Josep Fontana, “Historicismo e nacionalismo”, in A

Transcrição

Josep Fontana, “Historicismo e nacionalismo”, in A
SUMÁRIO
11
INTRODUÇÃOCAPÍTULO 1
21
As origens: a historiografia da antigüidade clássica
CAPÍTULO 2
57
A ruptura da tradição clássica
CAPÍTULO 3
83
Renascimento e renovação da história
CAPITULO 4
107
-
A Ilustração
CAPITULO 5 .
143
A invenção do progresso
CAPÍTULO 6
171
Revolução e restauração
CAPÍTULO 7
199
Marx e o "materialismo histórico"
CAPITULO 8
221
Historicismo e nacionalismo
CAPITULO 9
243
O esgotamento do modelo acadêmico (1918-1939)
CAPÍTULO 1 0 ^
261
A história econômica e social
CAPITULO 11
309
Os marxismos
CAPÍTULO 1 2
343
As guerras da história
CAPÍTULO 1 3
381
A reviravolta cultural
CAPÍTULO 1 4
413
A crise de 1989
CAPÍTULO 1 5
439
Pôr uma história de todos
CAPÍTULO 1 6
471 . Em busca de novos caminhos
'i
491
ÍNDICE ONOMÁSTICO
Capítulo 8
HISTORICISMO E NACIONALISMO
Se a França da Restauração utilizou a história para assimilar a herança da Revolução e colocar as bases da nova sociedade burguesa, na Alemanha a situação seria muito diferente. As conseqüências que esse ponto
de partida teria na evolução da história seriam transcendentais a partir do
momento em que a "história científica", elaborada nas universidades alemãs por pesquisadores que eram funcionários do estado, converteu-se
num modelo imitado no mundo inteiro.
A Alemanha do início do século XIX tinha dois problemas fundamentais quer influenciaram decisivamente na orientação assumida por
seus historiadores: o desejo de realizar a unificação política a partir do mosaico das diversas unidades que a compunham (um caos de estados, cidades livres e feudos que o congresso de Viena reduzira a 39) e o de empreender o caminho da modernização sem correr riscos revolucionários.
Os intelectuais alemães trabalhavam, desde fins do século XVIII,
pára estabelecer as bases de uma cultura nacional calcada na unidade da
língua. Recuperaram todo o tesouro de mitos e poesias transmitidos pela
cultura popular até então menosprezada, como o fez Jacob Grimm, "estudioso do folclore germânico e das leis antigas; as duas coisas, para ele, partem de um mesmo trabalho".1 No terreno artístico, a recuperação seria fei1 BURROW, J. W. The crisis of reason. European thought, 1848-1914. New Haven: Yale
University Press, 2000. p. 114.
ta através da paisagem, às vezes carregada de um discurso nacionalista
mais ou menos explícito, como no caso de Caspar David Friedrich. No
campo da história, a avaliação de um passado clássico comum seria enriquecida com a recuperação das crônicas medievais, que acrescentaram uni
elemento "nacional", havendo também, e isso foi muito importante para a
consolidação da "história científica", o desenvolvimento de métodos de
crítica erudita que tinham origem, principalmente, no campò da filologia.
A dimensão política do projeto é fundamental para entender sua
evolução. A ameaça revolucionária ensinou aos políticos prussianos que era
melhor antecipar-se, e ceder alguma coisa de antemão - fazer uma limitada "revolução pelo alto" - do que arriscar perder tudo. A derrota para Napoleão conduziu ao início efetivo das reformas que levaram à abolição formal do feudalismo por obra de homens como Stein ou Hardenberg, convencidós da necessidade de "introduzir os princípios democráticos no estado monárquico". Reformas muito limitadas no entanto, pois mesmo que
permitissem a livre utilização da terra e abolissem a servidão, mantinham a
prestação de serviços e as obrigações por parte dos camponeses, caso quisessem conservar terras que eram consideradas como propriedade dos se-K
nhores. Isto explica porque eles se rebelaram ao descobrir que a liberação
os submetia a um regime mais duro que o anterior. A situação haveria de
piorar ainda mais quando se permitiu aos grandes proprietários apropriarem-se de uma parte cada vez maior da terra, manter a própria polícia rural e controlar os órgãos de governo local. Este seria o paradoxo de uma
modernização política que tornaria possível o desenvolvimento industrial,
ao mesmo tempo que conservava os privilégios sociais da nobreza.2
2 HAMEROW, T. S. Restoration, revolution, reaction. Economic and politics in Germany, 1815-1871. Princeton: Princeton University Press, 1972; BLUM, Jerome. The
end of old order in niral Europe. Princeton: Princeton University Press, 1978; GERSCHENKRON, Alexander. Bread and democracy in Germany. Berkeley: University of
California Press, 1943; BERDAHL, Robert M. The politics of the Prussian nobility.
The development of a conservative ideology, 1770-1848. Princeton: Princeton University Press, 1988; SCHULZE, Hagen. The course of German nationalism. From
Frederick the Great to Bismarck, 1763-1867. Cambridge: Cambridge University
Press, 1991; BLACKBOURN, David. The long nineteenth centtiry (The Fontana history of germatty). London: Harper Collins, 1997. etc.
Os dirigentes da sociedade perceberam, desde o início, a necessidade de fechar as portas às idéias subversivas e de ajudar a criar um consénso social baseado na luta nacionalista. A ação iniciou-se com a reforma
educacional de Huínboldt e continuou nas universidades prussianas - em
especial a de Berlim, fundada em 1810 - que ofereciam aos intelectuais
bem-estar econômico e promoção social, recebendo deles, em troca, as armas ideológicas para fazer frente à subversão sob a forma de uma cultura
nacional que se apresentava dissociada do terreno da política e renunciava às funções de crítica social assumidas pelos intelectuais da Ilustração,
encarregando-se de preparar a população para reverenciar o estado ao
"qual proporcionavam legitimação.3
O que se denomina "historicismo" é difícil de definir. "Para uns diz Thomas Nipperdey - o historicismo é método, ou mais exatamente
metodologia, teoria da ciência; para outros, é uma visão de mundo fundada metafisicamente, com implicações políticas."4 Uma característica que o
define é a rejeição do universalismo da Ilustração, substituído por uma visão em que cada nação é considerada como uma totalidade orgânica que
tem leis próprias de evolução.5 A escola histórica de direito, com homens
3 STERN, -Fritz. The failure of illiberalism. Essays on the politicai culture of modem
Germany. New York: Knopf, 1972. p. 5-14.
4/ De fato, conclui, as interpretações são tão diversas que "se tem a impressão de que
determinadas correntes da ciência da história chamam historicismo ao que não lhes
agrada de sua tradição e que historicismo se converteu, assim, num conceito inimigo, delimitado e polêmico que não tem quasevsignificado analítico", NIPPERDEY,
Thomas. Sociedad, cultura, teoria. Buenos Aires: Alfa, 1978. p. 80-81. Uma versão legitimadora é, por exemplo, a de Meinecke, que o interpreta com uma continuação
da Ilustração, que não teria feito outra coisa senão substituir a generalização por um
processo de observação individualizadora (MEINECKE, Friedrich. El historicismo y
su génesis. México: Fondo de Cultura Económica, 1983. p. 12 (a edição original ale1 mã é de 1936). Uma interessante revisão do historicismo encontrar-se-a em CARRERAS, Juan José. Razán de historia. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 39-58.
5 Esta evolução pode ser observada, por exemplo, nas idéias sobre a história de Wilhelm von Humboldt, que passaria de formulações "ilustradas" que buscavam as leis
dó progresso a outras, posteriores, que defendiam que era necessário avaliar cada
época em sua individualidade. PÉREZ, Jorge Navarro. La filosofia de la historia de Wilhelm von Humboldt. Valência: Institució Alfons el Magnànim, 1996 e HUMBOLDT,
Wilhelm von. Escritos defilosofiade la historia. Ed. J. Navarro. Madrid: Tecnos, 1997.
como K. von Savigny, Gustav F. Hugo e Karl F. von Eichhorn, combatia as
formulações do jusnaturalismo que pressupunham a existência de princípios legais comuns para todo o mundo e defendia a peculiaridade indh#l
dual e histórica das leis de cada povo. A história, por seu lado, não deveria;
ocupar-se de estágios de desenvolvimento social, nem de "séculos" da cultura humana, mas das nações Consideradas organicamente e os fatos estudados pelo historiador deveriam ser analisados individualmente, no contexto nacional, sem buscar leis ou regularidades gerais que os explicassem.
O interesse político do projeto explica porque Stein um dos dirigentes do
reformismo prussiano, fosse, após retirar-se da política, o fundador da sociedade encarregada de publicar as fontes da história alemã nos Monuc
menta Germaniae histórica, qualificados como "o principal produto dot
novo espíritó do nacionalismo".6
As preocupações políticas conservadoras são bem visíveis no pensamento do introdutor dos métodos críticos da filologia na historiografia
alemã: o "Tácito prussiano", Barthold Georg Niebuhr (1776-1831). Niebuhr, filho de um grande explorador dinamarquês, seria sucessivamente
banqueiro e diplomata a serviço da Prússia, antes de tornar-se professor
universitário e nos deixar um modelo do novo método nos dois volumes
da História de Roma (1811-1812), que escrevera "com o sentimento de um
contemporâneo" segundo ele mesmo disse a Goethe, e que se tornaria um
6 SEELEY, J. R. Life and times of Stein. New York: Haskell, 1969.3 v. (reprint); RITTER,
Gerhard. Freiherr von Stein. Eine politische Biographie. Frankfurt: Fischer, 1983;
FEHRENBACH, Elisabeth. Sociedad tradicional y derecho moderno. Buenos Aires:
Alfa, 1980; GOOCH, G. P. History and historians in the nineteenth century. Boston:
Beacon Press, 1968. p. 60-71 (citação da p. 67); GRELLE, Francesco. L'archeologia
dello stato in Savigny e Mommsen. In: GERLONI, B. de (Ed.). Problemi e metodi della storiografia tedesca contemporânea. Torino: Einaudi, 1996. p. 133-142. No terreno
da economia, a influência do historicismo seria mais tardia mas muito duradoura,
estando marcada pela vontade de abandonar os métodos dedutivos da escola clássica para fundamentar o conhecimento econômico no estudo comparativo de casos
históricos isolados;, como proporiam inicialmente Roscher, Hildebrand e Knies,
acompanhados pelos membros da "nova escola histórica", especialmente Schmoller.
Sobre isto, veja-se SCHUMPETER, Joseph A. History of economic analysis. London:
Allen and Unwim, 1963. p. 807-819 e PRIBRAM, Joseph Karl. A history of economic
reasoning. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1983. p. 209-224.
\exemplo de trabalho erudito pelo modo com que fazia a crítica das fontes,
*com um "ceticismo construtivo". Politicamente, Niebuhr era uma espécie
rara de conservador-liberal que queria a liberação dos servos, mas que,
^-aterrorizado pelas reivindicações agrárias da revolução e pela ascensão das
camadas populares em geral, pensava que a história podia dar lições para
prevenir possíveis catástrofes sociais.7
O homem comumente considerado fundador do historicismo e que,
de fato, seria o divulgador dós novos métodos "científicos" da história, é
Leopold von Ranke (1795-1886). Procedente de uma família de pastores luteranos, publicou Histórias dos povos românicos e germânicos de 1494 a
1514, em 1824, quando ainda não tinha trinta anos. Com a obra, alcançou
uma reputação que lhe abriria as portas da universidade de Berlim, onde
auxiliaria a combater as idéias hegelianas. Esse seu primeiro livro continha,
no apêndice, uma "crítica ãos historiadores modernos", dirigida contra a filosofia histórica da Ilustração, que já mostrava as grandes linhas da cruzada metodológica que deveria manter ao longo da vida. No entanto, uma
frase do prefácio desse mesmo livro iria criar um equívoco que ainda persiste. O jovem historiador, fazendo um exercício de modéstia, dizia que,
ainda que a história tenha "a missão de julgar o passado e de instruir o presente em beneficio do futuro", o livro não tinha esta pretensão, contentando-se em "mostrar as coisas tal e como se passaram". Afrase- Er will bloss
zeigen wie es eigentlich gewesen" - foi tirada do contexto injustificadamente e interpretada como uma declaração metodológica, sendo, desde então,
repetida com entusiasmo pelos exércitos de historiadores acadêmicos que
acreditaram que ela legitimava a incapacidade, moral ou intelectual, deles
pensarem por conta própria. O ertgano chegou ao extremo de apresentar
como um dos grandes méritos de Ranke, como diz Gooch, o ter "separado
7 WHITE, Barthold C. Barthold Georg Niebuhr. Una vida entre la política y la ciência.
Barcelona: Alfa, 1987; GOOCH, G. P. History and historiam in the nineteenth century. Boston: Beacon Press, 1968. p. 1423; PFEIFFER, Rudolf. History of classical
scholarship, 1300-1850. Oxford: Clarendon Press, 1976; MOMIGLIANO, Arnaldo.
Niebuhr and the agrarian problems1 of Rome. In: History and theory, beiheft 21
(1982), p. 3-15. Niebuhr participaria ativamente nos grandes empreendimentos de
, erudição histórica de seu tempo, como o "Corpus inscriptionum graecarum" ou o
"Corpus scriptorum historiae byzantinae".
o estudo do passado, tanto quanto possível, das paixões do presente para escrever as coisas tal e como foram". Deixando de lado que o próprio Ranke
repetiu uma ou outra vez que a missão da história "não consiste tanto em
reunir e buscar fatos como em entendê-los e explicá-los", sua biografia e sua
obra - muito mais invocada que lida, salvo alguns breves textos programáticos - desmentem o mito do "wie es eigenüich gewesén".8
Ranke não foi precisamente um homem que permaneceria à margem da política. Depois da revolução de 1830, o governo prussiano publicou uma revista para combater as idéias revolucionárias, a Revista histórica-política, que foi dirigida por Ranke e, na qual Savigny colaborou ativamente. Tornou-se nobre em 1865 e, neste mesmo ano, começou a publicação de sua obra completa em 54 volumes. Amigo de Frederico Guilherme
da Prússia e de Maximiliano de Baviera, viveu o suficiente para contemplar a universalização de sua fama e ver os discípulos ocuparem a maior
parte das cátedras de história das universidades alemãs. Merecera-o, graças à uma vida dedicada a combater a revolução, a prevenir a sociedade
contra os males que a Ilustração desencadeara e a sustentar que a finalidade suprema da história era "a de abrir o caminho para uma política sadia
e acertada, dissipando as sombras e os enganos que, nos tempos em que
vivemos, obscurecem e fascinam as mentes dos melhores homens".9 Nada
que se assemelhe a "explicar as coisas tal e como aconteceram" e, muito
menos ainda, ao "diyórcio das paixões do presente". Ranke foi um funcio8 GQOCH, G. P. History and historians in the nineteenth century. Boston: Beacon
Press, 1968. p. 7297 (citação das p. 96-97). Este capítulo foi publicado, também, em
língua castelhana, em RANKE, Leopold von. Pueblos y estados en la historia moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1979 (que é, na realidade, uma antologia de diversas obras de Ranke). Ö tema do "wie es eigentlich gewesen", como expressão de modéstia do jovem Ranke e não como norma para os historiadores, aparece ainda num intercâmbio de cartas entre Fritz Stern e E. H. Gombrich em New
York Review of books, p. 49,24 Feb. 2000.
9 RANKE, Leopold von. Pueblos y estados en la historia moderna. México: Fondo de
Cultura Económica, 1979. p. 516-517. Neste texto, que corresponde a sua aula de
posse da cátedra de Berlim, em 1836, referindo-se ao golpe de La Granja que acabara de realizar-se na Espanha, o qualifica de "imenso infortúnio". Condenava por
princípio um atentado à ordem estabelecida, já que é difícil que tivesse idéia do que
realmente havia acontecido.
nário ideológico do estado prussiano, útil, serviçal e consciente do papel
que lhe correspondia desempenhar.
Sua visão da história tinha um fundamento teológico, onde Deus
era o primeiro motor que articula as peças de uma sociedade dispersa em
indivíduos e de um universo fragmentado em povos, assumindo a função
que o progresso exercera para os ilustrados. Nos momentos decisivos da
história - diria - aparece o que costumamos chamar "o destino" e que é,
na realidade, "o dedo de Deus". Como escreveu, em 1873, ao filho Otto:
"Sobre tudo flutua a ordem divina das coisas, difícil por certo de demonstrar, mas que sempre se pode intuir. Dentro da ordem divina, assim Como
na sucessão dos tempos, os indivíduos importantes ocupam seu lugar: assim é como os há de conceber o historiador". A atividade dos homens canaliza-se através das nações, que são o componente fundamental da sociedade: cada uma delas é diferente e peculiar de maneira que as generalizações não servem: "cada país tem a própria política".10
Seus livros falam sempre dos estados e das relações que se estabelecem entre eles por meio da diplomacia e da guerra. Quando estuda a monarquia espanhola dos séculos XVI e XVII, por exemplo, começa com os retratos pessoais dos reis, dedica-se à corte e aos ministros, à organização do
governo e à administração, à fazenda e "à situação pública", interpretada de
maneira convencional com afirmações como a de que a pobreza de Castela foi causada pelo catolicismo, pela "concepção hierárquica do mundo" e
pelo gosto dos espanhóis por "passar a vida alegremente e sem esforço". Depois desta análise do estado, Ranke passa a toa segunda parte, dedicada à
ação da monarquia espanhola no mundo que, como era de se preVer, se limita a falar das guerras que a mesmá travou contra outros estados."
De fato, Ranke não entende as nações a não ser no seio dos estados:
era contrário, diz Wolfgang J. Mommsen, às idéias contemporâneas de na10 IGGERS, Georg G. The German Conception of history. Middletown: Wesleyan University Press, 1968. p. 65-74. A carta de Ranke em Pueblos y estados, p. 525.
11 RANKE, Leopold von. La monarquia espanola de los siglas XVIy XVII. México: Leyenda, 1946 (citação da p. 208). KRIEGER, Leonard. Ranke. The meaning of histõry.
Chicago: Chicago University Press, 1977. p. 107-115, nos diz que há uma grande
distância entre os formulações teóricas de Ranke e as obras que escreveu.
ção, seja as que se baseavam em critérios étnicos e culturais, seja na vontade dos cidadãos. Pensava que o acontecimento mais importante de seu
tempo tinha sido "a renovação e o novo desenvolvimento das nacionalidades" e a integração das mesmas no marco dos estados, que se apoiavam
agora na consciência de identidade nacional dos súditos, exigindo-se que
fossem educados com um tipo de história que não falasse de progresso, de
modos» de subsistência ou de luta de classes, mas somente de povos, no
sentido de coletividades humanas interclassistas, fundamentadas no sentimento da nacionalidade compartilhada.12
^
Ranke falou sempre com reverência do poder e com respeito dos dirigentes, atribuindo os motivos mais elevados a seus atos. O historiador
preparava, assim, o caminho em direção à submissão absoluta dos cidadãos ao poder, sem discussões nem crítica, já que o estado encarna a nação e esta não faz senão observar as pautas fixadas pelo dedo de Deus.
Como dirá A. J. P. Taylor, estes homens "viam o estado, fosse quem fosse o
governante, como parte da ordem divina das coisas, acreditando ter o dever de submeter-se a esta ordem", de forma que acabaram justificando todos seus atos: "Ranke explicou a revogação do Édito de Nantes; seus sucessores explicaram as câmaras de gás".13
Os discípulos de Ranke envólveram-se na política de maneira ainda
mais explícita que ele, comprometendo-se num e noutro campo. Enquan12 MOMMSEN, Wolfgang J. Le trasformazioni dell'idea di nazione nella scienza storica
tedesca dei XIX e XX secòlo. In: GERLONI, B. de (Ed.). Probkmi e metodi delia storiografia tedesca. Torino: Einaudi, 1996. p. 5-28. RANKE, Leopold von. Puebbs y estados
en la historia moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1979. p. 95,89-93 e 520.
13 Meinecke, Historism, p. 500, e TAYLOR, A. J. P. "Ranke", en Europe: grandeur and
decline. Harfnondsworth: Penguin, 1969. p. 119. Enquanto os historiadores recusaram enfrentar-se com o problema de sua cumplicidade com o nazismo - falaremos
desta questão mais adiante - , existem alguns estudos interessantes acerca da forma
como o saber acadêmico se acomodou, como DOW, James R; LIXFELD, Hannjost
(Ed.). The nazification of an academic discipline. Folklore in the Third Reich. Bloomington: Indiana University Press, 1994. Sobre a arqueologia alemã, SCHNAPP,
Alain. Archeologie, archeòlogues et nazisme. In: ÖLENDER, M. (Ed.). Le racismè.
Mythes et sciences. Bruxelas: Complexe, 1981. p. 289-315. Um historiador acadêmi- 1
co de prestígio como Gunther Franz introduziu formulações volkisch de clara filiação nazista ao final de seu estudo sobre as revoltas camponesas do século XVI (Def
deutsche Bauernkrieg. Munich: Oldenbourg, 1933), as quais desapareceram das edições posteriores a 1945, sem que o resto do livro mudasse substancialmente.
to Droysen, Heinrich von Sybel ou Mommsen estiveram do lado do liberalismo, inclusive depois da amarga detepção pelo fracasso de 1848, outros, como Treitschke, não fariam mais do que prosseguir a obra de sacralização do estado, identificado como "o povo unido pela lei e considerado
como uma potência independente" que tem o direito de "fazer prevalecer
pelas armas sua vontade contra a vontade estrangeira". Afinalidadedas náções-estado era a guerra: "A guerra não é só uma necessidade prática: é
tafnbém uma necessidade teórica, uma exigência da lógica. O conceito de
estado implica o conceito de guerra, já que a essência do estado é a potência. O estado é o povo organizado em potência soberana".
'johan Gustav Droysen (1808-1884), que tinha estudado em Berlim
com Hegel e com o filólogo August Boeck, publicou, em 1833, História de
Alexandre Magno, a primeira parte dò que deveria ser uma História do helenismo. Envolvido politicamente no liberalismo moderado - foi membro
do Parlamento de Frankfurt em 1848 - , orientou-se, posteriormente, em
dirèção à história da política contemporânea e escreveu uma História da
política prussiana, publicada postumamente, em 1886. A fama acadêmica
de Droysen baseia-se, no entanto, em História. Sobre enciclopédia e metodologia da história, onde retiniu seus cursos de metodologia da história.
Droysen colocava-se contra o positivismo que pretendia buscar causas
"científicas" dos fatos e leis "naturais" da história, antecipando, até certo
ponto, as posturas de Dilthey.14
Também era discípulo de Ranke o suíço de língua alemã Jacob Burckhardt (1818-1897), que começaria estudando teologia e se mudaria para
à Itália em 1846 para investigar sua cultura e fugir da revolução (o que
mais temia era "a passagem da história às mãos das massas"). Burckhardt
escreveu um tipo de história diferente, onde o grande protagonista já não
era o estado, mas este compartilhava o papel central com a religião e, principalmente, com a cultura; uma cultura definida como "o conjunto dos de- 14 SOUTHARD, Robert. Droysen and the Prussian school of history. Lexington: The
University Press of Kentucky, 1995; MACLEAN, Michael J. Johan Gústav Droysen
and the development of historical hermeneutics. History and theory, XXI, n. 3, p.
347-365,1982. Utilizo Histórica na tradução publicada em Barcelona: Edkions 62,
1986, com um prefácio de Emílio Lledó.
senvolvimentos espirituais que se produzem espontaneamente e que não
reivindicam uma validade coercitiva universal", sendo um elemento de crítica do estado e da religião. Sua obra fundamental, A civilização do renascimento na Itália (1860), iniciava uma formulação inovadora da história
da cultura, que, apesar de ter como pano de fundo uma visão pessimista
do futuro, ia mais além da mera descrição dos produtos artísticos ou da
consideração do rétorno à antiguidade, articulando uma nova visão global
que incluía aspectos tão diversos como o desenvolvimento da individualidade pessoal, o descobrimento da beleza da paisagem ou "o espírito geral
de dúvida".15 k
Theodor Mommsen (1817-1903) foi o mais famoso dos membros
da "escola prussiana". Tinha um conhecimento excepcional de todas as técnicas auxiliares da investigação histórica - em especial da epigrafia, o que
o levaria a dirigir o monumental Corpus inscriptionum latinarum - , da filologia, da história do direito e uma capacidade excepcional de escritor, o
que explica que sua principal obra, História romana - livro escrito com a
agilidade e a paixão de um relato de fatos contemporâneos - , lhe valeria o
Prêmio Nobel de Literatura em 1902. Mommsen era um liberal: "um homem de 1848 - disse Nicolet - , profundamente marcado pela dupla crise,
política e nacional que estremeceu a Alemanha". Sentia vocação de político, mas se dedicou à história porque a atividade política lhe estava negada
numa Alemanha controlada pelo alto e pervertida por baixo por um abjeto conformismo.16
Quem melhor pode ser considerado como discípulo de Ranke, no
que se refere a oferecer um apoio incondicional ao poder, é Henrich von
15 Utilizo La civilization del Renacimiento en Italia numa edição inglesa (London;
Phaidon, 1995). As citações são de BURCKHARDT, Jacob. Sullo Studio delia storia(Lezioni e conferenze, 1868-1873). Torino: Einaudi: 1998. p. 72 e 169. GOSSMAN,
Lionel. Basel in the age of Burckhardt. A study of unseasonable ideas. Chicago: University of Chicago Press, 2000; FLAIG, Egon. Concezione della storia antica e ossessione politica in Jacob Burckhardt e Theodor Mommsen. In: GERLONI B. de.
Problemi e metodi della storiografia tedesca. Torino: Einaudi, 1996. p. 143-173.
16 Sigo a introdução de Claude Nicolet à edição da Histoire romaine de Paris: Robert Laffont, 1985. Existe uma tradução castelhana, publicada em Madri por Turner ém 1983A
(8 volumes). Há uma interessante análise da Historia de Roma no livro, já citado, de
CARRERAS, Juan José. Razón de historia. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 15-39.
Treitschke (1834-1896), que Gooch apresenta como "o mais jovem, í>
maior e o último dos membros da escola prussiana". Partidário de uma política de conquistas por parte da Prússia e considerado mais um publicista
político do que um pesquisador - o próprio Ranke não se mostrou favorável a que fosse nomeado professor em Berlim - dedicou-se a escrever a
ambiciosa História da Alemanha.no século XIX, cujos cinco volumes, publicados entre 1879 e 1894, não lhe permitiram chegar mais do que até
1847. A obra era uma justificativa dos atos políticos da Prússia e uma glorificação da grandeza de uma Alemanha destinada a se tornar uma potência dominante, numa linha de pensamento que se manifestaria de acordo
com suas conferências universitárias, nas quais lançava "ataques desmedidos contra a França e a Inglaterra, contra os socialistas, os judeus, o pacifismo e o governo parlamentar".17
Paradoxalmente, estes homens, que se negavam a aceitar a existência de leis históricas gerais acima das realidades nacionais, seriam os criadores de métodos de pesquisa que se difundiriam universalmente até serem admitidos como norma científica da profissão e que seriam considerados, sem fundamento algum, como equivalentes, no campo da história,
aos métodos de investigação das ciências da natureza.18
O "método científico" difundido pelos seminários universitários alemães foi assimilado pelos historiadores de outros países que, também, con17 Gooch, que não parece entender que Droysen e Mommsen dificilmente podem ser associados a Treitschke, considerava a Iíistoriade Álemania em el siglo XIX como "uma
das maiores obras históricas do século" (p. 142). Claro que escreveu isto em 1913. Na
introdução do último volume da edição norte-americana -Treitschke's history of Germany in theNiniteenth century. New York: Robert M. McBride, 1915-1919.7 v. - , que
apareceria em Nova York em 1919, William H. Dawson dizia: "hoje todo o mundo
pode Ver que foi uma calamidade para a Alemanha que o historiador que incentivou
os compatriotas a menosprezar os interesses e direitos de outros países (...) e numa
disposição fatal para pôr a Alemanha "antes de qualquer outra coisa no mundo", tenha sido exaltado como uma espécie de herói supremo nacional" (v. VII, p. XI).
18 BURROW, J. W. The crisis of reason... New Haven: Yale University Press, 2000. p. 135.
Também NOVICK, Peter. Thai noble dream. Cambridge: Cambridge University
Press, 1998. p. 21-31. Frederick Jackson Turner sustentava que Ranke havia aplicado
à história "este estudo indutivo dos fenômenos que produziu uma revolução em nosso conhecimento do mundo externo" (p. 28-29).
cordavam com os colegas prussianos na preocupação em consolidar o consenso social em torno de liberdades que não implicassem a conquista da democracia, contra o que acreditavam as massas populares quando deram
apoio às revoluções liberais. Porque, como dizia Benjamin Constant, o
grande teórico do liberalismo doutrinário, "nossa constituição atual reconhece formalmente o princípio da soberania do povo, quer dizer a supremacia da vontade geral sobre toda vontade particular". Porém, acrescentava imediatamente, era necessário defini-la e limitá-la, porque "quando se
estabelece que a soberania do povo é ilimitada, cria-se e lança-se ao acaso,
na sociedade humana, um grau de poder demasiadamente grande em si
mesmo e que se torna um mal sejam quais forem as mãos em que cáir".19
Os historiadores liberais do século XIX defendiam uma idéia de organização do estado que negava, o direito de participação na política ao
conjunto da população. Carlyle dizia que o sufrágio universal era "uma
forma diabólica de igualar Judas e Jesus Cristo"; Odilon Barrot sustentava
que era "o mais perigoso e despótico áBsurdo que havia jamais saído de
um cérebro humano". Os pobres não tinham tempo para dedicar-se à política, nem dispunham dos conhecimentos necessários para fazê-lo. "Só a
propriedade torna os homens capazes do exercício dos direitos políticos",
dizia Constant, pensando exclusivamente na propriedade da terra.20 Por
trás de argumentos pretensamente racionais, havia outro, inconfesso: o
medo que os cidadãos sem propriedades, sendo maioria, usassem o direito ao voto, se concedido, para desapropriar os que as tinham. Macaulay diria que o sufrágio universal era "incompatível com a existência da civilização", já que "o populacho o empregaria para expropriar qualquer um que
tivesse um bom casaco sobre os ombros e um bom teto sobre a cabeça".
Na Grã-Bretanha do início do século XIX, uma época sem grandes
historiadores, caberia principalmente à economia exercer a função de explicar e inculcar as regras de uma sociedade estável. É uma época em que
Malthus, Ricardo e Stuart Mill codificam as verdades "eternas" da econo19 CONSTANT, Benjamin. Principes de politique. In: Écrits politiques. Paris: Gallimard, 1997. p. 310-311.
20 CONSTANT, Benjamin. Principes de politique. In: Écrits politiques- Paris: Gallimard, 1997. p. 367.
mia, que a senhorita Harriet Martineau - filha de um comerciante arruinado, surda, feia e virtuosa - explicaria ao grande público através de novelinhas sentimentais e educativas. Uma época em que o radicalismo parecia
limitado aos versos dos poetas — de Blake a Shelley- e à literatura popular
de crítica do capitalismo que não mereceu a atenção que habitualmente se
presta à cultura acadêmica, incluindo a de mais baixo nível.21
O primeiro dos grandes historiadores britânicos desde Gibbon foi
Thomas Babbington Macaulay (1800-1859) que, mesmo estando mais
próximo dos historiadores escoceses do século XVIII do que dos prussianos do XIX, soube, como estes últimos, ajudar a reforçar o consenso social em tempos difíceis. Distinguiu-se como político na época em que se
preparava a reforma eleitoral de 1832, foi membro do Conselho Supremo
da índia e ministro da Guerra num governo whig, até que decidiu renunciar à carreira política para dedicar-se plenamente à história, publicando,
em 1849, os dois primeiros volumes de sua História da Inglaterra, com um
êxito extraordinário. Macaulay é um dos maiores representantes da chamada "interpretação whig" da história, que reconstrói o passado para
mostrá-lo como uma ascensão permanente em direção às formas da liberdade constitucional inglesa, explicando as lutas políticas era termos da
situação parlamentar na Grã-Bretanha no século XIX, isto é: em termos
de reformistas whigs lutando contra tories, defensores do status quo. Sua
visão de mundo, impregnada da concepção do progresso da escola escocesa, inspirou sua História da Inglaterra, d^qual publicou outros dois volumes em 1855, enquanto o quinto apareceria postumamente, em 1861.
Por mais que a intenção fosse ir da revolução de 1688 à reforma eleitoral
de 1832, completando o ciclo "da revolução que trouxe a harmonia entre
a coroa e o parlamento à revolução que trouxe a harmonia entre o parlamento e a nação", a lentidão com que se documentava e com que corrigia
o texto fez que não chegasse a escrever mais do que a parte corresponden-
21 A observação sobre a falta de grandes historiadores é feita por HARRIS, R. W. Romanticism and the Social Order, 1780-1830. London: Blandford Press, 1969. p. 11.
No que se refere à literatura popular alternativa, basta remetér-se, entre outros, aos
trabalhos de E. P. Thompson e de I. Prothero.
te ao período que vai de 1685 a 1702. O ponto de partida mostrava-se
coerente com a intenção de mostrar que o acordo estabelecido entre a
monarquia e o parlamento, em 1688, havia pèrmitido evitar os riscos do
radicalismo e construir um sistema político estável, condição do progresso britânico: "Sob os auspícios de aliança tão estreita entre a liberdade e a
ordem, a prosperidade, a riqueza e o bem-estar-cresceram tanto que não
se tem exemplo de progresso parecido nos anais da espécie humana". Macaulay acabava a primeira parte, escrita sob influência dos fatos de 1848,
com uma apologia à estabilidade social britânica em meio a uma Europa
sacudida pelas revoluções. Este defensor do liberalismo e da industrialização, indiferente em matéria religiosa, era um homem de considerável
cultura e um bom escritor que pôde oferecer à sociedade britânica de
meadps do século XIX o tipo de análise do passado que deveria confirmar
sua confiança no caminho empreendido.22
'
Desaparecido o perigo de uma revolução com o fracasso do cartismo, o combate ideológico parece perder força na Grã-Bretanha. Entre
Macaulay e lorde Acton (1834-1902), que já é um representante da "ciência histórica" à maneira da Alemanha, o otimismo whig evaporou-se e
não fica mais que o vazio - a ausência de idéias^ elevada à virtude - que
será característico da historiografia acadêmica britânica de princípios do
século XX.
Acton nasceu em Nápoles, de uma família católica e continuou sendo, em toda a vida, um católico liberal; o pai, primeiro ministro do reino
22 Sobre os historiadores "whigs" do século XIX, BURROW, J. W. A liheral descent.
Victorian historians and the English past. Cambridge: Cambridge University Press,
1981. Não é possível ocupar-se aqui de outras figuras do grupo, como Stubbs, Freeman e Froüde, nem de seus antagonistas, como Carlyle. Sobre estes, PARKER,
Christopher. The English historical tradition since 1850. Edinburgh: John Donald,
1990. A Historia de Inglaterra utilizada, na tradução castelhana, intitula-se de Historia de la revoluciónde Inglaterra (Madrid: Hernando, 1905-1908,4.) e Historia dei
reinado de Guillermo III, (Madrid: Hernando, 1905-1913,4.). Seus Critical and historical essays na edição de A. J. Grieve. London: Dent, 1916,2 v. (em II, p. 197 podese ver, por exemplo, a defesa que Macaulay faz da industrialização). De seu estilo,
talvez demasiadamente enfático, diria Lytton Strachey que era "um dos produtos
mais notáveis da revolução industrial".
das Duas Sicílias, morreu quando ele tinha três anos e o segundo casamen- •'
to da mãe;, com quem seria lorde Granville, permitiu-lhe ascender aos
meios aristocráticos britânicos, ter contato com os políticos whigs e uma
amizade especial com Gladstone. Estudou na Alemanha, já que a condição
de católico impedia que o aceitassem em Cambridge - no fim da vida, no
entanto, seria nomeado "Regius professor" desta universidade - , e foi o introdutor dos novos métodos da erudição germânica na Grã-Bretanha. Embora tenha escrito pouco, paralisado por um esforço de perfeccionismo
que procedia possivelmente de ter tomado ao pé da letra as exigências do
método prussiano, teve um papel decisivo em preparar o que queria que
fosse um monumento da "nova história científica", a Cambridge Modem
History, uma obra coletiva a cujos colaboradores Acton propôs o seguinte
programa: "Nosso esquema pede que nada revele o país, a religião ou o
partido a que pertencem os autores. Isto é essencial, não somente porque
a imparcialidade é a característica da história legítima, mas porque o trabalho será realizado por homens que se reuniram com o único objetivo de
aumentar o conhecimento exato". A falácia acadêmica da imparcialidade
proclamava-se assim solenemente. O passado estava nos documentos, esperando que os historiadores recolhessem os fatos, os polissem, dando1
lhes forma narrativa e os apresentassem ao público. Acton morreu sem
chegar a ver o primeiro volume da história de Cambridge, que não corresponderia às grandes esperanças nela depositadas: "o plano estava viciado
por um enfoque positivista e atomizado do^ temas, sendo as contribuições
de valor muito desigual".23
Quando alguém alheio ao sacerdócio acadêmico dos historiadores
profissionais tentou discutir o consenso estabelecido, como o fez Henry
• 23 A fonte essencial deste parágrafo foi HILL, Roland. Lord Acton. New Haven: Yale University Press, 2000 (uma citação literal das p. 396-397). O texto da "Letter to'contributors to the Cambridge Modern History", em Essays in the liberal interpretation of
history. M. por W. H. McNeill. Chicago: Chicago University Press, 1967. p. 397. De
maneira semelhante, expressava-se na "Aula inaugural sobre o estudo da história"
dada em Cambridge em 1895, ao ser nomeado "Regius professor", na qual dizia que
o melhor era que a personalidade do historiador não se manifestasse em nada na
obra (ACTON, Lord. Lectures on modern history. London: Collins, 1960. p. 2627).
Thomas Buckle (1821-1862) na inacabada História da civilização na Inglaterra, um livro de filiação positivista que agradou a Darwin e a Stuart Mill,
todo o estamento, com Acton à frente, lançou-se contra. Quando a tentativa foi realizada por um, membro da própria profissão, como James E.
Thorold Rogers (1823-1890), professor de economia na universidade de
Oxford, resultou em seu afastamento durante muitos anos do ensino. É
que Rogers acreditava haver descoberto "que uma grande parte da economia política que circula usualmente sob o apoio das autoridades da ciência não é mais que um conjunto de logomaquias, sem relação alguma com
os fatos da vida social" e que os trabalhadores faziam bem em desconfiar
dela, já que os economistas costumavàm pertencer às classes afortunadas,
ignorando quase tudo sobre o trabalho e as condições de vida dos operários. Nada pode ser mais revelador dos condicionamentos sociais assumidos pela ciência acadêmica que o fato de que, na Inglaterra, não tenha sido
publicado nenhum livro de história sobre a "revolução industrial" até
1884, quando já há mais de meio século o conceito era usado por franceses e alemães - e inclusive, então, esta denominação era aceita com muitàs
reticências: os historiadores britânicos não queriam ouvir falar de revoluções nem no terreno da tecnologia.24
Na América do Norte de fins do século XIX, ocorreu um processo
semelhante de difusão dos métodos da erudição alemã, associado à pretensão de objetividade que não era outra coisa que a simples aceitação da ordem estabelecida e acompanhada pela profissionalização dos historiado-
24 Sobre Buckle e a Historia de la civilización en Inglaterra, vejafti-se os duríssimos ataques que lhe dedicou Acton em Essays in the liberal interpretation of history. Há alguns anos, WELLS, G. A. The critics of Buckle. Past and Present, n. 9, p. 7589, Apr.
1956 o quis defender e demonstrou que alguns dos que o atacavam, como Fueter,
não o haviam lido e que a razão básica dos ataques que fizeram a ele era devido a
seu caráter contrário à religião. Quarenta e cinco anos mais tarde, continuara sem
. que lhe dessem atenção. J. E. Thorold Rogers, que deixou a igreja pára tornar-se
professor de economia em Londres e em Oxford, é autor da grande História da.
agricultura e os preços, publicada entre 1866 e 1887, elogiada por Henry Phelps
Brown (BROWN, H. P.; HOPKINS, S. V. A perspective on wages and prices. London:
Methuen, 1981- p. XIII et seq.). As citações provêm do livro Sentido económico de
la historia. Madrid: A Espanha Moderna, 1894. p. 7-15.
res. O manual de referência dos historiadores norte-americanós era a Introdução aos estudos históricos de Langlois e Seignobos25 e a pretensão de alcançar a objetividade e a certeza baseava-se na confiança que lhes davam
os métodos "científicos" utilizados, supostamente similares aos das ciências naturais. Assim, conseguiram alcançar boa .reputação profissional,
numa sociedade para cuja estabilidade contribuíam, prestando apoio a um
consenso conservador, nacionalista e racista.26
Somente uma voz original seria ouvida no panorama norte-americano emfinsdo século: a de um historiador que iniciaria, só e por sua çpnta, o caminho que depois continuariam os "new historians" ou historiadores progressistas. Enfrentando os "objetivistas" acadêmicos, Frederick Jackson Turner (1861-1932) escreveu, em 1891, em "O significado da história",
que está voltava a ser escrita em cada época, de acordo com as próprias
condições: o objeto real do historiador era o presente e seu trabalho devia
dirigir-se a um público amplo. Em 1893, Turner publicou ensaio sobre "O
significado da fronteira na história norte-americana" em que negava-a teoria "germinal" que dizia que a sociedade norte-americana surgira no Leste, de sementes culturais trazidas da Europa pelos imigrantes ingleses, sustentando, em troca, que suas características derivavam da existência de
uma fronteira de terras livres em direção ao Oeste do país - Turner nunca
faria menção aos indígenas que já as habitavam previamente - , cuja conquista, que punha o homem em contato com a natureza, havia forjado o
25 Onde se divide o trabalho do historiador em operações analíticas que consistem na
críticá externa, ou de erudição, e na crítica interna, e operações sintéticas que começam com o agrupamentq dos fatos e permitem, mediante o raciocínio construtivo, a elaboração da exposição final. Na conclusão, dizia que a história não era senão o aproveitamento dos documentos e que seu mérito principal era o de ser um
instrumento de cultura intelectual e não uma fonte de ensino prático para guiar-se
na vida. LANGLOIS, C. V.; SEIGNOBOS, E. Introducción a los estúdios históricos.
Buenos Aires: La Pléyade, 1972 (citações das p. 235-236).
26 A fonte essencial do parágrafo é o grande livro, que já citamos e que adiante usaremos em outras ocasiões, de NOVICK, Peter. Thatnoble dream. The objectivity question and the American historical profession. Cambridge: Cambridge University
Press, 1988. p. 21-85.
caráter específico da democracia norte-americana. A fronteira possibilitou
que os imigrantes se americanizassem rapidamente e engendrou o caráter
do pioneiro, independente e auto-suficiente, capaz de criar as próprias instituições à margem do governo central. A fronteira foi, também, uma "válvula de segurança" para os conflitos sociais: os descontentes da sociedade
do leste saíram a conquistar novas terras e nelas construíram uma sociedade aberta e móvel que permitiu o surgimento de uma democracia individualista. Em fins do século XIX, no entanto, a fronteira do oeste estava
já fechada e a energia da nação deveria buscar novos caminhos e novas
fronteiras.27
No caso da Espanha, a profissionalização dos historiadores e a introdüção dos novos métodos científicos ocorrerram tardiamente, em fins
do século XIX, sob o controle político que buscava defender, a partir da
Academia de História e da Universidade, uma concepção "nacional" que
era vista como uma necessidade política por um estado espanhol em crise
(perda das colônias, surgimento dos nacionalismos catalão e basco, crises
sociais). A mtrdança metodológica chegaria assim com um atraso de mais
de meio século, comparado com a França, a Alemanha ou a Inglaterra, e
com menos consistência. Os volumes da História geral da Espanha da Academia de História, dirigida por Antônio Cánovas Del Castillo, que nunca
se completariam, mostravam bem a distância que existia entre a historiografia oficial espanhola e o nível da ciência acadêmica européia. Algumas
personalidades isoladas, como Rafael Altamira, tentariam diminuir o atraso e atenuá-lo, traduzindo manuais de metodologia como o de Langlois e
27 Turner foi homem de escassa produção historiográfica: uma só monografia (The
rise of the new West, 1819-1829, 1906) e diias coleções de ensaios (The frontier in
American history, 1920 e The significance of sections in American history, 1933, póstumo). Teve, no entanto, uma grande influência. GROSSMAN, James R. The frontier
in American culture. Berkeley: University of California Press, 1994; BOGUE, Allen G.
Frederick Jackson Turner: strange roads going down. Norman: University of Oklahoma Press, 1998. Os textos fundamentais de Turner podem ser encontrados em TURNER, F. J. Lafrontera en la historia americana. Madrid: Castilla, 1976. Sobre a teoria
da fronteira, ver o volume compilado por HÒFSTADTER, Richard; LIPSET, Seymour Martin. Turner and the sociology of the frontier. New York: Basic Books, 1968.
Seignobos, ou publicando a edição espanhola da Historia dei mundo en íü
edad moderna, ou seja, a história de Cambridge organizada por Acton.28
Nos países de cultura européia, a ficção da independência do intelectual podia ser sustentada, já que eram os próprios historiadores acadêmicos que mantinham longe das fileiras da "ciência" os possíveis perturbadores da profissão. Em outras culturas, a realidade dá dependência da história em relação ao poder mostrava-se sem disfarces. No Japão, a compilação da história era considerada uma prerrogativa das autoridades, preocupadas sempre em difundir uma versão canónica. Se os Tokugawa tinham suas equipes de historiadores, a restauração Meiji, por mais que permitisse um certo grau de liberdade acadêmica, controlava estritamente os
manuais de ensino que reforçavam a devoção pela dinastia imperial. Inclusive depois de 1945, apesar da eliminação elementos do passado mítico,
, pretende-se continuar controlando o ensino da história que tinha a função de manter a adesão ao país e o patriotisino.29
Em princípio do século XX, no entanto, numa sociedade em mudança, a crise do historicismo era evidente. Isso explica que se iniciassem
as tentativas de superá-lo no terreno concreto da pesquisa histórica, ao
mesmo tempo em que permanecia estabelecido no da teoria econômica,
depois de uma "querela de método" que levou a reivindicar na economia a
primazia da teoria contra o estudo isolado de casos precisos, defendido
pela escola histórica. As correntes de pensamento que propunham, nestes
anos, a revisão de um historicismo que consideravam fracassado, não se
interessavam, no entanto, pelos problemas toncretos da pesquisa - um ter28 PEIRÕ, Ignacio. Los guardianes de la historia. La historiografia académica de la Restauración. Zaragoza: Institución Fernando el Católico, 1995 e Valores patrióticos y
conocimiento científico: la construcción histórica de Espana. In: FORCADELL,
Carlos (Ed.). Nacionalismo e historia. Zaragoza: Institución Fernando el Católico,
1998. p. 29-51; PASAMAR, Gonzalo. Os historiadores espanhóis e a reflexão historiográfica, 1880-1980. Hispania LVIII, n. 198, p. 13-48,1998. Sobre as etapas mais
recentes, ANDRÉS, J.; GALLEGO (Ed.). História de la historiografia espanola. Madrid: Encuentro, 1999.
29 HÉRAIL, Francine. Los japoneses y la revisión de la historia nacional. In: GADOFFRE, Gilbert (Ed.). Certidumbre e incertidumbres de la historia. Saritafé de Bogotá:
Norma, 1997. p. 125-136.
reno em que aceitavam de fato as formulações tradicionais - mas somente pela fundamentação filosófica.
Nesta linha encontramos sobretudo o neokantismo da escola de
Marburg, com Heinrich Rickert (1863-1936), que afirmava que a realidade empírica era múltipla e inabordável na totalidade. A forma em que as
diversas ciências a enfrentavam era diferente. As ciências da natureza o fazem com um método "generalizador", que utiliza os conceitos de lei, gênero e espécie, alcançando, com eles, um conhecimento geral da realidade.
Enquanto isso, o indivíduo, com tudo o que tem de único e irrepetível, escapa-lhes. Isto é, em contrapartida, o que, em sua conceituação, alcançam
as ciências da cultura, entre as quaisfiguraa história, que incorporam ainda a noção de "valor", ausente nas ciências da natureza. A seleção dos fatos
com que o historiador constrói a história faz-se em função de "valores"
transcendentes, que estão além do objeto e do sujeito. A história torna-se,
assim, uma construção mental erigida pelo homem e a concepção do progresso histórico é uma armadilha. "Só podemos qualificar de progresso o
desenvolvimento que leva a uma determinada formação, se esta foi estabelecida previamente como valiosa em função de uma escala de valores."30
Apesar de ser anterior a alguns neokantinianos, Wilhelm Dilthey
(1833-1911) influenciou com atraso a filosofia da história. Para Dilthey,
não são dois campos distintos o que marca a diferença entre as ciências da
natureza e as de espírito, mas o comportamento distinto destas ciências. O
que é físico, inclusive no homem, é acessível ao conhecimento científiconatural, enquanto o que constitui o objeto das ciências do espírito só pode
ser "compreendido"; os estados humanos são vividos, são manifestações de
vida. Só podemos aceder à vida, em toda a complexidade, pelas próprias
experiências de vida: de nossas vivências.31
30 KON, I. S. El idealismofilosóficoy la crisis en el pensamiento histórico. Buenos Aires:
Platina, 1962. p. 69-85. As citações de Heinrich Rickert são de Introducción a los.
problemas de lafilosofiade la historia. Buenos Aires: Nova, 1961. p. 42-76 e 113. Sobre outros autores relacionados, como Simmel, Treltsch, etc. WAISMANN, A. El
historicismo contemporâneo. Buenos Aires: Nova, 1960, e IGGERS, Georg G. The
German conceptions of history. Middletown: Wesleyan University Press, 1968.
31 DILTHEY, W. El mundo histórico. México: Fondo de Cultura Económica, 1944.
Enquanto se desenvolvia o conjunto das novas tendências que
transformariam as ciências sociais - o complexo integrado pelo marginalismo, funcionalismo e estruturalismo - os historiadores acadêmicos limitavam-se a continuar recolhendo "fatos históricos", colando-os um atrás
do outro, convencidos de que o que faziam não somente era "científico" mesmo que fosse uma ciência de categoria inferior - mas que era a única
, forma lícita de trabalhar no campo da história.