revista do tribunal regional do trabalho da 14ª região
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1 2 3 PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA DO TRABALHO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 14ª REGIÃO REVISTA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 14ª REGIÃO V.5 n.2 julho/dezembro 2009 - Porto Velho ISSN 2177-0034 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.1-400, jul./dez. 2009 © 2009 Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região Todos os artigos são de inteira responsabilidade dos autores Comissão de Revista: Desembargadora Elana Cardoso Lopes Juiz Shikou Sadahiro Juiz Rui Barbosa de Carvalho Santos Secretário: Amarildo Bezerra da Silva Colaboradores: Maristéfani Monteiro de Araújo Raimunda Laureci de Paula Chaves Design e Conceito Gráfico: Hélio José Moreira Capa: Obra em marchetaria do artista plástico acriano Maqueson Pereira da Silva Impressão e Acabamento: Núcleo de Serviços Gráficos Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 14 ª Região. – Nov. 1992 – jan./jun. 1997 ; v.5, n.1 (jan./jun. 2009). – Porto Velho: Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, 1992 – v. ; 21,5 cm. Semestral Suspensa: 1996 ; 1998-2008. ISSN: 2177-0034 1.Direito do Trabalho – Periódicos. 2. Jurisprudência Trabalhista I. Brasil. Tribunal Regional do Trabalho. (Região, 14ª). CDD: 34 (05) CDU: 34:331(81)(05) Ficha Catalográfica: Dárcia Marinho, Bibliotecária-CRB11/322 Correspondência TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 14ª REGIÃO Rua Almirante Barroso, 600 - Mocambo – 76.801-901 Porto Velho – RO Fone: 69 3211-6585 – Site: www.trt14.jus.br e-mail: [email protected] SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.....................................................................................5 COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 14ª REGIÃO – BIÊNIO 2009/2010....................................................7 DOUTRINAS O DIREITO CONSTITUCIONAL E A FLEXIBILIZAÇÃO DAS NORMAS TRABALHISTAS Maurício Godinho Delgado........................................................................ 15 PERSPECTIVAS DO TRABALHO E DO DIREITO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA José Augusto Rodrigues Pinto................................................................... 25 NOTAS SOBRE A APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO Fredie Didier Jr........................................................................................ 41 ORLANDO GOMES, MESTRE DO PORVIR Rodolfo Pamplona Filho............................................................................ 47 ALGUNS ARGUMENTOS EM PROL DA IDÉIA DE QUE O TRABALHADOR RURAL QUE RECEBE POR PRODUÇÃO FAZ JUS AO RECEBIMENTO DA PRÓPRIA HORA + ADICIONAL, SE TRABALHAR EM REGIME EXTRAORDINÁRIO Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani................................................ 59 USO DO VÉU ISLÂMICO NOS SETORES PÚBLICO E PRIVADO Alice Catarina de Souza Pires.................................................................... 77 A NATUREZA DOS EMBARGOS DE TERCEIRO E O PRAZO PARA SUA PROPOSITURA NA EXECUÇÃO TRABALHISTA Antonio Adonias Aguiar Bastos e Ruy Andrade............................................ 87 RECURSO DE REVISTA EM EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL Deusmar José Rodrigues........................................................................ 107 ASPECTOS LIMITATIVOS DA FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA Fábio Lucas Telles de Menezes Andrade Sandim........................................ 113 O BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO FIGURA JURÍDICA ÚTIL E APLICÁVEL NOS LIAMES LABORAIS Christiana D’arc Damasceno Oliveira........................................................ 133 A GESTÃO POR INJÚRIA E A DANOSA COLETIVIZAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL Francisco Montenegro Neto..................................................................... 163 RECURSO “LATU SENSU” - UMA NOVA VISÃO DO PROCESSO SINCRÉTICO NO ÂMBITO DO PROCESSO DO TRABALHO José Hélio Santos.................................................................................. 171 CONCILIAÇÃO: INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO DAS LIDES TRABALHISTAS LucianaTaira...................................................................................183 ACÓRDÃOS PROCESSO: TST- E-ED-RR-759.341/2001.5 RELATOR: Ministro Horácio Raymundo de Senna Pires..........................193 processo: 00876.2008.041.14.00-0 RELATOR: Vulmar de Araújo Coêlho Junior. .......................................... 221 PROCESSO: 01059.2008.002.14.00-7 RELATORA: Socorro Miranda................................................................ 239 PROCESSO: 00658.2008.141.14.00-4 RELATORA: Elana Cardoso Lopes.......................................................... 251 PROCESSO: 00308.2008.005.14.00-6 RELATORA: Maria Cesarineide de Souza Lima....................................... 269 PROCESSO: 00230.2009.403.14.00-0 RELATOR: Carlos Augusto Gomes Lôbo................................................. 281 PROCESSO: 02748.2008.000.14.00-6 RELATORA: Vania Maria da Rocha Abensur........................................... 293 PROCESSO: 0000300-67.2009.514.0151 RELATORA: Arlene Regina do Couto Ramos. ......................................... 305 PROCESSO: 00682.2008.401.14.00-9 RELATOR: Shikou Sadahiro.................................................................. 341 SENTENÇAS PROCESSO: 00031.2008.131.14.00-6 Juiz José Roberto da Silva...................................................................... 359 PROCESO: 00333.2009.401.14.00-8 Juiz Carlos Leonardo Teixeira Carneiro..................................................... 369 PROCESO: 00633.2009.404.14.00-6 Juiz Carlos Leonardo Teixeira Carneiro..................................................... 379 PROCESO: 0091000.31.2009.514.0041 Juiz Horácio Raymundo de Senna Pires Segundo....................................... 389 APRESENTAÇÃO Estamos entregando à comunidade jurídica o segundo número dessa nova fase da Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região. Como no número anterior, os artigos não foram previamente tematizados, ficando a critério de cada autor a escolha do assunto e a linha de abordagem. Nesta edição, brindamos os leitores com artigos de autores consagrados na seara do Direito do Trabalho, como Maurício Godinho Delgado, José Augusto Rodrigues Pinto, Fredie Didier Jr. e Rodolfo Pamplona Filho. Há, como na edição anterior, artigos de colaboradores de diversas partes do Brasil, e os temas abordados são diversificados e atuais. A presença de magistrados, procuradores e servidores, como articulistas, confirma a vocação da Revista como veículo ágil e democrático de debate das grandes questões do Direito do Trabalho na atualidade e a participação de autores renomados dá a necessária densidade científica a esta publicação. Assim, singelamente, mas orgulhosos do resultado obtido, trazemos a público mais esta edição da Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região. ELANA CARDOSO LOPES Desembargadora-Presidente da Comissão de Revista TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 14 REGIÃO COMPOSIÇÃO BIÊNIO 2009/2010 PRESIDENTE E CORREGEDORA Desembargadora Maria Cesarineide de Souza Lima VICE-PRESIDENTE Desembargadora Vania Maria da Rocha Abensur DESEMBARGADORES FEDERAIS DO TRABALHO Vulmar de Araújo Coêlho Junior Socorro Miranda Elana Cardoso Lopes Carlos Augusto Gomes Lôbo JUÍZES FEDERAIS DO TRABALHO CONVOCADOS PARA O TRIBUNAL Arlene Regina do Couto Ramos Shikou Sadahiro PRIMEIRA TURMA Desembargadora Elana Cardoso Lopes Presidente da Turma Desembargador Vulmar de Araújo Coêlho Junior Juiz Convocado Shikou Sadahiro SEGUNDA TURMA Desembargador Carlos Augusto Gomes Lôbo Presidente da Turma Desembargadora Socorro Miranda Juíza Convocada Arlene Regina do Couto Ramos VARAS DO TRABALHO JUÍZES FEDERAIS DO TRABALHO TITULARES ESTADO DE RONDÔNIA 1ª VARA DO TRABALHO DE PORTO VELHO Lafite Mariano 2ª VARA DO TRABALHO DE PORTO VELHO Isabel Carla de Mello Moura Piacentini 3ª VARA DO TRABALHO DE PORTO VELHO Afrânio Viana Gonçalves 4ª VARA DO TRABALHO DE PORTO VELHO Shikou Sadahiro(Convocado p/ compor o Tribunal) Sebastião Abreu de Almeida (Exercendo a titularidade até ulterior deliberação) 5ª VARA DO TRABALHO DE PORTO VELHO Arlene Regina do Couto Ramos (Convocada p/ compor o Tribunal) Edilson Carlos de Souza Cortez (Exercendo a titularidade até ulterior deliberação) 6ª VARA DO TRABALHO DE PORTO VELHO Luzinalia de Souza Moraes 7ª VARA DO TRABALHO DE PORTO VELHO Domingos Sávio Gomes dos Santos 8ª VARA DO TRABALHO DE PORTO VELHO Ana Carla dos Reis 1ª VARA DO TRABALHO DE ARIQUEMES Vago 2ª VARA DO TRABALHO DE ARIQUEMES Andre Sousa Pereira VARA DO TRABALHO DE BURITIS Linbércio Coradini VARA DO TRABALHO DE CACOAL Ana Maria Rosa dos Santos VARA DO TRABALHO DE COLORADO D’OESTE Vago VARA DO TRABALHO DE GUAJARÁ-MIRIM Marco Antônio Fernandes VARA DO TRABALHO DE JARU Monica Harumi Ueda 1ª VARA DO TRABALHO DE JI-PARANÁ Osmar João Barneze 2ª VARA DO TRABALHO DE JI-PARANÁ Ricardo Turesso VARA DO TRABALHO DE MACHADINHO D’OESTE Vago VARA DO TRABALHO DE OURO PRETO D’OESTE Ricardo César Lima de Carvalho Sousa VARA DO TRABALHO DE PIMENTA BUENO Consuelo Alves Vila Real VARA DO TRABALHO DE ROLIM DE MOURA Vago VARA DO TRABALHO DE SÃO MIGUEL DO GUAPORÉ José Roberto da Silva VARA DO TRABALHO DE VILHENA Eduardo Antônio O’Donnell Galarça Lima JUÍZO AUXILIAR DE CONCILIAÇÃO DE PRECATÓRIOS Cândida Maria Ferreira Xavier ESTADO DO ACRE 1ª VARA DO TRABALHO DE RIO BRANCO Ilson Alves Pequeno Junior 2ª VARA DO TRABALHO DE RIO BRANCO Francisco de Paula Leal Filho 3ª VARA DO TRABALHO DE RIO BRANCO Marlene Alves de Oliveira 4ª VARA DO TRABALHO DE RIO BRANCO Edson Carvalho Barros Junior VARA DO TRABALHO DE CRUZEIRO DO SUL Antonio César Coêlho de Medeiros Pereira VARA DO TRABALHO DE EPITACIOLÂNDIA Fábio Lucas Telles de Menezes Andrade Sandim VARA DO TRABALHO DE FEIJÓ Christiana D’Arc Damasceno Oliveira VARA DO TRABALHO DE PLÁCIDO DE CASTRO Vago VARA DO TRABALHO DE SENA MADUREIRA Vago JUÍZES FEDERAIS DO TRABALHO SUBSTITUTOS Silmara Negrett Moura Cleide Aparecida Barbosa Santini Patrick Menezes Colares Sebastião Abreu de Almeida Vitor Leandro Yamada Eudes Landes Rinaldi Ana Paula Kotlinsky Severino Cândida Maria Ferreira Xavier Andrea Alexandra Barreto Ferreira Edilson Carlos de Souza Cortez Rui Barbosa de Carvalho Santos Carlos Leonardo Teixeira Carneiro Jaqueline Maria Menta Francisco Montenegro Neto Horácio Raymundo de Senna Pires Segundo Wadler Ferreira Luciana Jereissati Nunes de Lavôr Geraldo Rudio Wandenkolken Fernanda Constantino Campos Daniel Gonçalves de Melo DOUTRINAS 17 O DIREITO CONSTITUCIONAL E A FLEXIBILIZAÇÃO DAS NORMAS TRABALHISTAS* Maurício Godinho Delgado** Boa noite a todos. Agradeço aos organizadores do evento, particularmente à Dra. Estefânia Viveiros, que me fez este convite, permitindo-me ter a satisfação de participar deste Congresso, neste meu primeiro ano em Brasília. Cumprimento os ilustres advogados que me honram com sua presença nesta mesa, Dr. Marcos Resende e Dr. Juliano Costa Couto, cumprimentando também todos os congressistas presentes. O tema escolhido para nossa exposição segue a linha traçada na brilhante palestra anterior, envolvendo o papel da Constituição de 1988 em nossa ordem jurídica. Aqui falaremos da Carta Magna e da flexibilização das normas trabalhistas. Antes de exatamente adentrar o tema proposto, gostaria de fazer rápida reflexão sobre o cenário jurídico que assiste à emergência da Constituição de 1988. Gostaria de ponderar que, na verdade, se examinarmos os ramos que fazem a árvore jurídica do Direito contemporâneo, nós vamos perceber que o Direito do Trabalho - que é o nosso tema específico - faz parte de uma tradição muito importante de ser ressaltada, que bem distingue a vida contemporânea e que provavelmente também será a marca do desenvolvimento jurídico das próximas décadas. Essa tradição inicia-se no século 19, afirma-se no século 20 e continua presente nestas últimas décadas, produzindo novos frutos e ramos jurídicos. Trata-se da tradição inovadora iniciada exatamente pelo Direito do Trabalho de dar origem a ramos jurídicos com características bastante diferenciadas em comparação aos segmentos jurídicos fundamentais então existentes. Conforme nós sabemos, os ramos fundamentais do Direito até o século 19 ou * ** Palestra proferida no VI Conferência dos Advogados do Distrito Federal, promovida pela OAB-DF, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília-DF, em 28.08.2008, às 20:10 hs. Ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Ex-Desembargador Federal do TRTMG (2007-2004) e Juiz do Trabalho em Minas Gerais (2004-1989). Professor do Mestrado em Direito do Trabalho da PUC-Minas. Autor do Curso de Direito do Trabalho (7ª ed., São Paulo: LTr, 2008) e dezenas de artigos e livros em sua área de especialização. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 18 eram segmentos jurídicos praticamente milenares, como o Direito Civil e o Direito Penal, ou eram segmentos jurídicos centenários, como o então Direito Comercial (hoje Direito Empresarial), o Direito Administrativo e o Direito Tributário. Na segunda metade do Século 19, tivemos grande mudança na história da sociedade, tomando-se como parâmetro o mundo ocidental e particularmente o berço europeu, que é o berço cultural de nossa formação, em todas as esferas. Essa mudança histórica decisiva atingiu em cheio também a cultura jurídica e, como somos produto dessa cultura, parece-me decisivo compreender semelhante mudança. É que aí, em torno da segunda metade do século 19, inicia-se um inovador e irresistível processo de democratização real das sociedades. Esse processo de democratização concretiza-se no fato historicamente inusitado de se atribuir poder a quem não tinha na sociedade, até então, nem poder nem riqueza. Esse é um ponto diferencial muito importante e que atinge, inclusive, a nossa análise da Constituição de 1988 e nosso campo temático de exame, que é o Direito do Trabalho. Ou seja, somente a partir da segunda metade do século 19 é que a História iria conhecer ramo jurídico que tratasse de segmentos sociais classicamente destituídos de riqueza e de poder, conferindo-lhes certo poder e certa integração ao sistema produtor e distribuidor de riquezas. A primeira exemplificação dessa nova tendência - que seria cada vez mais reforçada no período subsequente - foi o Direito do Trabalho. O Direito do Trabalho foi o ramo pioneiro nessa linha. Mas ele não se tornou um Direito isolado, um Direito que fosse anômalo no conjunto da árvore jurídica; ao invés, ele foi ramo precursor de importante tendência jurídica que iria florescer e se propagar no período subsequente. É que, logo a seguir, nas duas últimas décadas do século 19, e principalmente ao longo do século 20, tivemos também o surgimento e a estruturação de outro ramo jurídico muito parecido e que, durante certo período, ainda na primeira metade do século 20, em certos países e até na academia jurídica, eram considerados ramos jurídicos praticamente atados, como se fossem o mesmo segmento jurídico. Hoje não há nenhuma dúvida de que são ramos jurídicos autônomos e separados, embora com grande proximidade entre si. Estou me referindo ao antigo Direito Previdenciário, hoje denominado e classificado como Direito de Seguridade Social. Este foi o segundo ramo jurídico surgido na História tratando essencialmente de interesses e direitos de setores sociais destituídos de riqueza e de poder. É muito importante, portanto, nós percebermos que R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 19 há uma tendência nova no mundo ocidental, tendência que se explica dentro do processo de democratização da sociedade e que responde pela criação de novos ramos jurídicos. Ao longo do século 20 essa mesma linha de transformação cultural continuou a se expandir, conferindo origem a dois novos segmentos jurídicos, com características bastante próximas à dos pioneiros já mencionados. Está-se falando do Direito Consumerista e do Direito Ambiental. O Direito do Consumidor – claramente um ramo jurídico caudatário de vários institutos inerentes ao Direito do Trabalho – também se caracteriza pela perspectiva de conferir cidadania, reconhecimento, voz e status jurídico àqueles que, em certa importante relação socioeconômica e de poder, encontram-se em posição menos favorecida. É o que se passa no contraponto entre consumidor e produtor ou fornecedor de bens e serviços. O Direito Consumerista é manifesta continuidade dessa nova linha democrática de construção e desenvolvimento do Direito - que não coloca em questão o valor e a importância das antigas estruturas jurídicas, embora crie perspectiva nova de grande relevância para o aperfeiçoamento da convivência social e do próprio fenômeno jurídico. Finalmente, nesta mesma linha evolutiva, já nas últimas décadas do século 20, nós temos o advento do Direito Ambiental. Este também é ramo jurídico que trata do interesse da sociedade – se estiver adequadamente pensado e construído, é claro -, é Direito que coloca a perspectiva social como sua matriz de estruturação e de concreta operação. Percebe-se, pois, que temos neste rol quatro segmentos jurídicos extremamente novos, modernos, extremamente contemporâneos; ao mesmo tempo, são ramos jurídicos claramente diferenciados em comparação à clássica cultura jurídica construída ao longo de milênios e séculos, principalmente até o final do século 19. No contexto desses novos ramos jurídicos é que se torna crucial compreender que o constitucionalismo também se alterou de maneira muito substantiva. O constitucionalismo da segunda metade do século 20 - portanto de poucas décadas atrás - é absolutamente diverso do constitucionalismo originário, inerente ao final do século 18 e desenrolar do século 19, com suporte na Constituição dos EUA e primeiras cartas constitucionais européias. Vejam que o novo constitucionalismo, antes de tudo, incorpora na estrutura central das constituições a inovadora perspectiva inaugurada pelo Direito do Trabalho, de se conferir cidadania e importância aos setores sociais destituídos de riqueza e poder, fazendo-o de maneira absolutamente harmônica às demais R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 20 conquistas alcançadas pela civilização e pelos demais campos do Direito. Esse novo constitucionalismo, embora deite raízes na tendência de constitucionalização dos ramos jurídicos trabalhista e de seguridade social, despontada nas segunda e terceira décadas do século 20, tornou-se mais amplamente elaborado e influente apenas a contar do final da segunda grande guerra, nos anos de 1940. Percebemos claramente que esse aprofundamento do processo de constitucionalização da visão social do Direito faz-se com a descoberta também de novos institutos jurídicos. Institutos que hoje são decisivos na configuração do novo Direito, sendo em nossa Constituição notoriamente fundamentais. Por exemplo, a concepção normativa dos princípios jurídicos. Essa concepção, conforme sabemos, é bastante moderna, atual. Ela tem cerca 60 anos de vida apenas, sendo concepção que surgiu exatamente em meio ao processo de integração da perspectiva social nas constituições européias do pós-guerra. Nesse quadro de avanço da visão social do Direito é que nós temos a emergência da Constituição de 1988. Esta Carta Constitucional (com todos os seus defeitos, e naturalmente ela tem vários, como é inevitável em qualquer produção cultural da humanidade) é um dos documentos políticos, jurídicos e culturais mais importantes já produzidos na história brasileira. Se examinamos nossa história de 500 anos, não vamos encontrar produção tão consistente e sólida quanto essa consumada na Constituição de 1988. Por quê essa Constituição é tão importante? Parece-me que, além dos aspectos tão bem expostos pela palestra anterior do ministro Gilmar Mendes, parece-me que ela é diferenciada exatamente por ter enfatizado a dimensão social da estruturação e do funcionamento da democracia. A Constituição da República, com toda segurança e com toda prudência - mas sem descurar da ousadia em país tão injusto -, estabeleceu conexão decisiva, conexão irretratável entre a perspectiva social e o funcionamento do Estado, da sociedade e da democracia no Brasil. Os principais princípios da nova Constituição Republicana tem significativa repercussão na questão social e na questão trabalhista, direta ou indiretamente – sem considerar também os vários efetivos princípios trabalhistas explicitamente acolhidos no corpo da Constituição. Se bem aquilatarmos o princípio da dignidade da pessoa humana, ele muito irá se acanhar caso a dimensão social não seja integrada em sua estrutura. Na verdade, embora a idéia de dignidade não se resolva apenas no âmbito dos direitos sociais, a composição e a vivência reais desse conceito somente se compreendem e se R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 21 realizam quando integradas em um plano mais largo de análise, inevitavelmente social. A dignidade não é, portanto, algo que se resolva nas fronteiras estritas do Direito Civil e Direito Penal, não obstante estas também sejam dimensões importantes do conceito jurídico. Não está se eliminando nenhum aspecto, mas apenas enfatizando que a dignidade da pessoa humana só se concretiza se tiver projeção social efetiva. Nessa linha é que o princípio pode ser considerado cardeal da Constituição da República, sendo que em sua forte dimensão social o Direito do Trabalho cumpre papel de grande relevância. Outro princípio constitucional de grande importância é a subordinação da propriedade à sua função socioambiental. A Constituição reconhece, incentiva e protege o funcionamento da propriedade privada no sistema capitalista; porém, ao mesmo tempo, estabelece a necessidade de que cumpram essa propriedade e esse sistema um papel de justiça social. Não apenas cumprir certo papel social, mas cumprir função que assegure dinâmica socialmente includente para o sistema econômico. Ora, a Constituição evidencia equilíbrio muito claro entre sua visão econômica e sua visão social. E esses princípios citados demonstram isso de maneira muito transparente. Outro princípio constitucional de notável relevância – que seria o cardeal, caso não houvesse no ápice da pirâmide normativa o princípio da dignidade da pessoa humana - é o da valorização do trabalho e do emprego. A valorização do trabalho e, particularmente, do emprego foi tratada na Constituição de maneira jamais vista na história cultural do Direito brasileiro. A valorização do trabalho e do emprego é na Constituição princípio jurídico. É também fundamento da República Federativa do Brasil. Ademais, é ela é considerada valor decisivo à ordem jurídica. Finalmente é ainda direito social. Princípio, fundamento, valor e direito social. Percebe-se, portanto, que a Constituição de 1988 conferiu à idéia de valorização do trabalho e do emprego padrão jurídico singular, inusitado, multidimensional e abrangente, com status sequer conferido à própria idéia de dignidade da pessoa humana. O caráter multidimensional conferido à valorização do trabalho e do emprego não foi estendido a nenhum outro tipo de princípio, a nenhum outro tipo de valor na Constituição da República. Isso demarca claramente a importância que a Constituição dá à dimensão social. Por isso, todos os defeitos que a Constituição tem - e são inúmeros os defeitos, se os quisermos aqui arrolar creio que facilmente citaríamos pelo menos cinco exemplos de regras que não deveriam estar lançadas no texto constitucional – tais defeitos são R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 22 muito pequenos diante da grandeza constitucional de 88, grandeza ora aqui apontada. A dimensão social dos grandes problemas humanos e dos caminhos para a sua solução também foi enfatizada pelo princípio da justiça social. A justiça social jamais havia sido princípio jurídico na tradição da cultura brasileira. A partir da Constituição de 88 é alçada ao status de princípio normativo. E que princípio é esse enfatizado pela nossa Carta Magna? É o principio de que o bem-estar das pessoas não passa apenas pela sua qualidade pessoal, estritamente individual. É óbvio que a qualidade pessoal dos indivíduos – seu esforço, sua iniciativa, seu trabalho – tudo isso é importante para sua vida, sua afirmação, seu bem-estar. O que o princípio da justiça social acentua é que o bem- estar individual e do conjunto da população supõe também a intervenção da norma jurídica, supõe a indução realizada por medidas externas ao mero esforço individual das pessoais e à mera dinâmica econômica do sistema capitalista. Tal intervenção normativa externa visa à correção de desigualdades que o sistema econômico cria ou que não consiga corrigir dentro de seu próprio funcionamento. Essa inovadora linha constitucional também é muito sábia porque não comete a ingenuidade de imaginar que o só funcionamento da sociedade e da economia serão suficientes para assegurar a visão social das pessoas e o bem-estar da maioria da população do país. A norma é instrumento imprescindível para corrigir os defeitos do sistema e para o induzir a que cumpra função socialmente includente. Nesse contexto é que chegamos ao específico tema sugerido pela organização deste Congresso, que é exatamente a relação entre a Carta Magna de 1988 e a flexibilização das normas trabalhistas, ou seja, de que modo a Constituição da República trata dessa relação entre as normas trabalhistas e o seu eventual processo de flexibilização. Nós sabemos que aqueles quatro ramos jurídicos que mencionamos no início de nossa manifestação são ramos jurídicos que têm característica curiosa em comparação com a cultura jurídica que era dominante no Ocidente até o século 19 e no caso brasileiro até as primeiras décadas do século 20. São ramos jurídicos dotados essencialmente de normas imperativas. Não são ramos jurídicos dotados de normas dispositivas, a não ser excepcionalmente. São estruturados a partir de matriz conceitual em que é preponderante a imperatividade da norma jurídica, em contraponto à matriz conceitual que enfatiza a livre disposição do poder privado. Ou seja, esses quatro ramos representam a tendência de inclusão social e de democratização da sociedade R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 23 despontada no fim do século XIX e que se alargou no século seguinte, tendo na norma jurídica imperativa seu instrumento de atuação e generalização. Esses quatro ramos jurídico-culturais, e sua bela história de democratização da sociedade e de distribuição de renda no sistema econômico capitalista, alertamnos para o fato de que a imperatividade da norma jurídica não é necessariamente um mal. É claro que é necessária, na diversidade da vida econômica e da própria sociedade, a presença de normas dispositivas e de segmentos jurídicos integrados essencialmente por normas dispositivas, tal como ocorre no Direito Empresarial (antigo Direito Comercial) e no Direito Obrigacional Civil. Esses campos jurídicos, conforme se sabe, são dotados de normas que cedem espaço à livre vontade dos sujeitos particulares, a seu livre exercício de poder. Entretanto, o fato de esses ramos jurídicos antigos preservarem sua importância na sociedade atual não significa que dão conta de todos os problemas sociais – notadamente os ocorridos no interior das relações desiguais de poder. Por essa razão é que na sociedade democrática, composta por realidades sociais complexas e diferenciadas, com notável distinção de poder entre seres individuais e grupos sociais, nessa sociedade contemporânea há, evidentemente, espaço significativo para a convivência entre as três citadas grandes matrizes jurídicas: a matriz jurídica individualista e dispositiva privada, com universo importante de normas dispositivas, que dá conta de certos tipos de relação jurídica, preponderantemente privatísticas e com maior equilíbrio de poder entre os agentes envolvidos (Direito Obrigacional Civil; Direito Empresarial); a matriz jurídica pública, de óbvio caráter interventivo, regendo as chamadas questões de Estado, inerente aos antigos ramos seculares já referidos, como o Direito Tributário, o Direito Administrativo e o Direito Penal; finalmente, a matriz jurídica social, também claramente de natureza interventiva, que rege interesses mais amplos do que os simplesmente individuais, embora não sendo necessariamente públicos, quer dizer, interesses de evidente natureza supraindividual, de caráter social mesmo, geridos em relações de poder manifestamente desiguais (Direito do Trabalho, Direito de Seguridade Social, Direito Consumerista, Direito Ambiental). Essa diferenciação é crucial no processo de democratização. A Constituição da República com muita sabedoria percebeu essa diferenciação de esferas jurídicas, conferindo-lhe tratamento compatível. Esse tratamento compatível atinge o tema da flexibilização das normas trabalhistas. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 24 Considerados os princípios constitucionais já enunciados e considerada a firme normativa jurídica que a Constituição estabelece na área dos direitos sociais (basicamente do artigo 6º até o artigo 11, arrolando enorme leque de diretrizes e direitos sociais), percebe-se claramente que a Constituição sufraga a imperatividade das normas trabalhistas como instrumento de construção da idéia de justiça social. Note-se que ao falar em Direito Consumerista e respectivo Código do Consumidor, na verdade a Constituição estava se referindo a ramo jurídico praticamente inexistente na sociedade brasileira. Nesse contexto de plena inovação, ela fez rápidas – e decisivas –referências ao Direito Consumerista, determinando ao Parlamento que elaborasse, com rapidez, um Código do Consumidor – tarefa cumprida com brilhantismo pelo Congresso brasileiro logo a seguir. A mesma referência normativa rápida, embora decisiva, foi realizada quanto a outro ramo jurídico novo, o Direito Ambiental. Entretanto, no tocante ao Direito do Trabalho, ramo já caracterizado por história impressionante durante todo o século XX no Ocidente, as referências constitucionais são densas, diversificadas e abrangentes. E nessa amplitude e contundência, a Constituição conferiu ao Direito do Trabalho papel exponencial na criação de um Estado de Bem-Estar Social no país, concretizando os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, em sua dimensão social, da valorização do trabalho e do emprego, da subordinação da propriedade à sua função socioambiental. E muito pouco seria factível de ser alcançado nessa seara, como é evidente, caso se tratasse de ramo jurídico dotado de normas prevalentemente dispositivas. Por coerência e sabedoria, a Constituição sufragou o caráter imperativo do Direito do Trabalho, como regra geral; por sabedoria e coerência, permitiu-lhe certos caminhos de adequação, sem perda de sua essência e de seus objetivos cardeais, e sempre por meio da negociação coletiva trabalhista. Nesse quadro, a Carta Magna autorizou algumas flexibilizações pontuais de normas trabalhistas, mas sempre por meio da negociação coletiva sindical. Note-se que, ao conferir maior importância à negociação coletiva trabalhista do que no passado jurídico do país, a Constituição tomou o cuidado de fixar nítidas reservas e controles. O primeiro desses controles e reservas situa-se na obrigatória presença do respectivo sindicato de trabalhadores no processo negocial coletivo. Não há mais, desde 1988, válida R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 25 negociação coletiva trabalhista sem que haja a participação do correspondente sindicato de trabalhadores. A legislação infraconstitucional existente em 1988 criava a possibilidade de algumas flexibilizações de normas sem a presença sindical, mencionando casos de negociação coletiva sem a participação de sindicato de trabalhadores. Obviamente que essas regras legais precedentes não foram recebidas pela Carta Magna. Pela Constituição, sabiamente, o instituto da negociação coletiva, na qualidade de fonte criadora de normas jurídicas, somente se compreende tendo como um de seus sujeitos a entidade sindical obreira. O segundo desses controles e reservas é o caráter pontual, excepcional, restrito das hipóteses de flexibilização normativa. Compreendeu, com sabedoria, a Constituição que, estendendo-se a flexibilização a pontos exacerbados, o Direito do Trabalho, como eficiente política pública de distribuição de renda e de poder, iria se descaracterizar, aproximando-se injustificadamente do Direito Obrigacional Civil. Em consequência, sua função indutora da inclusão social, da distribuição de renda, indutora da construção de cidadania no plano largo da própria sociedade, essa função iria se esvair, diluir-se. Por essa razão é que as hipóteses de flexibilização trazidas pela Carta Magna, sempre com a participação do sindicato obreiro, são, de fato, relativamente reduzidas. Há um primeiro exemplo, referente à idéia de redução de jornada e de salários, via negociação coletiva sindical, em contexto de situação econômica adversa para o empregador. Trata-se de situação naturalmente excepcional, inerente às crises econômicas e/ou setoriais vivenciadas pela dinâmica empresarial. Aqui, muitas vezes o silêncio do sindicato obreiro traduz resistência à intenção redutora, de modo a se buscarem alternativas menos dolorosas para os trabalhadores e a sociedade durante o enfrentamento da crise. Outro exemplo de flexibilização normativa reside na possibilidade de elevação, via negociação coletiva, da jornada especial de seis horas, em direção às oito horas diárias, no tocante a trabalhadores que laborem em turnos ininterruptos de revezamento. Esses trabalhadores, antes de 1988, estavam submetidos à duração padrão de trabalho dos demais segmentos laborativos. A Constituição, reconhecendo o intenso desgaste dessa forma de organização de horários, conferiu-lhes jornada mais benéfica, de seis horas ao dia. Avançou normativamente em contraponto ao passado, porém permitindo à negociação coletiva elevar, outra vez, a jornada, até o limite padrão de oito horas ao dia e 44 na semana. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 26 Outro exemplo de flexibilização normativa inferido pela jurisprudência do art. 7º, XIII, da Carta Magna diz respeito à criação do chamado banco de horas, um regime compensatório de horários desfavorável que se generalizou nas relações trabalhistas durante a segunda metade dos anos de 1990 (Lei n. 9.601/98). A jurisprudência tem compreendido, corretamente, que o regime clássico de compensação de horários (compensação feita durante a semana ou, no máximo, durante o mês), por ser manifestamente favorável ao trabalhador (e também ao empregador, é claro), pode ser pactuado por simples ajuste bilateral escrito. Contudo, o novel banco de horas, sendo de maneira geral desfavorável ao trabalhador, somente pode ser pactuado com os controles e poderes da negociação coletiva sindical. Há, é claro, um quarto exemplo importante e muito comum na vida real: trata-se dos casos em que a negociação coletiva sindical cria parcela trabalhista nova, acima do piso normativo da lei e demais diplomas heterônomos estatais existentes. Sendo realmente nova a parcela, sem previsão em regra imperativa heterônoma precedente, pode ela ter sua natureza e suas repercussões jurídicas reguladas pela própria regra coletiva instituidora da benesse. Esse exemplo tem despontado, de maneira geral, nas negociações coletivas, seja envolvendo vantagens novas e diferenciadas entregues aos trabalhadores durante o contrato (ilustrativamente, auxílio alimentação fornecido durante a prestação laborativa, sem caráter e reflexos salariais), seja tratando de critérios de cálculo de vantagens supralegais subsequentes à jubilação obreira, como as complementações privadas de aposentadorias. Esses são os parâmetros gerais aplicáveis à extensão e aos limites da negociação coletiva trabalhista e respectiva flexibilização de normas jurídicas. Conforme se percebe, a Constituição reconheceu e enfatizou o caráter imperativo necessário ao Direito do Trabalho, para que bem realize as suas funções econômicas, sociais e culturais de aperfeiçoamento das relações trabalhistas, elevando as condições de pactuação da força de trabalho no sistema socioeconômico. Ao mesmo tempo, prestigiou a negociação coletiva, porém não a ponto de autorizar que ela se coloque no sentido contrário aos objetivos civilizatórios do ramo jurídico trabalhista. Fez, desse modo, a Carta Magna uma combinação equilibrada de dinâmicas sociojurídicas, incentivando o papel equitativo e cultural do Direito do Trabalho, mas permitindo certa adequação setorial negociada em aspectos pontuais, embora importantes, da ordem jurídica. Estas são as observações que, sinteticamente, trago para os colegas congressistas, já renovando os meus agradecimentos por me darem a oportunidade de aqui comparecer. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.15-24, jul./dez. 2009 27 PERSPECTIVAS DO TRABALHO E DO DIREITO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA José Augusto Rodrigues Pinto* 1 INTRODUÇÃO O gênero humano teme o futuro porque o desconhece. Para dominar seu temor, cria expectativas, e para levá-las até o desconhecido traça perspectivas, que não passam de tentativas de tornar certo o que é apenas provável. É o que procurarei fazer aqui, a propósito do trabalho humano e do seu direito no futuro da sociedade contemporânea. O primeiro cuidado é com a escolha do sentido mais adequado à análise a ser desenvolvida, entre os muitos que o termo perspectiva pode assumir. Nisso, não encontro dificuldade: Perspectiva é o modo de antever o futuro partindo de dados conhecidos no presente. Mas, traçar a linha entre o que é sabido e o que será antecipado exige pontos de referência que, neste caso, são quatro, conforme anuncia o próprio tema: o homem, a sociedade, o trabalho e o direito. O segundo cuidado é situar os dois planos em que a prospecção é possível, o universal e o nacional, considerando que, embora sejam solidamente interligados, oferecerem variáveis muito significativas para o resultado final do trabalho. 2 PERSPECTIVAS NO PLANO UNIVERSAL Começo, então, pelo plano maior, universal, a análise dos pontos referenciais. * Titular da Cadeira 79 da Academia Nacional de Direito do Trabalho e da Cadeira 40 da Academia de Letras Jurídicas da Bahia - Professor Adjunto de Direito do Trabalho e Processual do Trabalho da Universidade Federal da Bahia; Professor de Direito Processual do Trabalho em nível de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Bahia; Professor da Escola de Preparação e Aperfeiçoamento de Magistrados da Bahia; Juiz do Trabalho (aposentado) da 5ª Região - Membro do Instituto de Advogados da Bahia e do Instituto Baiano de Direito do Trabalho. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 28 2.1 O homem Sendo impossível desprezar a premissa de que sociedade, trabalho e direito são criações humanas, parece-me claríssimo que o homem é a referência essencial à antevisão do que sua sociedade deseja ser e ter – e daí surge o infeliz imperativo de que, se a referência é o homem, a linha da perspectiva é extremamente inquietadora. Com efeito, em milhões de anos de evolução da sua espécie, o ser humano alcançou o domínio quase completo da razão, mas não conseguiu libertar-se do jugo implacável do instinto. É certo que o uso da prodigiosa energia da inteligência o levou a trocar a treva opressiva das cavernas pela irradiante luz das estrelas e chegar a um nível quase divino do poder de criação material. Graças a isso, ele pôde voar como os pássaros, mergulhar como os peixes, gravitar como os astros e até se copiar a si mesmo. Todavia, a submissão ao instinto nunca lhe concedeu a sublimação do espírito, que é o contraponto da mente à miséria da carne. Pelo instinto, ele padece do medo de perder a vida e da ânsia de salvar-se depois dela, esquecendo que sua salvação está na própria vida. Ainda pelo instinto, cultiva o impulso para a agressão, semente matriz da violência. Com o instinto grava a fogo em sua mente, como se fora uma lição de sobrevivência, o verso amargo de Augusto dos Anjos: “O homem que nesta terra miserável / Mora entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera.”1 Mas o pior mal que o instinto lhe fez foi associar-se à razão para envenenar-lhe o espírito com sentimentos dos quais até as feras foram poupadas: a ira e o rancor, a crueldade e a inveja, a cupidez e a vingança. O pérfido amálgama entre instinto e razão fez do convívio da humanidade um espetáculo de selvajaria que resistiu aos séculos e chega aos nossos dias com a virulência insuportável dos milhões de famintos excluídos do banquete dos nababos, do genocídio em nome da purificação eterna e do irônico humanitarismo de lançar mísseis junto com alimentos à face de miseráveis. Dir-se-á que o homem não é só isso, pois também conhece a bondade e o perdão, o amor e a justiça, a compaixão e 1 ANJOS Augusto dos. Eu e outras poesias. 8. ed. Rio de Janeiro: Bedeschi, p. 162 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 29 a misericórdia. Posso responder que sim, mas que são tão poucos os que praticam essas virtudes em seu estado puro, que se tornam grãos de areia na imensidade do deserto, gotas d’água na caudal do oceano, gravetos perdidos no cipoal da floresta. Se cada um de nós – não apenas os que nos reunimos nesta leitura, mas os que habitamos todo o mundo, dirigentes e dirigidos, influentes e desvalidos – não tirar de dentro de si a vontade para reverter na consciência o primado dos sentimentos instintivos, que reduzem, hoje, a humanidade a uma condição pior do que a animalesca, em primado dos sentimentos racionais, que nos tornem dignos da presunção de sermos feitos à imagem de Deus, não haverá perspectiva de nenhuma ordem para o futuro, pois continuaremos caminhando, cegos e aturdidos, para um desfecho trágico de nossa História. A tarefa amedronta, pois se trata, simplesmente, de homogeneizar na paz da compreensão recíproca todos os grãos da areia do deserto brutal, todas as gotas da água do oceano encapelado, todas as sementes perdidas da floresta hostil. Mais do que amedrontar, exige esforço tão grande que é provável não bastar por si só. Clamará, então, por uma energia talvez só encontrada na loucura da personagem descrita por Mário Quintana, em dia de rara inspiração: “Lá bem no alto do décimo-segundo andar do Ano Mora uma louca chamada Esperança. E quando todas as sirenas fonfonam, Todos os reco-recos matracam, Quando tudo berra, quando tudo grita, quando tudo apita A louca tapa os ouvidos e atira-se E – ó miraculoso vôo! – Acorda outra vez menina, lá embaixo, na calçada. O povo aproxima-se, aflito E o mais velhinho pergunta: -- Como é o teu nome, menininha de olhos verdes? E ela então sorri a todos eles E lhes diz bem devagarinho para que não esqueçam nunca: -- Meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...2 Precisamos todos refletir sobre o quanto dependemos da nossa própria fé e da terna insanidade da esperança para mudar o homem. Se não iniciarmos esta obra, hoje e agora, não 2 QUINTANA, Mário. Poema do fim do ano. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 954. (Obras Completas) R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 30 há perspectiva a traçar para a sociedade contemporânea, porque não haverá sociedade no futuro, nem para o trabalho, porque o trabalho terá ficado infecundo, nem para o direito, porque o direito terá morrido inane. Tudo isso comprova a premissa aqui levantada. Toda perspectiva que for possível traçar para o trabalho e para o direito, tomando a sociedade contemporânea como alvo, se baseia em nossa ousadia de sonhar, antes de tudo, com a mudança de perfil do referencial humano. Se tudo não passar de um sonho – como não passou para Martin Luther King – o que traçarei em seguida, longe de ser perspectiva, será simples e inútil conjetura ou, para ser mais realista, mero palpite, na exata acepção de “opinião de intrometido.” Mas, se o homem tiver mudado ao menos o suficiente para não se autodestruir, quais as perspectivas da sociedade contemporânea? Serão, sem dúvida, as mais alvissareiras, bastando se ampararem em algumas condicionantes indispensáveis. Mas, está-se a ver, não serão obra ao alcance da vontade humana individual, e sim da sociedade que ambiciona ser sua fiel projeção, como passo a ponderar. 2.2 A sociedade As perspectivas são alvissareiras porque a tecnologia quase miraculosa, dominada pelos países de economia a esta altura denominada pós-industrial, é capaz de proporcionar à sociedade o usufruto efetivo de todas as riquezas terrestres naturais. Isso quer dizer multiplicá-las em multiformes transformações, diminuindo o tempo e o esforço da produção, em face da automação do trabalho, com a benfazeja contrapartida da expansão do lazer, em todas as medidas de tempo. Em que condicionantes estou pensando, tão importantes para confirmar as alvíssaras? Uma delas é a racionalização do aproveitamento dos recursos não renováveis, como são os minerais, e a manutenção do potencial produtivo das fontes de recursos renováveis, como é o solo, em relação aos grãos, por exemplo. No primeiro caso, além da própria racionalização, é de bom-senso desenvolver a pesquisa destinada a substituir a matéria prima natural pela síntese laboratorial, não se podendo descartar a possibilidade da exploração de outros corpos celestes como fontes alternativas ou substitutivas. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 31 Condicionante fundamental há de ser também o controle demográfico e a distribuição das populações. A explosão populacional humana desequilibra a partição de recursos, sobretudo os diretamente alimentares, tornando-se matriz do que se convencionou definir como subclasse social, formada pela massificação dos inaptos. A título de micro exemplo, bem próximo, dentro da escala mundial, a população da Cidade do Salvador decuplicou em 60 anos, passando de 240.000 habitantes, em 1940, para 2.400.000, em 2000. A necessidade do controle agiganta-se dramaticamente na constatação de que os guetos de explosão populacional são constituídos por grupos sociais sem meios de sustento estáveis e razoáveis, sem instrução nem qualificação para o trabalho, sem possibilidades, portanto, de sustentar uma família consistente – tornando-se alimentadores da marginalidade, cujo primeiro elo é a criança de rua, na verdade o ser abandonado pelos semelhantes que o trouxeram à vida sem intenção nem possibilidade de lhe dar sustento e orientação. O papel do Estado na estruturação da sociedade passa a ser outra condicionante fundamental. Cabe-lhe, refluindo para os fins originais que inspiraram sua criação, assegurar-lhe uma infraestrutura eficiente de acesso à educação, à saúde e à segurança, tríade básica do intercâmbio da participação individual com o retorno social na organização dos grupos. A verdade é que a sociedade contemporânea tem ao seu dispor a base material que facilita a qualquer um que a tomar como ponto de apoio, o firme traçado de uma perspectiva de justiça e prosperidade. A falta atual de clareza dessa perspectiva, para não dizer pior, somente comprova a tese de que ou o fator humano se remodela ou a base material, dilapidada por sua insanidade, só permitirá a perspectiva de um desastre social. 2.3 O trabalho Os referenciais do homem e da sociedade humana, por sua vez, são indispensáveis para decifrar o núcleo desta temática, formado pelas perspectivas do trabalho e do direito contemporâneos, já que o trabalho é fruto do determinismo humano e o direito é fruto do determinismo social. Em estudo que me foi proposto sobre o trabalho como valor tive ocasião de identificar a íntima relação que existe entre o trabalho e o homem, seguindo-lhe a trajetória histórica. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 32 Constatei, então, que o valor do trabalho “nos remonta ao homem anterior à sociedade, porque, embora mais próximo do instinto do que da razão, já era premido ao labor para atender a mais primária e irrenunciável das necessidades, a sobrevivência”3. Por isso, o defini como “valor básico da vida humana”4, circunstância que permitiu a Jorge Mancini encontrar nele “una dimensión fundamental de la vida humana” 5 Quando uma inata inclinação para o gregarismo, espécie de resposta à luta contra as forças naturais hostis à espécie, forçou o homem a juntar-se em grupos organizados, lá estava presente o trabalho na família, a primeira célula social de onde irrompeu como valor de poder, proporcionado aos que primeiro o perceberam como fonte de riqueza e não de simples sobrevivência. Desde então, o trabalho ganhou um sentido prioritário de valor econômico, síntese de poder e riqueza, que instilou nos grupos sociais rudimentares a idéia de submeter os vencidos, em lugar da pura e simples eliminação. Ato contínuo, os vencedores, travestidos de senhores, “que eram poucos”, conforme a observação de Sérgio Ferraz 6 trocaram o constrangimento de suportar o trabalho como necessidade de sobrevivência pelo deleite de desfrutá-lo como fonte de riqueza criada com o esforço alheio. O trabalho palmilhou espaços milenares dividindo-se entre duas noções: a de gozo, para a minoria senhoril – sendo, aqui, o valor tomado na acepção de tudo que é útil e agradável a alguém – e de estigma – tomado, aqui, o valor na acepção rigorosamente léxica de marca indelével de identificação do servo e, por extensão, sinal infamante. Durante esse longo percurso novas noções de valor se foram fazendo notar e agregar à idéia de trabalho, ensejando o que denomino reação dos submissos à visão aristotélica, sintetizada por Alonso Olea, de que “alguns homens são escravos por natureza, nascidos para servir, para fazer o que são mandados, pouco diferentes dos néscios, absolutamente incapazes de autogoverno.” 7 3 4 5 6 7 PINTO, José Augusto Rodrigues. O trabalho como valor. Revista LTR, São Paulo, v. 64, n.12, p.1489, dez. 2000. Ibidem MANCINI, Jorge. Curso de Derecho del Trabalho y de la Seguridad Social. 2 ed. Buenos Aires: Astrea, 1996. p. 2. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Interesse Público. Revista do Ministério Público, São Paulo, n. 1, p. 12, dez. 1995. OLEA, Manoel Alonso. Da escravidão ao contrato de trábalo. Curitiba: Juruá, 1990. p. 20 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 33 A agregação dessas várias noções de valor do trabalho fermentou a lenta, mas inexorável, reação dos submissos, que redimiu a primitiva noção de valor econômico, associando-o à idéia da liberdade, para fazer dele, também, um valor social, elo integrativo do produto da energia do trabalho com o proveito da sociedade, em que ele próprio está incluído. Mais ainda, transmudou-o também num valor moral, resumido por Amoroso Lima na idéia de que “o trabalho é o meio que permite ao homem, moralmente, realizar ou não as condições de sua felicidade, vencendo ou não os obstáculos que, por natureza, se lhe opõem.” 8 O fenômeno histórico da Revolução Industrial, desencadeada pela aliança dos fatores econômico e tecnológico, enfeixou as agregações moral e social numa síntese do valor jurídico do trabalho, reunindo, num único plano de importância, elementos apenas materiais e outros, essencialmente sociais, morais e espirituais. Em seu primeiro ímpeto, a Revolução Industrial abriu as portas à “irrupção do proletariado”9, através do movimento sindical, organizado à base da consciência coletiva dos trabalhadores, propiciada pela urbanização da sociedade industrial, A proposta foi opor à força econômica da empresa a força do seu próprio numero, a fim de agregar ao valor do trabalho o que temos como seu componente mais nobre, o da dignidade do trabalhador – agregação que deu ao seu valor jurídico o perfil tutelar característico dos séculos XIX e XX. Entretanto, a dinâmica irresistível da vida, responsável pela incorporação da máquina ao trabalho humano, na continuidade de sua marcha, alterou o equilíbrio de dois tipos de relação que a Revolução Industrial parecia ter estabelecido de modo definitivo: uma, entre a máquina e os sujeitos do contrato de trabalho humano; outra, entre a economia e a tecnologia. Numa primeira fase, de transição da relação de trabalho humano para a de trabalho mecanizado, verificou-se uma relação de harmonia entre a máquina e o trabalhador, por sua valorização diante do empresário, evidenciada na imprescindibilidade da energia do homem na implementação dos meios produtivos mecânicos. Em paralelo, o fator econômico firmou sua hegemonia sobre o tecnológico na exploração do novo potencial produtivo. Numa segunda fase, de expansão da prestação de trabalho mecanizado, verificou-se uma relação competitiva da máquina com 8 9 LIMA, Alceu de Amoroso. O problema do trabalho. Rio de Janeiro: Agir, 1947. p. 95. IGELMO, José Carro. Curso de Derecho del Trabajo. Barcelona: Bosch, 1985. p. 18. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 34 o trabalhador, evidente na progressiva substituição da mão-de-obra pela máquina, resultante do aperfeiçoamento do seu instrumental nos vários estágios da cadeia produtiva. Em paralelo, fragilizou-se o domínio do fator econômico sobre o tecnológico, característico de sua aliança originária. Numa terceira fase, já vivenciada pelas últimas gerações do século XX e ainda em pleno curso, a automação tomou o lugar da mecanização do trabalho e a relação da máquina com o trabalhador passou a ser antropofágica, como evidencia a síndrome da aspiração do emprego humano pelo instrumental mecânico.10 Em paralelo, a tecnologia assumiu o domínio da aliança original com a economia. O impacto deste último desdobramento é tão forte que produziu a mudança do próprio nome do fenômeno histórico de Revolução Industrial para Revolução Tecnológica. Trata-se, porém, de um desdobramento que só surpreendeu a quem não teve lucidez suficiente para perceber, há cinqüenta ou sessenta anos atrás, que “o papel dos humanos, como o mais importante fator de produção, está fadado a diminuir, do mesmo modo que o papel dos cavalos na agricultura foi de início diminuído e depois eliminado com a introdução dos tratores”11, nem para compreender o desafio patronal às grandes greves do pós-II Guerra Mundial, nos Estados Unidos, com a ameaça: “Deixem que eles discutam. Enquanto discutem, nós os despedimos.” Podemos condenar energicamente a amoralidade dessa filosofia, fingindo desconhecer que a única moral do capitalismo é o lucro. Mas não podemos ignorar seu realismo, porque ela retrata um instante crucial de conceituação do valor do trabalho, para cuja composição está em declínio a energia humana e em ascensão a automação do processo produtivo. Por isso mesmo, afirmamos com absoluta convicção que se a perspectiva do trabalho não dependesse da sociedade e a sociedade não dependesse do homem e, portanto, se pudesse ela ser desenhada apenas com os dados materiais hoje disponíveis, a perspectiva deixaria a sociedade contemporânea na porta de entrada do paraíso. Efetivamente, o potencial praticamente ilimitado de expansão da tecnologia moderna coloca o homem na fímbria de duas metas que sempre ambicionou alcançar: a multiplicação da riqueza e a diminuição do esforço físico para produzi-la. 10 PINTO, Jose Augusto Rodrigues. O Direito do Trabalho e as questões do nosso tempo. São Paulo: LTR, 1998. p. 39. 11 LEONTIEFF, apud PINTO, 1998, p.39. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 35 Pois é essa possibilidade que está, literalmente, diante dos olhos de todos: a “fábrica sem operários”, antevista pelos japoneses, permitiria direcionar a força humana de trabalho para as atividades do novo setor do conhecimento criado pela própria tecnologia, para o setor de prestação de serviços, ambas menos exaustivas e liberatórias de tempo a empregar em atividades simplesmente lúdicas. A incalculável produtividade da automação é capaz de disponibilizar a toda a sociedade os itens básicos da convivência confortável. Esta é a perspectiva utópica para o trabalho na sociedade contemporânea. Mas, na medida em que sua linha se encontre com as de perspectivas da sociedade e do homem, ela mergulha na mesma realidade de sombras e desalento que já analisamos em relação aos respectivos referenciais. 2.4 O direito A última das perspectivas que me propus traçar – a do direito e, mais especificamente, do Direito do Trabalho – exige uma reflexão preliminar de extrema gravidade a que nos parece, infelizmente, que se procura fugir, quando não escamotear. Trata-se de saber, em suma, a serviço de quem o direito se coloca primordialmente: da riqueza, do poder ou do indivíduo? Por mais que me doa dizê-lo, dentro de minha condição de humilde servo do direito, as circunstâncias que o fizeram brotar da inteligência humanas identificam muito menos com o idealismo da igualdade e muito mais com o pragmatismo da dominação. Louvo a afirmação em raciocínio já desenvolvido antes: “O homem criou a Sociedade, impelido ao gregarismo pela necessidade instintiva de se defender de um universo primitivo e hostil à sua espécie. A partir daí, milênios de paciente e incessante evolução, calcada no único e singelo método de substituir o instinto pela razão, levaram-no ao supremo triunfo de dominar aquele universo que o ameaçava e de fazer ecoar por todos os recônditos o grito de sua orgulhosa proclamação como rei da natureza. No próprio momento, porém, da afirmação triunfal, uma fria angústia lhe invadiu a alma com a certeza de que, dali por diante, sua grande luta seria para defender-se de si mesmo. Foi então que ele criou o Direito.”12 12 PINTO, José Augusto Rodrigues. Sociedade e Direito, o equilíbrio vital de opostos. In: GACLIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. v.IV, p. XIX. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 36 Essa gênese me levou ao encontro da cristalina dialética de Calmon de Passos: na sociedade racional criada pelo homem é indispensável que alguém mande e alguém seja mandado. Manda quem, num determinado momento histórico, for fonte do poder. E é fonte do poder quem, nesse mesmo momento, empalmar a riqueza. A crua visão dessa realidade me levou também a dizer alhures: “Diante disso, não tenhamos ilusões: por seu substrato social, vale dizer, humano, o direito não foi imaginado para criar igualdades, mas apenas para conter os excessos da opressão do poder alimentado pela riqueza. Para isso, oferece regras de resistência ao oprimido contra os excessos dos opressores. Regras, porém, atente-se bem, que, provindo de quem domina, jamais consentirão na paridade dos dominados. O máximo a que chegam é impedir a regressão do domínio ao estágio do instinto desestabilizador do racionalismo social.” 13 Quer isso dizer que o direito não chegará a um desfecho feliz na perspectiva que procuro traçar? De modo nenhum. Mas, quer dizer, sim, que o direito tem que sofrer uma profunda mutação de sua índole natural que o leve a deixar de ser um instrumento de defesa do homem contra o homem para sê-lo de equilíbrio de oportunidades entre o indivíduo e o poder. Na verdade, além de estar tentando, ele já conseguiu generosos avanços sob o pálio do constitucionalismo nascido da Revolução Francesa e das sucessivas gerações de direitos do homem oponíveis ao poder e à riqueza, notabilizados como direitos fundamentais, em realidade direitos do trabalhador oponíveis ao poder econômico. Boa parte desta, digamos, humanização do direito se deve aos debates e teses em torno das mutações trazidas pela Revolução Industrial e seu desdobramento tecnológico. Por isso me cabe apenas emprestar contextura sistemática à matéria, de natureza universal, sem perder de vista o interesse mais direto do ordenamento jurídico nacional. Desde o início da Revolução Industrial a sociedade viu a profunda mudança das relações de trabalho, dobrando-se à 13 PINTO, José Augusto Rodrigues. O futuro do constitucionalismo do trabalho. 2009. Conferência pronunciada no encerramento do V Colóquio Nacional do Direito do Trabalho promovido pela Academia Nacional do Direito do Trabalho, em Salvador, BA, mar. 2009 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 37 contingência de fatores os mais diversos, em que sobressaíram o tecnológico e o econômico. O lastro do Direito do Trabalho é fundamentalmente econômico, embora com uma raiz social ramificada muito forte, daí sua grande função ter sido, sempre, equilibrar a influência da seiva econômica originária com as consequências jurídicas da seiva social derivada. Por causa disso, o Direito do Trabalho foi sacudido pelo impacto do principal subproduto da Revolução Tecnológica, a globalização da economia. E como o choque chegou a abalar seus próprios fundamentos, grande parcela de seus especialistas resiste a aceitar os reflexos da globalização econômica sobre sua estrutura teórica e aplicação prática. Não comparto esse pensar, data venia. O Direito é projeção necessária da sociedade. Elimine-se esta última e aquele desaparecerá. Mais do que isso, por sua função de regulador de condutas sociais, não lhe deve incumbir a criação nem, muito menos, a imposição de modelos sociais, mas apenas a orientação racional do modelo que lhe é apresentado. Vale muito, no particular, a advertência legada, segundo ouvi dizer, por Anatole France: “Eu já vi muitas vezes a sociedade revogar as leis, mas nunca vi uma lei revogar a sociedade.” O Direito do Trabalho surgiu para direcionar, de modo racional, a atuação de um modelo social formado entre os séculos XVIII e XIX, a partir de um fato econômico cujo grande arcabouço se condensou na metamorfose da prestação de trabalho por conta alheia, em cujo seio se forjou a moderna relação de emprego. Um fato novo, provocado pela fusão entre cibernética, informática e automação, três fatores puramente tecnológicos, abalou tão profundamente os alicerces da Revolução Industrial que até lhe impôs um novo nome. Seus efeitos foram sentidos pela economia da empresa, seu gerenciamento, sua concepção funcional. Economicamente, a informação instantânea e a agilidade de movimentos, que beneficiaram o capital, na procura natural do lucro, tornaram-no nervoso ao ponto de parecer volátil, tal a facilidade com que some e reaparece entre organismos econômicos internacionais e nacionais. Na Revolução Tecnológica está a nascente da globalização que, portanto, não é causa, mas efeito econômico da expansão tecnológica. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 38 À vista disso, perde tempo quem propuser discutir se a globalização é ou não aceitável, pois, na verdade, ela é inevitável ou até irresistível, como já reconheceu o laureado Professor José Martins Catharino. A única certeza definitiva que posso estabelecer a seu respeito é que não será eterna, porque estará sujeita às leis da evolução, que lhe são superiores. Entretanto, se o homem, no momento, não pode evita-la, dispõe, entretanto, da capacidade de controlar sua ação, como já demonstrou diante de inúmeros outros grandes fenômenos históricos. Está, pois, em suas mãos evitar danos sociais que inegavelmente tem causado, a exemplo do desemprego estrutural, fruto exclusivo da ação descontrolada ou, pior do que isso, monitorada apenas pelos interesses do capital. O grande papel do Direito do Trabalho, dentro da linha racional de sua perspectiva, está na contenção de projeções jurídicas ruinosas para a relação capital/trabalho, como conseguiu fazer, quando irrompeu a Revolução Industrial. Logo, desde que abstraído o desalento provocado pela perspectiva humana, condicionante de todas as demais, o Direito do Trabalho pode ser projetado para o futuro, em seus diferentes prismas de Direito Individual, Sindical, Coletivo e Processual, num plano prospectivo extremamente otimista de mutação de perfil, sempre a partir de uma só base, a revisão dos seus fundamentos para adapta-los aos fatos tecnológico, econômico e social que lhe cabe ordenar. No Direito Individual, a perspectiva pode tomar uma entre duas direções opostas: a da flexibilização das normas, freio ao desemprego crônico, ou a desregulamentação da relação de trabalho, que significará seu refluxo para o Direito Civil, de que se emancipou. A flexibilização precisará amparar-se na empregabilidade, modelo de qualificação versátil do trabalhador para fazer face à contingência da instabilidade dos postos de trabalho. A tendência manifesta tem sido direcionada, exatamente, para a flexibilização, que significará, muito ao contrário da atrofia profetizada pelos imobilistas, o avanço do Direito do Trabalho sobre grandes áreas até então interditadas à sua influência, como a dos contratos afins, chamados de atividade, a do acidente no trabalho e a da Previdência Social. A base da perspectiva para o Direito Sindical e Coletivo é a compreensão lúcida de que a energia humana deixou de ter R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 39 peso preponderante na formação das relações entre o capital e o trabalho. Isto redireciona a primitiva idéia de proteção do emprego de quem está empregado pela idéia atualizada de partição do emprego entre os que estão desempregados. Essa mudança básica de raciocínio cria um novo vetor para o movimento sindical, que substituirá o sindicalismo de luta pelo sindicalismo de negociação, exigindo um radical aprimoramento dos seus quadros representativos para assumir a responsabilidade do poder normativo das condições gerais de trabalho e da fiscalização de cumprimento das normas de ordem pública nas relações individuais, em lugar do Estado, retentor das funções de criação e fiscalização de cumprimento das matérias que formam o núcleo pétreo da proteção do hipossuficiente econômico. O Direito Processual faculta ampla perspectiva de alcance geral, começando pela revisão, em profundidade, do poder jurisdicional do Estado, de sua organização judiciária, o fomento à jurisdição privada, a uniformização do procedimento, a simplificação do sistema de recursos e a informatização dos dissídios. No interior dessas formulações de ordem abrangente jazem questões a equacionar e resolver, com o intuito de pacificar antagonismos que desestabilizam o espírito dos atores da relação de trabalho, extrapolando as inquietações para o todo social. Servem de exemplo alguns aspectos já regulados por lei, entre nós, mas carecedores de melhor discussão, ao lado de outros em que urge estimular a discussão voltada e regulamentação. Entre eles estão o novo papel das cooperativas de mãode-obra e o tratamento das relações por elas intermediadas; o trabalho extraordinário e o banco de horas; a negociação individual perante órgãos extrajudiciais de conciliação e o alcance de sua quitação; a co-gestão e a qualificação e requalificação da mão-de-obra. A magnitude desse complexo de questões, tracejadas em escala mundial, é proporcional à urgência de serem enfrentadas. Exige a convocação de toda a estrutura social diretamente interessada, formada por trabalhadores, empresários e governos, a fim de travarem um diálogo sem preconceitos, de olhos voltados para o benefício comum e não para vantagens unilaterais. 3 PERSPECTIVAS NO PLANO NACIONAL R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 40 Ao reduzir as perspectivas a uma escala nacional, impende considerar que o encurtamento do horizonte social pela força aglutinadora do fato tecnológico não permite considerar grandes diferenças estruturais, como permitia o horizonte do século XVI, por exemplo, nem mesmo o do século XIX, consideravelmente mais próximo da conjuntura deste século. Portanto, nada acrescento, em termos de referencial humano, pois os caracteres de inteligência e instinto do homem brasileiro não são, no fundo, diferentes do de sua espécie universal. Em termos de sociedade contemporânea, parece-me certo que houve, no Brasil, percepção das mutações universais da Revolução Tecnológica pelos constituintes eleitos em 1988, notadamente seu efeito globalizador da economia. Isso parece estar muito claro nos direitos sociais formulados pelo artigo 7.º e 8.º da Magna Carta, pavimentando a adaptação da disciplina do trabalho subordinado à nova realidade que já revelava relativa nitidez na época. Durante toda a década de 90, o Poder Executivo comandou o trabalho, ainda em marcha, de compatibilizar o ordenamento ordinário com as normas programáticas da nova Constituição, cujo resultado tem sido recebido pela classe trabalhadora e por uma expressiva parcela de juslaboralistas com manifesto o temor pela desregulamentação do Direito do Trabalho e a consequente entrega das respectivas relações às desumanas leis do neoliberalismo econômico. Creio não haver motivo para o temor, traduzido no empenho em manter intocado o ápice do arcabouço tutelar construído entre os meados dos séculos XIX e XX. Justifica-se, porém, quando se observa que em muitas das propostas legislativas, o governo brasileiro tem ignorado dois princípios éticos gerais do Direito, a boa-fé e a razoabilidade. Vejo desprezo pela razoabilidade, quando: a) associa a adaptação das nossas leis trabalhistas à economia globalizada, com prioridade para os modelos de Primeiro Mundo, ao qual o País não pertence; b) submete as normas propostas à orientação de organismos internacionais; c) negligencia o dever básico de proporcionar à população os suportes de saúde e educação públicas, sem os quais se ausentará a justiça fugirá das regras do que se concebe como uma moderna legislação trabalhista. Vejo desprezo pela boa-fé, quando: a) impõe a reforma sem prévia consulta e discussão aberta com a sociedade, do que é notório sinal a pletora de medidas provisórias; c) prioriza o R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 41 interesse econômico diante do interesse humano, cuja medida é a freqüência do atendimento de exigências satisfação de interesses de investidores e credores estrangeiros; d) não empresta consistência sistêmica à adaptação, tornando instáveis as relações que pretende modernizar; e) aproveita a iniciativa da reforma para excluir-se do direito que impõe à sociedade. Contra estes aspectos, é necessária e válida a reação de segmentos privados da sociedade, como as corporações profissionais, instituições acadêmicas etc., que já mostraram capacidade isso, no plano político, conquistando um regime de liberdades públicas que nos permite a todos, hoje, falar e, portanto, nos permitirá também exigir e fazer. Por isso, as perspectivas nacionais do trabalho e do direito dependem muito do que ainda estamos por erguer, na área infraestrutural, para dotar os trabalhadores e patrões da qualificação mínima que os habilite a estabelecer uma relação de trabalho literalmente contemporânea. Que esteja presente, para isso, o grito do poeta trinta anos atrás: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. 4 CONCLUSÃO Aí está minha tosca visão a respeito das perspectivas do homem, da sociedade, do trabalho e do direito, tal como me parece ser possível estabelecer. Do alto de sua infinitude, deve o Tempo sorrir da pequena dimensão existencial humana, que a falta de grandeza interior da espécie faz tudo para deteriorar, ainda por cima. Entretanto, perspectiva é a incisiva comprovação do determinismo da vida a respeito da sociedade dos homens, em dois importantes aspectos: a civilização é um moto-contínuo do presente na direção do futuro, e o direito não cria nem transforma esse movimento, limita-se a ordenar seus resultados. As mudanças dos referenciais que analisei foram profundas e extensas, desde o fim da grande conflagração do século XX. Olhá-las me estimula a reafirmar o que reconheci no curso do meu pensamento: o direito, por seu substrato social, vale dizer, humano, não foi imaginado para criar igualdades, mas apenas para conter os excessos da opressão do poder alimentado pela riqueza. Para isso, oferece regras de resistência ao oprimido contra os excessos dos opressores. Regras, porém, atente-se bem, que, provindo de quem domina jamais se inclinarão pela paridade dos dominados. O máximo que admitem é impedir a regressão do domínio ao estágio do instinto desestabilizador do racionalismo social. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 42 Elas confirmam palavras pronunciadas e escritas sete anos atrás, quando fui instado a meditar sobre O Direito do Trabalho no limiar do século XXI: Os que tiverem vida para transpor o ano 2000 verão, já nele, um Direito do Trabalho modificado em suas bases e, a partir destas, em toda sua estrutura. Não se põe em questão se para melhor ou para pior: simplesmente para servir à área de relações humanas para que está voltado14 As mudanças tornaram todas as coisas muito diferentes, menos o caráter da humanidade, que continua sombriamente estático, desde que o homem conseguiu equilibrar-se em seu destino de bípede. Além de não ter sabido dominar o pior instinto do animal de que proveio, o ser humano tem aproveitado o dom da razão para potencializar o instinto com os requintes da crueldade e da perversão. Isso é de lastimar, e já foi constatado, discutido e deplorado, à exaustão, em repetidos congressos reunidos para discutir o tema. Agora mesmo, quando intento estabelecer perspectivas que, pelos dados materiais de que disponho, poderiam ser quase decididamente otimistas para a sociedade, o trabalho e o direito tenho que me conter na indagação perplexa: e como traçar a perspectiva do homem, sem a qual nenhuma outra pode ser traçada? E aí sou forçado a responder com desalento e medo: é absolutamente nenhuma, para o seu próprio bem, é absolutamente destrutiva para o seu próprio mal. Não gostaria que fosse este o epílogo de minha análise. Mas a nua e crua verdade é que, assim como o grande Ruy, num desabafo de profunda decepção, chegou a rir-se da honra, desanimar-se da virtude e ter vergonha de ser honesto, temo que, vendo no espelho que reflete o desvario humano um futuro sem perspectiva, chegará o dia de execrar o trabalho, rir-se do direito e ter vergonha da condição humana. Para evitar esse extremo de tristeza, joguemos todas as fichas de nossa fé na menininha louca de olhos verdes que o poeta nos apresentou. 14 PINTO, José Augusto Rodrigues. O Direito do Trabalho no limiar do século XXI. Revista LTr, São Paulo, v.68, n.8, p. 1029-1036, ago. 1996. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.25-40, jul./dez. 2009 43 Notas sobre a aplicação da teoria do adimplemento substancial no direito processual civil brasileiro Fredie Didier Jr.* RESUMO O ensaio propõe-se a examinar a possibilidade de aplicação da teoria do adimplemento substancial ao direito processual civil. Palavras-chave: Boa-fé. Adimplemento substancial. Processo civil ABSTRACT In this essay the author intends to verify the possibility of application of the “substantial performance doctrine” in Brazilian Civil Procedural Law. Keywords: Good faith. Substantial performance doctrine. Civil procedure. Um dos efeitos do princípio da boa-fé é limitar o exercício das situações jurídicas ativas. A vedação ao abuso do direito é uma dessas consequências. Há diversas modalidades de exercício inadmissível de situações jurídicas. Fala-se, por exemplo, em venire contra factum proprium, tu quoque, supressio etc. Uma aplicação da vedação ao abuso do direito é a chamada teoria do adimplemento substancial, “estabelecida por Lord Mansfield em 1779, no caso Boone v. Eyre, isto é, em certos casos, se o contrato já foi adimplido substancialmente, não se permite a resolução, com a perda do que foi realizado pelo devedor, mas atribui-se um direito de indenização ao credor”1. * 1 Professor-adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP). Professor-coordenador da Faculdade Baiana de Direito. Membro dos Institutos Brasileiro e Ibero-americano de Direito Processual. Advogado e consultor jurídico. Contato pelo e-mail: frediedidier.com.br SILVA, Clóvis do Couto e. O princípio da boa-fé no Direito brasileiro e português. In: FRADERA, Vera Jacob de (org.). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 55. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.41-45, jul./dez. 2009 44 Assim, o direito potestativo à resolução do negócio não pode ser exercido em qualquer hipótese de inadimplemento. Se o inadimplemento for mínimo (ou seja, se o déficit de adimplemento for insignificante, a ponto de considerar-se substancialmente adimplida a prestação), o direito à resolução converte-se em outra situação jurídica ativa (direito à indenização, p. ex.), de modo a garantir a permanência do negócio jurídico. Mas não apenas a resolução do negócio pode ser impedida pela aplicação dessa teoria (repita-se: derivada da aplicação do princípio da boa-fé)2. Pode-se, por exemplo, cogitar da extinção da exceção substancial de contrato não cumprido3 (outra situação jurídica ativa): a parte não poderia negar-se a cumprir a sua prestação, se a contraprestação tiver sido substancialmente adimplida. Embora sem utilizar essa terminologia, Menezes Cordeiro demonstra que o desequilíbrio no exercício jurídico que se revela pela desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem é uma das espécies de exercício inadmissível de situações jurídicas ativas4. Segundo o autor, trata-se do mais “promissor” subtipo de exercício em desequilíbrio de posições jurídicas, que se verifica em situações como o “desencadear de poderes-sanção por faltas insignificantes, a actuação de direitos com lesão intolerável de outras pessoas e o exercício jussubjectivo sem consideração por situações especiais” 5. Os exemplos de exercício de poder-sanção por falta insignificante mencionados pelo autor são exatamente o da exceção de contrato não cumprido e o da resolução do negócio por uma falha sem relevo de nota na prestação da contraparte6. 2 3 4 5 6 SCHREIBER, Anderson. A boa-fé e o adimplemento substancial. In: HIRONAKA, Giselda Maria; TARTUCE, Flávio (coord.). Direito Contratual: temas atuais. São Paulo: Método, 2007. p. 141. ABRANTES, José João. A excepção de não cumprimento do contrato no direito civil português: conceito e fundamento. Coimbra: Almedina, 1986. p. 123-127; MORENO, María Cruz. La ‘exceptio non adimpleti contractus’. Valência: Tirant lo Blanch, 2004. p. 75; BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, v.9, p. 60 e 65. 1993.; BUSSATTA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 104-106. Assim, também, STJ, 4ª T., REsp n. 656.103/ DF, rel. Min. Jorge Scartezzini, j. em 12.12.2006, publicado no DJ de 26.02.2007, p. 595. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. 2ª reimp. Coimbra: Almedina, 2001. p. 857-860. Ibidem, p. 857. Ibidem, p. 858. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.41-45, jul./dez. 2009 45 No direito privado brasileiro, a teoria do adimplemento substancial vem sendo adotada a partir da aplicação da cláusula geral do abuso do direito (art. 187 do Código Civil) e da cláusula geral da boa-fé contratual (art. 422 do Código Civil) 7. O princípio da boa-fé vige também no direito processual. Uma de suas conseqüências é, também, a vedação ao abuso do direito no âmbito processual8. É fácil perceber que o princípio da boa-fé é a fonte normativa da proibição do exercício inadmissível de posições jurídicas processuais, que podem ser reunidas sob a rubrica do “abuso do direito” processual9 (desrespeito à boa-fé objetiva)10. Resta saber se a teoria do adimplemento substancial pode ser aplicada no âmbito do direito processual. Pensamos que sim. O § 2º do art. 511 do CPC brasileiro determina que “a insuficiência no valor do preparo implicará deserção, se o recorrente, intimado, não vier a supri-lo no prazo de cinco dias”. Preparo insuficiente é preparo feito; preparo que não foi feito não pode ser adjetivado. Insuficiente é o preparo feito a menor, qualquer que seja o valor. Isto significa que a deserção, por insuficiência do preparo, é sanção de inadmissibilidade que somente pode ser aplicada após a intimação do recorrente para que proceda à complementação. O legislador atentou para seguinte 7 BUSSATTA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 87-92; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé e o adimplemento substancial. In: HIRONAKA, Giselda Maria, TARTUCE, Flávio (coord.). Direito Contratual: temas atuais. . São Paulo: Ed. Método, 2007. p. 139. 8 BAUMGÄRTEL, Gottfried. “Treu und Glauben im Zivilprozess”. Zeitschrift für Zivilprozess, 1973, n. 86, Heft 3, p. 355; ZEISS, Walter. El dolo procesal: aporte a le precisacion teorica de una prohibicion del dolo en el proceso de cognicion civilistico. Tomas A. Banzhaf (trad.). Buenos Aires: Ediciones Jurídicas EuropaAmérica, 1979, passim; HESS, Burkhard. “Abuse of procedure in Germany and Áustria”. Abuse of procedural rights: comparative standards of procedural fairness. Michele Taruffo (coord). Haia/Londres/Boston: Kluwer Law International, 1999, p. 153-154; DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 11 ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2009. v. 1, p. 47. 9 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no Direito Civil. 2ª reimp. Coimbra: Almedina, 2001. p. 861-902. 10 Além disso, o princípio da boa-fé processual torna ilícitas as condutas processuais animadas pela má-fé (sem boa-fé subjetiva). Ou seja, a cláusula geral da boa-fé objetiva processual implica, entre outros efeitos, o dever de o sujeito processual não atuar imbuído de má-fé, considerada como fato que compõe o suporte fático de alguns ilícitos processuais. Eis a relação que se estabelece entre boa-fé processual objetiva e subjetiva. Mas ressalte-se: o princípio é o da boa-fé objetiva processual, que, além de mais amplo, é a fonte dos demais deveres, inclusive o de não agir com má-fé. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.41-45, jul./dez. 2009 46 circunstância: interposto o recurso e feito o preparo em valor menor do que o devido, a inadmissibilidade é sanção drástica demais; a invalidação do recurso, no caso, é um caso típico de exercício inadmissível de um poder jurídico processual. Mais consentânea com a boa-fé é a necessária intimação do recorrente para proceder ao complemento do valor devido. Protege-se, aqui, ainda que em outro contexto, situação semelhante àquela protegida pela teoria do adimplemento substancial. A inspiração e a preocupação da teoria do adimplemento substancial são as mesmas que motivaram o legislador a proceder à inclusão do § 2º no art. 511 do CPC brasileiro. O poder de invalidar (situação jurídica ativa) o recurso com preparo insuficiente é, aqui, limitado pela boa-fé. Tem-se aqui um exemplo de regra jurídica que aplica a mencionada teoria. É possível, porém, aplicar essa teoria em situações atípicas, a partir de uma concretização do princípio da boafé processual pelo órgão julgador. Vejamos alguns exemplos, que, não obstante sem exaurir a casuística, podem iluminar a identificação de outras situações semelhantes. Sabe-se que a afirmação do inadimplemento é um dos pressupostos para a instauração do procedimento executivo (art. 580 do CPC). Constatado o inadimplemento mínimo, pode o órgão jurisdicional recusar a tomada de medidas executivas mais drásticas, como a busca e apreensão do bem, por exemplo. Neste sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, que, em execução de contrato de alienação fiduciária em garantia, entendeu correta a decisão judicial que se recusou a determinar a busca e apreensão liminar do bem alienado, tendo em vista a insignificância do inadimplemento 11. Em sentido semelhante, já se impediu a decretação de falência, em razão da pequena monta da dívida12. O 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4a T. REsp n. 469.577/SC, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 25.03.2003, publicado no DJ de 05.05.2003, p. 310. 12 “FALÊNCIA. Cobrança. Incompatibilidade. O processo de falência não deve ser desvirtuado para servir de instrumento de coação para a cobrança de dívidas. Considerando os graves resultados que decorrem da quebra da empresa, o seu requerimento merece ser examinado com rigor formal, e afastado sempre que a pretensão do credor seja tão somente a satisfação do seu crédito. Propósito que se caracterizou pelo requerimento de envio dos autos à Contadoria, para apurar o valor do débito, pelo posterior recebimento daquela quantia, acompanhado de pedido de desistência da ação”. (STJ, 4ª T., REsp n. 136.565/RS, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 23.02.1999, publicado no DJ de 14.06.1999, p. 198). Em sentido contrário, STJ, 3ª T., REsp n. 515.285/SC, rel. Min. Castro Filho, rel. p/ acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, j. em 20.04.2004, publicado no DJ de 07.06.2004, p. 220) R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.41-45, jul./dez. 20099 47 entendimento jurisprudencial repercutiu na nova lei de falências (art. 94, I, Lei n. 11.101/2005)13. O inciso II do § 1º do art. 694 do CPC brasileiro determina que a arrematação do bem penhorado será resolvida14, se não for pago o preço ou se não for prestada a caução. A resolução da arrematação não pode ocorrer se o inadimplemento for mínimo. Isso não quer dizer que haverá prejuízo ao exeqüente, que não receberia integralmente da arrematação, ou ao executado, que teria seu bem expropriado por um valor menor do que o devido. Continuará o arrematante obrigado a exibir o preço ou prestar caução, que poderá ser demandado para tanto, inclusive com a incidência de multa (fixada pelo juiz) e juros sobre a parcela não adimplida; mas, sendo mínimo o inadimplemento, não é aceitável resolver a alienação judicial. Certamente, há outras situações em que essa teoria pode ser aplicada ao processo. Este ensaio tem o propósito apenas de despertar o estudioso e o aplicador do Direito para esta possibilidade. 13 Art. 94 da Lei 11.101/2005: “Será decretada a falência do devedor que: I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência”. 14 O texto normativo refere a “tornar sem efeito” a arrematação. O caso é, porém, rigorosamente, de resolução por inadimplemento. A propósito, DIDIER Jr., Fredie et al. Curso de direito processual civil. Salvador: Jus Podivm, 2009. v. 5, p. 657; ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 759; MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. t. 10, p. 298-300; ROCHA, José de Moura. Sistemática do novo processo de execução. São Paulo: RT, 1978. p. 406. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.41-45, jul./dez. 2009 48 49 oRlando gomes, mestre do porvir Rodolfo Pamplona Filho* 1 INTRODUÇÃO Simplesmente participar do Seminário “Orlando Gomes e o Direito do Trabalho”, promovido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região e pela Fundação Orlando Gomes, em memória ao centenário de nascimento do pranteado jurista, mestre de diversas gerações, é, mais do que uma honra acadêmica, um dever de coerência e consciência para todos aqueles que cultuam o estudo da ciência do Direito na Bahia, no Brasil e no mundo. Ser convidado, porém, para apresentar uma manifestação, neste concorrido evento, provocou, neste interlocutor, um sentimento de estranheza, tendo em vista que há diversos profissionais muito mais gabaritados que este modesto magistrado de primeira instância e que, por terem desfrutado do privilégio da companhia pessoal do homenageado, teriam melhores condições de dar um testemunho qualificado da importância histórica do pensamento de Orlando Gomes para a construção do Direito do Trabalho. Por isso, a reação natural, manifestada ao ilustre Prof. Marcelo Gomes, foi a de imediatamente sugerir a indicação de outros nomes, o que, porém, não foi aceito. Assim, a participação neste conclave foi encarada como uma convocação oficial para a apresentação de um testemunho, não de alguém que possa ter a honrosa prerrogativa de se qualificar como aluno (pois este é um privilégio que a minha geração, infelizmente, não pôde ostentar), mas, sim, de um profundo admirador do pensamento, da obra e * Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Salvador/BA (Tribunal Regional do Trabalho da Quinta Região). Professor Titular de Direito Civil e Direito Processual do Trabalho da Universidade Salvador - UNIFACS. Professor (licenciado) do Programa de Pós-Graduação em Direito da UCSAL - Universidade Católica de Salvador. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFBA – Universidade Federal da Bahia. Professor da Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UFBA. Coordenador do Curso de Especialização em Direito e Processo do Trabalho do JusPodivm/BA. Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia. Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho (Cadeira 58) e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia (Cadeira 27). Autor de diversas obras jurídicas. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 50 do exemplo de Orlando Gomes, o que se encontra estampado nos depoimentos de seus verdadeiros apóstolos. Sem ter, portanto, a qualificação necessária para a honraria de discípulo, coloca-se este singelo palestrante como apenas mais um dos inúmeros “fãs” de Orlando Gomes, partícipe de um culto, cada vez maior, à figura de um verdadeiro profeta para as gerações vindouras. E é nessa linha que se pretende fazer este pronunciamento: o que as novas gerações podem vislumbrar, no estudo das imorredouras lições de Orlando Gomes, que somente veio a se verificar, nos debates acadêmicos ou nas lides judiciais, anos após o seu passamento terreno? É neste desvelar da faceta de “mestre do porvir” que se acredita que alguém com tão poucos predicados como este subscritor possa trazer alguma contribuição diferenciada para este seminário. Em síntese, o corte epistemológico desta exposição é: o que o Direito do Trabalho da modernidade deve, não de fundamentação histórica ou de pionerismo acadêmico, mas sim de antevisão analítica, a Orlando Gomes? É esta a proposta deste trabalho. 2 A CRISE DO DIREITO E O PAPEL DO DIREITO DO TRABALHO Há anos se vislumbra uma crise do Direito. Tal concepção de desintegração da ordem jurídica, com o repensar de seu papel, é tema de profundas reflexões por grande parte da doutrina especializada. Desde a quebra do mito da democracia grega, com sua sociedade em castas e ideologicamente excludente, completamente alheia à visão disseminada de um sistema democrático, passando pela revolução burguesa, em que a busca por igualdade, liberdade e fraternidade pressuponha a morte dos seus opositores, até a pósmodernidade, com a crise dos paradigmas dominantes, em que o papel da família, da economia e do Estado sofre rediscussão, sempre se vem discutindo qual é a função do Direito nesta composição de forças. Em um texto concebido em uma época bem anterior aos conflitos de sem-terra ou sem-teto, muito antes de se falar em ações afirmativas ou ativismo judicial, profetizava ORLANDO GOMES: Em outra perspectiva, o organismo jurídico deixa entrever uma erupção de fácil diagnóstico, sintomática de pequenos distúrbios no aparelho circulatório. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 51 O Direito sempre teve os seus preferidos. Sob a sombra amiga da lei e o olhar atento do gendarme, bem aventurados sempre foram os que possuíam, beati possidentes. Hoje, registram-se fenômenos de mobilidade vertical na esfera jurídica. Grupos outrora menosprezados adquirem importância social, elevamse da planície rasa onde vegetavam e reclamam proteção jurídica para seus interesses imediatos, ora sob o peso ameaçador do número, ora especulando a própria utilidade, ora prevalecendo-se de circunstâncias fortuitas. Esse deslocamento em massa altera o metabolismo da ordem jurídica, provocando perturbações que testificam a sua decomposição e revelam, como sintomas inequívocos, a desagregação da estrutura subjacente ao direito. Essa redistribuição de papéis na ribalta do mundo neotécnico se vem realizando com sacrifício das matrizes filosóficas do Direito. Privilégios metajurídicos são compensados com privilégios jurídicos, por um paradoxal processo de democratização. Mas, como a generalização dos privilégios importaria sua eliminação, o direito acolhe a ascensão social de fracos e desprotegidos por um processo de conservação, que traduz extraordinário esforço de sobrevivência. Diz-se que se humaniza. Os que falam nessa humanização confessam, ainda que inadvertidamente, que ele está fora da escala humana, que é desumano. Em verdade, porém, esse desejo de prolongar a vida, nos que sentem a proximidade da morte, não regateia preço para afastála; do mesmo modo que o organismo enfermo prefere a prisão no leito ao desenlace imediato, a ordem jurídica, sentindo a sua hora crepuscular, concede, para perdurar, impregnando-se de conceitos elásticos que permitem a distensão das normas básicas, com as que se inspiram no dogma da fé jurada e no caráter absoluto e exclusivo da propriedade, até um ponto em que se negam a si próprias. Os conceitos de equidade, bons costumes, boa fé, lealdade e confiança recíprocas, usura, lesão, imprevisão e abuso de direito, enfibram-se para possibilitar essa elasticidade, que amortecerá os atritos entre a lei e o fato, garantindo àquela a sobrevivência vegetativa que a desarmonia incipiente ainda tolera. Mas não é o bastante. Os choques iterativos reclamam intervenções mais diretas, interferências mais particularistas; porque o texto, mesmo provido desses amortecedores, ainda se conserva rígido frente a certas situações, que se estão multiplicando. Restaura-se a função pretoriana, investindo-se o Juiz no poder de intervir nas relações jurídicas, de proceder como se legislador fora, de julgar praeter legem, e, até mesmo contra legem, como alguns advogam1. 1 GOMES, Orlando. A Crise do direito. São Paulo: Brasil, 1955. p.10. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 52 E nesse contexto de crise, qual é o papel do Direito do Trabalho? No mesmo texto, datado de uma época em que o Direito Laboral ainda era considerado uma disciplina nova, explicita: Todos esses aspectos da crise objetivam-se ostensivamente na formação e no desenvolvimento do mais novo rebento da multissecular árvore jurídica: O Direito do Trabalho. Do seu espírito se tem dito muita coisa, inclusive de que não passa de crucial metamorfose do direito civil pela substituição do seu próprio coração, como me pareceu há tempos, ao estudá-los em função do institutochave que os distingue. Mas essas interpretações são antes descritivas do que explicativas. Mais do que isso, são insuficientes para lhe dar a justa medida no espaço tridimensional da ideologia jurídica. A jovens espíritos, aos quais deve ter entusiasmado ou desapontado, a delimitação da sua área de expansão se impõe precisamente porque, consubstanciando o direito do trabalho as instituições que mais se afastam do padrão clássico, a fixação de sua fronteiras descortina o horizonte da evolução jurídica nos quadros da ordem social existente. No Direito do Trabalho, o fenômeno da falta de correspondência entre a substância e a forma manifesta-se em alto grau, a partir da própria relação que constitui seu objeto. Tratada como se fora um contrato, refoge a esse envoltório com tamanha desenvoltura, que seus intérpretes, impressionados com as particularidades, invertem os termos do problema, entrevendo a decadência do contrato onde há apenas a impropriedade de uma categoria que, todavia, não pode ser substituída, porque o conteúdo de vínculo jurídico se abarrota de elementos institucionais por uma antecipação que não coaduna com a organização privada das empresas. Por outro lado, sendo uma incorporação em massa de marginais do Direito, cuja inferioridade econômica precisava ser compensada com uma superioridade jurídica (Folch), distendeuse como um largo manto protetor, tecido, porém, com o mesmo fio de que se faz o véu que recobre as instituições clássicas. Nele, mais do que em qualquer outro domínio, a noção de equidade penetra a fundo, para emprestar maleabilidade a seus preceitos, e muitos daqueles amortecedores do direito civil ditam princípios e substancializam regras, numa objetivação crescente e sistemática. Aos juízes incumbidos de o aplicar, conferem-se poderes extraordinários na solução dos dissídios, especialmente nos conflitos coletivos. Investe-se-os num poder normativo, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 53 que é uma violentação, das mais contundentes, dos princípios jurídicos e políticos que informam a vigente estrutura social.2 Veja-se a importância de tal manifestação? Hoje, fala-se em extensão da tutela trabalhista para aqueles que se encontram às margens da disciplina formal. É o fenômeno da parassubordinação, no repensar do papel do Direito do Trabalho que, se tem em sua gênese um conteúdo revolucionário, hoje repassa a atuação para saber se vale a pena mesmo ser aplicado para altos empregados, e não pobres autônomos sem qualquer proteção formal... No outro lado da moeda, quando se fala do tema da flexibilização do Direito do Trabalho como um redimensionamento do sentido e dos sujeitos que devem proteger como se fosse uma grande novidade, ORLANDO GOMES, em artigo publicado na Revista Forense, nos idos de 1953, já falava em uma “reprivatização” do Direito do Trabalho, para tentar compreender e admitir, ainda que de forma renovada, a aplicabilidade da autonomia da vontade, em última instância, da liberdade, no campo negocial individual. 3 A ATUAÇÃO DA JUSTIÇA DO TRABALHO Outro tema que está na ordem do dia é a questão da ampliação da atuação da Justiça do Trabalho. E, mesmo sendo um pensador preocupado com as grandes questões de Direito Material, não se descurou de perceber a importância da atuação social da magistratura trabalhista. Com efeito, afirmou, na sua “Oração de Encerramento do III Congresso de Direito do Trabalho”: A natureza social de todo pensamento humano, refrisada pelos pregoeiros da sociologia do conhecimento, atira sobre os ombros da magistratura do trabalho a responsabilidade de acrescentar velocidade ao ímpeto reformista do Direito do Trabalho, esforçando-se por que lhe não fiquem ocultas as idéias e tendências da geração que está ocupando o seu lugar ao sol. Desde o século passado, VON IHERING advertia aos Juízes de que é o espírito de sua época que lhes põe nas mãos os materiais com que devem reconstruir aturadamente o templo de Themis.3 2 3 GOMES, Orlando. A Crise do direito. São Paulo: Brasil, 1955. p.13-14. Idem. Harengas. Salvador: Fundação Gonçalo Moniz, 1971. p.105-106 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 54 Nesta época de consolidação da reforma do Judiciário, pesa sobre os ombros da magistratura trabalhista a consolidação do conceito de relação de trabalho para efeito de abarcar todas as modalidades de trabalho, garantindo, no caso concreto, a efetivação da cláusula geral de personalidade da Constituição Federal, que é o princípio da dignidade da pessoa humana. Fechar os olhos para esta nova tendência é negar o espírito da época vigente, negando-se à atividade de construção da Justiça no trabalho da Justiça do Trabalho. 4 REFLEXÕES SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉCONTRATUAL Na perspectiva da nova atuação da Justiça do Trabalho, um dos pontos mais visíveis é, sem sombra de dúvida, o reconhecimento, com respaldo na Constituição Federal, pela interpretação do Supremo Tribunal Federal, da competência para processar e julgar reparações por danos materiais e morais, decorrentes da relação de trabalho, inclusive como conseqüência de acidentes de trabalho. Consolidada esta nova perspectiva, temas correlatos surgem no horizonte. Um deles é, sem a menor sombra pálida de dúvida, a questão da reparação de danos decorrente de fase pré e póscontratual. Temas como atos discriminatórios e listas negras, ocorridos em fases anteriores ou posteriores à relação jurídica de direito material contratual trabalhista, têm sido ventilados tanto na doutrina, quando na jurisprudência. E tal modalidade de responsabilização encontra guarida no nosso sistema? Há muito tempo já respondia ORLANDO GOMES, mesmo com base no velho Código Civil brasileiro de 1916: Na linha desse pensamento correto, pode-se afirmar que, a despeito da omissão do nosso Código Civil, o ordenamento jurídico brasileiro aceita o princípio da boa-fé na formação dos contratos como um dos postulados da teoria geral dos contratos que o informa. Tal é a opinião dos doutrinadores mais informados, a começar por VICENTE RÁO na conferência sobre as relações pré-contratuais, que proferiu há cerca de trinta anos. Segundo o entendimento geral, o ordenamento jurídico do país admite a responsabilidade no caso R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 55 de formação frustrada do contrato, respondendo afirmativamente à pergunta sobre a obrigação de indenizar quem sofreu prejuízo por ter confiando no êxito das negociações preliminares ou preparatórias para a conclusão de um contrato4. 5 A NATUREZA DA REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS Uma das grandes dificuldades da jurisprudência trabalhista, na lida destes novos conflitos sob sua jurisdição, é a questão da quantificação das indenizações por danos morais. Em que pese a evidente imprecisão que o tema comporta, muitas das dúvidas suscitadas parece decorrer de uma equivocada conceituação da reparação de danos. Sobre as formas de reparação de danos, ensinava Orlando Gomes: que há reposição natural quando o bem é restituído ao estado em que se encontrava antes do fato danoso. Constitui a mais adequada forma de reparação, mas nem sempre é possível, e muito pelo contrário. Substitui-se por uma prestação pecuniária, de caráter compensatório. Se o autor do dano não pode restabelecer o estado efetivo da coisa que danificou, paga a quantia correspondente a seu valor. É rara a possibilidade da reposição natural. Ordinariamente, pois, a prestação de indenização se apresenta sob a forma de prestação pecuniária, e, às vezes, como objeto de uma dívida de valor. Se bem que a reposição natural seja o modo próprio de reparação do dano, não pode ser imposta ao titular do direito à indenização. Admite-se que prefira receber dinheiro. Compreende-se. Uma coisa danificada, por mais perfeito que seja o conserto, dificilmente voltará ao estado primitivo. A indenização pecuniária poderá ser exigida, concomitantemente com a reposição natural, se esta não satisfizer suficientemente o interesse do credor. Se o devedor quer cumprir a obrigação de indenizar mediante reposição, o credor não pode exigir a substituição de coisa velha, por nova, a menos que o reparo não restabeleça efetivamente o estado anterior. Por outro lado, o devedor não pode ser compelido à restituição in natura, se só for possível mediante gasto desproporcional.”5 4 5 GOMES, Orlando. Pareceres inéditos. Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1998. p.183. Idem. Obrigações. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 51. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 56 E tais idéias, se aplicadas à reparação por danos morais, permitem uma maior liberdade na atuação do magistrado, o que já era lecionado há muito tempo por ORLANDO GOMES, com o habitual brilhantismo, ao afirmar: que esse dano não é propriamente indenizável, visto como indenização significa eliminação do prejuízo e das conseqüências, o que não é possível quando se trata de dano extrapatrimonial. Prefere-se dizer que é compensável. Trata-se de compensação, e não de ressarcimento. Entendida nesses termos a obrigação de quem o produziu, afasta-se a objeção de que o dinheiro não pode ser o equivalente da dor, porque se reconhece que, no caso, exerce outra função dupla, a de expiação, em relação ao culpado, e a de satisfação, em relação à vítima. Contesta-se, porém, que tenha caráter de pena, impugnando-se, pois, sua função expiatória. Diz-se que sua finalidade não é acarretar perda ao patrimônio do culpado, mas, sim, proporcionar vantagem ao ofendido. Admite-se, porém, sem oposição, que o pagamento da soma de dinheiro é um modo de dar satisfação à vítima, que, recebendo-a, pode destiná-la, como diz Von Tuhr, a procurar as satisfações ideais ou materiais que estime convenientes, acalmando o sentimento de vingança inato no homem.6 6 O PAPEL CRIADOR DA JURISPRUDÊNCIA TRABALHISTA Outra visão de vanguarda de ORLANDO GOMES no campo do Direito do Trabalho diz respeito ao papel criador da jurisprudência trabalhista. E esta visão não se limitava ao dissídio coletivo, mas, sim, na invocação da Nesta linha, sempre foi o diagnóstico de ORLANDO GOMES: Maior ainda do que em outros domínios é o papel reservado à jurisprudência na revolução do Direito do Trabalho. Compreendendo lucidamente o seu alcance, quando nos reunimos em Congresso, como êste, concentramos a nossa atenção sobre os problemas do processo, considerado como o instrumento de atuação da vontade do Estado para a realização da justiça social. Muito embora essa vontade esteja declarada no texto de numerosas leis, muito mais está na consciência dos 6 Gomes, Orlando. Obrigações. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p.272. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 57 magistrados. A personalidade do Juiz não pode ser abstraída porque a garantia da justiça depende do seu contexto como divisara ERLICH. O que mais importa é, portanto, que órgão e função se compenetrem” 7 O que é isso, senão o mais puro fundamento ideológico da disciplina ética da terceirização, através da responsabilidade subsidiária construída na Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho? Ou as horas in itinere da Súmula nº 90, que anteciparam, em um evidente e didático exemplo de jurisprudência praeter legem, a previsão legal correspondente? 7 O OLHAR CRÍTICO ÀS INOVAÇÕES LEGISLATIVAS Toda modificação legislativa, seja no campo específico das relações de trabalho, seja em outros ramos do ordenamento jurídico positivo, tem feito transparecer, constantemente, dois arquétipos de correntes de pensamento. A primeira é a que blasfema o novo, como se fosse uma violação de sagrados preceitos imutáveis. Nessa linha, tal qual “trombetas do apocalipse”, propugnam pela piora do sistema, preconizam o fim da civilização como se conhece. Por outro lado, há os deslumbrados com as novidades, que assumem uma postura excludente de não aceitação de qualquer posicionamento crítico em relação aos novéis procedimentos. Quase como uma regra, ambas as linhas de pensamento tendem a se decepcionar ou a esmaecer o seu entusiasmo pelas brumas do tempo, perdendo, muitas vezes, a beleza e a utilidade da inovação, iludidas com visões equivocadas sobre as propostas de modificação. Sobre tal fenômeno no Direito do Trabalho, observou ORLANDO GOMES: O Direito do Trabalho, sendo aquele que sofre maior pressão dos fatos econômicos, como ainda há pouco proclamava Levasseur, em notável ensaio sobre a sua evolução, caracteres e tendências, é, por isso mesmo, o aspecto mais interessante e sugestivo da crise do direito, aquele através do qual os analistas do fenômeno jurídico podem melhor perceber a relatividade e a condicionalidade das regras e instituições jurídicas, refreando entusiamos fáceis, mas também se imunizando contra o derrotismo, para 7 GOMES, Orlando. Harengas. Salvador: Fundação Gonçalo Moniz, 1971. p.105. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 58 não elevar nem rebaixar, por defeito de perspectiva, o nível do Direito e compreender, afinal, que, nas convulsões da crise, há uma nova vida que quer vir à luz. Focalizando as inovações do direito sob um prisma que o revela na sua limitada capacidade de autoregência, não trago uma palavra de desencanto, nem transmito uma impressão pessimista. Mas, o falso otimismo é um estupefaciente de alto teor tóxico. Num mundo de realidades esmagadoras, alimentar ilusões não é perfumá-lo com o incenso da esperança, mas salpicá-lo com a lama do desespero e destruir, nas suas próprias raízes, os suportes emocionais que sustentam a humanidade na sua peregrinação pela História a dentro.8 Encarar as inovações com seriedade e busca da utilidade, sem pessimismo ou deslumbramento. Esta parece ser mais uma lição extraída do pensamento de ORLANDO GOMES. 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Muito mais poderia ser dito. Todavia, as limitações temporais, impostas pelo rigor do protocolo da solenidade, devem ser respeitadas, como sempre o fazia o homenageado, que, pelo testemunho de seus inúmeros ex-alunos, sempre terminava a aula exatamente no horário estabelecido, e, nesta homenagem, isto não poderá ser diferente. Contudo, já é possível se extrair diversas reflexões de como ORLANDO GOMES ERA e É, indubitavelmente, um Mestre do Porvir, um homem à frente de seu tempo, cujas lições podem e devem repercutir ainda por muitos anos, pois pensados para situações que ainda estão por desabrochar... Isto porque a sua preocupação com o cunho funcional do Direito era a tônica que todo “homem de bem” deveria ter nas suas reflexões, principalmente nos momentos em que se vislumbra uma crise na sua aplicação. Em suas próprias palavras: “Por complicado processo de racionalização, condensam-se interesses materiais de grupos sociais. Nas épocas de estabilidade social, quando há unidade de vistas ou interpenetração de filosofias da vida, a condensação produz-se num ambiente tão rarefeito que, 8 GOMES, Orlando. A Crise do direito. São Paulo: Brasil, 1955. p.14. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 59 no contexto dos princípios, não se percebe a secreção desses interesses. Mas a história não é estática. Cada conjuntura gera novas situações, nas suas entranhas, como se o tempo, na sua marcha incansável, estivesse a conceber, continuamente, a sua mesma renovação, sucedendo-se a si próprio, num movimento perpétuo de fenecer e desabrochar. Aos períodos tranqüilos, seguem-se fases agitadas, nas quais, a humanidade parece ter perdido o seu centro de gravidade. Nesses intervalos, que caracterizam as épocas de transição, uma transparência, provocada por novas idéias, deixa entrever, na sua rudeza, o substrato material do Direito. A realidade social subjacente, ferida nos seus pontos vitais, rebela-se, em desespero, contra as formas em que se condensa. E, nessas altitudes a que se guindara, pelo poder da levitação dos ideólogos, instaura-se a crise, projetada para cima, como se um gigantesco esguicho arremessasse para o alto os átomos libertados pela desintegração da estrutura econômica. É nessas frases que o cunho funcional do direito se revela com maior nitidez” 9 A este profeta dos juristas brasileiros, a nossa mais sincera homenagem. 9 GOMES, Orlando. A Crise do direito. São Paulo: Brasil, 1955. p.5-6. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.47-57, jul./dez. 2009 60 61 ALGUNS ARGUMENTOS EM PROL DA IDÉIA DE QUE O TRABALHADOR RURAL QUE RECEBE POR PRODUÇÃO FAZ JUS AO RECEBIMENTO DA PRÓPRIA HORA + ADICIONAL, SE TRABALHAR EM REGIME EXTRAORDINÁRIO Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani* À partida, tendo em vista o tema de que ora se trata, interessante o evocar a seguinte passagem de Ronald Amorim e Souza, verbis: “A conquista da limitação para a jornada de labor foi uma das mais belas páginas da conquista trabalhista.” (1) Daí bem se vê a importância da limitação da jornada de trabalho e os cuidados especiais que com a mesma se há de ter; vale referir, uma outra vez, Ronald Amorim e Souza, que observa: A prática das relações trabalhistas, entretanto, conduziu a uma situação paradoxal. De tão freqüente a utilização da sobre-jornada, criou-se a imagem absurda da hora extra habitual! Se algo é habitual é exatamente porque se tem como corriqueiro, usual, freqüente e, obviamente, não pode ser extra. Nada pode ser, a um só tempo, extra e ordinário! (2) O entendimento majoritário, ao menos na jurisprudência, é no sentido de que, quando o empregado trabalha e é pago por produção, a hora extraordinária encontra-se remunerada com o que recebe a mais, restando, apenas, o pagamento do adicional e reflexos, valendo observar que o empregado remunerado por produção não está excluído da limitação da jornada de trabalho ordinária, contida na Constituição Federal, de 8 horas diárias e 44 semanais, conforme Orientação Jurisprudencial n. 235, da SDI-1, do C. TST. Referido entendimento, no que toca aos trabalhadores rurais, não pode, com a devida vênia, prevalecer, havendo, ao reverso, que considerar devido o pagamento da própria hora + o adicional, e não apenas esse, uma vez que acreditar que a produção a * Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade Mackense (1982), atuou como advogado, de 1982 a 1990. Em 1993, foi promovido a titular por antiguidade, assumindo a Vara do Trabalho de Jaboticabal. Trabalhou também nas VTs de Sertãozinho, 1ª de Jundaí e, ultimamente, na VT de Campo Limpo Paulista. É convocado para substituir no TRT-15 desde 2000. Foi juiz auxiliar da Presidência do Tribunal entre 2002 a 2004. Foi presidente da Amatra XV entre 1997 e 2001. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 62 mais recebida remunera o labor extraordinário, quanto a esses trabalhadores, não se coaduna com a Lei Maior, a par de ignorar o valor dessa conquista e provocar a paradoxal situação acima referidos. E não será, por certo, despiciendo, acrescentar que um tal proceder magoa o princípio da dignidade da pessoa humana, por coisificar o homem que trabalha por produção, no meio rural. Aliás, que esse é o resultado a coisificação do homem que trabalha por produção, no meio rural, não há duvidar, pois a realidade do dia a dia está aí, para comprová-la, basta querer ver, o início das atividades de maneira precoce, com a entrada de meninos/ adolescentes no trabalho desde muito cedo, o que faz, como é natural, que a força de trabalho se esgote também mais cedo, e o que se exige, além do máximo das forças de cada um desses trabalhadores, o que pode parecer contraditório, mas não é, pois o que é incoerente, além de perverso, é querer forçar a natureza e a resistência daqueles que trabalham, deles exigindo o que só a necessidade extrema pode atender, e mesmo assim por um período de tempo apenas, iludindo-os em sua simplicidade, atribuindo-lhes valores que não os beneficiam, mas aos que parecem dar um maior peso aos referidos valores, para, ao fim e ao cabo, não mais se importarem com esse trabalhadores, quando as forças, físicas e morais, tiverem já debilitado-os, tornando esses homens abatidos, desiludidos, não raro carregando pelo corpo marcas de acidentes e intraduzíveis condições de trabalho, e pelo rosto, a desesperança, talvez o mal maior que possa afligir-lhes a existência, quase e em muitos casos efetivamente sub-humana desde pequenos; conquanto não muito reduzida a transcrição infra, nesse comenos impõe-se levá-la a efeito: Dentre as razões da substituição rápida da força de trabalho na cultura da cana-de-açucar, representada pela entrada prematura de jovens no mercado, destaca-se a precoce diminuição de sua produtividade e, por consequência, sua desqualificação como mercadoria. As exigências de intenso dispêndio de força física para corresponder a um teto de salário, concebido por patrões e trabalhadores como patamar médio, transformam estes últimos em peça descartável a partir, aproximadamente, dos 35 anos, Por volta desta idade, dadas as limitações físicas acumuladas, sua produtividade tende a decrescer. O trabalho é desgastante, realizado sob condições adversas, que impõem rápida fadiga do trabalhador. Este limite não é reconhecido pelo serviço de avaliação médica para afastamento remunerado do trabalho. O irreconhecimento do mal-estar dos trabalhadores pelos médicos deixa-os confusos porque expropriados de um diagnóstico e uma explicação. Fazem, então, recair a explicação do mal-estar sobre a consciência de sua debilidade e sobre a desvalorização da sua força R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 63 de trabalho. Resistem sob o temor da ampliação das condições de miserabilidade. Os entrevistados associam o mal-estar recorrentemente sofrido às condições penosas para o exercício laborativo. Ao mesmo tempo, atribuem o aumento do mal-estar à maldade do médico, único juz capaz de, por sua autoridade, contrapor-se à imposição da fadiga pelos patrões; por seu saber, reconhecer o sofrimento físico do trabalhador. Por tudo isto, o único agente capaz de suspender temporariamente a transferência de uma força física vital à reprodução da saúde. Enfim, mesmo aceitando que estas são as condições dadas para trabalhar, os entrevistados reivindicam o direito ao repouso remunerado, vital à recomposição das disposições físicas para o trabalho. De tal modo os trabalhadores são vitimados por doenças e por fadigas não reconhecidas, que a solução que encontram para prolongar a sua capacidade de trabalho é se auto-atribuir o direito ao descanso nãoremunerado. Os empregadores avaliam esta estratégia como preguiça ou desinteresse pela assiduidade. Por isso, compensam e privilegiam os que são assíduos, incutindo, também entre os trabalhadores, o orgulho por este reconhecimento. Os trabalhadores, assim prestigiados, passam a ser missionários da defesa da assiduidade. Incorporam este fato como atributo positivo de sua identidade social, enaltecida ainda pelo cumprimento do papel de provedor da família, mediante sacrifício e coragem de enfrentar tais vicissitudes. (3) A descrição a seguir, feita pela ilustre Juíza do Trabalho Maria da Graça Bonança Barbosa, bem retrata a dramática situação vivida pelos trabalhadores rurais que atuam no corte de cana, dramática, mas bem verdadeira, infelizmente; são suas as seguintes palavras: Como visto, o trabalhador do corte de cana é aquele que trabalha sujeito às mais adversas condições de trabalho, sob o sol e exposto à fumaça e fuligem das queimadas, bem como aos animais peçonhentos e por isso tem que usar roupas pesadas, o que não favorece a ventilação do corpo. Realizam um trabalho que requer grande esforço físico com movimentos repetitivos da coluna, ombros, pernas e braços, despendendo além do tempo da jornada normal e extraordinária, outras horas no trajeto do trabalho, morando em alojamentos fornecidos pelas usinas ou casas simples em que dividem o espaço com outros trabalhadores. Há um outro fator que pode ser apontado como um agravante dessas condições já adversas de trabalho e que está a merecer uma maior reflexão de todos aqueles que se preocupam com o trabalho rural: a forma de remuneração dos cortadores de cana. (4) R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 64 Vale mencionar, ainda, o retrato realizado pela insigne Thereza Cristina Gosdal, assim feito: O trabalho no corte de cana é penoso, envolvendo movimentos constantes e de grande esforço; é mal remunerado e realizado, muitas vezes, com pausa reduzida, de 20 a 30 minutos (porque a pausa significa perda de tempo, em termos de produtividade e remuneração, que é por produção). Compreende comumente jornadas superiores à máxima legal permitida. Desenvolve-se sob o sol, em temperaturas altas e com trajes que cobrem o todo o corpo (com mangas compridas, calças compridas e lenço no rosto e pescoço), para proteção. Não obstante, freqüentemente não há água potável para os trabalhadores no local. Além disso, são comuns situações em que não há banheiro para os empregados, ou há banheiro em más condições. Em muitos casos não há abrigo fixo ou móvel para proteção dos trabalhadores contra intempéries e para guarda e conservação das refeições, como prevê a NR 31. A comida, em geral, fica na bolsa ou mochila e, muitas vezes, estraga-se sob o sol. Não há respeito à privacidade dos trabalhadores, porque são permanentemente vigiados e monitorados pelos fiscais, que controlam e limitam suas conversas e movimentos. Dos trabalhadores se exige, por fim e por ironia, perfeito estado de saúde, já que, se houver sinal de adoecimento, ou apresentação de atestado médico, o trabalhador não mais obtém oportunidade de trabalho na região. (5) Alves descreve o trabalho no corte de cana e o esforço demandado: Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, num eito de 200 metros de comprimento, por 8,5 de largura, caminha durante o dia uma distância de aproximadamente 4.400 metros, despende aproximadamente 20 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 66.666 golpes no dia (considerando uma cana em pé, de primeiro corte, não caída e não enrolada e que tenha uma densidade de 10 canas a cada 30 cm). Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que, a cada 30 cm, abaixar-se e torcer-se para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la em cima. Além disso, ele ainda amontoa vários feixes de cana cortados em uma linha e os transporta até a linha central. Isto significa que ele não apenas anda 4.400 metros por dia, mas transporta, em seus braços, 6 toneladas de cana em montes de peso equivalente a 15 kg, a uma distância que varia de 1,5 a 3 metros. (5) R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 65 Mais: “A ocorrência destes processos coercitivos na região” {Ribeirão Preto} “ foi reiterada em relatório recente da missão realizada pela Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho (Plataforma DHSC). Dentre outros, o relatório menciona as jornadas de trabalho que chegam às 18 horas diárias; a média de 12 toneladas de cana colhidas por dia; os níveis de esforços exigidos para o corte da cana (com a necessidade de desferimento de 9.700 golpes de facão para o corte de 10 toneladas de cana), somados à não reposição adequada dos nutrientes e calorias perdidos no eito, e o não esclarecimento sobre o volume da produção diária do trabalhador. Ainda de acordo com o relatório, as iniciativas destes trabalhadores para levar a público este contexto de exploração são seguidas de ameaças e retaliações por parte das empresas. O contato destes trabalhadores com sindicatos ou órgãos públicos competentes para fiscalização das condições de trabalho é evitado pelas empresas, dificultando sobremaneira não apenas a defesa dos direitos envolvidos nas relações de trabalho no campo, mas também o esclarecimento acerca do real conteúdo das relações que sustentam o corte manual da cana-de-açúcar no estado. Além de propositalmente distanciados dos sindicatos e dos órgãos de fiscalização, estes trabalhadores também são afastados dos contextos rotineiros de sociabilidade das cidades onde residem durante a safra. Uma hierarquia espacial define não apenas fronteiras territoriais, mas também limites aos ambientes passíveis de exercícios das trocas simbólicas nos municípios. Abrigados em favelas ou cortiços afastados, muitos deles situados no interior dos canaviais, estes trabalhadores migrantes são disciplinados no cotidiano do lugar, sendo estigmatizados em seus corpos e em seus bens simbólicos. (6) O quadro é dantesco, e isso sem considerar que o corte de 6 toneladas, em inúmeras situações, não corresponde mais ao que se exige dos trabalhadores no corte de cana, obrigados, bastas vezes, a cortar bem mais do que essa quantidade, como se vê das próprias linhas transatas! Que gravura! Quadro descrito, com cores de lágrimas e dor, mas pintando fielmente a realidade, faz lembrar citação feita pelo grande administrativista do país co-irmão e tão caro a todos nós, a Argentina, Roberto Dromi, a saber: Ghirardi realiza uma classificação dos direitos fundamentais a partir da distinção entre as vertentes biológica e espiritual do homem. Diz: ‘a pessoa é R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 66 racional; por essa característica, ela tem consciência de sua dignidade e se reconhece como sujeito de direito para peticionar legitimamente por essa dignidade. E, como dissemos que a pessoa é um composto, a dignidade assume duas vertentes: a ordem biológica e a espiritual. Por isso, esse ente que chamamos pessoa reconhece como próprios os direitos que formam sua entidade no aspecto biológico, e reclama o direito à vida e à integridade física; e igualmente, na ordem espiritual, reclama o direito à liberdade, à honra e à privacidade’. (7) Do mesmo modo, vale a reprodução de excerto de acórdão do STF, no HC 45.232,GB, Tribunal Pleno, Rel. Min. Themístocles Cavalcanti, J., em 21.02.1968: [...] A vida não é apenas o conjunto de funções que resistem à morte, mas é a afirmação positiva de condições que assegurem ao indivíduo e aos que dele dependem, dos recursos indispensáveis à subsistência [...] (8) Não posso prosseguir, sem mencionar, também, o pensamento da ilustre Juíza e Colega Cinthia Maria da Fonseca Espada, pela excelência do desenvolvimento, de suma importância para o ponto que ora se aborda; diz ela: A incidência do princípio da dignidade da pessoa humana no âmbito do trabalho implica a necessidade de se proteger o trabalhador contra qualquer ato atentatório à sua dignidade, de lhe garantir condições de labor saudáveis e dignas, e também de propiciar e promover a inclusão social. Constata-se, desta forma, que o núcleo do princípio protetor do empregado encontra seu fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, considerandose que a principal finalidade da proteção ao trabalhador é promover a sua dignidade. Nesse passo, embora o propósito do princípio protetor do empregado também seja o de tratar desigualmente os desiguais para promover a igualdade real/substancial entre partes que se encontram em desigualdade de fato (princípio isonômico) em seu núcleo, a principal finalidade do princípio é promover a dignidade do trabalhador. Assim, promover a igualdade real constitui um dos meios de promoção da dignidade do obreiro. (9) Atento aos ensinamentos acima transcritos há que ter como devidas as próprias horas extras prestadas, com o adicional convencional ou, não existindo, o legal, e com os reflexos devidos e postulados, por ficar claro que o pagamento apenas R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 67 do adicional devido, em situações quejandas, provoca todas as nefastas consequências apontadas nas linhas transatas. Importante salientar que a Corte de Justiça do TRT da 15ª Região já placitou esse entendimento, realçando ainda outros aspectos e dispositivos constitucionais: SALÁRIO POR PRODUÇÃO; ADICIONAL DE HORAS EXTRAS; REMUNERAÇÃO DO VALOR DO SALÁRIO NORMAL; POSSIBILIDADE. Hoje em dia já não dá mais para negar que a remuneração com base na produtividade funciona como elemento que se contrapõe àqueles princípios protetivos à saúde e à higidez do trabalhador. A remuneração do trabalho por produção deve ser vista como cláusula draconiana. Seu intuito é exatamente o de constranger o trabalhador a estar sempre prorrogando suas jornadas em troca de algumas migalhas salariais a mais, renda extra essa que, no final, acaba incorporada em seu orçamento mensal, criando, com isso, uma relação de dependência tal qual a da droga ou da bebida. Trocando em miúdos, essa modalidade de remuneração faz do trabalhador rural verdadeiro escravo de sua própria produtividade. Sem perceber, essa sua necessidade em manter constante determinado nível de produtividade já alcançado gera o maior desgaste de sua própria saúde, assim como compromete, aos poucos, sua plena capacidade física para o trabalho num futuro ainda próximo. O que se verifica com isso é a total desregulamentação da forma de remuneração da jornada de trabalho, com uma prejudicial idéia de que todos saem ganhando quando, na verdade, a fatia do prejuízo passa a ser paga por aquele mesmo corpo já demasiadamente cansado e suado. Remunerar o trabalhador apenas com o adicional de horas extras em decorrência de seu trabalho por produção representa típico desrespeito àqueles princípios que visam a proteção à saúde e à integridade física de pessoa humana, valores estes que se constituem em primado constitucional (CF/1988, artigo 7º, incisos XIII e XXII) (Processo TRT/15 – RO 199 – 2005 – 150 – 15 – 00 – 1, Relator Desembargador Gerson Lacerda Pistori). TRABALHADOR RURAL. CORTE DE CANA. ATIVIDADE EXTENUANTE. REMUNERAÇÃO POR PRODUÇÃO. JORNADA EXTRAORDINÁRIA. DESRESPEITO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DOS VALORES SOCIAIS DO TRABALHO. INAPLICABILIDADE DA REGRA GERAL INSERIDA NA OJ Nº 235 DO C. TST. O constituinte, no art. 1º, elegeu a dignidade da pessoa humana, assim como os valores sociais do trabalho, como princípios centrais de todo o ordenamento jurídico, constitucional e infraconstitucional. Assim, a legislação infraconstitucional deve ser interpretada conforme os princípios acima relacionados. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 68 É norma geral de experiência que o trabalhador rural, que se ativa no corte de cana, após extenuante jornada de oito horas, tem a sua capacidade física manifestamente reduzida. Nessas condições de extrema fadiga, alegar que é suficiente a contraprestação no estertor do fôlego do trabalhador mediante singelo adicional extraordinário, colocando inclusive a sua vida em risco (em confronto com o inciso XXII do art. 7º da Carta Magna), é ignorar os princípios constitucionais acima mencionados. Portanto, a regra insculpida na OJ nº 235 do C. TST deve ser interpretada conforme os princípios constitucionais, ou seja, desde que atividade extraordinária não implique demasiado esforço físico. Consequentemente, o cortador de cana tem direito a receber, na jornada extraordinária, a hora acrescida do adicional extraordinário e não apenas este (Processo TRT/15 – RO 00431–20055–120–15–85 – 2, 3ª Turma, 6ª Câmara, Relator Desembargador Samuel Hugo Lima). TRABALHO POR PRODUÇÃO. CORTADOR DE CANA. PENOSIDADE. HORA EXTRAORDINÁRIA CHEIA. O trabalho de corte da cana-de-acúçar, face à sua penosidade, tem propiciado desgaste físico e psíquico do trabalhador de tal monta que, em muitos casos, chegou a levar até a morte por exaustão. Dados apontam que o cortador de cana, atualmente, corta em média cerca de 15 toneladas por dia. E é sabido que o cortador faz um conjunto de movimentos envolvendo torcer o tronco, flexão de joelho e tórax, agachar e carregar peso, sendo certo que, se ele vier a cortar 15 toneladas por dia, efetua aproximadamente 100 mil golpes de facão com cerca de 36 mil flexões de pernas. Ocorre que, dada a forma de remuneração do cortador (por produção) e o ínfimo valor pago por metro de cana cortada, o trabalhador se vê obrigado a laborar muito além do que deveria para auferir um salário mensal razoável. E, para agravar a situação, não se pode desconsiderar que são extremamente ruins as condições em que o trabalho é desenvolvido. Desta forma, sendo induvidoso o fato de que o serviço do cortador de cana enquadra-se como penoso, não se pode deixar sem a proteção devida o trabalhador que presta serviços nestas condições. E, neste contexto, considerando-se que, na Constituição Federal de 1988, os direitos fundamentais foram erigidos à sua máxima importância, sendo que o princípio da dignidade da pessoa humana foi adotado como fundamento da República do Brasil, conforme dispõe o art. 1º, III, da CF/1988, é indiscutível que a autonomia das relações de trabalho encontra limites na preservação da dignidade da pessoa humana. Sendo assim, procurando valorizar o trabalhador e protegêlo, o operador do direito, ao verificar que o sofrimento deste se agiganta diante da penosidade do trabalho, há de ponderar, no exame da postulação, que, para corrigir essa situação, é necessário o deferimento do R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 69 pagamento da hora extraordinária cheia. Recurso nãoprovido neste aspecto. (Processo TRT/15 - RO 00698 - 2008 - 158 - 15 - 00 - 2, 3ª Turma, 5ª Câmara, Relator Desembargador Lorival Ferreira dos Santos). HORAS EXTRAS. TRABALHO POR PRODUÇÃO. RURÍCOLA. DEVIDO O PAGAMENTO DA PRÓPRIA HORA MAIS O RESPECTIVO ADICIONAL E NÃO APENAS ESTE. Quando o empregado trabalha e é pago por produção, se labutar em regime de sobrejornada, há receber a própria hora extra mais o adicional, e não apenas este, já que este proceder não se afina com a Lei Maior e magoa o princípio da dignidade da pessoa humana, por coisificar o homem que trabalha por produção. (Processo TRT/15 - RO 00523 - 2008 042 - 15 - 00 - 1, 3ª Turma, 5ª Câmara, Relator Juiz Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani). RECURSO ORDINÁRIO - SALÁRIO POR PRODUÇÃO - CORTE DE CANA - PAGAMENTO DA HORA E DO ADICIONAL - NR 17. Tanto as horas normais como as extraordinárias prestadas pelo cortador de cana, não podem ser pagas “por produção”, daí por que, no caso, a sobrejornada deve ser remunerada integralmente, não apenas com o adicional. É o que deflui da análise da Norma Regulamentadora nº 17, que veda pagamento por produção para trabalhos que exigem sobrecarga muscular e movimentos repetitivos, como é o corte de cana, que extenua o empregado. De outro lado, é notório que, a cada ano que passa, a “produção/ produtividade” canavieiro aumenta e o preço dos serviços mantém-se ou, até, diminui, o que exige, então, mais trabalho nessa atividade notoriamente penosa e prejudicial à saúde. Essa situação conspira contra o art. 7º, XIII e XVI da Constituição Federal (horas extras somente em serviços extraordinários) e, também, contra os fundamentos do Estado Democrático de direito (dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa) e contra os princípios gerais sobre a Atividade Econômica (art.170) e a Ordem Social (art.193). Recurso não provido. (Processo TRT/15 - RO 02460 - 2007-011-15009, __ Turma, __ Câmara, Relator Desembargador José Pedro de Camargo Rodrigues de Souza). Os arestos acima reproduzidos apanham, em sua essência, a triste realidade a que estão submetidos vários –coloco o acento tônico nesse último vocábulo para deixar claro que não são todos, pois há empregadores que verdadeiramente se preocupam em não deixar seus empregados em tão desumana situação, exigindo-lhes um trabalho extraordinário que suas forças não podem oferecer, após cumprida as suas jornadas normais, já por demais desgastantes, aos quais, por óbvio, apenas encômios hão de ser dirigidos - dos trabalhadores que labutam no meio rural no interior paulista; um trabalho ímpar, realizado pela brilhante socióloga Maria Aparecida de Moraes, desnuda a realidade que se vem de mencionar: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 70 São submetidos (os trabalhadores rurais, os cortadores de cana dos canaviais paulistas) a duro controle durante a jornada de trabalho. São obrigados a cortar em torno de dez toneladas de cana por dia. Caso contrário, podem: perder o emprego no final do mês, ser suspensos, ficar de ‘gancho’ por ordem dos feitores (sic) ou, ainda, ser submetidos à coação moral, chamados de ‘facão de borracha’, ‘borrados’, fracos, vagabundos. A resposta a qualquer tipo de resistência ou greve é a dispensa. Durante o trabalho, são acometidos pela sudorese em virtude das altas temperaturas e do excessivo esforço, pois, para cada tonelada de cana, são obrigados a desferir mil golpes de facão. Muitos sofrem a ‘birola’, as dores provocadas por câimbras. Os salários pagos por produção (R$ 2,5 por tonelada) são insuficientes para lhes garantir alimentação adequada, pois, além dos gastos com aluguéis e transportes dos locais de origem até o interior de São Paulo, são obrigados a remeter parte do que recebem às famílias. As conseqüências desse sistema de exploraçãodominação são: - de 2004 a 2007, ocorreram 21 mortes, supostamente por excesso de esforço durante o trabalho, objeto de investigação do Ministério Público -; minhas pesquisas em nível qualitativo na macroregião de Ribeirão Preto apontam que a vida útil de um cortador de cana é inferior a 15 anos, nível abaixo dos negros em alguns períodos da escravidão. Constatei as seguintes situações de depredação da saúde: desgaste da coluna vertebral, tendinite nos braços e mãos em razão dos esforço repetitivos, doenças nas vias respiratórias causadas pela fuligem da cana, deformações nos pés em razão do uso de ‘sapatões’ e encurtamento das cordas vocais devido à postura curvada do pescoço durante o trabalho. Além dessas constatações empíricas, as informações recentes do INSS para o conjunto do Estado de São Paulo, no período de 1999 a 2005, são: - o total de trabalhadores rurais acidentados por motivo típico nas atividades na cana-de-açucar foi de 39.433; por motivo relacionado ao trajeto, o total correspondeu a 312 ocorrências; quanto às consequências, os números totais para o período são: - assistência médica 1.453 casos; - incapacidade inferior a 15 dias: 30.465 casos: - incapacidade superior a 15 dias: 8.747 casos; incapacidade permanente 408 casos; óbitos: 72 casos. (10) Sem dúvida, horrível o quadro, e isso se não se pensar, o que seria – e é - plenamente válido, conhecendo a realidade brasileira, que esses números não abarcam a totalidade de casos em que os trabalhadores rurais foram acometidos de algum mal... R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 71 A pergunta que logo assoma à mente e ao coração dos que se tocam com um desenho desses, é a de como um ser humano consegue trabalhar assim; e a resposta pode ser encontrada, para além de outros fatores, entre os quais a necessidade - cuja influência sobre o comportamento dos homens é algo que não deve, não pode, em absoluto, ser ignorado, sob pena de chegar, quem assim procede, a conclusões divorciadas da realidade, logo, de todo em todo equivocadas e imprestáveis para sustentar alguma idéia e/ ou posicionamento, relativo a qualquer comportamento humano, que dependa, para uma válida manifestação, de uma liberdade e/ou opção que a necessidade não permite - no que consta de reportagem acerca do consumo de crack pelos trabalhadores rurais, valendo a transcrição de alguns trechos: Os trabalhadores saem de várias cidades do noroeste paulista e embarcam muito cedo rumo às fazendas. A viagem leva até duas horas. No local, se concentra a maior parte da produção de laranja e cana do Brasil. Mas a roça perdeu um pouco da tranquilidade caipira. Mesmo tão longe dos centros urbanos, um mal da cidade avança pelo campo: drogas como a maconha e, principalmente, o crack. ‘A maioria dos trabalhadores usa droga hoje’, afirma um deles. Numa fazenda, nós localizamos um grupo de colhedores de laranja. Entre eles, encontramos trabalhadores que confessam fazer uso da droga durante o serviço. ‘Viro máquina para trabalhar, trabalho até melhor’, afirma um deles. Um homem conta que, dos 45 trabalhadores de um pomar, pelo menos dez usam algum tipo de droga. ‘Nós usamos maconha, pedra’, diz um dos lavradores. A pedra de que ele fala é o crack. [...] ‘O trabalhador hoje do corte da cana ele perde diariamente oito litros de líquido do seu organismo, percorre mais de 12 quilômetros por dia. Então, é um esforço físico de um superatleta com uma contrapartida totalmente inferior. Ele não tem alimentação adequada, não tem descanso adequado para desempenhar essa função e esse desgaste acaba induzindo o trabalhador ao uso da droga’, esclarece Antonio Valério Morillas Júnior, gerente regional do Ministério do Trabalho. (11) A indagação seguinte e que vem com a mesma intensidade é: O Direito, designadamente o Direito do Trabalho, pode aquiescer com uma situação dessas? Justificar-se-ia mesmo a existência de um Direito que nada fizesse para evitar um sucesso tão dramático, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 72 vendo a dignidade de um ser humano ser assim tão impiedosamente vergastada? Justamente o Direito do Trabalho que, como recorda o preclaro juslaborista Ipojucan Demétrius Vecchi, citando o culto Häberle, por conta do movimento trabalhista, “trouxe para o campo da prática jurídica, as especulações filosóficas sobre a idéia de dignidade humana, que é a fonte, o fundamento, dos direitos fundamentais”?(12) Mais: qual a responsabilidade dos operadores do Direito para evitar esse mal? Enfrentando essas questões, à partida cito o preclaro Marco Antonio Azkoul, que, em seu prefácio ao livro de Gisele Ferreira de Araújo, disse, tendo em vista a obra que tinha às mãos: Nesse contexto, revela-nos ser responsabilidade social a proteção dos direitos trabalhistas, principalmente dos operadores do direito que devem potencializálos, sem tergiversar, com vistas à rápida e segura concretização ou efetivação material desses direitos humanos previstos em nossa Carta Magna, como a mais sublime expressão do ideal de justiça. (13) Por mais que seja óbvio, nessa quadra da evolução do pensamento humano – mas considerando que o que é óbvio para um, talvez não o seja tanto para outro! - tenho em que vale a pena pisar e repisar que uma pessoa não tem sua dignidade medida pela sua posição na sociedade, ou, como diz, a insigne Gláucia Correa Retamozo Barcelos Alves: Aquela noção hobbesiana, vista anteriormente, do homem dotado de dignidade entendida como correspondência ao seu status social, fica definitivamente para trás no horizonte da filosofia moral. Kant inaugura a noção de que o ser humano é dotado de dignidade enquanto tal, ou seja, enquanto ser humano – independentemente de sua identidade estatutária, para usar os termos De Singly. (14) Destarte, cumpre envidar todos os esforços para que a dignidade da pessoa do trabalhador submetido a tão reprovável condição de trabalho - e que não é menor da de quem quer que seja - seja respeitada, como deve sê-lo! O impoluto Alexandre dos Santos Cunha, em trabalho que desenvolveu, à certa altura e evocando ensinamentos de um civilista de escol lusitano, entre tantos que lá existem, expôs que: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 73 conforme ressalta Carvalho, ‘se é inconcebível um Direito do Estado sem Estado, é igualmente inconcebível um direito civil sem cives’. Portanto, prossegue, ainda forte no doutrinador português, é evidente que esse reconhecimento do homem como coração do direito civil contemporâneo deve fazer do problema da proteção dos direitos do Homem [...] o problema central desse mesmo direito civil. (15) Esse raciocínio, não se aplicaria, até com mais força ainda, ao e/ou no Direito do Trabalho? A proteção do homem que trabalha como empregado, a preservação da dignidade humana dessa pessoa, não há de ser sua preocupação maior? Não tenho dúvida de que a resposta há de ser prontamente afirmativa! E para tanto, necessário ter em conta que, não raro, o indivíduo, isoladamente, não tem como fazer valer a proteção que o ordenamento jurídico confere à sua dignidade enquanto pessoa humana, de modo que, deixá-la apenas aos seus cuidados, poderia – como pode – implicar numa omissão, velada que seja, mas que, no limite, pode ser tida como uma espécie de cumplicidade, que leve a que seja olimpicamente desrespeitada por aquele que, no caso concreto, tenha mais poder de fazer valer a sua vontade, o que, em seara trabalhista, não é algo nada acadêmico, mas sim bem real, não sendo razoável pensar que o sistema jurídico não tenha e/ou não possa agir para evitar um mal maior; aliás, cumpre ao ordenamento jurídico, se quer, realmente, respeitar a dignidade da pessoa humana, protegê-la devida e eficazmente, aqui, interessante ceder o passo ao preclaro Chaïm Perelman, que oportunamente dilucida: também o Estado, incumbido de proteger esses direitos (direitos humanos, dignidade da pessoa humana) e fazer que se respeitem as ações correlativas, não só é por sua vez obrigado a abster-se de ofender esses direitos, mas tem também a obrigação positiva da manutenção da ordem. Ele tem também a obrigação de criar as condições favoráveis ao respeito à pessoa por parte de todos os que dependem de sua soberania. (16) Um exemplo já clássico de insuficiência da proteção da dignidade humana, quando deixada a cargo de quem não tem como, de per si, fazê-la valer, está no famoso caso que ficou conhecido como o “arremesso de anões”, assim narrado por Nelson Rosenvald: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 74 A municipalidade impediu o divertimento consistente no lançamento de anão sobre um colchão, com base no respeito à dignidade humana, o que colidiu com a própria liberdade de iniciativa do anão – que, inclusive, aliou-se como litisconsorte da casa em que se passava o triste espetáculo - que defendia a sua dignidade individual. Cumpre perceber que a decisão final que interditou o espetáculo como atentatório à dignidade da pessoa humana nada mais acusou do que a prevalência do elemento axiológico básico do ordenamento, que prevalece sobre o titular da personalidade, podendo mesmo em face dele ser tutelado – até mesmo contra a sua vontade -, na precisa visão de Cláudio Godoy”, prossegue o culto autor, reproduzindo ensinamento da não menos ilustre Professora Giselda Hironaka, então afirmando: Em outras palavras, ‘o consentimento do anão ao tratamento degradante a que se submetia lhes pareceu, portanto, juridicamente irrelevante, porque não se pode renunciar à dignidade, porque uma pessoa não pode excluir de, de si mesma, a humanidade. (17). À essa altura, de evocar os ensinamentos de Rizzatto Nunes, que, em notável trecho de obra sua, pergunta: Ou, em outros termos, pode o indivíduo violar a própria dignidade? Por exemplo, se drogando?Tentando se matar? Abandonando-se materialmente? Embebedando-se? enfim, há algo de consciência ética, filosófica e/ou científica na garantia da própria dignidade? (18) Ao que responde o mesmo autor: Temos de dizer que, de fato, como se trata de uma razão jurídica adquirida no decurso da história e nesta tanto a ciência como a filosofia e a ética também se sustentam numa evolução da própria razão humana, a resposta é não. Não pode o indivíduo agir contra a própria dignidade. (18) Lembra o eminente Gustavo Tepedino: a proteção dos direitos humanos não mais pode ser perseguida a contento se confinada no âmbito do direito público, sendo possível mesmo aduzir que as pressões do mercado, especialmente intensas na atividade econômica privada, podem favorecer uma R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 75 conspícua violação à dignidade da pessoa humana, reclamando por isso mesmo um controle social com fundamento nos valores constitucionais. Por outro lado, como acima enunciado, no campo das relações privadas, a usual técnica regulamentar mostra-se avessa à proteção dos direitos humanos, pois que incapaz de abranger todas as hipóteses em que a pessoa humana se encontra a exigir tutela. (19) Enfim, estou em que a dignidade da pessoa humana do trabalhador rural fica agredida quando submetido a trabalho extraordinário, nas condições acima descritas, o que nem deveria ocorrer, mas uma vez acontecendo, devido o pagamento, pelas razões desfiadas nas linhas transatas, da própria hora extra, com o respeitante adicional, e não apenas deste, procedimento esse que encontra arrimo e consistência na Carta Política, como também já demonstrado, até porque, vale salientar: No que tange especificamente à proteção da pessoa humana, mantém-se despercebida, as mais das vezes, pelos civilistas a cláusula geral de tutela fixada pela Constituição, nos arts. 1º, III; 3º, III, e 5º, § 2º. Segundo o art. 1º, nº III, a República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Nos termos do art. 3º, III, constituem-se objetivos fundamentais da República a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Finalmente, pelo art. 5º, § 2º,os direitos e garantias expressos na Constituição (com aplicação imediata, consoante o § 1º) não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Tais preceitos, inseridos como foram no Título I, compõem os princípios fundamentais da República, os quais, segundo a técnica adotada pelo constituinte, precedem, topográfica e interpretativamente, todos os demais capítulos constitucionais. Vale dizer, a Constituição não teria um rol de princípios fundamentais não fosse para, no plano hermenêutico, condicionar e conformar todo o tecido normativo: tanto o corpo constitucional, no mesmo plano hierárquico, bem como o inteiro ordenamento infraconstitucional, com supremacia sobre todas as demais normas jurídicas. Pretendeu, portanto, o constituinte, com a fixação da cláusula geral acima aludida e mediante o estabelecimento de princípios fundamentais introdutórios, definir uma nova ordem pública, da qual não se podem excluir as relações jurídicas privadas, que eleva ao ápice do ordenamento jurídico a tutela R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 76 da pessoa humana, funcionalizando a atividade econômica privada aos valores existenciais e sociais ali definidos. (20). Por derradeiro, não será despiciendo notar que, se há algo que, quando se fala, todos certamente concordam, é com o que disse o ilustre Antonio Lindbergh C. Montenegro, no sentido de que: “Na realidade, a vida não tem preço, refuga mensuração; é um bem inalienável” (21), o que deve valer para todos, igualmente, não podendo ser diferente para o homem que trabalha, duramente, nas condições acima referidas, no corte de cana, mesmo porque, a existência e/ ou execução de um contrato de trabalho, “não pode significar para o trabalhador o comprometimento de seu direito à vida, à integridade física e psíquica, às condições de segurança e higiene do trabalho” (22), o que a todos é defeso olvidar, principalmente os operadores do Direito. REFERÊNCIAS 1 SOUZA, Ronaldo Amorim. Em derredor da jornada de trabalho. In: GALVÃO, Juraci; AZEVEDO, Gelson de (coord.). Estudos de direito do trabalho e processo do trabalho em homenagem a J. L. Ferreira Prunes. São Paulo: LTr, 1998. p.207. 2 ______.______. p.209. 3 NEVES, Delam Pessanha. A perversão do trabalho infantil. Niterói: Intertexto, 1999. p. 131-132. 4 BARBOSA, Maria da Graça Bonança. O salário por produção e as ações coletivas: velha e nova realidade do trabalho rural. Revista da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região, Campinas-SP, n. 2, p. 145, 2009. 5 GOSDAL, Thereza Cristina. Mortes por exaustão no trabalho: uma análise sob a ótica da contratualidade. In: CORTIANO JUNIOR, Eroulths et al. (coord.). Apontamentos críticos para o Direito Civil brasileiro contemporâneo. São Paulo: Juruá, 2007. p. 169-170. 6 SILVA, Maria Aparecida de Moraes et al. Do karoshi no Japão à birôla no Brasil: as faces do trabalho no capitalismo mundializado. Revista NERA, Presidente Prudente, v. 9, n. 8, p. 79-80, jul./dez.2006. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 77 7 DROMI, Roberto. Sistema Jurídico e Valores Administrativos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007. p. 73. 8 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle das normas penais. 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São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 220. 15 CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental do direito civil. In: COSTA, Judith Martins. A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 231. 16 PERELMAN, Chaim. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 401. 17 HIRONAKA, Giselda. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 10-11. 18 NUNES, Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 50. 19 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. São Paulo: Renovar, 2004. p. 73. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 78 20 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. São Paulo: Renovar, 2004. p.74-75. 21 MONTENEGRO, Antonio Lindbergh C. Ressarcimento de danos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 8. ed. 2005. p. 58. 22 GOSDAL, Thereza Cristina. Mortes por exaustão no trabalho: uma análise sob a ótica da contratualidade. In: CORTIANO JUNIOR, Eroulths et al (coord.). Apontamentos críticos para o Direito Civil brasileiro contemporâneo. São Paulo: Juruá, 2007. p.184. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.59-76, jul./dez. 2009 79 O USO DO VÉU ISLÂMICO NOS SETORES PÚBLICO E PRIVADO* Alice Catarina de Souza Pires** A afirmação do laicismo é uma constante na história da França. E nesse contexto discute-se o véu usado pelas mulheres muçulmanas, uma presença significativa na paisagem humana francesa. Ainda recentemente, o Presidente francês enfatizou a proibição da burca, em nome da segurança nacional. Eis aí a atualidade do tema de que trato no presente artigo, originalmente escrito em francês, como contribuição discente no curso de mestrado na Faculdade de Direito da Universidade de Paris. O debate sobre a licitude do uso do véu islâmico (o famoso hijab), principalmente nos estabelecimentos escolares, se estende às relações de trabalho. A liberdade religiosa foi proclamada, primeiramente, como uma liberdade pública oponível ao Estado pelo cidadão. Posteriormente, em textos relativamente recentes, ela foi garantida ao empregado face ao seu empregador. No plano das liberdades públicas, a liberdade religiosa é reconhecida desde a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, segundo a qual “ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei” (art. 10º). A proibição de discriminações entre os cidadãos pelas suas convicções religiosas também está no Preâmbulo da Constituição Francesa de 1946: “Todo ser humano, sem distinção de raça, de religião, nem de crença, possui direitos inalienáveis e sagrados”1. E a Constituição de 1958 inclui que “A República respeita todas as crenças”2. No plano das relações de trabalho, foi mais recentemente que o legislador se interessou pela garantia da liberdade de opinião e de consciência do trabalhador. O Relatório Auroux de 1982 afirma que “As liberdades públicas, aplicáveis a todo cidadão, devem entrar na empresa, nos limites compatíveis com as necessidades * Le port du foulard dans le secteur public et dans le secteur privé. Juíza do Trabalho da 5ª Região; mestre em Direito Social pela Université PanthéonAssas/Paris 2. 1 “Tout être humain, sans distinction de race, de religion, ni de croyance, possède des droits inaliénables et sacrés”. 2 “La Republique respecte toutes les croyances”. ** R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.77-86, jul./dez. 2009 80 da produção” 3. E a Lei de 4 de outubro do mesmo ano (artigos L.122-35 e L.122-45 do Código do Trabalho), aplicando este mesmo entendimento a propósito do regulamento interno e das sanções disciplinares estabelece que “O regulamento interno não pode conter disposições que prejudiquem os empregados no seu emprego, nem no seu trabalho em razão [...] de suas opiniões ou confissões, e nenhum empregado pode ser sancionado ou despedido em razão [...] de suas convicções religiosas” 4. Entretanto, como toda liberdade pública, a liberdade religiosa pode ser limitada pelo Estado, em nome do princípio da laicidade (princípio de valor constitucional desde 1946 e retomado pela Constituição de 1958). Esse princípio contém a exigência da neutralidade do Estado e, consequentemente, da neutralidade do serviço público. E mais, é preciso que a Administração, submetida ao Poder Público, não apenas garanta essa neutralidade, mas demonstre essa característica por sinais exteriores, a fim de que os usuários não duvidem da sua neutralidade. É exatamente isso que o Conseil d´État chama de ‘dever de estrita neutralidade’, que se impõe a todo agente que colabora com o serviço público.5 Assim, toda manifestação de convicções religiosas no campo do serviço público é proibida e o uso de símbolos religiosos, entre os quais o véu islâmico, também o é, mesmo que os agentes não trabalhem em contato direto com o público. Desta forma, a Lei de 15 de março de 20046, que regula o uso de símbolos religiosos nas escolas públicas, apenas confirma a proibição, já existente, a cada agente público de ostentar as suas crenças. Mas a missão do serviço público é diferente dos encargos das empresas. Enquanto na função pública os agentes devem respeitar o princípio da neutralidade (Parte I), os empregados de empresas privadas não estão submetidos a esta obrigação (Parte II). 3 4 5 6 “les libertés publiques, applicables à tout citoyen, doivent entrer dans l´entrepreise, dans les limites compatibles avec les contraintes de la production”. Le règlement intérieur ne peut comporter des dispositions lésant les salariés dans leur emploi et leur travail en raison [...] de leurs opinions ou confessions, et aucun salarié ne peut être sanctionné ou licencié en raison [...]de ses convictions religieuses”. Conseil d´Etat, 3 mai 1950 et l´avis contentieux du 3 mai 2000. Loi encadrant , en application du principe de laicité, le port des signes ou de tenues manifestant une appartenance religieuse dans les écoles, collèges et lycées publics. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.77-86, jul./dez. 2009 81 PARTE I: O USO DO VÉU NO SERVIÇO PÚBLICO No âmbito do serviço público, enquanto os usuários têm, em princípio, o direito de usar um símbolo ou uma roupa destinada a manifestar a adesão a uma determinada religião, notadamente o véu islâmico (Capítulo 2), essa possibilidade está fechada para os agentes públicos quando no serviço (Capítulo 1). CAPÍTULO 1: UMA PROIBIÇÃO PARA FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS A jurisprudência do Conseil d´Etat reconheceu o valor constitucional da liberdade de consciência e da liberdade de manifestar as próprias convicções religiosas. Com efeito, em sua decisão datada de 3 de maio de 2000, no caso conhecido como Demoiselle Marteaux, o Conseil d´Etat reconheceu expressamente a liberdade de consciência aos agentes públicos. Assim como todos os cidadãos, os funcionários têm liberdade de manifestar e expressar as suas convicções religiosas, mas não obstante, o princípio da laicidade proíbe a expressão e a manifestação dessas convicções no serviço. Na citada decisão Demoiselle Marteaux, o Conseil d´Etat enuncia esse princípio em termos genéricos, à ocasião de um julgamento relativo ao uso do véu islâmico por uma senhora que trabalhava como fiscal de alunos interina, in verbis: “Apesar dos funcionários do setor de ensino beneficiarem, como todos os agentes públicos, da liberdade de consciência, que proíbe qualquer discriminação fundada na religião, tanto no acesso às funções como no desenvolvimento da carreira, o princípio da laicidade impede que eles disponham, no serviço, do direito de manifestar as suas crenças religiosas” 7. E nessa mesma decisão o Conseil d´Etat vai além e estabelece que “Não se deve distinguir os funcionários que exercem ou não funções de ensino” 8. 7 8 “Si les agents du service de l´enseignement bénéficient comme tous les agents publics de la liberté de conscience qui interdit toute discrimination dans l´accès aux fonctions comme dans le déroulement de la carrière qui serait fondée sur leur religion, le principe de läicité fait obstacle à ce qu´ils disposent, dans le cadre du service public, du droit de manifester leurs croyances religieuses”. “Il n´y a pas lieu d´établir une distinction entre les agentes de ce service public selon qu´ils sont ou non chargés de fonctions d´enseignement”. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.77-86, jul./dez. 2009 82 O entendimento formado no caso Demoiselle Marteaux foi aplicado posteriormente pelo Tribunal Administrativo de Paris, que, em um julgamento que não envolvia o ensino público 9, reafirmou a proibição para o funcionário público de exprimir e manifestar suas convicções religiosas. Nesse processo, Madame E., assistente social em um centro médico da cidade de Nanterre, titular de um contrato de direito público e por tempo determinado, contestou a determinação do seu empregador de não renovar o seu contrato, em razão da recusa da requerente em retirar o véu que portava. No caso, alguns pacientes do centro fizeram queixas relacionadas com a questão, e a funcionária manteve a decisão apesar das advertências recebidas por parte de seus superiores e dos requerimentos formulados pelos conselhos amigáveis formados pelos seus colegas de trabalho. Diante dos fatos, o Tribunal decidiu que mesmo que os funcionários públicos beneficiem, como qualquer cidadão, da liberdade de consciência e de religião, prevista pelos textos constitucionais, convencionais e legislativos, os princípios da laicidade do Estado e da neutralidade do serviço público impedem que esses agentes disponham, no exercício de suas funções, do direito de manifestar suas crenças religiosas, principalmente através de uma exteriorização indumentária. Esses princípios, que visam a proteger os usuários do serviço de todo risco de influência ou de insulto a sua própria liberdade de consciência, concernem todos os setores do serviço público e não apenas o do ensino. Essa obrigação deve ser aplicada com maior rigor nos setores em que os usuários do serviço público se encontram em um estado de fragilidade ou de dependência. A decisão no caso Demoiselle Marteaux enunciou também o princípio segundo o qual o fato de um agente do ensino público manifestar, no exercício de suas funções, suas crenças religiosas, principalmente utilizando um símbolo religioso, constitui uma falta a suas obrigações. Como dito, apenas os agentes da Educação Nacional foram mencionados, mas o princípio tem vocação a englobar todos os funcionários públicos. Em julgamento pronunciado no dia 8 de julho de 2003, o Tribunal Administrativo de Lyon considerou legais as medidas disciplinares tomadas com relação a uma funcionária que usava o véu islâmico durante o serviço. O Tribunal ressalta que o fato de um funcionário se recusar a obedecer as reiteradas ordens de seus superiores hierárquicos e transgredir deliberadamente o princípio 9 Jugement daté du 17 octobre 2002. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.77-86, jul./dez. 2009 83 da laicidade, pelo uso, no serviço, de uma roupa exprimindo de maneira ostentatória a sua devoção a um determinado culto, constitui uma falta de particular gravidade. No caso, Sra. Nadjet Ben A... exerce a função de inspetora do trabalho na subdivisão de Lyon e desde 8 de outubro de 2001 ela usa o véu islâmico. Seu superior hierárquico pediu, várias vezes, que ela usasse outro tipo de vestimenta. Como ela se recusou, foi advertida e, em seguida, suspensa por quinze dias. A Administração justificou a medida disciplinar alegando que o comportamento da Sra. Nadjet Ben A. violou a laicidade e a neutralidade do Estado. Neste processo, o Tribunal Administrativo de Lyon não apenas entendeu que a medida disciplinar tomada foi legítima, como também respondeu a uma nova questão, a respeito da aplicação da Lei nº. 2002-1062 de 6 de agosto de 2002. Para o tribunal administrativo, a falta resultante do uso do véu islâmico por uma funcionária, apesar dos protestos do seu superior hierárquico, não pode ser anistiada. Com efeito, a referida lei de 6 de agosto de 2002 exclui do benefício da anistia “os fatos que constituem infrações à honra, à probidade e aos bons costumes” 10. E para o Tribunal Administrativo de Lyon, a conduta imputada à Sra. Nadjet Ben A. constitui uma falta à “honra profissional” 11 . CAPÍTULO 2:UMA FACULDADE PARA OS USUÁRIOS DO SERVIÇO PÚBLICO A jurisprudência faz uma distinção com relação aos usuários do serviço público, estatuindo que eles têm, em princípio, o direito de usar símbolos religiosos. Foi nesse sentido que o Conseil d´Etat decidiu no processo de 20 de maio de 1996 sobre a questão do uso do véu islâmico por alunas de escolas públicas. Entendeu o tribunal que nos estabelecimentos escolares o uso pelos alunos de símbolos religiosos não é, por si só, incompatível com o princípio da laicidade, na medida em que se enquadra no exercício da liberdade de expressão e de manifestação das crenças religiosas. Entretanto, prossegue aquele colegiado, essa liberdade não permite que os alunos usem símbolos que, por sua natureza, pelo modo como são usados, ou pelo seu caráter ostentatório ou reivindicativo, constituam um ato de pressão, provocação, 10 “les faits constituant des manquements à l´honneur, à la probité et aux bonnes moeurs”. 11 “l´honneur professionnel”. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.77-86, jul./dez. 2009 84 proselitismo ou de propaganda. Da mesma forma, entende o Conseil d´Etat, não podem ser aceitos símbolos religiosos que atentem contra a dignidade ou a liberdade dos alunos e de outros membros da comunidade educacional, comprometendo a sua saúde, segurança ou atrapalhando o desenvolvimento das atividades de ensino e o papel educativo dos professores, enfim, que perturbem a ordem no estabelecimento ou o normal funcionamento do serviço público. PARTE II: O USO DO VÉU NO SETOR PRIVADO A aplicação do princípio da liberdade ao uso do véu tem uma conotação específica no setor privado (Capítulo 1) e as restrições que lhe podem ser impostas incidem sobre o próprio contrato de trabalho (Capítulo 2). CAPÍTULO 1:LIBERDADE E USO DO VÉU O uso do véu por uma trabalhadora pode ser encarado como o exercício de duas liberdades: a liberdade “vestimentar” e a liberdade religiosa. No acórdão de 28 de maio de 2003, em processo conhecido como ‘o caso da bermuda’, a Chambre Sociale afirmou que “a liberdade de se vestir ao seu gosto ao tempo e no local de trabalho não se insere na categoria das liberdades fundamentais”12. Fazendo uma distinção entre as liberdades e excluindo a escolha das suas vestimentas do grupo das liberdades fundamentais, a Cour de Cassation faz uma hierarquia das liberdades, o que traz certas conseqüências. Primeiro, isso parece indicar que se deve ser mais severo em admitir restrições a uma liberdade fundamental do que a uma liberdade que não pode ser considerada como tal. Em segundo lugar, porque uma vez relegada ao rol das liberdades ordinárias, o desrespeito à liberdade de se vestir ao seu gosto não pode ser sancionado com a nulidade, reservada à violação das liberdades fundamentais. Assim sendo, o que se deduz dessa decisão é que um mesmo dispositivo (art. L. 120-2 do Código do Trabalho Francês) pode ser sancionado diferentemente, dependendo da categoria da liberdade que se quer proteger. A referida decisão contribuiu também para o reconhecimento do poder do empregador sobre as vestimentas dos seus empregados. E, de acordo com a jurisprudência, a restrição à liberdade de se vestir 12 La liberté de se vêtir a sa guise au temps et au lieu de travail n´entre pas dans la catégorie des libertés fondamentales. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.77-86, jul./dez. 2009 85 ao seu modo só é legítima quando a roupa apresenta um caráter anormal. É o caso tratado no acórdão de 6 de novembro de 2001, no qual a Cour de Cassation considerou que a decisão do patrão de proibir uma empregada de se apresentar no trabalho com o soutien à mostra era justificável. Ocorre que a questão do uso do véu não se limita à liberdade de se vestir, sendo uma extensão de uma liberdade fundamental: a liberdade religiosa. Mas a qualificação da liberdade religiosa como uma liberdade fundamental não dispensa a busca pela conciliação entre esse direito e a subordinação jurídica. Assim, no processo envolvendo um trabalhador muçulmano empregado de um açougue, que se recusava a entrar em contato com a carne de porco, a Cour de Cassation entendeu que, salvo cláusula expressa, as convicções religiosas do empregado não podem interferir no contrato de trabalho e o empregador não comete nenhuma falta ao exigir do empregado que ele execute a tarefa para a qual fora contratado, desde, é claro, que esta não contrarie qualquer disposição de ordem pública. O compromisso do trabalhador de executar o serviço objeto do contrato prevalece sobre os seus preceitos religiosos. Esse princípio colocado pela Chambre Sociale é suscetível de várias aplicações. Assim, um empregado não poderia, por exemplo, invocando suas convicções religiosas, suspender o seu trabalho para cumprir suas obrigações rituais de oração em determinadas horas, ou porque a sua religião o proíbe de trabalhar em certos dias. Mas, o que dizer sobre o véu islâmico que, geralmente, não constitui um obstáculo direto à boa execução do trabalho ligado à natureza do serviço a ser realizado? Com relação ao véu islâmico, geralmente o que motiva as restrições impostas pelo empregador à liberdade da empregada não é a execução em si do trabalho, mas a preocupação em não comprometer a imagem que ele quer atribuir à empresa. Para proibir o uso do hijab, os empregadores procuram uma justificativa nas reações, supostas ou reais, dos clientes da empresa que entram em contrato com as empregadas usuárias do véu. E essa apreciação feita pelos empregadores do interesse da empresa como justificativa para as restrições feitas à liberdade das trabalhadoras tem sido aceita pelos tribunais franceses. Assim é que o Tribunal de Paris admitiu que um empresário que explora um centro comercial no bairro de La Défense exigisse que uma vendedora, em contato com um largo público com convicções variadas, deixasse de usar o véu muçulmano.13 13 Paris, 16 mars 2001. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.77-86, jul./dez. 2009 86 Mas, como dito anteriormente, as restrições feitas pelo empregador à liberdade religiosa da empregada, proibindo-lhe o uso do véu, interfere diretamente no contrato de trabalho. CAPÍTULO 2:RESTRIÇÕES AO USO DO VÉU E SEUS EFEITOS PARA O CONTRATO DE TRABALHO Os efeitos dessas restrições podem ser constatados tanto antes do contrato, como durante a sua execução. De acordo com o disposto no artigo L. 122-4 do Código do Trabalho francês, o empregador que recusar contratar uma trabalhadora usuária do véu deve provar que a sua decisão foi tomada com base em elementos objetivos estranhos a qualquer discriminação. Assim é que na região de Champagne, uma mulher portando o lenço se apresentou aos viticultores para trabalhar na colheita das uvas. À vista do lenço que ela portava, os proprietários decidiram não contratá-la, alegando que o véu chocava os outros trabalhadores. O Tribunal Correcional 14 declarou não culpados os viticultores e afirmou que o fato de exigirem a retirada do véu como condição para a contratação da empregada não poderia ser considerado como um comportamento discriminatório relacionado à crença religiosa da assalariada. O Conseil de Prud´hommes da mesma cidade , porém, tinha sobre o caso uma opinião diferente. Para os juízes do trabalho, como nenhum embaraço foi provado, a insistência da trabalhadora em usar o véu não poderia ser considerada como um motivo válido para a ruptura da promessa de emprego. Uma outra questão que se coloca é a de saber se o empregador que contratou uma empregada que portava ostensivamente o véu islâmico pode, em seguida, proibi-la de usar o véu. A decisão proferida pelo Conseil de Prud´hommes de Paris em 17 de dezembro de 2002 mostra que o tribunal levou em consideração a apresentação da trabalhadora para a entrevista de emprego. Nessa decisão o tribunal parece estabelecer uma correlação entre o fato de o empregador não levar em consideração as manifestações das convicções religiosas da empregada no momento da contratação e o seu direito de restringir essas mesmas manifestações quando da execução do contrato. Nessa decisão, o tribunal considerou nula a despedida de uma empregada que se recusava a tirar o véu durante o trabalho, uma vez que ela se apresentou com o véu na entrevista de emprego, o que leva 14 Tribunal que integra a jurisdição penal francesa R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.77-86, jul./dez. 2009 87 a crer que o empregador não considerou que a aparência física da empregada denotando as suas convicções religiosas pudesse acarretar dificuldades para a empresa. Em contrapartida, se a restrição ao uso do véu islâmico durante o trabalho for justificada pela natureza do serviço a ser realizado e proporcional ao objeto do contrato, a empregada comete falta grave ao se recusar a obedecer às ordens referentes à restrição dessa liberdade. De acordo com a jurisprudência dominante, uma despedida fundada na recusa da empregada muçulmana de se curvar às determinações do empregador com relação ao uso do véu só é considerada lícita se for justificada pela gravidade do embaraço que esse modo de expressão da fé religiosa pode causar à atividade da empresa. E nesses casos, a justificativa da despedida sendo exclusivamente a situação da empresa, a hipótese escapa à classificação do direito positivo que prevê apenas despedidas por motivo pessoal ou econômico. Tratase, pois, de um motivo não inerente à pessoa do trabalhador, mas também não econômico. A questão aqui é a articulação entre poder e liberdade que, seja ao nível do Poder Público, seja ao nível das empresas, ainda continua suscitando discussões. REFERÊNCIAS C. Prud. Rouen, 30 août 2001, RJS, 11/2001, nº. 1252. C.E. 20 mai 1996, A.J.D.A. 1996. p. 709 C.E. avis 3 mais 2000, Demoiselle Marteaux, A.J.D.A. 2000. p. 673 CA Paris, 16 mars 2001, RJS, 11/2001, nº 1252 Cass. 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Apesar de existir tal expressa disposição legal, há posicionamento doutrinário e jurisprudencial defendendo a aplicação do prazo de cinco dias, previsto pelo art. 884 da CLT, para o mencionado instituto processual. É o que se depreende da seguinte lição doutrinária: O prazo para embargos tem início na data da arrematação, adjudicação ou remissão (sic!) somente se o terceiro tomou ciência da apreensão judicial do bem por ocasião da realização de um desses atos processuais. Se o terceiro tomou ciência da apreensão do bem no dia de sua realização, é a partir da apreensão que começa a fluir o prazo para oposição de * ** 1 Doutorando e Mestre pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito Processual pela Universidade Salvador (UNIFACS). Professor na Faculdade de Direito da UNIFACS e da Faculdade Baiana de Direito, e dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Processual Civil da Fundação Faculdade de Direito da UFBA, da UNIFACS, da Universidade Católica do Salvador (UCSal), do Centro de Cultura Jurídica da Bahia (CCJB) e da Faculdade Baiana de Direito. Advogado em Salvador, Bahia. Contato pelo e-mail: [email protected] Acadêmico em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa, em Salvador, Bahia. Contato pelo e-mail: [email protected] Observamos que a Lei 11.382/2006 reformou o CPC no que tange às modalidades expropriatórias na execução, entre outros aspectos. Neste passo, extinguiu o instituto processual da remição da execução, anteriormente previsto entre os arts. 787 e 790 do CPC. Atualmente, a expropriação executiva pode dar-se pela adjudicação (arts. 685-A e 685-B do CPC), pela alienação/aquisição por iniciativa particular (art. 685-C do CPC) ou pela alienação/arrematação em hasta pública (arts. 686 a 707 do CPC). De uma maneira ou de outra, a idéia central do art. 1.048 é que o prazo seja contado a partir do ato expropriatório, em qualquer uma de suas modalidades. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 90 embargos de terceiro. Se o terceiro, ciente da penhora, aguarda a arrematação, adjudicação ou remissão para oposição de embargos, estes deverão ser rejeitados, por intempestivos (ALMEIDA, 2006, p. 953) Há alguns julgados no mesmo sentido: AGRAVO DE PETIÇÃO DA TERCEIRA EMBARGANTE. INTEMPESTIVIDADE DOS EMBARGOS DE TERCEIRO. A terceira-embargante tomou ciência da penhora do bem do qual alega se proprietária parcial na ação principal em 10.09.02, somente ajuizando a ação de embargos de terceiro em 20.01.05, a destempo, portanto, na medida em que o prazo previsto no art. 1.048 do CPC pressupõe que o terceiro não tenha tido ciência anterior da constrição judicial por ele embargada. (TRT 4ª Região – 2ª Turma – Relatora: Juíza Denise Pacheco. Proc. 00041-2005-351-04-00-4 AP. Publicação em 19/10/2005). Penhora sobre bens de terceiro. Prazo para ajuizamento de embargos. Art. 884 da CLT. A teor do disposto no art. 884 da CLT, se o terceiro interessado tomou conhecimento da penhora havida sobre seus bens no dia em que foi efetuada, tendo sido, inclusive, nomeado fiel depositário, o prazo de 05 dias par apresentação de seus embargos à penhora, ainda que na condição de terceiro, começa a fluir daquele ato, e não a partir da arrematação, adjudicação ou remissão (sic!), como previsto no art. 1.048 do CPC, regra esta aplicável apenas aos casos em que o terceiro prejudicado toma ciência da constrição judicial após a realização da hasta pública (TRT 3ª Região – 1ª Turma – Relator: Juiz Marcus Moura Ferreira. Proc. 00335-2002-11203-00-0 AP. Publicação em 11/10/2002). Como se vê, a lição doutrinária e os julgados acima transcritos afirmam que o prazo do art. 1.048 do CPC aplica-se somente quando o terceiro tomar ciência da contrição no momento da prática do ato expropriatório. Do contrário, incidiria o prazo dos embargos à execução, estipulado pelo art. 884, Consolidado. Há, de outro lado, juristas e julgadores que interpretam o art. 1.048 na sua literalidade, como se depreende das seguintes transcrições: EMBARGOS DE TERCEIRO. PRAZO. O prazo para interposição de embargos de terceiro, no processo de execução, é de cinco dias depois da arrematação, adjudicação ou remição, mas sempre antes da respectiva carta. Inteligência do art. 1048, do CPC, de aplicação subsidiária ao processo trabalhista. Não comprovando o agravante a tempestividade dos R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 91 embargos de terceiro opostos, há de ser mantida a sentença que não os conheceu por intempestividade. Agravo de petição improvido. (TRT 6ª Região – 1ª Turma – Proc. 00475-2002-012-06-00-3 – Juiz Relator: Valdir José Silva de Carvalho) EMBARGOS DE TERCEIRO - PRAZO - A lei processual civil permite ao terceiro opor embargos na fase de execução. Todavia, há de ser observado o prazo de até 05 (cinco) dias da arrematação ou adjudicação do bem objeto da penhora e sempre antes da assinatura da respectiva carta de sentença para oposição de tal medida”. (TRT 3ª Região. – 7ª Turma – Proc. 006402006-029-03-00-9 AP – Relatora: Desembargadora Maria Perpétua Capanema F. de Melo. Publicação em 02/11/2006) Pendendo tal querela em sede doutrinária e jurisprudencial, procederemos à análise dos Embargos de Terceiro, examinando a natureza do instituto e contrapondo-a à dos embargos à execução, para chegar a uma conclusão sobre a possibilidade de aplicar o prazo previsto pelo art. 1.048 do CPC ou aquele a que alude o art. 884 da CLT para a defesa do terceiro na execução trabalhista. 2 NATUREZA JURÍDICA E OBJETO DOS EMBARGOS DE TERCEIRO Dentre os inúmeros atos de ameaça, turbação ou esbulho possessório que podem recair sobre uma determinada coisa, é possível que eles se originem de ato de particular ou do Estado. No âmbito deste último, a ofensa à posse pode decorrer da atividade administrativa ou da judicial, no curso de um processo jurisdicional, em que se deve oportunizar o contraditório e a ampla defesa. Neste passo, o ordenamento jurídico prevê a existência de ações possessórias em seu sentido mais amplo, assim consideradas como aquelas que versam sobre a posse sob algum aspecto, seja ela considerada como a causa de pedir ou como o pedido2. 2 Neste sentido explica Joel Figueira Dias (1997, p. 66): “(...) o interdito, a manutenção e a reintegração, cujas respectivas tutelas encontram sua verdadeira razão de existência nas relações eminentemente fático-potestativas, tendo sempre em consideração a causa de pedir - os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido (o ius possessionis) (...) Não se pode negar que outros remédios judiciais, tais como o reinvidicatório (art. 524, CCb), a nunciação de obra nova (art. 554, 555, 573, 582, 586, 623, I, e 628, todos os CCb, e art. 934, do CPCb), os embargos de terceiro (art. 1046, do CPCb), a ação de depósito (art. 1.266, 1.267 e 1.275, do CCb, e art. 901, do CPCb), a imissão de posse (art. 524, do CCb), têm por escopo também, mas de forma transversa, a proteção da situação fática possessória. Todavia essas ações não se revestem de natureza eminentemente interdital, seja por que o pedido fundamenta-se no direto de propriedade ou no direito obrigacional de devolução da coisa, ou na proteção contra atos judiciais de constrição (...)” R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 92 Neste enquadramento está a ação de imissão na posse, na qual o autor alega ser proprietário do bem (causa de pedir), buscando a entrega da posse (pedido). Existem, de outro lado, as ações possessórias em sentido estrito, cuja regulamentação encontra-se entre os arts. 920 e 933 do CPC e que se caracterizam por seu caráter exclusivamente possessório, na medida em que tanto a causa de pedir como o pedido versam sobre a posse, não sendo relevante a discussão da propriedade para a procedência do pleito. Isto é, litiga-se pela entrega da posse com base no direito de posse3. Tanto é assim que o art. 923 do CPC veda a discussão dominial na pendência do processo possessório. É o que acontece na demanda movida pelo locatário contra o locador, em que este, embora proprietário, pode não ter o direito à posse direta, alienada por meio do contrato de locação àquele. Neste panorama, as ações possessórias servem à proteção contra os atos de ameaça, turbação ou esbulho possessórios praticados por particulares4 ou pelo Estado-administração5. Se, de outro lado, o ato de ameaça ou violação à posse emana do Judiciário no regular exercício da sua função precípua (como nos casos de penhora, depósito, arresto, seqüestro, alienação judicial, arrecadação, arrolamento, inventário ou partilha), o remédio cabível para a sua defesa serão os embargos de terceiro, previstos pelos arts. 1.046 a 1.054 do CPC6. É importante evidenciar que a querela sobre a (i) legalidade do ato constritivo judicial não consiste no objeto principal de uma demanda. Via de regra, trata-se de questão incidente, que ocorre como uma sua conseqüência. Assim, não há espaço no procedimento para a dilação acerca da regularidade da prática de tal ato. Deve-se reservar-lhe um outro iter, voltado especificamente para a verificação das circunstâncias em que ele 3 4 5 6 Neste sentido, explica Antonio Carlos Marcato (2008, p. 152): “Importa, pois, para a concessão da tutela adequada a que alude o art. 920 do CPC, que a causa de pedir seja, genericamente, a ofensa ao direito de posse do autor e, ainda, que este tenha postulado a concessão de tutela possessória”. É o que ensina Antonio Carlos Marcato (2008, p. 261): “(...) se a posse foi ofendida por ato de outro particular, os embargos de terceiro são inadequados para a solução do litígio, restando ao prejudicado ajuizar ação possessória”. Neste sentido: Araken de Assis (2007, p. 1194). Valemo-nos mais uma vez da lição de Antonio Carlos Marcato (2008, p. 261) sobre o tema: “Conforme já acentuado, terceiro que não seja responsável pelo cumprimento da obrigação e totalmente estranho ao processo poderá, ainda assim, ter bem ou direito seu submetido à constrição judicial, devendo valer-se, para liberá-los, da ação de embargos de terceiro”. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 93 foi praticado, até porque pode ter ofendido direito de terceiro, isto é, de alguém que não figure como parte no processo, sendo necessário oportunizar-lhe o contraditório e a ampla defesa, corolários que são do devido processo legal, positivados pelo art. 5º, LIV e LV, da CF/88. Mesmo que a constrição recaia sobre bem de quem, “posto figure no processo, defende bens que, pelo título de sua aquisição ou pela qualidade em que os possuir, não podem ser atingidos pela apreensão judicial” (art. 1.046, § 2º, do CPC)7, há de se garantir o exercício daqueles direitos resguardados em âmbito constitucional para o debate específico acerca da posse. Vê-se, pois, não ser relevante que a constrição recaia sobre bem de terceiro ou da própria parte processual para que os embargos de terceiro sejam manejados. Importa, sim, que se queira discutir o ato e que ele não seja o objeto principal do processo. Não o sendo, não há como desenvolver uma instrução para tal fim dentro do próprio procedimento já instalado, sob pena de tumultuá-lo. Neste passo, a doutrina define a natureza dos embargos de terceiro como uma “ação de conhecimento, de caráter possessório, geradora de processo autônomo, cujo objetivo único é o de livrar o bem de terceiro de atos indevidos de apreensão judicial” (WAMBIER; ALMEIDA; TALAMINI, 2008, p. 435). Nesta mesma esteira, Araken de Assis (2007, p. 11931194) advoga a natureza possessória da demanda. Trata-se, portanto, de meio processual adequado à tutela da posse violada por ordem emanada de processo judicial8, com natureza de ação que se desenvolverá em processo próprio. Sua finalidade possessória é evidenciada pelo caput do art. 1.046, ao legitimar o terceiro que “sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens por ato de apreensão judicial”. 7 8 A mencionada equiparação da parte ao terceiro consiste numa ficção jurídica, sendo ela considerada como tal somente para o fim específico de legitimar-se para os embargos de terceiro. Alguns doutrinadores emprestam-lhe espectro mais amplo, afirmando que serve tanto à tutela possessória, como à dominial. É o que afirma Antonio Carlos Marcato (2006, p. 261): “Os embargos de terceiro visam, portanto, à obtenção de provimento jurisdicional que proteja quer a propriedade, quer a posse do embargante, podendo, por isso mesmo, fundamentar-se tanto em direito real quanto pessoal”. Entendemos que o instituto volte-se à proteção possessória. Na realidade, a defesa do domínio pode acontecer por via indireta, na medida em que o proprietário também possua a posse indireta da coisa constrita. Tanto é assim que o § 1º do art. 1.046 legitima o terceiro “senhor e possuidor, ou apenas possuidor” a promovê-la. Assim, o nu-proprietário não está autorizado a manejá-la. É o que ensina Araken de Assis (2007, p. 1193): “Por conseguinte, o proprietário despojado de posse a eles não se legitima ativamente”. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 94 É importante frisar que esta ação não pode ser utilizada para impugnar a obrigação, a dívida, nem os demais atos executivos, na medida em que o seu objeto é especificamente a posse ameaçada, turbada ou esbulhada pelo ato judicial 9. Portanto, mesmo que seja proposta por quem seja parte no processo (art. 1.046, § 2º), ela não poderá utilizá-lo para opor-se à execução, mas só para proteger o direito à posse sobre determinada(s) coisa(s), pelo título de sua aquisição ou pela qualidade em que o(s) possui. É o caso do executado que pretende retirar a penhora que recai sobre bem de família, independentemente de insurgirse em relação ao título executivo ou à obrigação nele contida. 3 NATUREZA JURÍDICA E OBJETO DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO O instituto de que tratamos no tópico anterior não se confunde com os embargos à execução, considerados como o meio típico de defesa do executado em relação à execução fundada em título extrajudicial, no processo civil. No processo do trabalho, ele serve também à oposição do devedor quando a atividade satisfativa lastreia-se em título judicial. Com efeito, a Lei 11.232/2005 criou a impugnação como 9 É o que ensina Carlos Henrique Bezerra Leite (2007, p. 980): “Pelos embargos de terceiro, portanto, o embargante visa a manter ou restituir a posse do bem que, indevidamente, encontra-se sob constrição judicial, a teor do art. 1.046 do CPC, cuja interpretação pode ser ampliada não apenas para proteger os bens do embargante contra a constrição indevida e materializada, mas também para a ameaça da constrição”. Os embargos de terceiro não têm a finalidade de impugnar o título, nem a dívida, como ensina José Augusto Rodrigues Pinto (2006, p. 390391): “Por conseguinte, a reação à lide pelo estranho prejudicado no seu interesse jurídico por ato processual que lhe perturbou o patrimônio, em demanda de que não participa e na qual, até então, não tinha o menor interesse, toma o caráter de verdadeira ação de intervenção, para que a pessoa, que se diz prejudicada, por efeito da penhora, arresto, seqüestro, depósito, venda judicial, arrecadação, partilha ou qualquer outro ato judicial que importe em turbação ou esbulho à sua posse ou direito, venha defender seus bens e livrar-se da importunação ou da violência sofrida, em conseqüência do mesmo ato judicial, não importa a espécie de ação ou demanda em que se tenha executado. (...) Em qualquer alternativa, como se vê, o processo no qual teve origem a intervenção do terceiro prosseguirá seu curso normal, cuja suspensão só ocorre, em eventualidade específica a ser comentada, enquanto têm curso os embargos. Por outro lado, sua natureza incidental e o objeto específico da ação por eles motivada carecem de qualquer força para influir no destino final da execução, salvo quanto aos bens que pretendem preservar” (itálico existente na versão original). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 95 a modalidade de defesa do executado em relação ao cumprimento de sentença (tramite ele no regime sincrético ou autônomo), reservando os embargos a obstar a execução baseada em título extrajudicial. Esta distinção, no entanto, não se aplica ao executivo trabalhista. Com efeito, o art. 769 da CLT determina a aplicação do direito processual comum, em caráter subsidiário ao direito processual do trabalho nos casos em que este for omisso e salvo naquilo em que for incompatível com as normas consolidadas específicas. Neste passo, o art. 884 da CLT é expresso ao estabelecer os embargos à execução como meio de defesa à execução, qualquer que seja o título que lhe dê espeque. Na realidade, o legislador não previu a hipótese de a execução trabalhista fundar-se em título extrajudicial, mesmo porque, anteriormente à vigência da EC 45/2004, a competência da Justiça do Trabalho estava restrita às lides cujo objeto era a relação de emprego, e não a relação de trabalho. Ocorre que a documentação da relação empregatícia por meio de títulos executivos extrajudiciais é praticamente inexistente10. Neste passo, o objeto dos embargos à execução é delimitado pelo § 1º do art. 884 da CLT, restringindo-se às alegações de cumprimento da decisão ou do acordo, quitação ou prescrição da dívida. Parece-nos que esta delimitação só se aplica à defesa contra a execução fundada em título judicial, pois, no campo dos títulos extrajudiciais, é necessário propiciar a ampla defesa, permitindo que o executado alegue qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa em processo de conhecimento (art. 745, V, do CPC), já que a certificação do direito não decorreu da atividade jurisdicional, não tendo passado pelo crivo do contraditório, da ampla defesa, nem do devido processo legal. 10 A execução trabalhista fundada em título extrajudicial é assunto relativamente novo e decorre da ampliação das atribuições constitucionais da Justiça do Trabalho. É o que ensina José Augusto Rodrigues Pinto (2006, p. 26): “O legislador trabalhista, ao contrário, porque só se ocupou, originariamente, da execução da sentença, conforme definiu o art. 876 de sua CLT, manteve-se ao largo dessas distinções de rito. O leitor que nos acompanhou até aqui, nas sucessivas edições desta obra terá percebido que essa diferença de postura legislativa sempre nos levou a circunscrever nossos comentários à execução fundada no título judicial. Entretanto, na medida da expansão do complexo de relações trabalhistas de direito material, cresceu a pressão de interessados e dos fatos determinantes da própria expansão, no sentido de ver acrescentada ao ordenamento positivo do direito processual trabalhista a execução fundada em títulos extrajudiciais”. No mesmo sentido: Marcus Maltez Tanajura Gomes (2007, p. 84-97). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 96 A espécie de título importa, pois, para definir a amplitude da defesa do executado, e não a sua espécie, já que sempre serão os embargos do executado. Não obstante os embargos sejam o único meio típico de defesa do executado no processo trabalhista, existe controvérsia acerca da sua natureza quando utilizados como meio de oposição ao cumprimento de sentença. A controvérsia acerca da natureza da defesa do executado contra o cumprimento de sentença voltou à tona por força da Lei 11.232/2005, que alterou o regime de cumprimento da sentença. ssim, a questão surgiu no âmbito do direito processual civil11 11 No direito processual civil, os doutrinadores ainda não chegaram a um consenso acerca da natureza jurídica da impugnação de que tratam os arts. 475-J, § 1º, e 475-L. Há, de um lado, quem afirme sua natureza de ação incidental, concebendo-a da mesma maneira que os revogados embargos à execução fundada em sentença: “(...) a finalidade defensiva e reativa da impugnação não lhe retira o que é essencial: o pedido de tutela jurídica do Estado, corrigindo os rumos da atividade executiva ou extinguindo a pretensão de executar” (ASSIS, 2006, p. 314) Sob um segundo ponto de vista, tratam-na como defesa, mera exceção que visa a resistência à atividade satisfativa postulada pelo exeqüente. É o que diz Danilo Knijnik (OLIVEIRA, 2006, p. 146). “Ao que parece, o legislador institucionalizou, ainda que em parte, e limitadamente às execuções por quantia certa, a praxe jurisprudencial consagrada; doravante, cumpre ao devedor opor-se ao requerimento executivo, em primeiro lugar, nos próprios autos; em segundo lugar, através de simples petição, denominada impugnação”. (grifos oriundos do texto original) Nesta mesma esteira: Fredie Didier Junior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2007, p. 459), Alexandre Freitas Câmara (2007, p. 450) e Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2007, p. 290). Hugo Filardi (2007, p. 151) também afirma: “A modificação do rótulo do meio de defesa posto à disposição do executado não foi apenas uma simples modificação de nomenclatura. Isso ficou mais claro com a manutenção dos embargos do executado na Lei 11.382/2006 e a clara diferenciação dos mecanismos de defesa entre a execução de título judicial e extrajudicial. Embargos do executado é uma modalidade de ação, que introduz espectro de cognição à atividade executiva. Já a impugnação é um mecanismo de defesa processual que aferir (sic!) a legitimidade, legalidade e extensão do título executivo judicial, sem, contudo,permitir uma ampliação da zona de cognição já formada”. Por um terceiro ângulo, há doutrinadores que afirmam poder ser tanto ação como defesa, dependendo da matéria veiculada pelo executado. Se estiver fundada nos incisos I ou VI do art. 475-L, seria ação. Lastreando-se nos demais incisos, consistiria em defesa. É o que pensa Leonardo Greco (2006, p. 81). Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery (2006, p. 645) sustentam ser a impugnação um misto de ação e de defesa, afirmando que é um incidente processual no que toca ao procedimento, mas que tem natureza de ação “(...) porque o impugnante tem pretensão declaratória (v.g. inexistência de citação, inexigibilidade do título, ilegitimidade de partes e prescrição) ou desconstitutiva da R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 97 e de lá se transportou para a seara processual trabalhista com complexidade ainda maior. Diferentemente do que acontece no processo civil, em que a oposição do devedor será veiculada por meio de impugnação ao cumprimento de sentença, e por meio de embargos se a execução estiver fundada em título extrajudicial, o art. 884 da CLT trata apenas dos embargos. Não havendo tal distinção legal na seara juslaboral, é necessário perquirir se o mesmo instituto pode possuir diversas naturezas jurídicas, conforme o título exeqüendo. Carlos Henrique Bezerra Leite (2007, p. 890) faz uma diferenciação quanto à natureza do instituto, conforme seja utilizado no cumprimento de sentença, caso em que seria uma defesa veiculada por incidente processual, ou na execução fundada em título extrajudicial, situação em que possuiria natureza de ação de conhecimento veiculada em processo autônomo. Para tanto, o doutrinador considera as modificações realizadas no sistema processual pela Lei 11.232/2005: Se adotarmos a tese de que, no processo do trabalho, não há mais um processo de execução de sentença (título judicial), então é forçoso concluir que os embargos do devedor (CLT, art. 884) deixam de ser uma ação, e passa a ser simples incidente processual no curso da fase de conhecimento. No entanto, tratando-se de execução de título extrajudicial, aí teremos um processo autônomo de execução e o executado poderá ajuizar uma ação incidental de embargos à execução, como veremos no item 24 infra (itálicos existentes no original). O assunto, no entanto, não está nem um pouco pacificado. José Augusto Rodrigues Pinto (2006, p. 228) entende tratar-se de ação de conhecimento: No processo de execução, os embargos se relacionam com títulos obrigacionais de formação judicial ou extrajudicial. Ganham, então, natureza de ação incidental, cujo objeto é desconstituir a constrição patrimonial do Estado-juiz na ação executiva (título extrajudicial) ou executória (título judicial), ambas visando ao cumprimento forçado da obrigação. eficácia do título exeqüendo (v.g. nulidade da citação, excesso de execução) ou de atos de execução (v.g. penhora incorreta ou avaliação errônea)” (p. 645-646). Por fim, há quem entenda tratar-se de um instituto novo, distinto da contestação e da ação, considerando ser a impugnação um instituto próprio sui generis. Neste passo, Glauco Gumerato Ramos (2006, p. 243) afirma tratar-se de impugnação. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 98 (...) Desde essa visão, percebe-se que os embargos do devedor são, tecnicamente, uma ação contra a atividade jurissatisfativa do Estado, que lhe molesta o patrimônio no vestíbulo de ação originária conexa. (itálicos já existentes na versão original) O doutrinador prossegue: O conceito que a legislação processual trabalhista oferece para os embargos, a deduzir do § 1º do artigo 884 da CLT, é o de defesa do executado. Por sua relativa abstração tal conceito não explica, de modo satisfatório, a natureza jurídica dos embargos à execução, tratados impropriamente sob o título de embargos à penhora pelo § 3º do mesmo art. 884. A impropriedade tem seu fundamento lógico na circunstância de os embargos à penhora significarem uma resistência ao ato de constrição em si (p. ex., excesso de penhora, impenhorabilidade do bem constringido), enquanto os embargos à execução significam a resistência ao procedimento da cobrança, de que a penhora representa simples garantia de cumprimento. Por isso, (...) a doutrina processual evoluiu para conceituar os embargos à execução como uma ação incidental à ação executória, que consideram autônoma em face da ação de conhecimento. (...) Há, portanto, uma espécie de descompasso histórico entre o conceito legal trabalhista dos embargos à execução e a natureza jurídica firmada pela moderna teoria do processo, que lhe é posterior. Leve-se isso em conta para a correção da leitura dos dispositivos aqui mencionados, de modo a tornar contemporânea sua compreensão (PINTO, 2006, p. 233) (itálicos existentes no original). Independentemente de sua natureza (ação ou mera defesa), vê-se que o seu objeto volta-se ao cumprimento da obrigação, a algum fato que lhe seja extintivo ou modificativo ou que impeça a sua exigibilidade. Embora o legislador não mencione expressamente, entendemos que o executado também pode valer-se de motivos que provoquem a extinção do processo por vício formal, como a falta de uma das condições da ação ou como um defeito num dos pressupostos processuais de constituição ou de desenvolvimento válido do processo. A oposição à execução lastreada em título extrajudicial pode ser ainda mais ampla, versando também sobre os vícios R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 99 que o título eventualmente possua. Em todos estes casos, verifica-se que os embargos possuem natureza cognitiva e não visam à defesa da posse, mas à verificação da higidez do título (no caso das execuções por título extrajudicial), da obrigação ou dos aspectos do processo executivo. Como já definimos no livro “A defesa do executado de acordo com os novos regimes da execução estabelecidos pelas Leis n.º 11.232/2005 e 11.382/2006” (2008, p. 16): Querendo, o executado pode resistir a tal atividade [executiva], com a intenção de desconstituir a aludida presunção [da existência da obrigação], insurgindo-se contra o título, apontando fato ligado à obrigação ou impugnando determinado ato executivo. Humberto Theodoro Júnior (2007, p. 8) explica que são os embargos a via para opor-se à execução forçada. Configuram eles incidentes em que o devedor, ou terceiro, procura defenderse dos efeitos da execução, não só visando a evitar a deformação dos atos executivos e o descumprimento de regras processuais, como também resguardar direitos materiais supervenientes ou contrários ao título executivo, capazes de neutralizá-lo ou de reduzir-lhe a eficácia, como pagamento, novação, compensação, remissão, ausência de responsabilidade patrimonial etc.. 4 O PRAZO PARA A PROPOSITURA DOS EMBARGOS DE TERCEIRO NA EXECUÇÃO TRABALHISTA Como visto, os embargos de terceiro e os embargos à execução são institutos processuais completamente distintos, com objetos e finalidades diferenciados. Neste passo, o prazo do art. 884 da CLT diz respeito aos embargos à execução, para permitir que o executado se oponha à atividade satisfativa, valendo-se daquela espécie de defesa dentro dos contornos legais estatuídos pelo ordenamento jurídico. O prazo para a sua propositura não é preclusivo, como advoga parte da doutrina. Alexandre Freitas Câmara (2007, p. 415) e Misael Montenegro Filho (2007, p. 514) explicam que a preclusão é fenômeno endoprocessual, não podendo operar efeitos fora do próprio processo de execução. Ocorresse, portanto, preclusão na execução, ela não afetaria os embargos, que possuem natureza de processo autônomo. Alexandre Freitas Câmara (2007, p. 415) afirma que o prazo de quinze dias está ligado ao interesse de agir, na modalidade da adequação: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 100 “(...) tem-se aí (...) um elemento ligado ao interesse de agir (mais especificamente, ligado à adequação do meio pelo qual se pretende obter a tutela jurisdicional). (...) Decorrido o prazo de quinze dias a que se refere o art. 738, não será mais adequada a utilização dos embargos do executado como meio de o demandado na execução apresentar sua defesa. Nada impedirá que ele se utilize de outros meios (como, por exemplo, a propositura de uma ‘ação declaratória da inexistência da obrigação’), mas não será mais adequado pleitear a tutela jurisdicional através dos embargos”. (itálico já existente no original) Com efeito, ultrapassado o lapso temporal de cinco dias, poderá o devedor valer-se de ação de conhecimento autônoma (defesa heterotópica)12, sem o regime específico dos embargos. A concessão de efeito suspensivo, por exemplo, estará sujeita a requisitos diferentes, calcados no art. 273, e não no art. 884, Consolidado. A jurisprudência pátria tem admitido a propositura de demanda cautelar, com a finalidade de obstar a execução até o desfecho da ação autônoma de conhecimento. Mesmo considerando que, no cumprimento de sentença (execução fundada em título judicial), os embargos possuam natureza de defesa veiculada por incidente processual (assunto que é extremamente controvertido como vimos anteriormente), caso em que poderia se cogitar que o prazo de cinco dias a que alude o art. 884 da CLT seria preclusivo, não há razão a obstar a utilização da defesa heterotópica. Neste sentido, por exemplo, 12 Neste sentido: Antonio Adonias Bastos (2008, p. 33-38). Humberto Theodoro Júnior (2003, p. 641) anota que “essas ações autônomas comportam o mesmo conteúdo e perseguem o mesmo objetivo dos embargos de mérito. Tal como a ação incidental da execução, visam atingir o direito consubstanciado no título, e, diversamente dos embargos, não se sujeitam a um momento certo para serem manejadas. Podem ser propostas, destarte, antes da instauração do processo de execução, durante sua pendência, ou até depois de seu encerramento. Não se prestam, contudo, tais ações autônomas, a reabrir discussão sobre o que se decidiu na sentença dos embargos à execução, pela intangibilidade gerada pela coisa julgada. Nem se destinam a questionar nulidades ou irregularidades meramente formais do processo executivo, porque superadas pela preclusão. Deve-se, no entanto, ressalvar que por falta de pressuposto processual ou de condição da ação, o processo executivo pode contaminar-se de nulidade ipso iure, equivalente à inexistência da relação processual, (...). A respeito dessa mácula insanável da própria relação processual executiva, torna-se viável o manejo de ação ordinária nos moldes da antiga querela nullitatis, mesmo que a impugnação não se refira ao mérito da relação creditíca”. Neste mesmo sentido, confira-se o Acórdão do REsp 94.811/MG, proferido pela 4ª Turma do STJ (Rel. Min. César Asfor Rocha, ac. 29/10/1998, DJU 01/02/1999, p. 197). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 101 a jurisprudência vem admitindo a propositura de ação rescisória, juntamente com demanda cautelar, ou com o pedido de antecipação dosefeitos da utela, com lastro no art. 489 do CPC13: 13 Na mesma esteira: “AÇÃO CAUTELAR - SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO. CONCEDE-SE A CAUTELA BUSCADA DE SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO, QUANDO PROCEDENTE O PEDIDO DE RESCISÃO DO TÍTULO EXEQUENDO E IMINENTE A EXPROPRIAÇÃO PATRIMONIAL DO AUTOR”. (Processo: 01376-2004-000-05-00-6 AC, ac. nº 008689/2005, Relatora Desembargadora ELISA AMADO, SUBSEÇÃO I DA SEDI, DJ 18/05/2005) “AÇÃO CAUTELAR INOMINADA EM RESCISÓRIA – SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO – Não obstante o art. 489 do CPC estatuir que a ação rescisória não suspende a execução, em casos especialíssimos é possível o uso de medida cautelar inominada para assegurar a eficácia de decisão a ser nela proferida, demonstrados os requisitos do periculum in mora e fumus boni iuris”. (TRT 19.ª R. – MC 00160.2002.000.19.00.5 – Rel. Juiz Pedro Inácio – J. 17.06.2003). “AÇÃO RESCISÓRIA – ART. 485, V E IX, CPC – VIOLAÇÃO AOS ARTS. 128, 333, I E 460 DO CPC E 818 DA CLT – CAUTELAR INCIDENTAL INOMINADA – SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO – Não violado o princípio da adstrição, porquanto a lide foi dirimida nos termos em que deduzida. Condenação a horas extras decorrente da apreciação dos cartões de ponto colacionados aos autos pela reclamada, que acabou por fazer prova do direito do obreiro. Erro de fato não configurado, porquanto a conclusão do julgado teve por base a apreciação dos fatos arrolados e das provas produzidas. Medida cautelar – O art. 489/CPC, não enuncia proibição à suspensão da execução, sendo a cautelar meio idôneo para aquele desiderato, desde que os argumentos lançados na rescisória convençam o juízo da coexistência dos pressupostos decisivos ao cabimento da cautelar.” (TRT 2.ª R. – Proc. 03170/2001-8 – SDI – Rel. Juiz Plinio Bolivar de Almeida – DOESP 01.10.2002). “MEDIDA CAUTELAR PREPARATÓRIA – SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DEFINITIVA ATÉ O JULGAMENTO DA AÇÃO RESCISÓRIA – Nos claros termos do artigo 489 do CPC, a ação rescisória não suspende a execução da sentença rescindenda, o que se justifica pela eficácia e autoridade da coisa julgada e para que seja preservada a segurança das relações jurídicas e da própria prestação jurisdicional. Embora a literalidade de tal norma processual venha sendo mitigada pela jurisprudência, a medida cautelar para suspender a execução da sentença será sempre preparatória ou incidental à ação rescisória que pretenda desconstituir a res judicata, sendo descabida a concessão dessa providência cautelar quando se mostrar manifesta a ausência de periculum in mora e de plausibilidade do direito alegado pela requerente (fumus boni iuris).” (TRT 3.ª R. – MCI 84/02– 2.ª SDI – Rel. Juiz José Roberto Freire Pimenta – J. 12.12.2002). “AÇÃO CAUTELAR INCIDENTAL EM RESCISÓRIA – SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO – CABIMENTO – Não obstante o art. 489 do CPC estatuir que a ação rescisória não suspende a execução, ganha corpo entendimento de que em casos especialíssimos seja possível o uso de medida cautelar inominada para assegurar a eficácia de decisão a ser nela proferida. Quanto à legitimidade processual, embora na maioria das vezes o requerente da ação cautelar seja o autor da demanda principal, é cabível a medida cautelar quando requerida pelo réu da ação principal.” (TRT 19.ª R. – MC 00144.2002.000.19.00.2 – Rel. Juiz Pedro Inácio – J. 22.10.2002). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 102 AÇÃO CAUTELAR. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA DECISÃO RESCINDENDA. É possível a suspensão dos efeitos da coisa julgada quando presentes os pressupostos da plausibilidade do direito perseguido e do perigo da demora na obtenção do pronunciamento judicial. (Processo 00529-2006-000-05-00-0 AC, ac. nº 001422/2007, Relatora Desembargadora SÔNIA FRANÇA, SUBSEÇÃO I DA SEDI, DJ 28/02/2007) O prazo para a propositura dos embargos à execução como meio expressamente tipificado e adequado para a defesa do executado funda-se exatamente no aspecto de propiciar ao devedor a utilização das características do instituto. Ultrapassado o prazo, o executado poderá valer-se da defesa heterotópica, sujeitando-se a uma ação autônoma que tramita pelo rito ordinário, não possuindo qualquer qualidade especial. Ao fixar o prazo, o legislador não quis impedir o devedor de opor-se à execução caso tal lapso seja ultrapassado. Quis apenas fixar o marco temporal no qual o executado poderá defender-se por meio de uma ação especialmente prevista para tanto. Já o prazo estipulado pelo art. 1.048 do CPC para os embargos de terceiro está ligado não só ao interesse de agir na sua modalidade adequação, mas também no que toca à utilidade. Com efeito, o terceiro (ou a parte que, por ficção, a ele se equipare) pode valer-se de tal ação enquanto persistir a ameaça, a turbação ou o esbulho perpetrado pelo ato judicial. Neste passo, o termo a quo do prazo para a sua propositura é a prolação de decisão de que possa resultar a expedição do futuro mandado de penhora dirigido a um determinado bem do terceiro, ou da parte que o possua por uma especial qualidade, situação em que estará caracterizada a “AÇÃO CAUTELAR – SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO – POSSIBILIDADE – PLAUSIBILIDADE DE ÊXITO NA AÇÃO RESCISÓRIA – Embora o art. 489 do CPC estabeleça que ‘a ação rescisória não suspende a execução da sentença rescindenda’, a jurisprudência maciça, especialmente do C. TST, vem admitindo que, presentes os pressupostos do fumus boni iuris e do periculum in mora, a execução poderá ser suspensa, com a concessão de medida cautelar. O julgador deve aferir, para tanto, a existência de plausibilidade de êxito na ação rescisória, nos moldes da Orientação Jurisprudencial 76, da SDI-2 do C. TST. Pedido cautelar acolhido, por unanimidade”. (TRT 24.ª R. – MC 41/2002 – TP – Rel. Juiz João de Deus Gomes de Souza – DOMS 05.07.2002). “MEDIDA CAUTELAR INCIDENTAL – AÇÃO RESCISÓRIA – SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO – Presente o fumus boni iuris e o periculum in mora, medida cautelar é o remédio processual adequado para obter a suspensão da execução quando proposta ação rescisória destinada a descontinuação do título executivo judicial. Todavia, ausente plausibilidade de êxito da ação rescisória, deve ser rejeitada a medida, com continuidade da execução”. (TRT 9.ª R. – MC 104/2000– Relatora Juíza Sandra Maria da Costa Ressel – DJPR 04.06.2001) R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 103 ameaça concreta de violação à posse14. Já o seu termo ad quem está expressamente previsto pela lei, no art. 1.048 do CPC. Na execução, seja ela civil ou trabalhista, tal momento coincidirá com o ato que retira a propriedade do bem da titularidade do terceiro ou da parte, conforme o caso. Daí a referência aos cinco dias contados da realização da arrematação, da adjudicação ou da remição (rectius: aquisição), mas sempre antes da assinatura da respectiva carta, afinal este é o ato que aperfeiçoa a expropriação. Transferida a propriedade, o procedimento especial dos embargos de terceiro perderá as características que lhe demarcam a adequação e finalidade, na medida em que se voltam à tutela da posse, e que o direito possessório será transmitido ao adquirente da coisa, acompanhando a transferência do domínio. Marcelo Abelha (2007, p. 531-532) evidencia a diferença entre os dois institutos: Os embargos do devedor seriam mais bem nominados, por amor à técnica, embargos do executado, posto que as expressões “credor e devedor” são signos utilizados para o direito substancial, além da regra do art. 741, III, demonstra que nem sempre o executado é devedor, e os embargos que opuser poderão declarar a condição de ilegítimo e, portanto, de não-devedor. O legislador observando o equívoco terminológico, poderia ter corrigido o equívoco, mas o fez apenas em uma passagem, qual seja, no Capítulo III do Título III do Livro II do CP, deixando, todavia, a mesma expressão – embargos do devedor – para designar todo o Título III. No entanto, afora a imprecisão terminológica cometida pelo próprio CPC, tem-se que, como o nome mesmo já diz, devem ser opostos pelo devedor ou responsável (executado), e não por terceiro estranho à relação jurídica deduzida na ação executiva. Apesar de ambos possuírem natureza jurídica de ação e, ainda, possuírem o mesmo nome (embargos), possuem finalidades diferentes. Nos embargos de terceiro, este propõe a ação para proteger-se de esbulho judicial não somente em processos de execução, como em 14 Neste sentido, ensina Alexandre Freitas Câmara (2008, p. 426): “Admitem-se embargos de terceiro com fins preventivos, atuando como interdito proibitório, quando a posse do bem de terceiro estiver ameaçada por ato de apreensão judicial (bastando imaginar o caso em que o juiz da execução tenha determinado a penhora de bem de terceiro, não tendo esta ainda sido efetivada). O terceiro não precisa, à toda evidência, aguardar que a apreensão se consume para, só depois, ajuíze os embargos de terceiro. É possível, pois, o oferecimento de embargos de terceiro para buscar tutela jurisdicional para a posse ameaçada por ato judicial”. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 104 qualquer outro procedimento. Nos embargos de devedor, como diz Liebman, ataca-se o título. Todavia, se pretenderam a não-sujeição dos seus bens ao esbulho judicial, a medida correta é a dos embargos de terceiro, que possui um procedimento específico para essa ação (art. 1.046 do CPC). Neste mesmo sentido, Vicente Greco Filho (2008, p. 266267) explica: No caso, trata-se de uma ação, procedimento especial de jurisdição contenciosa, que tem por finalidade a proteção da posse ou propriedade daquele que, não tendo sido parte no Feito, tem um bem de que é proprietário ou possuidor, apreendido por ato judicial originário de que não foi parte. (...) Os embargos de terceiro distinguem-se, também, dos embargos do devedor na execução. Estes são opostos pelo devedor com a finalidade de desfazer o título ou opor fato impeditivo à execução; na ação de que se trata neste item (Embargos de Terceiro) não se discute o título executivo, pedindo-se apenas a exclusão do bem da execução. Sendo diferentes os objetos, também o será o interesse de agir para um e outro procedimento, inclusive no que tange ao prazo para a sua propositura. Por entendermos que o interesse de agir para os embargos de terceiro se mantém por todo o tempo em que a ameaça, a turbação ou o esbulho judicial se mantiverem, é que nos alinhamos à corrente doutrinária e ao entendimento pretoriano no sentido de que o prazo para a propositura de tal demanda só finda após os cincos dias subseqüentes à expropriação judicial, até a assinatura da respectiva carta, ato que marca a transferência da titularidade do bem e, por conseguinte, o direito à posse. Desta forma, não se pode mais cogitar em ameaça, turbação ou esbulho a reclamar. Sem dúvida, o prazo para a propositura de tal procedimento especial está intimamente ligado à sua natureza possessória. Tanto é assim que, no processo de conhecimento, ele poderá ser utilizado a qualquer tempo, enquanto não transitada em julgado a sentença. A constrição judicial decorrente desta espécie de atividade judicial está sempre ligada à certificação do direito à posse ou à propriedade e a querela em torno do direito petitório, possessório ou dominial se encerrará, em caráter definitivo, com o trânsito em julgado da decisão. Por fim, e não menos importante, a regra de hermenêutica demonstra a plena aplicação do art. 1.048 do CPC ao processo R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 105 do trabalho, já que não há qualquer disposição no texto consolidado que verse sobre o instituto, nem sobre o prazo para a sua propositura. Enquanto os embargos à execução possuem particularidades no processo do trabalho que não permitem a aplicação, por completo, do regramento previsto para o processo civil, a CLT é omissa em relação aos embargos de terceiro, ensejando a aplicação das regras do CPC na sua inteireza, como autoriza o art. 769, Consolidado. A adoção de tese em sentido contrário põe em risco a segurança jurídica no que diz respeito à adequada interpretação do ordenamento, ao permitir uma analogia restritiva ao direito de ação daquele cuja posse foi ameaçada, turbada ou esbulhada por ato judicial. Importa destacar, por fim, que, ultrapassado o prazo do art. 1.048 do CPC, o terceiro não terá mais interesse de agir, na modalidade adequação, para os embargos de terceiro, o que não descaracteriza o seu interesse-utilidade. Nesta hipótese, é cabível a ação anulatória da arrematação, com base no art. 486 do CPC, se houver motivo para desconstituir o ato expropriatório. Assim, vêm decidindo os tribunais pátrios 15: AÇÃO ANULATÓRIA DE ARREMATAÇÃO – CABIMENTO. Comprovada cabalmente a nulidade de ato praticado durante a execução, quando já decorrido o prazo para interposição de Embargos de Terceiro, cabível o ajuizamento de 15 Em sentido semelhante “ARREMATAÇÃO. AÇÃO ANULATÓRIA. É cabível ação anulatória com vistas à desconstituição de arrematação, ainda que não tenham sido opostos embargos à arrematação nos autos da execução em que foi praticado o ato rescindendo” (Processo 00911-2005-005-05-01-7 RO, ac. nº 011916/2008, Relatora Desembargadora GRAÇA BONESS, 4ª. TURMA, DJ 12/06/2008.) “AÇÃO ANULATÓRIA. CABIMENTO. Cabe ação anulatória para desconstituir ato judicial que não depende de sentença. O ato de arrematação (ato vontade em adquirir bem em hasta pública), praticado por terceiro no processo, é ato judicial que não depende de sentença. Logo, cabível ação anulatória visando desconstituir esse ato, inexistindo coisa julgada derredor da questão posta a julgamento”. (Processo 00350-2004-025-05-00-7 RO, ac. nº 006692/2008, Relator Juiz Convocado EDILTON MEIRELES, 3ª. TURMA, DJ 10/04/2008) “AÇÃO ANULATÓRIA DE ARREMATAÇÃO. CABIMENTO. Cabível é a ação anulatória sobre a arrematação, se este intento não for possível dentro dos próprios autos do processo de execução ou em sede de embargos”.(Processo 01060-2002131-05-00-9 RO, ac. nº 027322/2007, Relatora Desembargadora MARIZETE MENEZES, 6ª. TURMA, DJ 01/10/2007.) R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 106 Ação Anulatória, visando invalidar o indigitado ato. (TRT 2ª R. – 00047/96-3 – Ac. SDI 98000330 – Rel. Floriano Corrêa Vaz da Silva – DOESP 03/03/1998). Assim, a propositura dos embargos de terceiro após o prazo do art. 1.048 só deve levar ao indeferimento da petição inicial caso não trate de vício que também levaria à nulidade da arrematação, com a formulação do respectivo pedido. REFERÊNCIAS ABELHA, Marcelo. Manual de execução civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. ALMEIDA, Cleber Lúcio de. Direito Processual do Trabalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. ASSIS, Araken de. Manual da execução. 11.ed. 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Curso Avançado de Processo Civil. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v. 2. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.87-106, jul./dez. 2009 109 RECURSO DE REVISTA EM EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL Deusmar José Rodrigues1* A abordagem que se inicia pretende precipitar a discussão em torno do cabimento do recurso de revista em execução de título executivo extrajudicial. Os recursos, conforme o escólio da doutrina tradicional são instrumentos de correção de possíveis erros cometidos pelo julgador, máxime o quo, e meio de dar vazão à insatisfação humana1. A revista se inclui no rol de recursos considerados “extraordinários”, em acepção ampla, pois é de cabimento restrito, ou seja, é instrumento de impugnação e recorribilidade restrita, não se prestando, em regra, para reexame de questões factuais. A sua interposição está regulamentada pelas seguintes normas da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, além de tantas súmulas e orientações jurisprudências do Tribunal Superior do Trabalho – TST: Art. 896 - Cabe Recurso de Revista para Turma do Tribunal Superior do Trabalho das decisões proferidas em grau de recurso ordinário, em dissídio individual, pelos Tribunais Regionais do Trabalho, quando: a) derem ao mesmo dispositivo de lei federal interpretação diversa da que lhe houver dado outro Tribunal Regional, no seu Pleno ou Turma, ou a Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, ou a Súmula de Jurisprudência Uniforme dessa Corte; b) derem ao mesmo dispositivo de lei estadual, Convenção Coletiva de Trabalho, Acordo Coletivo, sentença normativa ou regulamento empresarial de observância obrigatória em área territorial que exceda a jurisdição do Tribunal Regional prolator da decisão recorrida, interpretação divergente, na forma da alínea a; c) proferidas com violação literal de disposição de lei federal ou afronta direta e literal à Constituição Federal. * Mestre em Direito pela UFG (aprovado em 1º lugar). Proficiente Pesquisador pela UEx, Espanha. Procurador da Fazenda Nacional. Autor de livros jurídicos. Professor universitário. 1 Nesse sentido: GIGLIO, Wagner D.; CORREA, Cláudia Giglio Veltri. Direito Processual do Trabalho. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 435. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.107-111, jul./dez. 2009 110 § 1o O Recurso de Revista, dotado de efeito apenas devolutivo, será apresentado ao Presidente do Tribunal recorrido, que poderá recebê-lo ou denegálo, o fundamentando, em qualquer caso, a decisão. § 2 Das decisões proferidas pelos Tribunais Regionais do Trabalho ou por suas Turmas, em execução de sentença, inclusive em processo incidente de embargos de terceiro, não caberá Recurso de Revista, salvo na hipótese de ofensa direta e literal de norma da Constituição Federal. O parágrafo 2º do art. 896 da CLT afirma que somente cabe recurso de revista em execução de sentença, inclusive em embargos de terceiro, quando houver ofensa direta e literal de norma da Constituição Federal. A redação atual dessa disposição legal foi dada pela Lei nº. 9.756/98. A quase total vedação de recurso de revista em execução de títulos executivos extrajudiciais e nos embargos de terceiros ainda persiste em face das mudanças ocorridas com o advento da Emenda Constitucional nº. 45/04? A referida Emenda, embora seja truísmo dizê-lo, trouxe vários temas para a competência da Justiça do Trabalho. Antônio Álvares da Silva2 chegou a dizer que ela seria o principal diploma jurídico, depois da própria Consolidação. Ocorre que o avanço conquistado não foi acompanhado de mudanças nas normas processuais, de modo a recepcionar, em termos de procedimentos, as novas competências. Tal fato obrigou o TST a editar a Instrução Normativa – IN nº. 27/05, normatizando o processamento das novas ações e recursos. Nesse quadro, percebe-se que as atribuições da Justiça Especializada foram ampliadas sem a correspondente contrapartida das normas processuais. Isso se deveu, quiçá, pelo reconhecimento de que a economia de normas processuais na CLT e noutros diplomas laborais seja o grande propulsor da celeridade processual. Todavia, a permanecer tal situação, haverá insegurança jurídica e injustiças para com os clientes da Justiça Laboral. A questão envolvendo lacunas em normas processuais do ramo trabalhista é velha conhecida do público em geral, mormente dos operadores jurídicos. E essa temática ganhou fôlego logo após a série de alterações por que vem passando o Código de Processo Civil. 2 SILVA, Antônio Álvares da. Pequeno tratado na nova competência trabalhista. São Paulo: LTr. 2005. p. 11. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.107-111, jul./dez. 2009 111 Carlos Henrique Bezerra Leite3, arrimado nas lições de Maria Helena Diniz, discorre sobre as três principais espécies de lacunas jurídicas: a) normativa, quando houver ausência de norma sobre determinado caso; b)ontológica, se houver norma, mas ela não corresponder aos fatos sociais contemporâneos. É o que ocorre quando o grande desenvolvimento das relações sociais e o progresso acarretarem o ancilosamento da norma positiva; c) axiológica, ou seja, ausência de norma justa. Neste caso, existe um preceito normativo, mas se for aplicado, sua solução será insatisfatória ou injusta. Na hipótese de recurso de revista envolvendo questões acerca de interpretação de direito federal (v.g., prazo de prescrição, responsabilidade de sócio etc.), seja em embargos do executado ou em embargos de terceiros, como cotidianamente acontece nas execuções fiscais patrocinadas pela União, podendo acontecer também na execução de Termo de Ajustamento de Conduta TAC pelo Ministério Público do Trabalho existe norma, mas se for aplicada levará ao cometimento de injustiças e à insegurança jurídica, já que há omissões ontológica e axiológica. A insegurança jurídica reside, exatamente, na negativa, por parte dos Tribunais Regionais do Trabalho e do próprio Tribunal Superior do Trabalho, em admitir a revista em execução de títulos executivos extrajudiciais. Não se pode descuidar que a revista se presta outrossim para unificação do direito nacional, como bem assinala o magistério doutrinário4: Numa palavra, o recurso de revista se presta a corrigir a decisão que violar a literalidade da lei e a uniformizar a jurisprudência nacional concernente à aplicação dos princípios e normas de direito material e processual do trabalho. A viabilidade desse apelo extremo se justifica não para, tão-somente, satisfazer as pretensões do jurisdicionado, mas, 3 4 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2007. Idem. Curso de Direito Processual do Trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2006. p. 683. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.107-111, jul./dez. 2009 112 sobretudo, para que o TST possa exercer seu múnus de unificador da interpretação do direito federal e pacificador de divergências regionais, que são tarefas que não podem ser abdicadas, ante o interesse público subjacente. A regra do art. 896, § 2º, da CLT certamente ainda é aplicável quando se tratar de execução de sentença proferida em processo de conhecimento, no qual se decida relação jurídica enlaçando típica relação de emprego (empregado versus empregador). A razão está em prestigiar a celeridade, que garante o recebimento de crédito trabalhista sem maiores percalços. Com a ampliação da competência da Especializada, promovida, especialmente, pela Emenda Constitucional nº. 45/04, a restrição em relação aos títulos executivos extrajudiciais não se justifica. A título de exemplo, cita-se o art. 114, VII, da Constituição Federal, que institui uma das hipóteses aqui ventiladas: Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: [...] VII) as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho; A Fazenda Nacional tem foro, a partir daquela norma, na Justiça do Trabalho para execução de Certidão de Dívida Ativa – CDA. Para tanto, segue o rito da Lei nº. 6.830/80. Como se sabe, o título executivo extrajudicial (CPC, art. 585; CLT, art. 876) é um facilitador que lei federal concede a seu titular, porquanto não terá de expor suas pretensões em um processo de conhecimento, podendo pedir a efetivação da obrigação diretamente no processo de execução, com concretos ganhos de tempo e custos. Não é razoável pensar que o legislador tenha contemplado uma pessoa com título executivo extrajudicial – e correspondente processo de execução – e lhe obstado a via processual extraordinária. Seria melhor, então, apesar da inexistência de interesse processual, que a pessoa renunciasse a via executiva e abrisse um processo de conhecimento, que, na Justiça do Trabalho, é um dos mais breves no País. É que, enquanto quem possui apenas pretensão e a veicule em processo de conhecimento tem a faculdade, em tese, de R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.107-111, jul./dez. 2009 113 chegar ao Tribunal Superior Trabalho e, talvez, ao Supremo Tribunal Federal, ao exequente e ao executado essa via fica interditada. A interpretação meramente literal do art. 896, § 2º, da CLT encontra-se superada, por ser inconciliável com as novas competências e por que também arrosta o direito de ação e a ampla defesa dos jurisdicionados, ficando estes sem acesso ao Tribunal de cúpula da área obreira. Seja como for, o fato é que as normas constitucionais, ampliativas de competência, não fazem nenhuma restrição quanto ao cabimento desse ou daquele recurso. Por tudo isso, urge que os Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunal Superior do Trabalho passem a admitir o recurso de revista em execução de título executivo extrajudicial, quando houver divergência ou violação de norma legal, sob pena de prosperar a insegurança jurídica atualmente verificada. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.107-111, jul./dez. 2009 114 115 ASPECTOS LIMITATIVOS DA FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA Fábio Lucas Telles de Menezes Andrade Sandim* RESUMO Este trabalho investiga os aspectos limitativos da flexibilização das condições de trabalho, a partir de uma perspectiva crítica, por meio da análise da doutrina, da jurisprudência e da legislação pertinentes ao assunto em apreço. Busca refletir a respeito dos limites impostos em matéria laboral às partes envolvidas na negociação coletiva e ao Estado na atividade legiferante, com o objetivo de ressaltar a relevância e o conteúdo das normas trabalhistas como medida de efetiva inclusão social e de garantia dos direitos humanos e fundamentais do trabalhador, de forma a preservar a dignidade da pessoa humana. O resultado deste trabalho pretende indicar parâmetros para fixação de limites à flexibilização trabalhista que devem ser observados nos casos concretos, sem a pretensão do estabelecimento de critérios exaustivos ou fechados. 1 INTRODUÇÃO O objetivo do trabalho consiste em investigar os aspectos limitativos da flexibilização trabalhista. A análise crítica da doutrina, do conjunto normativo e da jurisprudência, pertinentes ao assunto, visa à reflexão a respeito dos limites impostos às partes envolvidas na negociação coletiva e ao Estado na atividade legiferante, em matéria laboral, com o intuito de ressaltar a relevância e o conteúdo das normas trabalhistas como medida de efetiva inclusão social e de garantia dos direitos humanos e fundamentais do trabalhador. Inicialmente, foram traçados elementos concernentes à dignidade da pessoa humana, aos direitos humanos e aos direitos fundamentais. Em seguida, foram tratadas temáticas atinentes à negociação coletiva, à conceituação da figura da desregulamentação e à definição da flexibilização trabalhista, bem assim aos aspectos limitativos da flexibilização trabalhista. * Juiz Federal do Trabalho da 14ª Região, titular da Vara do Trabalho de Epitaciolândia (AC) R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 116 Por fim, conclui-se a respeito dos aspectos que funcionam como limites à flexibilização trabalhista nos casos concretos, sem a pretensão do estabelecimento de critérios exaustivos ou fechados. 2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS A dignidade da pessoa humana corresponde à qualidade intrínseca e distintiva do ser humano caracterizada por um complexo de direitos e de deveres fundamentais que devem ser observados pelo Estado e pela comunidade, visando a assegurar condições existenciais necessárias à vida saudável1. A dignidade da pessoa humana constitui fundamento da República Federativa do Brasil e da ordem econômica e financeira (artigos 1º, III e 170 da Lei Maior). O artigo 227, caput, da Constituição Federal de 1988 assegura à criança e ao adolescente o direito à dignidade. Não há na doutrina uniformidade no tratamento da existência ou não de diferença conceitual entre direitos humanos e direitos fundamentais, pois enquanto alguns utilizam tais expressões como sinônimas, outros indicam distinções. Os direitos humanos podem ser concebidos como aqueles destinados à preservação da dignidade da pessoa humana consagrados no âmbito internacional, enquanto que os direitos fundamentais são posições jurídicas essenciais extraídas do ordenamento jurídico pátrio que visam a tutelar a dignidade da pessoa humana. Consoante Mauricio Godinho Delgado, “direitos fundamentais são prerrogativas ou vantagens jurídicas estruturantes da existência, afirmação e projeção da pessoa humana e de sua vida em sociedade”2. José Cláudio Monteiro de Brito Filho aborda a relação entre direitos humanos e direitos fundamentais da seguinte forma: 1 2 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 63. DELGADO, Mauricio Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, v. 16, n. 31, p.20, 2006. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 117 Adotamos essa distinção entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais com a seguinte observação: direitos fundamentais devem ser considerados como os reconhecidos pelo Estado, na ordem interna, como necessários à dignidade da pessoa humana. Não obstante, para nós, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais tenham definições baseadas na necessidade de seu reconhecimento como forma de garantir a dignidade da pessoa humana, eles diferem no sentido de que nem sempre haverá coincidência entre ambos, pois, além de ser comum que, no plano interno dos Estados, nem todos os Direitos Humanos consagrados no plano internacional sejam reconhecidos, é comum também que alguns direitos só sejam reconhecidos como fundamentais em algum ou alguns Estados. Tome-se o exemplo do acréscimo de 1/3 na remuneração de férias, consagrado como direito fundamental dos trabalhadores pela Constituição Brasileira (art. 7º, XVII) que, somente na situação particular de nosso país pode ser considerada como desdobramento do direito a justas condições de trabalho. Idem para o 13º salário (ainda do art. 7º, agora no inciso VIII).3 O artigo 5º, § 2º, da Lei Maior, dispõe que os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros decorrentes do regime, dos princípios adotados e dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, o que consagra a concepção aberta de direitos fundamentais. Nessa linha, existem posições jurídicas que, embora não previstas no catálogo constitucional ou na própria Constituição Federal, por seu conteúdo (substância) e por sua relevância (importância), são dotadas de fundamentalidade, ou seja, são direitos fundamentais exclusivamente em sentido material4. Os direitos humanos laborais correspondem às posições jurídicas, de caráter tipicamente trabalhista, previstas no âmbito internacional e destinadas à tutela da dignidade do trabalhador, enquanto que os direitos fundamentais trabalhistas constituem posições jurídicas essenciais de natureza laboral extraídas do ordenamento jurídico pátrio voltadas à proteção da dignidade da pessoa humana. 3 4 BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho decente: análise jurídica da exploração do trabalho: trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: LTr, 2004. p. 35-36. Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 96. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 118 Logo, as disposições contidas nas normas internacionais sobre direitos humanos atinentes às relações de trabalho das quais a República Federativa do Brasil seja signatária passam a integrar a esfera de direitos fundamentais trabalhistas, como, a título exemplificativo, as Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). A proteção ao trabalhador não está restrita às posições jurídicas de caráter laboral, pois há direitos humanos e fundamentais que, embora não sejam tipicamente trabalhistas, também são aplicáveis às relações de trabalho, como os direitos de personalidade, dentre os quais se destacam a privacidade, a intimidade, a imagem e a honra, dentre outros. 3 NEGOCIAÇÃO COLETIVA A negociação coletiva como instrumento vinculado à prática de autocomposição de conflitos tem como finalidade regular as condições de trabalho por meio da celebração de convenção ou acordo coletivos devidamente reconhecidos pela Constituição Federal, no artigo 7º, XXVI. O artigo 611, caput, da CLT define convenção coletiva de trabalho como o acordo de caráter normativo pelo qual dois ou mais sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho. O acordo coletivo consiste no pacto normativo entre sindicatos profissionais e um ou mais empregadores a respeito das condições de trabalho no âmbito dos signatários (artigo 611, § 1ª, da CLT). O entendimento majoritário na doutrina defende a teoria mista quanto à natureza jurídica das convenções e acordos coletivos, segundo a qual os referidos instrumentos compreendem aspectos contratuais decorrentes da autonomia da vontade e normativos por estabelecerem normas jurídicas. Para Carnelutti, tais institutos apresentam corpo de contrato e alma de lei. No âmbito do Direito Coletivo do Trabalho, prevalece o princípio da equivalência dos contratantes coletivos, segundo o R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 119 qual os sujeitos contrapostos se encontram no mesmo patamar jurídico com meios eficazes de atuação e pressão, o que indica um tratamento mais equilibrado, razão pela qual “perderia sentido no Direito Coletivo do Trabalho a acentuada diretriz protecionista e intervencionista que tanto caracteriza o Direito Individual do Trabalho”, ressalvado que o fortalecimento da representatividade e da estrutura sindical ainda não alcançou o estágio desejável.5 O Direito do Trabalho deve privilegiar o processo negocial como meio democrático de produção normativa, de modo a estimular as relações sindicais por meio de seus agentes, conferindo maior relevância às normas coletivas que constituem fontes de Direito. No entanto, a normatização coletiva e o incentivo à criatividade jurídica não significam o afastamento total do Estado, pois a negociação coletiva deve observar limites. 4 DESREGULAMENTAÇÃO E FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA Diferentemente da posição adotada neste trabalho, alguns autores não fazem distinção entre a desregulamentação e a flexibilização, cujas definições dos institutos não apresentam uniformidade nas doutrinas nacional e estrangeira, indicando variações conforme o ordenamento jurídico vigente e as práticas adotadas em determinado local e em certa época. A flexibilização trabalhista pode ser conceituada como adaptação, ajuste ou mitigação das normas trabalhistas, por meio das vias legislativa ou negocial. A desregulamentação significa a ausência de normatização heterônoma de matéria trabalhista, ou seja, a inexistência de proteção normativa. Desse modo, enquanto a flexibilização pressupõe a intervenção estatal de variável intensidade, a desregulamentação confere à autonomia privada individual ou coletiva a total atividade regulatória das relações de trabalho. 5 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002. p. 1292. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 120 5 LIMITES DA FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA As diversas correntes a respeito da flexibilização trabalhista podem ser enquadradas em três grupos principais: a) corrente da flexibilização ilimitada ou absolutamente favorável à flexibilização (admissibilidade absoluta); b) corrente da inadmissibilidade absoluta de flexibilização ou absolutamente contrária à flexibilização; e c) corrente moderada ou intermediária (admissibilidade relativa). A primeira linha de pensamento prega a flexibilização irrestrita como medida necessária de combate à crise econômica e social para aumento do número de empregos, redução do custo de produção e sobrevivência das empresas, diante da acentuada competitividade vinculada ao fenômeno da globalização. A segunda vertente defende que qualquer medida redutora da proteção ao empregado não é admissível. A terceira corrente assevera que a flexibilização deve ser condicionada a determinados critérios de fixação de uma proteção adequada ao trabalhador moldada às novas realidades socioeconômicas, a fim de garantir o emprego e a sobrevivência das empresas.6 Entende-se que esta corrente comporta subdivisão em dois agrupamentos principais, embora ainda com variações dentro de cada grupo: 1) intermediária ou moderada restritiva à flexibilização trabalhista e 2) intermediária ou moderada ampliativa das hipóteses de flexibilização. A Constituição Federal prevê expressamente a flexibilização dos direitos trabalhistas: a possibilidade de alteração do parâmetro justrabalhista de irredutibilidade de salários e de compensação de jornada de trabalho, inclusive em turnos ininterruptos de revezamento (artigos 7º, VI, XIII e XIV). O art. 50, VIII, da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, indica a redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva, como meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente. O artigo 10 da Lei 10.192 de 2001 dispõe que “os salários e demais condições referentes ao trabalho continuam a ser fixados e revistos, na respectiva data-base anual, por intermédio da livre negociação coletiva” e o art. 13 do mesmo diploma legal veda a estipulação de reajuste ou correção automática de salários vinculada a índice de preços. 6 ROMITA, Arion Sayão. Flexigurança: a reforma do mercado de trabalho. São Paulo: LTr, 2008. p. 30. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 121 O artigo 623 da CLT dispõe que “será nula de pleno direito disposição de convenção ou acordo que, direta ou indiretamente, contrarie proibição ou norma disciplinadora da política econômicofinanceira do Governo ou concernente à política salarial vigente [...]”. O artigo 2º da Lei n 4.923, de 23 de dezembro de 1965, dispõe a respeito da redução salarial prevista em instrumentos coletivos de trabalho, nos seguintes termos: Art. 2º - A empresa que, em face de conjuntura econômica, devidamente comprovada, se encontrar em condições que recomendem, transitoriamente, a redução da jornada normal ou do número de dias do trabalho, poderá fazê-lo, mediante prévio acordo com a entidade sindical representativa dos seus empregados, homologado pela Delegacia Regional do Trabalho, por prazo certo, não excedente de 3 (três) meses, prorrogável, nas mesmas condições, se ainda indispensável, e sempre de modo que a redução do salário mensal resultante não seja superior a 25% (vinte e cinco por cento) do salário contratual, respeitado o salário mínimo regional e reduzidas proporcionalmente a remuneração e as gratificações de gerentes e diretores. § 1º: Para o fim de deliberar sobre o acordo, a entidade sindical profissional convocará assembléia geral dos empregados diretamente interessados, sindicalizados ou não, que decidirão por maioria de votos, obedecidas as norma estatutárias. Na forma do dispositivo legal anteriormente indicado, a validade da cláusula normativa referente à redução salarial acompanhada da diminuição da jornada de trabalho depende da observância cumulativa dos seguintes requisitos: norma coletiva; comprovação da dificuldade financeira do empregador; tempo determinado; redução salarial limitada a 25% (vinte e cinco por cento) do salário contratual, respeitado o salário mínimo regional; e a diminuição proporcional da remuneração de gerentes e diretores. No que tange às possibilidades de flexibilização trabalhista, como já abordado, existem correntes permissivas restritivas e permissivas ampliativas, não havendo uniformidade a respeito da fixação de limites. Parte da doutrina defende que as situações já descritas compõem rol constitucional exaustivo permissivo da flexibilização (artigos 7º, VI, XIII e XIV), enquanto alguns estudiosos asseveram que admissibilidade de redução de salário por ser medida mais grave também compreende o entendimento de que outras R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 122 situações menos gravosas estariam implicitamente autorizadas, além de que não há restrição constitucional expressa ao conteúdo da negociação coletiva . Marcus Orione indica que a flexibilização trabalhista exige uma interpretação sistemática e finalística do conteúdo e da extensão das normas constitucionais, pois a Carta Magna consagra a proteção do trabalhador (art. 7º, caput) e excepciona as hipóteses de negociação in pejus, apresentando consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana.7 Para Marcus Orione, o argumento no sentido de que a autorização constitucional de negociação da redução salarial possibilita flexibilização de todas as condições da relação de emprego não se coaduna com o espírito da Constituição tão pródiga na relação de direitos sociais, senão vejamos: a interpretação antes mencionada foge completamente ao espírito da carta política, introduz uma letra de lei à Constituição, além do que esta mesma teria pretendido. Este é um dos casos clássicos de interpretação constitucional involutiva, em que se cria, por meio do falso exercício hermenêutico, o sentido da demolição de direitos que a própria Constituição vinha conflagrando e prestigiando. Isto sim é fazer as vezes, inadequadamente, de legislador constitucional, interpretando de forma completamente contrária ao espírito da Constituição. Triste é conceber que, mesmo com esta constatação, tem-se notícia de decisões judiciais que, sem fazer menção a esta interpretação, acabaram por incorporá-la na sua ratio de forma a fazer valer dos anos 90 um período de escalada de diminuição de direitos trabalhistas.8 A flexibilização trabalhista por meio da negociação coletiva encontra amparo no reconhecimento dos acordos e das convenções coletivas, no princípio da autonomia privada coletiva (artigos 7 º, XXVI e 8 º da Lei Maior) e na necessidade de combate ao desemprego, de redução do custo da produção e de sobrevivência das empresas, diante da acentuada competitividade vinculada ao fenômeno da globalização. Não obstante a existência de entendimento em sentido contrário, os direitos sociais trabalhistas previstos no art. 7º da Carta Magna devem ser considerados cláusulas pétreas - núcleo 7 8 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Direito Constitucional do Trabalho: Re lações Coletivas. In: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz et al. (org.). Curso de Direito do Trabalho: Direito Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2008. v.III, p. 29. Idem R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 123 constitucional intangível não passível de abolição ou diminuição, por meio do Poder Constituinte Reformador (art. 60, § 4º, da Carta Magna) - devido aos seguintes argumentos: a) a interpretação literal não deve prevalecer sobre a interpretação sistemática e teleológica em matéria de direitos fundamentais; b) estão previstos no Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, da Constituição Federal, o que indica a opção expressa (mens legis e mens legislatoris) de atribuir fundamentalidade aos referidos direitos; c) todos os direitos humanos, inclusive os reconhecidos de primeira e segunda dimensões são indivisíveis e interdependentes, de forma que os direitos civis e políticos apenas apresentam máxima efetividade mediante a concretização dos direitos sociais; d) o art. 5º, § 2º, da Lei Maior não exclui a aplicação de outros direitos decorrentes de princípios e do regime por ela adotados, ou de tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte, ainda que não previstos nos incisos do referido dispositivo, além de que o § 1º do referido dispositivo confere aplicação imediata às normas definidoras de direitos fundamentais sem indicar distinções ou restrições; e e) a previsão no sentido de vedação ao retrocesso, no que tange aos direitos fundamentais, inclusive sociais, contida na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).9 A mens legis significa o espírito da norma, que deve ser objeto de interpretação à luz dos princípios e valores constitucionais, com destaque para a dignidade da pessoa humana e concreção dos direitos humanos e fundamentais. Já a mens legislatoris corresponde ao sentido pretendido pelo legislador, a qual se encontra em um segundo plano, não prevalecendo sobre espírito da norma no caso de colisão. As formas autônomas e heterônomas de produção normativa trabalhista devem observar como limites as cláusulas pétreas indicativas do núcleo constitucional intangível não passível de abolição ou diminuição, por meio do Poder Constituinte Reformador, as quais abrangem a totalidade dos direitos fundamentais, inclusive os direitos sociais trabalhistas (art. 60, § 4º, IV, da Carta Magna). O Enunciado n. 9, da Comissão I – Direitos Fundamentais e as Relações de Trabalho, aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, em 23/11/2007, contempla corrente restritiva das hipóteses de flexibilização trabalhista, senão vejamos: 9 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 428-434. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 124 (...) 9. FLEXIBILIZAÇÃO. I – FLEXIBILIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS. Impossibilidade de desregulamentação dos direitos sociais fundamentais, por se tratar de normas contidas na cláusula de intangibilidade prevista no art. 60, § 4º, inc. IV, da Constituição da República. II – DIREITO DO TRABALHO. PRINCÍPIOS. EFICÁCIA. A negociação coletiva que reduz garantias dos trabalhadores asseguradas em normas constitucionais e legais ofende princípios do Direito do Trabalho. A quebra da hierarquia das fontes é válida na hipótese de o instrumento inferior ser mais vantajoso para o trabalhador. O princípio da proibição do retrocesso, consagrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica),10 abrange dois aspectos: a) o comando para melhora da estrutura protetiva da pessoa humana (progressividade); e b) a vedação a medidas ilegítimas de natureza supressiva, redutora ou restritiva que alcancem posições jurídicas diretamente vinculadas aos direitos fundamentais no plano constitucional ou, ainda, no plano infraconstitucional após concretizadas, ou seja, depois de atingir determinado grau de realização. Na seara trabalhista, Sarlet registra o seguinte: Note-se que a proteção contra eventual retrocesso, mesmo no campo dos direitos fundamentais, também não abrange apenas os direitos de cunho prestacional (positivo) embora nesta esfera seja mais usual e possivelmente mais impactante no que diz com as suas conseqüências, mas também alcança a proteção de outros direitos sociais, bastando aqui referir os direitos dos trabalhadores (boa parte dos quais são, em primeira linha, direitos de defesa |negativos|).11 Particularmente, entende-se que não há razão para que o princípio da proibição do retrocesso não seja aplicado no âmbito das negociações coletivas, em decorrência da força normativa dos princípios, na linha do pós-positivismo. 10 Artigo 26. Desenvolvimento Progressivo. “Os Estados-Partes comprometemse a adotar providência, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”. O Pacto de São José da Costa Rica foi integrado ao sistema de direito positivo interno do Brasil pelo Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. 11 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 447. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 125 No tocante à aplicação do princípio da proibição do retrocesso no âmbito contratual, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho ensinam o seguinte, com apoio nas lições de José Joaquim Gomes Canotilho: Nesse passo, lembramo-nos do que o magistral J. J. Canotilho denominou princípio da vedação ao retrocesso ou do não retrocesso social: “Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo”. E mais adiante arremata: “O reconhecimento desta proteção de ‘direitos prestacionais de propriedade’, subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjetivamente alcançadas”. Embora concebido, segundo esse trecho do ilustre constitucionalista, para ser aplicado sobretudo em defesa dos direitos sociais, nada impede que transplantemos o princípio do não retrocesso social para o âmbito do direito contratual, uma vez que, segundo a perspectiva constitucional pela qual estudamos esse último, a violação da função social do contrato traduzir-se-ia, sem dúvida, em inegável retrocesso em nossa nova ordem jurídica.12 No entanto, à luz do critério da ponderação, que afasta a regra do tudo ou nada em matéria de princípios, a proibição do retrocesso não apresenta caráter absoluto, razão pela qual o referido princípio não pode ser considerado mecanismo de petrificação das atividades legislativa e negocial. Desse modo, o princípio da vedação do retrocesso encontra-se sujeito à relativização caracterizada pelo equilíbrio entre o direito à segurança jurídica e a necessidade de realização de ajustes, pois as modificações constitucionalmente legítimas vinculadas aos anseios da sociedade também visam à segurança, sempre garantindo as condições necessárias a uma vida com dignidade13. Assim, qualquer medida restritiva, para ser considerada legítima, exige proporcionalidade e razoabilidade entre a restrição legal à proteção da confiança individual e o objetivo 12 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. tomo 1, v. IV, p. 49. 13 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 466 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 126 normativo consistente na tutela da coletividade.14 Portanto, diante de uma medida retrocessiva, no caso concreto, a verificação de eventual violação ao princípio da proibição do retrocesso deve ser objeto de interpretação sistemática condizente com a dignidade da pessoa humana à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, exigindo justificativa plausível. O princípio da adequação setorial negociada defendido por Mauricio Godinho Delgado impõe limites à negociação coletiva e, conseqüentemente, contempla restrições à flexibilização trabalhista. De acordo com o princípio da adequação setorial negociada, não se admite a renúncia. Logo, é imprescindível a existência de contrapartida a favor do trabalhador no âmbito da negociação coletiva, além de ter como objeto direitos de indisponibilidade relativa. Além disso, o referido princípio não concebe a transação sobre direitos qualificados pela indisponibilidade absoluta, como aqueles relativos à saúde no trabalho, pois estes são necessários ao respeito ao mínimo existencial baseado na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho (artigos 1º, III, IV e 170, caput, da Constituição Federal). A jurisprudência indica posições divergentes sobre os limites da flexibilização trabalhista. Dentre as medidas de flexibilização reconhecidas, o Tribunal Superior do Trabalho consagrou admissibilidade da fixação do adicional de periculosidade, em percentual inferior ao legal e proporcional ao tempo de exposição ao risco, quando pactuada em convenções ou acordos coletivos, a teor da Súmula n. 364, II, da referida corte.15 14 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 465. 15 Súmula n. 364 do TST: “ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. EXPOSIÇÃO EVENTUAL, PERMANENTE E INTERMITENTE (conversão das Orientações Jurisprudenciais nºs 5, 258 e 280 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005. I - Faz jus ao adicional de periculosidade o empregado exposto permanentemente ou que, de forma intermitente, sujeita-se a condições de risco. Indevido, apenas, quando o contato dá-se de forma eventual, assim considerado o fortuito, ou o que, sendo habitual, dá-se por tempo extremamente reduzido. (ex-Ojs da SBDI-1 nºs 05 - inserida em 14.03.1994 - e 280 - DJ 11.08.2003). II - A fixação do adicional de periculosidade, em percentual inferior ao legal e proporcional ao tempo de exposição ao risco, deve ser respeitada, desde que pactuada em acordos ou convenções coletivos. (ex-OJ nº 258 da SBDI-1 - inserida em 27.09.2002)”. Disponível em: <www.tst.jus.br> Acesso em: 13 out. 2008. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 127 A Orientação Jurisprudencial n. 342 da SDI-1 do TST dispõe que: “INTERVALO INTRAJORNADA PARA REPOUSO E ALIMENTAÇÃO. NÃO CONCESSÃO OU REDUÇÃO. PREVISÃO EM NORMA COLETIVA. VALIDADE. DJ 22.6.04. É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva.” 16 A função social do contrato indica que o instrumento de manifestação da vontade privada está adstrito à tutela da coletividade por meio da observância à satisfação do interesse social e à concretização da dignidade da pessoa humana, o que exige lealdade, boa-fé, equilíbrio contratual, ausência de condutas abusivas e o bem comum, nas tratativas, na execução e na extinção contratual. Os artigos 5º, XXIII, 186, 182, § 2º e 170, III, da Carta Magna contemplam a função social da propriedade que está diretamente vinculada à função social do contrato, pois este é instrumento de viabilização de situações jurídicas que envolvem o direito de propriedade. O artigo 421 do Código Civil preceitua que “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. O parágrafo único, do art. 2.035 do Código Civil estabelece que “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para 16 Contudo, em sentido oposto, a decisão da Seção de Dissídios Coletivos do TST, posterior à edição da Orientação Jurisprudencial n. 342 da SDI-1 do TST, embora o acórdão em tela aponte inexistir ofensa ao verbete jurisprudencial anteriormente descrito: “NEGOCIAÇÃO COLETIVA. INTERVALO INTRAJORNADA. VALIDADE. Quando a norma coletiva estabelece condições que não implicam, necessária e objetivamente, ofensa à saúde, à segurança e à dignidade do trabalhador, não se pode concluir que ela a norma ofende o § 3º do art. 71 consolidado. É o que acontece com a negociação que prevê o intervalo intrajornada fracionado, isto é, composto de vários intervalos menores. É sob essa ótica que deve ser examinada a teoria do conglobamento, que, como se sabe, não autoriza a ampla e restrita negociação. Mas, no caso concreto, o negociado deve ser preservado, pois ele não colide com normas fundamentais e indisponíveis. Neste caso, portanto, não se decide com ofensa à Orientação Jurisprudencial n. 342/SBDI-1. TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO TST. Ac. TST - SDC - Proc. ROAA n. 141515/2004-90001-00.5, publicado no DJ em 11 de abril de 2006. Rel. Ministro José Luciano de Castilho Pereira. Disponível em: <www.tst.jus.br> Acesso em: 6 out. 2008. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 128 assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. A função social tem aplicação no campo do Direito individual do trabalho e no âmbito do Direito coletivo do trabalho, pois nos dois casos a perspectiva objetiva apresenta caráter contratual que vincula os sujeitos envolvidos, embora cada situação contenha peculiaridades. Logo, no âmbito do Direito coletivo do trabalho, os pactos celebrados devem observar a função social, o que exige também a ausência de cláusulas que contrariem os interesses da coletividade. Ao abordar a função social no Direito coletivo do trabalho, Rodrigo Trindade de Souza conclui: A função social da convenção ou acordo coletivo deve ser retirada do atendimento aos interesses e duas ordens de coletividade: primeiramente, da integralidade da comunidade, observando-se todo o espaço nacional; segundo, os próprios representados pelo sindicato. Com essa premissa, aclara-se que a função social do contrato, ou da negociação coletiva, também se apresenta pela contraposição entre valores coletivos e valores individuais (ainda que “coletivizados” pelo sindicato) como fator da liberdade de contratar.17 O autor arremata: Por efeito, o estabelecimento de cláusulas de convenções e acordos coletivos, ainda que livremente firmadas entre entidades representativas do capital e trabalho, mas contrárias aos interesses da coletividade – representada ou não – não podem ser consideradas como cumpridoras de sua função social.18 Cláudia Zaneti Saegusa indica que a flexibilização não é ilimitada, pois deve a autonomia privada coletiva submeter-se aos princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da proporcionalidade e daqueles inerentes ao Direito Coletivo do Trabalho.19 Segundo Arnaldo José Duarte do Amaral, o limite da flexibilização trabalhista corresponde aos direitos fundamentais de 17 SOUZA, Rodrigo Trindade de. Função social do contrato de emprego. São Paulo: LTr, 2008. p. 164. 18 Idem 19 SAEGUSA, Cláudia Zaneti. A flexibilização e os princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2008. p. 101-102. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 129 empregados e empregadores, pois no Estado Democrático de Direito a autonomia da vontade deve ser interpretada à luz dos direitos fundamentais e da dignidade humana. Logo, para o autor não é possível adotar como limite à flexibilização apenas o cumprimento de dois requisitos acolhidos pelo c. Tribunal Superior do Trabalho em alguns julgados: previsão em norma coletiva e modificação favorável à ampliação do mercado de trabalho.20 Vólia Bomfim defende que há abuso de direito quando a flexibilização não atender ao fim social do Direito do Trabalho, senão vejamos: a pedra de toque para a limitação do direito de flexibilizar é o não abuso deste direito, isto é, a sua utilização de acordo com o fim social do Direito do Trabalho. Só se pode conceber a dignidade do trabalhador quando o direito é exercido de acordo com sua função social. Neste sentido, considera-se abusiva toda e qualquer norma coletiva que tente reduzir direitos previstos em lei sem o necessário motivo: séria crise econômica, que deve sersempre comprovada, em face do princípio da transparência nas negociações coletivas.21 20 SAEGUSA, Cláudia Zaneti. A flexibilização e os princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2008. p. 101-102. 21 Portanto, em um Estado democrático de direito, há um limite ao negociado, ao flexibilizado, em todos os campos da atividade humana. Diverso não é no campo do direito do trabalho. Há limites, portanto, à flexibilização, que não são mais o disposto em lei ou convenção coletiva, consoante estabelece o art. 444 da CLT vigente. O limite é o respeito e a concreção dos direitos fundamentais dos empregados e empregadores. Nesse sentido, no âmbito de um Estado democrático de direito, a lei, ou qualquer outro instrumento normativo, incluindo os acordos e convenções coletivas do trabalho, devem ser interpretados em conformidade com os direitos fundamentais. Tudo isso sem se descurar de outro direito fundamental dos empregados e empregadores: a autonomia da vontade (derivação do direito fundamental à liberdade, sem o qual não haveria de se falar em direito do trabalho). Mas a autonomia da vontade não é – ainda bem – o único direito fundamental a ser considerado pelo operador do direito; há outros direitos fundamentais em jogo, sobremodo, o direito à dignidade humana. [...] Não se faz possível, assim, adotar como limite à flexibilização tão-somente o cumprimento de dois requisitos acolhidos pelo TST em alguns julgados, quais sejam, primeiro, ser prevista em norma coletiva; segundo, quando ‘a mudança favorece a ampliação do mercado de trabalho’. [...] Em um Estado democrático de direito, qualquer violação a direito fundamental sofre a pecha de inconstitucionalidade e pode – deve – ser anulada, até mesmo de ofício, pelo Poder Judiciário. Suprimir os direitos fundamentais nem ao Constituinte derivado é autorizado!”. AMARAL, Arnaldo José Duarte. Estado Democrático de Direito: nova teoria geral do Direito do Trabalho – adequação e compatibilidade. São Paulo: LTr, 2008. p. 111-112. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 130 A validade da norma coletiva autorizadora da flexibilização trabalhista exige concessões mútuas, ou seja, vantagens e sacrifícios para os envolvidos, de modo que não é admissível a mera renúncia. Portanto, a concessão trabalhista está vinculada à existência de contrapartida consistente em vantagem razoável e proporcional ao sacrifício. Nessa linha de pensamento, Silvio Beltramelli Neto salienta que: Finalmente, estando constitucionalmente autorizada a flexibilização que se submete a julgamento, e permanecendo preservada a dignidade do trabalhador, o Princípio Protetor, inerente ao Direito do Trabalho exige, como condição de validade da negociação coletiva, que a vantagem do trabalhador que tenha sido suprimida ou reduzida corresponda a conquista diretamente proporcional. Para tanto, é mister que o julgador proceda à análise do conjunto de concessões e renúncias que constam do instrumento negocial, novamente sendo levado a ponderar a natureza dos direitos e obrigações abrangidos e sua razoabilidade dentro do produto final do pacto que pretende reger a relação dos envolvidos22 Em decorrência da necessidade de preservação do interesse público, as normas infraconstitucionais de ordem pública, ou seja, de natureza cogente (indisponível), que consagrem ou não direitos materialmente constitucionais, devem ser observadas (exemplos: artigos 623 da CLT, 2º da Lei n 4.923 de 1965, bem como 10 e 13 da Lei n. 10.192 de 2001). Insta ressaltar que o artigo 2º da Lei n. 4.923 de 1965 atende à tutela da dignidade do trabalhador de forma a propiciar o mínimo existencial sem retrocessos, a melhoria da condição social do trabalhador (art. 7º, caput, da Lei Maior), o equilíbrio necessário entre a livre iniciativa e o valor social do trabalho (arts. 1º, IV e 170 da Constituição Federal), a busca do pleno emprego (art. 170, VIII, da Carta Magna), a função social da propriedade (arts. 5º, XXIII; 170, III; 182, §2º; e 186; da Lei Maior) e, consequentemente, a função social do contrato, o que é suficiente para verificar, por meio de uma interpretação sistemática e teleológica, que a norma em apreço fora recepcionada pela Constituição Federal de 1998, não obstante a existência de posicionamento em sentido contrário. 22 BELTRAMELLI, Sílvio. Limites da flexibilização dos direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2008. p. 100. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 131 No dia 03/02/2009, o Ministério Público do Trabalho, por meio da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região – São Paulo, expediu recomendação a todas entidades sindicais, no tocante às negociações coletivas atinentes à redução da jornada de trabalho, com a diminuição de salários, na qual destacou a possibilidade de pactuação de medidas emergenciais, que visem à preservação dos empregos, baseadas em critérios objetivos e no menor impacto social, exigindo o cumprimento dos direitos trabalhistas mínimos e da Lei 4.923 de 1965.23 O Ministério Público do Trabalho acrescentou ainda na notificação recomendatória a necessidade de observância dos seguintes aspectos: a vedação do trabalho em jornada extraordinária enquanto perdurar a norma coletiva, salvo em situações de emergência e de força maior, que serão objeto da negociação coletiva; e a remessa do instrumento coletivo, preferencialmente antes de firmados, ao Ministério Público do Trabalho para análise.24 Diante do exposto, a flexibilização trabalhista não encontra fórmula rígida para a fixação de seus limites, os quais, sem a pretensão do estabelecimento de critérios exaustivos ou fechados, diante dos casos concretos, devem ser consubstanciados de forma cumulativa nos seguintes parâmetros: a) a preservação da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, bem assim a busca do pleno emprego; b) o respeito aos direitos humanos e fundamentais previstos dentro e fora do catálogo (concepção aberta de direitos materialmente constitucionais), com base no artigo 5º, § 1º e § 2º, da Constituição Federal, sem prejuízo das situações permissivas expressamente previstas no texto constitucional (art. 7º, VI, XIII e XIV); c) a inexistência de violação ao princípio da proibição do retrocesso que deve ser objeto de interpretação sistemática condizente com a dignidade da pessoa humana à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade; d) a observância das normas infraconstitucionais de ordem pública, ou seja, de natureza cogente (indisponível) destinadas a preservar interesse público, que consagrem ou não direitos materialmente constitucionais (exemplos: artigos 623 da CLT, 2º da Lei n 4.923 de 1965, bem como 10 e 13 da Lei n. 10.192 de 2001); e) o exercício do direito à produção de norma coletiva autônoma com observância à sua função social, em conformidade com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sem a 23 Disponível em: <www.prt2.mpt.gov.br/form/pmanifestacao.php>. Acesso em: 21 fev. 2009. 24 Idem R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 132 caracterização de condutas abusivas; e f) a exigência de contrapartida que justifique a concessão trabalhista na flexibilização autônoma. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A flexibilização trabalhista pode ser conceituada como adaptação, ajuste ou mitigação das normas trabalhistas, por meio das vias legislativa ou negocial. Não há uniformidade na doutrina e na jurisprudência no tocante aos critérios e aspectos limitativos da flexibilização trabalhista. A flexibilização trabalhista não encontra fórmula rígida para a fixação de seus limites, os quais, sem a pretensão do estabelecimento de critérios exaustivos ou fechados, diante dos casos concretos, devem ser consubstanciados de forma cumulativa nos seguintes parâmetros: a preservação da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, bem assim a busca do pleno emprego; o respeito aos direitos humanos e fundamentais previstos dentro e fora do catálogo (concepção aberta de direitos materialmente constitucionais), com base no artigo 5º, § 1º e § 2º, da Constituição Federal, sem prejuízo das situações permissivas expressamente previstas no texto constitucional (art. 7º, VI, XIII e XIV); e a inexistência de violação ao princípio da proibição do retrocesso que deve ser objeto de interpretação sistemática condizente com a dignidade da pessoa humana à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Além disso, ainda devem ser considerados aspectos limitativos da flexibilização trabalhista no caso concreto: a observância das normas infraconstitucionais de ordem pública, ou seja, de natureza cogente (indisponível) destinadas a preservar interesse público, ainda que consagrem ou não direitos materialmente constitucionais (exemplos: artigos 623 da CLT, 2º da Lei n 4.923 de 1965, bem como 10 e 13 da Lei n. 10.192 de 2001); o exercício do direito à produção de norma coletiva autônoma com observância à sua função social, em conformidade com os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sem a caracterização de condutas abusivas; e a exigência de contrapartida que justifique a concessão trabalhista na flexibilização autônoma. Portanto, o negociado em matéria laboral não pode prevalecer de forma absoluta sobre o legislado, assim como as alterações na legislação trabalhista que afetem as garantias dos trabalhadores, também encontram limites. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 133 REFERÊNCIAS AMARAL, Arnaldo José Duarte. Estado democrático de direito: nova teoria geral do Direito do Trabalho: adequação e compatibilidade. São Paulo: LTr, 2008. BELTRAMELLI NETO, Sílvio. Limites da flexibilização dos direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2008. BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho decente: análise jurídica da exploração do trabalho: trabalho forçado e outras formas de trabalho indigno. São Paulo: LTr, 2004. ______. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise a partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. In: VELLOSO, Gabriel et al. (coord.). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. Niterói-RJ: Impetus, 2007. CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Direito Constitucional do Trabalho – Relações Coletivas. In: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz et al. (Org.). 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Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2007. ______. Flexigurança: a reforma do mercado de trabalho. São Paulo: LTr, 2008. SAEGUSA, Cláudia Zaneti. A flexibilização e os princípios de Direito Individual e Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2008. p. 101-102. SARLET, Ingo Wolfgang. A dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. ______. Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. SOUZA, Rodrigo Trindade de. Função social do contrato de emprego. São Paulo: LTr, 2008. STOLL, Luciana Bullamah. Negociação coletiva no setor público. São Paulo: LTr, 2007. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.113-132, jul./dez. 2009 135 O BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO FIGURA JURÍDICA ÚTIL E APLICÁVEL NOS LIAMES LABORAIS Christiana D’arc Damasceno Oliveira* 1 INTRODUÇÃO O que é bloco de constitucionalidade? Para quê serve? Que incidência tem na atuação de quem lida com as relações de trabalho? São questões a serem abordadas neste artigo, em que se aludirá à origem e conceituação do instituto em referência, bem assim ao respectivo nexo com o Direito do Trabalho e com os direitos fundamentais nas relações laborais, sejam eles direitos trabalhistas específicos (ou propriamente trabalhistas) ou não específicos. Para tanto, com base nas propostas teóricas do jusfilósofo espanhol Joaquín Herrera Flores, será tangenciada a contemporânea acepção crítica e concreta dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, aí incluídos os trabalhistas. Buscar-se-á também evidenciar que os direitos humanos e fundamentais nas relações de labor enriquecem o conceito de bloco de constitucionalidade, o que repercute diretamente na maximização, na área do Direito do Trabalho, de sua nota tuitiva e do viés do trabalho decente como mecanismo de inclusão social. 2 CONTEÚDO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIFERENCIAÇÃO RESPECTIVA Inicialmente, importa atentar para o conteúdo dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, assim também para a distinção correspondente. Assevera Joaquín Herrera Flores que “os direitos humanos, mais que direitos ‘propriamente ditos’ são processos; ou seja, o resultado, sempre provisório, das lutas que os serem humanos põem em prática para poder ter acesso aos bens necessários à vida.”1 * 1 Juíza Federal do Trabalho na 14ª Região. “Los derechos humanos, más que derechos ´propiamente dichos´ son procesos; es decir, el resultado, siempre provisional, de las luchas que los seres humanos ponen en práctica para poder acceder a los bienes necesarios para la vida.” HERRERA FLORES, Joaquín. La reinvención de los derechos humanos. Sevilla: Atrapasueños, 2008. p. 22. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 136 Os direitos humanos afirmam-se historicamente em perspectiva que não é linear, por meio de uma racionalidade de resistência, configurando resultado sempre provisional no processo de luta pelo desenvolvimento de potencialidades humanas, de modo igualitário, por meio dos bens materiais e imateriais para acesso a uma vida digna. Por conseguinte, não são eles um dado a priori, e tampouco representam um patamar definitivo, detendo historicidade. Para Herrera Flores, os direitos humanos caracterizamse como uma unidade complexa integrada pela criação de espaços com condições econômicas, sociais, políticas, culturais e jurídicas, motivo pelo qual estão imersos em um contexto, e não em um patamar transcendental. Daí que não basta a mera previsão de tais categorias em texto de lei como algo de titularidade de todos de forma imanente (igualdade formal), em que pese nem todos possam, de fato, ter acesso a tais direitos (igualdade material) no plano da realidade da vida, com os conceitos que lhe subjazem de liberdade positiva e fraternidade emancipadora. Referidas categorias se inserem em um conceito concreto denominado pelo jusfilósofo espanhol de “diamante ético”2, o que supõe uma sintaxe dos múltiplos componentes que definem os direitos humanos no mundo contemporâneo, a integrar unidade complexa e coesa, com facetas lapidadas e elementos passíveis de visualização de qualquer prisma que se observe, todos conexos entre si. Para o referido autor, tais direitos consistem em um dos meios de garantia de processos de luta por acesso digno a bens materiais e imateriais, inseridos no processo de divisão do fazer humano, do trabalho, observado a nota da interculturalidade, no sentido de obter respostas às situações de opressão, desigualdade e injustiça que se presenciam em tempos de globalização, em que emerge a inefetividade não somente dos direitos econômicos, sociais e culturais, assim também de direitos civis e políticos, coletivos e outros.3 Nesse tocante, em especial na esfera das relações trabalhistas, veja-se que a apreensão dos direitos humanos e dos 2 3 HERRERA FLORES, Joaquín. “Situar” los derechos humanos. El “diamante ético” como marco pedagógico y de acción. Disponível em: www.upo.es. Acesso em: 29 mar. 2008. Idem. Los derechos humanos y el orden global 3 desafíos teóricopolíticos. Disponível em: www.upo.es. Acesso em: 5 abr. 2008. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 137 direitos fundamentais se sucede de modo interativo com os processos sociais e econômicos, não se subsumindo a um prisma abstrato. Notadamente com esteio na denominada Teoria Crítica, tem despontado assim racionalidade concretista no que tange aos direitos humanos, dotando-os de caracteres integradores e contextualizados, em que se considera as mudanças sociais, os liames que se estabelecem e se diluem, e as exclusões e mesclas provocadas no quadro presente, no sentido de viabilizar a implementação concreta do teor das categorias normativas. Disso resulta que não se limitam os direitos humanos, portanto, ao aspecto de juridicidade, em que pese seja esse viés um elemento importante como um dos sistemas de garantia desses direitos, já que estes também demandam o incremento de outros sistemas de garantia para sua concretude, a exemplo de políticas públicas e uma economia aberta às exigências da dignidade.4 A perspectiva tradicional divide os direitos em quatro gerações estanques, no sentido de caracterizar a “evolução” correlata, conferindo ênfase à suposta ordem histórica de surgimento correspondente, sendo o principal divulgador de tal doutrina Norberto Bobbio.5 Nesse sentido, a teoria tradicional aponta as seguintes gerações: 1ª Geração: direitos civis e políticos (em especial direitos ligados à liberdade, à vida e à propriedade), normalmente identificados com um não fazer (direitos negativos) e característicos do Estado Liberal – origem no século XVIII e meados do século XIX; 2ª Geração: direitos sociais, econômicos e culturais (também denominados direitos da igualdade), normalmente identificados com um fazer (direitos a prestações) e característicos do Estado Social origem a partir do século XIX; 3ª Geração: direitos do consumidor, ao meio ambiente equilibrado, à paz e ao desenvolvimento, além de direitos difusos e coletivos outros (direitos da fraternidade ou da solidariedade) e característicos do Estado Democrático e Social – origem a partir da segunda metade do século XX; e 4ª Geração: conforme Noberto Bobbio, seria integrada 4 5 HERRERA FLORES, Joaquín. La reinvención de los derechos humanos. Sevilla: Atrapasueños, 2008. p. 28. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5. Tradução de Nelson Coutinho. A despeito de tal doutrina ter sido amplamente difundida pelo jurista italiano Bobbio, foi concebida, na realidade, por Karel Vasak. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 138 pelos direitos afetos à engenharia genética. Para Paulo Bonavides, aqui se enquadrariam, na verdade, os direitos da cidadania e da globalização política. Além disso, parte da doutrina junge grupos adicionais. Paulo Bonavides, em que pese utilizando inicialmente a expressão “gerações” de direitos, defende a maior propriedade da expressão “dimensões”. Arion Sayão Romita, de sua parte, indica que tanto o termo “gerações” como o termo “dimensões” não seriam apropriados, optando por apresentar esquema classificatório que se refere a “famílias”, “naipes”, ou “grupos” de direitos fundamentais. Assim, acrescem tais autores as categorias seguintes: 5ª Grupo: para Paulo Bonavides, que emprega a expressão dimensão, seria formado pelo direito à paz,6 diferentemente do posicionamento de Norberto Bobbio que incluiu tal direito na denominada terceira geração de direitos. Para Arion Sayão Romita, que utiliza a denominação família ou naipe de direitos, tal categoria seria formada pelos direitos oriundos da utilização da informática e da cibernética;7 6ª Grupo: Arion Sayão Romita adiciona também a sexta família ou naipe de direitos fundamentais, que, em seu entender, refere-se aos direitos emergentes da globalização, a exemplo do direito à democracia, à informação correta e ao pluralismo.8 Importante registrar que, apesar de municiar-se das expressões “geração” e “dimensão” de direitos humanos, Paulo Bonavides freqüentemente frisa em sua argumentação a unidade que tais assim denominadas categorias (no seu entender, cinco) observam entre si, bem assim aduz que o surgimento, oficialização e consolidação dos direitos fundamentais ocorreu no curso da história, por meio de processo cumulativo e qualitativo, e não por meio de evolução sem desvios, com caducidade das categorias antecedentes.9 Nesse mesmo sentido, direcionam-se as assertivas de Arion Sayão Romita.10 6 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22.ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 560-580, passim. 7 ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 2. ed. rev. e aum. São Paulo : LTr, 2007. p. 102. 8 Idem 9 BONAVIDES, op. cit., p. 571-572. 10 ROMITA, op. cit., p. 129-130. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 139 Além disso, embora utilize as expressões “família”, “naipe” ou “grupo”, mantendo a categorização dos direitos fundamentais em blocos específicos, refere Arion Sayão Romita entendimento quanto à necessidade de considerar-se o “homem situado” e, portanto, as particularidades correspondentes para fins de incidência dos direitos fundamentais.11 A concepção tradicional, fundada em especial na doutrina de Bobbio, traduz a idéia de “sucessão” de uma geração por outra e de “linearidade” na conquista dos direitos. Veja-se, entretanto, que, em que pese o valor didático de tal classificação para o estudo dos direitos fundamentais, inexiste correlação exata entre as denominadas gerações e o processo histórico de surgimento e expansão dos direitos respectivos, bem assim não há eliminação de direitos de uma verve por outros. Isto porque, como nota Antônio Augusto Cançado Trindade, “[...] enquanto no direito interno (constitucional) o reconhecimento dos direitos sociais foi historicamente posterior ao dos civis e políticos, no plano internacional ocorreu o contrário, conforme exemplificado pelas sucessivas e numerosas convenções internacionais do trabalho, a partir do estabelecimento da OIT em 1919, muitas das quais precederam a adoção de convenções internacionais mais recentes voltadas aos direitos civis e políticos.”12 Outrossim, observa George Marmelstein Lima que “a expressão pode induzir a idéia de que o reconhecimento de uma nova geração somente pode ou deve ocorrer quando a geração anterior já estiver madura o suficiente, dificultando bastante o reconhecimento de novos direitos, sobretudo nos países ditos periféricos (em desenvolvimento), onde sequer se conseguiu um nível minimamente satisfatório de maturidade dos direitos da chamada ‘primeira geração.’”13 Também afirma o Juiz Federal que “por causa disso, a teoria contribui para a atribuição de baixa carga de normatividade e, conseqüentemente, de efetividade dos direitos sociais e econômicos, tidos como direitos de segunda geração e, portanto, 11 ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 2. ed. rev. e aum. São Paulo : LTr, 2007. p. 210-211 12 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 41. 13 LIMA, George Marmelstein. Críticas a Teoria das Gerações (ou mesmo Dimensões) dos Direitos Fundamentais. p.3. Disponível em: http://www. georgemlima.xpg.com.br/geracoes.pdf. Acesso em: 1º out. 2006. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 140 sem prioridade de implementação. Até em países desenvolvidos, como nos Estados Unidos, ainda não se aceita pacificamente a idéia de que os direitos sociais são verdadeiros direitos fundamentais, apesar de inúmeras Constituições de Estados-membros consagrarem em seus textos direitos dessa espécie.”14 A par disso, note-se que a categorização das posições jurídicas como integrantes de um específico grupo arrefece a integralidade dos direitos fundamentais e a patente circunstância de o que se apresenta, na realidade, é uma carga preponderante em um dado direito fundamental de índole individual, social, coletiva e assim por diante, em um certo momento, na análise do caso concreto. No que atine à tradicional concepção dos direitos humanos, Luciana Caplan, citando Gallardo, elucida: A idéia geracional dos direitos humanos acaba por importar em uma noção de progresso e evolução, como se a conquista de uma das ‘gerações’ fosse o caminho para a conquista da ‘geração’ seguinte. Com ela, acaba-se por esquecer que a efetivação universal de direitos civis e políticos não pode acontecer de forma plena sem a dos direitos econômicos sociais e culturais. E vice-versa. Não há uma categoria cuja efetividade deva ser conquistada antes como condição para a efetividade da outra. Aliás, a idéia hegemônica que embasa os direitos civis e políticos perde força quando estes são efetivados apenas em conjunto com os direitos econômicos, sociais e culturais. No entanto, como ensina Gallardo: [...] as gerações de direitos não constituem um contínuo nem este contínuo, se existir, é portador de um ‘progresso’. O que se chama ‘gerações de direitos humanos’ remete a racionalidades encontradas que podem resultar mutuamente excludentes e que supõem rupturas. Entre o abstrato direito à vida e o direito a um salário que cubra as necessidades familiares e existenciais dos trabalhadores existe não somente uma diferença de conteúdo, senão especificamente um distinto critério (racionalidade ou discernimento) sobre a existência social e uma diversa apreciação sobre a legimitidade das lutas que sustentam estes critérios. Esquematicamente, o primeiro critério observa indivíduos que entram em 14 LIMA, George Marmelstein. Críticas a Teoria das Gerações (ou mesmo Dimensões) dos Direitos Fundamentais, p. 4. Disponível em: http://www. georgemlima.xpg.com.br/geracoes.pdf. Acesso em: 1º out. 2006. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 141 relações e se apóia nesta observação para propor direitos humanos básicos. O segundo discernimento repara em relações que constituem individualidades (e setores) para exigir um trato não discriminatório. A primeira luta, liberal-burguesa, forma complexamente parte do sentido comum moderno. A segunda se move contrariamente a este sentido material e resulta indispensável pelo que não seja acometida usualmente (desde o jusnaturalismo, por exemplo) senão como expressão de uma vontade cultural e política daqueles setores que necessitam transformar as relações sociais que constituem e reproduzem sua vulnerabilidade sócio-histórica. (tradução nossa)15 Por outro lado, mesmo a alteração do termo “gerações” para “dimensões” ou “famílias”, no intuito de afastar aquela idéia de alternância e realçar o fator de constante interseção entre os direitos fundamentais, não tem o condão de apreender em sua concretude os fatores reais e complexos que ocasionam alterações sociais, econômicas e culturais nos dias de hoje. Não se tem o intuito, porém, de infirmar o arcabouço de estudos que apresente referenciais diferenciados dos aqui adotados, objetivando-se, na realidade, realçar os pontos de contato e construir enfoque concretizador da dignidade do ser humano trabalhador, na persecução de relações laborais mais democráticas, com observância de direitos fundamentais e, por corolário, com a garantia do trabalho decente. Importante ter em mente que, mesmo produções teóricas bem intencionadas realizadas com esteio na teoria das gerações, dimensões ou famílias dos direitos humanos e fundamentais, têm sido apropriadas e utilizadas com o intuito de legitimar o cometimento de injustiças e o ocaso dos esforços de uma existência digna para todos (a exemplo da idéia do “mínimo existencial”, que o viés mercadológico desvirtua no sentido de constituir não um patamar basilar de garantias jurídicas, e sim o teto máximo a que se pode chegar por meio das políticas públicas). Mister, por conseguinte, uma concepção novel no que tange aos direitos humanos e fundamentais com o fito de viabilizar sua implementação, concepção essa dotada de caracteres integradores e contextualizados, devendo-se atentar que inexistem divisões ou preeminências entre os diversos tipos de direitos humanos e de 15 CAPLAN, Luciana. A (in)disponibilidade dos direitos sociais fundamentais nas negociações coletivas de trabalho: uma reflexão a partir da teoria crítica dos direitos humanos. Dissertação (Mestrado) – Universidade Prebisteriana Mackenzie, Pós-Graduação em Direito Político e Econômico. São Paulo, 2007. p. 49. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 142 direitos fundamentais, passando eles a serem analisados sob a ótica dos meios, e não dos fins, para que se possa recuperá-los, rechaçando-se, portanto, o inadequado marco categorial de sua inversão. Para os fins do presente estudo, no entanto, no que toca ao aspecto da juridicidade, dados os limites da abordagem a ser realizada, partir-se-á da premissa de que os direitos humanos se reportam a categorias normativas destinadas ao assecuramento da dignidade da pessoa humana, com reconhecimento na seara internacional, independentemente de vinculação a uma ordem jurídica interna específica; ao passo que os direitos fundamentais se referem a categorias normativas que tomam em conta os direitos humanos acolhidos expressa ou implicitamente na ordem jurídica de determinado Estado, sendo os direitos fundamentais, pois, um dos meios jurídicos de garantia dos direitos humanos.16 De todo modo, reforça-se que tal dicotomia apenas se apresenta sob o prisma didático e não sob o ponto de vista ontológico, dada a umbilical ligação entre as categorias em foco.17 3 DIREITOS FUNDAMENTAIS TRABALHISTAS ESPECÍFIDIREITOS FUNDAMENTAIS TRABALHISTAS ESPECÍFICOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS TRABALHISTAS NÃO ESPECÍFICOS No que tange às relações de trabalho, conforme se extrai do teor dos artigos 7º a 11 da CF, prevê a Constituição Federal diversos direitos fundamentais propriamente trabalhistas 16 CAPLAN, Luciana. A (in)disponibilidade dos direitos sociais fundamentais nas negociações coletivas de trabalho: uma reflexão a partir da teoria crítica dos direitos humanos. Dissertação (Mestrado) – Universidade Prebisteriana Mackenzie, Pós-Graduação em Direito Político e Econômico. São Paulo, 2007, p. 15. 17 Afirma Ingo Wolfgang Sarlet, aludindo à diferença de significado entre as expressões, que “reconhecer a diferença, contudo, não significa desconsiderar a íntima relação entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, uma vez que a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as sucederam, de tal sorte que – no que diz com o conteúdo das declarações internacionais e dos textos constitucionais – está ocorrendo um processo de aproximação e harmonização, rumo ao que já está sendo denominado (e não exclusivamente – embora principalmente –, no campo dos direitos humanos e fundamentais) de um direito constitucional internacional.” R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 143 ou trabalhistas específicos, individuais e coletivos. Tratam-se referidos direitos daqueles que só podem ser exercidos pelo trabalhador enquanto tal (ex., remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, do adicional de hora extra, do reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, da greve, etc.) Além disso, ao descrever que são direitos dos trabalhadores aqueles elencados naquele dispositivo, “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, revela a análise do caput do artigo 7º da Constituição Federal a acolhida em seu bojo do Princípio da Proteção, mandamento nuclear do Direito do Trabalho, sendo ali também albergada a cláusula da vedação do retrocesso social no que atine à aquisição de direitos trabalhistas. Há direitos fundamentais que incidem nas relações de trabalho, todavia, que não são tipicamente trabalhistas. Dirigemse a qualquer cidadão e, portanto, também ao trabalhador, que não se despe de sua condição de pessoa plena ao integrar o contrato de labuta, motivo pelo qual, além dos direitos propriamente trabalhistas ou trabalhistas específicos, nos planos individual e coletivo (artigos 7º a 11 da CF), são-lhe direcionados direitos outros, ditos fundamentais trabalhistas não específicos. De efeito, o ingresso do trabalhador no âmbito laboral, no qual goza de direitos fundamentais trabalhistas típicos, não lhe suprime sua condição de dignidade e, por exemplo, direitos não específicos albergados no artigo 5º da CF, como o de objeção de consciência (inciso VIII)20, liberdade de exercício de ofício ou profissão (inciso XIII) e direitos de personalidade (direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, incisos V, X e XII), sendo integrantes do patamar normativo nas relações de labor tanto os direitos propriamente trabalhistas como os direitos trabalhistas não específicos, todos a figurarem como aspectos limitativos do poder do tomador de serviços. Cabe realçar que os direitos fundamentais trabalhistas não específicos podem ser objeto de modulação, dada a natureza da relação de trabalho firmada entre as Partes, que pressupõe 18 19 18 Marthius Sávio Cavalcante Lobato denomina os direitos coletivos trabalhistas também de direitos institucionais. 19 LOBATO, Marthius Sávio Cavalcante. O valor constitucional para a efetividade dos direitos sociais nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2006. p. 64. 20 A exemplo da recusa de trabalhadores adventistas de labutarem aos sábados. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 144 subordinação e inserção em um paradigma produtivo, a exemplo do que ocorre nas situações que envolvem a polêmica quanto ao monitoramento do e-mail corporativo, defendido por parcela considerável da doutrina e da jurisprudência, desde que haja ciência prévia tanto do monitoramento como de que o mecanismo eletrônico somente deverá ser usado no interesse do serviço, já que disponibilizado para o trabalho.21 De modo didático, e fazendo prévia referência aos direitos tipicamente trabalhistas, aduz Oscar Ermita Uriarte que os direitos trabalhistas não específicos provocam o incremento dos direitos humanos e fundamentais de que é titular o trabalhador: O trabalhador tem, além disso, todos os demais direitos humanos que ele tem enquanto cidadão, não enquanto trabalhador, e ele não perde esses direitos de pessoa humana, de cidadão, só pelo fato de entrar na fábrica, só pelo fato de entrar numa relação de trabalho subordinado. Fala-se, portanto, de direitos inespecíficos. O trabalhador tem duas classes de direitos humanos: os direitos trabalhistas específicos, os que todos conhecemos e com os quais trabalhamos, e os demais direitos do cidadão, inespecíficos, não específicos do trabalhador, mas que ele conserva, como cidadão, na relação de trabalho. Claro, o exercício desses direitos – liberdade de expressão, direito à intimidade, dignidade da pessoa humana, direito à saúde – pode ser modelado, adaptado a uma relação de subordinação na relação de dependência, na relação de pertinência a uma organização produtiva, mas existe. Então, o acréscimo dos direitos fundamentais do trabalhador, além dos tipicamente trabalhistas, por esses inespecíficos, provoca o incremento do número dos direitos humanos de que é titular o trabalhador.22 Como se infere, a expressão direitos fundamentais no trabalho (ou nas relações laborais) e direitos fundamentais trabalhistas em sentido estrito não se equivalem, sendo a primeira mais ampla, abarcando tanto os direitos objeto da segunda expressão (direitos propriamente trabalhistas ou trabalhistas específicos) como aqueles 21 Também podem ser mencionados os aspectos relativos a revistas pessoais vexa tórias, exigência de testes de gravidez à mulher para admissão, testes de AIDS, discriminação por orientação sexual ou contra pessoas portadoras de necessidades especiais no trabalho, além de assédio sexual e moral, entre outros. 22 URIARTE, Oscar Ermida. A aplicação judicial das normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos trabalhistas. In: Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. organização e realização Tribunal Superior do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004. p. 280-293. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 145 direitos dotados de fundamentalidade não exclusivos da categoria dos trabalhadores (direitos trabalhistas não específicos), mas que a eles também são destinados enquanto cidadãos, qualidade que não é suprimida quando se integra uma relação de labuta. Quanto aos direitos propriamente trabalhistas, imprescindível ter em mente ainda que, por óbvio, nem todos eles são fundamentais, a exemplo de alguns direitos trabalhistas explicitados em âmbito infraconstitucional (ex., multa prevista no artigo 477, §8º, da CLT, para a hipótese de atraso no pagamento de verbas rescisórias). Por fim, não se esqueça que o patamar de direitos fundamentais trabalhistas específicos e não específicos indicados na Constituição Federal é ainda majorado pelas normas que integram o bloco de constitucionalidade, instituto que se tem defendido no Brasil ainda de forma incipiente, conforme se abordará a seguir. 4 ORIGEM E ACEPÇÃO DE BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE Na proteção jurisdicional dos direitos fundamentais, especialmente os sociais nas relações de trabalho, é destacada a importância do instituto do bloco de constitucionalidade. A expressão bloco de constitucionalidade foi desenvolvida, na França, por Louis Favoreu, reportando-se às normas do ordenamento jurídico então apontadas pelo Conselho Constitucional francês como detendo status constitucional, para tanto acrescendo à Constituição de 1958 daquele País, também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o preâmbulo da Constituição de 1946 e normas outras de valor constitucional.23 A idéia ganhou novos contornos em diversos países. No Brasil, em que pese predomine o posicionamento de supremacia formal da Constituição, lastreado na idéia de rigidez constitucional, pelo que, a princípio, apenas as normas nela consignadas serviriam como parâmetro para o controle de constitucionalidade, é certo que a noção de bloco de constitucionalidade em patamares diversos vem sendo bastante reforçada com ponderosos argumentos doutrinários e jurisprudenciais. 23 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 15. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 302. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 146 Aponta Pedro Lenza que se busca “fixar, com clareza para o direito brasileiro, o conceito de bloco de constitucionalidade, qual seja o que deverá servir de parâmetro em relação ao qual se possa realizar a confrontação e aferir a constitucionalidade”.24 Kildare Gonçalves Carvalho aduz que o bloco de constitucionalidade: traduz a idéia de unidade e solidez, e se refere ao conjunto de princípios e regras não inscritos na Constituição, situados no mesmo nível da Constituição, portanto, de valor constitucional, cujo respeito se impõe à lei, e que não podem ser divididos.25 A nosso ver, o bloco de constitucionalidade concerne aos elementos e diplomas normativos dotados de feição constitucional que se voltam tanto para a proteção da dignidade da pessoa humana como se constituem como parâmetro de confronto em relação ao qual se deve proceder à verificação da compatibilidade vertical das normas inferiores e dos atos judiciais e do executivo, ou seja, o conjunto ou plexo de normas que é considerado como modelo constitucional para tal confronto.Tal instituto tem destacada importância na atuação cotidiana daqueles que lidam com o Direito, sejam advogados, juízes, integrantes do Ministério Público, sindicatos, por permitir a maximização e a otimização dos parâmetros a serem utilizados notadamente na concreção dos direitos fundamentais nas relações de labor e na efetivação da dignidade da pessoa humana. Vale dizer que a observância do bloco de constitucionalidade impõe-se logicamente também aos atores sociais, como paradigma a ser observado para fins de incidência da autonomia privada e coletiva, em especial no âmbito das relações de trabalho, seja na formação de contratos individuais seja nas estipulações em âmbito coletivo. 5 ESTÁGIO E ALCANCE DO INSTITUTO NO ORDENAMENTO BRASILEIRO A respeito do alcance do bloco de constitucionalidade, há duas vertentes preponderantes no ordenamento jurídico brasileiro. 24 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 206. 25 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 15. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 302. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 147 A primeira (restritiva) limita o alcance do paradigma constitucional somente aos princípios e normas explícita ou implicitamente albergados na Constituição, além das normas internacionais sobre direitos humanos aprovadas em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros, equivalentes às emendas constitucionais (artigo 5º, §3º, da CF). É o bloco de constitucionalidade em sentido estrito. A segunda corrente, em perspectiva ampliativa, compreende no conceito de bloco de constitucionalidade, para fins de parametricidade26, além dos referidos preceitos material e formalmente constitucionais, também normas apenas materialmente constitucionais (inclusive decorrentes de convenções internacionais ratificadas por procedimento menos solene e normas constantes até mesmo na legislação ordinária), além de valores suprapositivos oriundos da ordem constitucional global, sempre observada a unidade axiológica do ordenamento jurídico. No julgamento da ADI 514/PI, o Ministro do STF Celso de Mello, reconhecendo a relevância do instituto e sua incidência no ordenamento brasileiro, realizou análise acerca das posições doutrinárias divergentes quanto ao conteúdo do bloco de constitucionalidade, para fins de fiscalização normativa abstrata, aludindo ainda ser a definição do significado respectivo um fator determinante do caráter constitucional ou não dos atos estatais: A definição do significado de bloco de constitucionalidade - independentemente da abrangência material que se lhe reconheça (a Constituição escrita ou a ordem constitucional global) - reveste-se de fundamental importância no processo de fiscalização normativa abstrata, pois a exata qualificação conceitual dessa categoria jurídica projeta-se como fator determinante do caráter constitucional, ou não, dos atos estatais contestados em face da Carta Política. [...] Tratando-se de fiscalização normativa abstrata, a questão pertinente à noção conceitual de parametricidade - vale dizer, do atributo que permite outorgar, à cláusula constitucional, a qualidade de paradigma de controle - desempenha papel de fundamental importância na admissibilidade, ou não, da própria ação direta (ou da ação declaratória de constitucionalidade), consoante já enfatizado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (RTJ 176/1019- 26 Conforme o Ministro do STF Celso de Mello, parametricidade é o “atributo que permite outorgar, à cláusula constitucional, a qualidade de paradigma de controle.” R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 148 1020, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Isso significa, portanto, que a idéia de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade), por encerrar um conceito de relação (JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II, p. 273/274, item n. 69, 2ª ed., Coimbra Editora Limitada) - que supõe, por isso mesmo, o exame da compatibilidade vertical de um ato, dotado de menor hierarquia, com aquele que se qualifica como fundamento de sua existência, validade e eficácia - torna essencial, para esse específico efeito, a identificação do parâmetro de confronto, que se destina a possibilitar a verificação, in abstracto, da legitimidade constitucional de certa regra de direito positivo, a ser necessariamente cotejada em face da cláusula invocada como referência paradigmática. A busca do paradigma de confronto, portanto, significa, em última análise, a procura de um padrão de cotejo que permita, ao intérprete, o exame da fidelidade hierárquico-normativa de determinado ato estatal, contestado em face da Constituição. Sendo assim, e quaisquer que possam ser os parâmetros de controle que se adotem - a Constituição escrita, de um lado, ou a ordem constitucional global, de outro (LOUIS FAVOREU/FRANCISCO RUBIO LLORENTE, “El bloque de la constitucionalidad”, p. 95/109, itens ns. I e II, 1991, Civitas; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, p. 712, 4ª ed., 1987, Almedina, Coimbra, v.g.) -, torna-se essencial, para fins de viabilização do processo de controle normativo abstrato, que tais referências paradigmáticas encontrem-se, ainda, em regime de plena vigência, pois, como precedentemente assinalado, o controle de constitucionalidade, em sede concentrada, não se instaura, em nosso sistema jurídico, em função de paradigmas históricos, consubstanciados em normas que já não mais se acham em vigor, ou, embora vigendo, tenham sofrido alteração substancial em seu texto.27 No Brasil, no que toca ao bloco de constitucionalidade, ainda figura mais pujante a vertente restritiva, embora não tenha sido ilidida a aplicabilidade da concepção ampliativa. Tem-se, contudo, que a acepção ampliativa afigura-se mais consentânea, já que o bloco de constitucionalidade, como parâmetro a ser invocado para confronto constitucional, volta-se para a maximização dos preceitos de direitos fundamentais, sendo mecanismo viável de proteção e fiscalização de tais direitos para que não tenham conotação meramente nominal, a fim de que seja 27 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 514/PI. Rel. Ministro Celso de Mello. J. em 24.03.2008. DJ de 31.03.2008. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 149 potencializada sua efetividade e, na hipótese de violação, sejam eles restaurados por intermédio de tal paradigma de confronto. Assim, almeja-se evitar que fiquem os direitos fundamentais, especialmente nas relações de trabalho, desassistidos e vulneráveis à atuação do legislador e à esfera administrativa, assim também à autonomia privada e coletiva em sentido deletério. Como se nota, há relação do instituto com os conceitos da cláusula da vedação do retrocesso e também com a intangibilidade dos direitos fundamentais (cláusulas pétreas). 6 ELEMENTOS INTEGRANTES DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE E RELAÇÃO COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NOS LIAMES LABORAIS Versando sobre a temática do bloco de constitucionalidade, reconhece expressamente Héctor-Hugo Barbagelata a incidência de tal instituto nas relações de trabalho.28 No que atine à seara laboral, a abrangência do bloco de constitucionalidade, primeiramente, reporta-se aos direitos fundamentais trabalhistas específicos e não específicos constantes no próprio bojo da Constituição Federal, sejam aqueles constantes no catálogo de direitos fundamentais a que se refere o Título II da Carta Constitucional (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, direitos material e formalmente fundamentais), sejam aqueles dispersos pelo texto constitucional em outras circunscrições topográficas (direitos fora do catálogo e materialmente fundamentais, e. g., meio ambiente do trabalho sadio e equilibrado, artigo 200, inciso VIII, e 225, caput, da CF). Ainda figuram sob o manto do bloco de constitucionalidade no ordenamento brasileiro, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos ratificados mediante aprovação, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, os quais são equivalentes às emendas constitucionais (artigo 5º, §3º, da Constituição Federal). Além disso, embora não seja unânime, e com base na cláusula de abertura constante no artigo 5º, §2º, da CF, defende-se 28 BARBAGELATA, Héctor-Hugo. Os princípios de Direito do Trabalho de segunda geração. Cadernos da AMATRA IV, Porto Alegre, v. III, n. 7, p. 23, abr./jun. 2008. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 150 o posicionamento de que os tratados e convenções internacionais ratificados na forma dos artigos 49, inciso I, e 84, inciso VIII, da CF, que versem sobre direitos humanos, ainda que não submetidos ao referido procedimento mais rigoroso do artigo 5º, §3º, da CF, detém status constitucional na ordem interna brasileira, integrando bloco de constitucionalidade e detendo, pois, aplicabilidade direta e imediata (ex., Convenção n. 155 da OIT). Também com esteio na cláusula de abertura mencionada, sustenta-se que a legislação infraconstitucional pode contemplar direitos fundamentais nas relações de trabalho, nas hipóteses em que as normas correlatas apresentem fundamentalidade material, diante de seu conteúdo, importância29 e correlação direta com a dignidade da pessoa humana30 (a exemplo dos artigos 9º, 10, 444, 448 e 468 da CLT).31 Nesse sentido, prevê o artigo 5º, §2º, da CF que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” O citado posicionamento é reforçado pela disposição contida no artigo 4º, inciso II, da CF, no sentido de que o Brasil se rege em suas relações internacionais, dentre outros, pelo Princípio da “prevalência dos direitos humanos”. No que se refere à área laboral, tal raciocínio também 29 SARLET, Ingo Wolfgang. A dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 89, 103. 30 QUEIROZ JÚNIOR, Hermano. Os direitos fundamentais dos trabalhadores na Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2006. p. 104. 31 Cabe registrar, contudo, que os artigos 10 e 448 da CLT, que prevêem as garantias de intangibilidade dos contratos de trabalho e da sucessão trabalhista (com responsabilização do sucessor pelas obrigações contraídas pelo anterior estabelecimento), não prevalecem nas seguintes hipóteses: a) morte do empregador constituído em empresa individual (artigo 483, §2º, da CLT); b) desmembramento de município ou estado, com surgimento de nova entidade estatal a par da antiga (artigo 18, §§3º e 4º, da CF); c) na seara dos empregados domésticos; e d) nas hipóteses descritas na Lei n. 11.101/2005 quanto à recuperação judicial e à falência. Destaque-se o recente julgamento realizado pelo STF no bojo da ADIN n. 3.934-2 DF, na data de 27.05.2009, em que declarou aquela Excelsa Corte a constitucionalidade do artigo 83, incisos I e VI, alínea “c”, da Lei n. 11.101/2005, bem como dos artigos 60, parágrafo único, e 141, inciso II, da mesma norma, sendo os dois últimos dispositivos dotados de diretrizes que afastam expressamente o instituto da sucessão trabalhista nas hipóteses de alienação judicial de filiais ou unidades isoladas (recuperação judicial) ou de ativos do empreendimento ou de suas filiais (falência). DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 5ª edição. São Paulo: LTr, 2006, p. 420-421. Cfr. item 1.5.4. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 151 é confirmado pelo artigo 114, §2º, da CF, e pela parte final do caput do artigo 7º da Constituição Federal, que estipula serem direitos dos trabalhadores urbanos e rurais os discriminados nos incisos daquele dispositivo, “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”. Sobre o tema, leciona José Joaquim Gomes Canotilho: [...] o programa normativo-constitucional não se pode reduzir, de forma positivística, ao “texto” da constituição. Há que densificar, em profundidade, as normas e princípios da constituição, alargando o “bloco de constitucionalidade” a princípios não escritos desde que reconduzíveis ao programa normativo-constitucional como formas de densificação ou revelação específicas de princípios ou regras constitucionais positivamente plasmadas.32 Além disso, quanto às normas consagradoras de direitos fundamentais sediadas em legislação infraconstitucional, pontua Maurício Godinho Delgado: Tais direitos fundamentais do trabalho também constam, evidentemente, da legislação heterônoma estatal, a qual completa o padrão mínimo de civilidade nas relações de poder e de riqueza inerentes à grande maioria do mercado laborativo próprio ao capitalismo (caput do art. 7º, CF/88).33 Por conseguinte, tem-se que a seara dos direitos fundamentais no que atine às relações de trabalho, tal como constante na CF, resulta majorada substancialmente pela incorporação de novas fontes, sendo ampliado o padrão de confronto a ser utilizado a fim de aferir se lei ou ato normativo se revela inconstitucional, a incrementar a maximização do trabalho decente. Quanto à acepção ampliativa em tela, aduz Pedro Lenza que: Em relação à perspectiva ampliativa, o Min. Celso de Mello (Inf. 258/STF) vislumbra possam ser 32 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 921. 33 DELGADO, Maurício Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, v. XVI, n. 31, p.36, mar. 2006. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 152 [...] considerados não apenas os preceitos de índole positiva, expressamente proclamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Constituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado. E completa: não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal, certa vez, e para além de uma perspectiva meramente reducionista, veio a proclamar – distanciando-se, então, das exigências inerentes ao positivismo jurídico – que a Constituição da República, muito mais do que o conjunto de normas e princípios nela formalmente positivados, há de ser também entendida em função do próprio espírito que a anima, afastandose, desse modo, de uma concepção impregnada de evidente minimalismo conceitual (RTJ 71/289, 292 e 77/657).34 Para José Claudio Monteiro de Brito Filho, a dignidade constitui o traço definidor dos elementos a serem tidos para definição dos direitos mínimos alusivos ao trabalho decente, os quais devem ser extraídos do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), celebrado no âmbito da ONU; bem como das convenções expressamente elencadas como nucleares na Declaração da OIT referente aos princípios e direitos fundamentais no trabalho, de 1998 (liberdade sindical e negociação coletiva, Convenções ns. 87 e 98; eliminação do trabalho forçado, Convenções ns. 29 e 105; vedação da discriminação no trabalho, Convenções ns. 100 e 101; e erradicação das piores formas de trabalho infantil, Convenções ns. 138 e 182), aliadas a outros acréscimos realizados pelo autor nos seguintes termos: No plano individual temos o Direito ao trabalho, base sobre a qual se assentam todos os demais, desdobramento, e pode ser analisado de diversas formas, sendo que, principalmente, como obrigação do Estado de criar condições para que o trabalhador possa exercer ocupação que lhe permita e à sua família subsistir, além de: liberdade de escolha do trabalho; direito de exercer o trabalho em condições que lhe preservem a saúde; direito a uma justa remuneração; direito a justas condições de trabalho, 34 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 206. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 153 principalmente limitação da jornada de trabalho e existência de períodos de repouso; e proibição do trabalho infantil. No rol dos direitos mínimos temos, ainda, no plano coletivo, a liberdade sindical; e, no plano da seguridade social, a proteção contra o desemprego e outros riscos sociais.35 Entende-se que também são normas internacionais importantes para a esfera das relações de trabalho: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), de 1948; a Declaração Americana de Direitos e Obrigações do Homem; a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA); a Carta Interamericana de Garantias Sociais; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) (ONU), de 1966; a Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA); o Protocolo Facultativo à Convenção Americana de Direitos Humanos em matérias de direitos econômicos, sociais e culturais - Protocolo de San Salvador (OEA), de 1988; a Declaração da OIT sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho (OIT), de 1998; a Declaração Sociolaboral do MERCOSUL; além das demais convenções internacionais da OIT. Instrumento também relevante, apesar de ainda não ter entrado em vigor sequer em âmbito internacional, é o recente Protocolo Facultativo ao Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) da Organização das Nações Unidas (ONU). Recentemente, na data de 10.12.2008, foi adotado no âmbito da ONU, durante a 63ª sessão da Assembléia Geral, por meio da Resolução A/RES/63/117, o referido Protocolo Facultativo ao PIDESC, circunstância de extrema relevância no marco das garantias estabelecidas para proteção internacional dos direitos sociais, econômicos e culturais. O artigo 17 do referido Protocolo Facultativo prevê que poderá ser ele ratificado por qualquer Estado que tenha assinado, ratificado ou aderido ao Pacto Internacional em foco. Desde 24.09.2009, após cerimônia realizada na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Protocolo está aberto a ratificações. 35 BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise a partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. In: VELLOSO, Gabriel & FAVA, Marcos Neves (coordenadores). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006. p. 127-128. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 154 Esse instrumento permitirá que as vítimas apresentem suas queixas diretamente ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, amenizando um hiato histórico na proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, como bem reconhecido pela Alta Comissionada daquela Organização Internacional, Navi Pillay. Ultrapassado esse aspecto, vale rememorar que há autores, a exemplo de Oscar Ermida Uriarte, que defendem que as normas internacionais que versem sobre direitos humanos, ainda que não tenham sido ratificadas, e, portanto, logicamente não tenham sido submetidas a qualquer procedimento para integração à ordem interna (seja rigoroso ou não), incluem-se também no bloco de constitucionalidade para fins de definição do que deve ser onsiderado para fins de controle de constitucionalidade.36 Para tanto, aponta o jurista uruguaio as convenções e tratados sobre direitos reconhecidos como humanos nas consagradas declarações e pactos de direitos humanos da comunidade internacional, os quais integrariam o jus cogens ou ordem pública internacional (repertório de patamares básicos imperativos da convivência internacional) e, portanto, deveriam ser atendidos por todos os países independentemente de manifestação de vontade e de qualquer formalidade para integração no respectivo ordenamento (ratificação, adoção, nacionalização), nos termos do artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda não ratificada pelo Brasil).37 Esclarece Oscar Ermida Uriarte: Finalmente, há um último acréscimo dos direitos fundamentais constitucionais, porque quase todas as constituições latino-americanas modernas contêm um dispositivo que amplia enormemente o número de direitos humanos. [...] Neste marco insere-se, com facilidade, o art. 5º, §2º, da Constituição brasileira. Como se sabe, diz que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios 36 URIARTE, Oscar Ermida. A aplicação judicial das normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos trabalhistas. In: Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. organização e realização Tribunal Superior do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004. p. 280-293 37 Observa Flávia Piovesan que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, apesar de ter sido concluída em 23.05.1969 e assinada pelo Estado Brasileiro ainda em 1969, somente foi encaminhada ao Congresso nacional em 1992, estando ainda pendente da apreciação e aprovação parlamentares a que se refere o artigo 49, inciso, I, da CF e, portanto, da ratificação presidencial a que se refere o artigo 84, inciso VIII, da CF. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 9. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 50. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 155 por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, com o qual a Constituição de nossos países contém dentro dela aqueles tratados, declarações, pactos de direitos humanos referidos na própria Constituição. Não há aqui um fenômeno de ratificação, de adoção, de nacionalização. Supera-se a oposição direito nacional x direito internacional, porque é a própria Constituição que diz: essas normas internacionais formam parte da minha constituição. Gosto de dizer que nossas constituições estão “grávidas” das normas internacionais de direitos humanos, porque elas mesmas dizem: estão dentro de mim, fazem parte de mim. Nesses casos, quando nossos juízes aplicam um desses tratados internacionais, não estão aplicando direito estrangeiro, direito internacional, estão aplicando o art. 5º, §2º, da Constituição brasileira, o art. 72 da Constituição uruguaia ou o art. 33 da Constituição argentina, etc. Isso se chama, na América latina, de “bloco de constitucionalidade”. Em matéria de direitos humanos, há um conjunto de normas consagratórias de direitos fundamentais, com conteúdo diretamente constitucional, e outras constitucionalizadas, ainda que de origem internacional.38 (grifo nosso) No que tange ao Brasil, acrescenta o autor ainda o argumento referente à cláusula de abertura do artigo 5º, §2º, da CF e a disposição contida no artigo 4º, inciso II, da CF.39 O jus cogens consiste, na visão de Hilary Charlesworth e Christine Chinkin, citadas por Flávia Piovesan, no “conjunto de princípios que resguarda os mais importantes e valiosos interesses da sociedade internacional, como expressão de uma convicção, aceita em todas as partes da comunidade mundial, que alcança a profunda consciência de todas as nações, satisfazendo o superior interesse da comunidade internacional como um todo, como os fundamentos de uma sociedade internacional, sem aos quais a inteira estrutura se romperia. Os direitos humanos mais essenciais são considerados parte do jus cogens.”40 38 URIARTE, Oscar Ermida. A aplicação judicial das normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos trabalhistas. In: Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. organização e realização Tribunal Superior do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004. p. 287. 39 Ibidem, p. 280-293. 40 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 9. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 66-67. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 156 Na seara trabalhista, a título exemplificativo, atentese para a Declaração da OIT referente aos princípios e direitos fundamentais no trabalho (1998), que estabelece temáticas e instrumentos normativos que apresentam importância tal que, segundo a normativa em tela, não têm sua eficácia sujeita ao reconhecimento ou adoção por cada Estado, tendo força vinculante por si mesmos: liberdade sindical e negociação coletiva, eliminação do trabalho forçado, proibição da discriminação no trabalho e erradicação das piores formas de trabalho infantil. À exceção da Convenção n. 87, as demais normativas mencionadas na Declaração da OIT referente aos princípios e direitos fundamentais no trabalho, foram ratificadas pelo Brasil, mediante procedimento simplificado, em momento anterior ao advento da EC n. 45/2004. Ingo Wolfgang Sarlet apresenta entendimento diferente daquele gizado por Uriarte. Para o constitucionalista brasileiro, o artigo 5º, §2º, da Constituição Federal, apesar de ter acolhido o entendimento de que o rol dos direitos fundamentais reconhecidos no ordenamento jurídico pátrio abrange igualmente “posições jurídicas fundamentais oriundas de tratados internacionais, não fez qualquer referência expressa à sua forma de recepção.”41 Acresce Ingo Wolfgang Sarlet também que “o citado preceito constitucional refere expressamente os ‘tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’ [...], revelando de tal sorte, a necessidade inequívoca de uma adesão formal ao tratado para que se possa enquadrar-se na hipótese prevista pelo art. 5º, §2º, de nossa Carta Magna, o que, aliás, é reconhecido pela doutrina, que condiciona a recepção à ratificação do tratado.”42 E prossegue: Ora, justamente quando o Constituinte, objetivando evidentemente coibir excessos por parte do Executivo no que tange à celebração de tratados internacionais, previu a necessidade de procedimento legislativo prévio para a sua incorporação definitiva ao direito interno, regra esta embasada, ademais, em abalizada doutrina sobre a matéria, torna-se no mínimo de difícil sustentação o ponto de vista segundo o qual, no concernente aos tratados internacionais sobre direitos humanos (fundamentais), bastaria meramente o 41 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 137. 42 Idem R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 157 aval do Executivo. Considerar-se a regra contida no art. 5º, §2º, da CF, em que pese a ausência de disposição expressa sobre o tema, como tendo caráter excepcional, quando justamente restringe a legitimação democrática na recepção de normas internacionais, não nos parece ser a melhor solução, ao menos sob a ótica do direito constitucional positivo pátrio e por mais que se cuide de um debate que envolve também uma releitura da noção de soberania no âmbito de uma sociedade internacional cada vez mais conectada e interdependente, aspecto que, a despeito de sua transcendental relevância, refoge aos propósitos deste trabalho. (grifo nosso)43 Como se percebe, no ordenamento jurídico brasileiro, há regra na Constituição brasileira que exige para a incorporação definitiva de um tratado ou convenção no âmbito interno a prévia ratificação por ato complexo que envolve o Poder Executivo e o Poder Legislativo, previsão constitucional que alberga claramente o Princípio do check and balances, considerando o teor expresso dos artigos 49, inciso I, e 84, inciso VIII, da CF. Não se pode esquecer também o teor do artigo 5º, §3º, da CF, que, apesar de apresentar procedimento mais dificultoso, pressupõe o ato de ratificação mesmo em se tratando de tratados que versem sobre direitos humanos naquela situação. Há de concordar-se, no entanto, que o posicionamento defendido por Oscar Ermida Uriarte tem caráter de vanguarda, embora infelizmente não guarde compatibilidade com nossa ordem constitucional, para fins de incorporação definitiva das normas internacionais. De todo modo, tendo em vista a fundamentalidade dos direitos albergados em tais normativas para o resguardo da pessoa humana do trabalhador, não se pode desprezar a importância dos elementos que afluem de inúmeras normas internacionais não ratificadas pelo Brasil (em algumas situações, ao que parece, por opção política, em outras por leniência, a exemplo da Convenção n. 156 da OIT44 e da Convenção Internacional sobre a Proteção 43 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 137. 44 A Convenção n. 156 da OIT (1981), com entrada em vigor em âmbito internacional em 11.08.1983, e a respectiva Recomendação n. 165 (1981), vigente internacionalmente desde 23.01.1981, dispõem “Sobre a Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Trabalhadores e Trabalhadoras com Responsabilidades Familiares.” A Convenção n. 156 da OIT giza em seu Artigo 1º e subitens: “Artigo 1º. 1. A presente Convenção aplica-se a homens e mulheres com responsabilidades R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 158 dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, adotada no âmbito da ONU em 18.12.1990, com entrada em vigor internacionalmente em 01.07.2003). Assim, é possível sustentar entendimento mais moderado e voltado para concreção da dignidade da pessoa humana no sentido de que, embora não integrem o bloco de constitucionalidade (para fins de parametricidade), servem as normas internacionais não ratificadas pelo País, que versem sobre direitos humanos (em especial, convenções da OIT não ratificadas), como fonte de direito para o caso concreto na hipótese de ausência de regulamentação normativa (autônoma e heterônoma), desde que preservado o interesse público e haja compatibilidade com o regime e princípios adotados pela Constituição Federal, nos moldes do artigo 8º da CLT e do item 26 da Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada na II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (1993). Atente-se, nesse particular, para a incidência da premissa trabalhista da norma mais favorável, mesmo quando se trata da utilização de normativas internacionais no âmbito da ordem jurídica brasileira, motivo pelo qual os referidos tratados e convenções sobre direitos humanos, não ratificados, não poderão afastar os patamares mais favoráveis de direitos já assegurados aos trabalhadores, seja pela CF, por lei, “sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação” (artigo 19, 8, da Constituição da OIT). Tais normas servirão como limite adicional para as tentativas de flexibilização in pejus e de desregulamentação trabalhistas tão alardeadas nos últimos tempos, máxime em contexto recente caracterizado por imbróglios que têm envolvido o cenário econômico e financeiro internacional. com relação a seus filhos e filhas dependentes, quando estas responsabilidades restringem a possibilidade de se prepararem para uma atividade econômica e nela ingressar, participar ou progredir. 2. As disposições desta Convenção aplicarse-ão também a homens e mulheres com responsabilidades com relação a outros membros de sua família direta com necessidade de seus cuidados e sustento, quando essas responsabilidades restringirem a possibilidade de se prepararem para uma atividade econômica e de nela ingressar, participar ou progredir. 3. Para fins desta Convenção, os termos “filho e filha dependente” e “outro membro da família direta com necessidade de cuidado e sustento” são as pessoas definidas como tais, em cada país, por um dos meios referidos no Artigo 9º desta Convenção. 4. Os trabalhadores e trabalhadoras cobertos pelos Parágrafos 1 e 2 deste Artigo são doravante referidos como “trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares”. Também o artigo 2º fixa: “Esta Convenção aplica-se a todos os setores de atividade econômica e a todas as categorias de trabalhadores e trabalhadoras.” Alberga dispositivos anti-discriminatórios e promocionais bastante interessantes para servir de aporte na análise do tema em casos concretos. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 159 No que atine às relações de trabalho, e considerada a multiplicidade de fontes já sinalada, tem-se que o bloco de constitucionalidade, com esteio na acepção ampliativa e na cláusula de abertura dos direitos materiais, alberga normas e princípios que não podem ser vulnerados pela ação do legislador, nem pela esfera administrativa e pela autonomia privada e coletiva, motivo pelo qual se apresenta tal bloco como limite à flexibilização deletéria e à desregulamentação, indicando caminho para a reconstrução do Direito do Trabalho à luz dos direitos fundamentais. Em síntese, o bloco de constitucionalidade no que se refere às relações de trabalho assim se apresenta: a) direitos fundamentais trabalhistas específicos e não específicos inseridos no catálogo de direitos fundamentais - Título II da CF (direitos formal e materialmente constitucionais, bem assim formal e materialmente fundamentais); b) direitos fundamentais trabalhistas que, embora constem no texto da Constituição (material e formalmente constitucionais), estejam dispersos no texto constitucional fora do catálogo dos direitos fundamentais (Título da II da CF), motivo pelo qual, embora não sejam formalmente fundamentais, apresentam-se dotados de fundamentalidade material, em virtude de seu conteúdo e importância, além da correlação direta com a dignidade da pessoa humana (e. g., meio ambiente do trabalho sadio e equilibrado, artigo 200, inciso VIII, e 225, caput, da CF); c) direitos fundamentais previstos em convenções e tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados com base na forma qualificada descrita no artigo 5º, §3º, da CF, equivalentes às emendas constitucionais; d) direitos fundamentais que, com base em seu conteúdo, importância e correlação direta com a dignidade da pessoa humana, apresentam fundamentalidade material, tendo amparo em tratados e convenções sobre direitos humanos ratificados por meio apenas do procedimento dos artigos 49, inciso I, e 84, inciso VIII, da Constituição Federal, logo, por procedimento menos solene que o previsto no artigo 5º, §3º, da CF (Convenção n. 155 da OIT). Relembre-se que referidas normativas internacionais apesar de não serem equivalentes a emendas constitucionais, apresentam status de norma constitucional, detendo preeminência na ordem jurídica interna - artigos 5º, §2º, e 7º, caput, parte final, da CF; e e) direitos fundamentais sediados no âmbito infraconstitucional, cuja fundamentalidade material ressai de seu conteúdo, importância e correlação direta com a dignidade da pessoa humana (a exemplo dos artigos 9º, 10, 444, 448 e 468 da CLT). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 160 Outrossim, embora não integrem o bloco de constitucionalidade, as normas internacionais sobre direitos humanos não ratificadas pelo País, servem como fonte de direito para o caso concreto na hipótese de ausência de regulamentação normativa (autônoma e heterônoma), desde que preservado o interesse público e haja compatibilidade com o regime e princípios adotados pela Constituição Federal, conforme inclusive o teor do artigo 8º da CLT e o item 26 da Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada na II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (1993) – ex., a Convenção n 156 da OIT, bem como a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, de lavra da ONU. Por conseguinte, manifesta-se o bloco de constitucionalidade como o paradigma que serve tanto para a aferição de constitucionalidade como para o assecuramento da dignidade da pessoa humana, seja no que diz respeito à criação seja quanto à interpretação e à execução das normas, sempre no sentido de acrescer outros direitos fundamentais decorrentes da dinâmica social àqueles direitos já outrora reconhecidos, sem prejuízo da alteração qualitativa quanto ao significado, alcance e sentido que são atribuídos aos direitos no decorrer da história. Para tanto, indispensável a postura concretizadora dos direitos fundamentais, seja em sede de controle concentrado (STF) seja em seara de controle difuso (qualquer juiz ou Tribunal), inclusive a fim de que eventual argumento de óbices à regulamentação (nas hipótese de direitos sujeitos à concreção legislativa) ou à concretização (nas hipóteses de direitos que detenham caráter prestacional preponderante), não exsurjam como caminho para a frustração dos direitos fundamentais integrantes do bloco de constitucionalidade, no sentido de dar azo a hermenêutica que preserve a dignidade do trabalhador e normas a ele correlatas e a inclusão social pelo trabalho. 7 CONCLUSÕES O bloco de constitucionalidade atine aos elementos e diplomas normativos dotados de feição constitucional que se voltam para a proteção da dignidade da pessoa humana e se constituem como parâmetro de confronto em relação ao qual se deve proceder à verificação da compatibilidade vertical das normas inferiores, ou seja, o plexo de normas que é considerado como modelo constitucional para tal intento. Há direitos humanos e direitos fundamentais que se direcionam às relações laborais. Quanto ao aspecto da juridicidade, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 161 os primeiros (direitos humanos) caracterizam-se como aqueles constantes no âmbito internacional, e os segundos (direitos fundamentais) concernem a direitos humanos positivados na ordem interna de um país determinado. A expressão direitos fundamentais no trabalho (ou nas relações laborais) e direitos fundamentais trabalhistas em sentido estrito não se equivalem, sendo a primeira mais ampla, abarcando tanto os direitos objeto da segunda expressão (direitos propriamente trabalhistas ou trabalhistas específicos) como aqueles direitos dotados de fundamentalidade não exclusivos da categoria dos trabalhadores (direitos trabalhistas não específicos), mas que a eles também são destinados enquanto cidadãos, qualidade que não é suprimida quando se integra uma relação de labuta. Assim, dentre os direitos fundamentais que incidem nas relações de trabalho (gênero), há aqueles que concernem somente aos trabalhadores enquanto tais (direitos fundamentais propriamente trabalhistas ou trabalhistas específicos, espécie) e aqueles que são aplicáveis aos trabalhadores como a qualquer outro cidadão (direitos fundamentais trabalhistas não específicos, espécie). Para fins de definição do instituto do bloco de constitucionalidade, concebe-se como mais consentânea a acepção ampliativa, que abrange, além das normas e princípios fundamentais constantes na Constituição Federal (sejam catalogados ou fora do catálogo, explícita ou implicitamente reconhecidos) e dos instrumentos internacionais subsumidos à sistemática do artigo 5º, §3º, da Carta Magna; também as normas materialmente fundamentais, seja advindas de legislação heterônoma infraconstitucional, seja oriundas de normativas internacionais sobre direitos humanos ratificadas, embora não submetidas ao procedimento mais solene, ou mesmo não ratificadas, desde que dotadas de fundamentalidade, sendo critérios para a aferição da materialidade constitucional da norma o conteúdo e importância dos direitos nela consagrados, dado seu liame com a dignidade da pessoa humana. No que atine às relações de trabalho, tem-se que o bloco de constitucionalidade, com arrimo na acepção ampliativa e na cláusula de abertura dos direitos materiais, alberga normas e princípios que não podem ser vulnerados pela ação do legislador, nem pela esfera administrativa e pela autonomia privada e coletiva, motivo pelo qual se apresenta tal bloco como limite à flexibilização deletéria e à desregulamentação, indicando caminho para a reconstrução do Direito do Trabalho à luz dos direitos fundamentais. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.133-162, jul./dez. 2009 162 O bloco de constitucionalidade manifesta-se como o paradigma tanto no que diz respeito à criação como à interpretação e à execução das normas, sempre no sentido de acrescer outros direitos fundamentais decorrentes da dinâmica social àqueles direitos já outrora reconhecidos e declarados, sem prejuízo logicamente da alteração qualitativa quanto ao significado, alcance e sentido que são atribuídos aos direitos no decorrer da história. Indispensável a postura concretizadora dos direitos fundamentais, seja em sede de controle concentrado (STF) seja em seara de controle difuso (qualquer juiz ou Tribunal), o que deve ser potencializado pelos demais operadores de direito e Poderes públicos, pela sociedade civil e pelos destinatários das normas trabalhistas, inclusive a fim de que eventual argumento de óbices à regulamentação (nas hipóteses de direitos sujeitos à concreção legislativa) ou à concretização (nas hipóteses de direitos que detenham caráter prestacional preponderante), não exsurjam como caminho para a frustração dos direitos fundamentais integrantes do bloco de constitucionalidade na seara do trabalho. REFERÊNCIAS BARBAGELATA, Héctor-Hugo. Os Princípios de Direito do Trabalho de Segunda Geração. Cadernos da AMATRA IV, Porto Alegre ,n. 7, Alegre:, abr./jun. v. III, 2008. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 514/PI. Rel. Ministro Celso de Mello. J. em 24.03.2008. DJ de 31.03.2008. 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Nem sempre, porém, é óbvia ou clara a presença de tais circunstâncias, que poderão ter efeitos exacerbados ou ocultados em decorrência das suscetibilidades (seja do empregado, seja do empregador) feridas pela conduta alheia. É perceptível que a pressão por resultados diante dos efeitos da crise mundial se dissemina e aumenta a competitividade do mercado de trabalho, a ponto de prejudicar a serenidade e a paz para o indivíduo trabalhar bem e com boa produtividade. Os critérios de aferição da produtividade do trabalhador, decerto, vêm ficando mais atrozes e implacáveis, pois as empresas também necessitam sobreviver (embora, em muitos casos, o acirramento da competitividade signifique apenas a busca pela manutenção de lucros em patamares astronômicos), num contexto de rigor tributário e forte concorrência. O fato é que as novas políticas de gestão na organização do trabalho, atreladas às políticas neoliberais, têm se mostrado psiquicamente danosas aos trabalhadores. No entanto, naquilo que diz respeito ao assédio moral, é oportuno que haja a sua distinção de outras práticas que também atacam a saúde mental dos trabalhadores, um dos valores ínsitos à própria dignidade da pessoa humana. Nesse passo, urge diferenciar o assédio moral (também conhecido nacional e internacionalmente como manipulação perversa, terrorismo psicológico, mobbing, bullying ou harcèlement moral) de outras práticas igualmente ensejadoras de reparação moral. A doutrinadora francesa Marie-France Hirigoyen (2002 apud MENEZES, 2002), assim definiu o assédio moral: * Juiz Federal do Trabalho no TRT da 14ª Região. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.163-169, jul./dez. 2009 166 Por assédio em local de trabalho temos que entender toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho. Ainda sobre o assédio moral, Nascimento (2004) arremata: Caracteriza-se por ser uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que atenta contra a dignidade psíquica, de forma repetitiva e prolongada, e que expõe o trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica, e que tenha por efeito excluir a posição do empregado no emprego ou deteriorar o ambiente de trabalho, durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções. A jurisprudência evoluiu de modo a detectar a existência de outras condutas patronais, aparentemente idênticas ao assédio moral, mas com peculiaridades diversas. É o caso da denominada “gestão por injúria”, que, grosso modo, seria o gênero do qual o assédio moral seria uma espécie. Nesse passo, vale transcrever as lições extraídas de uma decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais, confira-se: ASSÉDIO MORAL, RIGOR EXCESSIVO E GESTÃO POR INJÚRIA - DISTINÇÕES E CARACTERIZAÇÕES. No ambiente de trabalho, as relações entre empregador e empregado são dinâmicas, uma vez que as obrigações das partes se desdobram em incontáveis prestações sucessivas. O primeiro dá ordens, o segundo obedece. Esse cotidiano, normalmente, fazse marcado por conflitos de interesses, de estresse, de gestão por injúria, de agressões ocasionais, de condições ambientais precárias e de imposições, comportamentos esses que não caracterizam, necessariamente, o assédio moral, razão por que se torna importante distingui-lo da gestão por injúria. As divergências entre empregado e empregador, travadas dentro de um clima de respeito mútuo, sem a presença da perversidade, é algo normal e até construtivo, pois pode apresentar momentos de discussões ou de consenso entre as pessoas envolvidas em um mesmo projeto. Porém, o que não pode ocorrer é que por detrás de divergências profissionais, aflore a violência, o desrespeito e R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.163-169, jul./dez. 2009 167 a perseguição. Um conflito mal resolvido entre o empregado e seu superior hierárquico ou mesmo entre o empregado e o empregador pode acarretar o desenvolvimento do assédio moral, mormente em relações hierárquicas em que o poder de direção se transforma, muitas vezes, em abuso de poder com uma finalidade muito clara: a desestabilização do empregado para que ele se demita do emprego. [...] Por outro lado, a gestão por injúria pode se caracterizar por atos de empregadores ou por prepostos que se comportam agressivamente, e que constantemente insultam e pressionam seus empregados. Porém, a gestão por injúria não visa, via de regra, a um empregado específico e, sim, a todos os empregados, indistintamente, que passam a ser injuriados, para que produzam mais, para que atinjam determinadas metas. A gestão por injúria não pode ser considerada como assédio moral, mas pode ser um instrumento que o tipifique, mormente quando associado a outras espécies de conduta perseguidoras. Não havendo prova de que a Reclamada tinha conduta discriminatória, humilhante e constrangedora em relação ao Reclamante, expondo-o a situação aética na frente dos colegas de trabalho, não se configurou, no presente caso, o assédio moral. (TRT 3ª Região; 4ª Turma; RO 00840-2005-100-03-00-7; Fonte DJMG 28/07/2007; p. 19; Relator Juiz Luiz Otávio Linhares Renault, grifo nosso) Em comum ao assédio moral e à gestão por injúria, é necessário que esteja presente a pedra de toque, qual seja: a exposição do empregado a situação vexatória ou constrangedora, decorrentes de abuso ou arbitrariedade do empregador. A pura e simples cobrança por atingimento de metas aos empregados, desde que de forma razoável e acompanhada de orientações voltadas ao alcance do fim almejado, não rende ensejo a assédio moral. O que diferencia uma cobrança legítima de uma cobrança abusiva é a desmoralização ou humilhação do empregado, sendo reprovável a conduta de um gestor cobrando metas de um modo áspero e mediante ameaça de represálias (como, por exemplo repetido no segmento bancário, a perda de gratificação ou função comissionada). Não é baseando-se no medo que a gestão empresarial incutirá em seus funcionários a motivação e comprometimento que tanto propugna. No propalado segmento bancário, é comum o “colaborador” (como eufemisticamente vem sendo chamado o “empregado”) ser tratado com a máxima “quem não atinge metas não serve para o banco”. Ora, isso equivale a tratar o trabalhador como coisa, e não como gente. Um profissional não ‘serve’ ou desserve para o serviço. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.163-169, jul./dez. 2009 168 Ele ou é apto ou inapto, preparado ou despreparado, capaz ou incapaz. Mas não “servir” para o trabalho, no tom muitas vezes manejado, passa uma idéia de coisificação do trabalhador. O empregado é sujeito e não objeto da relação de trabalho, como preconiza a Declaração de Filadélfia de 1944 . Vale repetir: a cobrança de metas é admitida e se enquadra perfeitamente no poder diretivo do empregador, mas não se pode fazer acompanhar de comportamento abusivo (gestos, palavras e atitudes). A lesão à moral, honra e dignidade do trabalhador encontram-se presentes quando revelado o excesso e a arbitrariedade, os quais ameaçam, por sua repetição, a autoestima e a integridade física e psíquica do empregado. Tal comportamento se identifica como microagressões, por vezes pouco graves se tomadas isoladamente, mas que, porquanto sistemáticas, tornam-se destrutivas, porque atingem o sentimento que o trabalhador tem de sua própria dignidade laborativa, pois perde ele a autoestima a cada dia em que a agressão é renovada. A consequência mais grave é o indivíduo, com o decorrer do tempo, acreditar que, efetivamente, é incapaz, agravando-se o efeito danoso, pois uma pessoa sem sua estima perde o discernimento necessário para realizar as suas aptidões. Com o tempo, adoece. Há casos absurdos de situações como questionamentos aos empregados em decorrência de idas ao banheiro ou à cozinha para beber água, até “remanejamentos” e transferências para cidades distantes do domicílio familiar do “colaborador”, passando pelas tão comuns perdas de funções e/ou gratificações. Pesquisas sobre o ambiente de trabalho demonstram ser prática corriqueira a abusividade na pressão por cumprimento de metas e a pouca preocupação com a qualidade do ambiente laboral. Queixas recorrentes e uníssonas, todas apontando a reiteração de práticas abusivas na gestão empresarial configuram, não raro, verdadeira gestão por injúria coletiva. Nesse contexto, o assédio moral propriamente dito, em desfavor desse ou daquele trabalhador, pode não se revelar perfeito e acabado, mormente quando insidiosos os métodos adotados, sem depreciação específica direcionada, ao menos claramente, a um indivíduo. Portanto, os fatos geradores da gestão por injúria são os mesmos do assédio moral. Ademais, a inserção do trabalhador no meio ambiente de trabalho no qual se verificam tais lesões já é suficiente para que o empregado sofra as angústias e males do ambiente hostil, calcado no medo dos funcionários em relação ao gestor (personificado num gerente ou diretor, por exemplo, ou quiçá pulverizado num comando dito “participativo”). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.163-169, jul./dez. 2009 169 No contexto da gestão por injúria, comportamentos reativos do trabalhador a uma gestão pautada em arbitrariedades devem ser sopesados como uma resposta do ser humano que se sente atingido em sua honra e dignidade. Tal reação pode equivaler tão-somente a uma reação de orgulho, típica de quem, apesar de atingido, procura manter-se de pé em sua honra e dignidade próprias. Deve o magistrado, pois, redobrar as atenções com os contra-ataques processuais do assediador ou gestor por injúria (reconvenções, pedidos contrapostos ou defesas agressivamente imbuídas das tentativas de desmoralizar o assediado em Juízo). Nesse encadeamento de ideias, conclui-se que um trabalhador, em eventual episódio que resulte, por exemplo, na retirada de sua gratificação, poderia ter cometido algum ato de insubordinação (ato esse que poderia, por conseguinte, legitimar o descomissionamento). Tais ponderações permeiam casos atípicos (ou nem tanto, dado à complexidade das relações interpessoais no mundo do trabalho) em que, ao menos no particular tocante à perda de função comissionada, poderia se pensar que ambas as partes estivessem sem razão: o reclamado, pelo ato de descomissionar o reclamante como mais um capítulo da gestão por injúria; o reclamante, por aparente insubordinação. Todavia, percebe-se que, em meio ao contexto da gestão por injúria tantas vezes levada à consecução pela gestão empresarial, afigura-se razoável a recusa do trabalhador à prática de condutas incompatíveis com as normas e procedimentos da empresa, ou seja, em contrariedade aos estatutos e código de ética do empregador (típico caso dos bancos). Por óbvio, deve ser analisado o histórico funcional do trabalhador, a competência, ética e o zelo no exercício de suas atribuições, no intuito de aferir a proporcionalidade da reação e a legitimidade de, no exercício válido e regular de suas funções, descumprir ordens manifestamente contrárias à boa-fé. Até porque, repise-se, o empregado é sujeito e não objeto da relação de trabalho e, como tal, não lhe podem ser impostas condutas que violem a sua integridade física, intelectual ou moral, não estando o empregado obrigado a cumprir ordens moralmente ilegítimas, que o diminuam ou que o coloquem em grave risco. Como ensina a doutrina de Sarmento (2003 apud MEIRELES, 2004) ao lidar com o princípio da proporcionalidade, o aplicador do direito deve buscar um ponto de equilíbrio, tendo como norte o princípio da dignidade da pessoa humana que condensa e sintetiza os valores fundamentais que esteiam a ordem constitucional vigente. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.163-169, jul./dez. 2009 170 Porquanto proporcional, o exercício do direito de resistência, longe de configurar insubordinação, revela-se digno de aplauso, uma vez que o trabalhador tem o dever de resistir às ordens ilegais ou moralmente ilegítimas. Não é dado ao gestor empresarial, como justificativa, valer-se da necessidade de aprovação de negócios para cumprimento de metas, sob pena de os fins justificarem os meios, ainda que a custo da degradação total da moral e da legalidade. A pretensão indenizatória encontra amparo em toda a principiologia constitucional e legal plasmada pela dignidade da pessoa humana; função social dos contratos e da empresa e boa-fé. É princípio fundamental inserido no artigo 1, III da Constituição da República a dignidade da pessoa humana, princípio que traz ínsita a função social da empresa. Já a função social da propriedade prevista no inciso XXIII do artigo 5 e no inciso III do artigo 170, ambos do texto constitucional, encontrase permeada pela valorização do trabalho humano, valor insculpido no inciso IV do artigo 1 e no caput do já mencionado artigo 170, cujo inciso VIII – por sua vez – preconiza a busca do pleno emprego. A contraprestação recebida por qualquer trabalho possui natureza eminentemente alimentar, o que também atrai a incidência dos princípios de probidade e boa-fé do artigo 422 do Código Civil, os quais possuem função integrativa e são plenamente aplicáveis às relações de trabalho, rendendo ensejo à conclusão de que comete abuso de direito quem contraria a boa-fé, o que se verifica na gestão por injúria. Nessa esteira, aplicados todos os princípios aqui ventilados, uma vez infringida a boa-fé contratual pelo empregador, forçosa a aplicação de sanção que sirva de desestímulo à reiteração da prática, sempre atentando o julgador para o caráter pedagógico da pena; a capacidade econômica da instituição financeira, sem desprezar as atenuantes (no caso, a descaracterização do assédio moral, pulverizado na gestão por injúria, ante a ausência de perseguição exclusiva e deliberada), a fim de que a indenização não signifique enriquecimento sem causa. Urge que empresas (bancos, também, senão principalmente) revejam seus conceitos de interrelacionamento e gestão, devendo instruir, no mesmo sentido, gerentes e supervisores, a fim de que, equacionadas as diferenças, seja alcançada a harmonia do ambiente de trabalho e a saúde física e espiritual de todos, funcionários e gestores (e, consequentemente, de suas famílias). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.163-169, jul./dez. 2009 171 Não se desconhece que gerentes e diretores também sofram pressões descabidas do que se convencionou chamar de “mercado”. Que, então, todos reflitam e consigam dar respostas mais éticas e humanas no cotidiano laboral, sem deixar de lado a competitividade inerente à atividade econômica. Competitividade e busca por melhores resultados, sim. Gestão por injúria ou assédio moral, não. REFERÊNCIAS HIROGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio Moral. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 apud MENEZES, Cláudio Armando Couce de. Assédio Moral e seus Efeitos Jurídicos. Revista Justiça do Trabalho, Porto Alegre: n. 228, p. 16, 2002. MEIRELES, Edilton. Abuso do direito na relação de emprego. São Paulo: Ltr, 2004. p.83. MENEZES, Cláudio Armando Couce de. Assédio moral e seus efeitos jurídicos. Revista Justiça do Trabalho, Porto Alegre, n. 228, p. 16, 2002. NASCIMENTO, Sônia A. C. Mascaro. 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Afirma o festejado doutrinador, após ter apontado as principais diferenças entre as atividades cognitivas e executivas, que “é, pois, natural que a cognição e a execução sejam ordenadas em dois processos distintos”. De maneira semelhante, Araken de Assis (1998, p. 952) certa vez afirmou que “há inequívoca incompatibilidade funcional na convivência de atos executivos com atos de índole diversa, simultaneamente, na mesma estrutura (processo).” Dinamarco (2002, p. 138-9) afirma que o sincretismo manifesta-se nas ações em que a sentença de mérito precede a execução, independentemente de novo processo, “in verbis”: São hipóteses em que a ação não é apenas cognitiva, nem somente executiva. Nesses casos [...] tem-se o sincretismo de uma ação que é, ao mesmo tempo, o poder de exigir o julgamento da pretensão e a satisfação do direito reconhecido nesse julgamento. No entanto, com o passar dos anos, a Justiça Comum vem experimentando intenso desconforto em perceber que a autonomia no Processo Civil não atende a realidade da sociedade, sendo motivo de entraves e demoras na efetiva prestação jurisdicional, qual seja, a entrega do bem da vida ao jurisdicionado. Ada Pellegrini Grinover (1998, p.14-15) explana a respeito da falta de efetividade do processo civil brasileiro: Dentro da linha de transformação do processo abstrato para o concreto, buscando a efetividade e a instrumentalidade do processo, empenhando no esforço rumo à universalização da jurisdição e ao acesso à ordem jurídica justa e levando em conta as transformações sociais, o processualista brasileiro contemporâneo inicia o trabalho de revisitação dos institutos processuais clássicos, para adaptá-los à * Servidor público do TRT da 14.ª Região, pós graduando em Direito e Processo do Trabalho. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 174 nova realidade [...] Nesse trabalho de reestruturação do processo, necessário para adequá-lo aos escopos sociais e políticos da jurisdição, muitos dos esquemas processuais clássicos tiveram que ser revisitados, com o objetivo de adaptá-los à realidade sócio-política da sociedade contemporânea. Experimentando a mesma preocupação, Flávio Luiz Yarshell (2001, p. 381) argumenta: Já faz algum tempo que a doutrina processual civil, preocupada com a efetividade do processo e da jurisdição, tem dirigido críticas severas ao modelo brasileiro de tutela executiva dos direitos. De um modo geral, as críticas se voltam contra o próprio processo de execução, cuja autonomia, assentada no binômio condenação/execução, não é – para alguns talvez nunca tenha sido – apta a atingir, de forma adequada, os escopos da atividade jurisdicional, nessa seara. Falase, dessa forma, em rever ou, mesmo desestruturar o processo de execução. Fala-se também em acabar com a supramencionada autonomia do processo de execução para se adotar, pura e simplesmente, uma fase executiva; fala-se, dessa forma, na adoção generalizada das chamadas tutelas “executiva lato sensu” e “mandamental”. Athos Gusmão Carneiro (2006, p. 16), com a intenção de apontar as dificuldades oriundas da adoção do princípio da autonomia, expõe: [...] proposta uma ação condenatória, após decorridos meses e anos em busca da cognição exauriente (com contraditas, saneamento, instrução, perícia, sentença), o advogado por fim informava ao cliente sua vitória na demanda. Sim, fora vitorioso, mas não poderia exigir a prestação que lhe era devida, pois o vencido apelara, e a apelação de regra assume o duplo efeito. Os tempos correm, a apelação do réu é por fim rejeitada, recursos de natureza extraordinária são intentados e repelidos, e certo dia – mirabile dictu – o paciente autor recebe a grata notícia: a sentença a ele favorável havia transitado em julgado. Alvíssaras, pensou o demandante. Pensou mal. Para receber o “bem da vida”, cumpria fosse proposto um “segundo processo”, já agora visando o cumprimento da sentença, novo processo exigente de nova citação, com a possibilidade de um subseqüente contraditório através de ação incidental de embargos do devedor (propiciando instrução e sentença), e com o uso de meios executórios inadequados ao comércio moderno, tais como a hasta pública (um anacronismo na era eletrônica). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 175 Nesse sentido, intensificou-se a busca de um processo ideal, uma vez que a sistemática adotada de dois processos autônomos e sucessivos demonstrava-se inadequada, conduzindoos ao formalismos, desnecessários, desembocando na quebra da celeridade processual e no agastamento da imagem do Poder Judiciário. Alcides de Mendonça Lima (1991, p. 17) lembra que Humberto Theodoro Júnior, em tese para doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, defendia a possibilidade de se unificar a execução à fase congnitiva: Merece ser conhecida e meditada a original – e revolucionária – concepção de Humberto Theodoro Júnior, em tese para doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, no sentido de abreviar e simplificar a execução de sentença, sugerindo a volta do milenário sistema medieval per officium judicis. Em resumo, as sugestões do mestre e magistrado, de lege ferenda, são as seguintes: a) falsidade da dissociação em pretensão de condenar e pretensão de executar. Na realidade, só há uma pretensão: a de compelir o devedor à prestação sob inadimplência; b) se a lide real não se compõe apenas com a sentença condenatória, tem o órgão judicial de prosseguir através de atos, efetivando a restauração da ordem jurídica violada; c) se a condenação não basta para pacificar a lide, faltando ainda a atuação executiva, não pode encerrar-se a função jurisdicional com a sentença de mérito, e exigir que o credor proponha outra ação para o órgão judicial executar sua própria ordem de condenação; d) a execução, como processo autônomo e completo, somente se justifica na cobrança de títulos extrajudiciais, porque, equiparados à sentença, dispensam fase de cognição e já autorizam o início da atividade jurisdicional no estágio da realização prática do direito do credor, sem perder tempo com sua definição ou acertamento. Vejam agora a visão da genialidade de Humberto Theodoro Júnior, na referida tese de doutorado: .Como solução prática para agilizar a execução, seria eliminada a citação executiva: na própria sentença seria feita a assinatura do prazo de pagamento, o qual, ultrapassado sem comunicação ou prova de resgate, acarretaria a automática expedição do mandado de imissão de posse, se a condenação for de entrega de coisa, ou de penhora, se de pagamento em dinheiro. Cássio Scarpinella Bueno (2006, p. 7) com abalizada argumentação a propósito do assunto, expõe: O processo tem de ser compreendido como o conjunto de atividades judiciais que vão desde o provocar o R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2,p.171-181, jul./dez. 2009 176 Estado-juiz a reconhecer o direito até o realizá-lo. Processo é a junção do binômio “reconhecimento” (do direito) e “realização” (do direito) a que fiz referência acima. O que se dá ao longo do processo é que o foco das atividades e da atuação do Estado-juiz altera-se conforme as necessidades imediatas. O Estado-juiz praticará uns tantos atos voltados precipuamente ao reconhecimento do direito tal qual descrito pelas partes em suas manifestações e praticará outros tantos voltados precipuamente à realização concreta do que foi reconhecido. Não está errado, muito pelo contrário, sustentar que cada uma destas atividades possa ser compreendida como uma “etapa”, como uma “fase” do processo. Mas cada uma destas “etapas”, cada uma destas “fases” são elementos, são partes que compõem o todo, que é o processo. Não são o processo. São parte dele. Com a recente reforma do CPC, por intermédio da edição da Lei n.º 11.232, de 22.12.2005, a tese de Humberto Theodoro Júnior foi, em parte, positivada, estabelecendo-se, nas obrigações de pagar, um processo sincrético, ou seja, um processo com funções cognitiva e executiva. Voltando o foco para o Processo do Trabalho, não se pode olvidar que os processualistas civis sempre beberam na sua fonte para aperfeiçoar o sistema processual comum. Entretanto, o Processo do Trabalho que já foi considerado vanguardista, hoje está carente de inovações e ousadia, não mais satisfazendo os anseios da sociedade. Com a alteração de competência e o aumento da cultura “demandista” nas ações trabalhistas, o primeiro impulso é a aplicação das novas regras do Processo Civil. Contudo, o Processo do Trabalho é autônomo e deve ter preservada a sua identidade plasmada principalmente nos seus princípios e singularidades. Francisco Meton Marques (2004, p. 259260), abordando as singularidades do Processo do Trabalho, enfatiza que no Processo do Trabalho, ganham caráter diferencial, em face da maior consistência, os princípios: da oralidade, do “jus postulandi” das partes, da concentração, da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, da conciliação, da substanciação e do inquisitivo. Deve ser acrescentado à contribuição de Meton Marques, que na interpretação do Direito Processual do Trabalho acata-se os princípios “in dubio pro misero” e da inversão do ônus da prova. E na medida que se exalta a aplicabilidade pura do Processo do Trabalho, verifica-se, como já dito alhures, a necessidade de mudanças. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 177 O atraso no Processo do Trabalho está assentado sobre dois fatos: a falta de uma moderna legislação processual trabalhista e a inércia dos juslaboristas em apresentarem propostas de mudanças de forma densa, pragmática e organizada, uma vez que a produção doutrinária pátria é rica. Assim, numa proposta de mudança, apresenta-se o RECURSO TRABALHISTA “LATU SENSU”. A inspiração para a criação do RECURSO TRABALHISTA “LATU SENSU” tem origem no artigo 5.º, LXXVIII, da Constituição brasileira e na inspiradora e visionária tese de Humberto Theodoro Júnior. O RECURSO TRABALHISTA “LATU SENSU” formará um elo mais sólido entre o processo de conhecimento e a execução trabalhista. Embora, alguns acreditem que não há essa separação, ela existe, ainda que tênue, mormente, em razão da possibilidade de execução de título extrajudiciais (art. 876, CLT), da execução previdenciária (876, parágrafo único, CLT) e da legitimação extraordinária para a sua promoção (art. 878 CLT). Registre-se que a própria legislação trabalhista expressamente preconiza esta dualidade (art. 889, CLT). Ademais, com a nova competência da Justiça do Trabalho, será possível a admissão de execução de novos títulos extrajudiciais, que não estão elencados na CLT, como um contrato de prestação de trabalho autônomo, criando um processo executório autônomo. Contudo, ressalte que o fato de a execução trabalhista ser autônoma não impede o impulso oficial (CLT, art. 878), que tanto contribui para a celeridade processual. São situações (autonomia x impulso oficial) que convivem pacificamente no processo de execução trabalhista, em prol da efetividade da prestação jurisdicional. Como primeiro passo deverá o reclamante apresentar petição inicial com pedido certo ou determinado, indicando o valor correspondente. A exigência não é nenhuma inovação e já está prevista na CLT para as reclamações enquadradas no procedimento sumaríssimo (CLT, art. 852-b, I). Por seu turno, o reclamado deverá apresentar contestação impugnando o pedido e respectivo valor. A CLT não define contestação, utiliza o termo genérico defesa. O CPC, assegura ao réu, em resposta à ação que lhe é proposta, oferecer contestação, exceção e reconvenção (CPC, art. 297). Trata-se da aplicação do princípio da impugnação específica, amplamente adotado no Processo do Trabalho, uma R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 178 vez que a contestação por negativa geral remete à presunção de veracidade dos fatos não impugnados (CPC, art. 300). Encerrada a instrução processual, deverá o magistrado proferir sentença líquida. A exigência para que o magistrado de primeiro grau profira sentença líquida não é novidade. O CPC já faz essa previsão para os processos sob o procedimento comum sumário (CPC, art. 475-A, §3.º). A reforma da CLT, ao estipular o procedimento sumaríssimo, rito processual equivalente ao procedimento comum sumário, se mostrou bastante tímida, ao não exigir o encerramento dos feitos mediante sentença líquida. Logicamente, exceções podem ser aceitas, tais como, ações plúrimas e coletivas, em que a liqüidação poderá ser diferenciada, por intermédio de artigos de liqüidação, por exemplo, ou poderá ser tolerado um prazo maior para que o magistrado sentencie, de forma líquida, o feito. No mais, o Judiciário Trabalhista deve ser estruturado para alcançar excelência na qualidade da prestação jurisdicional, ou seja, entregue o bem da vida ao credor no menor espaço de tempo possível, com qualidade. Sentenciado o feito1, abre-se, evidentemente, o prazo recursal às partes. Aqui, reside a principal inovação. A parte recorrente deverá na sua peça impugnar os pedidos concedidos e os respectivos valores liquidados. A peça recursal deverá, necessariamente, apresentar memorial de cálculos, sob pena de preclusão – situação inspirada no comando inserto no artigo 879, §2.º, da CLT. Nada impede que a parte recorrente apenas impugne os pedidos da condenação “strictu sensu”, sem manifestar-se quanto aos respectivos valores liquidados. Os prejuízos são por sua conta e risco e o reclamante, certamente, agradecerá. Destaquese que a preclusão não impede que o Poder Judiciário impeça o enriquecimento sem causa. É bom lembrar que o tribunal é parte da instância ordinária, onde se discute valores. Ademais, se não for via RECURSO TRABALHISTA “LATU SENSU”, certamente a matéria sobre os cálculos retornará via agravo de petição. Aliás, é bom lembrar também as palavras do Ministro Ronaldo Lessa, então presidente 1 Por oportuno, sem embargo de entendimento, consigne-se que, nos moldes da reforma do CPC, a CLT, que é omissa quanto ao conceito de sentença, pode adotar a mesma sistemática reformista processual civil, passando a conceituar a sentença como ato que não põe fim ao processo, mas à fase de conhecimento, extinguindo a tênue dualidade de processos existente no Processo do Trabalho. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 179 do TST, em entrevista concedida à Rádio Justiça, em 29.11.2006, afirmou que outro gargalo – a execução da sentença – em breve deverá ser satisfatoriamente solucionado, também com o auxílio da informática: “Faremos isso através da decisão líquida e do acórdão do TRT também líquido, o que vai tornar inexistente a fase de liquidação, lá na execução”. Observou o Ministro: “leva-se às vezes dois anos ou mais até que se chegue à quantificação final do débito” e finalizou declarando que: “como vamos ter a decisão líquida – com o valor da condenação expresso numericamente na própria decisão –, não teremos esse embaraço, porque esta já se fará com esse quantitativo”. Logo, as decisões líquidas são questões que já estão sendo abordadas com praticidade e estratégia e, em breve, será uma realidade. Nesse exato momento, a UNIÃO também será notificada para manifestar-se sobre os valores liquidados na sentença relacionados aos encargos fiscais, se for o caso, apresentando suas razões e cálculos de impugnação que serão apreciados pelo tribunal, por ocasião do julgamento do recurso ordinário. Então, o Tribunal deverá conhecer da matéria previdenciária por primeiro e haverá uma supressão de instância para a União? É de conhecimento de todos que: 1) a Justiça do Trabalho tornou-se uma das maiores arrecadadoras de encargos previdenciários no Brasil; 2) antes o INSS e agora a União pouco, ou quase nunca, impugna os valores previdenciários estipulados nas decisões judiciais. Nesse raciocínio, a supressão de uma instância em nada afetaria a arrecadação da previdenciária e, sem prejuízo, não há nulidade, situação inspirada no princípio da transcendência. Ademais, a União, por força de lei (CLT, 876, parágrafo único), conta com um excelente fiscal previdenciário a seu favor, o tribunal regional. A questão deve ser tratada de ofício, onde houver excesso retire-se, onde houve falta, que se complemente. De fato, havendo erros na liquidação dos valores previdenciários, nenhum magistrado ou regional permanecerá em boa sombra aceitando a sonegação fiscal, mormente, por estar sujeito às penas da lei. Em segundo plano, poder-se-ia perguntar: Mas como a União poderia manifestar-se nesse momento, se a obrigação ainda não está definida? Ora, a situação é a mesma prevista no art. 879, §3.º, da CLT. A obrigação está sendo liquidada, não está definida e a União deve manisfestar-se quanto aos cálculos apresentados pelas partes ou pelos órgãos auxiliares da Justiça do Trabalho, sob pena de preclusão. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 180 Ademais, os cálculos foram elaborados, com conhecimento e isenção, pelo Estado-juiz, por ocasião da publicação da sentença liquida. Portanto, não se vislumbra qualquer prejuízo de ordem previdenciária. Não ultrapassada a questão da supressão de instância, a União poderia ser notificada para se manifestar ao final da execução trabalhista, como tem sido adotado por alguns magistrados, em primeira instância, considerando que o pagamento ao credor é o fator gerador da contribuição previdenciária. Outrossim, embora o crédito trabalhista tenha origem em tempo anterior à sentença, as atualizações e juros apurados apenas são concernentes a este para permitir que a entrega pecuniária traduza o valor histórico devido. Com a entrega do valor devido e reconhecido judicialmente, advém o fato gerador previdenciário que obriga aos recolhimentos respectivos. Pensar o contrário, levandose o fato gerador ao tempo pretérito, acarretaria que os créditos previdenciários teriam que ser onerados por multas decorrentes do pagamento inoportuno, quando, por vezes, a discussão perante a Justiça do Trabalho é ocasionada pela controvérsia de ser ou não devida determinada verba trabalhista. O contribuinte previdenciário seria onerado por fato gerador que até então desconhecia. Pondere-se que, na liberação do crédito, as retenções fiscais poderiam ser efetivadas, fato que reduziria a grita da União, uma vez que, há pouca a insurgência contra os valores retidos pela Justiça do Trabalho a título de previdência e imposto de renda. Todavia, havendo insurgência, certamente a maior parte dos encargos já estaria recolhida, facilitando a tarefa da União, na execução do remanescente, mormente, se considerarmos a logística e o “status” da “SUPER RECEITA”. E a exigência de apresentação de cálculos na peça recursal não prejudicaria o reclamante que ajuizou ação via atermação, violando o princípio de proteção ao hipossuficiente? O número de atermações e de recursos interpostos com a utilização do “jus postulandi” é desprezível e, na grande maioria dos Regionais é inexistente. Ademais, nos casos de atermações os valores, via de regra, já são liquidados. Julgado o recurso, havendo interposição de recurso de revista, o despacho que negar admissibilidade ao apelo servirá também como citação do devedor para pagar os valores liquidados em primeiro grau, com ou sem alteração, em virtude da manifestação do juízo “ad quem”, situação esta inspirada na tese defendida por Humberto Theodoro Júnior no seu mestrado. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 181 A interposição de recurso de revista segue a sistemática atual. Contudo, em suas razões o recorrente deverá abordar as questões de direito e as relacionadas aos cálculos de liquidação, esta última somente em caso de frontal violação à Constituição Federal, conforme a sistemática hoje vigente para admissibilidade de recurso de revista em execução. Neste momento, críticas podem surgir e são bemvindas. Ora, se a intenção é dar celeridade ao feito trabalhista e a parte não está impedida de recorrer, podendo ater-se a discutir a matéria eminentemente de direito, ignorando os valores liquidados, por sua conta e risco, qual a validade do recurso trabalhista “latu sensu”? A resposta em quatro tópicos: 1) A interposição de recurso de revista é parte do devido processo legal. 2) Com a atribuição de valores ao bem da vida, a pretensão torna-se mais tangível, compreensível à parte litigante. Assim, após percorrer duas instâncias, que conheceram profundamente da questão posta nos autos, ao ponto de liquidar a obrigação, as parte certamente estarão inclinadas a aceitar o resultado do julgamento como correto. Nesse pensar, facilita-se também a efetivação de conciliação na execução, prática recomendada pelo CSJT. 3) O conhecimento profundo da matéria, ao ponto de liquidar a obrigação, por duas instâncias, certamente mitigará o sucesso da pretensão recursal na via extraordinária (TST). 4) Atualmente, via de regra, o processo aguarda o julgamento do recurso de revista para iniciar a liquidação. O número de execuções provisórias é, infelizmente, nulo. Tal fato se atribui a falta de legislação específica no Processo do Trabalho a respeito da matéria, uma vez que, artigos sobre execução provisória com a redação anterior a Lei n.º 11.232/2005, pouco contribuíam para o incremento da execução provisória no Processo do Trabalho, bem como a intensa discussão quanto à possibilidade de levantamento de valores sem a devida caução. A recente reforma do CPC jogou luz sobre a questão e apontou um promissor norte para a execução provisória. Merecem destaque as seguintes situações: I) corre por conta e responsabilidade do exequente, que se obriga (objetivamente), se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido; II) fica sem efeito, sobrevindo acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento; III) o levantamento de depósito em dinheiro, e a prática de atos que R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 182 importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos; IV) se a sentença provisória for modificada ou anulada apenas em parte, somente nesta ficará sem efeito a execução; V) a caução poderá ser dispensada, quando, nos casos de crédito de natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito, até o limite de sessenta vezes o valor do salário mínimo, o exequente demonstrar situação de necessidade; a petição que enseja a execução provisória deverá ser instruída com a sentença ou acórdão exequendo, procurações outorgadas pelas partes, facultativamente, outras peças processuais que o exequente ou o juiz considere necessárias; Em princípio, todas as situações elencadas são perfeitamente compatíveis com o Processo do Trabalho. Logo, se há compatibilidade das novas regras da execução no processo comum com a execução trabalhista, não seria racional a sua utilização subsidiária, legalmente autorizada (CLT, art. 769) ao invés de criar um recurso? Acredita-se que não. A identidade do Processo do Trabalho deve ser preservada. A necessidade reforma da questão processual, na esfera trabalhista, é premente. Assim, o Processo do Trabalho não deve andar à reboque do processo civil a cada reforma que este implementa. O Processo do Trabalho deve implementar a sua própria reforma, respeitando seus princípios e singularidades. Mas sem perder de foco, a recente reforma do CPC, que aponta para uma redução no prazo de duração dos processos na Justiça Comum. Paulo Henrique Teixeira da Silva (2007, p.191), sobre a necessidade de mudança do Processo do Trabalho, ressalta: Toda vez que o Código de Processo Civil passa por uma reforma, desencadeia-se um movimento doutrinário no sentido de averiguar se tais inovações são ou não aplicáveis ao Processo do Trabalho. Geralmente, as opiniões dividem-se entre aqueles que denomino de “puristas”, fiéis à tradição da inteireza e perfeição da CLT, e os “holísticos”, ávidos por novidades, sempre apresentando novas alternativas de procedimento [...] O desejável, certamente, seria a criação do nosso Código de Processo Trabalhista [...] Mas, enquanto isso não vem, vale lembrar a lição de Beatrice Buteau: ‘Não podemos esperar que os tempos se modifiquem e nós nos modifiquemos junto, por uma revolução que chegue e nos leve em sua marcha. Nós mesmos somos o futuro. Nós somos a revolução. Entretanto, é preciso lembrar da segurança jurídica, pois, nesse pensar, o magistrado, ao seu talante, se R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 183 utilizará de norma processual civil, sempre que esta lhe parecer mais efetiva, em substituição ao Processo do Trabalho. Trata-se do “canto da sereia”, o magistrado trabalhista, seduzido, pela modernidade dos institutos do CPC, relega ao segundo plano o Processo do Trabalho, condenando-o ao ostracismo. Tal fato, talvez, sem alarmismo, importe na própria extinção do Processo do Trabalho. Um dado prático que materializa esse “canto da sereia”, que merece nota, é a questão relacionada a extinção dos embargos à execução no CPC. Alguns operadores apressaram-se em festejar a extinção dos aludidos embargos, ocorre que o art. 475-L, criou um novo incidente, denominado impugnação ao cumprimento da sentença, elencando 10 (dez) possibilidade de contestar a execução, enquanto a nossa “velha” CLT, no parágrafo 1.º, do art. 884, elenca apenas três, quais sejam, cumprimento da decisão ou do acordo, quitação ou prescrição da dívida. Em remate, o presente ensaio tão-somente pretende motivar discussões em prol da reforma do Processo do Trabalho, de forma pragmática, fomentando a apresentação de novas propostas a serem condensadas e “ouvidas” pelas autoridades competentes para promovê-las de direito, porque cumpre à sociedade, fazê-las. Enfim, quiçá, o Processo do Trabalho, que conta com magníficos operadores, também possa “recrutar” a sua “TROPA DE ELITE” nos moldes do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), a grande mola propulsora das recentes mudanças do CPC, promovendo as necessárias mudanças do Processo do Trabalho, respondendo aos anseios da sociedade. Em derradeira nota, destaque-se que, no dia 14.10.2009, o presidente do Senado José Sarney (PMDB-AP) instalou uma comissão de 11 especialistas para elaborar uma proposta de novo Código de Processo Civil. A comissão terá 180 dias para finalizar uma proposta, devendo o projeto do novo código ser votado até o fim de 2010. É o Processo do Trabalho mais uma vez seguindo a reboque. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.171-181, jul./dez. 2009 184 185 CONCILIAÇÃO: INSTRUMENTO DE PACIFICAÇÃO DAS LIDES TRABALHISTAS LucianaTaira* RESUMO O presente artigo trata da conciliação como forma de composição das lides de natureza trabalhista. Ressalta a adoção desta forma autocompositiva após a fase de conhecimento, menos em razão de previsão legal que de aplicação de instrumentos hábeis para realização de uma justiça mais efetiva, na esteira das mais recentes tendências da doutrina processualística. Palavras-chave: Procedimento. Processo. Conciliação. Execução. Direito. 1 INTRODUÇÃO Considerando a natureza alimentar das prestações trabalhistas, a doutrina já assentou o entendimento de que o processo trabalhista deve ser diferenciado quando comparado ao processo civil. Assim, tendo em vista o tema a ser abordado, merece destaque o princípio da revogabilidade das decisões no processo trabalhista. Amauri Mascaro Nascimento, citando Couture, explica em que consiste tal princípio: “uma decisão, ‘num processo individual ou coletivo, é sempre revisável e revogável, diante da modificação de algumas premissas’” (COUTURE, 1971, apud NASCIMENTO, 2007b, p. 110). Não obstante os princípios que particularizam o processo do trabalho, não se deve desconsiderar que sua finalidade é semelhante àquela almejada pela função jurisdicional: a pacificação com justiça. Portanto, o processo trabalhista só é um processo diferenciado até o limite necessário para alcançar a mencionada pacificação. Uma forma muito utilizada - e também bastante incentivada - para compor litígios trabalhistas é a conciliação que consiste na forma de composição de lides mediante a deliberação das partes. Vê-se, então, que a conciliação é resultado da associação entre a justiça distributiva e a justiça * Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.183-190, jul./dez. 2009 186 social, cujo fim é o atendimento pleno às exigências do bem comum (NADER, 1995, p. 133). Também pela conciliação, a justiça alcança seu escopo magno, que é a pacificação por deliberação das próprias partes. A Consolidação das Leis do Trabalho prevê duas oportunidades para a conciliação. A primeira delas está prevista no caput do art. 846: “Aberta a audiência, o juiz ou presidente proporá a conciliação.”A segunda é estabelecida pelo art. 850, caput: Terminada a instrução, poderão as partes aduzir razões finais, em prazo não excedente de 10 (dez) minutos para cada uma. Em seguida, o juiz ou presidente renovará a proposta de conciliação, e não se realizando esta, será proferida decisão. Porém, em razão do princípio da revogabilidade das decisões no processo trabalhista, a conciliação entre as partes é possível mesmo após o início da execução. 2 FLEXIBILIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO E SUAS CONSEQUÊNCIAS PROCESSUAIS O Direito do Trabalho pode ser considerado um ramo relativamente recente da ciência jurídica. Sabe-se que despontou na chamada questão social que, por sua vez, surgiu no cenário da Revolução Industrial. Alguns doutrinadores dividem a evolução do Direito do Trabalho em três fases: a de conquista, a promocional e a de adaptação à realidade atual. Pode-se afirmar, com segurança, que o atual estágio pelo qual passa este novel ramo do Direito é a terceira fase - a de adaptação às novas demandas sociais. As bandeiras pelas quais lutam os trabalhadores, hoje, já não são as mesmas de outrora. A utilização da tecnologia em larga escala tem suprimido postos de trabalho, pois é sabido que a substituição da mão-de-obra humana por inovações tecnológicas aumenta consideravelmente a produção das empresas. Com isso, as vagas remanescentes tendem a ser preenchidas pelos trabalhadores mais qualificados. A globalização (que impõe níveis de produção abaixo dos quais não se admite a integração), desatenta à condição peculiar de cada país, é também um fator responsável pela mudança da realidade sócio-econômica. Nesse contexto, as relações de trabalho têm passado atualmente pelo que se pode chamar de crise do emprego. Os trabalhadores, hoje, reivindicam a manutenção do emprego ainda que, para tanto, seja necessária uma redução do salário e da R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.183-190, jul./dez. 2009 187 jornada de trabalho. Os empregadores, por sua vez, se pretendem manter a competitividade, precisam incrementar sua produção não apenas em termos de quantidade como também de qualidade. E isso, inevitavelmente, só é possível pela redução de custos. Atentos a esta realidade e buscando uma solução para tais problemas, os doutrinadores do Direito têm construído uma corrente de pensamento flexibilista, que vê a necessidade de reduzir determinados direitos trabalhistas como forma de conter o desemprego. De acordo com Amauri Mascaro Nascimento, em seu Curso de Direito do Trabalho (2007a, p. 168-169): Flexibilização do direito do trabalho é a corrente de pensamento segundo a qual necessidades de natureza econômica justificam a postergação dos direitos dos trabalhadores, como a estabilidade no emprego, as limitações à jornada diária de trabalho, substituídas, por um módulo anual de totalização da duração do trabalho, a imposição pelo empregador das formas de contratação do trabalho moldadas de acordo com o interesse unilateral da empresa, o afastamento sistemático do direito adquirido pelo trabalhador e que ficaria ineficaz sempre que a produção econômica o exigisse, enfim, o crescimento do direito potestativo do empregador, concepção que romperia definitivamente com a relação de poder entre os sujeitos do vínculo de emprego, pendendo a balança para o economicamente forte. Consta-se, portanto, que a finalidade da flexibilização é preservar a ordem pública social, pela aplicação das leis trabalhistas, e, sempre que a conjuntura econômica exigir, adaptar tais leis com acordos derrogatórios. Para ilustrar a tese de que a corrente flexibilista vem, de fato, se firmando não só entre a doutrina mais abalizada bem como entre legisladores pátrios, cita-se o art. 7.º da Constituição Federal de 1988 que, em dois de seus incisos estipula, in verbis: VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; XII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; Em nível infraconstitucional, citam-se leis que retiram o caráter salarial de diversas utilidades, tais como: diárias para viagem até 50% do salário, vale-transporte, os abonos salariais expressamente desvinculados dos salários, assistência escolar e bolsa estágio. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.183-190, jul./dez. 2009 188 Não obstante a tendência flexibilista, não se pode afirmar que o Direito do Trabalho - com sua vocação de direito protetor dos hipossuficientes - tenha perdido sua importância. Pelo contrário, diante da flexibilização ganha mais relevo sua função de tutela de determinados bens jurídicos fundamentais que não devem ser passíveis de flexibilização como, por exemplo, a vida, a saúde, a integridade física e a personalidade. As mudanças sócioeconômicas, provocadas pela flexibilização do direito do trabalho, demandam um aperfeiçoamento da técnica de resolução das lides trabalhistas. Um procedimento que vem sendo utilizado para tanto, embora sem previsão legal expressa, é a designação de audiência de tentativa de conciliação na fase de execução. Por esta via, a audiência é designada mediante o pedido de qualquer das partes ou mesmo ex officio. Comparecendo as partes e havendo composição entre elas, o juiz homologa o acordo que deverá substituir a execução. Em caso de inviabilidade de conciliação, a execução prosseguirá até a satisfação dos créditos. Este método lastreia-se no princípio dispositivo, que constitui um dos pilares do processo trabalhista, segundo Menendez-Pidal (1950 apud NASCIMENTO, 2007b). Por este princípio, concede-se respeito máximo à vontade das partes, estendendo-se também à fase de execução. Tal é a proeminência da conciliação, como método de composição das lides trabalhistas, que o Tribunal Superior do Trabalho determina seja elaborada estatística mensal dos acordos celebrados na fase de conhecimento e na de execução. 3 O PRINCÍPIO DA CELERIDADE A respeito dos princípios informativos do direito processual trabalhista, divide-se a doutrina entre as seguintes correntes: a) autonomia do direito processual do trabalho perante o comum, segundo a qual o processo trabalhista tem princípios próprios que não se confundem com aqueles que caracterizam o processo comum; b) unificação do direito processual, afirmando a existência apenas de princípios comuns a ambos os ramos do direito processual. Conforme já apontado, tendo em vista a natureza das lides submetidas à Justiça do Trabalho, constata-se que o processo trabalhista precisa ser diferenciado, caso se pretenda fornecer uma prestação jurisdicional eficaz. A doutrina que subsidia de forma mais plena o processo do trabalho é a da autonomia deste R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.183-190, jul./dez. 2009 189 ramo do processo. Portanto, o processo trabalhista tem princípios característicos que o tornam um instrumento de alcance do bem comum. Um desses princípios que merecem destaque aqui, dada sua relação próxima com a natureza alimentar das prestações trabalhistas, é o da celeridade processual. Segundo esse princípio, o processo trabalhista deve ser o mais rápido possível, o que se concretiza por meio de procedimentos simples e informais. O processo comum também é informado por tal princípio, pois contraria a própria natureza das relações sociais o prolongamento imotivado de situações indefinidas. Logo, em consideração à já comentada natureza das lides trabalhistas, a celeridade deve ser muito mais acentuada no processo laboral. Consequência da aplicação da celeridade como solução das lides é a tentativa de conciliação na fase de execução. Consoante já dito, a CLT prevê dois momentos distintos para a conciliação: no início e fim da audiência. Entretanto, mesmo na fase de execução, é viável a designação de audiência, seja ex officio ou por pedido das partes, para a tentativa de acordo. E, uma vez as partes se compondo e cumprindo os termos acordados, o processo tem seu fim com a entrega da prestação jurisdicional sem os incidentes da execução. Dito procedimento - embora sem previsão legal - encontra arrimo no fato de que, no processo de dissídio individual, a matéria versada é basicamente de natureza alimentar. A Magna Carta, em seu art. 5º, inc. LXXVIII, preconiza que: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.” A conciliação na fase de execução é, sem dúvida, um meio de garantir a celeridade da tramitação do processo, na medida em que exclui a oportunidade de interposição de diversos meios impugnativos da execução. Apenas para ilustar, citam-se, como exemplo de um desses meios, os embargos à execução, cuja tramitação pode suspender a execução por, no mínimo, 15 dias, e isso quando dispensada a instrução. 4 AS DIFICULDADES DA EXECUÇÃO A execução é uma fase do processo que deveria ter uma tramitação rápida, a fim de não retardar a prestação jurisdicional. No entanto, devido à utilização desvirtuada dos diversos instrumentos colocados à disposição das partes para lhes garantir a ampla defesa, o resultado é que, às vezes, tais instrumentos cumprem uma outra função: a protelação do processo. Disso resultam situações tais como: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.183-190, jul./dez. 2009 190 a) encerramento das atividades do executado com o consequente desaparecimento de seus bens; b) o problema da despersonalização da pessoa jurídica, pelo qual busca-se executar o patrimônio dos sócios (e até ex-sócios) quando os bens da sociedade são insuficientes para quitar o débito; c) a interposição de embargos de terceiro por ex-sócios que tiveram seu patrimônio alcançado pela execução; d) penhoras insuficientes em razão da inexistência de outros bens passíveis de constrição e o consequente arquivamento provisório do processo. Estas são apenas algumas das situações que arrastam o andamento do processo por um período de tempo maior do que o efetivamente necessário para a prestação jurisdicional. Eliminar tais instrumentos dispostos pela lei às partes durante a execução suscitaria outro problema e de maior magnitude: o da afronta aos princípios do contraditório e da ampla defesa, tão prestigiados pelo ordenamento jurídico pátrio, inclusive elevados à categoria de direitos constitucionais (Constituição Federal de 1988, art. 5.º, LV). Com esse penar, mas sim a aplicação dos princípios próprios do processo trabalhista que não se confundem com aqueles adotados pelo processo comum. Essa é a via a ser seguida para excluir os entraves da execução: a utilização destes princípios específicos num âmbito maior. Uma das vias a que partes e juízes é a tentativa de conciliação. Para alguns doutrinadores na fase de execução estaria preclusa a via conciliatória, até porque não há fundamento legal para esse procedimento. Porém, diante da complexidade típica dessa fase, a conciliação é, sem dúvida, um remédio cujos benefícios em muito são superiores a eventuais discussões em matéria de preclusão. Tão importante é esse procedimento que Almeida (1985 apud NASCIMENTO, 2007b) elevou-o à categoria de princípio norteador do processo trabalhista. A conciliação é uma fase obrigatória à qual estão sujeitos tanto os dissídios individuais como os coletivos. E, embora sem previsão legal, é um procedimento que pode ser aproveitado durante a execução para sanar as patologias próprias desta fase processual, pois já consagrado pela praxe forense. 5 AS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS E FISCAIS A Justiça do Trabalho é competente para executar as contribuições previdenciárias e fiscais incidentes sobre os valores pagos a título de acordo ou condenação (CF, art. 114, VIII). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.183-190, jul./dez. 2009 191 Uma vez solucionada a lide, a decisão judicial ou acordo homologado deverá sempre indicar a natureza jurídica das parcelas respectivas para efeito de incidência previdenciária (CLT, art. 832, § 3º). A execução de tais contribuições deverá, então, se dar pelo modo e nos termos estipulados. A conciliação na fase de execução - quando levada a efeito entre reclamante e reclamado - não alcança os débitos de natureza previdenciária ou fiscal, pois credora dessas contribuições é a União, portanto, um terceiro estranho à composição. Nessa linha de pensamento, em caso de acordo entre autor e réu, apenas a execução do crédito trabalhista será substituída pelos termos conciliatórios. Para que as contribuições previdenciárias e fiscais sejam abrangidas por dita conciliação, é necessária a manifestação da União, credora dessas contribuições. É o que diz o § 1º do art. 889-A da CLT: Sendo concedido parcelamento do débito previdenciário perante o INSS o devedor deverá juntar aos autos documento comprobatório do referido ajuste, ficando suspensa a execução da respectiva contribuição previdenciária até final e integral cumprimento do parcelamento. 6 NOVOS RUMOS DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL Diante da nova feição das relações socioeconômicas, provocada pelos efeitos da globalização sobre as relações trabalhistas, o ordenamento jurídico tem evoluído para um processo mais simplificado, no sentido de prestar uma tutela jurisdicional mais adequada a esta nova demanda. Pede-se vênia para transcrever a lição de Humberto Theodoro Júnior (2008, p. 19) a respeito do tema: [...] o texto do Código de Processo civil sofreu, nos últimos anos, várias reformas, todas com um só e principal objetivo: acelerar a prestação jurisdicional, tornando-a mais econômica, mais desburocratizada, mais flexível e mais efetiva no alcance de resultados práticos para os jurisdicionados. Diante desta nova realidade, as legislações processuais hoje são mistas, ou seja, adotam preceitos tanto de natureza inquisitiva como dispositiva. Já não há mais espaço para legislações que adotem apenas um destes princípios em sua pureza. Tais reformas processuais são necessárias, pois é dever do Judiciário fornecer aos litigantes uma prestação jurisdicional não apenas justa, mas também o mais célere possível. E, em matéria de direito processual trabalhista, essas R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.183-190, jul./dez. 2009 192 mudanças são ainda mais prementes, dada a natureza alimentar dos litígios que lhe são submetidos. Sobre a questão, cristalino é o ensinamento de Costa, citado por Humberto: “Justiça tardia é justiça desmoralizada” (COSTA, 1956, p. 53 apud THEODORO JÚNIOR, 2008, p. 31). 7 CONCLUSÃO A conciliação é um procedimento obrigatório na fase de cognição do processo trabalhista. É, também, conforme já salientado, um princípio orientador deste ramo do direito processual. As novas demandas sociais exigem um processo simples e célere, capaz de fornecer uma tutela jurisdicional cujo alcance dispense exigências formais inúteis. A tentativa de conciliação na fase executória é o instrumento hábil para afastar os obstáculos desta fase, pondo cobro a recursos protelatórios, ao mesmo tempo em que atende às necessidades dos trabalhadores e aos desafios dos empregadores. Conforme a doutrina de Cintra, Grinover e Dinamarco (2007, p. 47) “é antes de tudo para evitar ou eliminar conflitos entre pessoas, fazendo justiça, que o Estado legisla, julga e executa (o escopo social magno do processo e do direito como um todo).” REFERÊNCIAS CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2007a. ______. Curso de Direito Processual do Trabalho. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2007b. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 48.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v.1 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.183-191, jul./dez. 2009 193 ACÓRDÃOS 194 195 PROCESSO: TST-E-ED-RR-759.341/2001.5 ACÓRDÃO SBDI-1 GMHSP/acp/MCG/ct/smf EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO PUBLICADO ANTES DA LEI Nº 11.496/2007. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO CONTRA O EMPREGADOR POR INVENTO OCORRIDO DURANTE E EM RAZÃO DA RELAÇÃO DE EMPREGO. ARTIGO 114 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. O objeto da presente ação – pedido de indenização contra o empregador por invento ocorrido durante e em razão da relação de emprego – insere-se na competência da Justiça do Trabalho, ainda que demande a interpretação de lei extravagante (Lei nº 9.279/96) de natureza não-trabalhista. Correta, portanto, a conclusão da e. 1ª Turma, não havendo que se cogitar de violação dos artigos 896 da CLT ou 114 da Constituição Federal de 1988. EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO PUBLICADO ANTES DA LEI Nº 11.496/2007. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO CONTRA O EMPREGADOR POR INVENTO OCORRIDO DURANTE E EM RAZÃO DA RELAÇÃO DE EMPREGO. ARTIGOS 88 E 90 DA LEI Nº 9.279/96. VIOLAÇÃO. INEXISTÊNCIA. ARTIGO 1º, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. O caput do artigo 88 da Lei nº 9.279/96, vigente quando da extinção do contrato de trabalho do Reclamante, dispõe que “a invenção e o modelo de utilidade pertencem exclusivamente ao empregador quando decorrerem de contrato de trabalho cuja execução ocorra no Brasil e que tenha por objeto a pesquisa ou a atividade inventiva, ou resulte esta da natureza dos serviços para os quais foi o empregado contratado” (destacamos), sendo certo que, segundo o v. acórdão embargado, o modelo de utilidade R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 196 desenvolvido pelo Reclamante resultou dos serviços prestados para a Reclamada FCA. Acrescente-se que o artigo 90 da mesma Lei prevê que “pertencerá exclusivamente ao empregado a invenção ou o modelo de utilidade por ele desenvolvido, desde que desvinculado do contrato de trabalho e não decorrente da utilização de recursos, meios, dados, materiais, instalações ou equipamentos do empregador” (grifos não constantes do original), quando é certo que o modelo de utilidade de que tratam os presentes autos foi desenvolvido de forma vinculada ao contrato de trabalho e mediante utilização de “material sucateado, que não mais serviria às empresas reclamadas”, segundo o e. TRT da 3ª Região. Ocorre, porém, que o fato de a atual lei haver assegurado os royalties exclusivamente ao empregador, e previsto apenas uma faculdade de que o empregado participasse dos ganhos econômicos da exploração daquela invenção, não há vedação – e nem poderia haver, à luz do artigo 1º, IV, da Constituição Federal de 1988 – de que o empregado seja indenizado pela invenção de que o empregador se beneficiou em razão do contrato e da mencionada Lei nº 9.279/96. Com efeito, a opção do legislador ordinário é inequivocamente injusta para com o empregado, que conforme doutrina secular vende, por meio do contrato de trabalho, apenas sua força de trabalho, mas não sua criatividade ou sua “atividade inventiva”, para repetir a expressão contida na Lei nº 9.279/96. Acrescentese que, segundo o e. TRT da 3ª Região, o Reclamante exercia a função de “artífice de manutenção”, e tomou a iniciativa de criar um modelo de utilidade que não apenas facilitou seu próprio serviço como também ensejou “lucro pelas reclamadas com a utilização de invento do reclamante (quer em mão de obra, tempo despendido, melhorias técnicas ou vantagens R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 197 econômicas, bem como relativamente à medicina e segurança do trabalho)”. Se se tratasse de um empregado contratado para o fim de desenvolver projetos ou pesquisas, dúvida não haveria de ser do empregador o invento ou modelo de utilidade resultante; mas admitir-se que o empregador apropriese de modelo de utilidade desenvolvido pelo empregado fora dos limites do contrato de trabalho, ainda que em razão dele, não apenas desestimularia completamente o exercício da atividade inventiva pelos empregados, como também corresponderia a um verdadeiro enriquecimento sem causa pelo empregador, que por aquele invento ou modelo de utilidade nada pagou quando do adimplemento de suas obrigações contratuais típicas. Finalmente, e não obstante os já mencionados artigos 88 e 90 da Lei nº 9.279/96, assim como não se pode cogitar de qualquer desrespeito às patentes (conhecido vulgarmente como “pirataria”) no território nacional, também não se pode admitir que uma das partes da relação de emprego – por sinal, a mais forte delas – aproprie-se gratuitamente do modelo de utilidade desenvolvido pela outra de forma estranha ao contrato de trabalho pela só condição de empregador, sob pena de afronta aos valores sociais do trabalho consagrados pelo artigo 1º, IV, da Constituição Federal de 1988. Recurso de embargos não conhecido integralmente. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Embargos em Embargos de Declaração em Recurso de Revista nº TST-E-EDRR-749.341/2001.5, em que é Embargante FERROVIA CENTROATLÂNTICA S.A. - FCA e são Embargados UNIÃO (SUCESSORA DA EXTINTA REDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A.) e MARCOS PENHA MENEZES. A e. 1ª Turma, por meio do v. acórdão às fls. 752-774, complementado às fls. 782-783, não conheceu do recurso de revista da Reclamada Ferrovia Centro-Atlântica S.A – FCA quanto R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 198 aos temas “Competência da Justiça do Trabalho”, “Prescrição” e “Invento – Modelo de Utilidade - Indenização”. Aquela Reclamada interpõe recurso de embargos (fls. 787-791). Aduz que a Justiça do Trabalho não pode decidir a respeito de uma indenização por suposto invento, pois esta matéria não está inserida no contrato de trabalho, por força do artigo 114 da Constituição Federal. Quanto à prescrição, sustenta que sua duração é quinquenal por força do artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal, e não decenal, como reconhecido pelo e. TRT da 3ª Região. No que tange à indenização pelo invento, alega que não é devida porque este ocorreu nas dependências da empresa, durante o horário de trabalho com fim específico para a atividade desenvolvida pelo Reclamante, e sem registro de patente, nos termos do artigo 38 da Lei nº 9.279/96. Afirma que o invento nessas condições pertence exclusivamente ao empregador, não sendo assegurada ao trabalhador qualquer indenização, ex vi dos artigos 40 da Lei nº 5.772/71 e 38 e 88, § 1º, da Lei nº 9.279/96. Denuncia violação do artigo 896 da CLT. Sem impugnação (fl. 797), havendo o d. Ministério Público do Trabalho, por meio da promoção à fl.802, deixado de opinar por falta de interesse público direto. É o relatório. VOTO O recurso de embargos é tempestivo (fls. 784 e 787), nos termos da Súmula nº 262, II, do TST, e está subscrito por advogados devidamente habilitados (fls. 741-742). Custas pagas a contento (fl. 575) e depósito recursal realizado de forma a atingir o valor arbitrado à condenação (fl. 792), nos termos da Súmula nº 128, I, do TST. 1 – CONHECIMENTO 1.1 – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – INDENIZAÇÃO POR INVENTO – LEI Nº 9.279/96 A e. 1ª Turma rejeitou a preliminar de incompetência da Justiça do Trabalho com o seguinte fundamento: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 199 “Sobre o tema em foco, o Eg. Regional assim se manifestou: ‘Prevalece nesta Primeira Turma o entendimento a integrar a competência da Justiça do Trabalho as questões envolvendo pedido de indenização. A explicação encontra respaldo na compreensão de que o dano teria sido provocado em decorrência da existência de vínculo empregatício entre as partes, razão esta pela qual estaria ocorrendo um dissídio individual entre patrão e empregado, atendido portanto o propósito estabelecido no artigo 114 da Carta Magna. Rejeito a preliminar argüida’ (fls. 596/577). Ademais, ao decidir os embargos de declaração, asseverou o seguinte: ‘No que pertine à questão da indenização decorrente de invento, o acórdão é claro ao determinar que a competência desta Justiça Especializa decorre do entendimento de que o dano teria sido provocado em decorrência da existência do vínculo de empregatício entre as partes, razão esta pela qual estaria ocorrendo um dissídio individual entre patrão e empregado, atendido portanto o propósito estabelecido no artigo 114 da Carta Magna’ (fl. 621). Nas razões de recurso de revista, a Reclamada alega que não se inscreve na competência material da Justiça do Trabalho julgar pedido de indenização decorrente de criação de modelo de utilidade. Aponta violação ao art. 114 da Constituição Federal, aos artigos 642 e 643 da CLT, aos artigos 2º, 6º, 38, 229, 241 da Lei 9.279/96. Traz um único aresto para confronto. Extrai-se do v. acórdão regional que o pedido de indenização decorre da criação de ‘modelo de utilidade’, verificada no curso do contrato de trabalho e dele proveniente. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 200 Transparece cristalinamente dos autos que se cuida de lide entre empregado e empregador, que emergiu da execução do contrato de emprego. Conquanto não tenha por objeto prestação de índole tipicamente trabalhista, no particular, inequivocamente a pretensão jurídica de direito material controvertida guarda relação de causalidade com o contrato de emprego: o pedido de indenização resulta da criação de invento, ‘modelo de utilidade’, surgido no curso da relação de emprego. Manifesto, assim, que à época da propositura da demanda a causa inscrevia-se no ‘caput’ do art. 114 da Constituição Federal. Presentemente, o inciso VI do art. 114 da Carta Magna, com a redação imprimida pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, expressamente dissipou qualquer dúvida a respeito. Desse modo, o Eg. Regional, ao declarar a competência material da Justiça do Trabalho para dirimir a presente demanda, não violou o artigo 114 da Constituição Federal. Quanto aos demais dispositivos legais, não os reputo violados, porquanto não tratam de competência material da Justiça do Trabalho para julgar lide entre empregado e empregador a propósito de indenização decorrente de criação de modelo de utilidade. Inespecífico o aresto de fl. 683, visto que alude à incompetência material da Justiça do Trabalho para compor conflitos na ação em que se postulam danos morais. Incidência da Súmula 296 TST. Em face do exposto, não conheço do recurso pela preliminar argüida” (fls. 757-759). A Reclamada FCA interpõe recurso de embargos (fls. 787789). Aduz que a Justiça do Trabalho não pode decidir a respeito de uma indenização por suposto invento, pois esta matéria não está inserida no contrato de trabalho, por força do artigo 114 da Constituição Federal. Denuncia violação do artigo 896 da CLT. Sem razão. O objeto da presente ação – pedido de indenização contra o empregador por invento ocorrido durante e em razão da relação de emprego – insere-se na competência da Justiça do Trabalho, ainda que demande a interpretação de lei extravagante (Lei nº 9.279/96) de natureza não-trabalhista. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 201 Correta, portanto, a conclusão da e. 1ª Turma, não havendo que se cogitar de violação dos artigos 896 da CLT ou 114 da Constituição Federal de 1988. Não conheço. 1.2 – PRESCRIÇÃO – INDENIZAÇÃO POR INVENTO – LEI Nº 9.279/96 A e. 1ª Turma rejeitou a prefacial de prescrição com o seguinte fundamento: “Sobre o manifestou: tema, o Eg. Regional assim se ‘PRESCRIÇÃO Pugna a recorrente pela aplicação da prescrição qüinqüenal, para que se considerem prescritos eventuais direitos anteriores a 02.12.93. Não há como se colher a pretensão empresária, eis que as parcelas deferidas não alcançam o lapso temporal qüinqüenal, não tendo havido, sequer, interposição de recurso pelo reclamante, (sic) caso em que poderia o dispositivo sofrer alterações decorrentes do exame por esta Eg. Turma’ (fl. 598). Nas razões de recurso de revista, a Reclamada insiste na prescrição qüinqüenal do direito de ação, quanto às parcelas da indenização postulada, anteriores a 2/12/93, em virtude do ajuizamento da ação em 2/12/1998. Aduz que a indenização postulada deve-se limitar ao período não prescrito, ou seja, a partir de 2/12/93. A indenização seria por quatro anos e não dez, como determinado pelas instâncias ordinárias. Aponta violação ao artigo 7º, inciso XXIX, alínea “a”, da Constituição Federal. É certo que o Eg. Regional, sobre o tema em apreço, não emitiu pronunciamento explícito à luz do artigo 7º, inciso XXIX, alínea ‘a’, da Constituição Federal. Contudo, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 202 afastou a incidência de prescrição qüinqüenal sobre as parcelas decorrentes da indenização postulada. Sucede que a matéria prescrição é puramente jurídica. Foi ventilada em razões de recurso ordinário e de embargos de embargos de declaração. Foi renovada, ainda, em razões de recurso de revista, sob o enfoque pretendido. Há, nesse caso, prequestionamento ficto, circunstância que permite seu exame nesta esfera recursal. Como visto, cuida-se aqui de hipótese singular e delicada de prescrição. O artigo 7º, inciso XXIX, da Constituição Federal dispõe: ‘(...) ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho’. A meu juízo, o Eg. Tribunal ‘a quo’ não vulnerou esse preceito constitucional, por múltiplas razões. A um, porque a disputa entre as partes não trava, a toda evidência, a propósito de prestação de cunho trabalhista, no sentido de que derive diretamente de obrigação do contrato de emprego. Logo, não se cogita aqui propriamente de ‘crédito trabalhista’. A dois, porque, segundo o Regional, ‘as parcelas deferidas não alcançam o lapso temporal qüinqüenal’. De fato, extrai-se da sentença mantida no Regional que não houve, a rigor, acolhimento de pedido anterior ao qüinqüênio imediatamente antecedente ao ajuizamento da ação. Em realidade, meramente tomou-se como parâmetro da fixação do valor da indenização por perdas e danos o fato de o contrato haver vigorado por aproximadamente dez anos, de 1987 a 1996. Isso absolutamente não significa retroação da prescrição qüinqüenal trabalhista, mesmo que acaso aplicável fosse na espécie. A três, e principalmente, porque a natureza da prestação vindicada – uma indenização – não se R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 203 compadece com a prescrição trabalhista, parcial e sucessiva, no suposto de lesão periodicamente renovada. Entendo, pois, que, tratando-se de crédito alusivo à criação de ‘modelo de utilidade’, não há prescrição qüinqüenal a incidir durante a execução do contrato de trabalho. Tecidas essas considerações, reputo incólume o dispositivo constitucional invocado. Não conheço do recurso, no particular” (fls. 759761). A Reclamada FCA interpõe recurso de embargos (fls. 789790). Sustenta que a duração do prazo prescricional é quinquenal por força do artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal, e não decenal, como reconhecido pelo e. TRT da 3ª Região. Denuncia violação do artigo 896 da CLT. Sem razão. Três foram as razões de decidir da e. 1ª Turma a respeito do tema, sendo que a segunda, a saber, de que “não houve, a rigor, acolhimento de pedido anterior ao qüinqüênio imediatamente antecedente ao ajuizamento da ação. Em realidade, meramente tomou-se como parâmetro da fixação do valor da indenização por perdas e danos o fato de o contrato haver vigorado por aproximadamente dez anos, de 1987 a 1996”, é substancialmente diferente das duas outras. Como, porém, a Reclamada não se insurge contra todas as três motivações do v. acórdão embargado, mas apenas contra aquelas que interpretaram a possível incidência do artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal de 1988 aos pedidos de indenização fulcrados na Lei nº 9.279/96, não há como conhecer-se dos embargos no particular por óbice da Súmula nº 283 do excelso STF. Não conheço. 1.3 – INDENIZAÇÃO POR INVENTO OCORRIDO NA RELAÇÃO DE EMPREGO – LEI Nº 9.279/96 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 204 A e. 1ª Turma decidiu a controvérsia relativa à indenização postulada com o seguinte fundamento: “Sobre o tema, o Eg. Regional consignou o seguinte: Inicialmente, cumpre perquirir a respeito da existência e da autoria do invento, eis que negada pela reclamada. As provas carreadas aos autos à exaustão demonstram que o reclamante, de fato, inventou o equipamento que alega na peça exordial. A testemunha Antônio Alves dos Reis (depoimento às fls. 391/392), a quem o reclamante era subordinado, afirmou que este, há cerca de 8/10 anos anteriores ao término do contrato de trabalho, projetou e construiu os equipamentos que alega, sendo que houve substancial melhora do trabalho realizado, em quantidade e qualidade. Acrescentou que o reclamante somente projetou e construiu os equipamentos após ter obtido da reclamada permissão, tendo sido elogiado pela iniciativa. Afirmou ainda que tais peças inexistiam nas reclamadas, sendo decorrentes da própria necessidade que se apresentava no local de trabalho. Por fim, descreveu procedimentos operacionais, afirmando que a utilização das peças inventadas pelo reclamante implicaram a facilitação do serviço e a redução do tempo despendido na sua execução, sendo que os equipamentos continuam a ser usados. Realizada a prova pericial (fls. 466/476), constatou-se a veracidade das afirmações da testemunha ouvida. O perito oficial constatou que os equipamentos denominados dispositivo para remoção e montagem da excitratiz das locomotivas U-20 G.E/dispositivo para sacar e montar intercambiador de calor das locomotivas MX/dispositivo de sustentação de acoplamento das locomotivas U-20 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 205 G.E. foram inventados pelo autor, não possuindo similares. Concluiu ainda o perito oficial que os equipamentos continuam a ser utilizados, tendo o uso dos mesmos significado substancial redução da mãode-obra empregada, do tempo despendido nos trabalhos e, consequentemente, do custo operacional. Infere-se dos trabalhos periciais (legitimamente excetuado, digase, sem qualquer vício ou mácula), ainda, que a invenção dos equipamentos pelo autor traduziu-se em maior segurança no ambiente de trabalho. Diante disto, refutam-se as alegações da recorrente de que não restou provada a autoria dos projetos de fls. 16/18, mesmo porque a própria preposta da FCA afirmou que ‘alguns equipamentos inventados pelo Reclamante continuam a ser utilizados, outros não’. Nesse sentido, realmente não há como se negar que os equipamentos foram projetados e construídos pelo reclamante, dentro de sua jornada de trabalho, com materiais que não mais seriam utilizados, conforme depoimento e conclusão pericial. Resta a questão do direito à percepção de indenização pelos inventos. É inegável a utilidade prática dos equipamentos, o que foi minuciosamente descrito pelo perito no laudo. Da mesma forma, é indubitável que a utilização destes trouxe inquestionáveis lucros à empresa, seja na forma de economia de tempo, mão-de-obra e até mesmo de segurança no ambiente laboral. Entende a reclamada que não restaram preenchidos os requisitos das Leis 5772/71 e 9279/96, eis que as criações não foram patenteadas junto ao INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), não se podendo falar em invento. Entende ainda que seria requisito essencial a possibilitar a participação do reclamante. Não comungo deste entendimento, data vênia. O reclamante não foi contratado para R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 206 o exercício de atividade inventiva, mas apenas e tão-somente desenvolveu projeto com escopo de suprir as necessidades diárias que o serviço reclamava, não tendo visado ao mercado nem à obtenção de lucro. De outro lado, foi utilizado na construção dos equipamentos material sucateado, que não mais serviria às empresas reclamadas. Posto isto, diante da prova testemunhal e pericial colhida, no sentido da existência de lucro pelas reclamadas com a utilização de invento do reclamante (quer em mão de obra, tempo despendido, melhorias técnicas ou vantagens econômicas, bem como relativamente à medicina e segurança do trabalho), tenho que a falta do requisito formal, qual seja, a expedição de Carta Patente, não pode servir ao indeferimento da pretensão obreira. Prima o Direito do Trabalho pela observação do contrato realidade, não se podendo privilegiar requisitos meramente formais em detrimento da finalidade da lei. Provados a autoria dos inventos, bem como o ganho proporcionado às rés, não há como afastar-se o direito à indenização, calcado em simples requisito formal, sendo irreparável a r. decisão recorrida neste sentido. Quanto à fixação do valor devido a título indenizatório, nenhuma razão assiste à recorrente. Não sendo possível determinar, com exatidão, o ganho auferido pelas empresas reclamadas, eis que os dados fornecidos ao perito não passaram de estimativas, e ainda assim impugnados pelo autor, é correta a utilização dos critérios previstos no artigo 1536 do Código Civil, de aplicação subsidiária’ (fls. 598/599). Nas razões de recurso de revista, sustenta a Reclamada a inexistência do direito à indenização. Alega que a concessão da patente é requisito essencial ao direito à indenização e que, não lhe havendo sido concedida a carta-patente, o Reclamante não faria jus à R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 207 indenização postulada. Aduz que o procedimento utilizado na fabricação dos inventos, matéria prima, parte mecânica e demais operações teve participação de outros empregados tais como artífices, soldadores, maçariqueiros, torneiros e ajustadores. O Eg. Regional, ao decidir a questão em foco, teria, pois, olvidado o laudo pericial que, com clareza absoluta, revelou que as utilidades foram fabricadas dentro da jornada de trabalho, com matéria-prima das próprias oficinas da Reclamada. Acresce que, se incontroverso que o Autor era artífice de manutenção e os supostos inventos foram desenvolvidos durante a vigência do pacto laborativo, tais inventos decorreriam da própria natureza da atividade desenvolvida. Aponta violação aos artigos 2º, inciso I, 6º, 38, 88, § 1º, e 229 da Lei nº 9.279/96; e ao artigo 40 da Lei nº 5.772/71. À face do que assentou o Egr. Tribunal ‘a quo’, inquestionável a criação das utilidades pelo empregado e a exploração lucrativa pelo empregador. Resta saber se ao Reclamante pode ser atribuída a autoria, bem como se lhe assiste direito à indenização acolhida. Ora, as invenções que envolvem o trabalho do empregado classificam-se em três espécies: ‘invenção de serviço’, ‘invenção livre’, ‘invenção de empresa’. A ‘invenção de serviço’ é a que decorre da atividade inventiva do trabalhador, contratado para o exercício das funções de inventor. Nesta hipótese, efetivamente o empregado não terá nenhum direito sobre a criação. Nada impede que as partes, mediante negociação, contratem a participação do trabalhador nos lucros econômicos resultantes do invento. Essa participação, caso ajustada, não ostenta natureza salarial, mas, sim, indenizatória, não se incorporando à remuneração do empregado. A ‘invenção livre’, por sua vez, resulta da atividade criadora do trabalhador, sem qualquer vinculação com a existência e a execução do contrato de emprego. Nesta modalidade de invenção, tanto os meios quanto os recursos e equipamentos do empregador não podem amparar a atividade criadora do empregado. Eventuais conhecimentos técnicos adquiridos na vigência do R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 208 contrato laboral não geram para o empregador o direito de propriedade, tampouco de exploração do invento. A propriedade e o direito de exploração são exclusivos do empregado. Se a criação, todavia, resultar das funções para as quais foi contratado o trabalhador, ainda que a criação intelectual venha ao mundo jurídico sem a utilização de recursos do empregador, perderá sua qualidade de ‘livre’, passando a ostentar natureza de ‘invenção de serviço’. Nessa hipótese, a propriedade e o direito de exploração são exclusivos do empregador. Por sua vez, a denominada ‘invenção de empresa’ constitui espécie de meio-termo entre a ‘invenção de serviço’ e a ‘livre’. Sua constituição pode-se dar em duas hipóteses: na primeira, a invenção é conseqüência do trabalho coletivo, sem nenhuma possibilidade de individualizar-se o autor ou autores; na segunda, a criação intelectual provém do esforço de determinado empregado, ou determinado grupo de empregados. Na primeira hipótese, em face da impossibilidade de individualizar-se o criador do invento, pode-se concluir que a invenção enriquece o patrimônio empresarial. Entretanto, não se cogita de indenização, porquanto a lei não disciplina hipótese de exploração da propriedade imaterial em co-autoria, ou seja, coletivamente, sem que se possa identificar seus efetivos autores. Na segunda hipótese, o invento provém do esforço intelectivo de determinado empregado, ou de determinados empregados, que podem ser identificados. Neste último caso, da força inventiva de determinado empregado, ou de determinados empregados identificáveis, a que se somam os meios e recursos propiciados pelo empregador, surge o invento. Esta produção não advém da contratação entabulada, que a isso não visou. Representa, sim, um subproduto resultante da capacidade criativa do homem, emanação irradiada da personalidade do trabalhador. Daí ser-lhe atribuído o status de ‘invenção’, com conseqüências jurídicas que se espraiam além do contrato de trabalho e ensejam compensação pela utilidade auferida pelo empregador. Trata-se, pois, de indenização decorrente do denominado invento de empresa. Nessa hipótese, o legislador estipulou que o direito de exploração é do empregador, embora comum a propriedade. Na espécie, salta à vista que o Reclamante, exercente R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 209 da função de artífice especial de mecânico, não foi contratado para o desempenho da função de inventor. Logo, não se pode reputar a criação trazida a lume como ‘invenção de serviço’. Igualmente não se pode considerar a criação como ‘invenção livre’ porquanto utilizados recursos da empresa. No caso, a criação do Reclamante qualifica-se juridicamente como ‘invenção de empresa’, já que os inventos criados no curso da relação contratual não decorrem da natureza das atividades desenvolvidas por um simples artífice especial de mecânico. Fixadas essas premissas, cabe agora solucionar a questão central concernente à ‘retribuição’ ou ‘indenização’ correspondente ao ‘invento – modelo de utilidade’ criado. Trata-se de questão espinhosa, à falta do estabelecimento de parâmetros objetivos em lei. Com efeito, a Lei nº 9.279/96, artigo 91, § 2º, assegura ao criador do invento ‘justa remuneração’. Não estabelece, contudo, parâmetros objetivos para que o juiz fixe a justa retribuição decorrente da novidade. Ora, se a lei assegura ‘justa remuneração’, nada impede que se conclua que o salário ajustado sirva de parâmetro para o cálculo dessa compensação, igualmente prevista na lei, para retribuição da criação de modelo de utilidade, fruto da capacidade laborativa do empregado, explorado lucrativamente pelo empregador. No caso em tela, a r. sentença, confirmada pelo v. acórdão recorrido, fixou o valor da indenização, quanto a cada um dos inventos, em metade da última remuneração percebida pelo empregado pelo prazo de dez anos. Dentro, pois, dos padrões remuneratórios do Reclamante. A fixação nesses padrões mostra-se razoável, porquanto, como já ressaltado, faltam parâmetros objetivos, na lei, para atribuir-se ‘justa remuneração’ ao inventor de modelos de utilidade. De qualquer sorte, o valor arbitrado ajusta-se às previsões do artigo 88, § 1º, da Lei 9.279/96 que, disciplinando situação semelhante, assegura ao empregado contratado para pesquisa ou atividade inventiva, ‘inventor’ ou ‘criador de modelo de utilidade’ o salário previamente ajustado. Por fim, cumpre analisar se a duração da indenização R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 210 em apreço, pelo prazo de dez anos, encontra guarida na lei. Entendo que sim. Com efeito, na ‘invenção de serviço’, a participação do trabalhador condiciona-se à cláusula contratual, podendo ser cumprida a obrigação indenizatória de uma única vez, ou em parcelas sucessivas. No caso de ‘invento – modelo de utilidade’, a participação do trabalhador decorre da lei. Sucede que a lei, ao tratar do prazo por que deve estender-se a indenização, estabelece: duração de vinte anos, nos casos de ‘invenção’; e de quinze, nos casos de criação de ‘modelo de utilidade’. Acrescenta, ainda, prazos mínimos de vigência: dez para ‘invenção’; sete para ‘modelo de utilidade’. No caso em tela, a indenização pelo modelo de utilidade foi determinada pelo prazo de dez anos, prazo médio, circunstância que evidencia a razoabilidade e o acerto da decisão proferida. Do quanto exposto, forçoso concluir que, embora comum a propriedade e exclusiva a exploração pelo empregador, a lei assegura ao empregado direito a uma ‘justa remuneração’ pela exploração do invento, modelo de utilidade, resultante da contribuição pessoal do empregado (Art. 91, § 2º, Lei 9.279/96). Pouco importa que o invento haja sido propiciado, mediante recursos, meios, dados e materiais, nas instalações da empresa. Comprovada a autoria, a novidade, bem como a utilização lucrativa do invento, construído à base de material sucateado, em prol da atividade empresarial, o empregador, independentemente de prévio ajuste, está obrigado, por lei, a remunerar o autor do invento. Irrelevante o fato de o empregado patentear, ou não, o invento. A obrigação de indenizar tem por fato gerador a utilidade extracontratual, emanação da atividade intelectiva irradiada da personalidade do empregado, revertida em benefício da exploração econômica do empregador. É direito assegurado na Constituição Federal. Desse modo, o Eg. Regional não violou os artigos 88, § 1º, e 91, § 2º, da Lei 9.279/96, ao manter a r. sentença em que se fixou pelo prazo de dez anos, multiplicados pela metade da última remuneração percebida, o valor da indenização correspondente a cada uma das três invenções criadas pelo Reclamante. Os demais dispositivos invocados não guardam R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 211 estreita pertinência com a hipótese discutida nos presentes autos, visto que, especificamente, não tratam do direito à indenização decorrente de criação de modelo de utilidade, tampouco dos critérios para apuração do valor da mencionada indenização. Por esta razão considero não violados. Em face do exposto, não conheço do recurso de revista interposto pela Ferrovia Centro Atlântica S/A” (fls. 767-773). A Reclamada FCA interpõe recurso de embargos (fls. 790791). Alega que a indenização pelo invento não é devida porque este ocorreu nas dependências da empresa, durante o horário de trabalho com fim específico para a atividade desenvolvida pelo Reclamante, e sem registro de patente, nos termos do artigo 38 da Lei nº 9.279/96. Afirma que o invento nessas condições pertence exclusivamente ao empregador, não sendo assegurada ao trabalhador qualquer indenização, ex vi dos artigos 40 da Lei nº 5.772/71 e 38 e 88, § 1º, da Lei nº 9.279/96. Denuncia violação do artigo 896 da CLT. Sem razão. Para melhor compreensão da controvérsia, faz-se mister a transcrição do magistério dos insígnes Orlando Gomes e Elson Gottschalk, em sua obra “Curso de Direito do Trabalho”, vol. I, Ed. Forense, RJ, 1987, pp. 253-256: “A execução do contrato de trabalho pode dar lugar a invenções, ou a modelos de utilidade industrial. Com o extraordinário desenvolvimento da tecnologia, bem como o relevante interesse econômico representado pela exploração do invento ou do modelo, tornase importante saber a quem deve ser atribuída a propriedade da patente respectiva. Em alguns países, como os Estados Unidos1 a Alemanha2, o problema 1 2 P.J. Frederico, Distribution os Patents Issued to Corporation, journal of. P. O. S., p. 405, entre 1939 e 1955 foram patenteadas 348.125 invenções, das quais 58,51% de empregados. N.A. CHRISTIAN ENGLERT, L’Invention faite par l’Employé dans l’Enterprise Privé, 1960, p. 2, estima-se em 80% o número de todas as invenções oriundas dos empregados. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 212 assume grande relevância, dado o vulto das invenções patenteadas anualmente. Não é fácil definir a invenção. Deve-se, contudo, distinguir invenção de descoberta. Na linguagem vulgar, muitas vezes os dois conceitos são confundidos, entretanto, uma diferença essencial pode ser salientada: a descoberta não é criadora, embora não se lhe possa obscurecer seu mérito. Com efeito, fazse descoberta do que já existe, e não se faz aplicação prática do que se achou. Ao contrário, a invenção criadora, servindo-se da descoberta, realiza na prática industrial sua aplicação. Exemplificando-se: a fissão nuclear do urânio é uma descoberta que tornou possível a invenção da bomba atômica (Englert). A descoberta por si mesma não é patenteável. Todavia, nos países comunistas, o autor da descoberta pode usufruir vantagens análogas às do inventor3. Os dois conceitos decorrem da distinção que se faz entre ciência pura e ciência aplicada, a primeira dando origem às denominadas invenções científicas, ignoradas pela lei das patentes; a segunda, criando as invenções industriais, isto é, as que têm por objeto e por fim prático resultado suscetível de aplicação industrial. São seus elementos essenciais à idéia criadora e o processo técnico. A classificação tripartida das invenções data do Congresso de Augsburgo, 1914, para a proteção da propriedade industrial. Estabeleceram-se, então, três tipos de invenções: a) invenção de serviço; b) invenção livre; c) invenção de empresa ou estabelecimento4. Na invenção de serviço o empregado é contratado especialmente para realizar pesquisa científica e o resultado de seu trabalho, como em qualquer outro contrato de trabalho, aproveita ao empregador, que o 3 4 Hoje essas estatísticas devem estar sobrepassadas de muito. O Anuário Estatístico do Brasil, 1974, IBGE, dá o total de 1.985 patentes concedidas, entre 1971 e 1973, incluindo-se invenções, modelos industriais e de utilidades e desenhos industriais. Não faz referência à autoria dos mesmos, p. 590, 3.11.2. N.A. Englert, ob. cit., p. 10. A lei tcheca define a descoberta: “a constatação de fenômenos, de qualidades ou de leis do mundo físico, que existem objetivamente e não eram conhecidas antes”. N.A. O Projeto de C. do Trabalho do Prof. E. M. Filho perfilha esta classificação (art. 472). N.A. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 213 remunera para este fim. É contrato comum de trabalho cujo objetivo se distingue pela natureza da prestação, que atribui ao inventor a honra do invento e o direito moral de sua autoria. Neste caso, a propriedade da patente é do empregador, que pode explorar livremente a invenção, respeitada a paternidade do invento pelo interesse moral dele resultante para o inventor. A invenção livre é a que decorre prevalentemente do espírito inventivo do empregado; para uns, sem conexidade com sua atividade profissional na empresa, para outros, embora se tenha realizado em conseqüência desta atividade. O empregado, autor de uma invenção livre, é seu exclusivo proprietário e pode dispô-la livremente. Renunciando-a, porém, em benefício do empregador deveria fazê-lo com as devidas cautelas legais, ressalvado o direito moral e certo interesse econômico na exploração. Tal invenção não é gravada por qualquer direito de expectativa ‘quase real’ em proveito do empregador (Volmer). Observam certos autores, entretanto, que o dever de fidelidade inerente ao contrato de emprego pode impor ao empregado-inventor certas obrigações, tais como: a) a comunicação obrigatória da invenção ao empregador; b) o oferecimento a este do direito não exclusivo de utilizá-la, salvo se não lhe for útil. A invenção de empresa ou de estabelecimento é aquela realizada gradualmente pelo trabalho de vários empregados cuja experiência e pesquisa inventiva se entrelaçam de tal sorte que não se pode designar o verdadeiro responsável (Englert). A invenção decorre da experiência prática, dos trabalhos preparatórios, dos meios auxiliares da empresa de modo a não se poder identificar o inventor, dado que a invenção é fruto da atividade profissional dos que estão na empresa ou dos que dela já saíram. A doutrina universal admite que em tais circunstâncias o proprietário da empresa poderá vindicar a propriedade da patente5. A consolidação regulou apenas a hipótese de invenção de estabelecimento e de serviço. Entretanto, 5 As leis dinamarquesa (1955), espanhola (1944) e soviética (1959) prevêem expressamente a propriedade das invenções de estabelecimento, atribuindo-a ao proprietário deste. O Projeto de C. do T. de E. M. Filho aplica a reversão somente quanto às invenções de estabelecimento. N. A. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 214 a Lei nº 5.772, de 21.12.1971, que revogou a de nº 1.005, de 1969, isto é, o Código de Propriedade Industrial, no particular, estabeleceu a regra da propriedade comum da patente, quando o invento ou aperfeiçoamento realizado pelo empregado decorrer de sua contribuição pessoal e também de recursos, dados, meios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador; mas com duas ressalvas: a) permissão de expressa estipulação em contrário; b) garantia ao empregador do direito exclusivo da licença de exploração, assegurada ao empregado a remuneração que for fixada. É prevista a invenção-de-serviço, bem como os aperfeiçoamentos, quando realizados durante a vigência do contrato expressamente destinado a pesquisa no Brasil, e em que a atividade inventiva do empregado seja prevista como objeto do contrato, ou ainda que decorra da própria natureza da atividade contratada. Mas se o empregado requer a patente até um ano depois da extinção do contrato, será considerada feita a invenção durante sua vigência, salvo ajuste contrário. A invenção-de-serviço ou aperfeiçoamento é prioritariamente patenteável no Brasil, e o empregado tem direito de ver seu nome figurar no pedido e na patente. Na invenção-livre, segundo a nova lei, pertencerá, exclusivamente, ao empregado o invento ou o aperfeiçoamento realizados, desde que sem relação com o contrato de trabalho e sem utilização de meios, recursos, dados, materiais e equipamentos do empregador6. A exploração da patente deverá ser iniciada pelo empregador dentro do prazo de um ano, a contar da data da expedição da patente, sob pena de passar à exclusiva propriedade do empregado. No caso de faltar acordo para iniciar a exploração da patente, ou no curso dessa exploração, qualquer dos cotitulares, em igualdade de condições, poderá exercer a preferência, no prazo que dispuser a legislação comum. Requerendo o empregador privilégio no estrangeiro, deverá assegurar ao empregado a 6 O anteprojeto da CLT da Comissão Interministerial apresenta uma classificação mais ampla dos inventos, mas inexplicavelmente omite os modelos, embora deixe explícito os aperfeiçoamentos dos inventos, atribuindo as respectivas propriedades das patentes de modo acertado (arts. 44, 45 e 46). N.A. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 215 remuneração que for fixada. A legislação atual corrigiu, assim, algumas imperfeições havidas na anterior. O pretendente a privilégio de invenção deverá depositar no Departamento Nacional de Propriedade Industrial seu pedido acompanhado no relatório descritivo e do desenho da invenção ou modelo de utilidade. Os papéis devem estar selados e taxas são cobradas pelas certidões fornecidas; entretanto, o empregado-inventor está isento do pagamento desses emolumentos, desde que declare e comprove sua situação econômica deficiente7. As legislações dos países altamente industrializados dão particular relevo às invenções industriais, estimulando-as por vários meios, com prêmios e outros incentivos, pois delas dependem o progresso industrial em larga escala e o triunfo na competição do mercado internacional. Finalmente, como observa Renato Corrado, as invenções do empregado, feitas após haver deixado o emprego, embora servindo-se dos conhecimentos técnico-profissionais adquiridos no ambiente da empresa, não podem gerar direito vindicativo da patente pelo ex-empregador8; entretanto, no particular, a nova Lei nº 5.772 é menos liberal para o empregadoinventor, quando lhe retira a propriedade da patente se utiliza meios, recursos, materiais e equipamentos do empregador, sem ressalva de conhecimentos técnicoprofissionais adquiridos antes. Richard J. Barber, tratando da pesquisa custeada pela indústria nos Estados Unidos, cita cifras da ordem de 18 bilhões de dólares para o ano de 1969, época longínqua em que 400 mil cientistas e engenheiros se achavam empregados como pesquisadores industriais9”. Na mesma linha, e já considerando a nova Lei das 7 8 9 Lei nº 5.772, de 21.12.1971; Lei nº 2.556, de 6.8.1955; Decreto nº 39.573, de 13.6.56; Decreto-Lei nº 8.481, de 27.12.1945. A propósito das invenções industriais, vide João da Gama Cerqueira, in Tratado da Propriedade Industrial, 1º volume, p. 229 e segs. N.A. Trattato di Diritto del Lavoro, Utet, Torino, 1966, vol. II, p. 198. N.A. Empresas Multinacionais (Poder – Economia – Estratégia), Editora Atlas S.A., SP, 1972, p. 138. N.A. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 216 Patentes, que revogou o antigo Código de Propriedade Industrial, tem-se ainda as preciosas lições de João de Lima Teixeira Filho na obra “Instituição de Direito do Trabalho”, volume I, de coautoria de Arnaldo Süssekind, Délio Maranhão e Segadas Viana, Editora LTr, São Paulo, 2002, pp. 253-256:Na mesma linha, e já considerando a nova Lei das Patentes, que revogou o antigo Código de Propriedade Industrial, tem-se ainda as preciosas lições de João de Lima Teixeira Filho na obra “Instituição de Direito do Trabalho”, volume I, de co-autoria de Arnaldo Süssekind, Délio Maranhão e Segadas Viana, Editora LTr, São Paulo, 2002, pp. 253-256: “(...) A busca pelo domínio de novas tecnologias e seu constante aprimoramento são desafios dos dias presentes. Todos os esforços convergem para a superação do fosso tecnológico que separa as nações desenvolvidas das demais. A Constituição brasileira não passou ao largo da relevante temática, unindo, no art. 5º, XXIX, o ‘interesse social’ ao ‘desenvolvimento econômico e tecnológico do País’ na persecução desse ideal de vanguarda. A Constituição cuida da ‘Ciência e Tecnologia’ no compartimento da ‘Ordem Social’. Promovê-las diretamente é dever do Estado, assim como fomentálas, indiretamente, pelo engajamento de terceiros. É nesta conjugação de esforços que as empresas avultam em importância. Os inventos e aprimoramentos desenvolvidos em seu interior não só beneficiam seu próprio processo produtivo como contribuem, por propagação, para o País alavancar posições no ranking mundial e melhorar internamente as condições de vida dos cidadãos. Para tanto, há comando constitucional determinando que o Estado ‘apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia...’ (art. 218, § 4º, da CF). Esta imperatividade é temperada pelo condicionamento da ação estatal à lei a ser editada. Esta lei deverá conceder estímulos de natureza fiscal para as empresas que instiguem e recompensem a inventiva de seus empregados visando o desenvolvimento de avanços tecnológicos, sob a forma de produtos ou processos que aperfeiçoem os métodos produtivos. A resultante da criatividade do trabalhador pode ser patenteável ou não. Pela nova Lei 9.279, de 14.5.96, que regula a propriedade industrial, pode ser objeto de patenteamento: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 217 a) a invenção é uma obra inédita do espírito, é a revelação concreta de uma idéia-força ou engenho de criação, com aplicação utilitária, antes inexistente. Daí a lei exigir que essa descoberta atenda aos requisitos da novidade, atividade inventiva e aplicação industrial; e b) o ‘modelo de utilidade’ não é a manifestação de um engenho original, mas o aperfeiçoamento de invenção já existente. Esse desenvolvimento tem que ver com o processo, com a forma, não com o bem propriamente dito. Como diz a lei, é a apresentação de nova forma ou disposição para um objeto de uso prático, ou parte dele, envolvendo ato inventivo, que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação. O invento pode ser explorado comercialmente e, portanto, render royalties. Mas apenas após a expedição da carta-patente pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI. O titular da carta-patente tanto pode ser o empregador como o empregado, verdadeiro autor da obra de criação, ou ambos. Decidi-lo-á o contrato de trabalho. A matéria é deixada ao auto-regramento das partes (art. 6º, § 2º). Examinemos tais hipóteses. Só o empregado, autor do invento ou modelo de utilidade, poderá patenteá-lo (art. 6º, caput) se silente o contrato ou se o resultado de sua criação for alcançado apartadamente do pacto laboral, sem contar, por qualquer forma, com o auxílio do empregador. Aqui, autoria e titularidade patentária concentram-se numa só pessoa, o empregado. Ele poderá livremente comercializar sua propriedade industrial, inclusive com o seu próprio empregador. Em tal situação, a empresa pagará royalties ao titular da patente, com quem ladeia uma relação de emprego. Os vínculos jurídicos, todavia, são incomisturáveis. Precisamente por isso, os royalties pagos, neste caso, não têm natureza salarial. O empregador é o único titular do invento quando cláusula expressa do contrato de trabalho assim o determinar ou, se inexistente a previsão, pelo sentido R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 218 finalístico da contratação: quando o enlace jurídico objetivar a pesquisa, a criação ou o invento resultar da natureza própria dos serviços para cuja execução o trabalhador foi contratado. Neste caso, o salário convencionado é a contraprestação compreensiva do invento, de modo que não são devidos royalties ao empregado pela comercialização da patente pelo empregador. Nesta hipótese, sempre entendemos, com esteio no art. 218, § 4º, da Constituição, ser ‘indispensável que o empregador assegure ao autor da inovação uma participação a ser avençada, que tome por base o ganho que o empregador passou a ter com o produto da criatividade do seu trabalhador. Esta participação, que pode ser representada por um único pagamento ou parcelas mensais, não se incorpora ao salário do trabalhador, nem sobre ela incidem encargos sociais. A Constituição bem andou ao dizer que essa participação é ‘desvinculada do salário’. Com isso, evita-se o receio de que a concessão se torne irreversível, onerosa em função dos encargos sociais e inibidora do processo de busca permanente por novos aperfeiçoamentos’ (‘Instituições de Direito do Trabalho’, 11ª ed., São Paulo, LTr, 1991, pág. 249). E concluíamos essa linha de entendimento afirmando: ‘Embora o texto constitucional não tenha sido regulamentado, tudo leva a crer que a participação para o empregado não se confunde com os royalties que ele possa ter quando titular da patente de invenção que esteja sendo explorada’ (‘Instituições’, cits. 1991, pág. 250). Como Secretário Nacional do Trabalho chegamos a formular proposição com estas características, uma novidade em relação ao agora revogado Código de Propriedade Industrial (Lei nº 5.772, de 21.12.71). Com satisfação, vemos tal proposta acolhida no art. 89 da Lei nº 9.279/96, in verbis: ‘Art. 89. O empregador, titular da patente, poderá conceder ao empregado, autor de invento ou aperfeiçoamento, participação nos ganhos econômicos resultantes da exploração da patente, mediante negociação com o interessado ou conforme disposto em norma da empresa. Parágrafo único. A participação referida R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 219 neste artigo não se incorpora, a qualquer título, ao salário do empregado’. Quando o invento não é comercializado pelo empregador, mas utilizado apenas no interior do empreendimento, descabe pagamento de royalties, já que nenhuma renda a patente está produzindo. Cabível, sim, o pagamento de uma participação pela utilização interna da descoberta ou aprimoramento, em valor negociado, que pode referenciar-se ao ganho econômico apresentado no processo produtivo. Presume-se de titularidade do empregador o registro de patente requerido pelo empregado até um ano após a ruptura do seu contrato de trabalho, com as especificidades antes referidas. Concedida a carta-patente ao empregador, o nome do empregadoinventor dela sempre constará, salvo se esta não for a sua vontade (art. 39). Por fim, a titularidade do invento pode ser compartilhada. Empregado e empregador detêm partes iguais da patente quando, inexistindo cláusula contratual regulatória da hipótese, a criação resultar da contribuição pessoal do empregado e dos recursos e equipamentos colocados à sua disposição pelo empregador. Se a criação é coletiva, o quinhão dos empregados (metade) é subdividido igualmente entre todos os co-titulares da invenção ou modelo de utilidade. Estas meações não são rígidas. As normas legais pertinentes têm o traço da dispositividade (art. 91 e seu § 1º, ambos in fine), abertas, portanto, à primazia da vontade das partes contratantes. Permite a lei que o empregador negocie com o empregado co-titular a exclusividade na exploração da patente. Para tanto, a vontade do empregado encontra na lei um limite subjetivo, indispensável ao aperfeiçoamento deste negócio jurídico: a garantia da ‘justa remuneração’ ao empregado (§ 2º do art. 91). Significa que as partes devem avir compensação pecuniária equânime para o empregado, sob pena de reversão à co-titularidade. Justa remuneração nada tem a ver com natureza salarial. Afinal, esta cessão de direitos não resulta de contraprestação do serviço contratado. A nosso ver, o propósito da lei é evitar que o empregador, ao negociar a exclusividade, pague valor irrisório ao empregado comparado ao faturamento líquido indicado R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 220 nas avaliações de mercado de domínio do empregador – até porque avaliou a vantagem da exclusividade... Inexistindo este acordo, cabe ao empregador promover a exploração do objeto da patente nos 12 meses subseqüentes à expedição da carta. Não o fazendo neste prazo nem apresentando razões legítimas para não fazê-lo, passa o empregado à condição de único titular da patente, podendo explorá-la como melhor lhe aprouver e sem que nenhuma remuneração caiba ao empregador. O titular da carta-patente, seja ele qual for, pode explorar o invento pelo prazo de 20 anos e o modelo de utilidade por 15 anos (art. 40), findos os quais o produto da criação cairá em domínio público. A sistemática aplicável aos empregados é estendida pela Lei nº 9.279/96, nas mesmas condições, as relações jurídicas afins, como o são a do estagiário e a do trabalhador autônomo”. Com efeito, no presente caso, o contrato de trabalho do Reclamante foi extinto já na vigência da Lei nº 9.279/96, cujo artigo 88 dispõe que “a invenção e o modelo de utilidade pertencem exclusivamente ao empregador quando decorrerem de contrato de trabalho cuja execução ocorra no Brasil e que tenha por objeto a pesquisa ou a atividade inventiva, ou resulte esta da natureza dos serviços para os quais foi o empregado contratado” (destacamos), sendo certo que, segundo o v. acórdão embargado, o modelo de utilidade desenvolvido pelo Reclamante resultou dos serviços prestados para a Reclamada FCA. Acrescente-se que o artigo 90 da mesma Lei prevê que “pertencerá exclusivamente ao empregado a invenção ou o modelo de utilidade por ele desenvolvido, desde que desvinculado do contrato de trabalho e não decorrente da utilização de recursos, meios, dados, materiais, instalações ou equipamentos do empregador” (grifos não constantes do original), quando é certo que o modelo de utilidade de que tratam os presentes autos foi desenvolvido de forma vinculada ao contrato de trabalho e mediante utilização de “material sucateado, que não mais serviria às empresas reclamadas”, segundo o e. TRT da 3ª Região. Ocorre, porém, que o fato de a atual lei haver assegurado os royalties exclusivamente ao empregador, e previsto apenas uma faculdade de que o empregado participasse dos ganhos R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 221 econômicos da exploração daquela invenção, não há vedação – e nem poderia haver, à luz do artigo 1º, IV, da Constituição Federal de 1988 – de que o empregado seja indenizado pela invenção de que o empregador se beneficiou em razão do contrato e da mencionada Lei nº 9.279/96. Com efeito, a opção do legislador ordinário é inequivocamente injusta para com o empregado, que conforme doutrina secular vende, por meio do contrato de trabalho, apenas sua força de trabalho, mas não sua criatividade ou sua “atividade inventiva”, para repetir a expressão contida na Lei nº 9.279/96. Acrescente-se que, segundo o e. TRT da 3ª Região, o Reclamante exercia a função de “artífice de manutenção”, e tomou a iniciativa de criar um modelo de utilidade que não apenas facilitou seu próprio serviço como também ensejou “lucro pelas reclamadas com a utilização de invento do reclamante (quer em mão de obra, tempo despendido, melhorias técnicas ou vantagens econômicas, bem como relativamente à medicina e segurança do trabalho)”. Se se tratasse de um empregado contratado para o fim de desenvolver projetos ou pesquisas, dúvida não haveria de ser do empregador o invento ou modelo de utilidade resultante; mas admitir-se que o empregador aproprie-se sem nenhum custo de modelo de utilidade desenvolvido pelo empregado de forma estranha ao objeto do contrato de trabalho, ainda que em razão dele, não apenas desestimularia completamente o exercício da atividade inventiva pelos empregados, como também corresponderia a um verdadeiro enriquecimento sem causa do empregador, que por aquele invento ou modelo de utilidade nada pagou quando do adimplemento de suas obrigações contratuais típicas. Finalmente, e não obstante os já mencionados artigos 88 e 90 da Lei nº 9.279/96, assim como não se pode cogitar de qualquer desrespeito às patentes (conhecido vulgarmente como “pirataria”) no território nacional, também não se pode admitir que uma das partes da relação de emprego – por sinal, a mais forte delas – aproprie-se gratuitamente do modelo de utilidade desenvolvido pela outra de forma estranha ao contrato de trabalho pela só condição de empregador, sob pena de afronta aos valores sociais do trabalho consagrados pelo supramencionado artigo 1º, IV, da Constituição Federal de 1988. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 222 Com esses fundamentos, não conheço integralmente do recurso de embargos. ISTO POSTO ACORDAM os Ministros da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, não conhecer integralmente do recurso de embargos. Brasília, 22 de outubro de 2009. HORÁCIO SENNA PIRES Ministro Relator R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.193-220, jul./dez. 2009 223 PROCESSO: 00876.2008.041.14.00-0 CLASSE: RECURSO ORDINÁRIO ÓRGÃO JULGADOR: 1ª TURMA ORIGEM: VARA DO TRABALHO DE CACOAL - RO 1º RECORRENTE(S): JBS S/A ADVOGADA(S): KÁTIA CARLOS RIBEIRO 2º RECORRENTE(S): HÉLIO GOMES DOS SANTOS ADVOGADA(S): GLÓRIA CHRIS GORDON RECORRIDO(S): OS MESMOS RELATOR: DESEMBARGADOR VULMAR DE ARAÚJO COÊLHO JUNIOR REVISOR: JUIZ CONVOCADO SHIKOU SADAHIRO I - PLANTÃO DE 04 ÀS 10 HORAS. HORÁRIO NOTURNO DE 04 AS 05 HORAS. HORA REDUZIDA PARA 52 MUNUTOS E 30 SEGUNDOS. JORNADA DE TRABALHO DE MAIS DE 6 HORAS. INTERVALO INTRAJORNADA DE NO MÍNIMO 1 HORA. O trabalhador que faz plantão das 04 às 10 horas, trabalha mais de 6 horas, na verdade, labora o total de 6 horas, 7 minutos e 30 segundos, tendo em vista que no labor realizado entre 04 e 05 horas deve ser computada na jornada os minutos a mais referentes à redução da jornada ficta. Portanto, o mesmo faz jus ao intervalo intrajornada de no mínimo 1 hora. II - DANO SOCIAL. LEGITIMIDADE PARA PLEITEAR A INDENIZAÇÃO RESPECTIVA. Considerando que a doutrina conceitua o dano social como sendo aquele que repercute em toda sociedade, podendo gerar prejuízos de ordem patrimonial ou imaterial aos membros da coletividade, somente esta, por meio do Ministério Público, tem legitimidade para pleitear a indenização por dano social, nos termos do que dispõe a Carta Magna (art. 129, III) e a lei da Ação civil Pública (Lei nº 7.347/85 - art. 1º, IV). III - DANO MORAL. FALTA DE CONCESSÃO DO INTERVALO INTRAJORNADA. IMPROCEDÊNCIA. A não concessão do R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 224 intervalo intrajornada por si só não comporta a reparação por dano moral, é preciso que o trabalhador comprove o nexo causal do descumprimento da regra inserta no art. 71 da CLT com eventuais transtornos pessoais. 1 RELATÓRIO Trata-se de recursos ordinários interpostos pela reclamada e reclamante contra a sentença de fls. 252/266 que extinguiu sem resolução de mérito os pedido de recolhimentos previdenciários, por ter sido declarada a incompetência do juízo em razão da matéria e do alegado dano social, por carência de ação; extinguiu com resolução do mérito as pretensões do reclamante referente a direitos anteriores a 04 de dezembro de 2003, por ter sido pronunciada a prescrição quinquenal e, julgou procedente em parte os demais pedidos da inicial para condenar a reclamada a pagar ao autor indenização pela troca dos cartões magnéticos de ponto e horas extras decorrentes da supressão dos intervalos intrajornadas. A reclamada, fls. 267/270, pretende a reforma da decisão apenas no que tange a condenação ao pagamento de horas extras decorrentes dos intervalos intrajornadas não concedidos sempre que o reclamante/recorrido cumpriu plantão de 04hs às 10hs. Já o reclamante, fls. 279/292, requer a reforma do “decisum”, a fim de condenar a reclamada a indenizar o recorrente pelos danos social e moral causados, a pagar as horas extras, adicional noturno, multa pelo descumprimento dos ACT’s, vale cesta não repassadas, contribuições previdenciárias e honorários advocatícios. Contrarrazões pela reclamada, fls. 296/300, pugnando pela manutenção da sentença. O reclamante, apesar de cientificado da interposição do recurso interposto pela reclamada, fl. 294, deixou transcorrer in albis o prazo para oferecer suas contrarrazões, conforme certidão à fl. 294-v. Inexistindo exigência legal, e com fundamento no art. 89 do Regimento Interno, não se fez a remessa dos autos à Procuradoria Regional do Trabalho da 14ª Região. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 225 2 FUNDAMENTOS 2.1 CONHECIMENTO 2.1.1 DO RECURSO DA RECLAMADA O recurso é tempestivo, considerando que a reclamada, ora 1º recorrente, ficou ciente da sentença de fls. 252/266, prolatada em 2.3.2009 (segunda-feira), nos termos da súmula nº 197 do TST, interpondo o presente apelo por fac-símile em 10.03.2009 (terçafeira), segundo autenticação mecânica à fl. 267, apresentando os originais em 11.3.2009 (quarta-feira), fl. 273, dentro do prazo legal estipulado pela Lei nº. 9.800/99. A representação processual encontra-se regular, procuração juntada à fl. 38. Depósito recursal e custas, fls. 271/272, em ordem considerando que foi atribuído à causa o valor de R$4.000,00. Assim, preenchidos os pressupostos extrínsecos e intrínsecos, conheço do recurso ordinário de fls. 267/279. 2.1.2 DO RECURSO DO RECLAMANTE O recurso é tempestivo, considerando que o reclamante, ora 2ª recorrente, ficou ciente da sentença de fls. 252/266, prolatada em 2.3.2009 (segunda-feira), nos termos da súmula nº 197 do TST, interpondo o presente apelo em 10.3.2009 (terça-feira), segundo autenticação mecânica à fl. 279. A representação processual encontra-se regular, conforme instrumento de mandato de fl. 15. Custas processuais pela reclamada (fl. 266). Depósito recursal dispensado, por se tratar de recurso obreiro. Assim, preenchidos os pressupostos extrínsecos e intrínsecos, conheço do recurso ordinário interposto pela reclamante às fls. 279/292. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 226 2.2 MÉRITO 2.2.1 DO RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMADA 2.2.1.1 DAS HORAS EXTRAS DECORRENTES DOS INTERVALOS INTRAJORNADAS NÃO CONCEDIDOS SEMPRE QUE O RECLAMANTE CUMPRIU PLANTÃO DE 04HS ÀS 10 HS Insurge-se a reclamada, ora 1º recorrente, em face de sua condenação ao pagamento de horas extras decorrentes dos intervalos intrajornada não concedidos, sempre que o reclamante cumpriu o plantão das 04:00 às 10:00hs. Alega que o reclamante não laborava mais de 6 horas seguidas, conforme conclusão que se chega se constatarmos que o próprio reclamante admitiu em seu depoimento pessoal que gozava diariamente de um intervalo de 20 (vinte) minutos para o café da manhã, que conforme os cartões de ponto inclusos nos autos, não era registrado pelo obreiro. Sendo assim, sempre que o reclamante cumpria escala de 04:00 às 10:00hs, o mesmo não laborava 06:00 horas corridas e sim 05 horas, 47 minutos e 30 segundo, que é o resultado da subtração dos 20 minutos de intervalo e somatória com 7 minutos e 30 segundos a mais referentes à redução ficta da hora noturna trabalhadas. Pede, por conseguinte, que as horas extras deferidas sejam excluídas da condenação. Razão não assiste ao recorrente. Analisando o depoimento do reclamante, fl. 217, verifico que o mesmo declarou “Que começava sua jornada de trabalho às 4 horas da manhã, deixando a empresa em horários variados, entre 11/15 horas; que gozava de apenas uma intervalo para café da manhã, com duração de vinte minutos, em média;...”. (grifei) Por outro, a 1ª testemunha do reclamante, Sr. Silva Ribeiro de Souza, fls. 219/220, declarou que fazia suas refeições no próprio setor de tratamento de água, por cerca de quinze minutos por dia. (grifei) R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 227 Como se pode observar, o trabalhador declarou que gozava de um intervalo para café de 20 minutos e sua testemunha de 15 minutos. Todavia, considerado pelo em que houve à correspondentes 261: tal intervalo como sendo de 15 minutos já foi juízo “a quo”. Senão vejamos trecho da sentença análise do pleito de pagamento das horas extras pela supressão dos intervalos intrajornadas, fl. Possivelmente, a empresa não concedia ao reclamante o intervalo para almoço, de uma hora, concedendo-lhe apenas um intervalo de 15 minutos para o café, por entender que o plantão perfazia apenas 6 horas de trabalho. (grifei) Ocorre que, considerando que o labor realizado entre as )4:00 e 05:00 horas era noturno, deve ser computada na jornada os minutos a mais referentes à redução ficta dessa hora. Portanto, de fato, o reclamante não trabalhava apenas 6 horas, trabalhava 6 horas, 7 minutos e 30 segundos. Se já não bastasse, como visto alhures, deve ser acrescido à jornada normal do reclamante o tempo gasto na troca de uniforme, no início e no final da jornada, e na revista, ao fim da jornada. Portanto, como se observa mesmo quando cumpria o plantão das 04:00 as 10:00 horas o autor laborava mais de seis horas seguidas, sendo que a reclamada deveria conceder-lhe diariamente o intervalo intrajornada de, no mínimo uma hora. Como não o fazia, como bem confessou o preposto, deve ser condenado no pagamento das horas extras correspondentes. A decisão de primeiro grau, mostra-se irretocável, nesse tópico, tendo em vista que o raciocínio para se conceder o intervalo intrajornada é diferente do que pretende a recorrente, ou seja, primeiro verifica-se o cômputo de horas trabalhadas, para após conceder o intervalo para repouso e alimentação, nos termos do que dispõem § 2º do art. 71 da CLT, “in verbis”: § 2º Os intervalos de descanso não serão computados na duração do trabalho”. Se a jornada não exceder 6 horas o intervalo é de 15 minutos (§ 1º do art. 71). Se a duração do trabalho exceder 6 horas, é obrigatória a concessão de intervalo de no mínimo 1 (uma) hora. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 228 Portanto, de acordo com os argumentos acima expostos, nego provimento ao recurso ordinário da reclamada. 2.2.2 DO RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMANTE (FLS. 279/292) 2.2.2.1 DA JUSTIÇA GRATUITA A reclamante renova o pedido de concessão dos benefícios da justiça gratuita (fl. 280). Pois bem. É inegável que, nos termos do art. 7º da Lei nº 1.060/50, a parte contrária poderá, em qualquer fase da lide, requerer a revogação dos benefícios de assistência judiciária gratuita, desde que prove a inexistência ou o desaparecimento dos requisitos essenciais a sua concessão. Contudo, in casu, a sentença concedeu o benefício perseguido, não cabendo nova manifestação sobre a matéria. 2.2.2.2 DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS Insurge-se o recorrente contra a sentença que declarou a incompetência desta Justiça do Trabalho para julgar o pedido de recolhimentos previdenciários devidos ao longo do vínculo empregatício. Sustenta que a competência advém da Lei n. 11.457/2007, que determina ser competente a Justiça do Trabalho para cobrar as contribuições previdenciárias do período contratual decorrente do vínculo empregatício reconhecido nesta seara laboral, bem como das parcelas de natureza salarial advindas das sentença que proferir, nos termos do art. 832, § 3º da CLT, caso dos presentes autos. Sem razão Realmente, assiste razão ao recorrente acerca de suas afirmações quanto ao que dispõe a Lei n. 11.457/2007. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 229 Porém, no caso dos autos não houve reconhecimento de vínculo empregatício, nem tampouco pedido nesse sentido, restando incontroverso o vínculo de empregado, conforme cópia da CTPS à fl. 17. Logo, a competência desta Justiça se restringe as parcelas de natureza salarial deferidas nesses autos. Por essa, razão não modifico a decisão de primeiro grau nesse aspecto. Todavia, neste tópico, sou vencido pela douta maioria que converge com os termos do voto do Exmº. Revisor, ao qual peço vênia para transcrever, “in verbis”: Divergente apenas quanto à competência da Justiça do Trabalho para executar contribuições previdenciárias do pacto laboral. Ainda que seja o caso de contrato já formalizado, com assinatura de CTPS, a Justiça do Trabalho detém competência material para executar as contribuições previdenciárias do pacto laboral, sejam das verbas já pagas ou daquelas reconhecidas na sentença. A reclamada sequer contestou especificamente o pedido do reclamante para que houvesse recolhimento das contribuições previdenciárias nos termos supra. Assim, nesse ponto, dou provimento ao recurso obreiro para reconhecer a competência da Justiça do Trabalho e determinar que a reclamada comprove o recolhimento previdenciário do pacto laboral, inclusive das verbas reconhecidas na sentença, sob pena de execução. 2.2.2.3 DO DANO SOCIAL Insurge-se o recorrente/reclamante contra a decisão que indeferiu o seu pedido de dano social, ao argumento de que somente o Ministério Público do Trabalho tem legitimidade para pleitear a indenização pelo dano social. Alega que tal indenização pode ser proposta pelo trabalhador, individualmente, e que se pode haver a indenização em seu favor, portanto, o mesmo é parte legítima para pleiteá-la. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 230 Por fim, alega que assim como a ação inibitória pode ser proposta por particular, e não apenas pelo Ministério Público, pode o empregado pleitear indenização por dano social. Razão não lhe assiste. A doutrina propõe a idéia do dano social como nova modalidade de dano reparável entre nós, cumulável com o dano material, o dano moral e o dano estético. Segundo o entendimento doutrinário, o dano moral é aquele que repercute socialmente, podendo gerar prejuízos de ordem patrimonial ou imaterial aos membros da coletividade. Há um rebaixamento moral, uma perda de qualidade de vida. O dano social está caracterizado, por exemplo, nas condutas socialmente reprováveis, que fazem mal ao coletivo, movidas pelo intuito egoísta. Partindo dessa premissa, de imediato, surge a seguinte indagação: o dano moral coletivo é sinônimo do dano social? Segundo, o entendimento doutrinário, a resposta é negativa, baseada nos seguintes motivos: O dano social também pode ser material, ou seja, também pode repercutir patrimonialmente no âmbito da sociedade. Isso não ocorre no dano moral coletivo, que repercute extrapatrimonialmente. A título de exemplo, uma conduta socialmente reprovável pode trazer danos patrimoniais a determinadas pessoas, ao mesmo tempo em que diminui o nível de desenvolvimento da sociedade, caso, por exemplo do posto de gasolina que explode por causa de um cigarro ou das balas perdidas. Da resposta, então, emerge uma outra indagação: o dano social, se imaterial, confunde-se com o dano moral coletivo? Segundo a doutrina, em certos pontos pode-se dizer que sim. Mas ressalta que é interessante perceber que, enquanto no dano social a vítima é a sociedade; o dano moral coletivo tem como vítimas titulares de direitos individuais homogêneos, coletivos ou difusos. Se na prática a diferença é de pouco valor, do ponto de vista da categorização jurídica, há diferenças entre as construções. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 231 Com relação ao dano moral coletivo, já me manifestei em outras ocasiões que por importar em dor psíquica somente pode ser sofrido pela pessoa natural, faltando à coletividade, ficção jurídica, atributos próprios da existência tais como honra, intimidade e vida privada passíveis de serem violados e assim acarretar prejuízo desta natureza. Todavia, o que se discute nessa oportunidade é a legitimidade para pleitear o dano social, gênero do dano moral coletivo ou difuso. Sobre a matéria, a Constituição Federal, em seu artigo 129, inciso III, dispõe que são funções institucionais do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. A lei da ação civil (Lei nº 7.347/85), com as modificações impostas pela Lei nº 8.884/94, estabeleceu expressamente a possibilidade de reparação por danos morais a direitos difusos, ao preceituar “in verbis”: Art. 1º – Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I – ao meio ambiente; II – ao consumidor; III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; (grifei) V – por infração da ordem econômica. Diante do exposto, considerando que o dano social é aquele que repercute socialmente, podendo gerar prejuízos de ordem patrimonial ou imaterial aos membros da coletividade, somente esta, por meio do Ministério Público, pode pleitear a indenização por dano social que o autor ora propõe. Desse modo, mantenho a sentença nesse tópico. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 232 2.2.2.4 DO VALE-CESTA Insurge-se o recorrente contra o indeferimento do pedido para pagamento dos vale-cestas. Sustenta que ao contrário do fundamento do juízo de primeiro grau, os documentos de fls. 180, 183 e 187 comprovam que o recorrente não recebeu sua cesta básica, pois na primeira, estava afastado pelo INSS, na segunda ocasião estava de férias e na terceira de atestado médico. Além disso, a reclamada não comprovou que entregou as cestas básicas no período de 09/2006 a 06/2007. Assim, considerando que a reclamada não se desincumbiu do ônus de provar que entregou as cestas básicas nos citados períodos, requer a reforma da decisão, a fim de indenizá-lo nas cestas básicas que não foram repassadas. Não assiste razão ao reclamante nesse aspecto. O acordo coletivo de trabalho, com vigência no período de 01/06/2005 a 31/05/2006, fls. 74/81, em sua cláusula 6ª prevê que a empresa fornecerá aos trabalhadores uma cesta básica mensal com os itens ali nominados. Em seu parágrafo único fez constar ressalva de que a fornecimento da cesta básica fica restrita aos funcionários como uma cesta prêmio, de acordo com os critérios da empresa. Ora, se o reclamante, estava afastada pelo INSS e de férias, nos meses de junho/2005 (fl. 180), agosto/2005 (fl. 183) e janeiro/2006 (fl. 187), porque teria o direito de receber cesta básica, a título de prêmio? O acordo coletivo com vigência do período de 31/05/2006 à 31/05/2007 (fls. 82/88), em seu parágrafo 1º da cláusula sexta, fl. 83, dispõe “A referida cesta não será concedida ao funcionário no mês em que o mesmo estiver afastado pela previdência ou que possuir faltas ou atestado médico.” Os documento de fls. 122/147, comprovam que o reclamante esteve afastado do trabalho no período de 22/08/2006 a 21/10/2008, por motivo de “LICENÇA INSS ACIDENTE”. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 233 Tal afastamento foi confirmado pelo reclamante em seu depoimento pessoal: “que ficou afastado em duas oportunidades; na primeira, de 11/07/2002 até 16/06/2005 e na segunda, de 24/08/2006 até os dias atuais.”, fl. 217 Desse modo, o reclamante também não faz jus as cestas básicas do período de 09/2006 a 06/2007. Portanto, de acordo com os argumentos acima expostos, neste ponto, nego provimento ao recurso ordinário. 2.2.2.5 DAS HORAS EXTRAS E REFLEXOS O recorrente se insurge quanto ao indeferimento das horas extras e reflexos, com base nas seguintes razões: Alega que por ocasião da impugnação dos cálculos, demonstrou a existência de horas extras laboradas e não pagas, a exemplo do ocorrido nos meses de agosto a novembro/2005. Requer, portanto, indenização por tais horas. Com relação as informações ABONO FALTA DE MARCAÇÃO, FALTA DE MARCAÇÃO, COMPENSA DIA, afirma ser impossível o recorrente ter esquecido de registrar o ponto tantas vez, até porque é condição para entrada nas dependências da recorrida que o funcionário registre o ponto. Sustentou ainda que tais informações vem sendo inseridas nos controles de frequências para prejudicar o recorrente em receber as horas extras. Quanto a troca de uniformes, alega que o magistrado também se equivocou, sustentando que “o percurso do recorrente da guarita até o vestiário – 30 metros -, tirar sua roupa e vestir o seu uniforme, colocar seus EPI’s e fazer o mesmo percurso de volta – 30 metros – para registrar o ponto, não pode ser feito em apenas 05 minutos”. Requer seja reformada a decisão, a fim de condenar a reclamada a indenizar o recorrente pelo tempo gasto com troca de R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 234 vestimenta, “instalação” dos EPI’s, percurso de 30 metros e revista, nos moldes pleiteados na inicial e comprovadas na instrução. Razão não assiste ao recorrente. O próprio reclamante afirmou “Que registrava corretamente sua jornada em cartão de ponto; no entanto, em algumas oportunidades, não batia o cartão de ponto, por a máquina estar quebrada”, fl. 217. Em seguida sustentou “Que em média deixava de bater o cartão duas vezes por mês, no entanto, em uma oportunidade, a máquina permaneceu quebrada por uma semana.” Prosseguiu, asseverando “Que trabalhava domingos e feriados sempre que era necessário lavar as caixas d’água, sendo que nesses dias não registrava sua jornada em cartão de ponto; que trabalhava entre um e dois domingos por mês; que durante todo o tempo que trabalhou no setor de tratamento de água laborou cerca de cinco feriados. Que não se recorda de ter registrado, por exemplo, o trabalho ocorrido no domingo, dia 11/12/2005, como resta especificado no documento de ponto de fl. 19.”, fl. 218. Já a 1ª testemunha do reclamante, Sr. Silva Ribeiro de Souza, aduz à fl. 220, “Que nesses dias em que o relógio ficou quebrado, apesar da empresa consignar falta nos cartões de ponto, essas faltas eram abonadas, não sofrendo qualquer desconto no seu salário. Nos trechos dos depoimentos do reclamante e de suas testemunhas, verifica-se contradição em suas afirmações e, ainda, um certo lapso de memória por parte do reclamante, que sequer foi capaz de se lembrar do registro do labor em dia de domingo, fl. 19. Aliás, ressalte-se que o ponto em comum no depoimento do reclamante e suas testemunhas é a afirmação de que sempre registravam seus horários de entrada e saída no cartão de ponto eletrônico, na chegada sempre antes de vestir o uniforme e na saída, antes de entrar no banheiro para troca o uniforme. Com relação ao tempo gasto na troca de uniforme, conforme ressaltado pelo juízo de primeiro grau, os depoimentos das R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 235 testemunhas nos levam a concluir que, especialmente com relação ao reclamante o tempo gasto era de 5 minutos, pois a demora nesse procedimento se dava de acordo com o número de funcionários para troca do uniforme e vistoria. Ocorre que como o reclamante deixava a empresa em média às 10:00hs da manha e os demais funcionários encerravam suas atividades entre 11:30 e 12:00 horas, por isso igualmente como as duas testemunha da reclamada, gastava menos tempo no vestiário e no procedimento de revista. Assim, nos termos da súmula nº 366 do TST, não são descontadas nem computadas como jornada extraordinária as variações de horário do registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observando o limite máximo de 10 minutos diários,o seja, a hipótese em questão. Com relação ao registro “abono falta de marcação” consignado no documento de fl. 103, o preposto informou que o mesmo teria ocorrido porque o reclamante demorou em retornar da licença do INSS. Verifico a verossimilhança em suas declarações na medida em que tal abono teve início em 20/06/2005, fl. 102, até 04/07/2005, fl. 103, sendo que nos cartões de ponto de folhas 90/102, consta que o reclamante esteve afastado pelo INSS. E o próprio reclamante em seu depoimento pessoal confessou tal afastamento, pois afirmou “que ficou afastado em duas oportunidades; na primeira, de 11/07/2002 até 16/06/2005 e na segunda, de 24/08/2006 até os dias atuais.”, fl. 217 (grifei). Portanto, tenho que reconhecer que as horas registradas nos cartões de ponto foram pagas pela reclamada. 2.2.2.6 DO ADICIONAL NOTURNO Insurge-se o recorrente em face do indeferimento do pedido de adicional noturno. Sustenta que no mês de julho/2005 o controle de frequência aponta que o recorrente laborou 11hs10min em horário que lhe conferia o adicional noturno, entretanto, seu holerite referente ao mesmo mês, demonstra que somente lhe foi pago o adicional sobre 03hs63min, o mesmo aconteceu no mês novembro/2005 e maio/2006, conforme tabela anexa. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 236 Com respeito aos demais meses, alega que o adicional noturno foi pago parcialmente. A título de exemplo, cita que no mês agosto/2005, lhe foi pago o valor de R$4,43 por R$12,73 de adicional, quando lhe deveria ter sido pago a importância de R$28,92 por isso foi apenas cobrada a diferença de R$24,49. Requer a reforma da decisão, a fim de condenar a reclamada a pagar a diferença existente na verba referente ao adicional noturno. Improcedem as alegações do recorrente. Cotejando as folhas de frequência com os comprovantes de pagamentos, verifico que os adicionais noturnos foram pagos corretamente, levando-se em conta a hora noturna reduzida, na forma centesimal, que cada mês fechava dia 21 e, ainda, que não houve insurgência com relação a base de cálculo do pagamento. O exemplo de 11 hs e 10 min de adicionais do mês de julho/2005, está totalmente equivocado. No mês julho/2005, o reclamante trabalhou somente 3 dias em horário noturno (dias 11, 12 e 13), conforme cartão de ponto de fl. 103, o que equivale a 3 adicionais (com alguns minutos excedentes, os quais não são considerados em função da súmula 366 do TST) que multiplicados por 1 hora e 10 minutos corresponde a 3,63 em horas centesimais. A reclamada, no contracheque referente ao mês de 07/2005, fl. 158, pagou corretamente o total de 3,63 adicionais noturnos. No mês agosto/2005, o reclamante trabalhou 12 dias em horário noturno (dias 25, 26, 27, 28, 29 e 30/07 e dias 08, 09, 10, 11, 12 e 12/08 ), conforme cartão de ponto de fl. 104, o que equivale a 12 adicionais noturnos que multiplicados por uma 1 hora e 10 minutos corresponde a 12,73 em horas centesimais. No contracheque referente a agosto/2005, fl. 159, o reclamado pagou corretamente a quantia de 12,73 adicionais noturnos. Igualmente fizemos a conferência dos meses de novembro/05, onde foram pagos 19,72 adicionais, bem como do mês de maio/06 onde foram pagos 21,40 adicionais, e constatamos que os números de adicionais foram pagos corretamente. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 237 Talvez o recorrente tenha feito os seus cálculos considerando o mês inteiro do dia 1º a 30, sem considerar que a folha de frequencia do reclamado encerrava todo dia 21. Portanto, improcedem as alegações do recorrente, razão pela qual mantenho a sentença nesse tópico. 2.2.2.7 DO DESCUMPRIMENTO DOS ACT’S 2005/2006 E 2006/2007 Alega que houve descumprimento das cláusulas dos acordos coletivos, que resultou em prejuízo ao recorrente e demais empregados, consoante restou provado nos autos, portanto, a reclamada deve ser condenada a pagar ao reclamante o valor das multas, sendo desnecessária o cumprimento da cláusula 33, pois, tal, condição ensejaria em violação a direito constitucional de livre acesso ao judiciário. Requer a reforma da sentença, a fim de condenar a recorrida a pagar ao recorrente o valor das multas pelos descumprimentos dos acordos de trabalho, vigência 2005/2006 e 2006/2007. Mais uma vez o recorrente está sem razão. Ora, se a cláusula 33ª do ACT, em seu parágrafo único, prévia uma condição para o recebimento na multa pelo descumprimento dos acordos e o reclamante não provou o implemento desta condição, não há porque alegar que o indeferimento do pleito com base nesse fundamento caracteriza violação a direito constitucional de livre acesso ao judiciário. Tal tese teria cabimento caso houvesse provado o implemento da condição. Por essa razão, mantenho a sentença. 2.2.2.8 DO DANO MORAL Insurge-se o recorrente em face do indeferimento do pedido de dano moral. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 238 Alega que o fato de ter sido impedido de desfrutar de seus intervalos intrajornadas, não só é fato reprovável, como enseja em dano moral, pois mesmo sentindo fome e necessitando de descanso, era obrigado a continuar trabalhando, o que o deixava extremamente abalado e humilhado. Por esses motivos, requer a reformar da sentença para condenar a recorrida a indenizar o recorrente pelos danos morais que lhe foram causados durante o pacto laboral. Improcedentes as alegações do recorrente. O dano moral exige prova cabal e convincente da violação à imagem, a honra, a liberdade, ao nome etc., ou seja, ao patrimônio ideal do trabalhador. De acordo com o artigo 186 do Código Civil quatro são os pressupostos da responsabilidade civil, quais sejam: ação ou omissão, culpa ou dolo, relação de causalidade e o dano experimentado pela vítima. Alegar simplesmente que a não concessão do intervalo intrajornada lhe acarreta prejuízo moral, sem qualquer prova do efetivo nexo causal, por si só não comporta reparação por dano moral. O não cumprimento pelo empregador quanto a regra do art. 71 da CLT não pode ser considerado como um fator de culpa por eventuais transtornos pessoais do empregado. Caso assim fosse, todos os casos de não concessão dos intervalos intrajornadas, seriam fatores geradores de indenizações por dano moral. tópico. Diante do exposto, nego provimento ao recurso nesse 2.2.2.9 DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS Socorre-se a recorrente ainda do presente recurso, para ver incluída na sentença a condenação da reclamada em honorários advocatícios. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 239 Sem razão a recorrente. A condenação em honorários advocatícios na Justiça do Trabalho somente é cabível quando a parte estiver assistida pelo sindicato de sua categoria, bem como comprovar ou declarar sua miserabilidade jurídica, conforme preceitua a súmula n. 219 do TST, in verbis: 219 - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. HIPÓTESE DE CABIMENTO (incorporada a Orientação Jurisprudencial nº 27 da SBDI-2) - Res. 137/2005, DJ 22, 23 e 24.08.2005. I - Na Justiça do Trabalho, a condenação ao pagamento de honorários advocatícios, nunca superiores a 15% (quinze por cento), não decorre pura e simplesmente da sucumbência, devendo a parte estar assistida por sindicato da categoria profissional e comprovar a percepção de salário inferior ao dobro do salário mínimo ou encontrar-se em situação econômica que não lhe permita demandar sem prejuízo do próprio sustento ou da respectiva família. (ex-Súmula nº 219 - Res. 14/1985, DJ 26.09.1985). Destaque-se que após a promulgação da CF/88, que prevê em seu art. 133 a indispensabilidade do advogado à administração da Justiça, o entendimento constante na súmula acima transcrita foi ratificado pela de número 329 do TST, senão vejamos: 329 - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ART. 133 DA CF/1988 (mantida) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003. Mesmo após a promulgação da CF/1988, permanece válido o entendimento consubstanciado no enunciado nº 219 do Tribunal Superior do Trabalho. Ademais, convém esclarecer que, com a ampliação da competência desta Justiça Especializada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, o TST expediu a Instrução Normativa nº 27, estabelecendo que nas demandas oriundas de pacto laboral os honorários sucumbenciais são indevidos, senão veja-se: INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 27 de 2005 do TST. Dispõe sobre normas procedimentais aplicáveis ao processo do trabalho em decorrência da ampliação da competência da Justiça do Trabalho pela Emenda Constitucional nº 45/2004. (...) Art. 5º - Exceto nas lides decorrentes da relação de emprego, os honorários advocatícios são devidos pela mera sucumbência. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 240 Portanto, considerando que o recorrente não está assistido por sindicato, nego provimento ao recurso nesse aspecto. 2.3 CONCLUSÃO Dessa forma, conheço de ambos os recursos. No mérito, negolhes provimento, porém, sou vencido quanto ao recurso obreiro, eis que a douta maioria concede-lhe parcial provimento para reconhecer a competência da Justiça do Trabalho e determinar que a reclamada comprove o recolhimento previdenciário do pacto laboral, inclusive das verbas reconhecidas na sentença, sob pena de execução, nos termos da fundamentação supra. 3 DECISÃO ACORDAM os Magistrados integrantes da 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, à unanimidade, conhecer dos recursos ordinários interpostos. No mérito, à unanimidade, negar provimento ao recurso patronal e, por maioria, dar parcial provimento ao apelo obreiro, nos termos do voto do Relator, que restou vencido somente quanto a competência da Justiça do Trabalho para julgar o pedido de recolhimentos previdenciários devidos ao longo do vínculo empregatício. Sessão de julgamento realizada no dia 26 de junho de 2009. Porto Velho-RO, 26/06/2009. VULMAR DE ARAÚJO COÊLHO JUNIOR DESEMBARGADOR RELATOR R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.221-238, jul./dez. 2009 241 PROCESSO: CLASSE: ÓRGÃO JULGADOR: ORIGEM: EMBARGANTE: ADVOGADOS: EMBARGADO: ADVOGADOS: RELATORA: REVISORA: 01059.2008.002.14.00-7 EMBARGOS DECLARATÓRIOS EM RECURSO ORDINÁRIO 2ª TURMA TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 14ª REGIÃO TRANSPORTE COLETIVO RIO MADEIRA LTDA. (RECLAMADA) ÉDISON FERNANDO PIACENTINI E OUTRA FERNANDO RODRIGUES DA SILVA (RECLAMANTE) MARIA CLARA DO CARMO GÓES DESEMBARGADORA SOCORRO MIRANDA JUÍZA CONVOCADA ARLENE REGINA DO COUTO RAMOS EMBARGOS DECLARATÓRIOS. OMISSÃO ALEGADA E PROVADA. EFEITO LEGAL ADVINDO. Diante da presença de pelo menos um requisito elencado pelo art. 535 do Código de Processo Civil, mas sendo ele incapaz de imprimir o implícito efeito modificativo para a decisão embargada, à parte embargante devem ser prestados os esclarecimentos judiciais necessários à efetiva entrega da prestação jurisdicional. 1 RELATÓRIO Após a publicação do acórdão juntado às fls. 680-690, a recorrente Transporte Coletivo Rio Madeira Ltda. opôs os embargos declaratórios acostados às fls. 693-698, afirmando que tal decisão é omissa porque, tendo majorado o valor condenatório original, deixou de fixar-lhe o exato “[...] valor da condenação, de modo a possibilitar o correto recolhimento das custas processuais” (fl. 695). De igual modo, também buscou, com a finalidade de prequestionamento, expressa manifestação deste Órgão Julgador, com vistas a obter resposta para as indagações relacionadas com a localização da região dolorosa (no ombro esquerdo ou na articulação acrômio-clavicular); se houve uma mistura da normalidade da coluna com a limitação análgica do ombro esquerdo; se o acórdão considerou a alegada incongruência do laudo pericial, relacionada com as manobras de Valsava e Lasegue; se o acórdão considerou R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 242 presente algum sinal de compressão radicular e, finalmente, “[...] se a doença que o reclamante alega ter, não é tipicamente degenerativa” (fl. 698). Num singelo exame perfunctório, sem vislumbrar a possibilidade de imprimir efeito modificativo aos mencionados embargos declaratórios, mas apenas aqueles relacionados com a prestação de esclarecimentos, esta Relatoria dispensou a faculdade de intimar a parte adversária para se posicionar acerca dessa medida recursal, em especial homenagem ao princípio da celeridade processual. 2 FUNDAMENTOS 2.1 CONHECIMENTO Diante do preenchimento dos requisitos legais de admissibilidade, inclusive aquele relacionado com a tempestividade (decisão publicada no dia 7 e apelo protocolado no dia 13 de outubro de 2009, subsequente ao feriado nacional), conheço dos embargos declaratórios. 2.2 MÉRITO 2.2.1 DA OMISSÃO ALUSIVA ÀS CUSTAS PROCESSUAIS Afirma a empresa embargante que o acórdão embargado é omisso porque, tendo majorado o valor condenatório original, deixou de fixar-lhe o exato “[...] valor da condenação, de modo a possibilitar o correto recolhimento das custas processuais” (fl. 695). Para dirimir a controvérsia, convém destacar que a embargante parte da premissa de que sabe o valor das custas processuais iniciais, inclusive porque já as recolheu na primeira instância (fl. 617). O que ela busca, mediante os embargos ora analisados, é a fixação do exato valor da condenação imposta por esta segunda instância, com a finalidade de possibilitar o correto recolhimento da diferença de tais custas processuais, fato que, por si mesmo, é de deslinde singelo, tendo em vista que o acórdão embargado expressamente fixou uma majoração mensal R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 243 de R$220,10 (duzentos e vinte reais e dez centavos), a partir de cinco de abril de 2006, conforme se vê na fl. 689-verso dos presentes autos. Na verdade, um simples cálculo aritmético é suficiente para fixar o montante da condenação, de abril de 2006 até o mês de outubro de 2009, em R$9.244,20 (nove mil, duzentos e quarenta e quatro reais e vinte centavos), o qual, nos limites do art. 260 do Código de Processo Civil, deverá ser somado ao total equivalente a doze novas prestações vincendas, para totalizar R$11.885,40 (onze mil, oitocentos e oitenta e cinco reais e quarenta centavos). Logo, segundo a previsão constante no art. 789, §§ 1º e 2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, são fixadas em R$237,70 (duzentos e trinta e sete reais e setenta centavos) o valor das custas processuais remanescentes, majoradas nesta instância secundária. 2.2.2 DO PREQUESTIONAMENTO Acerca da alegada necessidade de prequestionar várias situações fáticas, típicas da relação processual ora analisada, melhor sorte não socorre à empresa embargante, conforme será demonstrado, a seguir. Inicialmente, indaga a insurgente se a região dolorosa do obreiro está localizada no ombro esquerdo ou na articulação acrômio-clavicular, e, mais adiante, pergunta se houve uma mistura da normalidade da coluna com a limitação análgica desse referido ombro esquerdo. Continuando nessa senda de “impugnar” o laudo pericial, a embargante busca imprimir questões típicas de aleivosias judiciais, tais como: se o acórdão considerou a alegada incongruência do laudo pericial, relacionada com as manobras de Valsava e Lasegue; se o acórdão considerou presente algum sinal de compressão radicular e, finalmente, “[...] se a doença que o reclamante alega ter, não é tipicamente degenerativa” (fl. 698). No tocante a essa tentativa de inserir no prequestionamento essas matérias que são típicas de impugnação canhestra, intempestiva e trôpega, ao laudo pericial apresentado, é conveniente que a embargante analise com maior acuidade o conteúdo da decisão embargada, mais precisamente essas fundamentações extraídas do voto da Excelentíssima Juíza-Revisora: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 244 Delimitadas as insurgências autorais, a princípio, conforme já consignado anteriormente, nota-se que o Juízo de origem indeferiu a parcela em 0comento, eis que não verificou a incapacitação definitiva para o trabalho, considerando que, não obstante tenha o obreiro se afastado do trabalho, em março/2006, em razão de percepção de auxílio-doença acidentário, retornou ao trabalho em janeiro/2009, com alta previdenciária, ‘aparentemente sem restrição funcional’. Contudo, veja-se que aquele mesmo Juízo condenou as reclamadas nos seguintes termos: Como obrigação de fazer, condeno as reclamadas a arcarem com as despesas de tratamento médico (inclusive cirúrgico) e fisioterápico e de medicamentos necessários à recuperação do reclamante ou amenização dos efeitos das doenças funcionais registradas em decorrência do labor, sob pena de multa de R$10.0000,00, revertida para o trabalhador. (ipsis litteris; sublinha-se; fl. 600). Perceba-se, assim, que aquele Juízo, ao deferir despesas a título de despesas com tratamento médico, fisioterápico e com remédios, registrou expressamente que o deferimento nesse sentido se deu em razão da necessidade de recuperação do reclamante ou amenização dos efeitos das doenças funcionais registradas em decorrência do labor, como dantes transcrito. Ora, se assim entendeu, é porque bem sabe que o autor voltou a laborar, mas, seguramente, não com a sua capacidade laboral íntegra. Nesse aspecto, não obstante o laudo pericial não seja concludente acerca da mensuração da perda da capacidade laboral do autor, haja vista que aponta que ‘Deve ser reavaliada sua capacidade laboral atual (fl. 391)’, consignou o seguinte em suas conclusões: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 245 - Capacidade Laboral – Alta Previdenciária pelo INSS em janeiro – recente, deve ser avaliada pela Reclamada a capacidade laboral do Reclamante, restrições existem e deve ser reabilitado a outra função. Existe perda da capacidade laboral devido a doença crônica degenerativa: não trabalhar por longas horas, não dirigir veículos, ao menos profissionalmente (ipsis litteris, sublinha-se; fl. 390). Visto isso, consoante já se deixou evidenciado em tópico anterior, não pairam dúvidas de que, no mínimo, o quadro mórbido autoral foi agravado por culpa das reclamadas, o que caracteriza o dever de indenizar. Nesse caminhar, ante a conclusão anteriormente transcrita, acerca da redução da capacidade laborativa autoral, dúvidas inexistem quanto a sua existência, embora a perícia não tenha fornecido elementos para a mensuração. No particular, o Professor Sebastião Geraldo de Oliveira, in Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença ocupacional, 2ª edição, LTr, 2ª edição, p. 277, traz lição que revela bastante pertinência quanto ao que se vem abordando no item ora tratado, consoante segue: Cabe ao perito oficial ‘avaliar em cada caso a repercussão do prejuízo funcional na execução das operações e atividades implicadas na função’, bem como avaliar qualitativa e quantitativamente o dano causado no patrimônio físico e psíquico – um dos elementos que servem de base para o arbitramento da indenização’. Ainda que o acidentado permaneça no emprego, exercendo a mesma função, é cabível o deferimento da indenização porquanto ‘mesmo se o trabalho desempenhado não R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 246 sofrer, na prática, diminuição na qualidade e intensidade, o dano precisa ser ressarcido, eis que a limitação para as atividades humanas é inconteste’. Talvez continue no mesmo trabalho, mas é viável que resulte a impossibilidade para a admissão em outro que propicie igual padrão de rendimentos. Visto isso, o que se extrai é que, ainda que o obreiro volte a trabalhar, até mesmo em igual função, a moléstia já instalada ou agravada por culpa das reclamadas, autoriza a concessão de pensão, eis que a limitação na sua capacidade laborativa decorrente das enfermidades sofridas é palpável, real, induvidosa. Tenha-se em vista que a verba em epígrafe encontra fundamento no art. 950 do Código Civil, que conta com a seguinte redação: Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu. […] Necessário se faz salientar que o que se busca com a pensão é substituir o rendimento que o obreiro, vitimado por conta de acidente do trabalho, percebia mensalmente por um valor equivalente, proporcional ao percentual de invalidez permanente parcial. Não obstante isso, tenha-se em conta que a pensão constituise em uma das modalidades indenizatórias que encontra seu fundamento na perda ou diminuição da capacidade laborativa em razão de acidente de trabalho, repita-se, por R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 247 força do art. 950 do Código Civil, ao passo que salário perfaz-se em contrapartida em razão de trabalho prestado pelo obreiro. Ou seja, pensão e salário encontram seus respectivos fundamentos em bases totalmente diversas, pelo que não se confundem entre si. Assim, nada impede que o autor perceba pensão e, ainda, salário; aquela em razão do dano já instalado e esse em razão do labor despendido em decorrência do seu retorno ao trabalho. Na seara da responsabilidade civil, a incapacidade deve ser analisada tendo por referência a profissão da vítima. Infelizmente, conforme apontado em linhas pretéritas, nos autos em exame, embora o citado laudo de fls. 373/391 tenha deixado explícita a existência de perda parcial da capacidade laborativa (fl. 390), não promoveu a sua mensuração. Contudo, essa matéria tem regulamentação pormenorizada no campo dos benefícios previdenciários, que bastante auxiliam no arbitramento da pensão. Em conformidade com o art. 104 do Decreto n. 3048/99, quando o infortúnio causa seqüelas que impliquem redução da capacidade para o trabalho habitual da vítima, o auxílio-acidente deve corresponder a 50% (cinqüenta por cento) do salário-debenefício. No que se refere ao auxílio-doença, certo é que o mesmo deve ser calculado de acordo com o art. 39, I, do citado Decreto, que prevê a sua fixação em 91% (noventa e um por cento) do salário-benefício. Seguramente, as tabelas constantes do citado Decreto n. 3048/99 traz relevantes subsídios para o enquadramento da incapacidade parcial, porém, o exame da questão sob a ótica da responsabilidade civil leva em conta outros fatores, eis R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 248 que o seu objetivo é a reparação total do prejuízo, em respeito ao princípio do restitutio in integrum. Sendo assim, a decisão judicial deverá considerar a realidade que envolve o caso, as circunstâncias e singularidades em torno da pessoa do vitimado. Na situação em apreço, é preciso que se veja que o acidentado, como já se disse, portador de deficiência parcial da sua capacidade laborativa, em busca de emprego ou de atividade rentável na sua área de atuação profissional, em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo, ressaltandose que até aqueles que se encontram com sua saúde íntegra encontram obstáculos para obter uma colocação no mencionado mercado de trabalho. A avaliação, portanto, da incapacidade deve ser feita tendo em vista as especificidades do caso, tais como: idade da vítima, situação do mercado de trabalho, rendimento útil no trabalho, nível de instrução, segurança e risco na prestação do serviço, etc. (fls. 684-verso a 686). Mais adiante, na parte do voto da Excelentíssima Desembargadora Elana Cardoso, consta o seguinte: Assim, considerando que o reclamante recebeu alta do instituto previdenciário em 17-2-2009, tendo retornado ao serviço com redução de sua capacidade laboral, fixase em 20% (vinte por cento) o percentual que deverá incidir sobre o referido valor de R$1.100,53 (um mil, cem reais e cinquenta e três centavos), para efeito de cálculo da pensão vitalícia. Diante disso, defiro ao reclamante o valor mensal de R$220,10, a título de pensionamento, a partir de 5-4-2006, data em que houve a concessão de benefício, fls. 311, onde se registrou a constatação R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 249 de incapacidade laborativa autoral, até o momento em que o reclamante recuperar a plena capacidade para o trabalho, sendo que se até o trânsito em julgado desta sentença, não restar comprovado o pleno restabelecimento do obreiro, as reclamadas pagarão o valor vencido de uma só vez, consoante dispõe o art. 950 do Código Civil, e continuarão a pagar os valores do pensionamento subsequentes. Deverão ser pagas 13 parcelas anuais, em face da inclusão do 13º salário, este a ser pago no mês de dezembro de cada ano. Registro que, na hipótese de mudança no estado de fato, com a recuperação total e inesperada da vítima ou com o agravamento do seu quadro, tais situações podem ensejar o ajuizamento da ação revisional por qualquer das partes (fl. 686verso). Portanto, não resta qualquer dúvida de que a matéria relacionada com o “dano material, a sua reparação, pensionamento e forma de pagamento” foi conveniente e totalmente analisada por este Órgão Julgador, que entendeu ter ocorrido acidente de trabalho, com a perda parcial da capacidade funcional do obreiro, fundamento pelo qual a tentativa de “prequestionar” o laudo pericial, usando essa forma esdrúxula, não encontra guarida na legislação, na doutrina e muito menos na jurisprudência. Ressalte-se, inclusive, que esta é bastante contundente ao tratar do tema ora enfocado, segundo se vê nos arestos a seguir transcritos: Embargos de declaração. Contradição. Se o acórdão já examinou os temas honorários periciais e hora noturna reduzida não houve omissão. O acórdão explica o tema e não afirma algo e ao mesmo tempo o nega. Não há, portanto, contradição. Em embargos de declaração o juiz não tem obrigação de ficar respondendo quesitos ou questionário da parte. Quesitos, inclusive, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 250 devem ser feitos ao perito. O juiz não tem obrigação de ficar explicando questões já analisadas no acórdão, em função de quesitos apresentados pela parte, muito menos de exemplificar o que é salário complessivo, mas decidir a matéria, o que já foi feito. Acórdão não representa aula para responder perguntas e exemplificar as respostas. A matéria já foi analisada no acórdão, além do que não foi objeto de prequestionamento no recurso. Tratase de posquestionamento, pois não foi apresentada no apelo do reclamante (TRT 2ª Região n. 02990125080/1999. Relator: Sérgio Pinto Martins. Data do julgamento: 14-3-2000, 3ª Turma. Data da publicação no DOESP: 28-3-2000). […] AJUDA-ALIMENTAÇÃO. ENUNCIADO Nº 113 DO TST. TEMAS NÃO PREQUESTIONADOS OPORTUNAMENTE. Para configurar-se o prequestionamento é necessário que o tema objeto do recurso de revista tenha sido formulado oportunamente, no caso, por ocasião do recurso ordinário, e não examinado na decisão recorrida, resultando na exigência de interposição de embargos declaratórios, a que se refere o Enunciado nº 297 da Súmula de Jurisprudência Uniforme do Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de revista não conhecido. […] (TST-RR n. 424514/1998. Relator: Juiz Convocado Décio Sebastião Daidone. Data do julgamento: 6-8-2003, 2ª Turma. Data do julgamento no DJU: 22-8-2003). Prequestionamento. Não existe omissão. O prequestionamento é exigido quando há omissão no acórdão capaz de inviabilizar a remessa do debate à instância extraordinária (TRT 2ª Região n. 02444.2005.039.02.00-0. Relatora: Silvia Regina Pondé Galvão Devonald. Data do julgamento: 18-8-2009, 3ª Turma. Data da publicação no DOES: 1º-9-2009). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 251 Embargos de declaração. Manifestação de inconformismo. Equívoco já renitente e crônico nesta justiça especializada, em que a parte se vale dos embargos de declaração para, a pretexto de preqüestionamento, ou de omissões, questionar o julgado, para manifestar irresignação, inconformismo, para acusar, na verdade, error in judicando, e não, tecnicamente, omissão, obscuridade ou contradição (TRT 2ª Região n. 01272.2006.022.02.00-7. Redator Designado Des. Eduardo de Azevedo Silva. Data do julgamento: 14-7-2009. 11ª Turma. Data da publicação no DOESP: 287-2009). Diante do conteúdo da jurisprudência transcrita acima, convém à parte interessada dirigir o seu inconformismo para a instância recursal superior, sob pena de, doravante, as suas ações encontrarem tipificação no conteúdo do art. 17, incisos I, III, IV e V, do Código de Processo Civil, com a cominação ali prevista. 2.3 CONCLUSÃO DESSA FORMA, conheço dos embargos declaratórios. No mérito, dou-lhes parcial provimento, a fim de fixar o valor das custas processuais remanescentes em R$237,70 (duzentos e trinta e sete reais e setenta centavos), e manter íntegros os demais termos do acórdão embargado, por seus próprios fundamentos. 3 DECISÃO Acordam os Magistrados integrantes da 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, à unanimidade, conhecer dos embargos declaratórios. No mérito, dar-lhes parcial provimento, nos termos do voto da Desembargadora-Relatora. Sessão de julgamento realizada no dia 5 de novembro de 2009. Porto Velho (RO), 5 de novembro de 2009. socorro miranda desembargadorA-RELATORA R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.239-249, jul./dez. 2009 252 253 PROCESSO: classe: órgão julgador: origem: RECORRENTE(S): Advogado(s): RECORRIDO(S): Advogado(s): RELATORA: REVISOR: 00658.2008.141.14.00-4 Recurso Ordinário 1ª TURMA VARA DO TRABALHO DE VILHENA - RO JBS S/A Sandro Ricardo Salonski Martins E Outro ESPÓLIO DE JOSÉ APARECIDO SANTOS DOS ANJOS, REPRESENTADO POR JUDITE MARIA DOS ANJOS Jacyr Rosa Junior E Outro DESEMBARGADORA ELANA CARDOSO lopes JUIZ CONVOCADO SHIKOU SADAHIRO DANOS MORAIS. A responsabilidade objetiva é a que o caso concreto se amolda, dispensando o autor do ônus de comprovar a culpa da empresa, pois aqui o dever de reparar o dano surge da constatação de que a empresa desenvolve atividade econômica que oferece alto risco ao trabalhador (atividade mercantil de abate de reses e industrialização de carnes e segundo a NR-4, essa empresa classifica-se com o grau de risco 3, numa escala crescente de risco de 1 a 4), e, no que concerne à atividade do autor (serviços gerais – limpeza de trilhos por onde as carcaças bovinas são movimentadas) o risco é plenamente verificado na forma da prestação dos serviços. Apesar disso, é certo que no caso concreto sequer haveria a necessidade de se aplicar a responsabilidade objetiva, pois a culpa da reclamada restou comprovada à exaustão. Recurso improvido. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 254 1 RELATÓRIO Irresignada, a reclamada recorre da decisão de fls. 575/602, mediante a qual foram rejeitadas as preliminares de incompetência da Justiça do Trabalho em razão da matéria e ilegitimidade ativa suscitadas pela reclamada; extinguiu sem resolução de mérito o pedido no tocante à liberação de “seguro de vida em grupo” (pleito encartado no item ‘6’ do rol de fls. 27/28); e, no mérito, julgou procedentes em parte os pedidos formulados pelo Espólio de José Aparecidos dos Anjos, representado por Judite Maria dos Anjos, condenando a reclamada a pagar as seguintes verbas: (a) Indenização por danos morais no valor de R$ 89.600,00 (oitenta e nove mil e seiscentos reais); (b) Indenização por danos materiais, consistente em pensão mensal vitalícia em favor da senhora Judite Maria dos Anjos, no importe de R$ 300,00 (trezentos reais) mensais, incluindo a parcela correspondente ao 13º salário; (c) Multa por litigância de má-fé, no importe de R$5.454,29 (cinco mil, quatrocentos e cinquenta e quatro reais e vinte e nove centavos), equivalente a 1% (um por cento) do valor da causa (artigo 18 do CPC). Deferiu-se a liberação do FGTS depositado na conta vinculada do “de cujus” em favor da representante do Espólio reclamante, a avó Judite Maria dos Anjos, com arrimo no artigo 20, IV, da Lei nº 8.036/90. Definiuse, ainda, que a pensão poderá ser paga mediante inclusão da reclamante em folha de pagamento da reclamada, considerada a sua notória capacidade econômica, ou, a requerimento do devedor, por fiança bancária ou garantia real, em valor a ser arbitrado em execução; ou constituindo-se capital. Em suas razões a reclamada sustenta que esta Especializada não é competente para o julgamento da causa em razão do que dispõe a Súmula 366 do STJ, eis que não existiria relação de trabalho entre os sujeitos processuais, pois quem mantinha relação de trabalho com a empresa era o Senhor José Aparecido dos Anjos, falecido, sendo a competência da Justiça Estadual da Comarca de Vilhena/RO. Sustenta, ainda, preliminarmente, a ilegitimidade ativa “ad causam”, pois a avó do falecido não seria a titular do direito pretendido, sendo que a genitora do “de cujus” era quem teria tal legitimidade. Assevera que a reclamatória deveria ter sido arquivada, pois a reclamante não compareceu à audiência na qual deveria ter prestado depoimento. No mérito, alega a existência de culpa exclusiva da vítima pois na ocasião do acidente a vítima estava sem o cinto de segurança, sendo que era reincidente em não utilizar o equipamento de segurança. Pugna, também, caso R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 255 não reconhecida a culpa exclusiva da vítima, seja considerada a culpa concorrente. Em relação ao pensionamento da avó do “de cujus” sustenta que tanto a requerente (avó do falecido) quanto o seu esposo são beneficiados por aposentadoria cada um com um salário mínimo; que moram em casa própria, que ela conta com 74 anos e seu esposo com 83 anos; que não existiria prova de que o neto (falecido) contribuísse com o sustento dos avós. Também sustenta que não merece prosperar a argumentação do juízo de que é mais de 12 (doze) anos a expectativa do brasileiro em relação à idade da recorrida, citando o site do IBGE donde constaria que a expectativa de vida do brasileiro é de 71,3 anos, pelo que requer a improcedência do pensionamento. Por fim, requer a exclusão da sua condenação em litigância de má-fé. Contrarrazões da parte autora, pugnando pela manutenção da sentença. 2 FUNDAMENTOS 2.1 CONHECIMENTO recurso. Preenchidos os pressupostos legais, conhece-de do 2.2 DAS PRELIMINARES 2.2.1 DA ALEGADA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO PARA O JULGAMENTO DA CAUSA A reclamada alegou que em razão da Súmula 366 do STJ dispor que “Compete à Justiça estadual processar e julgar ação indenizatória proposta por viúva e filhos de empregado falecido em acidente de trabalho” esta Justiça Especializada não seria a competente para o julgamento do feito. Sem razão a recorrente. O Supremo Tribunal Federal julgou no último dia 03 de junho, ou seja, posteriormente à edição da Súmula em comento, o Conflito de competência nº 7.545, cuja decisão foi publicada R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 256 no DJE do dia 14/08/2009, tendo decidido, por unanimidade, nos termos do voto do relator ministro Eros Grau, que a competência para julgar os pedidos de indenização decorrentes de acidente do trabalho fatal formulados por dependentes da vítima (cônjuges, filhos ou outros dependentes) é da Justiça do Trabalho, “verbis”: EMENTA: CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CONSTITUCIONAL. JUÍZO ESTADUAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA E TRIBUNAL SUPERIOR. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA SOLUÇÃO DO CONFLITO. ART. 102, I, “O”, DA CB/88. JUSTIÇA COMUM E JUSTIÇA DO TRABALHO. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DA AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DE ACIDENTE DO TRABALHO PROPOSTA PELOS SUCESSORES DO EMPREGADO FALECIDO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA LABORAL. (grifos nossos) 1. Compete ao Supremo Tribunal Federal dirimir o conflito de competência entre Juízo Estadual de primeira instância e Tribunal Superior, nos termos do disposto no art. 102, I, “o”, da Constituição do Brasil. Precedente [CC n. 7.027, Relator o Ministro CELSO DE MELLO, DJ de 1.9.95] 2. A competência para julgar ações de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho, após a edição da EC 45/04, é da Justiça do Trabalho. Precedentes [CC n. 7.204, Relator o Ministro CARLOS BRITTO, DJ de 9.12.05 e AgR-RE n. 509.352, Relator o Ministro MENEZES DIREITO, DJe de 1º.8.08]. 3. O ajuizamento da ação de indenização pelos sucessores não altera a competência da Justiça especializada. A transferência do direito patrimonial em decorrência do óbito do empregado é irrelevante. Precedentes. [ED-RE n. 509.353, Relator o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 17.8.07; ED-RE n. 482.797, Relator o Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, DJe de 27.6.08 e ED-RE n. 541.755, Relator o Ministro CÉZAR PELUSO, DJ de 7.3.08]. (grifos nossos) Conflito negativo de competência conhecido para declarar a competência da Justiça do Trabalho. Assim, considerando que já há o pronunciamento da Suprema Corte, intérprete máximo da Constituição Federal, após a edição da súmula mencionada pela recorrente, em que o entendimento é de que se mantém com a Justiça do Trabalho a competência para o julgamento da matéria, decide- R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 257 se confirmar a sentença que rejeitou a preliminar. A propósito, apenas para registro, informa-se que a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA, já protocolou no último dia 25 de maio no Superior Tribunal de Justiça (STJ) requerimento para revogação da aludida Súmula. Por todo o exposto, rejeita-se a preliminar, mantendose a decisão, no aspecto. 2.2.2 DA PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA “AD CAUSAM” O recorrente sustenta que a avó do “de cujus” não seria parte legítima para pleitear a indenização em decorrência do acidente de trabalho ocorrido, pois a legitimada seria a mãe do trabalhador vitimado, pois a avó teria dito em depoimento que “não vê a mãe do ‘de cujus’ desde que ela desapareceu, quando José Aparecido tinha uns quatro anos,”, portanto, não haveria prova de que a mãe não estaria viva. O dano extrapatrimonial pode ser sofrido não apenas pela pessoa que sofre diretamente as conseqüências do ato ilícito, mas também pelo terceiro que é indiretamente atingido na sua seara mais íntima, em específico, quando ocorre a morte da vítima. Trata-se, pois, daquilo que a doutrina convencionou chamar de dano reflexo ou em ricochete. A avó do “de cujus” sustenta que foi ela quem o criou desde que foi abandonado pela mãe, possuindo ligação muito próxima a ele, pelo que, em tese, é passível de sofrer o mencionado dano reflexo ou em ricochete, pelo que não há nenhuma plausibilidade na pretensão da recorrente em querer extinguir o presente feito, por ausência de legitimidade “ad causam” ativa da avó do trabalhador morto em razão acidente de trabalho. O fato da mãe do reclamante possuir legitimidade não exclui a legitimidade da avó, pelo que rejeita-se a preliminar em exame, mantendo-se a sentença que assim decidiu, também no aspecto. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 258 2.2.3 DO NÃO COMPARECIMENTO DA PARTE AUTORA NA AUDIÊNCIA EM QUE DEVERIA PRESTAR DEPOIMENTO Alega a reclamada que a parte autora não compareceu à audiência em que deveria ter prestado o seu depoimento pessoal, pelo que o processo deveria ter sido arquivado na forma do artigo 844 da CLT. Sem razão. Quanto a tal matéria, tem-se que o juízo de origem afastou tal alegação. E não poderia ser diferente, uma vez que o reclamante que à época figurava no pólo ativo dos autos compareceu à audiência inaugural (fl. 75) em que foi contestada a ação, não havendo falar em arquivamento da reclamatória. Transcreve-se trecho da fundamentação do juízo de origem (fls. 235/8) em que analisou a questão: […] É bem verdade que a presença do Autor para prestar o depoimento pessoal, é imprescindível. Todavia, considerando a fase em que se encontra os autos, onde não foi tomado o depoimento de nenhuma das partes, e tendo em vista, ainda, que na audiência esteve presente o Sr. Argemiro José dos Santos, que assinou a ata de audiência (fl. 75), não há como acolher o pedido da Reclamada para arquivamento da ação, porque até aquele momento, quem figurava do pólo era o Sr. Argemiro e ainda o é, considerando que o Juízo não se pronunciou pelo requerimento de retificação do pólo ativo. Assim, indefiro o requerimento para arquivamento do feito, na forma do art. 844, da CLT, e determino: a)- A retificação do pólo ativo para constar: Espólio de José Aparecido dos Anjos, representado por Judite Maria dos Anjos, em deferimento ao pedido oralmente efetivado pela parte Autora à fl. 75; […] A matéria já se encontra pacificada por meio da Súmula nº 09 do TST, “verbis”: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 259 AUSÊNCIA DO RECLAMANTE. A ausência do reclamante, quando adiada a instrução após contestada a ação em audiência, não importa arquivamento do processo. Por todo o exposto, rejeita-se tal preliminar, mantendo-se a decisão, também no aspecto. 2.2 MÉRITO 2.2.1 DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA A chamada teoria do risco, adotada pelo parágrafo único do artigo 927 do CCB, nos casos de exercício de atividade periculosa, consagra o princípio da responsabilidade objetiva, “verbis”: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. A inovação trazida pelo CCB mereceu aplauso e, nas palavras do Professor Silvio Rodrigues in Direito Civil. - São Paulo: Saraiva 2002, p. 162: ”representa um passo à frente na legislação sobre responsabilidade civil, pois abre uma porta para ampliar os casos de responsabilidade civil, confiando ao prudente arbítrio do Poder Judiciário o exame do caso concreto, para decidi-lo não só de acordo com o direito estrito, mas também, indiretamente, por eqüidade.” “In casu” a responsabilidade objetiva é a que o caso concreto se amolda, dispensando o autor do ônus de comprovar a culpa da empresa, pois aqui o dever de reparar o dano surge da constatação de que a empresa desenvolve atividade econômica que oferece alto risco ao trabalhador (atividade mercantil de abate de reses e industrialização de carnes e segundo a NR-4, essa empresa classifica-se com o grau de risco 3, numa escala crescente de risco de 1 a 4 – fl. 430), e, no que concerne à atividade do autor (serviços gerais – limpeza de trilhos por onde as carcaças bovinas são movimentadas) o risco é plenamente verificado na forma da prestação dos serviços: […] através de cadeira suspensa presa aos trilhos fixados na parte superior da câmara de resfriamento. A tarefa consistia em realizar limpeza dos trilhos nas câmaras de resfriamento; primeiramente o trabalhador passava querosene nos trilhos e R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 260 posteriormente óleo desengraxante, com objetivo que as carcaças deslizassem mais facilmente pelos trilhos até os setores de desossa...na câmara de resfriamento existem vários trilhos, mas precisamente na CR-05, onde ocorreu o acidente, existem 09 (nove) trilhos (planta anexa), que são interligados através de chaves conectoras” (fl. 432). “Essa operação era realizada com o uso de uma cadeira de aço inox presa aos trilhos. Dos trilhos até a superfície a altura é de aproximadamente 4 (quatro) metros,” exigindo do trabalhador que executasse essa tarefa “com o cinto de segurança atrelado no próprio trilho, sendo que em intervalos equidistantes aproximadamente de 1 (um) metro, era necessário o desengate do cinto e a fixação noutro ponto. (fl. 431). (grifos nossos). Conforme consta dos autos, o trabalhador caiu da altura de 4 (quatro) metros quando realizava a limpeza dos trilhos, sofrendo traumatismo cranioencefálico (fl. 436) o que acabou por causar a sua morte. Assim, o tipo de trabalho a que era submetido o empregado criava risco constante de acidentes, pelo que tendo acontecido o infortúnio, a empresa deve reparar, mesmo se agir sem culpa. A jurisprudência deste Regional corrobora tal raciocínio, eis que já se pronunciou sobre a questão: RESPONSABILIDADE OBJETIVA. Restando manifesto nos autos que a atividade desempenhada pelo obreiro implica, por si só, constante exposição a perigo de eventuais acidentes, revela-se oportuna a atração, ao contexto, da norma dispensada no parágrafo único do art. 927 do CCB que, ao proclamar a responsabilidade objetiva incidente nesse particular, prescinde o acolhimento do pleito indenizatório da prova de conduta culposa do empregador. (Processo: 00615.2006.111.14.00-5, Julgamento: 13.03.2007, 1ª Turma, Relatora: Juíza Vania Maria da Rocha Abensur) Assim, considerando que o trabalhador desenvolvia atividade de risco, sofrendo acidente de trabalho, o dano causado deve ser reparado pela empresa independentemente desta ter agido ou não com culpa, devendo arcar com os danos causados. Apesar dessas considerações, é certo que no caso concreto sequer haveria a necessidade de se aplicar a responsabilidade objetiva, pois a culpa da reclamada restou comprovada à exaustão. Vejamos. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 261 Disse o perito, fl. 436, que inexistia ordem de serviço para a atividade; faltou treinamento sobre normas de segurança; faltou procedimentos formais de segurança; o ambiente era fatigante (ruidoso e frio); o trabalhador não tinha experiência para desempenhar a função; o modo operacional era inadequado (várias mudanças na fixação do cinto), enfim, a empresa contribuiu com o acidente, na medida em que não tomou medidas de segurança do trabalho, conforme se inferiu da perícia realizada. Perguntado ao perito se a reclamada ministrava palestras e cursos informativos para que seus empregados soubessem exercer suas funções, respondeu: “A empresa não apresentou nenhum comprovante de instrução de trabalho ou de treinamento/ capacitação sobre os riscos aos quais o obreiro estaria exposto. Os documentos juntados aos autos, não permitem afirmar que a empresa realize treinamento admissional” e perguntado se a vítima havia recebido treinamento para trabalhar na cadeira suspensa, respondeu: “A empresa não apresentou nenhum comprovante de instrução em termos gerais, tampouco, treinamento específico com a cadeira.” Indagado a respeito do programa “ANJO”, respondeu: “o Programa Anjo foi iniciado em maio de 2008 com término em dezembro de 2008, ou seja, dois meses após o acidente. Entretanto, o referido programa não deve ser considerado como treinamento e/ou conscientização dos riscos ocupacionais, por se tratar de questões genéricas das diversas funções que existem neste tipo de empreendimento” (fl. 454). (grifos nossos). Assim, seja pela aplicação da responsabilidade objetiva ou ainda que se entendesse pela responsabilidade subjetiva, o certo é que no caso concreto, não há como a empresa se eximir da responsabilidade pelo acidente de trabalho em análise ante as provas produzidas que amparam a tese da parte autora. 2.3.2. DA CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA Não há falar em culpa exclusiva da vítima, pois em que pese tenha restado demonstrado que o fato de o trabalhador não ter fechado a chave conectora e não estar usando cinto de segurança promoveu a queda do mesmo, tal procedimento é justificado primeiro pela falta de treinamento e segundo pelo deficiente modo R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 262 operacional que a empresa submetia os seus trabalhadores no desempenho dessa atividade. Vejamos. No que concerne ao modo operacional, a própria testemunha da empresa, demonstrou isso em seu depoimento (fl. 500) ao falar da atual cadeira disse: “a diferença entre a cadeira da época do acidente e aquela que consta na fotografia de fl. 150 é o material (o anterior era galvanizado, impróprio para estar dentro das câmaras com a carne, o atual é de aço inox) também a atual tem um compartimento para colocar o material de limpeza e ficar mais fácil; o aço galvanizado é impróprio para estar na câmara com a carne porque acarretava problemas no alimento;” (grifos nossos). Observe-se que na perícia foi constatado que a “empresa alegou que após o acidente ocorrido com o Sr. José Aparecido Santos dos Anjos, o modo operacional fora substituído por andaimes, não sendo apresentado a ‘tal cadeira’ durante a perícia. No entanto, consta nos autos (fls. 156 e 157) a cadeira utilizada para limpeza dos trilhos”. Constata-se, ainda, que a empresa, embora seja uma gigante no seu setor em termos de faturamento, descuida no tocante à adoção de medidas efetivas para o combate a acidentes de trabalho. Ressalte-se que o trabalhador, antes do acidente fatal, já havia sofrido outro acidente com a “tal cadeira”, conforme consta dos autos, e foi mencionado no depoimento da segunda testemunha da reclamada, Sra. Elda Oliveira Mello, fl. 499/500, “verbis”: […] houve uma queda anterior do José Aparecido, atendida pela depoente, ocasião em que o José Aparecido estava de cinto, esqueceu a chave aberta e pulou, tendo sofrido apenas um machucado no joelho porque estava de frente […] (grifos nossos) Veja-se que mesmo com o cinto, devido ao grau de periculosidade da atividade, o trabalhador sofreu uma queda. Tal depoimento rechaça a alegação recursal de que estaria comprovado que “a vítima já era reincidente na infração de não utilizar o cinto de segurança fornecido pela empresa, mas que por sorte saiu ileso de outro acidente anterior” (fl. 617). Muito pelo contrário, os depoimentos são no sentido de que a vítima era sempre vista com o cinto de segurança, como R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 263 comprova o depoimento da própria testemunha da reclamada “lembra de ter visto o ‘de cujus’ utilizando o cinto de segurança e utilizando a cadeira em outras ocasiões..” (testemunha Jonata da Silva Aguiar - fl. 499) Asseverou a reclamada que a altura não seria de 4 (quatro metros) como demonstraria a perícia e sim de aproximadamente 2 (dois) metros, como demonstrariam as fotografias de fls. 150 e 157, bem como o depoimento da testemunha (fl. 499). Obviamente que tal alegação não merece prosperar, considerando que o perito foi “in loco” e mediu a altura dos trilhos até a superfície – é de 4 (quatro) metros - portanto, uma fotografia não possui o condão de aferir a altura em questão, bem como a prova testemunhal em que o declarante disse que “estima que a cadeira fica a uma altura de 2m/2m e pouco” é insuficiente para descaracterizar a prova pericial. Assim manifestou-se o perito: “Dos trilhos até a superfície a altura é de aproximadamente 4 (quatro) metros, conforme aferição realizada com trena ultra-sônica” (fl. 431). 2.3.3 DA CULPA CONCORRENTE Quanto a aplicação da culpa concorrente, tem-se que no caso não se vislumbra tal possibilidade, pois o fato de o trabalhador encontrar-se na ocasião da queda sem o cinto de segurança não teria evitado a queda, haja vista que em outro acidente estava com o cinto e também caiu, o que caracteriza que o trabalho em si era muito perigoso. O modo operacional escolhido pela empresa para desenvolver o trabalho colocava o trabalhador em constante risco, aliado à falta de treinamento, exclui totalmente a possibilidade de se falar em culpa concorrente. Muito bem observado pela perícia é o fato da empresa designar alguém tão inexperiente para desenvolver atividade tão perigosa (apenas 20 anos e sem outra experiência profissional anterior), e pior, sem o treinamento adequado, “verbis”: No que tange ao componente INDIVÍDUO, verificouse que o trabalhador exercia a tarefa na empresa há 5 meses (fls. 37 e 45 dos autos), não consta outra anotação em sua carteira profissional de trabalho, portanto, sem experiência para desempenhar a R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 264 função e que o mesmo não recebera treinamento e capacitação para o desempenho de sua atividade, consequentemente, não tinha conhecimento dos riscos a que estava exposto. A empresa não apresentou as ordens de serviço sobre segurança para a função, tampouco, instruções de trabalho sobre os riscos no desempenho de sua função. Em análise, minuciosa, ao PPRA e PCMSO, os documentos apresentados são confusos e pouco esclarecedores sobre as medidas de segurança adotadas pela empresa. O ‘Projeto Anjos da Guarda’ de fls. 132148, não deve ser considerado como treinamento e/ ou conscientização dos riscos ocupacionais, por se tratar de questões genéricas das diversas funções que existem neste tipo de empreendimento. Vale salientar que o referido projeto iniciou em maio de 2008, ou seja, depois de ocorrido o acidente em questão. (fl. 439 - grifos nossos) Tudo isso, aliado à atividade de risco desenvolvida pelo autor na empresa desconstitui in totum a alegação de culpa exclusiva da vítima, ou mesmo concorrente, corroborando as alegações da inicial. Assim, seja porque o caso atrai a aplicação da responsabilidade objetiva, seja porque se aventada a aplicação da responsabilidade subjetiva as provas dos autos são fartas na comprovação da culpa patronal no acidente ocorrido, a indenização é devida. Assim sendo, mantém-se a decisão de primeiro grau, que, analisando cuidadosamente as provas dos autos, concluiu pelo dever de indenizar da reclamada. Quanto a existência do dano moral proveniente do acidente de trabalho, esse é daqueles casos em que tal dano encontra-se inserido na própria ofensa, decorrente da gravidade do ilícito em si, e, tendo o conjunto probatório dos autos sido amplamente favorável a parte reclamante, que logrou êxito em comprovar o acidente, a morte do trabalhador, respaldando sua tese nas provas documentais, testemunhais e periciais produzidas, corroboradoras das alegações da inicial e, restando demonstrado que o empregador deve responder objetivamente, e, ainda que se fosse perquirir a culpa, esta está mais do que provada, deve ser mantida a sentença quanto ao deferimento de indenização por danos morais decorrentes do acidente de trabalho. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 265 2.3.4 DO “QUANTUM” DEFERIDO A empresa recorrente argumenta que o valor deferido a título de indenização não mereceria subsistir. Assevera que o valor deferido seria exorbitante e estaria causando um enriquecimento sem causa, portanto, deveria ser reduzido para não mais de que R$20.000,00 (vinte mil reais), além de reduzido em 50%, pela culpa concorrente do falecido, Primeiramente, esclareça-se que a culpa concorrente já foi afastada, conforme fundamentação precedente. Analisando o caso concreto, vê-se que o valor da indenização fixada pelo juízo de origem está dentro dos padrões utilizados pelos demais pretórios trabalhistas. Evidencia-se, pois, o acerto da decisão, pois levou em consideração todas as questões que envolveram o evento fatídico, pertinentes ao julgamento da causa, e, constatada a responsabilidade objetiva da empresa foi fixado o “quantum” da indenização, de forma razoável. Nesse aspecto, assinala a jurisprudência: DANO MORAL. ARBITRAMENTO. Os critérios para a fixação do dano moral obedecem à lógica própria. Ante a impossibilidade de reparação que permita o retorno pleno ao status quo ante, prepondera, em caso como tal, o objetivo dúplice da indenização: compensação para a vítima e punição do agente. No arbitramento do valor, devem-se levar em conta critérios extraídos de normas previstas para casos análogos, da doutrina e da jurisprudência, os quais, em regra, consideram a extensão do dano, a condição socioeconômica e cultural da vítima e a sua participação no evento, além da capacidade de pagamento e o grau de culpa do agente. (Processo: 00035.2004.080.03.00-2, Juiz Relator: Antônio Mohallem, Publicado “MG” 22.9.05). Por todo o exposto, mantém-se o valor da condenação. 2.3.5 DO DANO MATERIAL - PENSIONAMENTO DA AVÓ R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 266 A empresa sustenta que tanto a requerente (avó do falecido) quanto o seu esposo são beneficiados por aposentadoria cada um com um salário mínimo; que moram em casa própria, que ela conta com 74 anos e seu esposo com 83 anos; que não existiria prova de que o neto (falecido) contribuísse com o sustento dos avós. Também sustenta que não merece prosperar a argumentação do juízo de que é mais de 12 (doze) anos a expectativa do brasileiro em relação à idade da recorrida, citando o site do IBGE donde constaria que a expectativa de vida do brasileiro é de 71,3 anos, pelo que requer a improcedência do pensionamento. Sem nenhuma razão a recorrente. Esclareça-se de início que o benefício previdenciário percebido pelos avós do “de cujus” não se comunica com o pensionamento deferido pela sentença. Quanto às condições de vida da avó que mora em casa própria e recebe benefício previdenciário de um salário mínimo juntamente com o seu marido, tem-se que o valor deferido pelo magistrado de origem, já sopesou essas questões, tanto que o valor deferido de nenhum modo se mostra exorbitante ao caso em análise (R$ 300,00 mensais, incluindo a parcela correspondente ao 13º salário). No tocante à expectativa de vida, tem-se que também encontra-se correta a decisão, pois de simples consulta ao site do IBGE (tábua completa de mortalidade) tem-se que a expectativa de vida para a idade de 74 anos é de 12,2 anos. Em relação à alegação de que a vítima não contribuía com o sustento dos avós, nenhuma prova fez o recorrente dessa alegação, enquanto que as provas carreadas aos autos demonstram o zelo que a vítima possuía para com a avó idosa (fl. 43), sendo certo o entendimento de que a ajudava financeiramente, conforme declarado por ela em seu depoimento (fl. 499) o que foi plenamente aceito pelo juízo de origem que inclusive mencionou ter observado no depoimento “rara sinceridade, o que pôde ser facilmente percebido por todos os presentes na sala de audiência” (fl. 581). Ninguém mais habilitado do que o magistrado de origem R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 267 para avaliar o depoimento porque é ele quem estabelece contato direto com o depoente. Assim, não tendo a reclamada apresentado prova das suas alegações, ao contrário da parte autora que apresentou provas que embasam a sua tese, a sentença merece ser mantida. 2.3.6 DA LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ Aduz a recorrente que a motivação para que a cadeira utilizada pelo “de cujus” para execução de seu trabalho não estivesse nas dependências da recorrente teria sido porque as normas internacionais não aconselhavam a utilização de equipamentos galvanizados no mesmo ambiente de operação da carne, pelo que a cadeira do acidente teria sido substituída por cadeira idêntica, só que em aço inox. Que as fotografias juntadas nos autos da cadeira similar (tendo como diferença única o material componente), que tanto teriam ajudado na instrução do feito, foram providenciadas pela recorrente. Quanto ao segundo ponto levantando para fundamentar a condenação, diz que se não restou configurada a presença do autor no programa ANJO, o certo é que ele teria participado de vários outros programas e que faltou razoabilidade ao magistrado na apreciação da questão. O juízo de origem, entendendo existir a cumulação de expediente temerário com a alteração da verdade dos fatos declarou a reclamada litigante de má-fé e aplicou-lhe a multa de 1% (um por cento) sobre o valor atribuído à causa, no valor de R$5.454,29 (cinco mil, quatrocentos e cinqüenta e quatro reais e vinte e nove centavos), com fulcro nos artigos 17, II, V e VI e 18 do CPC, em razão desta ter sumido com a cadeira envolvida no acidente e apresentado fotos com outra cadeira, mas afirmando tratar-se da mesma cadeira do acidente, bem como por ter afirmado que o reclamante teria sido assistido pelo programa ANJO que foi criado somente após o acidente, “verbis”: […] O sumiço da cadeira envolvida no acidente fatal, negada após reiterados requerimentos do Perito do Juízo, bem poderia corresponder apenas a uma tentativa de ver exercida a faculdade de não produzir prova contra si mesma, não estivesse tal procedimento em confronto com o dever das partes de colaborar com a Justiça e primar pela lealdade e boa fé. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 268 Trazer à colação fotos que não refletem a cadeira utilizada pela vítima se não podem refletir desconhecimento de quem alega, só pode significar tentativa de induzir o Juízo a erro. Tal procedimento é claramente temerário, enquadrando a conduta no inciso V do artigo 17 do CPC. A alteração da verdade dos fatos – elastecendo a improbidade processual à hipótese do inciso I do mencionado dispositivo legal – , restou flagrante quanto ao chamado “Programa Anjo”, o qual, segundo a defesa, “Para cada novo empregado que é contratado pela empresa, lhe é designado um ANJO DA GUARDA, que além de explicar sua função, o acompanha durante vários dias, inclusive no caso do falecido, sendo acompanhado até na cadeira suspensa, juntamente com ele” (fl. 91; grifou-se). Ocorreu, no entanto, que a segunda testemunha da reclamada, sob compromisso, categoricamente afirmou que “o Programa Anjo foi implantado depois do acidente” (fl. 501; grifou-se). Nada há a modificar, pois restou plenamente caracterizado a utilização de expediente temerário, consubstanciado no fato de ter a reclamada sumido com a cadeira do acidente, o que foi constatado pelo perito à fl. 431 e 442, porém, insistido à fl. 489, que fosse “novamente vistoriado o local e periciada a CADEIRA colacionada nas fotos de fls. 150/157, que se encontra nas dependências da empresa” enquanto que a cadeira constante na foto não é a do acidente conforme depoimento da preposta da empresa à fl. 498 “apresentadas as fotografias de fls. 150 e seguintes, informa que a cadeira que aparece não era a cadeira utilizada na época do acidente”. Verifica-se, também, a alteração da verdade dos fatos, pois alegou a reclamada na contestação à fl. 92 que o reclamante teria participado do programa ANJO quando tal programa foi criado somente após o acidente. Por todo o exposto, entendemos que a condenação merece ser mantida, mantendo-se a sentença, também no aspecto. 2.3.7 DO ÔNUS DA PROVA A recorrente sustenta que não estaria correto o entendimento de aplicação do artigo 14 da Lei 8.078/90, quando R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 269 a própria CLT teria regulamentado a questão, na forma do artigo 818 da CLT, “volvendo o ônus para o indivíduo que alega” e que o autor não teria se desincumbido do encargo, pelo que os pedidos deveriam ter sido julgado improcedentes. Conforme já fundamentado, ainda que não fosse o caso da aplicação da responsabilidade objetiva, são fartas as provas a amparar a pretensão autora, pelo que a decisão merece ser mantida “in totum”. Embora até a presente data não tenha a parte reclamante apresentado os originais dos documentos de fl. 713, entendemos tratar-se, sem sombra de dúvida, de processo que envolve interesse de idoso, pelo que defere-se o requerido à fl. 656, (prioridade de tramitação em todas as instâncias – artigo 1.211A do CPC), determinando sejam procedidas as anotações cabíveis. 2.4 CONCLUSÃO DESSA FORMA, decide-se conhecer do recurso, rejeitar as preliminares arguidas pela recorrente e, no mérito, negarlhe provimento. Defere-se o requerido à fl. 656, (prioridade de tramitação em todas as instâncias – artigo 1.211A do CPC), determinando sejam procedidas as anotações cabíveis. 3 DECISÃO ACORDAM os Magistrados integrantes da 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, à unanimidade, conhecer do recurso, rejeitar as preliminares arguidas pela recorrente e, no mérito, negar-lhe provimento. Defere-se o requerido à fl. 656, (prioridade de tramitação em todas as instâncias – artigo 1.211A do CPC), determinando sejam procedidas as anotações cabíveis. Tudo nos termos do voto da Relatora. Sessão de julgamento realizada no dia 16 de setembro de 2009. Porto Velho-RO, 16 de setembro de 2009. ELANA CARDOSO lopes DESEMBARGADORA RELATORA R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.251-267, jul./dez. 2009 270 271 PROCESSO: CLASSE: ÓRGÃO JULGADOR: ORIGEM: 1ª RECORRENTE: 2º RECORRENTE: PROCURADORES: 1º RECORRIDOS: 2ª RECORRIDA: ADVOGADOS: RELATORA: REVISOR: 00308.2008.005.14.00-6 ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PLENO 5ª VARA DO TRABALHO DE PORTO VELHO - RO REFLEXO LIMPEZA E CONSERVAÇÃO LTDA. ESTADO DE RONDÔNIA JERSILENE DE SOUZA MOURA E OUTROS OS MESMOS DINA MALALA ANDRADE NAZINA LOPES DA SILVA LIMA PEDRO ALEXANDRE DE SÁ BARBOSA E OUTRA DESEMBARGADORA MARIA CESARINEIDE DE SOUZA LIMA DESEMBARGADOR CARLOS AUGUSTO GOMES LÔBO ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. SUBSIDIARIEDADE. ARTIGO 71, § 1º, DA LEI N. 8.666/93. INCABIMENTO. A questão relacionada a subsidiariedade do ente público tomador de serviço, via de regra, não passa pela exclusão da aplicação do art. 71, §1.º da Lei n.º 8.666/93, mas por uma interpretação sistemática na sua aplicabilidade, levando-se em conta todo o arcabouço jurídico pátrio. Incidente que não se conhece. 1 RELATÓRIO Em reclamação trabalhista promovida por Dina Malala Andrade e Nazina Lopes da Silva Lima contra a empresa Reflexo Limpeza e Conservação Ltda e Estado de Rondônia o Juízo, ao decidir o feito, acolheu, parcialmente, os pedidos da exordial, condenando a primeira reclamada e, subsidiariamente, o segundo reclamado, ao pagamento de adicional de insalubridade no grau máximo, bem como seus respectivos reflexos, de acordo com o que se observa das fls. 255/266. Inconformados com esse decisum, a primeira reclamada e o segundo reclamado interpuseram recursos, respectivamente, às fls. 271/275 e fls. 280/299. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 272 Levados a julgamento pela 2ª Turma deste Tribunal, o apelo manejado pela 1ª reclamada, por decisão unânime, não foi conhecido em razão de irregularidade de representação processual. Já a insurgência do reclamado subsidiário, por decisão majoritária, teve seu julgamento suspenso, com encaminhamento dos autos para apreciação plenária com vistas à apreciação da arguição de constitucionalidade do § 1° do artigo 71 da Lei n. 8.666 de 21 de junho de 1993, em atenção ao disposto na Súmula Vinculante n.º 10 do Supremo Tribunal Federal. Dada a oportunidade ao Órgão do Ministério Público do Trabalho, foi lavrado parecer às fls. 332/343, tendo o Ilustre Parquet opinando pela não admissão da arguição suscitada e, sendo esta superada, no mérito sugeriu a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto para declarar a inconstitucionalidade material do § 1° do artigo 71 da Lei n. 8.666/93, por vulneração às disposições dos artigos 1°, incisos III e IV e 170, caput, ambos da Constituição Federal de 1988, apenas quando de sua aplicação aos contratos de prestação de serviços celebrados pela Administração Pública, bem como sendo enunciado o verbete sumular correspondente, conforme artigo 163, caput, do Regimento Interno deste Tribunal. Por força do artigo 161 do Regimento Interno desta Corte o feito foi redistribuído e, considerando não existir prejuízo às partes, prosseguiu-se no julgamento. 2 FUNDAMENTOS 2.1 ADMISSIBILIDADE O Ministério Público do Trabalho da 14.ª Região erigiu preliminar de não conhecimento da Arguição de Inconstitucionalidade do art. 71, §1.º, da Lei n.º 8.666/93, por força do que dispõe o art. 481, parágrafo único do CPC: Art. 481. Se a alegação for rejeitada, prosseguirá o julgamento; se for acolhida, será lavrado o acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno. Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão. (Incluído pela Lei nº 9.756, de 17.12.1998). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 273 Realmente, com afirmou o “Parquet”, o Pleno já apreciou a questão relacionada a aplicabilidade do art. 71, §1.º, da Lei n.º 8.666/93, sob a ótica do entendimento plasmado na Súmula n.º 331 do TST, conforme arestos abaixo: RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. ENTE PÚBLICO. ENUNCIADO 331, DO C. TST. Quando a empresa prestadora de serviços não cumpre corretamente as obrigações do contrato de trabalho em relação ao trabalhador, o ente público, tomador dos serviços, deve responder subsidiariamente pelos encargos trabalhistas, entendimento corroborado pelo En. 331, do C. TST. Recurso não provido.” (Acórdão nº 441/03, REXRO-852/02, publicado no D.O.J -TRT 14ª Região, ano I, nº 11, 7.5.03, Rel. Juíza Elana Cardoso Lopes Leiva de Faria) RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. TOMADOR DE SERVIÇOS. ENTE PÚBLICO. IMPOSIÇÃO DA SÚMULA EDITADA PELO COLENDO TST. RECURSO IMPROVIDO. O inadimplemento, por parte do empregador, das verbas de natureza contratual, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, inclusive quanto à administração pública, desde que integre a relação processual, nos termos do item IV da Súmula nº 331. (Processo n.º RO 00713.2005.141.14.00-3, Órgão Julgador: Pleno, Relator: Juiz Carlos Augusto Gomes Lôbo, Publicado em 06.06.2006). Logo, se o Pleno deste Regional já analisou a matéria, estaria o presente incidente fadado ao não conhecimento, por força do que dispõe o parágrafo único do art. 481 do CPC. Outrossim, a questão de fundo dos autos relacionada à subsidiariedade do ente público tomador de serviço, via de regra, não passa pela exclusão da aplicação do art. 71, §1.º, da Lei n.º 8.666/93, mas por uma interpretação sistemática na sua aplicabilidade, como já decidiu o Tribunal Superior do Trabalho e o Pleno desta Corte. Sobre a matéria, o Pleno deste Regional plasmou a seguinte decisão: MÉRITO - Segundo a recorrente (fl. 92), a demanda proposta não oferece à Administração Pública a menor possibilidade de contestar as alegações fáticas consignadas na petição inicial, ou de provar qualquer tipo de pagamento, o que ofenderia os princípios R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 274 constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Declara que somente quem tem conhecimento dos fatos que nortearam a relação de trabalho é o empregador, já que toda a atividade foi orientada e supervisionada pela empresa prestadora de serviços. Continua aduzindo que o artigo 71 da Lei nº 8.666/93 isentaria a Administração Pública da responsabilidade pelo cumprimento das obrigações trabalhistas em caso de inadimplemento do empregador. Sustenta também (fl. 96) que não haveria de se falar em culpa in eligendo, haja vista que no caso em questão, as entidades celebraram convênio entre si, via regular procedimento administrativo, ocasião em que ficou demonstrado, diante das respectivas regras legais, a capacidade operacional e econômico-financeira da terceirizada, sua regularidade perante a Previdência Social e FGTS. Insurge-se, ainda, asseverando (fl. 97) que a FUNASA não integrou a ação proposta pelo reclamante contra o seu empregador, que tramitou sob o nº 00183.2004.416.14.00-2, no qual a referida entidade foi condenada a pagar diversas verbas indenizatórias. Reverbera (fl. 98), que a responsabilidade subsidiária deveria ter sido reconhecida no mesmo processo em que condenou o empregador, e não em autos apartados. Infrutíferas alegações. Iniciamos a nossa fundamentação com uma reflexão suscitada pelo eminente magistrado Maurício Godinho Delgado em sua estimada obra: “a responsabilidade subsidiária preconizada no inciso IV da Súmula 331 aplica-se também aos créditos trabalhistas resultantes de contratos de terceirização pactuados por entidades estatais?” (Curso de Direito do Trabalho; 5ª ed.; São Paulo; Ltr; 2006; p. 458). Parece não querer se conformar uma parte da doutrina que insiste em pronunciar que o artigo 71, § 1º, da Lei de Licitações e Contratos inviabiliza a caracterização da responsabilidade, quer subsidiária, quer solidária, da Administração Pública perante as dívidas trabalhistas contraídas pela pessoa por ela contratada para proporcionar o fornecimento de mão-de-obra para a consecução de determinados serviços. Adotarmos tal entendimento, no entanto, seria o mesmo que admitirmos a validade jurídica de uma cláusula potestativa formalmente instituída por meio de um procedimento legal, mas que, no seu conteúdo, viola os mais basilares princípios orientadores do Direito, dentre os quais, o da isonomia de tratamento entre os que se apresentam em situações juridicamente iguais, haja vista que a Administração Pública ao pactuar com particulares se despe de sua superioridade jurídica e se assenta em pólo de equivalência com a pessoa contratada, com exceção de apenas algumas ressalvas que são ínsitas da atuação estatal, a exemplo do direito de encampação. O que nos resta, então? Declararmos a invalidade desse preceito que arrosta princípios jurídicos? Não há necessidade de R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 275 se tomar essa medida. Nos orienta, na situação em apreço, o princípio hermenêutico segundo o qual a norma restritiva deve ser interpretada restritivamente. Somente dessa forma podemos extrair o sentido desse dispositivo sem incorrermos em conflitos entre as normas e os princípios. Vejamos: “Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. § 1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.” (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995). Literalmente, verifica-se contradição entre essa disposição e o artigo 37, § 6º da CF, que não exime a Administração da responsabilização pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Como escape para o exegeta, resta ainda a interpretação sistemática que lhe proporciona harmonizar os mandamentos jurídicos aparentemente conflitantes. Nessa esteira, cabe ser invocado outro dispositivo legal que intermedeie, apazigúe e sincronize o bom funcionamento do ordenamento jurídico. (PROCESSO Nº: 00432.2006.416.14.00-6, RELATOR: JUIZ VULMAR DE ARAÚJO COÊLHO JUNIOR, Julgado em 14.12.2006).[Grifou-se] Sobre este assunto, o TST prolatou o seguinte aresto: AÇÃO RESCISÓRIA INSS – RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DE ÓRGÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR DÉBITOS TRABALHISTAS ADVINDOS DE TERCEIRIZAÇÃO ILEGAL E REVELIA DE ENTE PÚBLICO - MATÉRIA CONTROVERTIDA E NÃO VIOLAÇÃO DE LEI. 1. Um dos princípios norteadores do Direito do Trabalho, que lhe dão caráter de ramo autônomo da Ciência Jurídica, é o da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador, mediante a quebra da hierarquia das fontes, que estrutura a pirâmide jurídica kelseniana. 2. Em relação à questão da responsabilidade subsidiária de entes da administração pública quanto a débitos trabalhistas não honrados por empresas prestadoras de serviços com as quais contrataram, o art. 71, § 1º, da Lei nº 8666/93, em sua literalidade, afasta expressamente a possibilidade de responsabilização. No entanto, a exegese literal do dispositivo de lei não é a única forma de hermenêutica jurídica, havendo também, dentre tantas outras (histórica, sociológica, teleológica, etc.), a interpretação sistemática. Não fora assim, a atividade jurisdicional seria meramente mecânica, de enquadramento da matéria-prima fática R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 276 na forma legal jurídica, sem se perquirir sobre o conteúdo, finalidade e dimensão mais abrangente da norma. 3. Numa exegese do sistema legal trabalhista, de caráter protecionista do hipossuficiente na relação laboral, não se pode admitir que as empresas estatais estejam infensas à responsabilidade subsidiária em caso de contratação de mão-de-obra por interposta pessoa, se esta não se mostra idônea para arcar com os encargos trabalhistas do pessoal posto a serviço da empresa estatal. Nossa Carta Política assegura o mesmo tratamento jurídico, no campo trabalhista, para as empresas públicas e privadas (CF, art. 173). 4. ‘In casu’, a responsabilidade subsidiária decorre de dois fatores: a) a prestação direta dos serviços do empregado é para a empresa estatal, que se beneficia da força de trabalho alheia; e b) se a prestadora dos serviços que forneceu a mão-de-obra não é idônea ou não paga os salários de seus empregados, a estatal que a contratou tem culpa ‘in eligendo’ ou ‘in vigilando’ com relação à empresa terceirizada. 5. O que não se admite em matéria de Direito do Trabalho é a empresa tomadora dos serviços beneficiar-se do esforço humano produtivo e depois o trabalhador que o dispendeu ficar sem receber a retribuição que tem caráter alimentar. 6. Assim, não há que se falar em violação do art. 37, ‘caput’, da Constituição Federal, que alberga a obediência dos órgãos da Administração Pública aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, uma vez que a decisão rescindenda não carece de base legal, mas está devidamente respaldada numa interpretação sistemática do ordenamento jurídico-trabalhista. 7. Ademais, o pedido rescisório encontra óbice na Súmula nº 83 do TST, porquanto as questões da revelia de ente público e da responsabilidade subsidiária de autarquia, em virtude da terceirização ilegal de serviços, eram amplamente controvertidas à época da prolação da decisão rescindenda, vindo somente a ser pacificadas, respectivamente, pela OJ 152 da SBDI-1 do TST, inserida em 27-11-98, e pela Resolução Administrativa nº 96, publicada no DJ de 18-09-00, que modificou a redação do item IV do Enunciado nº 331 do TST, para nele fazer constar expressamente a possibilidade de se impor responsabilidade subsidiária aos órgãos da Administração Pública. Recurso ordinário e remessa de ofício a que se nega provimento.” (TST- RXOFROAR n° 805949/2001 - Publicado no DJ em 25.04.03 - Relator Ministro Ives Gandra Martins Filho).[Grifou-se] Nesse pensar, não se trata de afastamento, em todo ou em parte, da aplicação do artigo 71, § 1.º, da Lei n.º 8.666/93, mas de imprimir, na sua aplicabilidade, uma interpretação sistemática com foco no caso concreto. O presente incidente, sob este argumento, também é incabível. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 277 Registre-se por oportuno, que a aprovação da Súmula n.º 331 do TST cumpriu o que determina o artigo 97 da Constituição Federal de 1988 e com o estabelecido na Súmula Vinculante n.º 10 do STF, uma vez que, na forma do artigo 70, I, b, do Regimento Interno então vigente, a referida súmula foi aprovada pelo Pleno do TST. Em sessão do Tribunal Pleno de Incidente de Uniformização de Jurisprudência no TST, em face da redação do § 1.º do artigo 71 da Lei n.º 8.666/93, a Corte uniformizadora entendeu que, não obstante o referido artigo dessa Lei contemplar a ausência de responsabilidade da administração pública pelo pagamento de encargos trabalhistas, entre outros, resultantes da execução de contrato, há de ser ele interpretado em harmonia com outros princípios constitucionais como, por exemplo, o da dignidade da pessoa, concluindo pela responsabilização do ente público, como dá conta a atual redação do item IV da Súmula 331.(Processo n.º TST-RR-297.751/96,Relator o Exmo. Ministro Milton de Moura França). Verifica-se que o entendimento da Corte Superior veio dar interpretação aos termos do artigo 71, § 1.º, da Lei n.º 8.666/93, não havendo que se falar em violação do referido preceito legal ou em decretação de sua inconstitucionalidade. Nesse pensar, a interpretação dada pelos Regionais, ao aplicarem a Súmula 331, item IV, deve, obrigatoriamente, atrair o mesmo entendimento da Corte Superior, qual seja, o artigo 71, § 1.º, da Lei n.º 8.666/93 não é inconstitucional e o comando nele inserto deve ser interpretado em harmonia com outros princípios constitucionais como, por exemplo, o da dignidade da pessoa, concluindo pela responsabilização do ente público. O sistema, o arcabouço jurídico pátrio deve ser levado em consideração. Nesse raciocínio, limitar a discussão aos termos do art. 71, § 1º, da Lei n.º 8.666/93, ignorando os demais diplomas da referida lei, não é a melhor solução para o caso, uma vez que a proteção oferecida ao ente público é parcial, comporta temperamento e cede ao princípio da primazia da realidade (provas em contrário). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 278 Cumpre ressaltar que os artigos 54, 66 e 67 da Lei nº 8.666/93, respectivamente, dispõem que os contratos administrativos de que trata esta Lei deverão ser executados fielmente pelas partes, de acordo com as cláusulas avençadas e as normas desta Lei, respondendo cada uma pelas consequências de sua inexecução total ou parcial, regulando-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado, bem como a execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações relativas a essa atribuição. Perceba-se assim, nitidamente, que essas normas impõem ao ente público o dever de fiscalizar o correto cumprimento do contrato e de zelar para que a empresa prestadora de serviços contratada cumpra com os deveres trabalhistas relativos a seus empregados, para que possa ele usufruir da blindagem legal. Assim, via de regra, é o desrespeito aos artigo 54 66 e 67 da Lei n.º 8.666/93 um dos fundamentos da responsabilização subsidiária do ente público, e não a possível decretação de inconstitucionalidade do art. 71, § 1.º, da mesma Lei. Desse modo, a interpretação dada ao artigo 71, §1.º da Lei n.º 8.666/93, na forma acima alinhavada, não conduz à sua inconstitucionalidade, mas adequação da aplicação da norma ao caso concreto. A propósito, consigne-se os fundamentos do Desembargador Carlos Augusto Gomes Lôbo, que acompanhou o voto da relatoria, com pequena divergência quanto à fundamentação,mas convergente quanto à conclusão, nestes termos: I) a questão está sendo abordada pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da ação direta de constitucionalidade n.º 16, cuja Relatoria pertence ao Ministro Cezar Peluso, que votou pelo não conhecimento da ação por não ver o requisito da controvérsia judicial, sendo que Ministro Marco Aurélio, a reconheceu e deu seguimento à ação. Após, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Menezes Direito, permanecendo o processo, até a presente data, sem nova tramitação. Salientou, o Excelentíssimo Desembargador, que o R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 279 voto da relatoria da mencionada ação direta de constitucionalidade é próprio ao caso debatido nos presentes autos; e,[Grifou-se] II) que o art. 71 não exclui a responsabilidade subsidiária, mas somente a responsabilidade direta, estando o ente público autorizado a manejar ação regressiva, fato que não importa na inconstitucionalidade do mencionado diploma legal. Por fim, apresenta-se um escorço do pronunciamento de Luis Gustavo Grandinetti Castanha de Carvalho, Coordenador Acadêmico de Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá, Juiz de Direito, Doutor pela UERJ, Mestre pela PUC-RJ – ao prefaciar a obra “Novos direitos: os paradigmas da pós-modernidade” (Niterói - RJ: Impetus, 2004), de Cleyson M. Mello e Thelma Fraga (organizadores), nos seguintes termos: Atualmente, se de um lado, há uma profusão absurda de leis que procuram regular quase toda a atividade humana, marcando a forte onipresença do Estado na maioria das relações sociais, de outro lado, reclamasse da imperfeição das leis, de sua desatualização, de seu divorciamento do conceito do justo. As leis são tão imprevidentes e imperfeitas como os seres humanos e hão de recriar os mesmos modelos de incompletude. A constatação dessa limitação impõe uma necessária postura de humildade dos intérpretes e aplicadores da lei. Não é propriamente na letra da lei que serão encontradas as respostas para satisfazer o sentimento de justiça que a sociedade espera do Direito. A aplicação das leis demanda sempre um eterno retorno ao ponto de partida, uma incessante busca platônica de idéias eternas que se sobrepõem ao mundo material das leis e lhes dá sentido. Não é, portanto, fazendo leis em profusão, leis que tenham a presunção de onipotência, que se logrará regular a sociedade e levá-la a atingir o ideal de justiça. Urge substituir o componente da onipotência das leis pelo da humildade do intérprete. Os conceitos legais não podem estar divorciados de valores, pois são estes que devem ser pesquisados em todo o processo de interpretação. A propósito, tem-se a lição de Karl Larenz: “No entanto, a técnica jurídica continua a ser sempre só uma função do princípio valorativo subjacente. Há de sempre manter-se o olhar por cima das fórmulas positivas em direção à idéia, ao núcleo de sentido dos institutos jurídicos, que nelas e por meio delas se mantém. Isso não pode significar outra coisa senão que a jurisprudência R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 280 científica, se quiser compreender as decisões de valor dadas de antemão numa regulação jurídicopositiva e os problemas delas resultantes, não deve quedar-se nos conceitos técnicos-jurídicos, mas há de perguntar pelo conceito determinado pela função que se esconde por detrás do conteúdo técnico jurídico, tanto quanto através dele se deixa transparecer... Tanto o princípio como o conceito determinado pela função remetem para algo que está para além deles: o princípio para as concretizações em que o seu sentido se desenvolve; o conceito determinado pela função remete de novo para o princípio”. (Metodologia da Ciência do Direito, p. 691/692, 1997, Calouste Gulbenkian). É esse eterno retorno o mote do processo de interpretação, a matéria prima sobre a qual deve laborar o consciente aplicador da lei. Se a lei é imperfeita porque o homem assim também o é, o processo de interpretação, ainda que contenha o mesmo germe falível, representa uma incessante busca e a permanente aspiração de alcançar os valores fundamentais de uma sociedade Nesse ponto, vem à lembrança o trecho de uma poesia de Fernando Pessoa: “Passa uma borboleta diante de mim E pela primeira vez no Universo eu reparo Que as borboletas não têm cor nem movimento, Assim como as flores não têm perfume nem cor. A cor é que tem cor nas asas da borboleta, No movimento da borboleta, o movimento é que se move, O perfume é que tem perfume no perfume da flor. A borboleta é apenas borboleta E a flor é apenas flor.” As leis serão apenas leis. Não são propria mente boas ou más, embora sempre imperfeitas. A nós, intérpretes e aplicadores da lei, é que incumbe adicionar-lhes a cor, o movimento e o perfume. Desse forma, com arrimo na interpretação sistemática do ordenamento jurídico-trabalhista do § 1.º do artigo 71 da Lei n.º 8.666/93, não se conhece da Arguição de Inconstitucionalidade apresentada nos presentes autos. Posto isso, não se admite o incidente de Arguição de Inconstitucionalidade. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 281 3 DECISÃO ACORDAM os Magistrados integrantes do Tribunal Pleno do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, à unanimidade, não admitir a arguição de inconstitucionalidade, nos termos do voto da Relatora. Sessão de julgamento realizada no dia 12 de maio de 2009. Porto Velho-RO, 13 de maio de 2009. MARIA CESARINEIDE DE SOUZA LIMA DESEMBARGaDORA-RELATORA R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.269-279, jul./dez. 2009 282 283 processo: 00230.2009.403.14.00-0 classe: Recurso Ordinário órgão julgador: 2ª TURMA origem: 3ª VARA DO TRABALHO DE RIO BRANCO AC 1ª RECORRENTE: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA UNESCO ASSISTIDA Pela: UNIÃO Procuradores: Isaias Ferreira Júnior E Outro 2ª RECORRENTE: FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE FUNASA Procuradores: Marcos Leite Leitão E Outros 1ºS RECORRIDOS: OS MESMOS 2º RECORRIDo: JOSÉ CLÁUDIO FERREIRA Advogados: Márcio Rogério Dagnoni E Outra RELATOR: DESEMBARGADOR CARLOS AUGUSTO GOMES LÔBO REVISORA: JUÍZA CONVOCADA ARLENE REGINA DO COUTO RAMOS IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. ORGANISMO INTERNACIONAL. UNESCO. AGÊNCIA ESPECIALIZADA DA ONU. A jurisprudência e doutrina atual superaram o entendimento de que os entes de direito público externo gozam de imunidade absoluta de jurisdição, porquanto prevalece hoje a tese de que esses entes gozam de imunidade relativa de jurisdição, ou seja, as pessoas jurídicas de direito público internacional não gozam de imunidade de jurisdição no domínio dos atos de gestão, notadamente nas relações de trabalho. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA INDIRETA TOMADORA DOS SERVIÇOS. Restando incontroverso nos autos que a Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, utilizou-se de mão de obra ofertada por empregado contratado pela UNESCO, responde R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 284 subsidiariamente pelos encargos trabalhistas eventualmente inadimplidos pela empregadora direta, na qualidade de tomadora dos serviços prestados. Inteligência da Súmula 331, inciso IV, do C. TST. 1 RELATÓRIO Trata-se de recursos ordinários interpostos pela ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA – UNESCO, assistida pela UNIÃO e pela FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE – FUNASA, em face da sentença proferida pela 3ª Vara do Trabalho de Rio Branco/AC, às fls. 294/305, nos autos da reclamação trabalhista movida por JOSÉ CLÁUDIO FERREIRA. A sentença hostilizada reconheceu o vínculo empregatício entre o segundo/recorrido e a primeira/recorrente, com responsabilidade subsidiária da segunda/recorrente, no período de 1º/08/2001 a 31/12/2008, condenando-as ao pagamento das seguintes verbas: aviso prévio; férias 2004/2005 em dobro, 2005/2006 em dobro, 2006/2007 em dobro, 2007/2008 de forma simples, e 2008 proporcionais a 5/12, todas acrescidas de 1/3; 13º salário, proporcional em 2004, integrais em 2005, 2006, 2007 e 2008; FGTS de todo o período do pacto laboral reconhecido com acréscimo pecuniário de 40%. Deferida, outrossim, os benefícios da justiça gratuita ao reclamante. Demais pedidos julgados improcedentes. Sustenta a primeira/recorrente, em razões recursais (fls. 314/330), em síntese, a imunidade de jurisdição. No mesmo sentido é o apelo da União, como assistente da primeira/recorrente, consoante razões de fls. 331/346. Por sua vez, argui a segunda/recorrente, em resumo, a ilegitimidade passiva e a não responsabilidade subsidiária, ao argumento de não ter sido empregadora do reclamante. Sem contrarrazões pelas partes. Parecer ministerial, às fls. 396/399, pelo conhecimento dos recursos, no mérito pelo improvimento. 2 FUNDAMENTOS R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 285 2.1 Admissibilidade Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço dos recursos interpostos. 2.2 Preliminares 2.2.1 Da incompetência absoluta Suscitam as recorrentes a preliminar em tela, ao argumento de falecer competência à Justiça brasileira para julgar o pleito, por não deter jurisdição para tanto. No entanto, tal preliminar confundese com o próprio mérito do recurso interposto, à medida em que, uma vez acolhida, afastará a condenação da UNESCO. Nessa ordem, para análise da questão, mister o ingresso no mérito da causa. Destarte, por confundir-se com o mérito “causae”, para lá remeto a análise da questão suscitada. 2.2.2 Preliminar de ilegitimidade passiva “ad causam” Argui a segunda/recorrente, FUNASA, sua ilegitimidade para figurar no polo passivo da reclamação trabalhista em tela, porquanto, segundo sustenta, não figurou como empregadora do reclamante, apenas celebrou contrato de natureza administrativa/civil celebrado com a UNESCO. Como é cediço, a análise das condições da ação deve ser feita em “status assertionis”, ou seja, em análise superficial, atendo-se o julgador apenas ao descrito pelo autor na exordial. É o que informa o Princípio da Asserção. Nessa senda, não cabe ao magistrado uma análise acurada da legitimidade das partes, bastando, pois, apenas uma análise preambular para se aferir a pertinência subjetiva. A par disso, e com base no item IV da Súmula 331, afigura-se a segunda/ recorrente parte legítima a figurar no polo passivo da demanda. Demais disso, a análise acerca da responsabilidade subsidiária relaciona-se ao mérito da questão posta, não se confundindo com a legitimação “ad causam” da Fundação. 2.2.3 Falta de interesse de agir R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 286 Suscitam as recorrentes a preliminar em destaque, aduzindo não ter o reclamante interesse de agir, na medida em que não procurou solucionar o conflito de interesses extrajudicialmente. Asseveram que os contratos de trabalho que regeram a prestação de serviços pelo reclamante junto à UNESCO possuíam cláusula estabelecendo que qualquer disputa relativa à interpretação ou execução do presente contrato estará sujeita a conciliação e que, não sendo esta possível, a disputa será resolvida por arbitragem. Tal argumentação não subsiste. Estabelece o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, o amplo acesso ao Judiciário, é o que a doutrina convencionou chamar de “inafastabilidade da jurisdição”. De acordo com o preceptivo em causa, qualquer lesão ou ameaça a direito levada ao conhecimento do Judiciário merecerá uma resposta deste, seja analisando o mérito (decisão definitiva), seja extinguindo o processo sem apreciá-lo (decisão terminativa). Não há dúvida de que o livre acesso ao Judiciário, como qualquer outra garantia constitucional, não é absoluto. Com efeito, há consenso geral de que a legislação infraconstitucional pode estabelecer certos pressupostos para que o jurisdicionado bata às portas do Judiciário, quando, por exemplo, se estabelece o compromisso de arbitragem. Todavia, o instituto da arbitragem na seara laboral é de duvidosa aplicação, porquanto as parcelas trabalhistas são imantadas de natureza imperativa, o que as torna irrenunciáveis, delas não podendo seu titular abrir mão. Tal assertiva basta para afastar a aplicação do instituto da arbitragem na seara laboral, notadamente nos dissídios individuais. Demais disso, não há na legislação infraconstitucional qualquer regramento que imponha ao reclamante a condição de submeter seu pleito à tentativa de solução extrajudicial antes de ingressar com ação trabalhista. Saliento, por oportuno, que a própria obrigatoriedade de ingresso prévio nas Comissões de Conciliação Prévia (art. 625-D, da CLT) foi considerada inconstitucional pelo STF, em recente decisão (ADIs 2139 e 2160). Destarte, cláusula contratual que condicione o ingresso no Judiciário à tentativa de solução extrajudicial, para fins trabalhistas, de nenhum valor jurídico reveste-se. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 287 2.2.4 Prejudicial de mérito – prescrição A única prescrição a ser declarada é aquela já acolhida pela decisão de primeiro grau. Nada mais a prover. 2.3 Mérito 2.3.1 Recurso da UNESCO e da UNIÃO (assistente simples) 2.3.1.1 Imunidade de jurisdição Repetem as recorrentes os mesmos argumentos deduzidos em primeira instância, por ocasião do oferecimento de contestação. Em resumo, sustentam a imunidade de jurisdição da UNESCO, ancorando-se em Convenções Internacionais incorporadas pelo ordenamento jurídico pátrio, notadamente, a que trata sobre os privilégios e imunidades da ONU, positivada internamente pelo Decreto n. 27.784/1950. Sem razão. A controvérsia gira em torno do reconhecimento, ou não, de imunidade de jurisdição da UNESCO, na qualidade de Agência Especializada da ONU. Compartilho do entendimento que vem prevalecendo na Corte Máxima Trabalhista, de que os Organismos Internacionais não detêm imunidade de jurisdição em relação às demandas que envolvem atos de gestão, como na hipótese dos autos, em que são debatidas questões atinentes ao direito às parcelas decorrentes de relação de trabalho mantida entre as partes. Nesse sentido, trago à baila decisão da SBDI-II: RECURSO ORDINÁRIO. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO – ONU/PNUD. Ação trabalhista ajuizada perante Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Ação rescisória ajuizada por Organização das Nações Unidas, sob a alegação de que a decisão rescindenda foi proferida por juiz incompetente, em face da imunidade de jurisdição da R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 288 ONU, e de que houve violação dos artigos da Seção 2 da Convenção sobre Privilégio e Imunidades da ONU. Conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, os Estados estrangeiros e os organismos internacionais não gozam de imunidade de jurisdição no processo de conhecimento. Em decorrência desse entendimento, tem-se a inaplicabilidade, no nosso ordenamento jurídico, da disposição constante da Seção 2 da Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, a despeito da edição do Decreto nº 27.784/50. Recurso ordinário a que se nega provimento – (TST - ROAR00056.2003.000.23.00-0, Relator - Ministro Gelson de Azevedo, DJ 12/05/2006) No mesmo diapasão e da mesma Corte, são os seguintes arestos: RECURSO DE REVISTA. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. ORGANISMO INTERNACIONAL. ONU/PNUD . Os organismos internacionais não detêm imunidade de jurisdição absoluta em relação às demandas que envolvem atos de gestão, como na hipótese, em que se debate o direito a parcelas decorrentes da relação de trabalho mantida entre as partes. Recurso a que se dá provimento. (TST – RR–01540.2003.001.23.00-1, DEJT 04/09/2009); AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ORGANISMO INTERNACIONAL. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. Esta Corte tem reiteradamente decidido que a imunidade de jurisdição, conferida aos organismos internacionais, não alcança as relações de natureza trabalhista, por se encontrarem estas inseridas no conceito de atos de gestão, os quais não estão abarcados pela referida imunidade. Os arestos colacionados desservem à demonstração de dissenso de teses, porquanto não trazem o órgão julgador, inviabilizando a análise de compatibilidade com o art. 896, a da CLT, ou não informam a fonte de publicação, o que desatende ao comando inserto na Súmula 337/TST. Agravo de instrumento conhecido e não-provido. (TST – RR-01388.2001.008.17-40, DEJT 04/09/2009); RECURSO DE REVISTA. ORGANISMO INTERNACIONAL. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. VÍNCULO DE EMPREGO. A jurisprudência desta Corte Trabalhista é pacífica no sentido de que os estados estrangeiros e os organismos internacionais não gozam de imunidade de jurisdição quando atuam no âmbito das relações privadas (atos de gestão), especialmente na área do Direito do Trabalho. Recurso de revista conhecido e provido, no particular. (TST – RR-001045.2004.001.10-00, DEJT 21/08/2009); R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 289 RECURSO DE REVISTA - ORGANISMO INTERNACIONAL - ONU/PNUD – IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO Conforme entendimento firmado nesta Corte Superior, os Estados estrangeiros e os organismos internacionais não detêm imunidade absoluta de jurisdição. Na espécie, entender que o Decreto n o 27.784/1950 previu a imunidade de jurisdição dos organismos internacionais quanto a suas obrigações trabalhistas implicaria ignorar a garantia inscrita no art. 5º, XXXV, da Constituição da República. Precedentes. Recurso de Revista conhecido e provido. Processo: RR - 1797/2004-001-23-00.5 Data de Julgamento: 12/11/2008, Relatora Ministra: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 14/11/2008); IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DE ORGANISMO INTERNACIONAL. ONU/PNUD. Os organismos internacionais não detêm imunidade de jurisdição em relação às demandas que envolvam atos de gestão, como na hipótese em que se debate o direito a parcelas decorrentes da relação de trabalho mantida entre as partes. Recurso de Revista conhecido e provido. Processo: RR - 707/2003-002-23-00.4 Data de Julgamento: 15/04/2009, Relator Ministro: José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, 2ª Turma, Data de Divulgação: DEJT 08/05/2009) A Imunidade de Jurisdição não mais subsiste no panorama internacional, nem mesmo na tradicional jurisprudência de nossas Cortes, pelo menos de forma absoluta, porquanto é de se levar em conta a natureza do ato motivador da instauração do litígio. Em outros termos, se o Estado Estrangeiro ou Organismo Internacional atua em matéria de ordem estritamente privada, está a praticar atos de gestão, igualando-se, nesta condição, ao particular e desnudando-se dos privilégios conferidos ao ente público internacional. Do contrário, estar-se-ia colocando em risco a soberania do cumprimento dos princípios constitucionais, notadamente, quando o ato praticado não se reveste de qualquer característica que justifique a inovação do princípio da Imunidade de Jurisdição. No tocante às Agências Especializadas da ONU, como a primeira/ recorrente, embora haja Convenção sobre Privilégios e Imunidades, promulgada pelo Brasil por meio do Decreto n. 52.288, de 24 de julho de 1963, tal instrumento internacional diz respeito aos funcionários destas, não aproveitando diretamente os referidos Organismos Internacionais. O Direito Consuetudinário Internacional, principalmente após a Convenção Européia de 1972 (Europan Convention on State R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 290 Immunity , Basiléia, 16/05/72), vem progredindo no sentido de temperar e abrandar o princípio da imunidade absoluta de jurisdição do Estado Estrangeiro, atribuindo e reservando tal imunidade apenas aos atos de império, excluindo dessa proteção os atos de mera gestão, que decorrem das relações rotineiras entre o órgão diplomático e os súditos do país em que atua. As relações trabalhistas mantidas entre Organismo Internacional e o cidadão nacional, contratado para prestar serviços àquela, incluem-se dentre esses atos de mera gestão, de sorte que não se cogita, na hipótese, de existência de imunidade de jurisdição, estando sujeita à UNESCO à jurisdição trabalhista do país em que atua, realidade esta, aliás, já vivenciada nos países mais democráticos do planeta, como os Estados Unidos da América e a Inglaterra. Destarte, nego provimento ao recurso da UNESCO, no particular, porquanto entendo não ser detentora de imunidade de jurisdição, nos termos da fundamentação supra. 2.3.1.2 Vínculo empregatício com a UNESCO Sustenta a primeira/recorrente a impossibilidade de formação de vínculo empregatício com o reclamante, eis que ausente o principal elemento caracterizador da relação empregatícia, qual seja, a subordinação. Sem razão. “In casu”, a subordinação restou evidenciada, à medida em que havia controle da prestação de serviços do reclamante, embora fosse realizado pela FUNASA, circunstância que não afasta a responsabilidade da UNESCO, por ser a real empregadora, conforme se constata pelos documentos carreados pelo reclamante junto com a exordial, não impugnados pelas recorrentes, notadamente as declarações de fls. 14/17. grau: Nesse ponto, percuciente a análise do juízo de primeiro Analisando-se os documentos verifica-se na declaração de fls. 14/17, não impugnada pela reclamada e pela União, que comprova os fatos relatados pelo R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 291 reclamante, ou seja, que firmou vários contratos por prazo determinado, sucessivos e de forma ininterrupta, sendo incontestável que iniciou suas atividades junto à FUNASA em 01.08.2008 e encerrou as mesmas em 31.12.2008, sendo que sua função, entre outras, era de prover suporte técnico ao Estado e Municípios para o desenvolvimento de ações de saneamento com elaboração de pareceres técnicos e relatórios de atividades, recebendo como remuneração mensal a quantia de R$3.973,66 (três mil, novecentos e setenta e três reais e sessenta e seis centavos) (fls. 300). No tocante à modalidade contratual, se determinado ou indeterminado, concluiu o juízo monocrático (fls. 300): Os contratos por tempo determinado, sucessivamente confeccionados e assinados pelas partes, descaracterizam a relação temporária prevista em lei para o contrato individual de contrato (sic), conforme art. 443, §2º da CLT. O contrato por prazo indeterminado é presumido pela lei enquanto que o contrato por tempo determinado depende de prova robusta não bastando para tanto somente a declaração da vontade das partes, por outro lado, as atividades desenvolvidas pelo reclamante não podem ser tidas como serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo, ao contrário a prestação de serviços com as características expostas na exordial são de natureza contínua e indispensável à sociedade. Irretocável a decisão primeva, no particular. Emerge dos autos que a UNESCO celebrou vários contratos de trabalho com o recorrido, como se vê dos documentos de fls. 14/17, para desenvolvimento de atividades de assessoria e apoio técnico à Divisão de Engenharia de Saúde Pública na implantação e desenvolvimento dos programas de saneamento. A primeira contratação deu-se em 1º/08/2001, perdurando até 31/01/2002. De lá pra cá, embora celebrados vários contratos, o certo é que não houve solução de continuidade na prestação de serviços, devendo, pois, ser considerado pacto único, ou seja, de 1º/08/2001 a 31/08/2008. Quanto aos elementos fáticos-jurídicos da relação de emprego, não sendo negada a prestação de serviço, sendo esta, ao revés, corroborada pelos documentos dos autos, às reclamadas/ recorrentes cabiam o ônus de demonstrar que a contratação não se deu sob a modalidade empregatícia, nos termos do art. 333, inciso II, do CPC, por se tratar de fato modificativo do direito do autor. Não R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 292 se desvencilharam as recorrentes de seu ônus “probandi”, razão pela qual reconheço o vínculo empregatício entre o recorrido e a primeira/ recorrente, no período descrito na inicial. 2.3.1.3 Parcelas contratuais decorrentes do reconhecimento do vínculo e verbas rescisórias Reconhecido o vínculo empregatício entre primeira/recorrente e o recorrido, faz jus este às parcelas contratuais características da pacto laboral, bem como às verbas rescisórias. Nesse espeque, insurgindo-se a primeira/recorrente apenas no que tange à ausência de vínculo empregatício, descurando-se de impugnar diretamente as parcelas pleiteadas, na forma do dispositivo da sentença (fls. 304). 2.3.2 Recurso da FUNASA 2.3.2.1 Imunidade de Jurisdição da UNESCO “In casu”, utiliza-se a segunda/recorrente dos mesmos argumentos da primeira/recorrente, razão pela qual, remeto a análise da questão ao quanto decidido no subitem 2.3.1.1, por serem idênticos os fundamentos. Nego provimento. 2.3.2.2 Vínculo empregatício com a FUNASA Equivoca-se a recorrente quanto à insurgência em tela, eis que o juízo de primeiro grau não declarou a existência de vínculo empregatício do obreiro com a FUNASA, mas tão somente reconheceu a responsabilidade subsidiária deste, por ter figurado na relação fático-jurídica em exame como tomadora de serviços, mesmo porque o reconhecimento de vínculo empregatício com a FUNASA implicaria em afronta ao art. 37, inciso II, da CRFB/88, porquanto inexistiu concurso público. Repiso, que não se cogitar de vínculo empregatício com a segunda/ recorrente, pois realmente o trabalhador foi contratado, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 293 pela primeira/ recorrente, todavia, é inegável a responsabilidade da FUNASA como tomadora dos serviços pelos direitos daqueles trabalhadores que lhe prestaram serviços mediante contrato de locação de mão de obra. Nesse sentido é a Súmula 331 do TST, com a seguinte redação no seu item IV: O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. Contudo, não tendo a segunda/recorrente insurgido-se quanto à condenação como responsável subsidiária, resta prejudicada a análise desta questão. Mantenho, dessa forma, a decisão originária do juízo da 3ª Vara do Trabalho de Rio Branco/AC, reconhecendo a responsabilidade subsidiária da recorrente, nos termos da fundamentação supra. 2.4 Conclusão Dessa forma, conheço dos recursos ordinários interpostos, afasto as preliminares suscitadas e, no mérito, nego-lhes provimento. 3 DECISÃO ACORDAM os Magistrados integrantes da 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, à unanimidade, conhecer dos recursos ordinários interpostos, afastar as preliminares suscitadas, no mérito, negar-lhes provimento, nos termos do voto do Relator. Sessão de julgamento realizada no dia 27 de outubro de 2009. CARLOS AUGUSTO GOMES LÔBO DESEMBARGADOR-RELATOR R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.281-291, jul./dez. 2009 294 295 Processo: classe: órgão julgador: origem: RECORRENTE(S): Advogado(s): RECORRIDO(S): Advogado(s): RELATORA: 02748.2008.000.14.00-6 RECURSO ADMINISTRATIVO TRIBUNAL PLENO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 14ª REGIÃO CARLA MADUREIRA DA ALELUIA SENEM ROLAND STREGE JUIZ PRESIDENTE DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 14ª REGIÃO DESEMBARGADORA VANIA MARIA DA ROCHA ABENSUR APOSENTADORIA POR INVALIDEZ PERMANENTE. CONSTATAÇÃO. LAUDO MÉDICO OFICIAL. Apenas por ocasião do laudo que atesta a incapacidade definitiva é que estará preenchido o pressuposto à aposentação por invalidez, o que determina que a inativação deva regerse pelas normas constitucionais e legais vigentes neste momento, ainda que a aposentadoria somente vigore a partir da data da publicação do ato respectivo, como expressamente previsto no caput do art. 188 da Lei n. 8.112/90. Recurso Administrativo não-provido. 1 RELATÓRIO A recorrente pretende reforma do despacho de fls. 91/95 em que o Desembargador Presidente deste Regional, com base no inciso I do § 1º do art. 40, da Constituição Federal, com redação dada pela EC n. 41/2003, c/c inciso I do art. 186, da Lei n. 8.112/90, e §§ 1º, 2º, 3º, 4º e 5º do art. 1º, da Lei n. 10.887/2004, indeferiu a paridade salarial e aplicou a média aritmética das remunerações das contribuições no Regime Próprio de Previdência Social, em razão da incapacidade da servidora para o trabalho ter ocorrido somente a partir de 30/05/2005, data posterior à EC 41/2003. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 296 Nas razões recursais de fls. 105/109 sustenta restar definida a sua impossibilidade de retorno ao trabalho e de readaptação funcional, no Acórdão do TST/CSJT n. 193076/2008000-00-00-0, devendo este Regional, ainda, prestar esclarecimento quanto à data do início da patologia da servidora em questão, a fim de precisar possibilidade de ocorrência da paridade salarial. Informa que, embora o início de sua patologia tenha ocorrido em meados de 2002, somente em 06/10/2003 houvera prorrogação de suas licenças, ocasionando o chamamento de perícia para constatação da incapacidade para o trabalho e, por conseguinte, a aposentação por invalidez permanente. Aduz ter a Junta Médica Regional emitido parecer no sentido da incapacidade para o trabalho ter ocorrido somente em 30/05/2005 (fl. 83), razão pela qual a Secretaria de Gestão de Pessoas (fls. 85/86v) e a Diretoria de Serviço de Controle Interno e Auditoria (fls. 88/89) opinaram pela aplicação do inciso I do § 1º do art. 40, da CF/88, com redação dada pela EC n. 41/2003, c/c inciso I do art. 186, da Lei n. 8.112/90; §§ 1º/5º do art. 1º e art. 5º da Lei n. 10.887/1004, sem que haja se falar em paridade salarial, portanto, por ser o laudo médico oficial o instrumento hábil a balizar a concessão da aposentadoria por invalidez permanente. O Ministério Público opina às fls. 113/117 pelo improvimento recursal, com fulcro no art. 3º da EC n. 41/2003 c/c § 2º do art. 51, da Orientação Normativa n. 01/2007, do Ministério da Previdência Social. 2 FUNDAMENTOS 2.1 CONHECIMENTO Recurso tempestivo conforme art. 108 da Lei n. 8.112/90, pelo que dele conheço. 2.2 MÉRITO 2.2.1 APOSENTADORIA POR INVALIDEZ PERMANENTE E AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELAS EMENDAS CONSTITUCIONAIS Nº 41/2003 E Nº 47/2005 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 297 Imperioso estabelecer o cotejo da aplicabilidade, no tempo, do § 3º do art. 40, da Constituição Federal e suas regulamentações ordinárias, com a documentação constante dos autos, principalmente o laudo médico, para que se verifique a possibilidade da ex-servidora ter sua aposentadoria remunerada em proventos integrais ou proporcionais à média das remunerações de contribuição. O inciso I do art. 186 da Lei n. 8.112/90 preconiza: Art. 186. O servidor será aposentado: I - por invalidez permanente, integrais quando decorrente de moléstia profissional ou doença incurável, especificada em lei, demais casos; sendo os proventos acidente em serviço, grave, contagiosa ou e proporcionais nos Em que pese não ter sido essa redação alterada, registro se sobreporem as modificações constitucionais sobre ela. Desse modo, ainda que a lei preveja concessão de benefícios de forma diversa, tal disposição encontra-se derrogada pelas constitucionais. Assim, de acordo com a redação embrionária do art. 40 da CF, a aposentadoria de um servidor era garantida nas seguintes situações jurídicas: Art. 40. O servidor será aposentado: I - por invalidez permanente, sendo os proventos integrais quando decorrentes de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, especificadas em lei, e proporcionais nos demais casos; II - compulsoriamente, aos 70 anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de serviço; III – voluntariamente: a) aos 35 anos de serviço, se homem, e aos 30 se mulher, com proventos integrais; b) aos 30 anos de efetivo exercício em funções de magistério, se professor, em 25 anos, se professora, com proventos integrais; c) aos 30 anos de serviço, se homem, e aos 25 se mulher, com proventos proporcionais a esse tempo; d) aos 60 se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de serviço. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 298 As aposentadorias por tempo de serviço, invalidez e compulsória, vinculavam-se a uma regra de paridade entre os proventos com os vencimentos recebidos no cargo ativo (redação originária do § 4º do art. 40, da CF). Nesse sentido, servidor que adquirisse tempo de serviço mínimo teria direito à aposentação pela regra pré-determinada pela CF, ou seja, os proventos da aposentadoria seriam com base no cargo efetivo de igual nomenclatura, como se não houvesse a interrupção na carreira. Portanto, gratificações, aumento de estipêndios, reposicionamento e outras vantagens seriam extensivos ao servidor aposentado. Tal regra foi vista com uma tábua de salvação dos estipêndios dos aposentados, por sofrerem reajustes e evoluções compassadas com os servidores paradigmas em atividade. Contudo, na tentativa de sanar os problemas financeiros da Previdência Social, o Executivo, no curso dos anos, vem alterando as normas previdenciárias com o objetivo de tornar o sistema previdenciário mais atrativo, incluindo em seu contexto os servidores públicos. Como bem ressaltado no despacho de fls. 91/95, da lavra do então Presidente deste Regional, com a EC n. 20, de 15/12/1998, a redação original do art. 40 sofreu substancial alteração, deixando de ser aposentadoria por tempo de serviço para um regime de previdência em caráter contributivo, “impondo observância a um tempo mínimo no serviço público e no cargo, idade mínima e tempo de contribuição”. Apesar de reformado o art. 40 da CF, seu § 4º manteve a revisão dos proventos de aposentadoria na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificasse a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendido, aos inativos, qualquer benefício ou vantagem posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se dera a aposentadoria. Contudo, com o advento da EC n. 41/2003, foi implementada mais uma alteração no art. 40, da CF, desde a promulgação da CF, em 05/10/1988, sendo grafada da seguinte forma: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 299 Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídos nas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo. § 1º. Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17: I - por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, na forma da lei; II - compulsoriamente, aos 70 anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição; III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de 10 anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições: a) 60 anos de idade e 35 de contribuição, se homem, e 55 anos de idade e 30 de contribuição, se mulher; b) 65 anos de idade, se homem, e 60 anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição. Desse modo, a EC n. 41/03 fixou que por ocasião da concessão dos proventos de aposentadoria e as pensões, será seguida a regra das remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência, com a devida atualização, na forma da lei, sendo abolida a paridade dos aposentados com seus pares em atividade, em razão do novo critério ser o contributivo e levar em consideração os valores recolhidos ao regime previdenciário, já atualizados. Tal regra aplica-se às novas aposentadorias concedidas aos servidores que ingressaram no serviço público após a publicação da EC n. 41/2003, haja vista que as antigas, conforme preconizado no inciso XXXVI do art. 5º, da CF, continuam sendo destinatárias de paridade com os servidores em atividade, revistas na mesma proporção e data que houver modificação da remuneração dos servidores ativos, sendo, portanto, estendido R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 300 aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, na forma do art. 7º da EC n. 41/2003. Contudo, o art. 2º da EC n. 41/2003 assegura o direito à aposentadoria voluntária com proventos calculados de acordo com os §§ 3º e 17 do art. 40, da CF. Tal regra permite alteração do quantum recebido nos proventos de aposentadoria do servidor público, vez que o art. 2º, da EC n. 41/2003 estipula que o servidor que se aposentar pelas regras passadas, terá seu provento reduzido para cada ano antecipado, em relação aos limites de idade estabelecidos na regra geral, ou seja, 60 anos para homem e 55, para as mulheres. Entendo ser inconstitucional tal redução que não estava prevista na regra de transição da EC n. 20/98, por afronta ao § 4º do IV do art. 60, da CF. Contudo, ressalto que os cálculos dos valores a serem pagos na aposentadoria foram mantidos pela atual reforma da aposentadoria do servidor público, obedecendo o § 2º, do art. 40, da CF, com redação dada pela EC n. 20/98, ou seja, os proventos de aposentadoria e pensões, por ocasião de sua concessão, não poderão exceder à remuneração do respectivo servidor, no cargo em que se deu a aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão. Tal regra deve ser interpretada como vem estabelecido no art. 7º da EC n. 41/2003, já que os servidores aposentados ou os pensionistas continuam sendo destinatários de paridade com os servidores em atividade, em razão do direito adquirido e o ato jurídico perfeito das respectivas aposentadorias e pensões. Portanto, a regra da EC n. 41/2003 só é aplicada aos novos casos, não tendo o condão de retroagir para alcançar as pensões ou aposentadorias anteriores à sua existência. Ademais, a proposta de Emenda à Constituição n. 227A/2004, conhecida como PEC paralela da Reforma da Previdência, aprovada em agosto/2004, alterou a EC n. 41/2003 assegurando, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 301 aos servidores públicos que se encontravam em exercício na data da publicação de aludida Emenda (19/12/2003), a possibilidade de se aposentarem com proventos integrais, calculados com base na remuneração do cargo efetivo, mantendo a regra de paridade a que alude o art. 7º dessa Emenda, aos que se aposentarem com base no seu art. 6º. 2.2.2 DO LAUDO MÉDICO OFICIAL A aposentadoria por invalidez permanente é um benefício pago ao servidor que ficar permanentemente incapaz para o trabalho, mediante inspeção atualizada por órgão médico pericial. Corresponde à passagem do servidor para a inatividade com proventos integrais ou proporcionais. Com efeito, dispõe o art. 188 da Lei n. 8.112/90: Art. 188. A aposentadoria voluntária ou por invalidez vigorará a partir da data da publicação do respectivo ato. § 1º A aposentadoria por invalidez será precedida de licença para tratamento de saúde, por período não excedente a 24 (vinte e quatro) meses. § 2º Expirado o período de licença e não estando em condições de reassumir o cargou ou de ser readaptado, o servidor será aposentado. § 3º O lapso de tempo compreendido entre o término da licença e a publicação do ato da aposentadoria será considerada como prorrogação da licença. Ademais, conforme estabelecido no art. 51 e seu § 2º, da Orientação Normativa MPS/SPS Nº 1, de 23 de janeiro de 2007: Art. 51. O servidor que apresentar incapacidade permanente para o trabalho, conforme definido em laudo médico pericial, será aposentado por invalidez, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, hipóteses em que os proventos serão integrais, observado quanto ao seu cálculo, o disposto no art. 56. § 1º Omissis R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 302 § 2º A aposentadoria por invalidez será concedida com base na legislação vigente na data em que laudo médico-pericial definir como início da incapacidade total e definitiva para o trabalho. (grifos ausentes no original). Assim, o benefício de aposentadoria por invalidez é devido a partir da apresentação do laudo médico oficial que constatou a redução na capacidade laborativa do segurado, e não como o aduzido pela ora recorrente, no qual ”a concessão de aposentadoria com ou sem paridade salarial, depende do quesito de em que data fora contraída a moléstia, se anterior ou posterior a 19.02.2004”. Compulsando os autos constato haver laudo pericial à fl. 49, emitido pela Junta Médica Oficial deste Regional, que atesta a incapacidade da servidora, assim opinando pela aposentadoria por invalidez permanente com proventos proporcionais, com arrimo no inciso I, do art. 186 c/c o § 3º do art. 188, da Lei n. 8.112/90 e no art. 4º da Resolução n. 37, de 20/09/1995 do Tribunal de Contas da União. A Seção de Legislação, Aposentadoria e Pensões, por sua vez, emitiu parecer às fls. 51/57 em que concluíra pela concessão da aposentadoria por invalidez permanente com percepção de proventos proporcionais à servidora, ressaltando, contudo, que o cálculo dos proventos deverá observar os §§ 1º, 2º e 5º do art. 1º e art. 5º, da Lei n. 10.887/2004 e as disposições contidas no § 21 do art. 40 da CF, com redação dada pela EC n. 47/2005. No mesmo sentido, opinou o Serviço de Controle Interno e Auditoria, conforme fls. 61/63. Contudo, em obediência ao despacho de fl. 02, a Secretaria de Gestão de Pessoas (fls. 81/81v.) sugeriu o retorno dos autos à Diretoria de Saúde para manifestação objetiva acerca da “data que definiu como início da incapacidade total e definitiva para o trabalho”. Em resposta, a Junta Médica Oficial (fl. 83) exarou parecer à fl. 83 para assim reiterar o despacho de fl. 79, que definiu a ocorrência da incapacidade para o trabalho “somente a partir de 30/05/2005, sem perspectiva para uma possível readaptação”. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 303 Após essas manifestações, a Secretária de Gestão de Pessoas entendeu que “o documento hábil para definir como se dará a aposentadoria, ou seja, se com paridade ou sem paridade e se de forma integral ou proporcional, é o laudo médico”, considerando os preceitos do § 2º, do art. 5º, da Orientação Normativa da MPS/SPS n. 1, de 23 de janeiro de 2007, ipsis litteris: Art. 51. ... (Omissis) § 1º. ... (omissis); §2º. A aposentadoria por invalidez será concedida com base na legislação vigente na data em que laudo médico-pericial definir como início da incapacidade total e definitiva para o trabalho. (grifei). Neste diapasão, nas hipóteses de aposentadoria por invalidez, há de se observar, quanto à legislação aplicável, a data do laudo que atesta a incapacidade definitiva, e não a do momento da exteriorização da moléstia que conduziu à inativação, como pretende a aposentada, ora recorrente. Assim, como a divergência reside na definição do momento em que são tidos por preenchidos os pressupostos necessários à aposentação por invalidez, tendo em vista que, de conformidade com a Súmula 359 do Supremo Tribunal Federal, a aposentadoria rege-se pela lei vigente ao tempo que o beneficiário os reuniu. E isto porque o servidor só passa a ter direito adquirido à aposentadoria no momento em que reúne os requisitos para a sua concessão, ou seja, quando o direito incorpora-se ao seu patrimônio jurídico. A aposentadoria por invalidez tem por pressuposto a invalidez permanente, reconhecida por laudo médico do órgão de perícia competente, devendo ser precedida por licença para tratamento de saúde, em prazo não superior a 24 meses (§ 1º do art. 188, da Lei n. 8.112/90). Logo, no momento do aparecimento da enfermidade, a então servidora não havia reunido todos os pressupostos necessários à aposentação, já que não configurada a invalidez permanente. Ressalto que a razão da previsão legal de prévia licença para tratamento de saúde consiste em que, diante dos inúmeros avanços da medicina, nem sempre é possível afirmar, desde o aparecimento da moléstia, que dela, efetivamente, advirá R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 304 incapacidade permanente. O laudo que conclui pela invalidez permanente não se limita a atestar uma situação pré-existente, já que, embora grave a enfermidade, pode ocorrer que o servidor readquira as condições laborais e não venha a ser inativado, como também pode ocorrer o inverso, isto é, que a moléstia que inicialmente não se mostrava tão severa se agrave, de molde a determinar a inativação. Tudo a demonstrar que, quando licenciado o servidor para tratamento de saúde, não é possível afirmar que já estejam preenchidos os pressupostos à inativação por invalidez. Assim, apenas por ocasião do laudo que atesta a incapacidade definitiva é que estará preenchido o pressuposto à aposentação por invalidez, o que determina deva a inativação reger-se pelas normas constitucionais e legais vigentes neste momento, ainda que a aposentadoria somente vigore a partir da data da publicação do ato respectivo, como expressamente previsto no caput do art. 188 da Lei n. 8.112/90. Note-se que o § 2º do art. 3º, da EC n. 41/2003, assegurou a concessão de aposentadoria de conformidade com as regras anteriores apenas àqueles servidores que, até a data da sua promulgação, tivessem cumprido todos os requisitos para a obtenção do benefício. No caso em exame, a servidora encontrava-se licenciada para tratamento de saúde desde outubro/2003, mas o laudo que atestou a incapacidade definitiva somente veio a ser expedido na vigência da EC n. 41/2003 e da Lei Federal n. 10.887/04, o que a coloca fora do alcance da garantia do mencionado § 2º do art. 3º, já que não preenchido o pressuposto básico à inativação por invalidez enquanto vigentes as regras anteriores, conquanto não atestada a incapacidade definitiva. Portanto, não há que se falar em paridade salarial, considerando que o laudo emitido pela junta médica (registrando que a servidora perdeu a capacidade para o trabalho) está datado de 30/05/2005, posterior, portanto, à promulgação de EC n. 41/2003, segundo a qual a base de cálculo das aposentadorias passou a ser a média das remunerações de contribuição do servidor (art. 40, §3º), cuja eficácia plena da norma ocorreu com a edição da Medida Provisória n. 167, de 19/02/2004, convertida na Lei n. 10.887/2004. 2.3 CONCLUSÃO R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 305 Dessa forma, conheço e nego provimento ao apelo. 3 DECISÃO ACORDAM os Magistrados integrantes do Pleno do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, à unanimidade, conhecer do recurso administrativo; no mérito, negarlhe provimento, nos termos do voto da Relatora. Sessão de julgamento realizada no dia 19 de fevereiro de 2009. Porto Velho-RO,19 de fevereiro de 2009. VANIA MARIA DA ROCHA ABENSUR DESEMBARGADORA-RELATORA R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.293-303, jul./dez. 2009 306 307 processo: classe: 0000300-67.2009.514.0151 Recurso Ordinário(00003.2009.151.1 4.00-4) órgão julgador: 2ª TURMA origem: VARA DO TRABALHO DE BURITIS - RO 1º RECORRENTE: ELENICE SANTOS DE OLIVEIRA TEIXEIRA Advogada: Corina Fernandes Pereira 2º RECORRENTE: MADEMARCO MADEIRAS IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LTDA - ME Advogado: Fernando Bertuol Oietrobon 1ª RECORRIDA: MADEMARCO MADEIRAS IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LTDA - ME Advogado: Fernando Bertuol Oietrobon 2ª RECORRIDA: ELENICE SANTOS DE OLIVEIRA TEIXEIRA Advogada: Corina Fernandes Pereira RELATORA: JUÍZA CONVOCADA ARLENE REGINA DO COUTO RAMOS REVISORA: DESEMBARGADORA SOCORRO MIRANDA PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA ENTRE O PEDIDO E A SENTENÇA. DANOS EMERGENTES. AUSÊNCIA DE PEDIDO. ARTIGOS 128 E 460 DO CPC. JULGAMENTO EXTRA PETITA. Verificando-se a condenação da parte em parcela não requerida na inicial, deve-se reduzir o julgado de forma a adequá-lo aos limites em que a lide foi proposta, em respeito ao princípio da congruência entre o pedido e a sentença, previsto nos artigos 128 e 46 do CPC. INDENIZAÇÃO A TÍTULO DE DANO MORAL. QUANTIFICAÇÃO. MAJORAÇÃO. Revelando-se o quantum indenizatório fixado em primeiro grau desproporcional à extensão do dano, deve-se dar provimento ao apelo para majorá-lo. DANO ESTÉTICO. Abstraindo-se do contexto fático dos autos que a lesão sofrida pela obreira derivada de acidente de trabalho imprimiu-lhe deformação estética, tal constatação autoriza o deferimento de indenização a título de dano estético. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 308 1 RELATÓRIO Trata-se de recurso ordinário (fls. 178/189) interposto pela reclamante, Elenice Santos de Oliveira Teixeira, face a decisão monocrática de fls. 164/177 que julgou parcialmente procedentes os pedidos constantes na inicial (fls. 02/17). Pleiteia a recorrente a reforma da aludida decisão, visando o reconhecimento do valor salarial declinado na inicial (R$ 500,00), a majoração das indenizações por danos emergentes, lucros cessantes e dano moral, a condenação da reclamada ao pagamento de indenização por dano estético, no ônus da sucumbência, ao tempo em que renova o pedido de concessão dos benefícios da Justiça Gratuita. Sem contrarrazões pela reclamada (MADEMARCO – Madeiras Importação e Exportação Ltda. ME), conforme certidão de expiração de prazo de fl. 213. Ainda em face da mencionada decisão, a reclamada interpôs recurso ordinário (fls. 190/200) pleiteando sua reforma, aduzindo que não houve incapacidade laborativa da reclamante. Alternativamente, requer a mitigação do valor da pensão mensal a título de incapacidade parcial. Sem contrarrazões pela reclamante, consoante certidão de expiração de prazo de fl. 213. Dispensada a remessa dos autos ao Ministério Público do Trabalho por força de previsão regimental deste e. Tribunal (art. 89). 2 FUNDAMENTOS 2.1 CONHECIMENTO 2.1.1 DO RECURSO ORDINÁRIO OBREIRO O recurso é tempestivo, considerando que a reclamante ficou ciente da decisão de fls. 164/177 em 25.08.2009 (terçafeira), nos termos da Súmula n. 197 do Tribunal Superior do R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 309 Trabalho (TST; fl. 150), e protocolizou seu apelo em 02.09.2009 (quarta-feira; fl. 178), portanto, dentro do prazo legal. A representação processual encontra-se regular (fl. 18). No que se refere às custas processuais, perceba-se que foram deferidos os benefícios da Justiça Gratuita à autora (fl. 177), além de a reclamada ter sido condenada a esse título (fl. 177). Inexigível depósito recursal por se tratar de recurso obreiro, interpretação contrario sensu que se extrai do disposto no art. 899 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Por outro lado, nota-se que a reclamante renova o pedido de deferimento dos benefícios da Justiça Gratuita. Nesse aspecto, observa-se que a r. sentença, precisamente à fl. 177, já apreciou o pedido, deferindo os benefícios da gratuidade da justiça à obreira. Desse modo, no ponto em apreço, carece de interesse a reclamante, não merecendo que tal pedido ultrapasse a barreira do conhecimento. A reclamada, apesar de devidamente notificada em 09.10.2009 (sexta-feira; fl. 212) para, querendo, apresentar contrarrazões, manteve-se inerte, conforme certidão de expiração de prazo de fl. 213. Assim, preenchidos os pressupostos extrínsecos e intrínsecos de admissibilidade, conhece-se do recurso ordinário obreiro (fls. 178/189), à exceção do pedido de Justiça Gratuita, por faltar interesse recursal à reclamante, no particular. 2.1.2 DO RECURSO ORDINÁRIO PATRONAL O recurso é tempestivo, considerando que a reclamada ficou ciente da decisão de fls. 164/177 em 25.08.2009 (terça-feira), nos termos da Súmula n. 197 do TST (fl. 150), e protocolizou seu apelo em 02.09.2009 (quarta-feira; fl. 190), portanto, dentro do prazo legal. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 310 (fl. 39). A representação processual encontra-se em ordem Custas processuais em ordem à fl. 202. Contudo, percebe-se irregularidade no que tange ao recolhimento do depósito recursal, consoante restará evidenciado nas próximas linhas. Com efeito, ao examinar o recurso interposto pela reclamada, observa-se que a mesma não fez a escolha certa da guia adequada para o devido recolhimento do depósito recursal. Ocorre que, embora tenha providenciado o depósito recursal relativo ao seu apelo (fls. 201 e 203/204), não o fez na guia própria, qual seja, Guia de recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social – GFIP, tal como se encontra determinado pelo art. 899, §§ 4º e 5º, da CLT, c/c a Instrução Normativa n. 26/04 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho. Segundo a mencionada Instrução Normativa, o depósito recursal previsto no art. 899 da CLT deverá ser efetuado mediante a utilização da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social – GFIP. Para melhor compreensão da matéria, segue adiante a transcrição literal da referida espécie normativa: INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 26 Dispõe sobre a guia de recolhimento do depósito recursal. O Tribunal Superior do Trabalho, no gozo de suas prerrogativas constitucionais e legais, Considerando que o depósito recursal, nos termos do art. 899 da CLT, deve ser feito em conta vinculada do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, aberta para fim específico; Considerando que os recolhimentos, a título de depósito recursal, realizam-se por intermédio da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social – GFIP, de conformidade com o disposto no item 10.2 da Circular Caixa nº 321, de 20 de maio de 2004; Considerando a possibilidade da emissão da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social pelo aplicativo da Caixa Econômica Federal denominado “Sistema Empresa de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social - SEFIP” R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 311 (GFIP emitida eletronicamente), conforme previsto no item 4.1.1 da Circular Caixa nº 321, de 20 de maio de 2004; Considerando a inovação trazida pela Circular Caixa nº 321, de 20 de maio de 2004, item 10.4, autorizando o recolhimento do depósito recursal mediante a utilização da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social – GFIP, emitida pelo aplicativo “SEFIP” (GFIP emitida eletronicamente), sem prejuízo do uso da GFIP avulsa; RESOLVEU expedir as seguintes instruções: I - O depósito recursal previsto no art. 899 da CLT poderá ser efetuado mediante a utilização da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social - GFIP, gerada pelo aplicativo da Caixa Econômica Federal denominado “Sistema Empresa de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social - SEFIP” (GFIP emitida eletronicamente), conforme Anexo 1, ou por intermédio da GFIP avulsa, disponível no comércio e no sítio da Caixa Econômica Federal (Anexo 2). II - A GFIP emitida eletronicamente, para fins de depósito recursal, ostentará no seu cabeçalho o seguinte título “Guia de Recolhimento para Fins de Recurso Junto à Justiça do Trabalho”. III - O empregador que fizer uso da GFIP gerada eletronicamente poderá efetuar o recolhimento do depósito judicial via Internet Banking ou diretamente em qualquer agência da Caixa Econômica Federal ou dos bancos conveniados. IV-A comprovação da efetivação do depósito recursal, dar-se-á obrigatoriamente das seguintes formas: No caso de pagamento efetuado em agências da Caixa Econômica Federal ou dos bancos conveniados, mediante a juntada aos autos da guia GFIP devidamente autenticada, e na hipótese de recolhimento feito via Internet, com a apresentação do “Comprovante de Recolhimento/FGTS - via Internet Banking” (Anexo 3), bem como da Guia de Recolhimento para Fins de Recurso Junto à Justiça do Trabalho (Anexo 2), para confrontação dos respectivos códigos de barras, que deverão coincidir. Registre-se que tal entendimento é pacífico nesta e. Corte, conforme as ementas dos julgados a seguir transcritas: RECURSO ORDINÁRIO. DEPÓSITO RECURSAL. GUIA IMPRÓPRIA. DESERÇÃO. O depósito recursal não realizado em guia GFIP, na conta vinculada do trabalhador, na forma dos parágrafos 4º e 5º do art. 899, da CLT, torna o recurso deserto. (Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, 2ª Turma, RO, 00018.2007.401.14.00-9, Relator: Mário Sérgio Lapunka; Data de Julgamento: 10/10/2007, Data de Publicação: 15/10/2007) R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 312 DEPÓSITO RECURSAL EFETIVADO EM GUIA PARA RECOLHIMENTO JUDICIAL TRABALHISTA. DESERÇÃO. Dispõem explicitamente os §§ 4° e 5° do art. 899 da CLT que o depósito recursal deverá ser procedido na conta vinculada do FGTS de titularidade do obreiro recorrido, devendo ser utilizada a Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social (GFIP) para efetuar tal recolhimento, consoante se extrai das Instruções Normativas n°’s 15, 18 e 26, do colendo Tribunal Superior do Trabalho. Portanto, o recolhimento em guia diversa caracteriza deserção, mormente se não há notícia de que o sistema bancário estivesse inoperante dentro do prazo recursal, e o vínculo empregatício é incontroverso. (Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, 2ª Turma, RO, 00491.2007.006.14.00-5, Relatora: Socorro Miranda, Data de Julgamento: 13/12/2007, Data de Publicação: 18/12/2007) RECURSO ORDINÁRIO. DEPÓSITO RECURSAL EM GUIA IMPRÓPRIA. DESERÇÃO. O depósito recursal não realizado em Guia de recolhimento do FGTS e Informações à Previdência - GFIP, na conta vinculada do trabalhador, na forma prevista no art. 899, §§ 4º e 5º, da CLT, bem como na Instrução Normativa do Colendo TST configura irregularidade que resulta na deserção do apelo, impedindo, por conseguinte, o seu conhecimento. (Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, 2ª Turma, RO, 00259.2008.151.14.00-0, Relatora: Juíza Convocada Arlene Regina do Couto Ramos, Data de Julgamento: 05/02/2009, Data de Publicação: 10/02/2009) No caso sub oculi, de acordo com o que se verifica das fls. 201 e 203/204, a reclamada-recorrente providenciou o recolhimento do depósito recursal em guia específica para depósito judicial trabalhista, a qual, não se presta para o fim colimado nesta ocasião. Desse modo, havendo irregularidade no preparo no que tange ao depósito recursal, não merece o apelo ultrapassar a barreira do conhecimento. Por oportuno, registre-se que o reclamante, apesar de devidamente notificado em 09.10.2009 (sexta-feira; fl. 212) para, querendo, apresentar contrarrazões, mantevese inerte, conforme certidão de expiração de prazo de fl. 213. Assim, deixa-se de conhecer do presente recurso R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 313 ordinário patronal (fls. 190/200) por irregularidade no tocante ao recolhimento do depósito recursal. Contudo, esta Relatoria restou vencida pela Douta Maioria, que decidiu por acompanhar a tese divergente sustentada pela Exma. Desembargadora Revisora, transcrita in verbis: VOTO DE REVISORA – RAZÕES DE DIVERGÊNCIA QUANTO A PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO APELO PATRONAL, POR DESERÇÃO. Com efeito, a diretriz que se colhe do art. 899 da CLT em seus §§ 1º e 2º, calha-se no sentido de que o depósito recursal deve ser efetuado na conta vinculada do reclamante, e mais ainda, mediante a “Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social” - GFIP. É oportuno mencionar ainda, que Tal determinação é reiterada pela Instrução Normativa n° 26/2004 do TST. Logo, em situações como no caso vertente, em que esse ônus processual, acabou sendo realizado pela parte valendo-se de uma guia de depósito judicial trabalhista, a primeira ilação que emerge é de que o preparo está defeituoso, configurando, por conseguinte, uma deserção que impedirá a análise intrínseca do recurso. De fato, no âmbito desta 2ª turma perdurou até bem recentemente essa linha de entendimento, sendo que esta mesma magistrada proferiu inúmeros julgamentos com espeque nessa linha de raciocínio anteriormente articulada. Porém, depois de refletir com mais vagar sobre a questão, e, sobretudo de observar que está havendo uma mudança de padrão de análise no particular, já que o próprio c. Tst, a despeito da instrução normativa de sua lavra, vem decidindo, tanto na sbdi-1, como nas suas diferentes turmas por suplantar a aludida irregularidade, resolvi propor aos meus pares a adoção desse padrão de entendimento no âmbito deste juízo colegiado revisional. A título de ilustração do mencionado no parágrafo transato, considere as seguintes decisões: RECURSO DE EMBARGOS INTERPOSTO SOB A VIGÊNCIA DA LEI Nº 11.496/2007, QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 894 DA CLT. - RECURSO DE REVISTA - CONHECIMENTO E PROVIMENTO - DEPÓSITO RECURSAL - RECOLHIMENTO COMPROVAÇÃO - GUIA DE DEPÓSITO DIVERSA DA PREVISTA NA INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 26/2004/ TST - VALIDADE - Não obstante a Instrução Normativa R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 314 26/2004 aluda à utilização da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social - GFIP para recolhimento do depósito recursal, previsto no artigo 899 da CLT, é válida a utilização da Guia para Depósito Judicial Trabalhista, para o recolhimento respectivo, porque não há previsão legal no sentido de a incorreção da Guia de Recolhimento do Depósito Recursal gerar a deserção do recurso e, ainda, porque o equívoco havido não impossibilitava a identificação para que se destina o depósito, alcançando, na hipótese, o princípio da finalidade essencial do ato processual. Recurso de Embargos conhecido e desprovido- (E-EDRR-486/2005-026-09-00.2, Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula, SBDI-1, DEJT 27/03/2009). -RECURSO ORDINÁRIO. DEPÓSITO RECURSAL. GUIA DE DEPÓSITO JUDICIAL. DESERÇÃO. NÃOOCORRÊNCIA. Afigura-se regular o depósito recursal para fins de recurso quando efetuado mediante guia de depósito judicial trabalhista, observados o prazo e valor legais, e encontrando-se consignados na guia respectiva o nome do reclamante e do reclamado, a Vara do Trabalho em que tramitou o feito e o número do processo, além da autenticação do Banco recebedor da quantia. Não caracteriza a deserção do recurso o fato de o depósito ter sido efetuado em guia diversa da GFIP e fora da conta vinculada do FGTS. Recurso de embargos conhecido e não provido- (E-RR-4179/2006047-12-00.6, Rel. Min. Lelio Bentes Corrêa, SBDI-1, DEJT 13/03/2009). -AGRAVO DE INSTRUMENTO. Dá-se provimento ao Agravo de Instrumento para melhor exame da indicada violação ao art. 5º, inc. LV, da Constituição da República. DEPÓSITO RECURSAL REALIZADO EM GUIA PARA DEPÓSITO JUDICIAL TRABALHISTA. DESERÇÃO. -Considera-se válida para comprovação do depósito recursal na Justiça do Trabalho a guia respectiva em que conste pelo menos o nome do Recorrente e do Recorrido; o número do processo; a designação do juízo por onde tramitou o feito e a explicitação do valor depositado, desde que autenticada pelo Banco recebedor.- (Instrução Normativa 18 do TST). Recurso de Revista de que se conhece e a que se dá provimento(RR-348/2005-011-21-40.3, Rel. Min. João Batista Brito Pereira, 5ª Turma, DEJT 06/02/2009). A partir desse novo horizonte, pude perceber que, embora realmente a guia utilizada pela recorrente tenha sido inadequada, o depósito foi efetivamente efetuado, e como os valores nele consubstanciados estão à disposição do Juízo, a finalidade primordial de tal depósito foi alcançada, qual seja, a garantia do Juízo para o caso de confirmação da decisão. Afigura-se basilar para se ter por válida tal linha de entendimento a aplicação, na hipótese, tanto do princípio da instrumentalidade das formas, como o da boa-fé, que pode ser confirmada a partir da inequívoca intenção da parte em recorrer, tanto que R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 315 promoveu o recolhimento do numerário, apenas tendo utilizado de um meio que convencionou-se como sendo impróprio. Destarte, propugno ser possível superar o aspecto meramente formal da não utilização da guia gfip no recolhimento do depósito recursal, de modo a declarar que o apelo merece ser apreciado, já que, como demonstrado o objetivo precípuo – garantia do juízo, restou atendido. Essas são as razões em que assentam a presente divergência. autos. Passa-se, pois, ao exame dos demais aspectos dos 2.1.3 DA PRELIMINAR DE JULGAMENTO EXTRA PETITA SUSCITADA DE OFÍCIO A parte autora, na peça inicial (fls. 02/17), no que tange ao alegado dano material, requereu o seguinte: XII – DA PENSÃO ALIMENTÍCIA A reclamante foi contratada para exercer a função de torneira, e nesta condição percebia mensalmente uma remuneração de R$ 500,00 (Quinhentos reais), o que resta-se prejudicado posto que não pode laborar com apenas uma das mãos. Com o acidente a Requerente teve sua capacidade laborativa diminuída, uma vez que ficou com seqüelas definitivas de movimento e força da mão. Nos termos do art. 950 do CC: “Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu”. Assim, em decorrência do acidente ter ocorrido pela omissão da Reclamada, e pela não observância de preceitos básicos de segurança para com seus funcionários, requer seja condenada ao pagamento de pensão alimentícia mensal, a ser fixada a partir da sentença até que a Reclamante complete a idade necessária e se torne apta a concessão de benefício por parte do INSS. XIII – DO PEDIDO Ante Exposto, requer que seja a Reclamada compelida a pagar as seguintes verbas calculadas com base na remuneração da Reclamante no valor de R$ 500,00 (Quinhentos reais). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 316 [...] 5. Seja o Reclamado compelido ao pagamento de verba alimentar a Reclamante no importe de R$ 500,00 (Quinhentos reais) mensais até a idade de atingir o benefício previdenciário, em decorrência de a Reclamante ter se tornado permanentemente inválida para o trabalho, o que impossibilita o provimento de seu sustento; (ipsis litteris; fls. 13/16; sublinha-se). Para interpretar o que, realmente, tenciona a parte, devese ter em mira, de antemão, que a indenização por dano material, em caso de acidente do trabalho ou doença ocupacional em que se alega a existência de perda ou redução da capacidade laborativa, traduz-se em 3 (três) modalidades: danos emergentes, lucros cessantes e pensão. Ao tratar do dano material, bem como a respeito da natureza jurídica da pensão, Sebastião Geraldo de Oliveira, in Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional, 2ª edição, LTr, às fls. 182, 183, 213 e 225, expõe o seguinte: [...] O Código Civil estabelece no art. 402 que o ressarcimento dos danos abrange parcelas de duas naturezas: o que efetivamente o lesado perdeu e o que razoavelmente deixou de ganhar. Na apuração do que a vítima efetivamente perdeu temos os chamados danos emergentes ou danos positivos; na avaliação do que deixou de ganhar estaremos diante dos lucros cessantes ou danos negativos. [...] O dano emergente é aquele prejuízo imediato e mensurável que surge em razão do acidente do trabalho, causando uma diminuição no patrimônio do acidentado. É o prejuízo mais visível porque representa dispêndios necessários e concretos cujos valores são apuráveis nos próprios documentos de pagamento, tais como: despesas hospitalares, honorários médicos, medicamentos, aparelhos ortopédicos, sessões de fisioterapia, salários para acompanhantes no caso de a vítima necessitar de assistência permanente de outra pessoa ou, nos casos de óbito, os gastos com funeral, luto, jazigo, remoção do corpo etc. [...] Além das perdas efetivas dos danos emergentes, a vítima pode também ficar privada dos ganhos futuros, ainda que temporariamente. Para que a reparação do prejuízo seja completa, o art. 402 do Código Civil determina o cômputo dos lucros cessantes, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 317 considerando-se como tais aquelas parcelas cujo recebimento, dentro da razoabilidade, seria correto esperar. [...] Por outro lado, se o art. 950 do Código Civil assegura ao acidentado que ficou inválido uma pensão correspondente “à importância do trabalho para que se inabilitou”, não há razão lógica ou jurídica em deferir pensão com apoio em outras bases para os dependentes, no caso de acidente de trabalho fatal. Discorrendo sobre esse ponto, concluiu Rui Stoco: “Ambas as hipóteses são de pensionamento mensal, seja aos dependentes do morto, seja à própria vítima, de modo que a utilização das expressões “alimentos” no art. 948 e “pensão” no art. 950 não significa que haja diferença ontológica e substancial entre uma e outra. Ambas têm características de prestação alimentar, mas não caráter alimentar propriamente dito. [...] Sendo reparatória a natureza jurídica da pensão (item 9.3), a sua base de cálculo deve ser apurada considerando os rendimentos que a vítima percebia e não as necessidades dos beneficiários. (ipsis litteris, sublinha-se) Ora, se o pedido da autora, conforme transcrito, trata de indenização por dano material “em decorrência de a Reclamante ter se tornado permanentemente inválida para o trabalho”, diante dos conceitos anteriormente consignados, é claro que está vindo a Juízo requerer tão-somente pensão, o que deixa evidente, por meio do pedido constante do item “5”. Note-se que, em momento algum, a parte autora, na peça vestibular (fls. 02/17), apontou a existência de efetivos danos emergentes ou lucros cessantes. Contudo, frisou a existência de incapacidade laborativa geradora do dever de indenizar, por meio de pensão mensal. Ademais, o art. 950 do Código Civil a que faz referência a reclamante na citada peça, aborda, justamente, a hipótese de pensão, “Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho [...]”. Em síntese, se a parte alega a existência de suposta perda laborativa, a parcela correspondente, em tese, se cabível, é pensão e não outra, haja vista a aludida previsão constante do ordenamento jurídico pátrio. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 318 Entretanto, a decisão de primeiro grau, quanto ao dano material pleiteado, assim se manifestou: A autora postula indenização por incapacidade permanente parcial. Quanto aos danos materiais, devem ser indenizados os emergentes, assim como os lucros cessantes (Código Civil, art. 402). Emergentes aqui são os sofridos imediatamente pelo trabalhador em razão do necessário tratamento médico. Lucros cessantes são o custo que o obreiro, em razoável estimativa, vai ter de suportar ao longo da vida por motivo da lesão sofrida. No que tange aos emergentes, observa-se à fl. 31, confirmando a alegação autoral, que foi indeferido o requerimento de auxílio-doença apresentado em 01/12/2008 porque considerada não segurada a trabalhadora, pela irregularidade do seu vínculo empregatício. O benefício veio a ser concedido apenas em 13/01/2009 (f. 74). Cabe por isso indenização desse benefício quanto ao interregno situado entre a data do acidente (13/11/2008) e o instante da concessão (13/01/2009), de dois meses. Fixo à indenização valor equivalente à remuneração total que teria a obreira nesse período, observado o salário contratual, o adicional de insalubridade e as horas extras costumeiras. Considerando o salário contratual de R$450,00, o acréscimo de 20% do salário mínimo por insalubridade (20% x R$415,00=R$83,00), as horas extras costumeiras [30d/7d x 6h x (R$450,00 + R$83,00)x1,50/220h=R$93,45], a remuneração mensal total da demandante alcançava R$626,45 na data do acidente. A referida indenização do período mencionado atinge, pois, R$1.252,90. Passando aos lucros cessantes, o acidente de trabalho acarretou à obreira incapacidade permanente parcial, decorrente da perda por amputação, em sua mão esquerda, das falanges medial e distal dos dedos indicador, médio e mínimo, além da perda total do dedo anular, já que a amputação abrangeu parte de sua falange proximal (f. 32/34, 102). Embora o laudo pericial de f. 102/103 consigne que a capacidade laborativa da reclamante não foi afetada, há nisso evidente erro material; quis o perito significar que não resultou incapacidade total. A incapacidade permanente total implicaria aposentadoria, de valor mensal correspondente à remuneração habitual da obreira, R$626,45 por mês, como acima calculado. À míngua de estimativa do perito médico quanto ao grau de incapacidade permanente parcial, sirvome, para quantificação da porção da incapacidade sofrida pela demandante, da Tabela da SUSEP – Superintendência de Seguros Privados (in Oliveira, Sebastião Geraldo de; Indenizações por acidente do R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 319 Trabalho ou Doença Ocupacional; LTR, 2006, 2ª ed., p. 394). Essa tabela atribui os percentuais de 15%, 12%, 9% e 12% à perda total respectivamente dos dedos indicador, médio, anular e mínimo e, para perda parcial, a fração de um terço do percentual respectivo para cada falange cujo uso foi perdido. Adotando esses critérios, resulta no caso o percentual total de 35% para o conjunto de lesões sofridas pela obreira em sua mão esquerda. Assim, neste caso a pensão mensal pela incapacidade parcial corresponderia a 35% de R$626,45, ou seja, R$219,26 por mês ou R$2.850,38 por ano (13 prestações mensais, incluindo a gratificação natalina). [...] De acordo com a tabela de expectativa de sobrevida levantada pelo IBGE, para o sexo feminino, de 2003 (op. cit., 405), para a autora (nascida em 24/12/1982; f. 19vº), que contava 21 anos de idade no ano de referência da tabela, esse número corresponde a 56,9, ou seja, viveria até 78 anos de idade, até 2060. Relativamente à data do acidente (2008), a sobrevida é de 52 anos. [...] [...] Resumindo, estimo danos materiais emergentes de R$1.252,90 e lucros cessantes de R$52.498,51 totalizando R$53.751,41 valor referido a 13/11/2008, a que condeno a reclamada. [...](ipsis litteris; fls. 169/172; sublinhado no original). Ocorre que, promovendo-se o cotejo entre a peça inicial (fls. 02/17) e a sentença (fls. 164/177), vê-se que não foi requerida indenização a título de dano material nos moldes deferidos pelo Juízo de origem. Com efeito, em momento algum a reclamante pleiteou danos emergentes ou lucros cessantes. Conforme nota-se, houve uma confusão dos institutos jurídicos envolvidos pelo Juízo a quo. Ao invés de analisar o pedido de pensão decorrente de diminuição de capacidade laborativa por acidente de trabalho, o Juízo monocrático deferiu à reclamante, a título de danos materiais, danos emergentes e lucros cessantes. Apesar desse equívoco, percebe-se que ao tratar de “lucros cessantes”, o Juízo a quo, a bem da verdade, tratou do instituto da pensão, já que deferiu indenização decorrente de diminuição da capacidade laborativa advinda de acidente de trabalho. Contudo, quanto aos danos emergentes, vislumbra-se a ocorrência de julgamento extra petita, visto que referido instituto R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 320 sequer foi pedido na peça vestibular. Sendo assim, suscita a Relatora, de ofício, a presente preliminar, para, em conformidade com o art. 128 e 460 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente ao processo do Trabalho, por força do art. 769 da CLT, excluir da condenação da reclamada a indenização a título de danos emergentes, em respeito ao princípio da congruência entre o pedido e a sentença traduzido nos referidos artigos. 2.2 MÉRITO Primeiramente, explica-se ser necessária a análise dos pedidos recursais de forma conjunta visando evitar a repetição de argumentos nos diversos pontos de contato da matéria. 2.2.1 DO SALÁRIO CONTRATUAL Pleiteia a reclamante a reforma da decisão monocrática (fls. 164/177) alegando que houve error in judicando no tocante à fixação do salário contratual. Aduz que o ônus de provar o salário pago ao empregado compete ao empregador, obrigação não cumprida pela reclamada, sendo inadimissível mera presunção. Assevera ser aplicável o princípio de direito probatório que determina caber a prova àquele que é apto para produzi-la, de especial aplicação em questões relativas a salário. Afirma que em matéria de salário a aptidão para produzir prova é do empregador na medida em que está obrigado a realizar os pagamentos contra recibo (art. 464 da CLT), além de competirlhe anotar em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) as condições específicas do contrato de trabalho (art. 29 da CLT). Colaciona entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que a inércia da reclamada em produzir provas faz com que seja devido o valor apontado na inicial (fls. 02/17), não podendo o julgador embasar seu entendimento com base em meras presunções. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 321 Nesse contexto, requer a fixação do salário contratual no importe de R$500,00 (quinhentos reais) com a consequente reforma dos demais pedidos daí decorrentes. Pois bem. Na peça vestibular a reclamante afirma o seguinte: [...] foi contratada pela empresa ora Reclamada em 04/07/2008, para exercer função de torneira, percebendo um salário mensal de R$ 500,00 (Quinhentos reais), por tempo indeterminado, sendo que no dia 13/11/2008 veio a sofrer grave acidente de trabalho. (ipsis litteris; fl. 03) […] Ademais, as anotações constantes na Carteira de Trabalho não se limitam as irregularidades quanto a data da admissão, posto que a Reclamante não fora contratada como auxiliar de serviços gerais e sim como torneira, bem como sua remuneração era de R$ 500,00 (Quinhentos reais) mensais. (ipsis litteris; fl. 05) Na cópia da CTPS de fl. 22 consta um salário no valor de “R$ 450,00 (quatrocentos e cinquenta reais)”. Em depoimento, a reclamante assim afirmou: começou a trabalhar para a reclamada no dia 04/07/2008; exercia a função de torno [...] que recebia R$500,00 por mês; que recebia seu salário em espécie pago pela secretária, cujo nome não se recorda; [...] (ipsis litteris; fls. 41/42) Consta na contestação a seguinte passagem quanto ao salário obreiro: [...] a reclamante iniciou a prestação dos serviços a reclamada em 01 de novembro de 2008, conforme podemos observar pelo anexo CONTRATO DE TRABALHO A TÍTULO DE EXPERIÊNCIA, na função de SERVIÇOS GERAIS com salário de R$ 450,00 (quatrocentos e cinqüenta reais). (ipsis litteris; fl. 57) Com efeito, no Contrato de Trabalho a Título de Experiência (fl. 72) e na ficha de registro (fl. 73) juntados pela R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 322 reclamada registrou-se o valor de R$ 450,00 como sendo o salário da reclamante. Registre-se que mencionados documentos foram impugnados em audiência, quando de sua juntada, nos seguintes termos: MM Juíza, impugna-se o contrato de experiência uma vez que não consta datas e nem assinaturas da empresa nem testemunhas, somente assinatura da reclamante que foi assinada no dia 13, quando ocorreu o acidente. Impugna ainda a ficha de registro apresentada, uma vez que consta rasura na data conforme a cópia apresentada que vislumbra que foi efetuado no dia 14/11/2008, uma vez que o registro só ocorreu depois do acidente. [...] (ipsis litteris; fl. 41) Conforme observa-se, a obreira traz a alegação de que percebia como salário o valor de R$ 500,00, enquanto a reclamada sustenta que a mesma percebia a quantia de R$ 450,00, juntando documentos para comprovar sua contestação. Contrariamente ao que alega as razões recursais da obreira, não se acredita que o Juízo a quo embasou sua decisão em presunções. Na verdade, a reclamante não conseguiu provar que percebia salário superior ao valor que consta em sua CTPS, ou seja, não se desimcunbiu do ônus que lhe competia nos termos do que prega os arts. 818 da CLT e 333, I, do CPC. Veja-se que a única testemunha trazida a Juízo pela reclamante, senhora Cristiane de Oliveira Silva, silenciou quanto ao salário recebido pela obreira, bem como não informou se havia algum pagamento de valor “por fora” ou a maior do que consta registrado em CTPS. Nesse sentido, convém salientar que a carteira de trabalho é um documento oficial, sendo que as informações ali inseridas gozam de presunção juris tantum. Quer se dizer que as anotações nela apostas são consideradas válidas, podendo, no entanto, ser elididas por prova em contrário. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 323 Entretanto não houve produção probatória nesse sentido por parte da reclamante. Alegar e nada provar é o mesmo que nada alegar. Dessa forma, não provando a autora qualquer divergência entre o salário anotado em sua CTPS e o valor por si percebido, nega-se provimento ao apelo no ponto em apreço. 2.2.2 DA RESPONSABILIDADE CIVIL DA RECLAMADA NO ACIDENTE DE TRABALHO De acordo com a exordial, a reclamante fora contratada pela reclamada no dia 04.07.2008, para exercer a função de torneira, sendo que dentre as atribuições se afigurava a utilização do torno, no qual coloca-se peças de madeira para a fabricação de cabos de vassoura. Aduz que no dia 13.11.2008, quando estava manipulando o torno, apesar de todo o seu cuidado, ao por a madeira na prancha, o rolo compressor puxou sua mão esquerda, ocasionando-lhe a perda de 4 dedos. Atribui o acidente sofrido à omissão da reclamada e à não observância de preceitos básicos de segurança para com seus funcionários. A defesa sustenta que o sinistro ocorreu por culpa exclusiva da vítima ao realizar atividade para a qual não foi contratada, muito menos autorizada, bem como por ter agido sem o cuidado devido. Explica que o torno não oferece riscos à integridade física caso seja manipulado corretamente. Nesse contexto argumenta inexistência de nexo de causalidade entre o dano e a conduta da reclamada, ou, no máximo, culpa concorrente. Pois bem. civil. Vejamos a legislação disciplinadora da responsabilidade R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 324 O art. 186 do Código Civil (CC) determina que “Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. A partir desse preceptivo legal se instituiu a chamada responsabilidade subjetiva, a qual exige, como pressupostos para responsabilização, os seguintes elementos: a ocorrência de dano, ação ou omissão voluntária e nexo de causalidade entre o dano e a conduta do agente. Sobre a teoria subjetiva da responsabilidade civil, transcreve-se trechos extraídos da obra “Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional”, LTr, 3ª edição, páginas 94/95, de autoria do Desembargador e Doutrinador Sebastião Geraldo de Oliveira, in verbis: Pela concepção clássica da responsabilidade civil subjetiva, só haverá obrigação de indenizar o acidentado se restar comprovado que o empregador teve alguma culpa no evento, mesmo que de natureza leve ou levíssima. A ocorrência do acidente ou doença proveniente do risco normal da atividade da empresa não gera automaticamente o dever de indenizar, restando à vítima, nessa hipótese, apenas a cobertura do seguro de acidente do trabalho, conforme as normas da Previdência Social. O substrato do dever de indenizar tem como base o comportamento desidioso do patrão que atua descuidado do cumprimento das normas de segurança, higiene ou saúde do trabalhador, propiciando, pela sua incúria, a ocorrência do acidente ou doença ocupacional. Com isso, pode-se concluir que, a rigor, o acidente não surgiu do risco da atividade, mas originou-se da conduta culposa do empregador. Na responsabilidade subjetiva só caberá a indenização se estiverem presentes o dano (acidente ou doença), o nexo de causalidade do evento com o trabalho e a culpa do empregador. Esses pressupostos estão indicados no art. 186 do Código Civil e a indenização correspondente no art. 927 do mesmo diploma legal, com apoio maior no art. 7º, XXVIII, da Constituição da República. Avançando-se mais sobre o assunto, o legislador se precaveu em estabelecer critérios mais severos àqueles que desenvolverem atividade que por sua própria natureza, ofereçam riscos a outrem. Nesses casos, estabeleceu a responsabilidade na forma objetiva, segundo a qual, independentemente do elemento culpa, subsistirá a responsabilidade na reparação do dano. É o R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 325 que se extrai do artigo 927, caput e parágrafo único do referido diploma civilista, transcrito in verbis: Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (sublinhase). Acerca do risco a que alude o Código Civil, convém transcrever lição do autor Sebastião Geraldo de Oliveira, in Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional, LTr, 4ª edição, páginas 111/112: [...] De fato, qualquer um pode tropeçar, escorregar e cair em casa ou na rua, ser atropelado na calçada da rua por um automóvel descontrolado, independentemente de estar ou não no exercício de qualquer atividade, podendo mesmo ser um desempregado ou aposentado. No entanto, acima desse risco genérico que afeta indistintamente toda coletividade, de certa forma inerente à vida atual, outros riscos específicos ocorrem pelo exercício de determinadas atividades, dentro da concepção da teoria do “risco criado”. [...] Assim, se a exposição do trabalhador estiver acima do risco médio da coletividade geral, caberá o deferimento da indenização, porquanto, nessa hipótese, foi o exercício do trabalho naquela atividade que criou esse risco adicional. Em outras palavras, considera-se de risco, para fins da responsabilidade civil objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, as atividades que expõem os empregados a uma maior probabilidade de sofrer acidentes, comparandose com a média dos demais trabalhadores. Balizadas tais premissas, verifica-se que, no caso em comento, não pairam dúvidas de que ocorreu um acidente de trabalho típico, inclusive tendo sido concedido benefício previdenciário decorrente de incapacidade para o trabalho (fl. 74). Além disso, não houve recurso versando sobre a (in) existência do aludido acidente de trabalho. Também não houve negativa de que a lesão que acomete a reclamante decorreu do citado acidente. Mesmo assim, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 326 visando sanar quaisquer dúvidas em relação ao aparecimento ou desenvolvimento da enfermidade, bem assim o grau de redução da capacidade laborativa, o Juízo de primeira instância determinou a realização de perícia técnica, cujo laudo do perito médico veio aos autos às fls. 102/103, transcrevendo-se, a seguir, o seguinte trecho: Da lesão Pelas cicatrizes apresentadas, trata-se de lesões produzidas por instrumento corto contuz (sic), e são lesões extremamente sensíveis no local devido a inervação que se transformam em neuromas. Da capacidade laborativa do reclamante Desde que se observem os cuidados com as lesões dos dedos comprometidos, a capacidade laborativa do reclamante não foi afetada já que, a lesão foi na mão esquerda e ele e (sic) destra, porém haverá receio quanto ao uso desta mão por algum tempo. [...] Quesitos da reclamante. 1) As lesões descritas na inicial são em razão do acidente de trabalho? R. Provavelmente. 2) Essas lesões resultaram incapacidade permanente da reclamante para o trabalho? R. Não, por algum tempo ficara (sic) receosa de usar a mão acidentada em virtude do descrito anteriormente. 3) As lesões reduziram as capacidades laborativa do reclamante e qual o percentual de redução? R. Não, apenas o mencionado anteriormente. 4) Pelas lesões sofridas, pode a reclamante voltar a exercer as atividades anteriores desempenhadas? Em caso negativo descrever as razões do impedimento? R. Sim. 5) Pode a reclamante desenvolver suas atividades diárias em decorrência das lesões? R. Sim, com os inconvenientes descritos anteriormente. (ipsis litteris). Observe-se que apesar de o laudo afirmar que “provavelmente” as lesões descritas resultaram do acidente de trabalho, é incontroverso que o aludido acidente foi o causador do dano sofrido pela reclamante, restando tão-somente verificar a quem pertence a responsabilidade pelo acidente ocorrido. Ab initio, impõe-se salientar que embora a reclamada seja insistente na tese de que o infortúnio decorreu de culpa exclusiva da vítima, tal assertiva deve ser examinada com o máximo de cautela. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 327 Passando-se para a análise da perícia feita no local de trabalho da reclamante, destaca-se os seguintes trechos do laudo de fls. 115/121: II- QUESITOS APRESENTADOS PELO RECLAMANTE: [...] 1) Se nas instalações da empresa ora Reclamada existem placas de advertência quanto à periculosidade. Não; 2) Se nas instalações nas instalações da empresa ora Reclamada existem placas de advertência quanto ao uso de equipamentos de segurança. Não; 3) Se existe programa de proteção ao trabalho. Não; 4) Se a empresa concede equipamentos de segurança a seus funcionários. Sim; [...] 7) Se na máquina em que trabalhava a Reclamante existe alguma proteção contra acidentes. Não; verificando o torno em que trabalhava a torneira (reclamante), não tinha proteção nas correias, as roldanas estavam livres sem tela ou outro tipo de proteção; III – QUESITOS APRESENTADOS PELA RECLAMADA: [...] 9) Informe o Sr. Perito, tendo em vista o local de trabalho da reclamante constantes do quesito anterior, quais eram as atividades exercidas pela reclamante? Colocar a peça de seção quadrada na entrada do torno e forçá-la para dentro, com ritmo e velocidade, de forma repetida e constante; 10) Considerando um dia normal de trabalho, durante quanto tempo deste dia a reclamante permanecia em cada atividade? O tempo todo, fora as idas para beber água ou ao banheiro, durante a jornada de trabalho; [...] 16) Estes equipamentos evitam o contato direto com os agentes de risco? Não, pois os riscos nas máquinas são contornados com as proteções adequadas; 17) Os equipamentos por ela utilizados diminuem a intensidade do agente agressivo a limites de tolerância? Não; 18) Em caso positivo qual a periodicidade mensal a que Reclamante era exposto a este tipo de agente agressivo? Durante toda a jornada de trabalho, de segunda a sexta feira, o mês inteiro; [...] VI- ANÁLISE E CONSIDERAÇÕES […] R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 328 2- Sobre esta seção, o ambiente é sujo, com piso de terra batida coberto de pó de madeira, tem exaustor para os tornos; [...] 4- No local bem como em todo o prédio não foi encontrado o mapa de risco local, havia um só funcionário que utilizava EPI’s, o empregador informa que fornece EPI’s aos empregados, porém não ofereceu cursos ou orientações sobre a atividade ou uso dos EPI’s; 5- As tarefas que exerce o torneiro na empresa, no período normal de trabalho das 7 às 11h e das 14 às 18:00h de segunda a sexta feira, são de colocar os quadrados e colocar no torno, sua atividade é exercida em pé, durante toda a jornada; 6- Devido à função que exercia na empresa, a reclamante executava a limpeza no pátio e na área de trabalho quando era realizada a manutenção em seu torno; 7- Ficava o período de descanso na área do galpão e fazia uso de equipamentos de proteção individual (EPI’s) fornecidos pelo empregador, como luva de raspa cano curto, avental de raspa, protetor auricular tipo concha com NRSf 14dB com CA; (ipsis litteris; sublinhado no original). Veja-se que o laudo do ambiente de trabalho é conclusivo no sentido de que a reclamada não cumpria as normas de segurança, não existindo placas de advertência quanto à periculosidade e ao uso dos equipamentos de segurança, bem como pela ausência de programa de proteção ao trabalho. Somese a isso o fato de o empregador não ter fornecido “cursos ou orientações sobre a atividade ou uso dos EPI’s”. Essa negligência da reclamada em cumprir as normas de segurança do trabalho enseja, seguramente, a sua responsabilização. Não bastasse isso, na máquina em que a reclamante trabalhava não existia proteção alguma contra acidentes, pois “não tinha proteção nas correias, as roldanas estavam livres sem tela ou outro tipo de proteção”. Veja-se que o ramo de atividade da reclamada, marcenaria para confecção de cabos de vassouras, constitui-se em atividade de extremo risco, o que faz com que seja responsável também do ponto de vista objetivo. Com efeito, pois de acordo com a legislação em vigor, compete ao empregador providenciar todas as providências necessárias à prevenção de acidentes. Convém destacar que a prova do fornecimento de EPI e o treinamento adequado para a R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 329 execução dos serviços competia à empregadora, nos termos da Norma Regulamentadora (NR) n. 6. Senão, vejamos: 6.6.1. Cabe ao empregador quanto ao EPI: a) adquirir o adequado ao risco de cada atividade; b) exigir seu uso; c) [...] d) orientar e treinar o trabalhador sobre o uso adequado guarda e conservação; [...] Ademais, é obrigação da empresa zelar para que seus empregados cumpram as normas de segurança e medicina do trabalho, a teor do que dispõe o art. 157 da CLT: Art. 157 - Cabe às empresas: I - cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho; (destaca-se) Portanto, não basta que o empregador forneça os equipamentos de segurança ou capacite seus empregados, É imprescindível que se exija o cumprimento de todos os procedimentos de cautela necessários à prevenção de doenças e acidentes. Quanto ao aspecto da culpa exclusiva da vítima, ventilada pela reclamada, esclarecedoras são as lições de Sebastião Geraldo de Oliveira, in Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional, 4ª edição revista e ampliada, São Paulo, ed. Ltr, p. 145: Fica caracterizada a culpa exclusiva da vítima quando a causa única do acidente do trabalho tiver sido a sua conduta, sem qualquer ligação com o descumprimento das normas legais, contratuais, convencionais, regulamentares, técnicas ou do dever geral de cautela por parte do empregador. Ora, a reclamante fora contratada para a função de serviços gerais, porém, sendo-lhe exigida a execução de tarefas que pressuponha treinamento adequado. Certo é que competia ao empregador, dono do negócio, fiscalizar o cumprimento dos procedimentos e regras necessárias à prevenção de doenças e acidentes laborais. A respeito do assunto, Sebastião Geraldo do Oliveira (Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional, 2ª edição, páginas 161/162), assim leciona: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 330 O acidente do trabalho pode também surgir, por culpa do empregador, sem que tenha ocorrido violação legal ou regulamentar de forma direta, como mencionamos no item precedente. Isso porque as normas de segurança e saúde do trabalhador, ainda que bastante minuciosas, não alcançam todas as inumeráveis possibilidades de condutas do empregado e do empregador na execução do contrato de trabalho. Assim, como não é possível a norma estabelecer regras de comportamento para todas as etapas da prestação dos serviços, abrangendo cada passo, variável, gesto, atitude, forma de execução ou manuseio dos equipamentos, exige-se um dever fundamental do empregador de observar uma regra genérica de diligência, uma postura de cuidado permanente, a obrigação de adotar todas as precauções para não lesar o empregado. Com efeito, em muitas ocasiões, as normas legais simplesmente apontam diretrizes gerais para a conduta patronal, tais como: adotar precauções no sentido de evitar acidentes; reduzir até eliminar os riscos existentes no local de trabalho; promover a realização de atividades de conscientização, educação e orientação dos trabalhadores para a prevenção dos acidentes; identificar situações que venham a trazer riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores; prevenir, rastrear e diagnosticar precocemente os agravos à saúde relacionados ao trabalho; elaboração de programa visando à preservação da saúde e da integridade dos trabalhadores, através de antecipação, reconhecimento, avaliação e consequente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho etc. A constatação da culpa resultará de um processo comparativo do comportamento do empregador que acarretou o infortúnio, com a conduta esperada de uma empresa que zela adequadamente pela segurança e saúde do trabalhador. [...] A culpa, portanto, será aferida no caso concreto, avaliando-se se o empregador poderia e deveria ter adotado outra conduta que teria evitado a doença ou o acidente. Formula-se a seguinte indagação: um empregador diligente, cuidadoso, teria agido de forma diferente? Se a resposta for sim estará caracterizada a culpa patronal, porque de alguma forma pode ser apontada determinada ação ou omissão da empresa, que se enquadra no conceito de imprudência, imperícia ou negligência. O dever geral de cautela assume maior relevância jurídica na questão do acidente do trabalho, porquanto o exercício da atividade da empresa inevitavelmente expõe a riscos o trabalhador, o que de antemão já aponta para a necessidade de medidas preventivas, tanto mais severas quanto maior o perigo da atividade. Como se verifica, qualquer descuido ou negligência R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 331 do empregador com relação à segurança, higiene e saúde do trabalhador pode caracterizar a sua culpa nos acidentes ou doenças ocupacionais e ensejar o pagamento de indenizações à vítima. É importante assinalar que a conduta exigida do empregador vai além daquela esperada do homem médio nos atos da vida civil (bonus pater familias), uma vez que a empresa tem o dever legal de adotar as medidas preventivas cabíveis para afastar os riscos inerentes ao trabalho, aplicando os conhecimentos técnicos até então disponíveis para eliminar as possibilidades de acidentes ou doenças ocupacionais. [...](destaca-se). No caso específico dos autos, é incontestável que a atividade desenvolvida pela reclamante a expunha a um risco elevado, além de a reclamada não ter tomado todas as precauções para evitar acidentes. Em outras palavras, resta caracterizada a responsabilidade da reclamada, pois, certamente, teve culpa no evento fatídico ocorrido com a reclamante. Reconhecida, pois, a responsabilidade da reclamada pelo infortúnio ocasionado à obreira, passa-se ao exame dos demais aspectos da lide. 2.2.3 DO DANO MATERIAL (PENSÃO) A reclamante requer a majoração da indenização a título de danos materiais sob a alegação de que o salário considerado pelo Juízo a quo para seu cálculo é inferior ao apontado na inicial. Aduz que o Juízo de origem não foi feliz ao reduzir seu entendimento aos valores de indenização, apontando um dever de reparar ao apelado em valor irrisório e insuficiente para amenizar o sentimento de perda vivenciado. Explica que quanto aos danos materiais a decisão combatida dividiu-os em duas parcelas, quais sejam, danos emergentes e lucros cessantes. Argumenta que quanto aos danos emergentes há de se observar que o salário contratual utilizado como base para seu cálculo diverge daquele apresentado pela inicial. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 332 Exprime que a pensão por incapacidade parcial de fato corresponde a 35% sobre a remuneração obreira, devendo apenas ser considerado o valor de R$685,21 como a remuneração da reclamante, o que renderia R$ 239,82 por mês ou R$ 3.117,66 por ano. Conclui afirmando que o valor devido, levando em consideração a verdadeira remuneração da reclamante, é de R$57.421,28. Essas são, em síntese, as principais argumentações obreiras quanto ao ponto em comento. Por sua vez, a reclamada alega que as lesões sofridas pela obreira não são as apontadas na sentença de fls. 164/177, posto que em desacordo com o laudo pericial de fls. 102/103. Aduz que o Juízo a quo, alegando “erro material” do laudo e argumentando que o perito quis significar que não resultou incapacidade total, atribuiu incapacidade laborativa à obreira. Assegura que não há que se falar em erro material do mencionado laudo pericial, muito menos que o perito quis significar que não resultou incapacidade total. Afirma que as lesões sofridas pela obreira não causaram incapacidade permanente para o trabalho, lembrando que somente há direito à indenização (lucros cessantes) naqueles casos em que há perda da capacidade para o trabalho, o que, no seu entender, não é o caso dos autos. Assegura que o Juízo monocrático equivocou-se desde o início em sua decisão, seja quanto às lesões sofridas pela obreira seja em face da prova pericial produzida acerca da incapacidade laborativa da autora. Argumenta no sentido de não restar dúvidas de que a obreira não teve sua capacidade para o trabalho reduzida, podendo até mesmo retornar às atividades anteriormente desempenhadas por ela antes do evento danoso, o que afasta qualquer alegação de redução de capacidade laborativa e, consequentemente, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 333 qualquer dever de indenizar. Colaciona diversas ementas de julgados nas quais restou inexistente o dever de indenização a título de dano material na hipótese de ausência de redução da capacidade laborativa. Acrescenta que, segundo o multicitado laudo pericial, se observados os cuidados com as lesões dos dedos comprometidos, a capacidade laborativa da reclamante não será afetada. Expõe que como a obreira perdeu apenas parte dos dedos da mão esquerda, estas lesões não a impedem de exercer suas atividades normais, muito menos reduzem sua capacidade laborativa, consoante o laudo mencionado. Alternativamente ao pedido de improcedência da indenização a título de danos materiais (lucros cessantes), pleiteia a diminuição do valor da pensão mensal a título de incapacidade parcial, de modo que seja aplicado o percentual de 19% de perda, resultando no valor mensal de R$119,02 com base no salário de R$626,45. Examina-se. Conforme restou tratado em sede de preliminar (item 2.1.3), houve uma confusão de institutos por parte do Juízo a quo no tocante ao danos materiais. Registrou-se naquela oportunidade que ao invés de o Juízo analisar o pedido de pensão decorrente de diminuição de capacidade laborativa por acidente de trabalho, o mesmo deferiu à reclamante, a título de danos materiais, danos emergentes e lucros cessantes. Todavia, anotou-se que apesar desse equívoco, ao tratar de “lucros cessantes”, o Juízo de origem cuidou do instituto da pensão, já que deferiu indenização decorrente de diminuição da capacidade laborativa advinda de acidente de trabalho. No que tange aos danos emergentes, consignou-se a ocorrência de julgamento extra petita, visto que referido instituto sequer foi pedido na peça vestibular, excluindo-se, por esse motivo, tal condenação. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 334 Relembrando outro ponto já tratado na presente decisão (item 2.2.1), repise-se que restou fixado pela decisão originária o valor do salário da obreira como sendo de R$ 450,00. Assim, caiu por terra o único argumento trazido pela reclamante em suas razões para a majoração do quantum indenizatório. Além disso, crê-se não ser o caso de majorar a indenização estabelecida pelo Juízo a quo (R$53.751,41) como pretende a reclamante. Por outro lado, não se acredita que seja o caso de acolher a pretensão da reclamada de diminuição do valor indenizatório, muito menos exclusão da referida obrigação. Com efeito, pois apesar de constar no laudo pericial de fls. 102/103 que “a capacidade laborativa do (sic) reclamante não foi afetada” é incontestável a expressiva perda, visto que a mesma não poderá mais exercer perfeitamente/plenamente funções que lhe exija a utilização da mão esquerda. Ressalte-se que o fato da reclamante ser destra e o acidente ter ocorrido na mão esquerda não exime a circunstância da diminuição de sua capacidade laboral. É claro e inconteste que a perda parcial de 4 (quatro) dedos diminui a capacidade laborativa de qualquer pessoa, ainda mais daquelas que trabalham com serviços que exigem esforços físicos, com é o caso da reclamante. No caso, é preciso considerar que a perda parcial de dedos da mão esquerda da autora não lhe permitirá ou, no mínimo, dificultará exercer a função que dantes exercia e, inclusive, não poderá exercer qualquer função que exija a utilização das duas mãos e, dado o baixo grau de instrução da reclamante, não se pode esperar que a mesma logrará êxito em atividades de ensino intelectual, mostrando-se grave e expressiva a redução de sua capacidade laborativa. Desse modo, afigurando-se razoável o valor estabelecido pelo Juízo a quo à indenização a título de da material (pensão), mantém-se o valor da indenização a título de dano material na espécie de pensão. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 335 2.2.4 DO DANO MORAL Pugna a reclamante pela majoração da indenização a título de dano moral alegando que o valor fixado pela decisão monocrática de fls. 164/177 apresenta-se irrisório e sequer aproxima-se de uma amenização pelo evento danoso sofrido e que irá acompanhála pelo resto de sua vida. Explica que o dano moral consiste na penosa sensação da ofensa, na humilhação perante terceiros, na dor sofrida, nos efeitos puramente psíquicos e sensoriais experimentados pela vítima do dano. Aduz que a quantia de R$7.517,40 a título de dano moral, que totaliza R$1.879,35 por dedo amputado (4), causa inconformismo ao menos entendido, quanto mais àquele que sofreu a perda permanente de parte de seu corpo. Com esses argumentos, requer a majoração do valor da indenização em comento até o limite pleiteado na inicial (R$83.000,00 = 200 salários mínimos) ou, no mínimo, a um valor aproximado. Pois bem. Primeiramente, não é demais salientar que os motivos para indenização já foram suficientemente tratados em tópicos precedentes, restando, apenas, verificar se a quantia fixada a título de danos morais (R$7.517,40) é razoável. Sobre o quantum indenizatório, impõe-se esclarecer que, quando a indenização visa reparar danos de ordem extrapatrimonial, sua fixação não possui parâmetros objetivos a dar suporte ao julgador na mensuração respectiva. Isso porque, o prejuízo se situa na esfera da honra, da imagem, da intimidade e da dignidade da pessoa humana. Diante desse panorama, a doutrina e jurisprudência, para o dano de ordem moral, têm adotado diferentes critérios, consoante apreciação equitativa do caso concreto e as regras de experiência comum, no mensurar desses valores. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 336 Isso ocorre porque nosso sistema não é tarifado, a exemplo do que previa o artigo 52, da Lei n. 5.250/67 (Lei de Imprensa), não recepcionado pela Constituição da República de 1988. Predomina no Brasil, pois, o sistema aberto, que possibilita ao juiz a fixação da indenização de forma subjetiva, mas com observância de parâmetros, construídos pela doutrina e jurisprudência, que dão solução mais justa aos casos dessa natureza. Nesse sentido, Irany Ferrari e Melchíades Rodrigues Martins, in DANO MORAL – Múltiplos Aspectos nas Relações de Trabalho, LTr, 2ª edição, páginas 424/425, trazem a seguinte lição: A verdade é que o sistema aberto possibilita o arbitramento da indenização de maneira mais justa e proporcional à lesão sofrida pelo ofendido, considerando-se também que os atributos morais da pessoa variam segundo a sua formação e sua escala social. Assim, “um mesmo ato ou omissão é capaz de produzir impacto psicológico negativo de nível diferente para cada paciente atingido”, conforme se constata pela jurisprudência, como também que “uma indenização insignificante significaria um agravamento ao ofendido e sentido de impunidade ao ofensor. Uma indenização escorchante representaria uma desproporcional punição ao ofensor, com vantagem imoderada ao ofendido. Assim, na aplicação do sistema aberto, deve o julgador, fazendo uso da experiência comum, sopesando as circunstâncias do caso concreto, de uso da razoabilidade e proporcionalidade, avaliar os seguintes parâmetros: a situação econômica de ambas as partes (ofensor e ofendido); a extensão da ofensa e o grau de culpa do agente; a relevância do direito violado, o grau de repreensibilidade da conduta do agente causador do dano, e, ainda, ter em vista o caráter pedagógico da sanção, a fim de que esta desestimule a prática ou reiteração da conduta censurada. No caso em apreço, observa-se que a obreira foi afastada de suas funções, ficando permanentemente com sua capacidade laborativa reduzida, de acordo com a inferência do Juízo monocrático (fl. 170) e ao contrário da conclusão do laudo pericial de fls. 102/103, tendo que administrar esse sofrimento pelo resto de sua vida. Veja-se que o acidente de trabalho ocorrido com a reclamante foi gravíssimo, o que lhe resultou na amputação de 04 (quatro) dedos da mão esquerda e que essa situação jamais será reparada, pois não há como se retornar ao status quo ante, ou seja, os dedos de sua mão esquerda não podem ser reimplantados. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 337 Não se pode esquecer que o grave acidente aconteceu quando a reclamante contava com apenas de 25 (vinte e cinco) anos, isto é, estava em tenra idade e com todo o vigor de sua capacidade laborativa. Some-se a tudo isso, o fato de que tais aspectos, certamente, interferem de modo direto, na vida particular da obreira, no que pertine ao âmbito familiar e ao lazer, submetendo sua família e as pessoas mais próximas ao acompanhamento do seu suplício. Por tais aspectos, a fixação de indenização por danos morais em R$7.517,40 (sete mil, quinhentos e dezessete reais e quarenta centavos), se revela bastante tímida, devendo ser majorada. Em sendo assim, com fulcro na exposição retro, dá-se parcial provimento ao apelo obreiro, a fim de majorar o quantum indenizatório ao patamar de R$30.000,00 (trinta mil reais). 2.2.5 DO DANO ESTÉTICO Pleiteia a reclamante a reforma da decisão originária (fls. 164/177) que indeferiu seu pedido de indenização por dano estético decorrente de acidente de trabalho. Explica que a indenização por dano estético cumulado com o dano moral, apesar de parecer um bis in idem, não configura repetição de indenização como entendeu o “nobre” Juízo a quo. Argumenta que essa cumulação é perfeitamente possível porque cada indenização objetiva ressarcir uma parcela específica do dano, ainda mais verificando-se que a amputação dos dedos de uma mão é claramente visível e resulta em dano aparente, capaz de causar mal-estar, dificuldade de relacionamento ou convivência social, fatos esses que sujeitam o causador ao pagamento de quantia capaz de amenizar o sofrimento e o constrangimento que terá que ser suportado pela vida toda. Ressalta que há expressa distinção no que se refere aos danos morais e estéticos, alegando que o dano moral se refere R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 338 ao constrangimento sofrido pela vítima cada vez que a mesma se encontra com outras pessoas e sente vergonha de sua estética deformada, enquanto o dano estético seria aquele que responderia pela reparação que se deu pelo entristecimento da vítima devido ao seu enfeamento. Frisa que as indenizações concorrentes são dadas a título diferente, uma pelo dano estético, como grave deformação física, e a outra pelas tristezas e sofrimentos interiores que acompanharão a vítima para sempre. Destaca que “a apelante tinha apenas 21 anos na data do evento de forma que sua estética restou-se comprovadamente comprometida” (ipsis litteris, fl. 187). Salienta que a amputação traumática dos dedos da mão causa dano estético que deve ser indenizado cumulativamente com o dano moral, neste considerados os demais danos à pessoa, resultantes do mesmo fato ilícito. Cita a Súmula n 387 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “É possível a cumulação das indenizações de dano estético e moral.” Analisa-se. Acerca do assunto, convém transcrever-se lição do Professor Sebastião Geral de Oliveira, in Indenizações por Acidente de Trabalho ou Doença Ocupacional, 4ª edição, Ltr, 2008, São Paulo, páginas 218/220, conforme segue: Além das indenizações por dano material e moral, pode ser cabível a indenização por dano estético, quando a lesão decorrente do acidente do trabalho compromete ou pelo menos altera a harmonia física da vítima. Enquadra-se no conceito de dano estético qualquer alteração morfológica do acidentado como, por exemplo, a perda de algum membro ou mesmo de um dedo, uma cicatriz ou qualquer mudança corporal que cause repulsa, afeiamento ou apenas desperte a atenção por ser diferente. O prejuízo estético não caracteriza, a rigor, um terceiro gênero de danos, mas representa uma especificidade destacada do dano moral, sobretudo quando não R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 339 produz repercussão de natureza patrimonial como ocorre no caso de um artista ou modelo. Aliás, pontua Teresa Ancona que o dano à estética pessoal é uma das espécies do gênero dano moral. [...] O dano estético está vinculado ao sofrimento pela deformação com sequelas permanentes, facilmente percebidas, enquanto o dano moral está ligado ao sofrimento e todas as demais consequências nefastas provocadas pelo acidente. A opção do Código Civil de 2002, de indicar genericamente outras reparações ou prejuízos que o ofendido prove haver sofrido (arts. 948 e 949), deixa espaço indiscutível para inclusão do dano estético, conforme se verificar no caso concreto. [...] Visto isso, não pairam dúvidas, acerca da possibilidade de cumulação do dano de ordem moral com o dano estético, eis que possuem fundamentos distintos. Nessa sequência, verifica-se da sentença que o Juízo de primeira instância indeferiu à autora a indenização em comento, pelos seguintes fundamentos: O aleijão sofrido pela autora em sua mão esquerda certamente lhe afeia o aspecto. O dano estético, no entanto, não constitui um terceiro tipo independente, que mereça indenização adicional àquelas devidas pelos danos material (patrimonial) e moral (extrapatrimonial). A feiúra resultante se incluirá como parte do dano material (se a vítima se valia de sua beleza para auferir renda), como poderá compor o quadro do sofrimento psíquico. No caso da trabalhadora, seu dano moral já foi analisado no tópico precedente inclusive sob o aspecto estético, e sua perda patrimonial, dado o tipo de atividade econômica que exerce, não guarda relação com beleza. Assim, não cabe ressarcimento de dano especificamente estético, pretensão que resta improcedente. (ipsis litteris; fl. 174) Assim, entendendo o Juízo a quo que o dano estético não configura um dano que mereça indenização, indeferiu-a sob o argumento de que o dano estético já estaria sendo indenizado no momento em que deferiu à reclamante indenização a título de dano moral. Todavia, de acordo com a doutrina reproduzida, é perfeitamente possível a cumulação de indenização por dano moral e por dano estético, até mesmo pelo que consta no laudo R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 340 pericial de fls. 102/103, segundo o qual “foi constatada a perda das extremidades dos dedos indicador, médio e mínimo da mão esquerda e do dedo anelar, falange média e distal da mesma mão” (ipsis litteris; fl. 102). Outra não é a conclusão a que se chega pela análise dos documentos de fls. 32/34, os quais demonstram claramente a extensão do acidente sofrido pela reclamante. A princípio, faz-se registrar que não compete ao perito concluir pela existência ou não de dano estético, o que se insere nas funções judicantes. O papel do expert se dirige ao relato de possível deformidade ou não, de forma a fornecer elementos ao julgador para que o mesmo venha formar o seu convencimento, inclusive acerca da configuração ou não de dano dessa ordem. Dessa forma, resta constatado o dano estético, com base no que consta no laudo pericial referenciado, bem como nos documentos mencionados, por, sem sombra de dúvidas, ter o acidente de trabalho causado à reclamante uma deficiência física facilmente perceptível, um afeamento, de maneira a configurar o constrangimento noticiado pela autora na vestibular e em suas razões recursais. Portanto, levando em conta a extensão e caracterização do dano, o grau de culpa e a situação da vítima, dá-se parcial provimento ao apelo, nesse particular, a fim de que seja a reclamada condenada ao pagamento de indenização por dano estético no patamar de R$10.000,00 (dez mil reais). 2.2.6 HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS A reclamante pleiteia a condenação da reclamada aos ônus da sucumbência. Pois bem. No que tange aos honorários advocatícios, convém transcrever-se as Súmulas n. 219 e 329 do TST, consoante seguem: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 341 SUM 219 - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. HIPÓTESE DE CABIMENTO. I - Na Justiça do Trabalho, a condenação ao pagamento de honorários advocatícios, nunca superiores a 15% (quinze por cento), não decorre pura e simplesmente da sucumbência, devendo a parte estar assistida por sindicato da categoria profissional e comprovar a percepção de salário inferior ao dobro do salário mínimo ou encontrar-se em situação econômica que não lhe permita demandar sem prejuízo do próprio sustento ou da respectiva família. [...] SUM 329 - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. ART. 133 DA CF/1988 Mesmo após a promulgação da CF/1988, permanece válido o entendimento consubstanciado na Súmula nº 219 do Tribunal Superior do Trabalho. Visto isso, tem-se a dizer que, nas lides decorrentes da relação de emprego, como é a situação em análise, os honorários advocatícios só devem ser deferidos nas hipóteses previstas nos artigos. 14 a 16 da Lei n. 5584/1970, consoante entendimento expressado nas aludidas Súmulas do TST, e, ainda, em conformidade com os dispositivos constantes da Instrução Normativa n. 27, de 16.02.2005, daquele Tribunal, o que não se coaduna com o caso em apreço. Desse modo, no aspecto em comento, nega-se provimento ao apelo obreiro. 2.3 CONCLUSÃO DESSA FORMA, conhece-se do recurso ordinário obreiro (fls. 178/189), à exceção do pedido de Justiça Gratuita, ante a ausência de interesse recursal. Não se conhece do recurso patronal (fls. 190/200) interposto, em razão de deserção, particular em que a Relatoria restou vencida. De ofício, suscita-se preliminar de julgamento extra petita para excluir-se da condenação a indenização a título de danos emergentes. No mérito, nega-se provimento ao apelo patronal e dá-se parcial provimento ao recurso obreiro para majorar a indenização a título de dano moral para R$30.000,00 (trinta mil reais) e para condenar a reclamada ao pagamento de indenização por dano estético no patamar de R$10.000,00 (dez mil reais), tudo nos termos da anterior fundamentação. Em decorrência dos efeitos produzidos pela presente decisão e, em compasso com a Instrução Normativa de n. 03/93 R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 342 do c. TST, arbitra-se, provisoriamente, novo valor à condenação, no montante de R$94.000,00 (noventa e quatro mil reais), em face da majoração da indenização a título de dano moral, bem como da fixação de indenização por dano estético, majorando-se o importe das custas processuais ao valor de R$1.880,00 (mil, oitocentos e oitenta reais), a teor do art. 789, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). 3 DECISÃO ACORDAM os Magistrados integrantes da 2ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, à unanimidade, conhecer do recurso ordinário obreiro (fls. 178/189), à exceção do pedido de Justiça Gratuita, ante a ausência de interesse recursal; por maioria, conhecer do apelo patronal, vencida a Relatora nesse aspecto, que não o conhecia em razão de deserção; de ofício, acolher preliminar de julgamento extra petita para excluir da condenação a indenização a título de danos emergentes. No mérito, também à unanimidade, negar provimento ao apelo patronal e dar parcial provimento ao recurso obreiro; ainda, arbitrar novo valor à condenação, no montante de R$94.000,00 (noventa e quatro mil reais), majorando-se o importe das custas processuais ao valor de R$1.880,00 (mil, oitocentos e oitenta reais), a cargo da reclamada, tudo nos termos do voto da Relatora. Sessão de julgamento realizada no dia 05 de novembro de 2009. Porto Velho-RO, 05 de novembro de 2009. ARLENE REGINA DO COUTO RAMOS JUÍZA CONVOCADA-RELATORA R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.305-340, jul./dez. 2009 343 PROCESSO: CLASSE: ÓRGÃO JULGADOR: ORIGEM: RECORRENTE: ADVOGADOS: RECORRIDO: ADVOGADOS: RELATOR: REVISORA: 00682.2008.401.14.00-9 RECURSO ORDINÁRIO 1ª TURMA 1ª VARA DO TRABALHO DE RIO BRANCO - AC NATÁLIA MARIA LUCAS DA FONSECA ROQUE DOUGLLAS JONATHAN SANTIAGO DE SOUZA E OUTRA BANCO ITAÚ S/A RICCIERI SILVA DE VILA FELTRINI E OUTROS JUIZ CONVOCADO SHIKOU SADAHIRO DESEMBARGADORA ELANA CARDOSO INCAPACIDADE LABORATIVA. LER/DORT. EMPREGADA CONSIDERADA APTA PELO INSS E INAPTA PELO MÉDICO DA EMPRESA. NÃORECEBIMENTO DE SALÁRIO OU DO BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ART. 1º, III E IV C/C ART. 170 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DANO MORAL E MATERIAL. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO EMPREGADOR. OMISSÃO VOLUNTÁRIA. COMPROVAÇÃO. DEFERIMENTO. Não se pode olvidar que é fundamento basilar da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º, incisos III e IV da CF). Ademais, a valorização do trabalho humano, sobre que é fundada a ordem econômica, tem o fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170 da CF). Neste caso, o ato ilícito e a culpa do reclamado pelo dano moral e material decorrem da omissão voluntária em não conduzir a reclamante à função compatível com sua capacidade laborativa, custeando seus salários enquanto negado o benefício previdenciário e, ainda, em não emitir nova CAT, buscando no Órgão competente o restabelecimento do auxílio-doença acidentário. Assim, o nexo de causalidade entre a omissão ilícita da empresa reclamada e a lesão imaterial e material R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 344 suportada pela reclamante é evidente, pois não há dúvida de que - tomando-se em consideração a percepção do homem médio - na situação de total desamparo vivenciada pela autora, permanecendo dez meses sem receber o auxílio previdenciário, porque considerada apta ao trabalho pelo INSS, e sem perceber seus vencimentos, porque não aceito o retorno ao trabalho pela empresa, sem ter como prover a si e à sua família e diante da indefinição do quadro narrado; a dor pessoal, o sofrimento íntimo, o abalo psíquico e o constrangimento tornam-se patentes. 1 RELATÓRIO Trata-se de recurso ordinário interposto pela reclamante Natália Maria Lucas da Fonseca Roque, nos autos do processo n. 00682.2008.401.14.00-9, oriundo da 1ª Vara do Trabalho de Rio Branco (AC), em que figura como reclamado Banco Itaú S/A. A sentença de primeiro grau (f.326-332) julgou totalmente improcedentes os pedidos de dano moral e material, consubstanciados, segundo o pedido, na conduta omissiva da reclamada em não autorizar o retorno da obreira ao trabalho após ser considerada apta pelo Órgão Previdenciário e inapta pelo médico da empresa. A recorrente aduz (f. 338-344) a omissão da empresa, comprovado por sua confissão, quando afirmou que concedeu à obreira “licença sem remuneração”, possibilitando, dessa forma, que buscasse sua habilitação no órgão previdenciário. Esclarece a recorrente, que não pede a indenização em razão da doença que a incapacitou para o trabalho (LER/DORT), adquirida na prestação de serviços para o Banco, mas sim pelos prejuízos causados ao longo dos meses que ficou sem receber salário ou benefício previdenciário, ficando totalmente desamparada e tendo que buscar, via judicial a solução para o impasse. Afirma que o dolo da recorrida consistiu em se omitir, quando poderia ter emitido nova CAT – providência tomada somente após determinação judicial – ou ter inserido a reclamante em programa de readaptação. Assevera, ainda, o descumprimento da NR -07, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 345 no item 7.4.8, alíneas “a”, “b” e “c”. Por fim, prequestiona as Súmulas n. 296 e 297 do TST. O recorrido apresentou contrarrazões (f. 351-355), alegando a intempestividade do recurso obreiro e, no mérito, pugnando pela manutenção da decisão de primeiro grau. Desnecessária a remessa ao Ministério Público do Trabalho para emissão de parecer, por força de previsão regimental. 2 FUNDAMENTOS 2.1 CONHECIMENTO A sentença foi prolatada no dia 7/4/2009, segunda-feira, e dela as partes estavam cientes, conforme ata de audiência à f. 324. O recurso encontra-se tempestivo, já que protocolado em 20/04/2009, 8º dia, considerando-se os feriados regimentais ocorridos nos dias 8, 9 e 10/04. Quanto à alegação da recorrida em contrarrazões acerca da intempestividade do recurso, esclarece-se que a recorrente não tinha conhecimento da interposição de embargos de declaração pelo Banco, pois o edital à f. 337 foi publicado apenas em 27/04. Por outro lado, não há necessidade de ratificação dos termos do recurso já interposto, mesmo porque os embargos opostos foram rejeitados e, portanto, permanecem inalterados os termos da decisão recorrida. Assim, não há que se falar em intempestividade do recurso porque não protocolado após a publicação da sentença de embargos de declaração. A representação processual da recorrente está regular, conforme se observa da procuração à f. 13. Não há exigência de recolhimento de custas processuais, ante o deferimento em primeiro grau dos benefícios da justiça gratuita. Tampouco há necessidade de R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 346 comprovação do depósito recursal, por se tratar de recurso obreiro e não haver condenação pecuniária. Também regular as contrarrazões. Assim, conhece-se do recurso e das contrarrazões, uma vez que satisfazem os requisitos legais de admissibilidade. 2.2 MÉRITO 2.2.1 DANO MORAL A reclamante narra em sua petição inicial que foi afastada dos serviços em decorrência de doença ocupacional desde 2002, permanecendo em gozo de benefício previdenciário até 15/04/2007, quando foi considerada apta para o retorno as suas funções pela perícia médica do INSS. Aduz que formulou pedido de reconsideração e de prorrogação do benefício, mas teve ambos indeferidos sob o fundamento de ausência de incapacidade laborativa. Afirma que ao retornar ao trabalho, foi encaminhada para exame de saúde ocupacional, sendo declarada sua incapacidade para o retorno ao trabalho de caixa pelo médico do trabalho. A partir de então, ficou sem receber o benefício previdenciário e sem receber salário, sem ter recursos para custear sua própria subsistência e de seus filhos. Narra que em dezembro de 2007 ingressou com ação na Justiça Federal pleiteando a concessão do benefício previdenciário, contudo, o pedido foi julgado improcedente, com base no laudo pericial que a considerou apta para exercer atividade que lhe garanta a subsistência, não obstante a diminuição da capacidade laborativa ocasionadas pela dores no pescoço, coluna cervical, perna esquerda e mão. Em contestação o Banco alegou que não poderia exigir o retorno ao trabalho quando a própria obreira afirmava não ter condições para tanto e, ainda mais, por haver conclusão médica de incapacidade para a função. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 347 Asseverou que obrigar a autora ao retorno de suas atividades seria atentar contra a higidez física, à dignidade e à moral da trabalhadora. Por conseguinte, sua atuação não pode ser considerado como ato culposo ou doloso pois apenas cumpriu a legislação vigente. O laudo pericial às f. 293/300 e sua complementação às f. 314-315, trouxe as seguintes conclusões: 7.2 NEXO CAUSAL (…) Fica portanto estabelecido o nexo causal, entre o posto de trabalho e o distúrbio. Entretanto, o posto de trabalho não agiu isoladamente n desenvolvimento do distúrbio. Fatores como eventuais movimentos da vida diária e a própria constituição física da Reclamante atuaram em concausa par ao desenvolvimento do distúrbio. 7.3 INCAPACIDADE Devido às dores referidas pela Reclamante, tornase impossível seu retorno ao trabalho que executava na Reclamada. De acordo com a literatura médica atual, entende-se que os indivíduos com propensão à desenvolver LER/DORT, quando curados de seu quadro álgico, podem voltar a desenvolver os mesmo sintomas se retornarem ao trabalhar nas mesma atividades, realizando os mesmo movimentos. Sendo assim, a Reclamante deve evitar realizar trabalhos que exijam a realização de movimentos repetitivos. A maioria dos autores considera que o quadro álgico não é permanente, e se tratado corretamente e evitando-se os movimentos repetitivos, tem boa evolução. 8.CONCLUSÃO 8.1 Estabelecido o nexo causal, que atuou em concausa. 8.2 Arbitro as incapacidades nos graus e períodos seguintes: 8.2.1 No percentual de 100% em caráter definitivo para atividades que necessitem de movimento repetitivo. 8.2.2 No percentual de 80% em caráter temporário arbitrado em um ano, período no qual a Reclamante deve realizar tratamento adequado. Após esse período R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 348 a Reclamante poderá realizar atividades trabalhistas que não necessitem de movimentos repetitivos. (f. 296-297) Em depoimento, o preposto do reclamado trouxe as seguintes afirmações: … que a própria reclamante informou ao médico do trabalho da reclamada não ter condições de desempenhar qualquer função, razão pela qual lhe foi concedida licença sem remuneração para possibilitar a habilitação junto ao INSS; que a informação quanto à incapacidade total da reclamante para o trabalho restou devidamente formalizada através da confecção de ASO por informações passadas pela reclamante ao Médico do Trabalho; ... (f. 323) A decisão julgou improcedentes os pedidos argumentando que a análise da responsabilidade indenizatória da empresa é subjetiva e, nesse formato, não ficou comprovada a existência de ação ou omissão dolosa ou culposa do Banco, nem sequer de nexo de causalidade capaz de ensejar a reprimenda requerida na inicial. Concluiu o Magistrado que, diante do laudo pericial e da própria confissão da autora de não ter condições de retornar à sua atividade laboral, não houve qualquer atividade ilícita do recorrido em manter a trabalhadora afastada de seus serviços, sendo esta atitude reveladora da preocupação com a saúde e o bem-estar da reclamante. Registre-se que a causa de pedir nesta lide não é a situação comumente enfrentada por este Regional referente à incapacidade laborativa causada por doença do trabalho. Consoante os termos da petição inicial, ratificados nas razões recursais, a causa de pedir restringe-se aos prejuízos moral e material causados pela conduta omissiva da empresa durante os treze meses em que a autora permaneceu sem receber o benefício previdenciário e sem receber salários, ou seja, em total desamparo, sendo privada de qualquer valor remuneratório para prover sua subsistência. Logo, conclui-se pela necessidade de reforma da decisão de primeiro grau. Em primeiro lugar, deve ser esclarecido que a partir da suspensão do benefício previdenciário pelo INSS, ao considerar a obreira apta para o trabalho, não competia à empresa conceder à trabalhadora “licença sem remuneração”. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 349 Como relatado no recurso, essa figura jurídica, na hipótese destes autos, não encontra embasamento legal, ficando demonstrada a omissão voluntária do recorrido em transferir para a obreira o ônus de buscar junto ao Órgão respectivo o recebimento do benefício previdenciário. Ora, nessa situação, competia à empresa pagar à reclamante a remuneração devida e encaminhá-la para função adequada à sua capacidade, já que conforme laudo médico à f. 28, não há declaração de incapacidade total, como alegado pela reclamada, mas sim, especificamente, para exercer a função de caixa no setor operacional. Entretanto, a conduta da empresa foi simplesmente declará-la inapta e fechar-lhe as portas, impondo à obreira o total desamparo, de modo que buscou, sozinha e sem receber qualquer salário, por via judicial em face do INSS, o restabelecimento do auxílio respectivo, para permitir sua subsistência. A obreira ficou “jogada” num limbo, pois após a “alta” dada pelo INSS, não tinha benefício previdenciário e nem salários, sendo que na ótica do Banco reclamado a reclamante estaria em gozo de uma esdrúxula “licença sem remuneração”. Não se pode olvidar que é fundamento basilar da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º, incisos III e IV da CF). Ademais, a valorização do trabalho humano, sobre que é fundada a ordem econômica, tem o fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170 da CF). Note-se que a situação é absurda, partindo da premissa que a doença foi adquirida na prestação de serviços para a empresa, porquanto, conforme laudo pericial, há nexo de causalidade entre a incapacidade laborativa e as atividades desenvolvidas na empresa, e diante de perícia médica destoante do INSS, a trabalhadora vêse sem o auxílio previdenciário e sem os salários da empresa, numa atitude omissiva e muito cômoda por parte do empregador. Causa estranheza a análise dos documentos apresentados pelo Banco, consubstanciados em Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (f. 160-183), Programa de prevenção e R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 350 acompanhamento - LER (f. 185-192), Programa de prevenção e acompanhamento da LER (f. 262-277), dentre outros, nos quais pode-se extrair as seguintes orientações acerca de situação de retorno do empregado após alta previdenciária, “in litteris”: Readaptação e reavaliação No retorno do empregado ao trabalho, será disponibilizada a sua readaptação gradual devidamente reavaliada as suas condições físicas. (f. 187) Alta sem restrição A alta da perícia médica do INSS resultará no retorno gradual em sua função original, com acompanhamento do Serviço Médico ou SESMT – Serviço Especializado de Segurança e Medicina do Trabalho (onde houver) Alta com restrição. Havendo restrição, o CRP – Centro de Reabilitação Profissional do INSS encaminhará o empregado para readaptação em outra função, com acompanhamento do setor de Recursos Humanos e agentes multiplicadores. CRP Centro de Reabilitação Profissional Deverá promover estágio de readaptação funcional, em atividade compatível com sua capacidade laboral. (f. 192). Reabilitação profissional. Reabilitação e Realocação. Havendo recomendação escrita do CRP – Centro de Reabilitação Profissional para que o empregado reabilitado não exerça atividades que envolvam movimentos repetitivos, o setor de Recursos Humanos, em conjunto com os agentes multiplicadores, deverão sugerir atividades alternativas, visando a realocação e reabilitação compatível com as condições físicas do empregado. (f. 274) Observa-se que diante do exame médico constatando a incapacidade da obreira para a atividade de caixa, o Banco deveria ter posto em prática as orientações acima transcritas e ter buscado junto ao Órgão competente, via emissão de nova CAT, a revisão do indeferimento do benefício, pois esse era o dever do empregador, e não optar pela completa omissão deixando a empregada na esdrúxula “licença sem remuneração”, por prazo indeterminado, e sem vislumbrar a possibilidade de reversão do posicionamento adotado pela Previdência Social. Corrobora esse entendimento, o disposto na Norma R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 351 Regulamentadora n. 7 – cujo embasamento jurídico à sua existência e eficácia está contida nos artigos 154 a 159 da CLT - ao estabelecer que: 7.4.8 Sendo constatada a ocorrência ou agravamento de doenças profissionais, através de exames médicos que incluam os definidos nesta NR; ou sendo verificadas alterações que revelem qualquer tipo de disfunção de órgão ou sistema biológico, através dos exames constantes dos Quadros I (apenas aqueles com interpretação SC) e II, e do item 7.4.2.3 da presente NR, mesmo sem sintomatologia, caberá ao médicocoordenador ou encarregado: a) solicitar à empresa a emissão da Comunicação de Acidente do Trabalho - CAT; b) indicar, quando necessário, o afastamento do trabalhador da exposição ao risco, ou do trabalho; c) encaminhar o trabalhador à Previdência Social para estabelecimento de nexo causal, avaliação de incapacidade e definição da conduta previdenciária em relação ao trabalho; d) orientar o empregador quanto à necessidade de adoção de medidas de controle no ambiente de trabalho. Da leitura da norma transcrita, fica claro que o ônus de encaminhar o trabalhador à Previdência, visando a estabelecer o nexo causal que enseje o recebimento do benefício respectivo era da recorrida, sendo tal expediente uma obrigação que onera todo e qualquer empregador. Observa-se à f. 258 dos autos, cartaz do recorrido com a seguinte mensagem: “Saúde no trabalho. A sua saúde é da nossa conta. Vamos todos trabalhar por ela”. Em que pese essa política divulgada pela empresa, na situação em exame, a recorrida incorreu em omissão voluntária gerando grande prejuízo material e moral à trabalhadora. Quanto ao instituto do dano moral, acresce salientar que a Constituição Federal de 1988 apresentou novos contornos definindo como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) e, coerente com a idéia de valorizar o indivíduo enquanto ente justificador da existência R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 352 do Estado e célula última do grupo social, estabelece no seu art. 5º, inciso V, que é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. A proteção conferida pelo Direito ao patrimônio jurídico do indivíduo não pode estar restrita a sua dimensão material econômica devendo abarcar também valores pessoais de cunho íntimo, sentimentos e conceitos de natureza imaterial que, conquanto, desde logo não possuam expressão econômica, são passíveis de agressão na inter-relação humana e, por isso, necessitam da tutela do Direito, até com maior necessidade do que aquela conferida aos bens materiais, já que a dor, o sofrimento e a ofensa não podem ser desfeitos ou repostos. Em reforço dessa proteção, dispõe o inciso X do artigo 5º da Constituição Federal que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Assim, o Direito positivo vigente institui, de forma definitiva, a noção de que são reparáveis não apenas as lesões de natureza patrimonial, mas também as de cunho imaterial, o chamado dano moral. Encontram-se diversas definições e conceitos na doutrina sobre o que vem a ser o dano moral, nas quais se destaca a lesão a direito personalíssimo produzida ilicitamente por outrem de Orlando Gomes mencionada por Valdir Florindo, na obra “Dano Moral e o Direito do Trabalho” (2. ed. São Paulo: LTr, 1996, p. 33). Sérgio Pinto Martins leciona que “O dano moral é a lesão sofrida pela pessoa no tocante à sua personalidade, envolvendo um aspecto não econômico, não patrimonial, mas que atinge a pessoa no seu âmago” (Dano Moral no Direito do Trabalho, “in” Trabalho & Doutrina. São Paulo: Saraiva, n. 10, Setembro/1996, p. 76). Ampliando o conceito em tela, Savatier aduz que o “dano moral é qualquer sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária” (“apud” Caio Mário da Silva Pereira. Responsabilidade civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 54). Sucintamente, o dano moral reside na dor pessoal, no R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 353 sofrimento íntimo, no abalo psíquico e na ofensa à imagem que o indivíduo projeta no grupo social. Não há dúvida de que restaram caracterizados no caso em tela os pressupostos para caracterização da responsabilidade civil da empresa reclamada pelo dano moral em questão, quais sejam o ato ilícito, o dano, a culpa e o nexo causal, nos termos dos arts. 186 e 927 do Código Civil, a seguir transcritos: Art. 186 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927 - Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Ressalte-se que nos casos de dano moral consubstanciado em sofrimento íntimo, em situações singulares, a sua indenização prescinde de prova, dado a sua subjetividade. O dano, em tais hipóteses, será presumido e a vítima, para fazer jus à indenização respectiva, terá que provar não o dano em si, mas sim o ato ilícito por parte de outrem que lhe atinja de forma concreta e que tenha grande probabilidade de lhe causar sofrimento, para tanto considerando-se como parâmetro o homem médio. O ato ilícito e a culpa do reclamado pelo dano moral em tela decorrem da omissão em não conduzir a reclamante à função compatível com sua capacidade laborativa, custeando seus salários enquanto negado o benefício previdenciário e, ainda, em não emitir nova CAT, de forma a buscar no Órgão competente o restabelecimento do auxílio doença-acidentário. O nexo de causalidade entre o omissão ilícita da empresa reclamada e a lesão imaterial suportada pela reclamante é patente, pois não há dúvida de que - tomando-se em consideração a percepção do homem médio - na situação de total desamparo vivenciada pela autora, permanecendo treze meses sem receber o auxílio previdenciário, porque considerada apta ao trabalho pelo INSS, e sem perceber seus salários, porque não aceito o retorno ao trabalho pela empresa, sem ter como prover a si e à sua família e diante da indefinição do quadro narrado; a dor pessoal, o sofrimento íntimo, o abalo psíquico e o constrangimento tornam-se patentes. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 354 O art. 944 do Código Civil estabelece que “a indenização mede-se pela extensão do dano” acrescentando seu parágrafo único que “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização”. O Código Civil dispõe acerca da fixação de danos materiais, correspondentes aos lucros cessantes e danos emergentes, conforme estabelecem os arts. 949 e seguintes. No entanto, relativamente ao dano moral limita-se à diretriz do art. 944, acima transcrito. A indenização deferida não deve constituir-se em enriquecimento sem causa da vítima, com quantias abusivas e exageradas, o que impõe ao julgador um arbitramento moderado e proporcional ao grau de culpa do agente ofensor. Assim, observadas a capacidade econômica do ofensor, a posição social do ofendido, e o caráter pedagógico que a presente indenização deve imprimir, no sentido de evitar que outros trabalhadores sejam submetidos à situação vexatória suportada pela reclamante destes autos, voto para fixar a indenização pelos danos morais em cem salários mínimos atuais, cujo montante resulta R$ 46.500,00 (quarenta e seis mil e quinhentos reais), por ser esse o limite do pedido, para que não resulte em julgamento “ultra petita”. Entretanto, este Relator restou vencido quanto ao “quantum”, prevalecendo o voto da Revisora, no particular, que fixou a indenização por danos morais em R$19.000,00 (dezenove mil reais). Deve-se esclarecer que o montante supra foi fixado a partir do voto médio, uma vez que o Desembargador Vulmar de Araújo Coêlho Junior negava a indenização por danos morais. Portanto, dois votos concediam a indenização por danos morais, sendo que o voto médio em relação ao “quantum” restou em R$19.000,00 que foi o valor proposto pela Revisora. 2.2.2 DANO MATERIAL A obreira requereu a indenização pelos danos materiais na R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 355 modalidade de danos emergentes, consubstanciado nos salários não recebidos do período em que teve alta da Previdência e não foi estabelecido o retorno ao trabalho pela empresa. Por oportuno, passa-se a estabelecer um paralelo entre a situação vivenciada pela autora e a hipótese de reintegração forçada, quando incompatível com a harmonia necessária ao ambiente de trabalho. Nesse último caso, a doutrina aponta para a possibilidade de se impor ao empregador o pagamento dos salários, mesmo sem a prestação de serviços, de modo a não sujeitar o empregado à hostilidade presente na empresa e, ao mesmo tempo, não ferir o direito à garantia de emprego do trabalhador. Nessa linha de raciocínio, cita-se a lição de Délio Maranhão, “in verbis”: “Ninguém poderá impedir que o empregador faça cessar, materialmente, a relação de trabalho. Mas se o fizer - como salienta Valente Simi - será em seu prejuízo, porque, “não tendo poder de fazê-lo cessar do ponto de vista jurídico, a relação continua com todas as obrigações a seu cargo como se o empregado estivesse prestando o trabalho que é impedido de prestar” (Instituições de Direito do Trabalho, v. 1. LTR, 1994. p. 535). Ora, se é possível o pagamento dos salários sem a prestação dos serviços respectivos quando o impedimento é de ordem interpessoal, porquanto os relacionamentos por qualquer motivo estão hostilizados, quanto mais, na situação dos autos em que o impedimento para a execução da função anteriormente desenvolvida pela obreira é doença profissional cuja responsabilidade pesa sobre a empresa. Do exposto e consoante análise já delineada no tópico anterior, restaram configurados os elementos que constituem a responsabilidade civil subjetiva da empresa pela omissão voluntária, competindo apenas a verificação do limite imposto pelo pedido da obreira quanto ao período em que permaneceu sem receber sua remuneração. Confessou a reclamante em audiência realizada em 31/03/2009 (f. 323) que estava recebendo auxílio previdenciário por força de decisão judicial e que o período em que permaneceu R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 356 sem receber auxílio previdenciário e sem salários foi de 13 meses, entretanto, a petição inicial traz expresso o período de dez meses. Assim, estando incontroverso nos autos a não percepção dos salários, ante as declarações da reclamada em contestação e depoimento pessoal, deve ser deferida à obreira a restituição dos danos materiais suportados, relativo à remuneração correspondente ao período de 10 (dez) meses, no valor de R$ 19.000,00 (dezenove mil reais). Ressalte-se que, no particular, a obreira pleiteou a dobra desses salários, o que não encontra amparo legal, razão pela qual foi fixado o montante de modo simples, ou seja, 19.000,00 (dezenove mil reais). 2.2.3 JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA O entendimento deste Regional é no sentido de não aplicar à indenização por danos morais, no que concerne à correção monetária, a Lei n. 8.177/91 e Súmula n. 381 do TST, devendo, nessa hipótese, ter por termo inicial a data da sentença ou do acórdão que fixou o valor da compensação respectiva. Nesse sentido foi o julgado proferido nos autos de nº 00894.2006.005.14.00-7, cuja ementa segue transcrita nas próximas linhas: INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CORREÇÃO MONETÁRIA. Não se aplicam à indenização por danos morais, quanto à correção monetária, a Lei n. 8.177/91 e a Súmula n. 381 do TST. A correção monetária, na hipótese, tem por termo inicial a data da sentença ou do acórdão que fixou o valor da compensação respectiva. Recurso provido, no particular. (Relator: Shikou Sadahiro. Data do Julgamento: 14/06/2007, Pleno, Data da Publicação: 20/06/2007). O mesmo raciocínio não se aplica ao dano material, pois tal montante deixou de compor o patrimônio da pessoa lesada anteriormente à prolação da sentença e para seu deferimento o valor deve ser certo. Portanto, em relação à indenização por dano material deve ser realizada a aplicação de juros e correção monetária R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 357 na forma legal. Quanto à indenização por dano moral a correção monetária será calculada a partir da publicação do presente acórdão. 2.3 CONCLUSÃO DESSA FORMA, conhece-se do recurso ordinário, no mérito dá-se-lhe provimento para deferir à obreira: a) indenização por danos morais no montante de R$ 19.000,00 (dezenove mil reais), vencido no particular o Relator apenas quanto ao “quantum”; b) indenização por danos materiais em R$ 19.000,00(dezenove mil reais). Juros e correção monetária na forma da fundamentação. Custas pelo Banco-reclamado no importe de R$ 760,00, calculadas sobre o valor da presente condenação (R$ 38.000,00). 3 DECISÃO ACORDAM os Magistrados integrantes da 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, à unanimidade, conhecer do recurso ordinário; no mérito, por maioria, dar-lhe provimento, nos termos do voto do Relator. Vencido parcialmente o Relator quanto ao valor do dano moral. Vencido parcialmente o Desembargador Vulmar de Araújo Coêlho Junior que não deferia a indenização por danos morais. Sessão de julgamento realizada no dia 26 de agosto de 2009. Rio Branco-AC, 26 de agosto de 2009. SHIKOU SADAHIRO JUIZ-RELATOR R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.341-355, jul./dez. 2009 358 359 SENTENÇAS 360 361 PROCESSO: 00031.2008.131.14.00-6 TERMO DE AUDIÊNCIA RITO ORDINÁRIO Em 06/05/2008, às 11h Aos 06 (seis) dias do mês de Maio de 2008, às 11h00, sob a direção do Excelentíssimo Juiz do Trabalho JOSÉ ROBERTO DA SILVA, auxiliando na titularidade da Vara do Trabalho de ROLIM DE MOURA – RO, em atividade itinerante em NOVA BRASILÂNDIA D’OESTE – RO, foi prolatada a seguinte SENTENÇA no processo em que são litigantes: DONIZETE PEREIRA BORGES (reclamante) e JOSÉ MACIEL DOS SANTOS, SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE NOVA BRASILÂNDIA D’OESTE, COMISSÃO ELEITORAL DO SINDICATO, EZEQUIAS VIEIRA AZEVEDO, ALTAMIRO VICENTE FIRMINO e CECÍLIO SILVERIANO PENEDA (reclamados). SENTENÇA 1 – RELATÓRIO O reclamante postula a anulação do ato jurídico proveniente do Sindicato que impediu sua inscrição ao processo eleitoral para composição da nova diretoria da entidade, a pretexto de ser detentor do cargo de vice-prefeito no município de Nova Brasilândia d’Oeste. Afirma que a restrição estatutária de vedar a participação de exercentes de cargos políticos das três esferas do poder nas eleições é “autoritária e antidemocrácita”, por infringir dispositivos da consolidação e outras normas nacionais e alienígenas que tratam da liberdade sindical. Prossegue asseverando que a alteração do dispositivo do estatuto foi fraudulenta, engendrada com o único propósito de obstar sua candidatura. Nesse sentido, alega que a assembleia de 2006 que tratou da alteração da cláusula estatutária contou com a participação de apenas vinte pessoas, mas que a ata lavrada na oportunidade consignou a presença de mais de trezentas pessoas, apenas para simular a existência de quorum necessário à alteração do estatuto – à guisa de comprovação encartou à exordial declarações em que pretensos filiados negam haver comparecido ao evento. Sugere que a resistência à sua candidatura decorra da mudança de sua filiação política partidária, diversa da imperante no Sindicato. Invocou a concessão de liminar objetivando a suspensão das eleições designadas para 18.02.2008. Pleiteou, por fim, a procedência (fls. 02/23), tendo juntado documentos (fls. 25/184). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.359-367, jul./dez. 2009 362 O reclamante emendou a petição inicial para incluir como litisconsorte passivo o SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE NOVA BRASILÂNDIA D’OESTE (fl. 187), cumprindo os termos do r. despacho de folha 185. O pedido de antecipação de tutela foi indeferido, tendo a r. decisão feito referência a um segundo fundamento utilizado pelo Sindicato para vedar a participação do obreiro no processo eleitoral – e por ele omitido na exordial: o de não comprovar “pelo menos 12 (doze) meses de exercício de atividade rural abrangendo (rectius: abrangida) pelo art. 2° na base territorial representada pelo Sindicado, ainda que não contínuos e desde que não tenha mudado de categoria durante este período” (fl. 189). Na audiência inaugural de 30.01.2008 (fls. 206/208) os reclamados ofereceram defesa comum em que alegaram que a ordem constitucional vigente não recepcionou as disposições da CLT no tocante à estrutura interna dos sindicatos, razão pela qual encontram-se revogadas, entre outras, as disposições consolidadas que disponham acerca das condições de elegibilidade. Nesse diapasão, cada entidade sindical deve estabelecer critérios específicos para a participação dos interessados no certame eleitoral. Além disso, afirmam que ainda que se considere válidos os preceitos consolidados acerca do processo eleitoral, devem eles ser contextualizados à realidade social hodierna, em que a liberdade sindical é um imperativo constitucional, o que implica reconhecer que a enumeração constante nos artigos 529 e 530 da CLT não é fechada, limitada (numerus clausus). Não houve fraude na assembleia que alterou o estatuto para vedar a participação de políticos nas eleições sindicais; os signatários das declarações prestadas deverão ser ouvidos em audiência judicial sob compromisso e as suas assinaturas cotejadas por perito com as constantes na ata da assembleia. O candidato, para participar do processo eleitoral, deve comprovar o exercício de atividade rural por doze (12) meses e não pode exercer cargo político, condições estas não preenchidas pelo reclamante, que deixou de desenvolver atividade rurícola ao assumir o cargo de vice-prefeito do Município de Nova Brasilândia d’Oeste – RO. Os pedidos são improcedentes, devendo o reclamante responder pelos ônus da sucumbência (fls. 243/257). Juntou documentos (fls. 258/299). A seguir os autos do processo foram enviados pelo Juízo à Procuradoria Regional do Trabalho da 14ª Região, que os devolveu afirmando ser desnecessária a manifestação do Ministério Público em R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.359-367, jul./dez. 2009 363 feitos que tramitam em primeira instância. Esclareceu que, quando muito, a atuação ministerial poderia se dar extrajudicialmente, para restaurar a legalidade ofendida pelo ato do dirigente sindical, se ficar reconhecida a irregularidade na alteração estatutária denunciada pelo autor (fls. 303/304). O reclamante foi instado a se manifestar sobre a contestação e documentos (fl. 305), tendo, nesse sentido, requerido o prosseguimento do feito (fl. 307). Na audiência de 06.05.2008 foram ouvidos o reclamante, o representante do Sindicato e as testemunhas que indicaram. As propostas conciliatórias foram rejeitadas. É este o relatório, pelo que decido. 2 – COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA A Emenda Constitucional nº 45/2004 ampliou a competência “ratione materiae” da Justiça do Trabalho, atribuindolhe o julgamento das “ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores” (CF – art. 114, III). 3 – ILEGITIMIDADE DE PARTE A inserção no polo passivo da ação de JOSÉ MACIEL DOS SANTOS, COMISSÃO ELEITORAL DO SINDICATO, EZEQUIAS VIEIRA AZEVEDO, ALTAMIRO VICENTE FIRMINO e CECÍLIO SILVERIANO PENEDA é incabível, considerando que neste feito o reclamante não objetiva a declaração de nulidade de um ato jurídico cometido por eles, mas sim, tecnicamente, de ato praticado pelo próprio sindicato. Aliás, não é possível conceber que as pessoas nominadas (a COMISSÃO ELEITORAL DO SINDICATO nem personalidade jurídica possui), tenham, por ato próprio, obstado a candidatura eleitoral do reclamante. Agiram, sim, seguindo as disposições existentes no estatuto social da entidade sindical (as quais, se legítimas ou não, serão apreciadas no mérito). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.359-367, jul./dez. 2009 364 A exemplo do que ocorre com a Administração Pública e outras entidades associativas, o sindicato é considerado um todo quando comete atos típicos de seu objeto social, porém dividido em órgãos despersonalizados para otimização das funções executadas pelo organismo, conforme a concepção exposta por Otto von Gierke, em sua “Teoria do Órgão”. Logo, extingue-se o processo sem resolução de mérito, por ilegitimidade de parte dos nominados alhures, nos termos do artigo 267, VI do CPC. 4 – INTERESSE DE AGIR As eleições foram realizadas no dia 18.02.2008, conforme demonstra a cópia do “edital de convocação” (fl. 26), tendo a prova de mesa revelado que a nova diretoria eleita já tomou posse . A antecipação da tutela pretendida pelo reclamante para a inscrição de sua chapa no processo eleitoral foi indeferida pelo r. despacho de folha 189. Neste contexto, julgo extinto o pedido da alínea “a” da petição inicial, por falta de interesse de agir superveniente (CPC – art. 267, VI). 5 – MÉRITO O inciso I do artigo 8º, da Constituição Federal consagra a autonomia sindical, ao dispor que a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato e ao vedar a interferência e a intervenção do Poder Público na organização sindical. Como norma proibitiva, a disposição é autoaplicável. Ficaram, portanto, tacitamente ab-rogadas, desde a promulgação da Constituição de 1988, pela não recepção, entre outras, as disposições da CLT sobre eleições sindicais (arts. 529 a 532) (1). 1 “A autonomia implica também a circunstância de os sindicatos elegerem livremente seus representantes, sem se sujeitarem às condições exigidas para o exercício do direito de voto, elegibilidade e procedimento das eleições previstos nos art. 529, 530, 531 e 532 da CLT, a nosso ver revogados, em face do disposto R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.359-367, jul./dez. 2009 365 A liberdade sindical ainda não é plena no país, nos moldes preconizados na Convenção Internacional n° 87 da OIT – que ainda não foi ratificada pelo Brasil (2) – pois, entre outros óbices, ainda persiste no ordenamento jurídico, o princípio da unidade sindical (CF – art. 8°, II) e a exigência da contribuição sindical obrigatória (CLT – art. 579). Ademais das restrições à plena liberdade sindical, o fato é a que ordem constitucional assegura aos sindicados a prerrogativa institucional do autogoverno e da autodeterminação, decorrendo daí o direito de a entidade sindical elaborar e aprovar o seu próprio estatuto, seguindo os parâmetros da legislação civil (CC – art. 46; Lei 6015/73 – art. 114 e seguintes), não mais prevalecendo as exigências contidas no artigo 518 consolidado. A autonomia sindical é um conceito plenamente aceito nos vários segmentos sociais, como nos revela, exemplificativamente, as razões do veto ao artigo 6° da Lei nº11.648/2008 (3), que trata das centrais sindicais. A concepção se coaduna com os pressupostos de uma democracia pluralista encampados na Constituição, que rompeu 2 3 no inciso I do art. 8° da Constituição da República de 1988, in “Curso de Direito do Trabalho”, Alice Monteiro de Barros, in “Curso de Direito do Trabalho”, São Paulo: LTr, 2005. p. 1166. “No Governo Eurico Gaspar Dutra, o Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional projeto de ratificação da Convenção n° 87 da OIT. A câmara dos Deputados o aprovou. O Senado não. Outras iniciativas no mesmo sentido foram dificultadas, inclusive por parcelas do próprio movimento sindical, contrárias à extinção da contribuição sindical e favoráveis à preservação do princípio do sindicato único; supõem que, sem essa garantia legal, haveria o fracionamento do movimento sindical brasileiro; não percebem, no entanto, que, apesar dessa proibição, o sistema sindical brasileiro está bastante dividido. Existem diversas centrais sindicais (em 2000, cinco) e milhares de sindicatos (no mesmo ano, cerca de 16.500). Logo, o sistema legal não evita a divisão do sindicalismo. Há mais unidade sindical em países de pluralidade sindical do que no Brasil, com o sistema da unicidade sindical. Naqueles, os sindicatos se unem, livremente. Em nosso país, a mesma lei que os une os condena a viver separados”. “O art. 6o viola o inciso I do art. 8o da Constituição da República, porque estabelece a obrigatoriedade dos sindicatos, das federações, das confederações e das centrais sindicais prestarem contas ao Tribunal de Contas da União sobre a aplicação dos recursos provenientes da contribuição sindical. Isto porque a Constituição veda ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical, em face o princípio da autonomia sindical, o qual sustenta a garantia de autogestão às organizações associativas e sindicais.” R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.359-367, jul./dez. 2009 366 com o falso pluralismo corporativista, consoante o qual os “corpos intermediários” – referidos por Montesquieu, em “O espírito das leis” – seriam portadores de uma autonomia delegada, pela qual conservariam a autonomia natural, mas estariam impregnados da consciência do Estado, de modo que todas as suas ações e determinações seriam harmônicas com as normas mais gerais emanadas do poder central (4). Traçadas tais premissas, considero que as assembleias gerais são soberanas para deliberar sobre o destino da entidade sindical, podendo dispor livremente sobre quaisquer assuntos, desde que não sejam contrários à lei ou ao próprio estatuto social. Nesse sentido a cláusula 12° e seguintes do Estatuto Social do Sindicato (fls. 31 e 215). É incontroverso nos autos que o reclamante exerce o cargo de vice-prefeito no município de Nova Brasilândia d’Oeste – RO, tendo tomado posse em janeiro/2005, circunstância que o tornaria inelegível para assumir qualquer cargo eletivo na entidade sindical, com fulcro na alínea “d” ao artigo 67 do Estatuto Social do Sindicato (fls. 42 e 227). Entretanto, a prova revela que a assembleia geral que deliberou pela inclusão da alínea “d” ao artigo 67 do Estatuto Social do Sindicato (fls. 42 e 227) considerou a presença de pessoas que não compareceram ao evento, além de outras que nem ostentavam a condição de associadas à entidade sindical, o que caracteriza vício na composição daquela reunião. Com efeito, a testemunha SANDRA CIZMOSKI – que é empregada do sindicato, não ostentando a condição de filiada, mas cujo nome consta na folha 60 – afirmou que assinou a lista de presença à Assembleia depois de seu retorno aos serviços, após a sua licença maternidade. SANDRA esclareceu ainda que a lista de presença estava disponível no sindicato, para assinatura dos interessados. 4 MAGANO, Octávio Bueno. Do poder diretivo na empresa. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 152-155. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.359-367, jul./dez. 2009 367 FRANCISCO SEVERINO DOS SANTOS e CLEBER FELICIANO também negaram a presença naquele evento, muito embora o nome de ambos tenha sido lançado na lista de presença (fl. 59). As informações prestadas pelas testemunhas sugerem, portanto, a manipulação indevida da lista de presença, com a inclusão de pessoas não filiadas ao sindicado, ou, muito menos, que nem compareceram à sessão, razão pela qual declaro nula de pleno direito (CC – art. 104, III) a alínea “d” ao artigo 67 do Estatuto Social do Sindicato (fls. 42 e 227), pela irregularidade na composição da Assembleia Geral. Já no que tange à aplicação da alínea “c” do artigo 67 do Estatuto Social do Sindicato (fls. 42 e 227), que preconiza ser inelegível o candidato que “não tiver pelo menos 12 (doze) meses de exercício de atividade rural abrangendo (rectius: abrangida) pelo art. 2° na base territorial representada pelo Sindicado, ainda que não contínuos e desde que não tenha mudado de categoria durante este período”, tratando-se de condição proibitiva, considero inaplicável a interpretação restritiva dado pelo Sindicato no sentido de que o candidato esteja no exercício de atividade rurícola nos últimos doze meses (fl. 255). Rigorosamente, por força da liberdade sindical em voga no país, interpreto o dispositivo como previsão de que o candidato tenha exercido atividade rural nos moldes preconizados no artigo 2º do estatuto social por ao menos doze meses, independentemente do período em que isso tenha ocorrido. Ainda que assim não fosse, ao depor o reclamante declarou que conjuga as atividades políticas com as rurais, o que é plenamente factível com a realidade regional, já que o município de Nova Brasilândia d’Oeste – RO constitui uma cidade de pequeno porte, que permite, como revelam as máximas da experiência, que ocupantes de cargo no executivo municipal – especialmente os que não exerçam a titularidade, como o vice-prefeito – pratiquem outras atividades além daquelas para os quais foram originalmente eleitos. Não se pode olvidar, ainda, que em época pretérita o reclamante foi presidente do sindicato reclamado, inexistindo qualquer elemento que aponte a sua desfiliação da entidade. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.359-367, jul./dez. 2009 368 Rejeita-se, assim, a aplicação da alínea “c” do artigo 67 do Estatuto Social do Sindicato como motivo para a rejeição da candidatura do reclamante. 6 – OFÍCIO À PROCURADORIA REGIONAL DO TRABALHO DA 14ª REGIÃO Expeça-se ofício à Procuradoria Regional do Trabalho da 14ª Região em decorrência da irregularidade na formação da Assembléia Geral reconhecida acima. 7 – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS Condeno a reclamada ao pagamento da verba honorária pela sucumbência no processo, no importe de R$1.500,00 (Instrução Normativa nº 27 do C. TST). 8 – CONCLUSÃO Pelo exposto, o Juízo auxiliar da VARA DO TRABALHO DE ROLIM DE MOURA – RO, em atividade itinerante em NOVA BRASILÂNDIA D’OESTE – RO, extingue sem resolução do mérito, por ilegitimidade de parte, o processo em face JOSÉ MACIEL DOS SANTOS, COMISSÃO ELEITORAL DO SINDICATO, EZEQUIAS VIEIRA AZEVEDO, ALTAMIRO VICENTE FIRMINO e CECÍLIO SILVERIANO PENEDA e, por falta de interesse de agir superveniente, o pedido de inscrição de chapa ao processo eleitoral sindical, tudo nos termos do artigo 267, VI do CPC; e, no mérito, julga PROCEDENTES EM PARTE os pedidos formulados por DONIZETE PEREIRA BORGES em face do SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE NOVA BRASILÂNDIA D’OESTE para: a) Declarar nula a alínea “d” ao artigo 67 do Estatuto Social do Sindicato e inaplicável a sua alínea “c”, conforme a fundamentação. b) Condenar o sindicato a pagar honorários advocatícios de R$1.500,00; Custas calculadas sobre o valor de R$1.500,00, no importe de R$30,00, a cargo do reclamado. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.359-367, jul./dez. 2009 369 Corrija-se a autuação e demais registros quanto ao pólo passivo, considerando os termos do item 03; expeça-se ofício à Procuradoria Regional do Trabalho da 14ª Região para a apuração de possível ato antissindical praticado nas hostes SINDICATO DOS TRABALHADORES RURAIS DE NOVA BRASILÂNDIA D’OESTE . Cientes as partes. JOSÉ ROBERTO DA SILVA Juiz do Trabalho R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.359-367, jul./dez. 2009 370 371 PROCESSO: 00333.2009.401.14.00-8 TERMO DE AUDIÊNCIA Em 05/06/2009, às 12h00min Reclamante:MARIO DA COSTA SILVA Reclamado: MARTINS COMÉRCIO E SERVIÇOS DE DISTRIBUIÇÕES S/A OBJETO: Conforme inicial SENTENÇA I - RELATÓRIO MARIO DA COSTA SILVA, qualificado na petição inicial e assistido por seu advogado constituído no instrumento procuratório de fl. 34, ajuizou reclamação trabalhista em face de MARTINS COMÉRCIO E SERVIÇOS DE DISTRIBUIÇÕES S/A, postulando reconhecimento de vínculo empregatício com a consequente condenação desta no pagamento de verbas trabalhistas e rescisórias, além de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho e honorários advocatícios, tudo mediante os fundamentos fáticos aduzidos no petitório de fls. 02/33. Regularmente notificada, a reclamada compareceu à audiência e, depois de recusada a primeira tentativa de conciliação, apresentou sua defesa através da peça de fls.73/112, suscitando preliminares de prescrição quinquenal e ilegitimidade ativa e passiva. No mérito, sustentou a improcedência dos pedidos sob alegação de inexistência de liame empregatício entre as partes, tendo havido mera prestação de serviços decorrentes de contrato de representação comercial autônoma. Por fim, apresentou pedido contraposto relativo ao aviso prévio (denúncia do contrato) alegadamente devido pelo autor à reclamada, tendo ainda requerido a compensação de quaisquer valores eventualmente deferidos ao obreiro. Estabelecido o valor da alçada em R$ 303.893,29-. Por meio da petição de fls. 214/243, sob alegação de R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.369-377, jul./dez. 2009 372 manifestação dos documentos juntados com a contestação, veio a parte autora a apresentar verdadeira réplica à defesa da reclamada. Aberta a audiência de instrução, em busca da verdade real, o juízo tomou o depoimento pessoal dos litigantes, tendo estes adiantado que não produziriam prova testemunhal. Sem pendências, encerrou-se a instrução e as partes aduziram razões finais remissivas à inicial e contestação, respectivamente. Também restou infrutífera a segunda proposta de acordo. É o relatório. Passo a decidir. II – FUNDAMENTOS DA DECISÃO QUESTÃO PROCESSUAL – DO PEDIDO CONTRAPOSTO Deixo de analisar o pedido “contraposto” apresentado pela reclamada, vez que para tal finalidade deveria a empresa fazer se valer do remédio jurídico adequado (reconvenção), inexistindo possibilidade de apresentar pedido em face do autor por meio de contestação diante da natureza do referido ato. CAUSAM PRELIMINARMENTE – DA ILEGITIMIDADE ATIVA AD Aduz a parte reclamada a ilegitimidade ativa ad causam da pessoa física do reclamante em razão deste, durante todo o período contratual, ter prestado serviços através de pessoa jurídica regularmente constituída e ativa. Contudo, não há como prosperar a referida preliminar. É que uma vez alegado pela parte autora a titularidade do direito invocado em juízo presente se encontra a legitimação ativa. Somente com o exame do mérito decidir-se-á pela configuração ou não da relação postulada, não havendo que se confundir relação jurídica material com relação jurídica processual, vez que nesta a legitimidade deve ser apurada apenas de forma abstrata. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.369-377, jul./dez. 2009 373 Diante do exposto, rejeito a preliminar em comento. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE PASSIVA Do mesmo modo que ocorre com os elementos necessários à determinação da competência, as condições da ação devem ser verificadas na petição inicial segundo a versão que o autor dá aos fatos e de acordo com a interpretação que ele mesmo adota para o direito aplicável ao conflito de interesses (in status assertiones). No caso dos autos, o autor alega que embora tenha, de fato, mantido formalmente mero contrato de representação comercial autônoma, na realidade, laborava em favor da reclamada sob nítida relação empregatícia, pugnando, desta feita, pelo reconhecimento do liame em razão do princípio da primazia da realidade. Com estas considerações, rejeito a preliminar. PRELIMINAR DE PRESCRIÇÃO A prescrição (assim como a decadência), de acordo com a didática adotada pela legislação processual civil em vigor, não é matéria que mereça apreciação na qualidade de preliminar por parte do Magistrado, vez que não se encontra albergada dentre as hipóteses de condições da ação tampouco de pressupostos processuais. Na realidade, a prescrição nada mais é que “prejudicial de mérito”, já que uma vez acolhida não implica na extinção do processo sem análise de mérito, mas ao revés, provoca o julgamento da ação com resolução deste (art. 269 do CPC). Contudo, embora veiculada na peça defensiva na qualidade de “preliminar”, a parte reclamada não sofrerá nenhum prejuízo de ordem processual, pois a referida prejudicial de mérito deve ser analisada independentemente da nomenclatura que lhe fora atribuída na contestação, podendo, inclusive, ser decretada ex-officio, de acordo com a novel legislação. No caso dos autos, suscitou o reclamado a prescrição quinquenal dos pedidos apresentados pelo autor, assim como do alegado contrato mantido anteriormente ao ano de 2006, com fulcro no que preceitua o art. 7º, XXIX da CF/88. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.369-377, jul./dez. 2009 374 Desta forma, acolhe-se a prescrição qüinqüenal argüida em tempo oportuno pela parte ré com fulcro no art. 7º, XXIX da CF/88, declarando-se prescritos os efeitos pecuniários de todas as parcelas eventualmente deferidas ao autor anteriores a 13/04/2004. QUESTÃO PREJUDICIAL – DA EXISTÊNCIA DE LIAME EMPREGATÍCIO Em sua peça vestibular, o reclamante assevera ter laborado para a reclamada na função de vendedor com subordinação jurídica, habitualidade, onerosidade e pessoalidade, em fim, todos os requisitos caracterizadores do liame empregatício, tal qual previsto nos arts. 2º e 3º da CLT, razão pela qual requereu o reconhecimento judicial da referida relação, com a condenação da empresa nos consectários legais. A reclamada, por sua vez, contestou os pedidos do autor sustentando a inexistência de vínculo empregatício com este, asseverando ter havido mera prestação de serviços autônomos decorrentes de contrato de representação comercial (com constituição de pessoa jurídica). Pois bem. Embora reconhecidamente nos dias atuais haja elevado número de tentativas fraude à legislação trabalhista com a indevida precarização das relações do trabalho pela tentativa de descaracterização do liame direto com o empregador através das terceirizações ilícitas ou “pejotizações”, situação esta decorrente do alto custo (tributário) incidente sobre a mão-de-obra e da acirrada competitividade interna e externa de mercado, no caso dos autos não há como não se reconhecer a validade e legitimidade da contratação autônoma firmada com fulcro no que dispõe a Lei nº 4.886 de 09/12/1965. Sem se afastar da vertente protecionista do Direito do Trabalho, tem-se que a questão acerca da existência ou inexistência de liame empregatício entre as partes é resolvida pela mera aplicação do princípio da primazia da realidade, muito bem desenhada nas palavras do poeta popular ao observar que: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.369-377, jul./dez. 2009 375 “Nem todo o beijo é pecado Nem toda fruta é maçã Nem todo réu é culpado Nem toda culpa é cristã Nem toda carta é marcada Nem toda lente é ray-ban Nem toda noite é noitada Nem toda luz é manhã” (Bobo da Corte, Alceu Valença). Com efeito, no caso em concreto, extrai-se do próprio depoimento pessoal do autor não só a ausência de um ou alguns dos requisitos legais previstos nos arts. 2º e 3º da CLT, mas ao revés, observa-se a patente AUSÊNCIA DA MAIORIA dos referidos requisitos legais, valendo destacar, neste sentido, os trechos de seu depoimento, in verbis: “que a reclamada nunca proibiu que o reclamante se fizesse ajudar pela sua esposa ou qualquer outra pessoa na realização de seu mister (…) que após ter deixado de trabalhar com a utilização do nome da pessoa física de sua esposa, a reclamada determinou que o reclamante abrisse pessoa jurídica em seu próprio nome; que não sabe porque foi obrigado a constituir pessoa jurídica enquanto sua esposa não teve tal obrigação, permanecendo vinculada a empresa como pessoa física; que até a presente data a esposa do reclamante continua trabalhando na reclamada através de sua pessoa física; que confirma que embora tenha sido determinada a constituição de pessoa jurídica para que continuasse a trabalhar para a reclamada, já possuía a referida inscrição no CNPJ desde 05/08/1996, conforme documento de fl. 133; (…) que dentre os limites de máximo e mínimo de descontos de cada produto é o reclamante quem tem a abertura para fazer a dosimetria; que o reclamante também poderia aumentar o preço das mercadorias além daquelas inicialmente previstas pela empresa reclamada; (…) que era o próprio reclamante quem arcava com todos os custos de operacionalização dos serviços, tais como, os custos referentes a moradia, alimentação e locomoção; que não havia estipulação da reclamada quanto a forma de atendimento dos clientes, pertencendo ao reclamante a liberdade para organizar sua agenda de forma a reduzir seus custos operacionais;” (Depoimento pessoal do autor, fls. 247/248, destaquei). Quanto à inexistência de subordinação jurídica no caso em concreto, vale trazer à lume lição da i. doutrinadora Alice Monteiro de Barros (in Contratos e Regulamentações Especiais de Trabalho, 3 ed., 2008, p. 551), nos seguintes termos: R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.369-377, jul./dez. 2009 376 “A doutrina oferece alguns critérios que poderão auxiliar na aferição da subordinação jurídica. Marly Cardone, em excelente monografia sobre o tema, fornece uma classificação de circunstâncias que compreendem três espécies de elementos, os quais podem ser sintetizados da seguinte forma: Elementos de certeza: 1.colocação à disposição da empresa da energia de trabalho durante um certo lapso de tempo, diário, semanal ou mensal, com o correspondente controle pela empresa. 2.Obrigação de comparecer pessoalmente à empresa, diária, semanal ou mensalmente. 3.Obediência a métodos de venda da empresa. 4.Fixação de período para viagem ela empresa. 5.Recebimento de instruções sobre o aproveitamento da zona. 6.Obediência a regulamento da empresa. Elementos de indício: 1. Recebimento de quantia fixa mensal. 2. Utilização de material da empresa, pastas, talões de pedidos, lápis, etc. 3. Uso de papel timbrado da empresa. 4. Obrigação de mínimo de produção. 5. Recebimento de ajuda de custo. 6. Obrigação de prestar pessoalmente os trabalhos. Elementos excludentes: 1. Existência de escritório de vendedor e admissão de auxiliares. 2. Substituição constante do vendedor por outra pessoa na prestação do serviço. 3. Pagamento de imposto sobre Serviços. 4. Registro no Conselho Regional dos Representantes Comerciais. 5. Utilização do tempo segundo diretrizes fixadas pelo próprio vendedor, sem qualquer ingerência da empresa contratante. Esclarece a citada autora que os elementos de certeza devem ser encontrados simultaneamente para se concluir pela existência da subordinação jurídica, enquanto os elementos de indício, basta que exista um deles para que o julgador fique alerto, procure os elementos de certeza ou as excludentes e defina a natureza da relação de trabalho” (destaques acrescidos). Desta forma, inexistindo pessoalidade na prestação dos serviços (já que o autor se fazia ajudar ou substituir por sua esposa ou qualquer outra pessoa), ausente também o requisito da subordinação (já que era o autor quem definia a forma de seu trabalho, podendo inclusive decidir pela elevação ou redução do valor das mercadorias), R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.369-377, jul./dez. 2009 377 e ainda, recaindo sobre o obreiro o risco da atividade econômica desenvolvida (já que era ele próprio quem arcava com os custos operacionais), impossível não se reconhecer a validade do contrato de representação comercial autônoma firmado entre as partes e, consequentemente, a inexistência de liame empregatício, razão pela qual julgo improcedente o pedido declaratório em comento, assim como, por prejudicialidade, os demais pedidos consequentes lógicos deste reconhecimento. DA RESPONSABILIDADE CIVIL Em sua peça vestibular, o autor requereu a condenação da parte reclamada no pagamento de indenização por danos morais e materiais (lucros cessantes e danos emergentes) decorrentes de alegado acidente de trabalho sofrido. Apresentou como causa de pedir para as referidas indenizações o fato de não ter recebido “uma visita de algum representante da Empresa” e em razão de ter passado o período de sua convalescência sem receber os salários, razão pela qual se sentiu “deprimido e humilhado, pois sempre trabalhou para obter seu próprio sustento, sendo que, naquela ocasião, por ter a reclamada deixado de pagar seus salários, passou a depender da caridade das pessoas” (fl. 05), ou seja, apresentando como causa de pedir para as pretendidas indenizações o fato de não ter recebido salários durante o referido período por culpa da reclamada que não veio a formalizar o liame empregatício em questão. Ora, tendo sido reconhecida a inexistência de liame empregatício entre as partes, nos moldes supra, sem maiores delongas, a improcedência dos pedidos indenizatórios em comento é medida que se impõe por verdadeira justiça. Ademais, mesmo que assim não fosse, e se viesse a reconhecer a existência do contrato de emprego entre as partes, outra sorte não teria o autor. Com efeito, a discussão na seara do Direito do Trabalho quanto à responsabilidade pelo dano moral e material causado, regra geral, segue os princípios da responsabilidade subjetiva prevista no Código Civil, sendo que apenas em algumas situações peculiares aplica-se a teoria da responsabilidade objetiva ou do risco criado. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.369-377, jul./dez. 2009 378 No caso concreto, a responsabilidade indenizatória da empresa não poderia ser considerada objetiva, mas sim, subjetiva, por não implicar a atividade da reclamada, por si só, risco para terceiros, fato este suficiente para afastar a aplicação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, exceção para a regra geral contida no inciso XXVIII, do art. 7º, da Constituição da República. No presente feito, pois, deveria, a parte obreira demonstrar a ação ou omissão do agente, a existência de dolo ou culpa, bem como o chamado nexo de causalidade (relação causa - efeito), no intuito de se impor a reprimenda legal (art. 927, CC/2002). Conforme depreende-se do conjunto probatório, em especial, do depoimento pessoal do autor, observa-se que restou comprovada a inexistência de qualquer ato omissivo ou comissivo da reclamada que tenha atuado para a ocorrência do referido acidente, assim como também restou descaracterizada sua culpa ou dolo, havendo confissão do obreiro acerca de sua culpa exclusiva. Por fim, é ainda de se observar que afora os fatos supra declinados, os quais se mostram mais que suficientes ao indeferimento dos pedidos indenizatórios, no que tange ao pedido de dano emergente, em especial, sequer houve prova do autor quanto aos prejuízos alegadamente sofridos com seu tratamento médico, provas estas que lhe cabiam por serem fato constitutivo de seu direito (art. 818 da CLT c/c art. 333, I do CPC). Diante do exposto, seja em razão da inexistência de liame empregatício entre as partes, seja em decorrência da inexistência dos requisitos legais atinentes à responsabilidade civil reparatória, improcedem os pedidos de indenização por danos morais e materiais. DA GRATUIDADE DA ASSISTENCIA JUDICIÁRIA Pela simples declaração de não estar em condições de custear a demanda, sem prejuízo do próprio sustento ou de seus familiares, o autor se torna credor da assistência judiciária gratuita. DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.369-377, jul./dez. 2009 379 São indevidos honorários advocatícios pleiteados, já que, no processo do trabalho, esta verba não decorre da simples sucumbência. É que o art. 133 da Carta Maior, conforme reiterada interpretação do Colendo TST, não revogou o jus postulandi das partes no âmbito laboral (Súm. 219 e 239 do C. TST). Sendo assim, no âmbito desta justiça especializada, a hipótese de condenação em honorários advocatícios continua restrita à assistência jurídica prestada pelos sindicatos aos hipossuficientes, nos termos dos arts. 14 a 16 da Lei n. 5584/70. Este, todavia, não é o caso desta reclamatória, em que, apesar da alegação de pobreza, o autor está assistido por advogado particular. III – DISPOSITIVO Ante o exposto e considerando o mais que dos autos consta, nos termos da fundamentação supra, DECIDO: a)Rejeitar as preliminares de ilegitimidade ativa e passiva; b) Acolher a arguição da reclamada, declarando prescritos os efeitos pecuniários dos direitos anteriores a 13/04/2004; c)Julgar TOTALMENTE IMPROCEDENTES os pleitos formulados na reclamação proposta por MARIO DA COSTA SILVA em face de MARTINS COMÉRCIO E SERVIÇOS DE DISTRIBUIÇÕES S/A, extinguindo a presente ação com resolução do mérito, nos termos do art. 269, I do CPC. Custas processuais pelo autor, no montante de R$ 6.077,86(seis mil e setenta e sete reais e oitenta e seis centavos), calculadas sobre o valor atribuído à causa na inicial (R$ 303.893,29-), das quais fica dispensado de recolhimento em decorrência dos benefícios da gratuidade de Justiça deferidos. Tendo em vista o término antecipado dos trabalhos, faz-se publicar a presente decisão nesta data, devendo a Secretaria da Vara providenciar a devida intimação das partes. CARLOS LEONARDO TEIXEIRA CARNEIRO Juiz Federal do Trabalho Substituto R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.369-377, jul./dez. 2009 380 381 PROCESSO: 00633.2009.404.14.00-6 TERMO DE AUDIÊNCIA Em 07/10/2009, às 15h00min RECLAMANTE: ROBERTA SILVA DE SOUZA RECLAMADA: MUNICÍPIO DE RIO BRANCO SENTENÇA I – RELATÓRIO ROBERTA SILVA DE SOUZA, qualificada na petição inicial e assistida por seus advogados constituídos no instrumento procuratório de fl.09, ajuizou reclamação trabalhista em face de MUNICÍPIO DE RIO BRANCO, postulando condenação deste no pagamento de adicional de insalubridade em grau máximo, com base no salário profissional da obreira, desde o início da prestação de labor, além de incorporação de tais valores à sua remuneração, tudo mediante os fundamentos fáticos aduzidos no petitório de fls. 02/08. Embora regularmente notificado, o Município reclamado não compareceu à audiência inaugural, tendo sido tomado o depoimento pessoal da reclamante e, posteriormente, determinado pelo juízo a elaboração de laudo pericial quanto ao ambiente insalubre de labor alegado, com abertura de prazo para apresentação de quesitos ao i. expert. A parte autora apresentou seus quesitos através da peça de fls. 22/23. O Município reclamado, através da peça de fls. 25/26, por amor ao princípio da celeridade e economia processual requereu a juntada de laudo pericial elaborado em outros autos (fls. 27/56), no qual a situação fática vivenciada pela obreira se mostrava idêntica àquela veiculada na presente reclamatória, pugnando pela sua utilização na qualidade de prova emprestada. Questionada, a reclamante afirmou anuir às conclusões R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.379-387, jul./dez. 2009 382 exaradas no laudo pericial apresentado pelo Município, pugnando pela desnecessidade de realização de nova prova pericial. Diante da anuência expressa dos litigantes quanto à utilização do laudo pericial de fls. 27/56 na qualidade de prova emprestada, e da desnecessidade de realização de nova perícia, através do despacho de fl. 60 foi determinada a reinclusão do feito em pauta para audiência de instrução. Aberta a audiência, a reclamante requereu a retificação de erro material verificado em sua peça vestibular, o que restou deferido pelo juízo, com anuência da parte ex-adversa. O reclamado, por sua vez, requereu, e lhe foi deferida sem oposição da parte autora, juntada de documentos aos autos atinentes às fichas financeiras da reclamante. Sem pendências, encerrou-se a instrução, tendo a parte autora aduzido razões finais remissivas à inicial, e a parte reclamada, de forma oral, nos termos constantes da Ata de fl. 65. Também restou infrutífera a segunda proposta de acordo. É o relatório. Passo a decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 1. PRELIMINARMENTE – CARÊNCIA DE AÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO Em sua peça vestibular a reclamante requereu que após reconhecido seu direito à percepção do adicional de insalubridade em grau máximo, fossem os referidos valores definitivamente incorporados à sua remuneração. Pois bem. Conforme entendimento doutrinário dominante, a possibilidade jurídica do pedido, como uma das condições da ação, possui duplo sentido. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.379-387, jul./dez. 2009 383 Numa primeira dimensão, tem-se como juridicamente possível o pedido quando a pretensão deduzida esteja amparada pelo direito objetivo. Num segundo sentido, tem-se como juridicamente possível aquele pedido que não encontra proibição expressa dentro do ordenamento jurídico que impeça o Magistrado de deferir ao autor o bem da vida desejado. No caso dos autos, a reclamante requer a incorporação de parcela de sobressalário (adicional de insalubridade) à sua remuneração independentemente do fato de encontrar-se laborando em condições insalubres, situação esta que encontra vedação legal no ordenamento em razão da natureza sinalagmática da referida prestação, ou seja, sendo esta devida apenas enquanto perdurar a condição insalubre de labor em razão de sua natureza contraprestativa. Nestes moldes, não havendo labor em condições insalubres, a incorporação do referido adicional à remuneração da relcamante representaria enriquecimento injustificado, situação esta que é vedada em nosso ordenamento jurídico, razão pela qual, em atuação de ofício, julgo extinto o pedido, sem resolução do mérito, nos termos do art. 267, VI do CPC. 2. QUESTÃO RECLAMADO PROCESSUAL – DA REVELIA DO Embora revel o Município reclamado em razão de sua ausência à audiência inaugural, os efeitos da confissão ficta a ser aplicada mostram-se restritos à matéria meramente fática aduzida na inicial, ou seja, quanto à data de início do liame e função exercida pela obreira. Contudo, quanto aos referidos pontos não há qualquer controvérsia nos autos, mormente em razão da documentação carreada na incial, razão pela qual desnecessária maior análise acerca dos efeitos da confissão ficta no caso em apreço. 3. DAS CONDIÇÕES INSALUBRES DE LABOR Restou incontroverso nos autos, em razão do laudo pericial juntado e utilizado como prova emprestada, que a R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.379-387, jul./dez. 2009 384 reclamante, no desempenho de suas funções de cirurgiã dentista faz jus ao percebimento do adicional de insalubridade em seu grau máximo (40%). Insurge-se o reclamado (em razões finais) apenas quanto à base de cálculo do referido adicional, asseverando que o art. 192 da CLT prevê o pagamento do adicional de insalubridade incidente sob o valor do salário mínimo, e não sob o salário-base (contratual), nos moldes pleiteados pela autora. Diante do exposto, sendo incontroverso o direito da reclamante ao pagamento do adicional de insalubridade em seu grau máximo (40%), nos exatos moldes da prova emprestada carreada aos autos, resta apenas perquirir acerca da base de cálculo da referida parcela de sobressalário, pelo que passo a analisar o tema. 4. DA BASE INSALUBRIDADE DE CÁLCULO DO ADICIONAL DE Prevê o art. 192 da CLT textualmente que: “O exercício de trabalho em condições insalubres (...) assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário mínimo da região (...);” (destaquei). Diante da vinculação do referido adicional ao valor do salário mínimo e, considerando a disposição expressa Carta Maior 1988 acerca da proibição de vinculação do salário mínimo para qualquer fim (art. 7º, IV, in fine), tem-se que o art. 192 da CLT restou revogado pela nova ordem Constitucional, por falta de recepção, entendimento este que atualmente ganhou maior respaldo e, inclusive, força vinculativa, após a edição da Súmula Vinculante nº 04 do E. STF, a qual dispõe in verbis que: “SALVO NOS CASOS PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO, O SALÁRIO MÍNIMO NÃO PODE SER USADO COMO INDEXADOR DE BASE DE CÁLCULO DE VANTAGEM DE SERVIDOR PÚBLICO OU DE EMPREGADO, NEM SER SUBSTITUÍDO POR DECISÃO JUDICIAL” (negritei). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.379-387, jul./dez. 2009 385 Embora a referida Súmula Vinculante demonstre ser vedada a indexação do salário mínimo para o cálculo de vantagens de servidores públicos ou empregados, mister observar que, mesmo não se tratando o adicional mencionado de espécie de vantagem, mas ao revés, de verdadeira desvantagem, ou seja, de parcela que possui natureza jurídica de reposição pecuniária por situação de trabalho desvantajosa ao trabalhador (danosa à saúde deste), tem-se que a vinculação (indexação) contida no referido art. 192 da CLT mostra-se inconstitucional, por afronta ao disposto no art. 7º. IV, in fine, o qual foi taxativo ao determinar a vinculação “para qualquer fim”. Nestes moldes, diante da induvidosa inaplicabilidade do art. 192 da CLT (eis que revogado), tem-se que inexiste norma legal vigente a prever, de forma expressa, a base de cálculo do adicional de insalubridade, já que o dispositivo constante do art. 7º, XXIII da CF/88, ao mencionar a expressão “de remuneração”, não previu qual a base de cálculo do referido adicional, vindo, tão somente, a esclarecer a natureza salarial da parcela (sobressalário). Sendo assim, e diante da aplicação do princípio da plenitude da ordem jurídica (art. 4º, LICC) e da proibição do non liquet (CPC, art. 126), far-se-ia obrigatória a utilização dos métodos de integração jurídica para que fosse suprida a lacuna normativa, e ao final, restasse descoberta qual a base de cálculo do adicional de insalubridade em nosso sistema legal. Como é cediço, o aplicador do Direito, antes de utilizar-se da heterointegração para o deslinde das lacunas normativas, deve buscar na auto-integração a solução dos casos concretos sob análise, sendo exemplo desta última, a analogia jurídica, a ser efetivada, de início, sob as demais normas contidas na CLT. Com o socorro à analogia jurídica, de fato, parece que a problemática acerca da base de cálculo do adicional de insalubridade perde força e sentido, vez que a norma contida no §1º, do art. 193 da CLT, que trata do adicional de periculosidade, cogita da incidência deste sobre o valor do “salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa”, ou seja, sobre o valor do salário-base do trabalhador (sob o qual inexiste proibição de vinculação). R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.379-387, jul./dez. 2009 386 Ora, se tanto o adicional de insalubridade, como o de periculosidade tem como objetivo a contraprestação salarial diferenciada pela prestação de trabalho em situações desfavoráveis à saúde do trabalhador (seja de forma instantânea ou de forma gradativa), impossível não aceitar a aplicação análoga da norma contida no art. 193, §1º da CLT para reger os casos de insalubridade, especificamente no que pertine à sua base de cálculo. Sendo assim, por aplicação análoga da norma que regula os casos de pagamento do adicional de periculosidade, tem-se que o adicional de insalubridade deveria ter como base de cálculo o valor do salário-base da reclamante, e não o salário mínimo, sem que tal entendimento pudesse vir a evidenciar inobservância à vedação estabelecida na parte final da Súmula Vinculante nº 04 da Suprema Corte. É que o referido verbete, conforme mencionado alhures, não trata explícita ou mesmo implicitamente do adicional de insalubridade, proibindo a indexação ao salário mínimo ou a substituição da base de cálculo por decisões judiciais apenas no que pertine à vantagens, nomenclatura esta incapaz de englobar a parcela do adicional de insalubridade. De fato, como já se disse alhures, o adicional de insalubridade (assim como o de periculosidade) possui como característica básica sua desvantagem ao trabalhador, tanto que a própria CF/88, em seu art. 7º, inciso XXII, previu como direito de todos os trabalhadores urbanos e rurais “a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”, tornando excepcional o pagamento de tal parcela, a qual sequer remunera o trabalho em si, mas apenas tem por escopo desestimular a prestação de labor em situações degradantes (tornando-as mais onerosas). Ademais, é de se perceber que sequer houve menção à expressão “adicional de insalubridade” na referida Súmula Vinculante ou mesmo na degravação dos respectivos debates de aprovação entre os Ministros da Suprema Corte quando da aprovação do verbete, fato este apto a demonstrar inexistência de vedação quanto à aplicação da analogia diante da lacuna normativa encontrada. Por fim, destaque-se que qualquer entendimento em sentido diverso acabaria por tornar inviável o exercício do direito pretendido, seja em razão da lacuna legal (decorrente da inconstitucionalidade R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.379-387, jul./dez. 2009 387 da vinculação estabelecida no art. 192 da CLT), seja em decorrência da vedação à fixação judicial de tal parâmetro existente na parte final da multi-referida Súmula Vinculante. verbis: Neste mesmo sentido, vale destacar o seguinte arresto, in “Adicional de Insalubridade. Base de cálculo. Súmula Vinculante nº 4 do STF. A Súmula Vinculante nº 4 do STF não se aplica ao cálculo do adicional de insalubridade. Ao estabelecer que o salário mínimo não pode ser adotado como base de cálculo de vantagem de servidor ou empregado, evidentemente não se referiu ao adicional de insalubridade, porquanto este não representa nenhuma vantagem; ao contrário, representa o pagamento exatamente da desvantagem de se trabalhar em condições danosas à saúde. Entendimento diverso levaria à eliminação do direito ao referido adicional para aqueles cuja categoria não haja convencionado uma base de cálculo qualquer, já que, segundo a SV, essa base não poderia ser fixada por decisão judicial.” (TRT 2ª R., 1ª Turma, Ac. 20080807547, pub. in DOE 07/10/2008, p. 42, destaquei). Diante de todo o exposto e, forte no princípio da plenitude do direito e inafastabilidade da jurisdição (non liquet), com utilização análoga do parâmetro legal contido no art. 193, §1º da CLT, entendo que deve o adicional de insalubridade reconhecido como devido à obreira ser calculado sob o valor do salário-base da mesma. Contudo, embora este humilde julgador tenha a convicção pessoal de que o referido entendimento apresenta-se como aquele que melhor e mais profundamente atende ao escopo dos princípios e normas Constitucionais os quais jurou proteger quando de sua investidura no cargo de Magistrado, tendo em vista que o “Guardião-Mor” da Carta Magna é o próprio Supremo Tribunal Federal, cabendo a este (e aos seus respeitáveis Ministros) a última palavra em sede de interpretação constitucional, a fim de não criar falsa expectativa ao jurisdicionado e, em especial, à reclamante, curvo-me ao entendimento majoritário daquela Excelsa Corte para, ressalvando meu posicionamento pessoal, deferir o pleiteado adicional de insalubridade a ser calculado com base no valor do salário mínimo legal. Diante de todo o exposto, deve o Município reclamado arcar com o pagamento do adicional de insalubridade, em grau máximo R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.379-387, jul./dez. 2009 388 (40%) a ser calculado com base no salário mínimo legal de cada época, desde a entrada em exercício da reclamante até enquanto permanecer submetida às condições insalubres de labor. 5. DA JUSTIÇA GRATUITA Pela simples declaração de não estar em condições de custear a demanda, sem prejuízo do próprio sustento ou de seus familiares, a autora se torna credora da assistência judiciária gratuita. 6. DOS RECOLHIMENTOS PREVIDENCIÁRIOS Os recolhimentos previdenciários incidirão sobre os valores deferidos a título de adicional de insalubridade, ficando desde logo autorizada a retenção em favor da reclamada das parcelas que, na forma da Lei, constituam encargo do empregado, de acordo com a Lei n. 8213/91. III – DISPOSITIVO Ante o exposto e considerando o mais que dos autos consta, nos termos da fundamentação supra, DECIDO: a) Ex officio, extinguir sem análise de mérito, por carência de ação decorrente de impossibilidade jurídica, o pedido de incorporação do adicional de insalubridade à remuneração da obreira, nos termos do art. 267, VI do CPC; b) Julgar PARCIALMENTE PROCEDENTES os pleitos formulados na reclamação proposta por ROBERTA SILVA DE SOUZA em face de MUNICÍPIO DE RIO BRANCO, para condenar a reclamada a pagar à autora, os valores devidos a título de adiciona de insalubridade, em grau máximo (40%) calculados com base no valor do salário mínimo de cada época, desde o início do liame até enquanto perdurar a situação insalubre de labor; c) julgar improcedentes os demais pedidos; O quantum debeatur será apurado na liquidação do julgado por cálculos, devendo o Município reclamado fazer juntar aos autos, no prazo de 05 (cinco) dias após o trânsito em julgado, a R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.379-387, jul./dez. 2009 389 comprovação do início do pagamento da referida parcela juntamente com a remuneração da obreira para fins de apuração do montante devido, com fixação do dies ad quem. Liquidado o julgado, acresçam-se juros e correção monetária na forma da Lei, sendo esta a partir do mês subseqüente ao da prestação dos serviços. Recolhimentos previdenciários e fiscais na forma da Súmula nº 368 do c. TST. Custas processuais pela parte reclamada, no montante de R$ 100,00- (cem reias), calculadas sobre o valor da condenação, provisoriamente arbitrado em R$ 10.000,00- (dez mil reais), para os efeitos legais, dos quais fica isento de recolhimento nos termos do art. 790-A, I da CLT. Sentença publicada antecipadamente. Intimem-se as partes. Desnecessária a intimação da União Federal, na forma do Ato Conjunto PF/AC no 001/2009, firmado entre a PGF e este E. TRT da 14a Região. Deixo de remeter os presentes autos ao reexame necessário em razão do valor da condenação imposta ao ente público não exceder ao limite legal. Nada mais. E para constar foi lavrada a presente ata. CARLOS LEONARDO TEIXEIRA CARNEIRO Juiz Federal do Trabalho Substituto R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.379-387, jul./dez. 2009 390 BRANCA 391 PROCESSO: 0091000.31.2009.514.0041 TERMO DE AUDIÊNCIA Em 16/11/2009, às 15:00h REQUERENTE: SINDICATO DOS TRABALHADORES NO COMÉRCIO DE BENSE SERVIÇOS DO ESTA DO DE RONDÔNIA - SINTRACOM REQUERIDOS: SUPERMERCADO A LUZITANA INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA. RODRIGUES COMÉRCIO DE GÊNERO ALIMENTÍCIOS LTDA. RODRIGUES COMÉRCIO DE PRODUTOS ALIMENTÍCIOS LTDA. V.A. MARTINS E CIA LTDA – EPP. SUPERMERCADO VITÓRIA - ME Aos dezesseis dias do mês de novembro de 2009, às 15:00 horas, foi aberta a audiência, por ordem do Excelentíssimo Senhor HORÁCIO RAYMUNDO DE SENNA PIRES SEGUNDO, Juiz Federal do Trabalho Substituto, auxiliando a titularidade da Vara do Trabalho de Cacoal – RO. Apregoadas as partes, verificou-se a ausência das mesmas, tendo sido publicada a seguinte: SENTENÇA EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA RELATÓRIO SINDICATO DOS TRABALHADORES NO COMÉRCIO DE BENS E SERVIÇOS DO ESTADO DE RONDÔNIA – SINTRACOM ingressou com a presente ação civil pública, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, contra SUPERMERCADO A LUZITANA INDÚSTRIA E COMÉRCIO LTDA, RODRIGUES COMÉRCIO DE GÊNERO ALIMENTÍCIOS LTDA, RODRIGUES COMÉRCIO DE PRODUTOS ALIMENTÍCIOS LTDA, V.A. MARTINS E CIA LTDA – EPP e SUPERMERCADO VITÓRIA - ME, apresentando os fatos e formulando os pedidos conforme petição inicial de fls. 02/49. Juntou os documentos de fls. 50/172. Foi negada a concessão da antecipação dos efeitos da tutela pleiteada. Foi determinada a intimação do Ministério Público do Trabalho para, nos termos da lei, atuar no feito. Em audiência, restou sem efeito a primeira tentativa de conciliação. O primeiro reclamado apresentou contestação às fls. 240/246. O segundo reclamado juntou contestação às fls. 247/258 e apresentou documentos. O terceiro reclamado juntou contestação às fls. 267/278 e juntou documentos. O R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 392 quarto reclamado juntou contestação às fls. 287/293. O quinto reclamado juntou contestação às fls. 294/300. Requerente e MPT se manifestaram sobre as preliminares de defesa e os documentos apresentados pelos requeridos. Considerando que a matéria discutida nos autos era unicamente de direito, foram dispensados os depoimentos das partes e a produção de outras provas. Razões finais remissivas pelas partes e pelo Parquet. Restou também sem efeito a segunda proposta de conciliação. É O RELATÓRIO. FUNDAMENTAÇÃO I – UTILIZAÇÃO DE MÃO DE OBRA EMPREGADA EM DIAS DE FERIADO. ART. 6º - A DA LEI 10.101/2002. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO EM CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO. IMPOSSIBILIDADE Alega o requerente na petição inicial, em resumo, que, para a abertura dos estabelecimentos das empresas requeridas e a utilização de mão de obra empregada em dias de feriado, seriam necessários dois requisitos, requisitos estes impostos pela Lei 10.101/2000, em seu art. 6º - A. Seriam necessárias a autorização expressa em lei municipal e a existência de convenção ou acordo coletivo. Explica, ainda, o requerente que a Lei do Município de Cacoal, mais precisamente a Lei nº 073/PMC – 85, em seu art. 88, estabelece a impossibilidade do funcionamento do comércio em geral em dias de feriado. Além disso – continua o requerente a explicar – também o segundo requisito estabelecido pela Lei 10.101/2000 não estaria preenchido, visto que, desde o ano de 2006, não existe convenção coletiva de trabalho celebrada entre ele, requerente, e o sindicado patronal. Inclusive, argumenta que, apesar de várias tentativas neste sentido, o sindicato patronal vem, reiteradamente, negando-se a discutir novas condições de trabalho para os empregados da categoria, ou seja, vem se negando a celebrar convenções coletivas. Por fim, argumenta o requerente que, ao caso discutido nos autos, não se pode aplicar as determinações da Lei 605/1949, considerando que esta lei não mais subsiste após a entrada em vigor da Lei 10.101/2002 e seus posteriores acréscimos. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 393 Em contestação, os requeridos sustentam que, em verdade, a matéria é regulada, ainda, pela Lei 605/1949, e não pela Lei 10.101/2000. Explicam que, como as atividades das empresas de supermercado foram incluídas no rol do Anexo I da Lei 605/1949, receberam essas empresas autorização permanente para funcionarem e utilizarem mão de obra empregada em dias de domingo e feriados. Segundo os requeridos, a Lei 605/1949 confere uma autorização excepcional às empresas de supermercado, não podendo elas estar atreladas à regra geral prevista na Lei 10.101/2000. Como se observa da análise das teses dos requerente e requeridos acima narradas em resumo, a primeira controvérsia importante que merece enfrentamento se refere a qual lei é aplicável ao caso, se a Lei 605/1949 ou a Lei 10.101/2000 e seus posteriores acréscimos. que: A Lei Federal 605/1949, em seu art. 7º, estabeleceu “Art. 7º. É concedida, em caráter permanente e de acordo com o dispositivo no §1º do art. 6º, permissão para o trabalho nos dias de repouso a que se refere o art. 1º (... feriados civis e religiosos), nas atividades constantes da relação anexa ao presente regulamente”. (Parênteses nossos). Por sua vez, na relação anexa mencionada no artigo 7º da Lei 605/1949, verificam-se algumas atividades (comércio varejista de peixe, carnes frutas e caça, de frutas e verduras, de aves e de ovos etc...) que fazem concluir que as empresas de mercado, supermercado e hipermercado receberam a autorização legal para o trabalho nos dias de feriado. A partir desse momento, então, com alguma divergência jurisprudencial, é verdade, mas logo superada, os mercados, supermercados e hipermercados passaram a ter autorização para o trabalho em dia de feriado. O texto original da Lei 10.101/2000 não trouxe mudanças significativas neste cenário, sendo que as empresas acima mencionadas continuaram com a permissão para o trabalho em dia de feriado. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 394 A controvérsia nasceu, contudo, com a inclusão à Lei 10.101/2000 do art. 6º - A, pela Lei 11.603/2007. O novo dispositivo incluído encontra-se assim redigido: “Art. 6º - A. É permitido o trabalho em feriados nas atividades do comércio em geral, desde que autorizado em convenção coletiva de trabalho e observada a legislação municipal, nos termos do art. 30, inciso I, da Constituição”. Com a existência de dois dispositivos legais versando sobre um mesmo tema, nasceu, então, o questionamento: qual deles deveria ser utilizado? Sem dúvida alguma, estar-se diante de um conflito ou, pelo menos, de uma sobreposição de normas. Nestes casos, a solução é recorrer à Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) que, no ordenamento jurídico brasileiro, é o diploma legal que regula questões dessa natureza. Neste sentido, o art. 2º, § 1º, da LICC estabelece que: “§1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Confrontando-se as disposições do §1º com o caso concreto enfrentado, tem-se que inexiste revogação expressa da lei antiga pela lei nova. Da mesma forma, o art. 6º - A, da Lei 10.101/2000 não se mostra incompatível com o art. 7º, da Lei 605/1949, afinal, encerram a mesma coisa, vale dizer, a autorização de estabelecimentos comerciais para a utilização de mão de obra empregada em dias de feriado. Na verdade, o caso é de regulamentação plena pela lei nova da matéria regulada pela lei antiga. A Lei 605/1949 estabelecia que apenas alguns estabelecimentos comerciais estavam autorizados a utilizar mão de obra empregada em dia de feriado. Agora, a lei nova fala que todos os estabelecimentos comerciais estão autorizados a utilizar mão de obra empregada em dia de feriado. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 395 Ora, como se percebe, o direito emanado do art. 7º, da Lei 605/1949 está todo contido no direito emanado do art. 6º - A, da Lei 10.101/2000. A conclusão, então, a qual se chega, analisando o caso concreto e aplicando as regras de solução dos conflitos de norma previstas na LICC, é que o art. 7º, da Lei 605/1949 encontra-se revogado, sendo que a matéria hoje é exclusivamente regulada pelo art. 6º - A, da Lei 10.101/2000. Este, inclusive, é o entendimento que vem sendo sustentado por boa parte da jurisprudência: EMENTA: TRABALHO EM FERIADOS - NECESSIDADE DE NEGOCIAÇÃO COLETIVA. Recentemente, a Lei 11.603/2007 alterou e acresceu dispositivos à Lei 10.101/2000, estabelecendo a necessidade de haver norma coletiva autorizadora do trabalho em feriados. Destarte, se, na hipótese vertente, o trabalho nos feriados não ocorreu na forma e dias previstos nas CCTs, são devidas as multas previstas nos referidos instrumentos normativos. (TRT 3ª Região. Processo 01019.2008.043.03.00-0. Relator Juiz Convocado Eduardo Aurélio P. Ferri) Mas, sendo esta a interpretação mais adequada, existiria motivo razoável para que o legislador estabelecesse os dois requisitos para a observância do direito à autorização da utilização de mão de obra empregada nos dias de feriado? A resposta é positiva e a intenção do legislador é clara. Senão vejamos. Primeiramente, a lei nova determina que, para a autorização do trabalho em feriado, é preciso ser observada a legislação municipal. Na realidade, o art. 6º – A, da Lei 10.101/2000 não atribuiu ao município o poder de autorizar, ou não, o trabalho em dia de feriado, até mesmo porque, se assim o tivesse feito, estaria atuando contra a Constituição da República, mais precisamente contra o art. 22, I, que fala ser privativa da União a função de legislar sobre Direito do Trabalho. Na verdade, pensou o legislador infraconstitucional na possibilidade de cada município, levando em conta as suas características locais, autorizar, ou não, a abertura do comércio. Ora, vedada a abertura do comércio, inócua a autorização, mesmo que legal, para a utilização de mão de obra empregada por estabelecimentos comerciais. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 396 Então, como se percebe, o requisito da observação da lei municipal prestigiou as características locais de cada município, que devem ser preservadas, pois a variação cultural e social de cada região não pode ser maculada por uma lei geral. de ser. Já quanto ao segundo requisito, também ele tem razão A Constituição da República de 1988 foi por demais celebrada na época da sua promulgação e ainda continua sendo, por conta de suas características democráticas. Um dos pontos que melhor retratam essa característica, por sua vez, diz respeito à maior liberdade e autonomia sindicais estabelecida na Carta Magna. Sendo assim, é louvável toda e qualquer medida política que tenha como objetivo o fortalecimento do sistema sindical no Brasil. E o segundo requisito trazido pelo art. 6º - A, da Lei 10.101/2000 tem, claramente, esse objetivo. Ora, com mais poderes e mais atribuições, os sindicatos, principalmente aqueles representativos da categoria profissional, terão mais condições de fazer valer o direito de seus representados. Por outro lado, sindicato enfraquecido é sinônimo de categoria desassistida, maior distância entre patrões e empregados e menor respeito aos direitos trabalhistas e ao princípio maior do Direito do Trabalho que é o da proteção do hipossuficiente. Eis aí as justificativas para a inclusão pela lei 10.101/2000 dos requisitos para a autorização da utilização de mão de obra empregada em dias de feriado. Desta forma, repita-se, sem sombra de dúvidas, a única norma que hoje rege a matéria é a esposada no art. 6º - A, da Lei 10.101/2000. E, mesmo que se entendesse ainda válida a norma do artigo 7º, da Lei 605/2000, ainda assim, não poderia ser ela aplicada. Ora, como se sabe, o Direito do Trabalho é regido pelo princípio da proteção ao hipossuficiente. Deste princípio, decorrem diversos outros princípios ou, nas palavras do jurista José Augusto R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 397 Rodrigues Pinto (in Curso de Direito Individual do Trabalho, LTr, 4ª Edição, p. 71), repetindo Américo Plá Rodrigues, “regras de aplicação do princípio da proteção”. Uma dessas regras-princípio é a da aplicação da norma mais favorável. O próprio mestre baiano (idem) ensina: “(...) a da aplicação da norma mais favorável orienta que, havendo mais de uma norma, de sentido diverso aplicável a uma situação jurídica, deve preferir-se a que favoreça o empregado”. Ora, estando a questão do trabalho em dia originalmente destinado ao repouso intimamente ligada à preservação da saúde física e mental do empregado, com absoluta certeza, será muito mais benéfico ao trabalhador se a matéria, antes de posta como regra do contrato de emprego, for discutida entre o empregador e o seu representante primeiro, o sindicato. Como se verifica, de uma forma ou de outra, não há que se falar em prevalência da norma do art. 7º, da Lei 605/1949. Solucionada, então, esta questão, basta agora verificar se, no caso concreto, estão preenchidas as condições legais para o trabalho de empregados dos requeridos em dias de feriado, ou não. Os requeridos atuam no ramo do comércio, existindo autorização para o trabalho em dias de feriado, desde que observados os requisitos, frise-se. O primeiro requisito encontra-se satisfeito, afinal, existe autorização municipal para a abertura dos estabelecimentos de mercado, supermercado e hipermercado na cidade de Cacoal. Neste ponto, porém, cabe um esclarecimento. O requerente, em sua petição inicial, transcreve o art. 88, da Lei Municipal 073/PMC – 85, que não autoriza a abertura do comércio em dias de feriado na cidade de Cacoal. Contudo, como bem citaram os requeridos nas contestações, esse artigo não produz hoje qualquer efeito, considerando que decisão judicial, passada nos autos do mandado de segurança nº 007.03.004788-5, que tramitou na MM. 2º Vara Cível da Comarca de Cacoal, autorizou a abertura. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 398 Vencida esta questão, para, enfim, decidir a matéria posta nos autos, basta verificar o preenchimento do segundo requisito legal, qual seja, a existência de convenção coletiva autorizando o trabalho nos estabelecimentos requeridos em dias de feriado. Bem analisando os autos, as informações e documentos trazidos por cada um dos litigantes, percebe-se que, diferentemente do primeiro, esse segundo requisito não se encontra satisfeito. O sindicato representante dos requeridos não firmou com o requerente CCT no sentido de autorizar o trabalho em dia de feriado. Em realidade, sequer existe CCT em vigor. Inclusive, informa o requerente que o sindicato patronal vem se esquivando para não negociar novas condições de trabalho para a categoria, fato que deve ser tido como verdadeiro, ante a inexistência de impugnação neste sentido nas contestações. Desta feita, ante o não preenchimento de todos os requisitos impostos pelo art. 6º - A, da Lei 10.101/2000, alternativa não resta senão a de entender inexistente a autorização para o trabalho de empregados nos estabelecimentos das empresas requeridas em dia de feriado, pelo menos, até que os sindicatos das categorias patronal e econômica estabeleçam o contrário em convenção coletiva de trabalho. Sendo assim, DEFIRO o pedido formulado na inicial da presente ação civil pública para determinar que os requeridos se abstenham de utilizar mão de obra empregada em seus estabelecimentos nos dias de feriado, pelo menos até que autorização expressa nesse sentido seja verificada em convenção coletiva de trabalho negociada entre os sindicatos patronal e profissional da categoria. É preciso ressaltar, no entanto, que a proibição é para a utilização de mão de obra empregada. Isso quer dizer que a abertura e o funcionamento dos estabelecimentos, desde que sem empregados, não está sendo vedada nesta sentença. II – MULTA POR DESCUMPRIMENTO O art. 461 da CLT autoriza ao juiz, mesmo que de ofício, a fixação de multa para a hipótese de não ser cumprida a R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 399 obrigação de fazer ou não fazer determinada em sentença. Tudo isso para garantir o resultado prático da decisão judicial. O referido artigo é perfeitamente aplicado ao Processo do Trabalho, considerando a compatibilidade do preceito com a principiologia do Direito Processual Laboral e a omissão da norma trabalhista. Sendo assim, para garantir o resultado prático da sentença, FIXO multa de R$1.000,00 por dia e por empregado, para a hipótese de descumprimento da determinação contida no item acima exposto. III – ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA Na petição inicial, formula o requerente requerimento de antecipação dos efeitos da tutela, pretendendo que decisão judicial determine, de imediato, que os requeridos se abstenham de abrir seus estabelecimentos e de utilizar mão de obra empregada. Em um primeiro momento, antes mesmo de ouvir os requeridos, foi o pedido liminar apreciado e negado. Neste momento, contudo, já reconhecido o direito do requerente, não há mais que se falar em antecipação dos efeitos da tutela. O pedido, pois, resta PREJUDICADO. Ocorre que, como se sabe, no Processo do Trabalho, as sentenças de mérito, assim que proferidas, produzem os seus efeitos. E, mesmo que haja interposição de recurso ordinário pela parte sucumbente, esta interposição não tem o poder de impedir a produção dos efeitos da sentença, isto porque, como se sabe, diferentemente do Processo Civil, no Processo do Trabalho, a interposição de recursos, salvo exceções, provocam o efeito meramente devolutivo e não os efeitos devolutivo e o suspensivo. Então, de fato, a sentença ora proferida faz valer de imediato suas determinações. No caso, serão os requeridos que, caso pretendam, terão de solicitar ao Tribunal Regional que, de forma excepcional, receba o recurso ordinário nos dois efeitos possíveis. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 400 IV – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS Considerando a Instrução Normativa nº 27 do C. TST, somente pela sucumbência verificada na presente demanda, devem os requeridos ser condenados no pagamento de honorários advocatícios à parte autora, já que, na presente demanda, não foi cerne da discussão relação de emprego. O requerente solicitou em sua petição inicial que, na hipótese de procedência da demanda, fosse arbitrado o valor dos honorários, já que as pretensões não se referiam à condenação em pecúnia. Realmente, a hipótese dos autos é a de aplicação do art. 20, § 4º, do CPC, que assim encontra-se redigido: Art. 20. § 4º. Nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, naquelas em que não houver condenação ou for vencida a Fazenda Pública, e nas execuções, embargadas, ou não, os honorários serão fixados consoante apreciação eqüitativa do juiz, atendidas as normas das alíneas a, b e c do parágrafo anterior. A norma à qual se reporta o parágrafo supra transcrito diz que os honorários advocatícios serão fixados atendidos o grau de zelo do profissional, o lugar da prestação dos serviços e a natureza e a importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço. O grau de zelo que demonstrou o advogado do requerente foi elevado. Os prazos processuais foram cumpridos rigorosamente. Houve manifestação sempre que necessário. O advogado compareceu a todas as audiências marcadas. Preocupou-se o profissional em municiar a petição inicial com todas as provas documentais necessárias. Verificando as informações constantes nos autos, pode-se observar que o lugar da prestação de serviços foi o mesmo no qual está localizado o escritório do advogado do requerente, não tendo, portanto, havido grandes gastos com deslocamentos. A causa se reveste de grande relevância, pois atinge uma gama extensa de trabalhadores e afeta direitos importantes de cada um deles, sendo o principal, o direito ao repouso. Além disso, R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 401 a matéria discutida na ação diz respeito à autonomia e liberdade sindicais, questões muito caras à sociedade e à democracia. O trabalho realizado pelo advogado, em verdade, se confunde com o zelo, cuja análise já foi feita acima. O tempo exigido para o serviço do profissional pode ser considerado razoável, tendo em vista que as audiências e as peças processuais foram sempre extensas, além do que comumente se observa. Por fim, vale apenas observar que, nesta mesma Vara, tramitam quatro outras ações semelhantes a esta, através das quais pretende o requerente, contra outras empresas, o reconhecimento do mesmo direito, podendo-se notar, inclusive, semelhança entre as peças processuais, notadamente a petição inicial. Isso quer dizer que, também nas outras demandas, sendo reconhecido o direito buscado pelo requerente, fará jus ele ao recebimento dos honorários, por trabalho senão repetido muito semelhante. Esse fato, sem sombra de dúvida, revela a necessidade de se limitar o valor dos honorários. Considerando, pois, todos os aspectos acima, entendo justa a fixação dos honorários advocatícios no valor de R$3.000,00. DEFIRO, portanto o pedido e condeno, solidariamente, os requeridos a pagarem ao requerente, a título de honorários advocatícios, a quantia de R$3.000,00. CONCLUSÃO Posto isso, JULGO PROCEDENTES os pedidos formulados na petição inicial da presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, para, conforme fundamentação supra, que faz parte integrante deste dispositivo, determinar que os requeridos se abstenham de utilizar mão de obra empregada em seus estabelecimentos nos dias de feriado, pelo menos até que autorização expressa nesse sentido seja verificada em convenção coletiva de trabalho negociada entre os sindicatos patronal e profissional da categoria, sob pena de multa; e para que os requeridos paguem o valor de R$3.000,00 a título de honorários advocatícios. Atualização monetária e juros na forma da lei. R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 402 Liquidação por simples cálculos. Custas, pelos requeridos, no valor de R$100,00, calculados sobre R$5.000,00, valor atribuído à causa para este fim. Partes cientes por aplicação da Súmula 197 do C. TST. Cientifique-se o Parquet, pessoalmente, através de um de seus ilustres Procuradores, com a remessa dos autos. HORÁCIO RAYMUNDO DE SENNA PIRES SEGUNDO Juiz Federal do Trabalho R. Trib. Reg. Trab. 14ª Reg., Porto Velho, v.5, n.2, p.389-400, jul./dez. 2009 403 404 Correspondência TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 14ª REGIÃO Rua Almirante Barroso, 600 - Mocambo – 76.801-901 Porto Velho – RO Fone: 69 3211-6585 – Site: www.trt14.jus.br e-mail: [email protected]