mínimo de dificuldades que a gente enfrenta, pois o término de cada período
é um novo vestibular. Mas sabe, nada disso assusta-me mais, o que seria da vida se não
tivéssemos emoções, ousadia, se não arriscássemos em nome dos nossos sonhos?
Bem, aqui está um pouco da minha história com alegrias, tristezas, vitórias e derrotas.
Uma história que sinceramente não tive nenhuma vergonha de contar, pois sei que é igual
a de muita gente. Mas o brilho da singularidade, isso sim, é o que cada um deve buscar.
Não espero servir de exemplo, pois não teria tal pretensão, mas dar-me-ia por satisfeita
se ao longo da minha caminhada eu puder deparar-me dentro da universidade ou fora dela
na minha vida profissional com pessoas que também não tiveram medo de ousar, e ir em
busca de seus objetivos e que me façam sempre lembrar de onde eu vim. Pois, quem luta
pelos seus ideais torna eterno aquilo de mais bonito num ser humano que é sua capacidade
de sonhar, de ir em busca de algo melhor, cultivados com lealdade e respeito ao seu próximo.
224
Caminhadas de universitários de origem popular
Uma mensagem de incentivo
Tássia de Sousa Pinheiro*
Iniciei minha vida estudantil aos três anos de idade, pré-alfabetização, na Escola Paraíso
Infantil, e da alfabetização à quarta série estudei no Educandário São Pedro e São Paulo.
Ambas as escolas situadas no bairro em que moro, Jardim Primavera na cidade de Camaragibe.
Minha mãe, que sempre se preocupou bastante com a nossa educação, nossa, porque,
tenho uma irmã, optou por fazer o esforço de pagar uma escola particular para que pudéssemos
ter uma boa aprendizagem inicial. Mesmo sendo uma escola popular, as professoras dessa
escola dedicavam-se bastante de modo a garantir um bom desempenho do aluno. Minha
professora era “tia” Josanea. Até hoje a chamo assim, ela e sua secretária Luciana “tia Lu”.
Passei a estudar a partir da quinta série do ensino fundamental no Colégio Municipal
Pedro Augusto que pertence à rede municipal de ensino do Recife, onde concluí também o
ensino médio. A princípio, fiquei surpresa, pois até então estava limitada a uma escola do
bairro. A realidade no novo colégio era totalmente diferente, muitas pessoas, muitos
professores, mas me adeqüei com facilidade.
Não tive muitas dificuldades com as disciplinas, pois ficava atenta às explicações e
gostava de fazer as atividades escolares. Sentia uma enorme satisfação em fazê-las.
Tive uma grande dificuldade na disciplina de matemática com o assunto polinômios,
durante a sétima série. Quando finalmente consegui aprender esse assunto, descobri que
não o usaria diretamente na continuidade do programa escolar. Até hoje, não entendi a
utilização prática dos polinômios.
Passadas as dificuldades com a matemática, concluí o ensino fundamental sem maiores
problemas. No ensino médio, conheci professores maravilhosos, que se interessavam pela
aprendizagem do aluno. Um desses, foi Valdemir, o professor de Biologia. Ele dava uma
aula espetacular, e como sempre, exercia um certo fascínio por essa área, prestava muita
atenção a tudo que ele falava, e com certeza, foi ele quem me inspirou a optar pelo curso de
Ciências Biológicas.
Não tive complicações com as disciplinas durante o ensino médio. Em contrapartida,
iniciaram-se alguns conflitos em casa. Meus pais já não viviam harmoniosamente. Sempre
tiveram dificuldades, como qualquer casal, porém, contornáveis, mas agora parecia algo mais
sério. Eu já estava cursando o terceiro ano do ensino médio.
Iniciei num cursinho pré-vestibular no último ano do ensino médio. Minha mãe gostaria que
eu tivesse uma preparação melhor para fazer a prova do vestibular no final do ano, e com muito
esforço, pagou o curso. Minha tia , meu primo e meu pai, também ajudavam no custo das passagens.
Graduanda em Biologia.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
225
Eu passava o dia inteiro fora de casa. Pela manhã no colégio, e à tarde no cursinho.
Chegava em casa à noite entre 19:30 e 20:00 horas, pois o curso era distante, pegava
duas conduções.
Foi uma época difícil, tanto pelo cansaço físico e mental, quanto pela descoberta
frustrante de que o conteúdo de tudo o que eu aprendia na escola, na verdade, era dez vezes
menor que o que deveria aprender. Bati de frente com a realidade.
Mesmo assim, não desisti, prestei vestibular pela primeira vez em 2004 para fisioterapia,
passei apenas na primeira fase. Fiquei triste, mas já esperava o resultado, principalmente,
depois do encontro horrível com a prova de física na segunda fase, e também, porque sabia
que precisava estudar mais.
No início do ano de 2005, com as forças já renovadas, comecei a estudar, mas
senti a necessidade de ter contato com um professor em sala de aula, assim, conseguia
aprender melhor.
No colégio onde estudei, Pedro Augusto, já era oferecido desde o ano anterior (2004) o
PREVUPE Prefeitura, resultado de uma parceria da UPE com a prefeitura da cidade do Recife.
Comecei a participar. Os professores eram bons, mas o tempo era curto. Apenas nos
finais de semana, não era possível trabalhar bem os conteúdos.
Paralelo a tudo isso, os problemas em casa continuavam e eu tentava me isolar ao
máximo, pois precisava estudar, porém, nem sempre era possível. Afinal, tratava-se dos
meus pais, e eu os amo muito, era difícil conviver com aquela situação.
Conversei com a minha mãe, falei que seria melhor fazer um cursinho, pois só os finais
de semana não davam conta do recado. Dessa vez, ela não pôde, os recursos financeiros não
eram suficientes. Ela estava praticamente desempregada porque o órgão pelo qual trabalhava,
a Cruzada de Ação Social, iria fechar, e até então, não se sabia o que seria dos funcionários.
Então, ela resolveu pagar um curso de UTI para se especializar melhor na sua área,
enfermagem, para que as chances de conseguir um novo emprego aumentassem.
Foi quando consegui um “bico”. Trabalhei numa escola do bairro ensinando a uma
turma do jardim de infância pela manhã e ganhava apenas cinqüenta reais por mês. Então,
propus ao meu primo Flédson que me fizesse um “empréstimo”, que completasse o dinheiro
para eu pagar o cursinho e quando eu conseguisse um emprego o pagaria. Ele me concedeu
isso como um presente, eu não precisaria pagar. Creio que tenha percebido meu esforço.
Matriculei-me num cursinho onde estudava de segunda à sexta-feira no turno da noite
e no domingo a tarde, e ainda no PREVUPE no sábado e no domingo pela manhã.
Tive mais um ano de luta, pouca diversão e muito estudo. Já quase no final do curso, no
mês de setembro, meus pais se separaram. Meu pai não queria, eu muito menos, mas tinha que
reconhecer que a situação estava insustentável. Ele foi embora num sábado, chorei muito em
casa, no cursinho, nesse dia mal consegui prestar atenção nas aulas. Alguns amigos me consolaram.
Gostaria muito que eles estivessem juntos, infelizmente não foi possível. Reuni forças
e continuei a estudar, afinal a grande avaliação estava próxima.
Finalmente, chegou o dia tão esperado, o dia da prova do vestibular. Minha mãe,
como das outras vezes, acompanhou-me até o local de prova. Acho legal, pois é um apoio
nessa hora de tensão.
Tive um bom resultado na primeira fase, e assim, comecei a preparar-me para a segunda
fase. Fiz a segunda prova e o resultado demorou a sair. Talvez minha ansiedade fizesse esse
tempo parecer ainda mais longo.
226
Caminhadas de universitários de origem popular
Finalmente, chegou o dia 09/01/2006, o dia em que saiu o listão. Fiquei nervosa o dia
inteiro, ninguém ligava para me dar notícias. Um misto de ansiedade e medo tomaram conta
de mim, talvez o medo tenha sido maior, e resolvi esperar até o dia seguinte.
Tamires, minha irmã, dormiu com meu celular bem perto, porque nossa colega Kaline,
com certeza, daria alguma resposta, pois a meia-noite ela veria o resultado pela internet, era
ela quem se encarregava de dar esses resultados.
Ela enviou uma mensagem, mas minha irmã não ouviu. Pela manhã, bem cedo, a
primeira coisa que ela fez foi ler a mensagem e aí gritou: Tássia acorda! Mainha corda!
Tássia passou! Quase todos os vizinhos escutaram.
Nos abraçamos, e de tanta felicidade, até choramos. Corri para o telefone e avisei a
todos que conhecia, outros me ligaram para dar os parabéns. Alguns amigos vieram à noite
para uma pequena comemoração promovida por eles.
E aí veio mais um tempo de espera até que, de fato, eu ingressasse na vida acadêmica,
pois optei por entrar na segunda entrada.
Agora, a grande dúvida era saber como eu me sustentaria na universidade, pois na
minha casa apenas minha mãe trabalhava e ganhava apenas um salário-mínimo e só esse
dinheiro não daria para manter a casa e arcar com o custo das passagens e das xérox.
No dia 07/08/2006, tive a aula magna. Conheci alguns colegas de turma, a sala onde
iria estudar e algumas “regras” da universidade que só seriam assimiladas com o tempo.
Uma colega que já estudava na UFRPE havia me informado sobre as inscrições no
Programa Conexões de Saberes e até então tudo o que eu sabia sobre esse projeto é que
iríamos receber uma bolsa auxílio, que, por sinal, me ajudaria bastante.
Fui selecionada e ao conhecer melhor o objetivo do Conexões de Saberes interesseime mais ainda pelo projeto. Tive a oportunidade de conhecê-lo mais amplamente e suas
atuações nas diversas regiões do Brasil, participando do II Seminário Nacional do Conexões
de Saberes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e agora sei que sempre quis
participar de um projeto como esses.
Atualmente, estou cursando licenciatura em ciência biológicas na Universidade Federal
Rural de Pernambuco (UFRPE) e à noite desenvolvendo minhas atividades no Conexões de
Saberes em conjunto com o Programa Escola Aberta nos finais de semana. Sinto-me com
uma sensação de dever cumprido ao saber que estou contribuindo positivamente para o
desenvolvimento sociocultural de cada um dos participantes.
Essa é um pouco da minha história, sei que existem outras bem mais turbulentas, mas
quero dizer que mesmo não sendo possível vencer sempre, o mais importante é jamais
desistir de lutar.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
227
Memorial
Themistocles Alves de Souza*
Sou Themistocles Alves de Souza, natural de Vila de Icoaracy, no estado do Pará, de
onde não trago nenhuma recordação, pois de lá saí com pouco mais de dois anos de idade,
com mais dois irmãos.Viemos para o estado de Pernambuco, para a cidade do Recife.
Meu pai, Manoel José Serafim de Souza, já falecido, profissional militar da Marinha
de Guerra, foi transferido para cá no ano de 1962, para a Escola de Aprendizes de Marinheiro,
situada na cidade de Olinda, na orla marítima, mas minha mãe, Therezinha Alves Barbosa,
por motivos ainda hoje por mim desconhecidos, recusara-se a acompanhá-lo, motivando
nossa separação. Por isso, fiquei com papai que, ao chegar, comprou uma casa bastante
espaçosa, localizada na periferia da zona norte do Recife, bairro de Casa Amarela, no Alto
do Cruzeiro. Ele convidou meus avós e tios paternos para morarmos juntos, motivado por
suas constantes viagens de trabalho.
Alguns meses depois, papai conheceu sua nova companheira, senhora Menezes, não
chegaram a morar juntos, mas desse relacionamento nasceu um outro irmão. Éramos quatro,
Theodorico, Theodósio, Theobaldo, já falecido, e eu.
No ano de 1963, com quatros anos de idade, lembro-me de ter participado das
festividades do matrimônio de papai com sua terceira companheira e primeira esposa
legalizada, minha madrasta, senhora Maria Lúcia de Souza Bittencourt, já falecida, treze
anos mais jovem que ele. Dessa união nasceram: Marlucia, Theodomiro, Marcia e Martha.
Em 1964, iniciei meus estudos em uma escola particular, Instituto Coração Imaculado,
situado no bairro de Beberibe. Depois, fui estudar na escola Instituto Missões Unidas, no
bairro do Vasco da Gama, quando fui interrompido por uma nova transferência de papai, em
meados do ano de 1966. Nós fomos morar na Bahia da Guanabara, no estado do Rio de
Janeiro, no bairro de Bento Ribeiro, zona norte, onde concluí todo meu ensino primário na
escola Francisco Palheta, situada nas proximidades da estação de trem Bento Ribeiro. Depois
fiz o teste de admissão e cursei a quinta e sexta séries ginasial no colégio estadual Ginásio
Getúlio Vargas, no bairro de Cascadura, na divisa com o bairro Bento Ribeiro.
A história da transferência de meu pai se repete no ano de 1975, quando no mês de
fevereiro, em pleno carnaval, desembarcamos novamente na Rodoviária do Recife, no Bairro
de São José.
Fui matriculado na sétima série ginasial no CMR - Colégio Militar do Recife, dirigido
pelo Exército, situado no bairro do Benfica. Fui reprovado neste ano.
Graduando em Ciências Sociais.
228
Caminhadas de universitários de origem popular
Em 1977, meu saudoso e querido pai estava encerrando suas atividades profissionais,
indo para reserva remunerada, como nomeia-se a aposentadoria do militar. Como premiação,
ganhara uma viagem para ir à Europa por mais de seis meses.
Novamente fui reprovado na oitava série ginasial sendo convidado a me desligar do
Colégio Militar, pois o regimento interno só permitia uma reprovação por cada ciclo.
Matriculei-me no Ginásio Pernambucano, no centro da cidade do Recife, na rua da Aurora,
no bairro da Boa Vista, onde, após alguns anos de desistência de matrícula e desestímulo a
estudar, concluí a terceira série do científico, no ano de 1985.
Dez anos depois, observando que as oportunidades tendiam a surgir mais para as
pessoas mais qualificadas, resolvi investir em mim. Mesmo ganhando dois salários-mínimos
na época, destinei quase metade dos meus proventos para pagamento da mensalidade do
curso de Pedagogia na FACHO - Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, situada na
Rodovia PE-15 Km 3,6 - Ouro Preto. Após quatro anos consecutivos, no dia 2 de dezembro
de 1998, colei grau. No ano seguinte, no segundo semestre, ingressei como portador de
diploma no curso do Bacharelado em Ciências Sociais da UFRPE - Universidade Federal
Rural de Pernambuco, no turno da noite.
Faço este relato não por mérito de ser oriundo de escola pública, mas por testemunho
próprio, porque mesmo sem muito afinco, sem quase ter responsabilidade de querer aprender
e estudar, mesmo com todo o meu descaso, sempre fui acolhido nesta instituição de ensino,
em toda minha trajetória de estudante. Desempenhando papel fundamental para minha real
formação acadêmica e profissional, pude presenciar e participar de processos de integração
e de interação, promovidos pelas instituições de ensino público, que são direcionados a
crianças, jovens, adultos das periferias, favelas, comunidades subnutridas e excluídas das
condições mínimas de existência.
Valeram e vêm valendo os esforços de todos aqueles que acreditam que, apesar dos
inúmeros obstáculos, dificuldades e deficiência, é possível a constante construção e formação
de uma sociedade, certamente mais justa. Por isso, vejo uma luz não só no meio do túnel,
mas também, em toda sua trajetória, através das escolas e universidades públicas, onde
todos temos condições de ser e fazer acontecer, como ocorreu e vem acontecendo comigo.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
229
Memorial
Thiago da Silva Barbosa*
Chamo-me Thiago, tenho 20 anos e estudo na Universidade Federal Rural de
Pernambuco. Nasci em 7 de maio de 1986, em Recife, capital de Pernambuco. Pertenço a
uma família muito rica - não necessariamente em bens e posses, mas em amor, respeito e
bons valores. À minha mãe - Cristina - e à minha avó - Helena - a elas devo tudo que aprendi
e me tornei, por terem dedicado suas vidas e preocupações ao me ensinarem o sentido da
vida. Sempre morei com elas, meu irmão Alyson, e minha prima Tamyris.
Aos quatro anos fui à escola pela primeira vez. Sentia-me em casa. Sempre gostei de
estudar e de me relacionar com pessoas novas. Na Escola Balão Mágico, fiz minhas primeiras
amizades, aprendi a ler, a escrever e pude conhecer duas professoras maravilhosas, cujos
exemplos e ensinamentos me acompanhariam ao longo de minha trajetória intelectual - Tia
Leca e Tia Alderice, a quem agradeço profundamente tudo o que aprendi naquela época.
Quando tinha oito anos, meus pais se separaram. Não me lembro de ter sofrido, talvez
porque já não sentisse tanto a sua presença.
Morei em Recife até os 11 anos, no bairro de Água Fria. Foi quando, em 1998,
tivemos que mudar de residência. Fomos morar em Piedade, bairro de Jaboatão dos
Guararapes, Zona Sul da Região Metropolitana. Foi muito difícil deixar uma vida inteira
para trás. Mais difícil ainda, foi me acostumar com a nova localidade, com os novos amigos,
e principalmente, com a nova escola. Estava na 5ª série e fui transferido para a Escola
Zequinha Barreto. Apesar das dificuldades, adaptei-me. Conquistei novos amigos - entre os
quais, José Luís, Graciela e Yanna, foram os mais especiais - e conheci novos professores,
dos quais Dora, Gisele, Telma e Vera sempre lembrarei com carinho. Aprendi várias coisas
diferentes e compreendi que, para “crescer na vida”, era preciso “suar a camisa”.
Tornei-me, ornei-me evangélico e ainda hoje, sou membro da Igreja Evangélica
Assembléia de Deus. Aprendi que além de garra e força de vontade era preciso ter fé e
acreditar que tudo é possível. Conheci Carlos, Paulo e Regina, meus amigos inseparáveis
que comigo compartilham alegrias dores e vitórias. Em 2003, estava no 3º ano do
Ensino Médio e iria prestar vestibular para a Universidade Federal de Pernambuco UFPE - no fim do ano.
Como não trabalhava e minha mãe não ganhava o suficiente para pagar um cursinho
preparatório para mim, a solução foi o Rumo à Universidade, um programa do Governo do
Estado, que oferece aulas pré-vestibulares aos sábados e aos domingos e uma ajuda de
custo. Fiz a prova de seleção e fui aprovado. Junto comigo também, foram selecionadas
Graduando em História.
230
Caminhadas de universitários de origem popular
Regina e Graciela. Íamos juntos às aulas. Todos os sábados estava de pé às 5h45min. da
manhã. Assistia à aula o dia todo e ia para casa por volta das 18h30min. No Domingo,
levantava a mesma hora, mas só tinha aula no horário da manhã. Era um stress. Mas não
tinha outra opção. Apesar de tudo, era muito gratificante estudar no programa: os ótimos
professores e os amigos nos incentivavam a continuar.
Fiz a minha inscrição no vestibular da Federal para o curso de Turismo, e como tinha
ganho isenção do pagamento da taxa de inscrição também na UPE - Universidade de
Pernambuco - me inscrevi nesta para o vestibular no curso de Administração. Não passei em
nenhum dos dois vestibulares. No da Federal, só passei na primeira fase. Foi muito frustrante.
Contudo não desisti.
Terminei o Ensino Médio e em 2004, dediquei-me totalmente ao vestibular. Dessa
vez, tinha que dar certo. Inscrevi-me num cursinho comunitário e entrei para o Rumo à
Universidade novamente, só que dessa vez apenas como ouvinte, não recebia a bolsa.
Regina, que como eu não conseguira passar no vestibular, estava ao meu lado lutando por
uma vaga na Universidade. Estudava durante o dia em casa, e à noite ia para o cursinho e
nos fins de semana assistia às aulas no Rumo à Universidade.
Um mês antes das inscrições para o vestibular resolvi mudar de curso. Decidi prestar
vestibular para Licenciatura em História. Dessa vez não mais para a UFPE, mas para a UFRPE
- Universidade Federal Rural de Pernambuco. Desde criança sempre quis ser professor, só que
nunca me passou pela mente a idéia de que um dia estaria fazendo um curso de licenciatura.
Estudei pra “caramba”. Fiz a primeira fase e passei com média 5.8. Fiquei entre as
vagas na 50ª posição. Fiquei aliviado, mas só por um momento. O pior ainda estava por vir:
a segunda fase. Fiz a prova e no listão o resultado: passei! Foi uma surpresa. Recebi a notícia
por telefone. Minha mãe me ligou e me disse que eu tinha sido aprovado. Ainda hoje tenho
gravado na memória a sua voz trêmula me dizendo: “Você passou, meu filho! Você passou!”.
Era a melhor notícia que alguém poderia me dar naquele final de ano. Minha alegria só não
foi completa porque Regina não conseguiu passar também, assim, como a maioria de meus
amigos que também prestaram vestibular nesse ano.
Entrei na UFRPE. Não foi a primeira vez, mas era como se fosse. Tudo era novo pra
mim. Parecia um sonho. Conheci pessoas diferentes e tive o privilégio de entrar para uma
turma maravilhosa, na qual fiz amizades sólidas - entre os amigos queridos estão Shirlei,
Débora, João e Thiago Rafael, cujas presenças nunca me faltaram - e com os quais dei meus
primeiros passos para uma brilhante vida acadêmica.
No início, tive um pouco de medo disso tudo. Era muito para mim. Não é nada fácil
para uma pessoa que passou a vida inteira estudando em escola pública, de repente, ingressar
na Universidade onde as pessoas parecem “expelir ciência pelos poros”.
Mas apesar de todas as dificuldades estou firme e forte, lutando por meus objetivos - um
deles é me tornar um excelente professor de História, apesar da terrível situação em que a
educação brasileira hoje se encontra - e tentando fazer alguma coisa notável, que me configure
como uma pessoa de sucesso e útil a nossa sociedade tão carente de respostas e soluções.
Estou no 4º período do curso de Licenciatura em História e trabalhando no projeto
Conexões de Saberes, que me deu a oportunidade de desenvolver atividades em escolas
públicas e ajudar outros “Thiagos” a se tornarem pessoas mais críticas e mais conscientes de
seus direitos e deveres, e principalmente, a brigarem por uma universidade pública de
qualidade, mais acessível e menos excludente.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
231
Memorial
Valéria Verônica dos Santos*
Há 20 anos, na cidade de Escada, encontram-se Vicente (caminhoneiro) e Valdênia
(estudante), passado um mês desse encontro, sai o casamento. Morando agora em Recife,
constituíram a família Santos, que ao todo contam cinco pessoas: os pais, e os filhos,
Wagner (o caçula), Vanderlan (“o do meio”) e Valéria (a narradora).
Enquanto criança, eu (Valéria) fui muito quieta, quase nem falava, mas era uma criança
considerada normal. Ainda antes da idade escolar (7 anos, na escola do estado), freqüentei
uma escolinha particular. Foi lá que conheci as letras com a ajuda da professora Sônia.
Desse período nessa escolinha, só não gostava de uma coisa: eu sempre era a última a ir para
casa, porque a minha tia sempre se atrasava.
Mais tarde, minha mãe conseguiu uma vaga para eu estudar na Escola Antônio Vieira
de Melo (municipal) em Jaboatão dos Guararapes. Nesta, comecei na primeira série e fui
desenvolvendo minhas atividades escolares normalmente. Foi quando aprendi a ler. Foi tão
empolgante o aprender a ler, que eu não largava o livro; já sabia de todas as histórias do
mesmo. Quando chegava da escola, nem tirava a farda nem comia, tirava o caderno da bolsa
e fazia a tarefa de casa. Sem contar que escrevia muitas cópias (escrevi repetidas vezes um
texto) e caderno de caligrafia para melhorar aqueles “códigos” que eu fazia.
Depois dessa escola, fui para uma mais perto de casa - Marechal Eurico Gaspar Dutra,
onde passei 10 anos de minha vida (entrei na segunda série e saí depois do 3º ano científico).
No decorrer desse período, acontecimentos marcantes sondaram minha caminhada.
Dentre eles, o fato de o meu pai Ter sofrido um acidente cardiovascular (AVC) e ter como
seqüela uma paralisia no lado esquerdo do corpo, que persiste até os dias atuais. Isso
transformou a nossa família em um campo minado de mágoas, recentimentos e tristezas. Ele
já não era mais o mesmo e nos maltratou muito. Encheu-se de dívidas e nós começamos a
passar por necessidades financeiras. Tinham meses que minha mãe não fazia mais feira, já
que a renda mensal da família era empregada nas dívidas dele.
Foi também em uma parte desse período que foi despertado em mim o desejo de fazer
o vestibular das federais. Isso porque, em 2002, conheci uma pessoa que me estimulou a
estudar mais do que eu já fazia: a professora de Biologia do 2º ano (Ensino Médio), Cristina.
Eu nunca havia estudado tanto (Biologia) como naquele ano, como conseqüência, adquiri
uma boa parcela de conhecimentos biológicos, o que me instigou a repetir a “dose” no 3º
ano (último ano de escola e de vestibular).
As dificuldades permaneceram e por isso quando falei para minha mãe que iria fazer
vestibular, ela me lembrou de um influenciante fato: “- Valéria, tu não inventa essas coisas,
Graduanda em Biologia.
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Caminhadas de universitários de origem popular
não sabe que a gente não tem dinheiro. E se tu passar, quem vai pagar as passagens de todos
os dias?”. Realmente... ela tinha razão. Contudo, não havia mais nada que me impedisse de
fazer o vestibular, já estava tão empolgada que pensava: primeiro eu passo, depois eu dou
um jeito. Fiquei sabendo das inscrições do programa Rumo à Universidade. Fiz a prova,
passei e comecei a estudar. Nesse programa, as aulas eram aos sábados (de 8h às 17h) e aos
domingos (de 8h às 12h). O ano de 2003, não havia preparado êxitos e eu não passei na 2ª
fase do vestibular. Entretanto, esse acontecimento não me desestimulou e nesse momento
acreditei que se estudasse mais, conseguiria.
2004, ano de planos, emoções e disposição de sobra. Exatamente, em 2 de fevereiro,
eu e Clóvis (meu namorado, há apenas um mês) começamos a estudar em casa mesmo,
montamos um horário e “mandamos ver”. Fizemos a prova para o preparatório da UPE
(PREV-UPE) e eu tive a oportunidade de, novamente, fazer a prova do Rumo à Universidade.
Obtivemos ótimos resultados e passamos - Clóvis na prova do PREV-UPE e eu tanto na do
PREV-UPE, quanto na do Rumo à Universidade.
Este último, garante aos estudantes aprovados, uma ajuda de custo de R$ 50,00, para
as dispesas com passagens e alimentação (já que passávamos o sábado inteiro estudando),
assim o escolhi. O dinheiro que recebia era empregado - além do já mencionado - também
para ir às aulas da semana do PREV-UPE.
Foi muito esforço, dedicação e dificuldades vivenciadas nessa época. Lembro-me das
vezes em que ia para as aulas de estômago vazio - estávamos (minha família) passando por
cruéis dificuldades financeiras: o meu pai foi embora de casa e minha mãe não estava
trabalhando e por isso, eu estudava sem me alimentar. Nossa!... Como foi difícil! O
pensamento dois, as forças, por momentos, cessavam. Algum tempo depois minha mãe
conseguiu um trabalho - acompanhante de idosos. As coisas foram melhorando e agora eu
tinha mais disposição ainda para alcançar o meu objetivo: passar no vestibular.
Tanto eu como Clóvis, ganhamos isenção (total e parcial, respectivamente) da taxa de
inscrição do vestibular. Fizemos as provas das federais e da UPE. Após termos passado na
primeira fase das federais, viajamos para Nazaré da Mata para fazermos as provas da UPE. O
primeiro resultado definitivo a sair foi o da UPE : NÓS PASSAMOS NO VESTIBULAR DA
UPE!!! E por último sai o listão da Segunda fase das federais: NÓS TAMBÉM PASSAMOS
NO VESTIBULAR DAS FEDERAIS!!!
Hoje, eu estou no 4º período de Ciências Biológicas e o meu companheiro de estudos
e de vida (3º ano de namoro) encontra-se no 3º período (porque trancou um período a fim de
estudar para o concurso). Ele é para mim um exemplo de coragem e dedicação.
Assim, é a vida: cada um com a sua caminhada; umas distantes, outras até ali. O
essencial para a vida é ter sonhos, pois são estes que darão sentido à caminhada. E se a vida
nos pregar más peças, que sirvam de aprendizado.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Minha história
Viviane Rodrigues de Araújo*
Durante minha infância, morei no bairro dos Bultrins, em Olinda, onde tive contato
com minha primeira escola: “Centro Missionário do Monte”, que estava sob os cuidados
das freiras, de uma igreja próxima. Lembro-me o quanto foi difícil meu primeiro dia de aula,
uma agitação, pessoas estranhas, e o medo da ausência dos meus pais. Minha timidez
dificultou bastante a minha proximidade com colegas e professores. No entanto, com passar
do tempo fui me habituando, e até mesmo gostando da escola e dos meus colegas.
As atividades desenvolvidas na escola eram bastante diversificadas. Além da aula
tínhamos brincadeiras, pintura, jogos e atividades culturais, como, dança Folclórica e visitas
esporádicas ao Sítio Histórico de Olinda, para realizar uma atividade chamada Recriança,
cuja finalidade era de assistirmos a apresentações culturais, e participarmos de recreações,
nas praças e parque da cidade.
Além do Centro Missionário ter sido o lugar onde aprendi as primeiras letras, foi lá
também que fiz as primeiras amizades, que inclusive faziam parte comigo do grupo de dança
Pastoril da escola, um folguedo popular, comum no Nordeste. Éramos incentivadas pela nossa
professora Célia, pessoa de quem gostávamos muito, e de grande importância na minha vida.
Neste mesmo período, no entanto, a situação dentro da minha casa já não era tão boa,
a harmonia do lar tinha sido quebrada: além de estarmos numa situação financeira difícil,
meus pais passaram a brigar constantemente, por motivos que só cheguei a entender depois
de crescida. Tantas brigas tiveram, por conseqüência a separação que, para mim e meus
irmãos foi muito dolorosa. Apesar disso, minha vida e atividades escolares continuaram.
No dia 23 de Dezembro de 1991, completei 8 anos de idade, e no ano seguinte cursei
a 3ª série do ensino fundamental na escola: Dom João Crisóstomo, pois no centro Missionário
só havia turmas da alfabetização a 2ª série do ensino fundamental. A nova escola também
ficava próxima da minha casa, e era tão boa quanto a anterior, tínhamos muitas atividades
culturais, festas, brincadeiras, além de um espaço externo da escola onde podíamos correr,
pula, subir nas árvores e comer frutas tiradas do pé.
Muitos foram os amigos, e as saudades das professoras, pois nesta escola a minha
passagem foi tão rápida quanto a anterior, cursei nesta até a 4ª série do ensino fundamental.
Apesar do curto tempo, estes foram marcantes em minha vida.
Aos 10 anos de idade, fui cursar a 5ª série do ensino fundamental, na escola Lions
Dirceu Veloso, também no bairro dos Bultrins, minha mãe resolveu me matricular nesta
escola porque acreditava que o ensino era da melhor qualidade, o que infelizmente não era
Graduanda em História.
234
Caminhadas de universitários de origem popular
verdade, pois, sofríamos com a falta de alguns professores, o que dificultou no aprendizado
de algumas matérias como: Física, Química, e Geografia, no entanto, estudei nesta escola
até a 7ª série do ensino fundamental.
No início do ano de 1997, meus pais fizeram um acordo, para que eu e meus dois
irmãos passássemos um ano morando com meu pai, já que, só ficávamos com ele nas férias.
Por isso nos mudamos para uma cidade chamada Assu, que fica na zona da Mata, do Estado
do Rio Grande do Norte. Lá, cursei a 8ª série do ensino Fundamental no Instituto Padre
Ibiapina. Onde, além das aulas e atividades esportivas, recebíamos orientação Religiosa,
pois, o Instituto era dirigido pelos Padres, das Igrejas da Cidade de Assu. O ensino era
rigoso, os professores muito exigentes, a qualidade da Educação do Instituto não deixava a
desejar o que me ajudou bastante no ensino médio.
Passado um ano, em janeiro de 1998, eu e meus irmãos voltamos a morar com minha
mãe, na cidade de Olinda em Pernambuco, no bairro de Ouro Preto. Com muita dificuldade
minha mãe conseguiu me matricular no Colégio Estadual de Olinda, onde cursamos todo o
ensino médio, as dificuldades eram muitas, para pagar as passagens de ônibus, pois o colégio
ficava em outro bairro, um pouco distante da minha casa, além disso, ficávamos muitas
vezes com fome pois não tínhamos dinheiro para o lanche. Apesar desses problemas,
gostávamos dos professores que eram verdadeiros amigos, dos colegas de classe, minhas
queridas amigas, Andréia, Adriana e Bebete, que saudades!
Pessoas com quem compartilhei minha dificuldade, e para que também pude ser aquela
que guardava segredos, foi também, durante o ensino médio que despertou em mim a
vontade de fazer um curso de nível superior, após ter concluído o ensino médio no ano de
2000, passei a me dedicar ao vestibular, tentei três vezes o curso de Jornalismo, na UFPE,
sem no entanto alcançar êxito.
Na quarta tentativa, fiz um cursinho pré-vestibular de baixo custo, no Curso Líder que
fica no centro do Recife, lá, conheci o professor Eliseu que dava aula de História, que me
incentivou a estudar e gostar cada vez mais da matéria, daí então, decidi mudar meu curso e
prestei vestibular para História na UFRPE, onde consegui enfim ser aprovada, o que deixou
minha família feliz, ao conquistar o nível superior. Ainda que tenha passado dificuldades
financeiras, e tenha estudado sempre em escolas públicas, que nem sempre eram de boa
qualidade, tenho o orgulho de afirmar que nenhum dos problemas foi suficiente maior que
meu sonho de estudar em uma universidade pública de qualidade. E esta é minha história.
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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