Eutopias e Distopias da Ciência1 - Morus
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Eutopias e Distopias da Ciência1 - Morus
Eutopias e Distopias da Ciência1 Lyman Tower Sargent University of Missouri-St. Louis (Stati Uniti) University of Oxford (Inghilterra) Tradotto da Helvio G. Moraes Abstract I propose to survey attitudes to science found in the English-language utopia from early in that tradition to the present. While the Manuels correctly identified a strong pro-science stream in early utopianism, and Nell Eurich in her Science in Utopia: A Mighty Design (1967) noted a positive scientific utopianism, I argue that the tradition has been more ambivalent about science. And, stressing the 20th century, I show how ambivalence turned to negativity. My survey begins with a man who clearly believed that science could bring about eutopia. Francis Bacon’s New Atlantis is an explicit statement of the power of science properly used, and many other utopian writers in the 17th century made similar arguments. But even in the 18th century, when the ability of human reason to improve human life might seem unquestioned, Jonathan Swift inhabits his rational eutopia with horses not humans. In the 19th century, when science and technology would seem to be driving all before them, there are many eutopias that question whether this is the correct direction. In the early 20th century Francis Galton seems to believe that eugenics properly applied can achieve a significantly better society, but almost coterminous with Galton, there is the rise of the dystopia, which regularly sees science as the culprit. A key figure in my argument is H.G. Wells. In a article in 1984, “The Pessimistic Eutopias of H.G. Wells,” I argued that even Wells’s most eutopian works showed ambivalence. Here I argue that Wells’s trajectory was reflected within the English-language utopian tradition and that one important aspect of Wells’s and the tradition’s ambivalence was about the ability of human beings to use science to improve human life. And Wells was more optimistic in his pessimism than are many, but not all, recent utopia writers. While there are still scientific eutopias being written, the most common scenario is science gone horribly wrong, bringing with it environmental devastation, a return to a barbarian state, or the complete destruction of the human race. Lyman Tower Sargent é professor de Ciência Política junto à Universidade do Missouri-St. Louis e pesquisador visitante no Centre for Political Ideologies, Departamento de Política e Relações Internacionais, da Universidade de Oxford. Foi o fundador de Utopian Studies (1990-2004) e autor de vários estudos relacionados, em sua maior parte, ao tema da utopia, dentre os quais: British and American Utopian Literature, 1516-1985: An Anotated, Chronological Bibliography (1988) e Living in Utopia: Intentional Communities in New Zealand (2004, em co-autoria com Lucy Sargisson). Foi fundador e co-editor, juntamente com Gregory Claeys, da série Utopianism and Communitarianism, lançada pela editora da Universidade de Siracusa, que conta com mais de vinte volumes. De 1997 a 2000 orientou a Biblioteca Nacional da França e a Biblioteca Pública de Nova Iorque na exposição Utopie: La quête de la société idéale en Occident/Utopia: The Quest for the Ideal Society in the West. É co-editor, juntamente com Roland Schaer e Gregory Claeys, dos catálogos em francês e em inglês da exposição. 1 Originalmente publicado em Imagining the Future: Utopia and Dystopia. Números 25 e 26 do Arena Journal. Ed. Andrew Milner, Mathew Ryan e Robert Savage (North Carlton, Australia: Arena Publications Association, 2006), 357-71. Lyman Tower Sargent A 2 F. E. e F. P. Manuel, Utopian Thought in the Western World, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1979; N. Eurich, Science in Utopia: A Mighty Design, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1967; R. Dubos, The Dreams of Reason: Science and Utopias, New York, Columbia University Press, 1961; H. Segal, Technological Utopianism in American Culture, Chicago, University of Chicago Press, 1985; H. Segal, Future Imperfect: The Mixed Blessings of Technology in America, Amherst, Mass., University of Massachusetts Press, 1994. 3 F. Bacon, New Atlantis, a Work Unfinished, reimpresso em Francis Bacon: The Major Works, ed. B. Vickers, Oxford, Oxford University Press, 2002, pp. 457-89. O texto original traz “Salomon’s House”, mas “Solomon’s” é agora universalmente usado. 80 maior parte das utopias se baseia em um ou mais fundamentos, sendo a educação, a lei e a religião os mais comuns, obviamente com interessantes alterações de predominância ao longo do tempo. Aqui, eu considero outro, ou melhor, dois outros, plausíveis: a ciência e a tecnologia. Qualquer estudioso de ficção científica sério dirá que a atitude em relação à ciência e à tecnologia na ficção científica é, e sempre tem sido, na melhor das hipóteses, ambivalente. Dentro da tradição utópica mais ampla, essa questão tem sido menos estudada, mas muitos dos estudiosos têm enfatizado o papel positivo da ciência e da tecnologia no utopismo. Em Utopian Thought in the Western World (1979), os Manuel identificaram com exatidão uma forte corrente pro-ciência no primeiro utopismo, e Nell Eurich, em seu Science in Utopia: A Mighty Design (1967) notou um utopismo científico positivo. Em The Dreams of Reason: Science and Utopias (1961), René Dubos fez quase o mesmo, assim como Howard P. Segal em Technological Utopianism in American Culture (1985). Mas Dubos reconhece que não é tão simples assim, e Segal escreveu também Future Imperfect: The Mixed Blessings of Technology in America (1994)2. É certo que, começando com New Atlantis de Francis Bacon (1627), muitas utopias apresentaram a ciência e a tecnologia adequadamente usadas como um dos maiores mecanismos para realizar e manter a desejada sociedade ideal. Mas é também certo que o termo “ciência e tecnologia” deve ser descompactado, pois compreende muitas idéias diferentes, e que a expressão “adequadamente usadas” é um qualificativo particularmente importante. Para elaborar minha argumentação, começo com Bacon, simplesmente porque New Atlantis domina as percepções de ciência na literatura utópica, e a seguir passo para as utopias relativamente práticas do século XVII que se referem mais à tecnologia do que à ciência. Depois, discuto brevemente os debates do século XVII sobre a razão, que afetam diretamente a apresentação da ciência e da tecnologia. O século XIX é o auge da crença de que a ciência e a tecnologia podem transformar a vida para melhor. Enquanto a desilusão cresce durante os últimos anos do século XIX e continua por todo o século XX e início do XXI, a crença na possibilidade da ciência e da tecnologia produzirem uma eutopia nunca desaparece. A desilusão significa que a crença na ciência e na tecnologia como geradoras da distopia tornou-se mais forte. 1. Bacon e New Atlantis A maior parte de New Atlantis se ocupa com uma descrição da chegada de estrangeiros em uma típica ilha isolada e a descrição da intituição principal do país, a Casa de Salomão3. A Casa de Salomão é uma combinação de repositório para amostras de plantas, minerais, máquinas, entre outras coisas, de todo o mundo, assim como um centro de pesquisa onde são realizadas constantes observações e experimentações. A relação entre a Casa de Salomão e a sociedade de Bensalem, o nome da ilha, é obscura. É bastante claro que o cidadão comum não sabe Eutopias e Distopias da Ciência muito, se é que sabe algo, sobre a Casa de Salomão. Por outro lado, os cientistas da Casa de Salomão são, se não os verdadeiros governantes, grande parte do poder por trás do trono. Governam provendo o povo com abundância, de modo que ninguém é jamais infeliz. O controle direto seria excessivamente incômodo. New Atlantis reflete a combinação setecentista de religião (particularmente a crença no milênio vindouro) e ciência (particularmente experimentação e classificação). A revelação isolada, em New Atlantis, poderia ter sido um Segundo Advento, mas, aparentemente, não foi. Todavia, revela a íntima conexão entre religião e ciência na época. Nem Bacon, nem os outros cientistas (como os chamaríamos) desse tempo viam a ciência e a religião separadas. O fato de Isaac Newton ter dedicado a maior parte de sua vida à exegese bíblica não era incomum, apenas geralmente esquecido em nossa tentativa de fazer com que todos os cientistas de todos os tempos pensem da mesma forma. No século XVII a ciência estava no processo de se livrar ou de se diferenciar da magia e da religião4. Nessa época, a cisão estava apenas começando e ciência, religião e magia ainda eram, em grande parte, mutuamente dependentes, mesmo naqueles escritores a quem tendemos a pensar como os cientistas da época. Bacon acreditava que a ciência (e o termo deve ser usado em sentido amplo) era uma avenida que levava à compreensão de Deus. Essa era a posição comum dos cientistas da época. Ciência e religião eram partes da mesma atividade. New Atlantis, vista sob essa luz, faz sentido. Bensalem é um país cristão, e os cientistas, que são seus cidadãos mais honrados, são religiosos também. 4 2. Hartlib e seu círculo Bacon não foi o único cientista religioso a escrever uma utopia. Outra utopia da época, Macaria (1641), já foi tida como obra de Samuel Hartlib, mas hoje é geralmente atribuida a Gabriel Plattes, que foi membro do círculo em torno a Hartlib e mais conhecido como escritor de temas relacionados à agricultura5. Conforme o exaustivo estudo de Charles Webster sobre o círculo de Hartlib, ele e seus seguidores são representativos de um significante elemento do pensamento puritano de meados do século XVII, que combinava expectativas milenaristas e uma crença na renovação do conhecimento. Hartlib e seus seguidores viam a produção e a distribuição do conhecimento como instrumentos para o aperfeiçoamento das vidas das pessoas, como um sinal da chegada do milênio (baseado em Daniel 12:4), e um meio para alcançar as condições sociais esperadas como resultado do Segundo Advento. Assim, o milenarismo subjazia tanto aos avanços do conhecimento – incluindo a ciência e a tecnologia - quanto para a crença no desejo e na possibilidade de uma significante mudança social. Ver K. Thomas, Religion and the Decline of Magic: Studies in Popular Beliefs in Sixteenth- and Seventeenth-century England, London, Weidenfeld and Nicolson, 1971; ver também H. Baker, “The Idea of Progress”, em The Wars of Truth: Studies in the Decay of Christian Humanism in the Earlier 17th Century, London, Staples Press, 1952, pp. 78-89. 5 G. Plattes, A Description of the Famous Kingdom of Macaria, reimpresso em C. Webster, Utopian Planning and the Puritan Revolution: Gabriel Plattes, Samuel Hartlib and ‘Macaria’, Oxford, Wellcome Unit for the History of Medicine, 1979, pp. 65-73. Ver C. Webster, “The Authorship and Significance of Macaria”, Past and Present, nº 56, 1972, pp. 34-48. 81 Lyman Tower Sargent Expectativas milenaristas permeavam o pensamento da época. O círculo de Hartlib colheu algumas de suas inspirações em Johann Valentin Andreae, autor da famosa utopia Reipublicae Christianopolis Descriptio (1619, conhecida como Christianopolis) e outros escritos, alguns dos quais traduzidos por John Hall, a pedido de Hartlib. Uma influência mais direta foi Comenius ( Jan Amos Komensky), cuja apresentação de uma possível pansophia, a integração de todos os conhecimentos, inspirou o círculo de Hartlib na esperança de conciliar todo conhecimento em um sistema coerente que pudesse ser prontamente comunicado. Na Inglaterra, Comenius esteve intimamente associado a Hartlib. O círculo de Hartlib via a necessidade de propostas práticas para realizar suas idéias. As propostas variavam de uma colônia no Báltico ou no Novo Mundo, que se chamaria Antilia, seguindo um esquema de Andrea, a várias propostas de emprego para os pobres. Elas incluiam um plano para estabelecer um colégio universal e a utopia Macaria, breve panfleto que apenas sugere poucas reformas. A mais recente (e melhor) análise de Macaria, de J. C. Davis, argumenta que a utopia econômica (ausência de desemprego) era central para a unificação de todo o conhecimento e prática que Plattes prevê. O utopismo estava no centro das reflexões do círculo de Hartlib, ainda que somente uma utopia tenha sido produzida6. Macaria reflete uma dupla preocupação: com a iminência do milênio e com o avanço do conhecimento. Embora a religião pareça ter sido varrida com sentenças que poderiam ter sido escritas por um racionalista irreligioso, a linguagem não deve ocultar o fato de que a crença e a prática religiosas são centrais para todo o sistema social e intelectual da sociedade. A religião era central para a ciência e a tecnologia do círculo de Hartlib, assim como para Bacon7. 3. Swift e a Razão 6 J. Davis, Utopia and the Ideal Society: A Study of English Utopian Writing 1516-1700, Cambridge, Cambridge University Press, 1981. 7 Webster, The Great Instauration, p. xv. 82 Como se observou acima, a ciência emergiu como uma forma distinta de pensamento no século XVII tão logo se separou da magia e da religião. A alquimia é o perfeito exemplo de um meio-termo, visto que combinava experimentação e encantamento. Assim que os encantamentos foram deixados, algo semelhante a uma ciência moderna e experimental, foi lentamente se desenvolvendo. Geralmente se reconhece (Dubos, por exemplo), como principal estímulo para essa separação, o desenvolvimento da razão como forma de ver o mundo. Mas ainda que a razão tenha vindo a dominar, foi também questionada, e no século XVIII os debates sobre a razão foram os primeiros exemplos da ambivalência em relação à ciência e à tecnologia que discuto aqui. Jonathan Swift foi uma figura maior nesses debates. Embora haja um considerável desacordo entre os críticos, uma das intenções de Swift em Gulliver’s Travels (1726) pode ter sido mostrar que um ser totalmente racional não pode ser humano. Os houyhnhnms são racionais por natureza. Sua linguagem não tem palavra alguma para Eutopias e Distopias da Ciência mentira ou falsidade. O mais próximo que os houyhnhnms podem chegar da mentira é falar de alguém como se tendo “dito a coisa que não era”. Swift repetidamente indica as formas em que a racionalidade elimina palavras desnecessárias para os houyhnhnms8. Swift salienta a bestialidade dos yahoos (humanos) e a humanidade dos houyhnhnms, e tal quadro reforça a noção de que uma criatura puramente racional não pode ser humana. Alguns utopistas argumentaram em favor de seres humanos puramente racionais9 e, refletindo isso, muitos anti-utopistas castigaram toda a iniciativa utópica como tentativa de desumanizar todo o gênero humano precisamente porque os anti-utopistas sustentam que os utopistas propõem uma vida puramente racional10. Os yahoos são humanos; os houyhnhnms são cavalos. Certas características humanas podem ser mantidas na forma grosseira dos yahoos (que vêm diretamente das narrativas medievais do homem selvagem11), mas ser totalmente racional seria inumano. Alguns dos pensadores radicais da segunda metade do século XVIII, e particularmente aqueles da última década, continuaram e desenvolveram a ênfase na razão. Em particular, William Godwin e aqueles que influenciou levaram a razão a novos lugares. Enquiry Concerning Political Justice (1793) de Godwin tem sido, às vezes, chamado de utopia; pode ser mais justamente considerado como tendo influenciado o utopismo do fim do século XVIII e o início do século XIX. O livro se originou dos eventos da Revolução Francesa e foi uma resposta a Reflections on the Revolution in France (1790) de Edmund Burke. Ainda que o livro de Godwin tenha surgido depois de Rights of Man (1791-1792) de Thomas Paine, e Vindication of the Rights of Men (1790) e A Vindication of the Rights of Woman (1792), da futura esposa de Godwin, Mary Wollstonecraft, como respostas a Burke, e fosse muito mais longo e muito mais caro que os deles, foi um sucesso imediato12. Os utopistas do período, mesmo aqueles que tomaram posições radicais, eram geralmente mais conservadores que Godwin. Houve duas utopias na segunda metade do século que refletiam uma atitude semelhante com respeito à razão. Enquanto uma foi escrita antes do livro de Godwin, a outra pode ter sido diretamente influenciada por ele. Various Prospects (1761) de Robert Wallace e The Commonwealth of Reason (1795) de William Hodgson apresentam sociedades que são racionais sem serem anarquistas13. Embora Wallace argumentasse em Various Prospects que a eutopia que propunha fosse impossível, listou dezoito pontos concernentes àquilo que compreenderia seu governo racional. Esses dezoito pontos cobrem tópicos que vão desde a administração e organização da força de trabalho até regras relacionadas ao vestuário, mas todos são regulados pelo princípio de que todos os membros da sociedade devem contribuir para o sucesso da sociedade como um todo. Wallace propunha uma sociedade em que todos os seus membros fossem capazes de gozar a vida da forma que escolhessem, trabalhando todos um número limitado de horas por dia. Para Wallace essas poucas e simples regras eram o que a razão ditava. 8 J. Swift, Gulliver’s Travels, ed. A. Rivero, New York, Norton, 2002, pp. 202-3. 9 Por exemplo, ver as três utopias de John Macmillan Brown: Riallaro; The Archipelago of Exiles, New York, G. P. Putnam’s Sons, 1901; Limanora; The Island of Progress, London, Putnam’s, 1903; e ‘Beyond’, Ms John Macmillan Brown Papers 118 B2, John Macmillan Brown Library, University of Canterbury, New Zealand. 10 Ver, por exemplo, R. Dahrendorf, ‘Out of Utopia: Toward a Reorientation of Sociological Analyis’, American Journal of Sociology, nº 64, 1958, pp. 115-27; and K. Popper, ‘Utopia and Violence’, Hibbert Journal, nº 46, 1948, pp. 10916. Para críticas dessa posição, ver os seguintes artigos de B. Goodwin: ‘The “Authotitarian” Nature of Utopia’, Radical Philosophy, nº 32, 1982, pp. 2327; ‘Utopie und Rationalität’, in Verfassungen, Gerechtigkeit und Utopien, K–P. Markl (ed.), Opladen, Westdeutscher Verlag, 1985, pp. 254-78. 11 Sobre o homen selvagem, ver R. Bernheimer, Wild Men in the Middle Ages: A Study in Art, Sentiment, and Demonology, Cambridge Mass., Harvard University Press, 1952. 12 W. Godwin, Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on Modern Morals and Happiness, ed. I. Kramnick, Harmondsworh, Penguin, 1976. 13 R. Wallace, Various Prospects of Mankind, Nature and Providence, London, A. Millar, 1761; W. Hodgson, The Commonwealth of Reason, London, Printed for the Author, 1795. 83 Lyman Tower Sargent 14 O. Goldsmith, Asem, The Man-hater: An Eastern Tale, London, Griffith & Farran, 1877, p. 7. A mais detalhada das utopias da razão, adequadamente intitulada The Commonwealth of Reason, continha muito mais regras. Hodgson estava no cárcere por traição quando The Commonwealth of Reason foi publicada. Ele era um político radical envolvido com outros que apoiavam a Revolução Francesa. A acusação de traição se baseava em um brinde que propusera à ‘República Francesa’, além de um comentário depreciador que fizera sobre o rei. Após sua libertação, voltou para sua antiga profissão de cientista e a ela acrescentou o trabalho com literatura e gramática francesa. Hodgson extraiu suas idéias principalmente dos philosophes franceses e dos círculos radicais da Inglaterra do último quarto do século. E embora não tivesse simplesmente copiado as idéias de outros, e aparentemente não estivesse envolvido com os grupos mais radicais, sua utopia refletia a tendência à democracia radical, pilar de sustentação da maioria dos defensores ingleses da Revolução Francesa. Parte de sua utopia foi chamada ‘Declaration of Rights’, conforme o modelo francês. Hodgson e os outros entusiastas da razão dominaram o utopismo da última parte do século, mas não eram as únicas vozes que se ouvia. Ataques à razão eram comuns, um dos quais escrito por um dos mais importantes escritores da época, Oliver Goldsmith. Um curto ataque às pessoas que pensavam que a razão resolveria todos os problemas humanos é o conto de Goldsmith, conhecido como ‘Asem’ (1759). Nesse conto, originalmente publicado como ‘The Proceedings of Providence Vindicated. An Eastern Tale’, Goldsmith descreveu um povo ‘racional, absolutamente isento de vícios’. Tal racionalidade produzira uma sociedade totalmente desprovida de arte e até mesmo de relações sociais14. Asem, que se revoltara contra a raça humana, sua irracionalidade e seu vício, acreditava que a razão pura eliminava não somente o vício, como também toda virtude. Assim como Swift poucos anos antes, Goldsmith acreditava que a razão pura só poderia ser inumana. 15 Ver G. Claeys, ‘Ecology and Technology in Early Nineteenth-Century American Utopianism: A Note on John Adolphus Etzler’, Science and Society, vol. 50, nº 2, 1986, pp. 219-25; G. Claeys, ‘John Adophus Etzler, Technological Utopianism, and British Socialism: The Tropical Emigration Society’s Venezuelan Mission and its Social Context, 1833-1848’, English Historical Review, nº 101, 1986, pp. 351-75. 16 W. Gilpin, The Cosmopolitan Railway. Compacting and Fusing Together All the World’s Continents, San Francisco, The History Company, 1890, p. 292. 84 4. O século XIX O século XIX foi o auge da representação positiva da ciência e da tecnologia na literatura utópica. Em meados do século XIX, um utopista da tecnologia, John Adolphus Etzler, escreveu um número de livros que seguiram de perto o título de seu primeiro escrito, The Paradise within Reach of All Men, without Labour, by Powers of Nature and Machinery (1833)15. Dois romances vêem uma tecnologia particular como geradora da eutopia: a ferrovia. A primeira, The Cosmopolitan Railway (1890) de William Gilpin é a mais imponente, no sentido que a finalidade apresentada no projeto “... é unir as nações da Terra como membros pacíficos de uma família...”. Ele propõe construir uma ferrovia circundando o mundo. Atravessaria o Pacífico no Estreito de Bering (a proposta de um túnel ali está sendo planejada hoje). Como exatamente o Atlântico poderia ser atravessado é menos claro para mim16. Eutopias e Distopias da Ciência Gilpin, que era o governador do estado do Colorado, acreditava que “um aumento no conhecimento das artes industriais significa um correspondente avanço na moralidade e nos costumes”. Portanto, diz, “o inventor da locomotiva foi infinitamente mais benéfico ao mundo do que os santos medievais... e o telégrafo, o telefone e a luz elétrica... são troféus da grandeza nacional, mais nobres e mais duradores do que todas as conquistas militares...”17. O outro romance, publicado quatorze anos mais tarde, The Sky Blue; A Tale of the Iron Horse and of the Coming Civilization (1904) de Olin J. Ross, repete o tema básico de Gilpin de criar uma grande civilização do novo mundo, por meio da construção de estradas de ferro18. Enquanto a defesa de soluções tecnológicas para problemas sociais dominava o século, havia ainda quem delas duvidasse. Por exemplo, The Age of Science; A Newspaper of the Twentieth Century (1877) de Frances Power Cobbe é a distopia de uma ciência levada longe demais. A medicina é particularmente poderosa, e o Parlamento é inteiramente composto por médicos que agem em seu próprio interesse. Pessoas são executadas por heresias contra a ciência, tais como a homeopatia, a religião e a resistência à vacinação. E “The Passing of Niagara” (1897) de Rebecca Harding Davis é uma sátira à utopia tecnológica. Os Estados Unidos torna-se inteiramente prático, centrado em ganhar dinheiro e produzir bens de consumo. As cataratas do Niágara são eliminadas; as marés são detidas para a produção de energia; todas as igrejas são transformadas em escolas superiores de comércio; os benefícios de veteranos são abolidos, bibliotecas e galerias de arte vendidas, e cavalos, cães, pássaros, árvores e flores eliminados; e o alimento é produzido em forma de pílulas. É algo tão desagradável, que todos deixam o país19. A saúde tem sido um tema recorrente nas utopias. Miriam EliavFeldon, em Realistic Utopias (1982), percebe uma preocupação com a saúde tanto nas utopias britânicas quanto nas continentais, no período entre 1516 e 1630, e Rebecca Totaro afirmou recentemente que pelo menos algumas utopias do século XVI se ocuparam de soluções para o problema da praga. Mas foi no século XIX, talvez em resposta aos problemas de saúde advindos da industrialização e do crescimento das cidades, que a saúde se tornou um foco central. Como existem muitas dessas utopias, o melhor exemplo é Hygeia: A City of Health (1876) de Benjamin Ward Richardson. Nesse discurso feito ao Departamento de Saúde do Congresso de Ciência Social, ele descreve a cidade saudável do futuro. As mudanças incluem controle de poluição em caso de incêndios, jardins suspensos, a eliminação de tapetes, a supervisão estatal de lavanderias públicas, limpeza pública de ruas, matadouros publicamente supervisionados, sepultamento sem esquife ou embalsamento, a localização de fábricas fora da cidade, ferrovias e esgoto subterrâneos. As pessoas devem praticar exercícios regulares, não fumar nem ingerir bebidas alcólicas. Visto que muitas dessas reformas foram de fato adotadas, pode nos surpreender vê-las numa eutopia de meados do século XIX. Mas pode também valer a pena refletir sobre como muitas de suas propostas não foram adotadas, ainda que fossem conducentes a uma saúde melhor20. 17 Gilpin, The Cosmopolitan Railway, p. 290. 18 O. Ross, The Sky Blue: A Tale of the Iron Horse and of the Coming of Civilization, Columbus, published by the author, 1904. 19 F. Cobbe, The Age of Science: A Newspaper of the Twentieth Century, London, Ward, Lock and Tyler, 1877; R. Davis, ‘The Passing of Niagara’, The Independent, 25 November 1897, pp. 3-4. 20 M. Eliav-Feldon, Realistic Utopias: The Ideal Imaginary Societies of the Renaissance, 1516-1630, Oxford, Clarendon Press, 1982; R. Totaro, Suffering in Paradise: The Bubonic Plague in English Literature from Morus to Milton, Pittsburgh, Duquesne University Press, 2005; B. Richardson, Hygeia: A City of Health, London, Macmillan and Co., 1876. 85 Lyman Tower Sargent 21 F. Galton, ‘The Donoghues of Dunno Weir’ (1901?), ed. L. Sargent, Utopian Studies, vol. 12, nº 2, 2001, pp. 210-33; F. Galton, ‘Kantsaywhere’ (1911?), ed. L. Sargent, Utopian Studies, vol. 12, nº 2, 2001, pp. 191-209. 22 Ver J. Partington, ‘H. G. Wells Eugenic Thinking of the 1930s and 1940s’, Utopian Studies, vol. 14, nº 1, 2003, pp. 74-81. 23 F. Carrell, 2010, London, T. Werner Laurie, 1914. 24 E. Forster, ‘The Machine Stops’, in The Eternal Moment and Other Stories, London, Sedgwick & Jackson, 1928, pp. 1-61. 25 E. Bulwer-Lytton, The Coming Race, London, George Routledge and Sons, 1874. 86 A eugenia já era uma preocupação das utopias bem antes de o termo ser cunhado por Francis Galton. Tão remota quanto La città del sole de Tommaso Campanella (1611), a eugenia era vista como um recurso central para alcançar e manter uma eutopia, embora valha a pena notar que a tradução inglesa usada como padrão por anos havia censurado todo o material relativo à eugenia, porque sexualmente explícito em demasia. O próprio Galton escreveu duas eutopias eugênicas, e o tópico recorre constantemente nas eutopias de fins do século XIX e início do século XX21. Para muitos autores a eugenia pareceu um meio de resolver muitos males sociais. A maioria dos autores via tanto a eugenia positiva (ou o estímulo para que os melhores produzam mais crianças entre si) quanto a negativa (ou a dissuasão ou mesmo proibição de os piores terem filhos) como desejáveis. Mas como Wells, por exemplo, rapidamente percebeu, a chave era a definição de melhor e de pior22. Dadas as atitudes da época, não é surpreendente que as definições tendam a reforçar os estereótipos raciais e étnicos. Mas até mesmo quando tais estereótipos eram evitados, restava a questão de quais características apurar e quais inibir. As eutopias e distopias da época tendem a seguir o modelo de Wells: um entusiasmo inicial seguido de dúvidas e, por fim, a evasão da questão. Mas mesmo depois do mau uso da eugenia na Segunda Guerra, algumas eutopias eugênicas ainda têm sido escritas, e a questão da manipulação genética, um refinamento da eugenia, é um tema vivo na ficção científica hoje, geralmente advertindo contra seu mau uso. Escritos do período em torno da virada do século XX, quando muitas utopias foram publicadas, ilustram de forma bastante eficaz certas atitudes. Algumas utopias desse período vêem a raça humana muito avançada (muito mais inteligente e refinada), geralmente pelo uso da ciência. Às vezes, isso é alcançado através da evolução, e outras, pelo aperfeiçoamento mecânico do cérebro, como em 2010 (1914) de Frederic Carrell23. E. M. Forster, em seu famoso The Machine Stops (1909), apresenta os perigos de se tornar tão dependente da ciência. O conto de Forster é uma distopia da ciência em que uma civilização inteira morre porque perde sua originalidade, tendo se tornado totalmente dependente da tecnologia, esquecendo até mesmo de como consertar máquinas24. Uma das mais excêntricas das utopias do século XIX é The Coming Race (1871) de Edward Bulwer-Lytton, em que cada pessoa possui um poder, chamado ‘vril’, que pode ser usado para aniquilar instantaneamente outra pessoa. Isso me faz lembrar do estado de natureza de Thomas Hobbes, ou do MAD (Mutually Assured Destruction – Destruição Mútua Assegurada) no período da Guerra Fria, que pretendia garantir a paz. Um delicioso aparte sobre isso: hoje em dia uma pessoa pode ir a uma loja e comprar o alimento energético Bovril, assim chamado por causa do ‘vril’ de The Coming Race25. Os escritores de utopias mostraram uma crescente ambivalência em relação à ciência. Essa ambivalência fica, talvez, mais clara na obra de H. G. Wells, freqüentemente considerado um cego defensor do avanço científico. Em seus escritos, os problemas, na maioria dos casos, se originam do medo Eutopias e Distopias da Ciência de que a ciência possa ser usada de forma abusiva. A ciência, ao que parece, é neutra, ou, pelo menos, próxima à neutralidade, mas as pessoas são fracas, vaidosas, ambiciosas, ávidas de poder, e, às vezes, simplesmente más, e se tais pessoas controlarem a ciência, estaremos todos em apuros, assim como de fato estamos. Se, por outro lado, existirem pessoas decentes, honestas, que possam usar a ciência pelo bem da humanidade, ao invés de usá-la em proveito próprio, ainda poderemos ser salvos. Wells se preocupou com esse problema durante a maior parte de sua vida. Wells é particularmente interessante nesse contexto porque, embora seja considerado um dos fundadores da ficção científica, sua ficção científica tinha, de fato, pouca relação com a ciência ou com a tecnologia. Pensem em The Time Machine (1895), em que a máquina é meramente um meio para determinado fim numa história cujo tema principal é a evolução social. Mais uma vez, em The First Men in the Moon (1901), o vôo à lua é o meio para determinado fim de uma história fundamentalmente relacionada ao mau uso da inteligência e uma sátira à mentalidade capitalista. The Invisible Man (1897) e The Island of Doctor Moreau (1896) estão, ambas, fundamentalmente relacionadas ao mau uso da ciência. Suas eutopias e distopias, como The Sleeper Wakes (1899), A Modern Utopia (1905), Men Like Gods (1923) e The Shape of Things to Come: The Ultimate Revolution (1933), na verdade, contêm pouca coisa sobre ciência e tecnologia. Estas compõem, antes de tudo, um segundo plano em enredos relacionados a outras questões. The World Set Free (1914) é uma utopia wellsiana nitidamente diferente, no sentido que a eutopia finalmente alcançada se baseia na energia abundante e barata, uma eutopia que ainda hoje não se tornou realidade. A não-ficção de Wells segue sempre o mesmo padrão e termina com A Mind at the End of Its Tether (1945), inspirada pela bomba atômica. Dos fundadores da ficção científica é Jules Verne, não Wells, quem se aproxima mais da imagem popular do escritor de ficção científica. Mas devemos nos lembrar também da fundadora da ficção científica, Mary Godwin Shelley, e de seu Frankenstein (1818), o relato clássico do mau uso da ciência. De vez em quando, surge uma panacéia científica ou tecnológica, e se recorda da busca dos alquimistas pelo elixir da vida. No fim do século XIX, essa panacéia foi a eletricidade, que, se acreditava, iria revitalizar tanto o corpo social quanto o físico. Em meados do século XX, a panacéia era a energia atômica, com o átomo aquecendo os lares, provendo de energia carros e aviões, e abastecendo uma economia de energia barata26. O santo graal da força de fusão sugere que tal panacéia não desapareceu completamente. 5. O século XX O auge das representações positivas da ciência e da tecnologia na ficção científica pode ser visto nos primeiros pulps, da década de 1920 até a de 1950. Nessas revistas, cujo público-alvo era rapazes, muitas das histórias giravam em torno de alguma engenhoca ou avanço científico. Mas mesmo 26 Ver R. Langer, ‘Fast New World’, Collier’s, nº 106, 1940, pp. 18-19, 54-55; R. Langer, ‘The Miracle of U-235’, Popular Mechanics, vol. 75, nº 1, 1941, pp. 1-5, 149-50. 87 Lyman Tower Sargent 27 E. Zamyatin, We, trad. Clarence Brown, Harmondsworth, Penguin, 1993; A. Huxley, Brave New World, London, Chatto & Windus, 1932; A. Huxley, Brave New World Revisited, New York, Harper, 1958; A. Huxley, Island, New York, Harper & Row, 1962. 28 Huxley, Island, p. 167. 88 nesses pulps havia uma preocupação quanto ao mau uso da engenhoca ou da novidade científica, e alguns ainda se preocupavam com as relações humanas do mesmo modo que se interessavam pela ciência e tecnologia. Muito trabalho tem sido realizado ultimamente restabelecendo as escritoras ocultas por trás de iniciais, nomes neutros e pseudônimos usados nos pulps, argumentando que elas tinham preocupações diferentes das dos homens. Infelizmente, exceto pelos nomes mais conhecidos, como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Robert A. Heinlein e poucos outros, os escritores de pulp não têm sido estudados. Mas mesmo entre os mais conhecidos, somente Clarke se preocupava primeiramente com a tecnologia. Asimov pode ser mais conhecido pelos seus robôs, mas mesmo suas histórias giram em torno de algum desafio aos limites criados dentro dos robôs, um desafio que, se não resolvido, põe em perigo a vida humana. Mas muito do distopismo do século XX é explicitamente anti-ciência, começando com uma das distopias clássicas, We (1924) de Yevgeny Zamyatin, em que o desejo de organizar um mundo com precisão matemática produz uma distopia na qual o perito em eficiência Frederick Winslow Taylor é um herói e velhos cadernos com horários de trens são grande literatura. Mas Brave New World (1932) e Brave New World Revisited (1957) de Aldous Huxley tratam mais vigorosamente dessa questão. A eugenia, através da geração controlada em incubadoras, o mau uso de drogas e a distorção radical da psicanálise, nos mostra como é importante a expressão “adequadamente usada” com respeito à ciência e à tecnologia. Em Brave New World, a ciência não é adequadamente usada, mas Huxley retorna à questão e mostra, em Island (1962), como a ciência “adequadamente usada” pode fazer parte de uma eutopia. A partir desses clássicos, surgiram centenas de contos e romances descrevendo o mau uso da ciência, tantos que se torna claro que a posição da ciência e dos cientistas foi um dos conflitos fundamentais do século XX27. A energia nuclear pode ser o melhor exemplo disso. Como se observou anteriormente, a energia atômica foi vista – como ainda é vista por alguns, embora menos diretamente – como a solução para a carência de energia do mundo. O uso da energia nuclear para matar não eliminou as projeções eutópicas. Mas o crescente reconhecimento do quão difícil seja domar esse gênio particular, e do dano que poderia causar, mesmo acidentalmente, levou a um contínuo conflito sobre seu uso. No século XX, a distinção entre tecnologia pesada (ou alta tecnologia) e baixa tecnologia (ou tecnologia alternativa) é importante. Um slogan que poderia servir a muitas das utopias low-tech pode ser encontrado em Island de Aldous Huxley: ‘Eletricidade menos indústria pesada mais controle de natalidade é igual a democracia e fartura. Eletricidade mais indústria pesada menos controle de natalidade é igual a miséria, totalitarismo e guerra’28. A maioria das sociedades low-tech é muito parecida. Politicamente, são democracias descentralizadas e participativas, ou operam em consenso. Economicamente, são socialistas e mantêm todos os bens de produção coletivamente. Socialmente, são comunais, embora com espaço para excentricidades e uma ampla gama de liberdades individuais. Talvez um Eutopias e Distopias da Ciência modo melhor de colocar esta questão seja dizer que, socialmente, elas são feministas ou cooperativas e educativas ao invés de machistas ou competitivas, hierárquicas e autoritárias. Tecnicamente, contam com o que hoje chamamos de tecnologias “apropriadas”, ou seja, tecnologias não poluentes, com uma maior probabilidade de se basearem na biologia do que na física, e normalmente não requerem um grande investimento de capital. Como resultado desta última característica, são tecnologias que podem ser criadas e operadas por comunidades locais ou até mesmo por indivíduos, desta forma reforçando ou ajudando a criar o sistema político descentralizado. As mais conhecidas são sistemas baseados em fontes de energia solar, eólica e hidráulica. Sistemas baseados em metano também são populares. The Whole Earth Catalog (1968-81, com um volume final em 1994) foi a Bíblia low-tech29. Uma das excentricidades das utopias tecnológicas do século XX é o que já chamei de “agrarismo tecnológico”, ou sociedades que usam tecnologia sofisticada para manter uma forma de vida agrária30. Às vezes, a tecnologia encontra-se tão oculta que não chega a fazer sentido. Um exemplo está num conto em que, primeiramente, a sociedade parece ser puramente agrícola, com a exceção de pequenos dirigíveis para longas viagens. A seguir, se descobre que existe um computador em cada chalé. Essa sociedade parece ser composta de grandes famílias completamente isoladas (no sentido dos anos sessenta). Mas de onde veio aquele computador? Onde está a tecnologia que o produziu? Os computadores não são simplesmente criados por artesãos31. Um escrito semelhante vai mais longe, elabora algo um tanto melhor, com um computador comunitário e a vaga noção de uma tecnologia que lhe serve de suporte32. Na maioria de tais escritos, as pessoas decidem que não podem viver sem algo específico, e a tecnologia (mais uma vez, provavelmente estabelecida biologicamente) é desenvolvida para sustentá-lo. Geralmente, tais tecnologias são descentralizadas e estão sob controle local. A manufatura dos componentes também é feita da maneira menos poluente e econômica possível. Quando um substancial investimento de capital é preciso, trata-se de capital comunitário, não individual. Esse fenômeno reflete a ambivalência em relação à tecnologia, assim como, uma vez que a maioria desses casos é americana, a recorrente crença americana de que a melhor vida é uma vida simples em contato com a natureza. Essa crença é tão raramente posta em prática que talvez seja melhor considerá-la como um dos mitos americanos fundamentais. 6. Conclusão Questiono-me se os escritores contemporâneos pensam que a anticiência possa produzir uma história melhor do que a ciência bem sucedida. Arthur C. Clarke uma vez escreveu, ‘Marlan estava entediado, com o supremo tédio que somente a utopia pode dar’33. E Thomas M. Disch escreveu, ‘O paraíso tem, contudo, uma falha considerável do ponto de vista narrativo. É anti-dramático. A perfeição não produz uma boa história...’35. 29 Estes volumes foram acompanhados de CoEvolution Quarterly (1974-81), que continuou com The Whole Earth Review até 1996, quando se tornou Whole Earth em 2003. 30 L. Sargent, ‘A New Anarchism: Social and Political Ideas in Some Recent Feminist Eutopias’, in M. Barr & N. Smith (eds.), Women and Utopia: Critical Interpretations, Lanham, University Press of America, 1983, pp. 3-33. 31 Ver P. Novitski, ‘Nuclear Fission’, in T. Carr (ed.), Universe Nine, Garden City, Doubleday, 1979, pp. 43-66. 32 Ver B. Garskof, The Canbe Collective Builds a Be-Hive, New Haven, Dandelion Press, 1977. 33 A. Clarke, ‘The Awakening’, in Prelude to Mars, New York, Harcourt, Brace & Jovanovich, 1965, p. 264. 35 T. Disch, ‘White Fang Goes Dingo’, in White Fang Goes Dingo and Other Funny S. F. Stories, London, Arrow Books, 1971, p. 160. 89 Lyman Tower Sargent Enquanto esses são comentários gerais sobre o porquê de estes escritores escreverem distopias ao invés de eutopias, tal atitude poderia ter o efeito de aumentar a ambivalência. Ainda assim, penso que a realidade seja mais complexa e mais importante. A ambivalência baseia-se nas palavras “adequadamente usada” e no que essas palavras significam em períodos distintos. No todo, embora os detalhes variem, as palavras referem-se ao melhoramento humano, mas o problema rapidamente se desloca para “Em quem você confia para usar a ciência dessa forma?” Nos ricos: dificilmente. Nos líderes políticos: obviamente, não. Nos cientistas: aí está o problema. Desde a criação do Dr. Faustus, do Dr. Frankenstein e do Dr. Moreau, a literatura está cheia de cientistas em quem não se pode confiar quanto ao uso de seus conhecimentos para o melhoramento humano ao invés de sua própria obsessão ou poder pessoal. Contudo, a literatura também está cheia de cientistas do outro tipo: aqueles em quem podemos confiar. Mas como os comentários de Clarke e Disch sugerem, estes são menos memoráveis. 90