Histórias de Marias - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Transcrição

Histórias de Marias - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
Histórias de Marias
organizadora
IBCCRIM
Histórias de vida, lembranças doídas, momentos presentes, superações. Este é o Histórias de
Marias, um livro produzido por mulheres que participaram do 7º curso Maria, Marias – realizado
pelo IBCCRIM em parceria com a União de Mulheres de São Paulo. Ao longo de seis meses
alunas, sob a coordenação da antropóloga Tatiana S. Perrone, narraram lembranças, colocaram
corajosamente no papel, em forma de conto ou poesia, memórias de trajetórias de violências ou
mesmo violações ainda presentes. Cada história é única, mas há um fio que perpassa todas – a
fibra de mulheres em luta, que buscam o fim da violência de gênero e a
construção de um mundo menos desigual e mais justo. Além das palavras, um delicado ensaio
fotográfico, feito pelo fotógrafo Eduardo Mojzka, acompanha os textos. Esse livro não está
sozinho, mas compõe um mosaico de tantas outras ações espalhadas pelo Brasil voltadas para
a superação das violações que nos cercam. Já tendo cumprido com seu objetivo principal, que
era justamente o de encorajar as Marias a elaborarem suas histórias e narra-las livremente,
a missão agora é divulgar esta importante iniciativa que é o curso Maria, Marias e este belo
produto, dentre tantos outros, que surgiu de seus encontros. Estamos juntas e em luta pelo fim
das violências que nos oprimem. Estamos juntas e em luta pela igualdade de gênero. Boa
leitura e boas lutas.
Tatiana Santos Perrone
Agência Brasileira do ISBN
ISBN 978-85-99216-42-2
9 788599
216422
Histórias de Marias
Bruna Angotti
Coordenadora do Núcleo de Pesquisas IBCCRIM
Histórias de Marias
Tatiana Santos Perrone
organizadora
São Paulo
2015
© Desta edição - IBCCRIM
Produção Gráfica, capa e fotografias:
Eduardo Mojzka
Tel: (11) 994-141-441 - [email protected]
Microart
Tel: (11) 3013-2309 - [email protected]
Revisão de texto:
P543h
Perrone, Tatiana Santos (org.)
Histórias de Marias / Tatiana Santos Perrone (org.). São Paulo: IBCCRIM, 2015.
71 p.
ISBN 978-85-99216-42-2
1. Violência contra mulher. 2. Violência doméstica e familiar contra a mulher. 3. Violência
Familiar. 4. Lei Maria da Penha. I. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. II. Título.
CDD: 345
CDU: 343.541
INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM)
Rua 11 de Agosto, 52, 2° andar
CEP 01018-010 - São Paulo, SP, Brasil
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http://www.ibccrim.org.br
Tiragem: 1.500 exemplares
TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOS
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Impresso no Brasil - Printed in Brazil
Julho - 2015
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Humberto Barrionuevo Fabretti
Cristiano Avila Maronna
Bruno Shimizu
Presidentes das Comissões Organizadoras
21.º Seminário Internacional
19.º Concurso de Monografias de Ciências Criminais –
IBCCRIM
Atualização do Vocabulário Básico Controlado – VBC
Concessão de bolsas de estudo e desenvolvimento
acadêmico
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Fábio Roberto D’Avila
Renato Watanabe de Morais
Eleonora Rangel Nacif
Beatriz Dias Rizzo
Rafael de Souza Lira
Núcleo de Pesquisas IBCCRIM
Coordenadora- chefe
Coordenadoras Adjuntas
Bruna Angotti
Ana Gabriela Mendes Braga
Carmen Silva Fullin
Gorete Marques
Maíra Cardoso Zapater
Maria Amélia de Almeida Teles
Maria Rosa Roque
Nara Rivitti
Tatiana Santos Perrone
União de Mulheres de São Paulo
Presidenta
Vice-Presidenta
Coordenadora dos projetos Promotoras Legais
Populares e Maria, Marias
Rute Alonso Silva
Arlene Ricoldi
Maria Amélia de Almeida Teles
Quando a violência nos atinge,
são as Marias que nos fazem lutar.
Antes Maria era só um nome.
Hoje é um simbolo de lutas e conquistas.
Viver sem violência
é um direito das Muheres.
Projeto Maria, Marias
Não se pode falar do Projeto Maria, Marias sem antes explicar sua
origem em termos de conteúdo e metodologia e, sobretudo, em
relação a sua proposta central que é a educação feminista em direitos
sob uma perspectiva de igualdade de gênero, antirracista e antissexista
na construção de uma sociedade justa e igualitária.
O Projeto de Promotoras Legais Populares foi introduzido no Brasil
pela União de Mulheres de São Paulo (organização autônoma
feminista criada desde 1981) juntamente com o grupo Thêmis/RS
nos primeiros anos da década de 1990. Em 1994, foi organizado
o Seminário Nacional de Introdução ao Projeto de Promotoras
Legais Populares pelas duas entidades feministas, com o apoio do
Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo,
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com objetivo de mobilizar e organizar conteúdos e metodologias,
com a participação de 35 lideranças feministas de diversos Estados
brasileiros. No Estado de São Paulo, foi, então, criado o curso anual
de Promotoras Legais Populares que começou na capital e que hoje
se realiza em diversos municípios, onde foram formadas mais de 5
mil promotoras legais populares. Na cidade de São Paulo, o curso
encontra-se em sua 20.ª edição, e por isso está sendo realizado o
Encontro Comemorativo dos 20 anos dos Cursos de Promotoras
Legais Populares, com a participação de diversas entidades e
grupos de mulheres tanto da capital como do interior. São muitos
os impactos deste projeto na vida das mulheres e da sociedade.
A partir dos debates e discussões, as promotoras legais populares
criam movimentos e organizações de mulheres, fortalecem práticas
feministas em seus locais de trabalho, de estudo e de moradia.
É bom destacar que este projeto nasceu quando fazia cinco anos de
promulgação da Constituição de 1988, a primeira a ser feita depois
do triste e sombrio período da Ditadura Militar. Durante os trabalhos
da constituinte as mulheres se mobilizaram e conquistaram direitos
que até então não lhes eram reconhecidos. Por isso entendemos ser
necessário o investimento na educação feminista em direitos para que
a população feminina se aproprie dessas conquistas.
Quando em 2006, foi promulgada a Lei 11.340, que se tornou
conhecida como Lei Maria da Penha, de imediato pensamos em
desenvolver um curso específico sobre a lei e seus desdobramentos
no cotidiano da vida das mulheres. No final de 2007, a União de
Mulheres de São Paulo foi procurada pela Campanha Bem Querer
Mulher/Unifem para desenvolver alguma atividade relacionada
à implantação da lei. De imediato, apresentamos a ideia do curso
e assim foi feito o primeiro em 2008, com a participação de 17
mulheres com o objetivo central de mobilizar e conscientizar
mulheres para acompanhar e exigir a implementação da Lei Maria da
Penha.
A principal atividade é um curso anual, com 94 horas de duração,
que capacita sobre a lei, serviços e ONGs que têm como meta o
enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres.
Sabemos que para desconstruir a cultura patriarcal e sexista,
interromper o ciclo da violência, há necessidade de criar condições
para que se construam relações igualitárias de poder entre mulheres e
homens. É necessário enfrentar as relações desiguais de gênero.
Infelizmente, as mulheres continuam a sofrer a violência doméstica e
familiar e, no Brasil, a sua incidência é alarmante. Nosso país ocupa
o 7.º lugar no ranking dos assassinatos de mulheres. A cada hora e
meia, há um assassinato de uma mulher e, na maioria das vezes, é
devido à violência de gênero. Portanto, temos muito o que fazer para
reduzir, prevenir e erradicar a violência contra as mulheres.
A nossa perspectiva é alcançar a igualdade de oportunidade e de
condições entre mulheres e homens. Oxalá, a alcançaremos um dia!
Por ora, o Projeto Maria, Marias pretende organizar e mobilizar
mulheres para aplicação integral da Lei 11.340/2006.
A Lei Maria da Penha é um instrumento de enfrentamento da
violência doméstica e familiar contra as mulheres e significa as
mobilizações feministas que se deram nas últimas três décadas. Mas
principalmente é o resultado da condenação do estado brasileiro pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização
dos Estados Americanos), em 2001. Na ocasião, o Brasil foi
condenado por negligência e omissão em relação à violência
doméstica e familiar contra as mulheres, quando foi apresentado o
caso de Maria da Penha Maia Fernandes que sofria violência praticada
pelo seu marido e a justiça brasileira não a tratou com o devido
respeito e dignidade, atuando de forma inerte e conivente. Maria
da Penha se tornou símbolo na luta contra a violência doméstica
e familiar e contra a impunidade. Este foi o motivo pelo qual a lei
ganhou o seu nome: Maria da Penha.
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A lei foi sancionada em 07.08.2006. Mesmo assim, continuamos a
assistir a uma avalanche de atos de violência que afetam a vida das
mulheres, em suas diferentes fases, acarretando prejuízos, muitas
vezes irreversíveis, tanto às suas vítimas diretas como às suas
crianças, à vizinhança e à comunidade.
Por isso a importância do Projeto Maria, Marias que prepara mulheres
para que elas próprias e as demais que com elas convivam tomem
a iniciativa da palavra e de usar suas vozes para darem um basta à
violência. Preparar as mulheres para se fazerem ouvir, escutar e falar.
A proposta é conseguir efetivar relações democráticas entre mulheres
e homens de maneira a alcançar uma vida sem violência.
O conteúdo e a metodologia
O curso, realizado de abril a outubro ou novembro (por volta de 6
meses), contém atividades semanais, oferece informações sobre a
Constituição Federal, os tratados internacionais de direitos humanos
das mulheres e oferece reflexões sobre o conceito de violência contra
as mulheres, violência de gênero e o ciclo da violência doméstica e
familiar. Traz reflexões e análises sobre todos os artigos da Lei Maria
da Penha. Informa sobre o histórico da lei, suas principais diretrizes,
o conceito de violência doméstica e familiar nas suas diversas formas:
física, psicológica, patrimonial, moral e sexual. Enfatiza como devem
funcionar os serviços públicos, as delegacias de defesa da mulher
e outras delegacias de polícia, a Defensoria Pública, o Ministério
Público, o Judiciário e como deveria ser estruturado o Juizado de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Mostra como criar
condições para formular e analisar as medidas protetivas, como elas
devem ser requeridas e encaminhadas.
A metodologia aplicada parte do princípio da construção coletiva
de conhecimentos e ações, oferecidos pelo conteúdo dos direitos e
da própria Lei Maria da Penha, mas principalmente, nos saberes e
experiências apresentados pelas participantes.
São realizados mais de 20 encontros e, pelo menos, visitas a cinco
instituições responsáveis pela implementação da Lei Maria da
Penha. Realizamos, por ocasião do aniversário da Lei (07.08)
um ato chamado “Abraço Solidário às Mulheres em Situação de
Violência” para manifestar o apoio à lei e os desafios colocados na
sua aplicação. Os dois primeiros abraços foram feitos em frente ao
Tribunal de Justiça para mostrar a necessidade de se criar os juizados
de violência doméstica e familiar com o caráter híbrido, conforme o
que diz a lei, de maneira a atender as mulheres nas áreas criminal e
civil. O terceiro abraço, nós fizemos junto à Defensoria Pública para
reivindicar a prioridade no atendimento às mulheres em situação de
violência. O quarto abraço foi realizado no vão do MASP, na Av.
Paulista. Ali reivindicamos a necessidade de se articular a Rede de
Atenção às Mulheres em Situação de Violência. Em 2014, fizemos
o abraço em frente à 1.ª Delegacia de Defesa da Mulher, que é o
serviço mais procurado pelas vítimas e, no entanto, ainda apresenta
vários problemas: não há o acolhimento necessário, as mulheres
ficam expostas em um balcão, demora-se para fazer um boletim de
ocorrência policial, fazem exigências descabidas para pedir a medida
protetiva, entre outros problemas.
Em cada encontro semanal, abre-se um espaço de reflexão e para
obter habilidades de comunicação, planejamento e organização e
outras atividades que facilitem o exercício de liderança.
Estimula-se a prática solidária ente as mulheres de maneira que
as participantes possam orientar e acolher outras mulheres em
situação de violência e divulgar as diretrizes gerais da lei, de modo
a sensibilizar profissionais e fortalecer as mulheres para que façam a
denúncia e se conscientizem de que têm direito a viver sem violência.
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As atividades são: oficinas, palestras, apresentação de vídeos,
debates, grupos de trabalho, visitas ao Judiciário, à Defensoria
Pública, à Delegacia de Polícia, ao Centro de Referência da Mulher,
ao Ministério Público, ao Hospital da Mulher, à Casa Eliana de
Grammont, entre outros serviços.
Temos tentado fazer uso do “diário de atividades”, destacando-se
registros de casos atendidos ou vivenciados na comunidade, notícias
de jornais ou fatos presenciados na rua, no trabalho, denunciados
na TV ou atividades realizadas pelas participantes relativas ao
enfrentamento da violência doméstica e familiar.
O Projeto Maria, Marias teve seu primeiro curso em 2008, na sede do
IBAP – Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, e, em 2009, o curso
veio para o IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais,
onde foi tão bem acolhido. O IBCCRIM colocou sua infraestrutura,
assim como profissionais, na coordenação e realização das atividades.
Isso contribuiu para melhorar muito a qualidade do curso.
Em 2009, por ocasião da realização do 15.º. Seminário Internacional
do IBCCRIM, foi realizada audiência pública (25/08/2009) com a
Maria da Penha. Foram convidadas as participantes do Projeto e
também os movimentos sociais, as promotoras legais populares e
demais pessoas interessadas. O resultado é que a audiência cumpriu
seu objetivo de divulgar a lei e também de denunciar as dificuldades
que impedem sua aplicação e que representam ameaças concretas de
esvaziar o conteúdo da lei tanto técnico quanto político.
O número de participantes do curso fica dentro do ideal que é de 15
a 25, de forma que se possam organizar grupos de 5 a 6 mulheres
para participar de atividades teóricas e práticas. As participantes são
colocadas em círculo, para que possam se comunicar com facilidade,
trocando experiências, fazendo reflexões e análises e podendo ver o
rosto de cada uma assim como sua expressão corporal. A participação
em círculos coloca todas mais ativas e presentes no processo de
construção dos conhecimentos. Estabelece também condições mais
igualitárias entre as participantes.
A veiculação de informações e imagens é facilitada com o uso dos
equipamentos instalados no auditório do IBCCRIM.
Outro detalhe que torna o ambiente ainda mais agradável é que, ao
lado da sala onde funciona o curso, há uma máquina de café, que as
participantes podem usar livremente.
As aulas expositivas são acompanhadas por debates e apresentação
de audiovisuais. Muitas vezes, transformam-se em diálogos, rodas de
conversa. As oficinas são temáticas e envolvem dinâmicas distintas
desde trabalho em grupo, dramatizações, júri simulado e jogos.
Após essas atividades, são escolhidas as participantes que farão o
resumo do conteúdo a ser apresentado na próxima semana. É uma
forma de avaliar o que foi aprendido.
No final, é realizado um encontro comemorativo da finalização do
curso com a entrega de certificados.
Todas essas atividades só foram possíveis até hoje graças ao apoio
de Alessandra Teixeira, Aline Yamamoto, Caio Santiago, Fernanda
Fernandes, Fernanda Matsuda, Carolina Costa, Bruna Angotti, Rafael
Vieira (estagiário) e Tatiana Perrone. Por isso gostaria de registrar
aqui os nossos sinceros agradecimentos a essas pessoas.
Amelinha Teles
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Histórias de Marias
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Histórias de Marias é um livro que teve sua primeira semente plantada na primeira
aula da 7.ª edição do curso Maria, Marias. Uma primeira aula cheia de histórias
emocionantes de Marias que superaram a violência e de Marias que ainda vivem em
situação de violência. Após lágrimas compartilhadas por todos tive uma forte sensação
de que aquelas histórias não poderiam ficar apenas entre os presentes e deveriam ser
compartilhadas. A ideia foi apresentada ao grupo e imediatamente abraçada, sendo
esse livro fruto do trabalho conjunto realizado com as alunas.
Nas próximas páginas você irá encontrar essas histórias e também histórias de outras
Marias. São Marias que estiveram ou estão em situação de violência, Marias que
compartilham a felicidade de poder contar que superaram e que lutam para que outras
Marias não passem pelo que elas passaram. As violências foram várias, dentro e fora
de casa, de conhecidos e de desconhecidos, além da violência estrutural fruto de uma
sociedade desigual.
A escolha do título do livro foi inspirada no nome do curso e sugerido pelas alunas.
Nós entendemos que as histórias aqui contadas não foram apenas vividas por uma
pessoa em particular, e sim que elas contêm histórias de outras tantas Marias que não
tiveram a oportunidade de poder narrar sua própria história, ou por falta de espaço
ou por que a violência acabou por lhes retirar a vida. A esperança surge ao lermos as
histórias aqui narradas por Marias que quase perderam a vida e que hoje podem não só
narrar esses acontecimentos, mas também afirmar que vivem uma vida sem violência.
Aproveito para agradecer a colaboração das alunas do 7.º curso Maria, Marias na
construção do livro e a generosidade de compartilhar suas histórias e as histórias de
outras Marias que cruzaram os seus caminhos.
Boa leitura.
Tatiana Santos Perrone
Lá vai Maria,
acorda bem cedo todos os dias e lembra-se de tudo como se fosse o
primeiro dia. Faz tudo com a mesma alegria, tudo limpo, tudo bem
feito, todos os dias. Todos que conhecem Maria sabem como ela é
admirada: uma boa mãe e excelente esposa – comentam – faz tudo e
não reclama de nada, sempre pensa em tudo para nada faltar.
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Lá vai Maria, levar suas filhas para escola, cumprimenta Ana e
Claudinha, que da janela a admiram, com um sorriso largo confirma
às vizinhas sua alegria. Mãos fortes seguram suas crias, com a
esperança que tenham um belo dia. Maria faz tudo sempre para que
elas vivam o que não viveu, sejam felizes e tenham uma história
diferente.
Cheirinho bom, almoço pronto, prato predileto na mesa. Maria já
está no tanque, roupas perfumadas estendidas no varal e um cesto
cheio de roupas para passar. Com rodo na mão, brilha o chão, nem
sente a correria de tantas tarefas, faz tudo sem sentir, sem esquecer
dos detalhes. Chinelos no pé do sofá, pensamento no jantar, aguarda
o tempo passar para buscar suas filhas no portão. Maria vive para
agradar.
De volta da escola, o banho, o jantar, a lição, direto para a cama sem
reclamar. Maria ansiosa aguarda, nem vê o tempo passar, espera
convicta de que nada faltou, nada pode faltar. A porta bate, o coração
acelera, chegou o “Seu João”, homem respeitado e bem quisto
por todos, exemplo de cidadão. O provedor, o dono de tudo, João.
Homem forte, bem vivido, chega do trabalho, encontra na poltrona
seu chinelo, lembra de tudo como se fosse o primeiro dia, senta-se
confortável, mas não lhe dá nenhum sorriso, parece não ver Maria,
logo liga a televisão e aguarda o jantar.
Lá vai Maria, tremendo sem disfarçar, faz tudo sem erro, sem uma
palavra sequer, sem qualquer sorriso ou agrado. Já está acostumada
com a ausência de João, mesmo quando ele está presente, tantos
anos desta mesma maneira, ela não reclama mais, não lembra se um
dia reclamou. Após o jantar, lava a louça correndo, o martírio já vai
começar, umas doses a mais faz João falar e ele não para de falar.
O forte João trabalhou o dia inteiro, se vê no direito de falar, sem
importar com o que Maria sente, seguem as palavras, perdem-se entre
os palavrões, baixaria, todo dia. A lágrima tímida de Maria escorre
pelo seu rosto, ouve tudo em silêncio como no primeiro dia.
As palavras prosseguem perdidas e fora de ordem, mas são sempre
as mesmas todo dia: fala dos seus cabelos, dos seus seios e da feiura
do seu sorrido, fala do seu cheiro, fala que nada vale e que ninguém
a vê, que nada sabe, fala do seu vestido e também do seu nariz. Sorri
e continua sorrindo, sussurra baixarias enquanto Maria reza baixinho
para que o dia acabe, para que o sonho de suas filhas seja lindo e
profundo. Quando se deita, continua ouvindo tudo que João diz, todos
os dias, e no fundo acredita em tudo, a tanto tempo ouve tudo isso,
aguarda que o cansaço o faça adormecer.
Descanso, é o que Maria precisa, sabe que lhe espera um novo dia
com muito para fazer, os olhos se fecham, mesmo com o coração
dolorido. Todas as noites ela encontra seu travesseiro, como seu único
amigo e companheiro, desabafa sem fazer nenhum barulhinho, as
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lagrimas dizem tudo o que não pode dizer. Tantos anos ouvindo tudo
aquilo, quanto tempo não recebe carinho, acha que já esqueceu seu
sorriso e quem realmente é.
Lá vai Maria para um novo dia, João sai respeitoso para o trabalho,
dá um beijo nas filhas, bate a porta e sai, Maria ele não vê. Prepara
o café como todo dia, recebe o abraço de sua filha Lia, dizendo o
quanto lhe quer bem. Uma lágrima escorre e logo é escondida, abraça
Lia e lhe retribui o carinho, abraça também a Julia, mesmo com os
braços adormecidos. Apaga suas mágoas com aqueles abraços de
braços curtos que a envolve, no rosto renasce o sorriso.
Lá vai Maria, fazendo o que faz todo dia, já não sente o mal que
vive todas as noites para proteger e manter unida sua família. Sorri
novamente para Ana e para Claudinha lhe diz “Bom dia”, que
admiram mais uma vez seu caminhar. Maria acha que a vida é mesmo
assim, que nasceu com uma sina e nada pode fazer, não escolheu,
foi escolhida, nunca amou, apenas viveu o que a vida lhe preparou,
assim vive desde o primeiro dia. Maria não sabe que pode mudar tudo
o que vive, que não precisa ouvir tudo o que ouve, que é violência o
que sofre e que tudo pode mudar. Suas filhas, seu bem mais precioso,
ainda não entendem, talvez um dia sintam o que a mãe sente sem
reclamar.
Eu sou Maria.
A minha infância e
começo da vida adulta eu passei em uma cidade do nordeste brasileiro. Após a
morte de minha mãe, eu e minhas três irmãs fomos morar com o meu pai e sua
esposa.
Meu pai era de família militar e nós sentimos na pele toda a sua rigidez e violência.
Apanhávamos muito e por qualquer motivo. Aos 16 anos apanhei novamente, mas
dessa vez foi para defender a minha irmã doente que havia desobedecido a ordem
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de minha madrasta de não ir a um passeio da escola. Minha irmã
tinha cateteres pelo corpo e eu temi pelo que pudesse acontecer com
ela e pela primeira vez enfrentei o meu pai. Nesse dia passei a minha
primeira noite na rua.
Quando voltei recebi uma sentença: “Ou eu ou ela!”. O meu pai
escolheu a esposa e eu tive que morar na rua. A rua, um lugar sombrio
e inseguro, como dormir ali? Fui para a rodoviária, fiz uma amiga e
nós nos revezávamos para poder descansar. Sem comida, sem roupa,
sem cama. Nunca roubei, nunca usei drogas. Minhas irmãs passavam
por mim e fingiam não me conhecer. Promessas de ajuda apenas de
desconhecidos, mas como confiar? Onde eles queriam nos levar?
Um dia apareceu um casal e nos ofereceu ajuda e resolvemos tentar
a sorte. Foi nesse dia que conheci o cárcere privado. Trabalhamos
costurando saco de pão e vivíamos cobertas de farinha branca. Para
comer apenas pão duro e feijão preto. Consegui fugir e resgatei a
minha amiga com a ajuda de conhecidos do meu pai. Fomos para as
ruas novamente.
Tomávamos água para nos alimentar. Fome, sono, frio, fraqueza. Não
queria passar o meu segundo Natal na rua. Bati em uma porta e recebi
uma ajuda verdadeira. Fui acolhida e passei a ter um teto novamente.
No radio escutei sobre uma seleção. Joana me emprestou uma roupa
e sapatos e eu fui atrás de um sonho. Dois dias depois ligaram para
avisar que eu havia sido selecionada. Nem acreditava que aquilo
estava acontecendo comigo. Trabalhei muito, viajei e logo consegui o
meu próprio canto.
Na minha casa acolhi todos os que me pediram ajuda, inclusive uma
de minhas irmãs. Era uma mulher independente e aos 21 anos conheci
o que era paixão. Apaixonei-me à primeira vista e noivamos para a
alegria de nossas famílias. Não pudemos nos casar no papel, pois João
era menor de idade. Fomos morar juntos.
Um dia escutei uma conversa proibida entre João e sua mãe. O
homem por quem me apaixonei mudou completamente. Eu já estava
grávida de nosso primeiro filho quando comecei a apanhar. Ele
me espancava, humilhava e inventava histórias. Tive que largar o
emprego. Vivia trancada em casa e nem na janela eu podia ir. A
minha alegria morreu, eu morri por dentro.
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Nasceu o meu primeiro filho e no resguardo aconteceu o pior: eu fui
violentamente estuprada pelo meu marido. Ele me amarrou com as
cordas do varal, rasgou a minha roupa. Eu ainda tinha pontos não
cicatrizados do parto. Corri, gritei por socorro. Percebendo que outras
pessoas iriam aparecer ele me desamarrou e me ameaçou caso eu
contasse alguma coisa. Bateram na minha porta, entraram no meu
quarto e eu sem poder levantar porque sangrava, só repetia que tinha
sido uma briga normal de casal sem conseguir olhar ninguém nos
olhos.
Queria morrer, pois já estava morta por dentro. Pedi para ele cravar
a faca que segurava em meu peito. Ele não teve coragem e resolveu
fugir para São Paulo e me largou sozinha com o nosso filho.
Comecei a passar mal e fui a vários médicos e ninguém descobria o
que eu tinha. Falavam que era um mioma. Seis meses após o estupro
recebi uma notícia inesperada: eu estava grávida! Eu ia ter um filho
fruto de um estupro. Após um parto difícil e extremamente dolorido
nasceu a minha segunda filha. Não olhei para ela. Não conseguia
olhar para ela. Não dei de mamar, não consegui cuidar. Deixei-a com
minha família e vim apenas com o menino tentar sozinha a vida em
São Paulo.
Cheguei sem nenhum cruzeiro no bolso. Comecei a trabalhar de
doméstica e a reconstruir a minha vida. Depois de dois anos a minha
filha veio morar comigo. Ela não me conhecia e fugiu de medo. Eu
também não a conhecia e não a amava. Estamos juntas até hoje e não
foi nada fácil, não é fácil. Hoje posso dizer que gosto dela, mas não a
amo. Não desejo que ninguém passe pelo o que eu passei.
Em São Paulo reconstruí a minha vida e tive mais três filhos. Casei
novamente e estou casada há 20 anos. Voltei a estudar e estou
concluindo a faculdade em Serviço Social. Voltei a ser uma pessoa
alegre e hoje posso dizer que vivo uma vida sem violência.
Eu sou mais
uma das tantas
Marias existentes
no Brasil...
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Pretendo aqui relatar minha história de vida, resumidamente, até
os dias atuais e creio que com ela impulsionar muitas Marias a se
libertarem da violência e de toda ditadura social que nos é imposta
desde o ventre materno.
Tive uma criação muito severa. Sou a filha caçula de uma família
numerosa, sou a 11.ª, e nem por isso fui poupada das agruras de uma
criação bastante machista, onde ouvia minha mãe dizer várias vezes
para nós, filhas mulheres, que as outras mães deveriam segurar suas
éguas, porque os cavalos dela, que no caso são meus cinco irmãos
homens, estavam soltos. E com esse pensamento cruel fui educada,
ouvindo que só namoraria um homem e esse seria para sempre o meu
marido, pai dos meus filhos e meu total provedor. Assim fui criada
dentro de uma Igreja Evangélica, e sabendo que somente a morte
poderia pôr fim a meu futuro matrimônio.
Casei aos 18 anos e de acordo com os dogmas da minha educação:
virgem, inocente e com o meu primeiro e único namorado. Ele não
era como eu, virgem e pudico, pois vinha de uma família menos
rígida e foi para aquela denominação religiosa quando já era maior
de idade. Sendo assim, casados e cada vez mais fincados dentro da
religião, tive meus três filhos. A cada gestação e filho nascido, meu
marido se tornava mais agressivo comigo e com os filhos, cheio de
estupidez e impaciência. Dentro de casa um algoz, na rua com os
estranhos ele era um cavalheiro.
Aos poucos ele foi se distanciando da família, tornou-se
extremamente amargo, agressivo, mas sempre passava a imagem
de um homem exemplar, que morava em uma casa maravilhosa,
confortável, com carro importado, filhos em escola particular, ótimo
plano de saúde, empregada doméstica e toda a família praticava
diversas atividades físicas na melhor academia da região. Minha
família adorava hospedar-se na minha casa quando iam passear no
interior, porque desfrutavam de muito conforto e alimentação com
muita fartura. Financeiramente não faltava nada para nós. Depois de oito anos de casada, o meu marido já era cooperador da
igreja que frequentávamos há alguns anos, porém a nossa convivência
em casa era péssima, pois eu era vítima de suas maldades, sofrendo
todo tipo de violência: sexual, física, psicológica, moral etc. Os
nossos filhos viviam com medo do que poderia nos acontecer. Ele
também começou a agredi-los, até mesmo com armas brancas,
pois eles não concordavam com seu machismo e autoritarismo
desenfreado.
Nesse ínterim, me vi com 21 anos de casada e 39 anos de idade.
Sempre carreguei sozinha o peso da responsabilidade de criar e educar
os nossos filhos, e sendo maltratada devido ao ciúme doentio que ele
tinha, inclusive dos próprios filhos, de meus parentes e de minha mãe
e meus irmãos. Muitas vezes quis me enclausurar dizendo que era
para me proteger de pessoas más. Percebi que não queria mais aquela
vida e resolvi pedir a separação, o comuniquei e ele retrucou dizendo
que iria me matar. Como insisti na separação, ele disse que iria matar
um dos filhos para que eu sentisse a dor que ele sentia quando eu
falava em separação. Por um ano dormimos em quartos separados,
mesmo que por vezes ele quisesse arrombar a porta do quarto onde eu
estava. Os nossos filhos, na época adolescentes, interviam para que eu
não sofresse um estupro.
29
Pedi ajuda a minha família que morava na capital de São Paulo, e no
dia 26 de julho de 2006, meu irmão foi me buscar com meus filhos.
Eu estava com 40 anos e meus filhos tinham 17, 16 e 7 anos. Era
um domingo e ele tinha reunião no ministério em Araraquara e só
voltaria às 17h. Meu irmão me buscou às 12h30. Fomos morar na
zona leste de São Paulo em uma edícula minúscula, sem nenhum
conforto, dormindo no chão, e sem condições básicas necessárias para
sobrevivência. Lá residimos durante seis meses. Comecei a trabalhar
fazendo faxina, passando roupas e cuidando de crianças pequenas.
Logo depois que cheguei a São Paulo, procurei a Defensoria Pública
e fui orientada a não entrar na justiça requerendo meus direitos e
dos filhos. A advogada disse que por ser ele um homem violento
poderia nos localizar e cumprir a promessa de nos matar. Decidi
arquivar o processo. Também fomos encaminhados para passar
por um psicólogo. Ao todo foram três sessões em dias alternados e
previamente agendados pelo Poder Público. O psicólogo, que tinha
por sobrenome Querido, após as três sessões me parabenizou por ter
conseguido criar os meus filhos em meio a toda violência sofrida sem
deixá-los “traumatizados” e afirmou que a separação não os deixaria
com sequelas e que era um caso muito diferente do que ele estava
acostumado a atender. Desejou-me boa sorte, e eu lhe disse que estava
no ponto zero negativo de minha escala da vida. Ele respondeu que eu
era privilegiada por ter filhos ótimos, os quais eu soube criar, e que
eu era uma mulher forte que apenas estava partindo do zero, porque
o negativo é quando precisa de acompanhamento psicológico por
anos ou para sempre, devido ao grande sofrimento psicológico. Ele
disse que o meu caso era bem mais fácil de resolver, era só trabalhar
e continuar todos estudando que daríamos a volta por cima dentro
de pouco tempo. Conversei com a Assistente Social da Defensoria,
Dona Alice, a mesma que nos encaminhou ao psicólogo, e pedi que
me enviasse para um abrigo junto com meus filhos. Ela disse que não
poderia fazer isso, fiquei triste, porque tinha muito medo de que ele
nos localizasse, embora ele não gostasse da minha família e não os
visitasse. Por precaução, acabei trazendo comigo todas as agendas
com endereços e números telefônicos, de maneira que ele só pudesse
ir até a casa da minha mãe, que era na mesma cidade. Não forneci o
meu endereço para a minha mãe, apenas ligava uma vez por semana
do orelhão para dar notícias e saber como ela estava. Segui em frente. Passado cerca de dois meses, consegui uma vaga
como entrevistadora na empresa Ipsos Brasil, e posteriormente no
Ibope. Trabalhei por cinco anos como autônoma, todos os dias,
inclusive sábados, domingos e feriados, para que pudéssemos ter uma
vida digna.
Dois anos depois, em 2008, descobri que após nossa “fuga”, ele teve
coragem de fazer mais uma violência contra mim, a patrimonial.
Eu tinha talões de cheque e cartões de crédito em meu no nome,
mas quem sempre administrou tudo foi ele, que inclusive assinava
os cheques. Para se vingar, ele passou cheques e estourou todos os
limites dos cartões de crédito deixando-me com uma dívida de 30
mil reais. Quando fugi, decidi não levar nada comigo, para que ele
não tivesse como me localizar. Acabei descobrindo a dívida após o
meu filho, que trabalhava em uma imobiliária, fazer uma pesquisa
para saber como estava o meu nome. Tínhamos essa preocupação por
conhecer a natureza perversa dele. Já na época da separação, todos
os créditos que haviam sido feitos em meu nome para comprar
pertences para ele, não haviam sido pagos. Eu fui pagando as lojas
aos poucos até quitar tudo e ficar em paz. Por isso pensamos que se
ele não pagou o que estava usando, o que será que ele tinha feito com
os talões de cheque e cartões de crédito que estavam em meu nome e
em poder dele? Desesperei-me na época, chorei muito, pois tive uma
educação severa demais quanto à dignidade de pagar o que se deve e
preservar o nome. Entrei em contato com o Banco do Brasil, informei
que na data dos cheques e uso dos cartões já estava separada e que
não tinha feito nenhum daqueles gastos absurdos, que não estava em
Barretos e região e já morava em São Paulo. Eles disseram que por
não estar separada legalmente e não haver comunicado à instituição
financeira, tenho que arcar com a dívida, dívida que hoje eu não
31
tenho nenhuma possibilidade de quitar. O que fazer? A vida continua
e para dizer a verdade, eu deixei isso de lado para não sofrer e fui
tocar minha vida da melhor maneira possível, ou seja, trabalhando
muito para manter minha dignidade e a dos meus filhos.
Nesse mesmo ano, comecei a cursar faculdade de Serviço Social.
Trabalhava ininterruptamente para pagar a faculdade e o aluguel
da kit net onde morávamos. No segundo ano do curso, entrou uma
tutora nova e tive a impressão de conhecê-la, mas não lembrava de
onde. Um dia ela pediu para que eu chegasse mais cedo no curso
e a procurasse na sala dos professores. Na segunda-feira seguinte
cheguei uma hora antes da aula e ela já me aguardava e fomos para
uma sala reservada. E, então, qual não foi minha surpresa, ela me
disse que há uns três anos ela tinha atendido uma mulher muito
educada, fina, e que parecia muito frágil, delicada e falava muito
baixo, com seus três filhinhos muito bem educados e que tinha fugido
do marido violento, de uma cidadezinha do interior de São Paulo,
e que fisicamente eu lembrava muito aquela mulher. Ela disse que
esse caso havia mexido muito com ela, porque vir para uma selva de
pedras como São Paulo com três menores, pareceu muito perigoso,
então ela tinha o desejo de saber o que havia acontecido com aquela
família, já que a mulher nunca mais havia voltado à Defensoria,
como é de costume, e simplesmente havia desaparecido. Imaginem
qual não foi a minha surpresa ao descobrir que minha nova tutora da
faculdade era a Dona Alice, Assistente Social da Defensoria. Chorei
muito e disse para ela que era eu sim, e que a atitude dela havia me
levado a ter certeza em cursar Serviço Social, porque queria entender
por qual motivo ela não encaminhou a mim e a meus filhos para um
abrigo, vendo a situação, que estávamos na casa de parentes. Ela
me abraçou e choramos juntas. Um choro de alegria e de vitória.
Vitória por estar ali estudando e vencendo, e alegria por saber que
consegui marcar a vida daquela mulher, e dela por saber que eu e
meus filhos estávamos muito bem, todos estudando e trabalhando,
exceto a caçula que só estudava. E nessa segunda-feira pude ouvir a
sua justificativa por haver nos negado o abrigo público. Alice disse
que ao ouvir minha história e de meus filhinhos, viu que éramos uma
família muito diferente do que estava acostumada a atender e que
meus filhos eram muito puros e educados, falavam baixo e tinham
bons modos e que eu era uma mulher muito educada e que os abrigos
não condiziam com o nosso perfil familiar. Ela analisou e achou
melhor me deixar morando de favor e disse que o ambiente é muito
pesado e pensou que poderíamos sofrer muito, pois nosso contexto de
vida era muito diferente. Disse também que viu um brilho nos meus
olhos naquele dia, embaixo de toda aquela fragilidade e pensou: Essa
mulher vai vencer! Depois desse ano, ela saiu da faculdade e parece
que foi morar na Europa. Porém, antes de sua mudança em uma
conversa informal, afirmou que agora eu havia me tornado uma outra
mulher, muito segura e me parabenizou pelas conquistas alcançadas.
Em 2010, após três anos de separação, divorciei-me. Para não ter que
reencontrá-lo, assinei uma procuração abrindo mão de todos os meus
direitos, pois, sinceramente, espero nunca mais vê-lo e muito menos
ouvi-lo!
Em 2010, também mudamos da kit net para um edifício localizado
na mesma rua, mas que tinha um apartamento bem pequeno, só que
com o dobro do tamanho. Ele tinha quarto, sala, um corredor que
chamamos de cozinha e um banheiro. Estávamos super felizes em
ter mais espaço, mas quando íamos fazer três anos nesse local, a
proprietária resolveu vender e me pediu uma proposta, pois gostava
muito de mim e conhecia minha história de vida. Fiz uma oração
muito sincera a DEUS e disse que não aguentava mais mudar, não
tinha um fiador e estava muito cansada da labuta diária, para que ELE
tivesse misericórdia de mim e dos meus filhos. Passado um mês, a
proprietária foi até o meu lar, com o seu filho caçula, e perguntou
qual era minha proposta, já que o advogado dela havia feito uma
33
oferta para comprar à vista. Meu filho tinha feito uma avaliação
na imobiliária em que trabalhava e disseram que se ela pedisse
160 mil reais, que era para comprarmos correndo, porque o imóvel
está localizado no centro de São Paulo. Resolvi perguntar quanto o
advogado tinha oferecido e ela respondeu 35 mil reais, mas que para
mim ela daria um desconto. Fiquei surpresa com o preço e então eu
lhe disse que em cinco anos em São Paulo, da maneira que cheguei
e trabalhando como uma desvairada, eu havia conseguido juntar
apenas 12 mil reais e que poderia dar de entrada no apartamento e
pagar o restante como um aluguel. Ela parou, pensou por um tempo
e perguntou ao filho o que ele achava, e ele disse: “Você é quem
sabe. O que fizer está feito!” Então ela concordou e dois dias depois,
uma segunda-feira, fiz a transferência do valor para conta dela, e
na terça-feira fomos ao Cartório passar o contrato de venda para o
nome do meu filho. Conseguimos quitar o apartamento em dois anos,
trabalhando eu e os meus filhos em dois empregos, sem ter sábado,
domingo e feriados. Eu agradeço a DEUS, que creio que tocou no
coração dessa senhora e me proporcionou esse grande bem que é
poder ter o meu próprio imóvel comprado e pago com o meu próprio
suor e ajuda dos meus filhos.
Além da alegria da casa própria, também consegui concluir a
faculdade sem nunca ter deixado de pagar uma mensalidade, sem ficar
de exame ou DP. Sempre tive uma preocupação grande em como eu
iria atuar dentro da minha área de formação. Trabalhava arduamente
como autônoma, mas sabia que eu não tinha nenhuma chance dentro
do mercado de trabalho. Fiz meu estagio voluntário e depois de
encerrado, sempre que eu podia, eu ia à instituição fazer voluntariado.
Nesse meio tempo, a Assistente Social ficou doente e se afastou. Eu,
já sendo formada, fui convidada a trabalhar lá. Foi algo totalmente
inesperado, e eu não credito tudo isso apenas a sorte, mas creio que
DEUS cuida de mim.
Ainda quero deixar claro que devido a minha condição financeira ter
ficado muito precária, praticamente toda minha família se afastou
de mim. Diziam que eu deveria parar de besteira e voltar com
meu ex-marido, que eu era muito orgulhosa e que estava passando
dificuldades porque queria. Diziam que ele me amava muito e
que eu devia estar louca por deixar minha vida no interior para vir
para São Paulo com três filhos menores e dependentes. Tudo isso
porque eu sempre enviei dinheiro quando eles estavam em dificuldade
financeira, procurava ajudar escondido. Quando essa fonte secou, eles
se afastaram de mim, pois não queriam ter obrigação de solidarizar-se
comigo. O afastamento aumentou muito quando meu filho do meio,
na época com 16 anos, assumiu ser homoafetivo. Essa foi a gota
d’água que faltava para chegarmos quase a exclusão total familiar,
mas tudo isso só nos fez ficar mais fortes e unidos.
Hoje, meu filho mais velho de 26 anos mora em Balneário
Camboriú, faz faculdade de Logística e trabalha dentro da sua área.
O segundo está com 24 anos, terminou a faculdade de Geografia e
é professor efetivo com acúmulo de cargo na rede pública estadual,
sendo que no último concurso passou em primeiro lugar da nossa
região em Geografia. A minha caçula está com 17 anos, terminou
o ensino médio e vai começar a cursar Odontologia. Com a ajuda
de todos, a minha e a dos seus irmãos, e eu creio a de DEUS, ela
vai conseguir concluir esse curso, que é seu sonho desde a primeira
infância.
Em 2014, eu consegui obter minha carteira de habilitação. Por muitos
anos ouvi de meu ex-marido que eu não tinha competência para tirar
minha habilitação, mas, ao realizar os testes fui aprovada de primeira
em todas as etapas.
35
Tudo o que eu passei com o meu ex-marido não tinha ainda sido
nomeado por mim até o ano de 2012, época em que fiz o curso de
Promotoras Legais Populares (PLPs). Nesse ano me vi descobrindo
o quanto fui uma mulher em situação de violência doméstica desde
o nascimento. Foi difícil me desfazer de todos os preceitos e amarras
deterministas e machistas sobre a figura feminina na sociedade, e que
eram predominantes em minha vida e me mantinham acorrentada e
submissa a toda sorte de maus tratos por serem tão naturalizados e
disseminados. Diante disso, fui me empoderando de mim mesma e de
todos os direitos que me foram negados durante a minha existência.
Assim, o curso de PLPs contribuiu para que eu conseguisse trilhar um
novo caminho, onde eu me sinto Mulher e dona do meu destino. E
hoje, após o curso Maria, Marias, posso dizer que saio de mais essa
jornada da minha vida com muito mais conhecimento e sabedoria para
lidar com a violência doméstica e poder, com sabedoria, ajudar toda
mulher vítima de violência, e dessa maneira jamais permitir nenhum
tipo de violência contra mim ou contra mulheres que estejam dentro
do meu contexto social, ou que venham a cruzar o meu caminho.
Sinto-me fortalecida para continuar a batalha no enfrentamento da
violência contra mulheres e todas as minorias.
Quero aqui agradecer do fundo do meu coração a paciência e carinho
que sempre recebi de minhas lindas e queridas amigas do curso, da
nossa Coordenadora e muito amada Tatiana e de todas as mulheres
maravilhosas que passaram pelo IBCCRIM para nos dar aulas, e que
me fizeram entender melhor sobre os nossos direitos e como exigi-los
dentro de nossa sociedade capitalista, machista e patriarcal.
Essa é a minha biografia até o presente momento. Gostaria de
agradecer ao IBCCRIM por disponibilizar esse espaço que se tornou
um local de combate e enfrentamento de todo o tipo de violência às
quais as mulheres são submetidas em nossa sociedade. Sou mais uma Maria
perdida nesta grande
metrópole, nessa selva de
pedra...
37
Tudo começou aos 16 anos de idade quando eu conheci o único
homem da minha vida, meu marido José João. Nós nos conhecemos
em Alagoas, onde morávamos. Foi amor à primeira vista. Nós nos
casamos e logo veio o alerta: “Aqui não temos como sobreviver!”
Meu sogro era agricultor e cedeu uma porção de terra para plantio
de nosso sustento, mas meu marido, acostumado já com a vida na
cidade, não conseguiu se adaptar. Resolvemos ir para São Paulo
onde tínhamos avós, tios e irmãos. Chegamos no dia 8 de abril de
1966 somente com uma mala e o primeiro filho na minha barriga. No
mesmo ano, no dia 4 de setembro, nasceu o meu primeiro filho e logo
conheci o outro lado do meu marido: violência, decepções e brigas
por ciúmes.
A minha história é de muito sofrimento e não vou relatar tudo o que
aconteceu na minha vida. Gostaria de falar apenas que foram anos de
sofrimento físico e psicológico e que o meu marido tentou me matar
várias vezes.
No decorrer do tempo e de muito trabalho chegamos a adquirir uma
quantidade de bens para levar uma vida confortável, porém falsos
amigos o fizeram perder quase tudo, ficando apenas com um terreno
com uma casa em ruínas. Foi nessa fase que ele me pediu perdão e eu
fiquei ao lado dele, e novamente lutamos e conseguimos construir a
casa dos nossos sonhos e um carro do ano. Nesse mesmo ano ele teve
um infarto fulminante.
39
O que tenho a dizer a vocês é que eu tive que ter muita sabedoria
para conseguir viver com esse homem violento. O meu modelo de
educação não me fez ver outra opção a não ser aguentar até o fim.
Não acho certo, nos dias de hoje, uma mulher, mesmo que tenha
quatro filhos, ser obrigada a sofrer calada para não destruir um
casamento ou por medo de ficar sozinha e perder o rumo da educação
dos filhos. Vi o filho de algumas mulheres que se separaram irem para
a criminalidade e era disso que eu tinha medo. Acreditava que para
os meus filhos era bom com ele e pior sem ele. Meus filhos nunca me
decepcionaram em nenhum aspecto, pois o que aprendi com a minha
mãe foi suficiente para dar uma boa formação, principalmente moral.
Meus quatro filhos são a razão da minha vida.
Hoje eu vivo sem me preocupar com o amanhã. Lembro-me de minha
infância, com seus momentos tristes e alegres. E penso em quantas
vezes Deus me deu livramento até de morte por parte do meu marido.
Tento reciclar aquilo que me fez sofrer e transformar o sofrimento
na força para ir em frente nesse caminho de ajudar outras mulheres a
evitar passar pelo o que eu passei.
Para concluir vou citar uma frase:
“A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso,
cante, chore, dance, ria e viva intensamente antes que a cortina se
feche e a peça termine sem aplausos” (Charles Chaplin)
41
No dia 09 de janeiro
de 1982, aos 20 anos
de idade me casei com
José,
a princípio um rapaz trabalhador e dedicado à família e a tudo o
que fazia. Porém, já no início de namoro José se apresentava muito
ciumento e eu não gostava daquele controle que tinha comigo, mas
pensava que talvez fosse por ele ser quase oito anos mais velho do
que eu.
Passaram os anos e José continuou com muito ciúme e não deixava
que eu trabalhasse fora, pois dizia que me dava de tudo e que gostaria
de me encontrar em casa quando ele chegasse do trabalho.
Depois de dois anos de casados tivemos o nosso primeiro filho, um
menino lindo, pesando quase quatro quilos. Com a chegada do nosso
filho ficaria muito mais difícil minha recolocação no mercado de
trabalho. Sem a minha mãe por perto, quem poderia me ajudar? José
começou a nos deixar em casa nos finais de semanas e sair com os
amigos para o jogo de futebol. Voltava para casa cheirando a bebida
e a cigarro. Ele tinha o vício do jogo e muitas vezes saía no sábado à
noite e só chegava domingo pela manhã. Eu e meu filhinho ficávamos
sozinhos à noite.
Quando eu questionava por que ele ficava à noite jogando, José
respondia que isso é coisa de homem e que lugar de mulher é em
casa cuidando dos filhos. Essa situação me entristecia muito, pois eu
sonhava em trabalhar, estudar e construir uma família sempre junto
com meu esposo.
Os anos passaram e tivemos uma menina. Agora eu pensava que o
meu sonho de me tornar uma mulher independente estava cada vez
mais distante. José não me ajudava com as crianças. As crianças
estavam crescendo, precisavam de mim e em breve já iriam para a
escola e a minha situação se tornaria muito mais complexa.
A ausência de José nos finais de semana foi me deixando uma pessoa
triste e melancólica, a ponto de passar a noite chorando. Eu via que
não tinha um marido para me acompanhar em algum lugar, sair
comigo e com as crianças. Não tinha o marido que sonhara. Tudo que
eu fazia era somente na companhia dos meus filhos.
Sofri anos de angústia com seu desprezo e sem saber nem mesmo
onde ele passava a noite jogando. Pensava em me separar de José.
Mas como me separar? Para onde iria com as crianças? Assim,
fiquei muitos anos suportando tudo calada, pois não tinha ninguém
com quem eu pudesse contar para ajudar a olhar as crianças para eu
trabalhar e dar um basta naquela situação.
43
Um dia conheci Maria, uma mãe que levava a filha na mesma
escola que eu levava os meus e fizemos amizade. Maria disse que
vendia roupas no nosso bairro, que ela ia até o cliente oferecer sua
mercadoria. Ela me convidou para revender suas roupas, e falou que
pelas vendas que eu fazia receberia uma comissão. Fiquei feliz, pois
agora eu podia cuidar da casa, das crianças e ganhar o meu dinheiro.
Quando José chegou eu contei a novidade. José ficou muito bravo e
disse que eu queria sair de casa para encontrar outro homem e que
mulher não precisa sair de casa, lugar de mulher é dentro de casa e
que eu tratasse de esquecer essa história. Comecei a chorar e minha
vontade era de acabar com a minha própria vida. Eu não via saída ao
lado de José, uma pessoa ciumenta, ignorante e que só me puxava
para baixo.
Os meninos já estavam grandinhos, eu os levava à escola e, depois,
mesmo contrariando José, ia para um trabalho de meio período. À
tarde saía do meu trabalho, pegava as crianças na escola, ia para
casa e os ajudava a fazer as lições de casa. Comecei a me interessar
em voltar à sala de aula. Terminei o ensino médio e depois entrei na
faculdade, onde me formei em Serviço Social. Hoje sou uma mulher
independente e livre das ameaças que sofri por anos em minha vida.
Meu filho é advogado e minha filha farmacêutica bioquímica.
Maria corajosa
45
Não tem igual, na cidade de Pororó não há mulher mais corajosa que
Maria, todos a conhecem por sua valentia e força, herança de família,
Maria é filha mais velha de João Valentão da Silva Sansão. Cresceu
em uma família grande de muitos irmãos e irmãs, quase sempre se
confundia quando a meninada saía pelas ruas com bichos-de-pé e
pé no chão, todos filhos de Maria da Conceição. Na terra seca, terra
de poucas oportunidades, viu todos seguirem o mesmo destino, tudo
muito parecido e sem qualquer instrução, conheciam apenas o peso da
enxada para garantir o pão de cada dia, escola era apenas um sonho,
era um sonho ter um lápis e caderno na mão.
Mesmo assim Maria cresceu a mais corajosa entre todos os seus
irmãos, ia para a roça, carpia todo o mato, plantava e colhia, não tinha
preguiça e cedo madrugava na plantação, corria atrás dos “bichos”
e sempre os vencia. No fim de sua meninice, seu pai chamou-lhe a
atenção: “Moça tem que se casar, tem que ser mulher de verdade, já
espichou e eu não quero mais uma boca para sustentar” e deu a Maria
para seu melhor amigo José Bandeira, homem de idade avançada, o
dono da plantação. Maria não queria sair de casa e se afastar da sua
mãe e de seus irmãos, não teve escolha e sem qualquer cerimônia
se tornou mais uma posse, mudou-se para a casa do amigo de seu
pai João. Com uma trouxa de pano na cabeça, chegou em um lugar
afastado e escuro, sujo e desleixado como José, e com os olhos cheios
de lágrimas perdeu sua pureza, com toda dor, sem qualquer pudor ou
respeito, sem qualquer amor, tornou-se mulher.
Maria corajosa se perdeu em seus desalentos, sofria todos os dias
por estar em um cativeiro e não ter mais esperança, ela deixou de
lidar com a terra e com a plantação, seu trabalho era na cozinha e no
fogão, entre as panelas, entre os esfregões, entre a tristeza de receber
“carinhos” de quem nada sentia, servia-lhe apenas de diversão.
Amigo José quando bebia, intensificada a ousadia, e forçava Maria
a fazer tudo o que não queria e nem imaginava viver. Após todo o
abuso ocorrido, batia-lhe repetidamente a face, e descartava Maria
desprezando-a, como se tivesse apenas esta serventia: dar-lhe prazer.
47
Assim Maria viveu por anos, gerou dois filhos, que frequentemente
viam seu pai José agarrando sua mãe aos berros, enquanto Maria aos
prantos tentava esconder.
José bebia, e bebia mais e mais, já não trabalhava, pois não aguentava
mais viver em uma terra que nada se colhia, um lugar onde morria o
gado, e nada crescia por causa do forte sol, sempre lhes faltavam água
e muitas vezes o alimento do dia. Desesperado José bebia, e bebia
mais e mais, e ao beber se vingava da vida quebrando tudo o que
via pela frente, a casa já não tinha móveis inteiros, um só copo para
revezar entre os irmãos, tudo ele quebrava, e cada vez mais perdia.
Não ligava mais para Maria, nem para seus filhos, e se estivessem
em casa na hora da euforia, jogavam-lhes os pedaços da mobília
que estavam espalhados no chão. Seus filhos choravam e Maria
não aguentava mais, ameaçou deixar-lhe, contudo ameaças ouvia:
“Se fizeres isto mulher, te quebrarei todinha”. Maria, com medo,
aguentava mais esse sofrimento, essa frustração.
Certo dia, Maria já cansada de tudo o que vivia, lembrou-se de sua
ousadia e coragem, das lutas e desafios que enfrentava na roça,
lembrou-se da mulher forte e incansável que nada temia e resolveu
sua vida mudar. Conseguiu grandes sacos de pano e os colocou no
fundo do terreno, pertinho da cerca, escondido entre as pedras, cada
dia Maria levava uma peça: uma peça de roupa dos meninos, outro
dia era um chinelo e um chapéu, mais um pouco de roupa e um
travesseiro, enchia copo a copo uma garrafa com água limpa e um
pouco de pão, e José nada percebeu. Preparou seus filhos pela manhã
e, de repente, assim que o José saiu para o bar, Maria segurou nos
braços das crias e em um só passo de pressa, com o saco de pano nas
costas, deu adeus ao passado e a tudo que nunca deveria ter vivido
e fugiu do sertão. Sem dinheiro e com pouca comida, na estrada
revestiu-se de força e seguiu sem rumo para qualquer direção, pegou
uma carona para qualquer destino, e esse destino a levou para a
capital.
Maria corajosa, a mulher de fibra e coragem, batalhadora e
trabalhadora, filha de João Valentão da Silva Sansão mudou o seu
caminho com uma decisão, diferente dos seus irmãos, foi morar na
cidade grande, conseguiu ajuda para recomeçar sua vida com muito
esforço, pois nunca teve medo de trabalhar. Maria alimentou seus
filhos porque limpou muito chão, diz sem qualquer vergonha, seu
sorriso brilhava mais do que as janelas ajudava a secar, sentia-se livre
enquanto trabalhava com o seu esfregão. Maria realizou seu sonho:
suas crianças estavam na escola, com lápis e caderno nas mãos, e aos
poucos conquistou seu cantinho, arrumou tudo do seu jeito, sem um
móvel quebrado sequer.
Seguiu sua vida, criou seus meninos, e deu espaço para os seus
sentimentos e seu coração, Maria conheceu o Antônio, tão
encantador, trabalhador, não bebia, um exemplo para seus filhos e
além de bonitão. Antônio logo mudou-se para casa de Maria, não se
entendia bem com seus filhos, mas tentava fazer amizades suprindo as
suas necessidades, comprando-lhes com presentes e agrados: “Maria,
você não precisa mais trabalhar, eu serei sua provisão!”. Com ele
Maria teve mais um filho, a razão da vida de Antônio, o “Toninho”,
bebê risonho, criança que representava o início de sua nova vida.
Com o passar do tempo, Antônio não era mais como no primeiro dia,
seus galanteios foram diminuindo, seus horários de trabalho sempre
eram estendidos sem qualquer explicação. Se Maria conversava com
a vizinha Dora, ele já reclamava “que tanto assunto era esse pra
conversar”, se assistia à televisão “que falta de coisa para se fazer, a
casa está suja, levanta já do sofá”, Maria não podia sair na rua “vai
se encontrar com outros homens, vai? pra quê se arrumar assim”,
nem a consulta médica ela ia mais. Maria perdeu toda sua vaidade,
novamente sua valentia, tudo era motivo para reclamar e Maria já
enfraquecida se calou.
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Seus filhos já crescidos perceberam essa agressão, suas lembranças
do tempo que eram crianças vieram à tona, quando sua mãe era
escrava do lar e de José que bebia, mais uma vez essa história se
repetia: Maria, escrava do lar, de Antônio e agora de si mesma, pois
nada mais fazia para mudar. Perdeu sua alegria, nem com seus filhos
conversava mais, vivia calada pelos cantos, sem uma lágrima sequer,
pois a seca chegou a seu coração. Fazia apenas o que lhe pediam,
as roupas limpas e a comida no fogão, dormia e acordava e tudo se
repetia. Esqueceu-se de como era bom abraçar suas crias, antes lhes
tratava com gritarias e empurrões, o coração de Maria azedou, perdeu
a cor e nessa estiagem perdeu a vontade de viver. Maria pensava: “ser
feliz era como uma miragem no sertão”. Condicionou-se à violência
da vida e responde com obediência todas as vontades do “patrão”,
Antônio, seu dono, seu amo, seu provedor, pai de “Toninho”, sem
quaisquer sentimentos por Maria, sem qualquer agrado, sem coração.
Esperamos que Maria possa se lembrar de que ainda é uma mulher
de coragem e de muita força, trabalhadora, valente, que não teme a
enxada nem o esfregão, que ela possa mudar a sua história novamente
e tomar uma nova decisão. Seus filhos aguardam isso ansiosamente e
para lembrá-la de tudo colocaram sacos de pano atrás do portão.
Um belo dia, ano de
1981, o pai de Maria
que morava em um lugarejo no Estado da Bahia resolveu visitar a sua irmã que
não via há anos. Quando o pai de Maria retornou, chegou dizendo que sua irmã
Josefa era casada com um homem viúvo que tinha vários filhos, alguns casados e
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outros solteiros. Sua irmã também falou para ele que tinha o desejo de ter uma filha
e perguntou para seu irmão: “Você não tem uma menininha para eu adotar como
minha filha?” Ele respondeu: “Menino é o que não falta. Tenho nove filhos, sendo sete
mulheres e dois homens”. Maria ouve a história e pergunta: “Pai, deixa eu ir morar
com a minha tia?” Ele responde: “Quem sabe é a sua mãe. Ela é quem decide”. Maria
pediu para sua mãe e ela disse: “Vivemos aqui na pobreza e se for melhor pra você,
minha filha, eu deixo”.
Maria começou a se preparar para ir para São Paulo. Apesar de
muito nova, apenas 13 anos, Maria sonhava com uma vida melhor.
Ela queria estudar e chegou a São Paulo em dezembro de 1981.
Foi recebida com muita alegria e a tia falava para todo mundo que
Maria era sua filha. Josefa se desdobrava para agradar a sobrinha.
Apesar da imensa saudade que sentia de sua família, Maria acabou se
apaixonando pela tia e a tia por Maria. No juizado, Josefa conseguiu a
guarda definitiva da sobrinha.
Maria começou a trabalhar para ajudar a sua tia. Com o passar do
tempo, Maria começou a ficar mais esperta e a perceber o quanto ela
era discriminada por ser nordestina, pobre e sem instrução. Ela ouvia
tantas piadas e pensava: “Por que será que eles têm tanta raiva de
nordestino?” Maria ficava sem resposta.
Uma dessas piadas ela escutou no trabalho. Recém-chegada a São
Paulo, ela não tinha muita roupa e, apesar do frio, teve que ir trabalhar
com uma camiseta. No trabalho uma colega falou: “Você não sente
frio? Ah me esqueci que baiano tem couro sapo e não sente frio!” E
começou a rir. Claro que Maria sentia frio, mas mal sabiam eles que
ela não tinha roupa para vestir.
Aos 19 anos, Maria sentiu necessidade de estudar para ter um
emprego melhor. A tia deu todo apoio, mas ela só tinha estudado até
a 3.ª serie do ensino fundamental. Esta série só poderia ser cursada
durante o dia, mas Maria tinha que trabalhar. O que fazer? Ela foi
buscar informação em uma escola de supletivo e chegando lá eles
informaram que ela poderia ir a uma determinada escola fazer uma
prova como se ela tivesse feito a 4.ª série do ensino fundamental.
Maria fez a prova e conseguiu a nota que precisava para se matricular
no supletivo à noite. Começou cursando a 5.ª serie e terminou o
ensino médio na mesma escola.
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Durante esse tempo, Maria conheceu um rapaz com o qual se casou e
teve dois filhos. O primeiro morreu e hoje ela tem uma filha com 17
anos. Os sonhos de Maria não acabaram após terminar o supletivo.
Maria queria mais e aos 42 anos ela entrou em uma faculdade. Em
2013 ela conseguiu o seu diploma em Serviço Social e hoje busca
uma colocação no mercado de trabalho para realizar completamente o
seu sonho. Ela tenta mostrar para as pessoas que independentemente
de cor, raça, religião, local de nascimento somos todos iguais, e o fato
de você não ter conhecimento disso ou daquilo não lhe coloca em
desvantagem sobre aqueles que acham que sabem tudo.
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Maria Madalena
Nanci Flor da Silva
Maria Madalena é uma mulher que tem pouco de Maria e muito de
Madalena.
Começou cedo na vida, no sexo e nas drogas.
Primeiro fazia sexo e usava drogas por prazer, depois se drogava para
fazer sexo e comprar drogas e agora faz qualquer negócio.
Teve muitos parceiros... Muitos.
Fixo foram cinco: Sebastião, João, José, Antonio e Manuel.
Filhos foram treze, Maria Madalena é treze.
Sebastião foi o seu primeiro amor, amor da adolescência, seu sonho
de menina e de mulher. Dessa relação veio o seu primeiro filho e
talvez o único que deu certo. Talvez por ter sido criado pelos avós
paternos, talvez porque viveu longe de Maria.
Como Terezinha de Jesus, da música de Chico Buarque, veio o
segundo como quem chega do Bar e embriagada Maria Madalena teve
o seu segundo filho, o seu terceiro e o seu quarto e foi trocada por um
copo de água ardente.
Novo amor, nova relação, novos filhos.
Maria conheceu José e com ele teve mais três filhos, mas José não
aguentou o tranco e abandonou Maria no celeiro da vida.
Sem eira e nem beira, com muitas drogas e sexo, as crianças foram
abrigadas.
Uns passaram a ser filhos do Estado e criados pela mãe Instituição,
os maiores de dois anos; os menores foram adotados por uma família
francesa e perderam as suas raízes e a sua história.
Foi bom? Foi ruim? Quem pode avaliar?
Com muitas drogas, sexo e sem os filhos morre o pouco de Maria e se
fortalece a Madalena.
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Com Antonio um novo recomeçar, uma nova família e mais filhos,
são quatro agora. A vida parece brotar no deserto, mas Antonio sofre
violência urbana e morre, a vida não imita a arte, ela é real.
Maria Madalena não dá conta de quatro filhos sozinha e pede ajuda a
Manuel, com quem tem mais três filhos, somando à segunda geração
são sete.
Manuel também não dá conta de Maria Madalena e vai embora, e
volta José para a vida de Maria, para cuidar dos filhos que não são
seus, os filhos que o sofrimento talhou, uns com saúde mental, outros
sem saúde social.
Maria Madalena já não é mais uma mulher, é um desses zumbis
urbanos que vivem na cracolândia.
Franciscleide, aos treze anos começa cedo na vida, no sexo e nas
drogas...
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Maria nasceu em
Uberlândia em
1929,
sua mãe era lavadeira e seu pai trabalhava na
ferrovia, tinha quatro irmãos e desde criança trabalhava cuidando
dos irmãos e da casa. Com 12 anos conseguiu um emprego em
uma fábrica e passou a sair de casa às 7 horas e só voltava tarde da
noite. Como precisava trabalhar, Maria só pôde estudar até o 4.º ano
primário.
Ela sempre gostou de dançar, adorava os bailes e foi ali que conheceu
um rapaz com pinta de galã, o Dorival. Maria logo se apaixonou e
escolheu sair de casa, pois sua mãe sempre dizia que menina que
namorava é “putinha” e costumava bater por causa disso. Maria foi
acolhida pela mãe de Dorival que apoiou o casal que logo se casaram,
ambos tinham 18 anos. Tiveram cinco filhos e como o companheiro
trabalhava como eletricista eles precisaram mudar muitas vezes em
busca de uma oportunidade de emprego, nessas andanças tentaram
morar no Rio de Janeiro onde tiveram que viver na rua, Maria sofreu
um aborto devido à necessidade que passavam nessa época.
De volta a São Paulo, no bairro de Perus, Dorival conseguia trabalho
nas cidades do interior e assim a família seguiu. A vida era difícil,
Maria cuidava dos filhos, da casa e ajudava como podia lavando
roupas para vizinhos. Dorival sempre foi de beber e tinha outras
mulheres. Ela sabia, mas se mantinha mais preocupada com o sustento
da casa e dos filhos. Em alguns momentos ele ficava agressivo e logo
Maria respondia do jeito dela, como da vez em que Dorival jogou um
prato no chão num momento de fúria, e Maria, sem demora, quebrou
toda a louça que tinham dizendo: “Pronto agora não tem mais nada
pra você quebrar!”. Depois disso, ele evitou se alterar e a família
passou a fazer suas refeições em lata de goiabada por um bom tempo.
Dorival morreu jovem em um acidente no trabalho, uma carga elétrica
o pegou em cheio num poste em um dia chuvoso. Então, sem tempo
para luto, Maria logo precisou agilizar o sustento da família e para
isso deixou os filhos na casa da sogra em Perus para trabalhar no
centro de São Paulo, e ainda enfrentando o preconceito de vizinhos
por se tornar uma mulher sozinha.
Começou trabalhando com o que conhecia, lavando roupas, mas desta
vez a responsabilidade pelo sustento dos filhos era só dela, assim com
os contatos que fez passou a fazer programas agendados por telefone.
Ela criou relações de amizade nesses encontros, muitos desses
“amigos” ajudaram bastante afetiva e financeiramente. Anos depois,
conseguiu um emprego de copeira em uma repartição pública, sendo
somado a lavagem de roupa e os encontros, Maria conseguia sustentar
os filhos que visitava todo fim de semana.
Então, Maria vive uma perda irreparável: o falecimento de seu filho
mais velho por atropelamento quando ele já trabalhava, com 16 anos,
como office boy. Ela procuraria a vida toda por um contato espiritual
com o primogênito.
Conforme os filhos iam crescendo, eles passaram a morar com Maria
em São Paulo onde trabalharam para ajudar nas despesas e puderam
estudar. Os trabalhos de Maria continuaram sendo a principal renda
da família e ainda ajudava familiares do interior. Com o tempo, Maria
passou a ser procurada por amigos e conhecidos, que buscavam
conselhos e apoio pelo seu jeito acolhedor e carismático. No trabalho,
as coisas melhoram, de copeira passou para telefonista por sua
curiosidade e prestatividade.
Maria se tornou vaidosa, caprichava no seu visual e procurava se
sentir bonita todo o tempo. Os filhos cresceram e se casaram, e Maria
continuou ocupando o papel de liderança da família, preocupavase com todos e tentava ajudar como podia em qualquer situação,
inclusive sua mãe, que visitava no interior sempre que podia.
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Durante os encontros, Maria conheceu Jorge, empresário, filho de
alemães que se tornou seu grande companheiro, amante e amigo por
25 anos. Uma relação diferente para a época, pois Jorge era casado
e se manteve assim todo o tempo e Maria manteve uma relação
tranquila com a esposa por toda a vida. Jorge era muito querido
pela família de Maria, que viam a felicidade que ele trazia para ela,
sendo chamado de ‘avô’ pelos netos dela. Os netos de Maria viam
nela uma companheira de bagunça, com seu jeito despachado cheio
de palavrões, era sempre divertida e também um porto seguro sendo
buscada quando alguém tinha um problema. Maria carregava com ela
a lembrança dos netos, representada por uma corrente que usava no
pulso, era uma para cada um deles.
Além de sair para dançar nas casas de baile da cidade, Maria adorava
viajar, sempre que podia viajava para visitar amigos e familiares
em diferentes cidades e estados. Até que um dia realizou um sonho
antigo: ir à Disney! Feito criança, ela guardava com carinho fotos
tiradas ao lado do Mickey. Maria viveu intensamente uma vida de luta
e vitórias.
E assim, em uma noite de quarta-feira de cinzas, Maria morreu
dormindo, serena, descansando depois de um carnaval animado em
Ilha Bela.
Até hoje, depois de 21 anos de sua partida, seus filhos, netos e amigos
ainda procuram na lembrança de Maria uma referência de amparo e
orientação em momentos difíceis.
Nasci em Pernambuco.
Fui uma criança que
não era para nascer.
Minha mãe já tinha perdido cinco filhos e teve que se internar para
que eu pudesse vir ao mundo. Eu achava que não era filha dos meus
pais, pois sempre sofri maus tratos. Batiam, prendiam e não me
deixavam participar de nada na escola. Cresci no sítio ajudando os
meus avós a plantar cana, cana que se transformava em dinheiro para
comprar roupas no final do ano.
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Quando eu tinha nove anos a minha vida acabou! Fui pegar uma
lata de manteiga na casa da minha tia a pedido de minha mãe. Nós
usávamos essa lata para pegar água na cachimba. Entrei na casa de
minha tia e o meu primo me puxou para dentro do quarto, tirou a
minha roupa e me estuprou. Nunca pensei que isso pudesse acontecer.
O meu primo de 15 anos me estuprou e me ameaçou de morte caso eu
contasse alguma coisa para alguém.
Aconteceu mais quatro vezes e o medo tomou conta da minha vida
e uma ferida enorme foi aberta. Fiquei atormentada, com medo e
assustada. Não podia falar nada para ninguém e comecei a querer
fugir de casa. Não ia mais para casa da minha tia e queria ficar mais
na rua do que em casa. Toda a família morava perto. Eu andava
pelas ruas com a perna fechada, pois as pessoas falavam que moça
que abria as pernas não era mais nada e eu não queria que ninguém
soubesse.
Fui estudar em um convento e eu queria ficar por lá, eu queria muito
morar lá. A minha família que era de crentes não podia admitir que
eu morasse em um convento e ficasse adorando imagens. Eles não
aceitaram a minha decisão e não assinaram a autorização.
Aos 13 anos fui expulsa de casa. O meu pai disse que eu era uma
vergonha para a família e como eu queria ficar mais na rua do que
em casa, que era para eu viver definitivamente lá e jogou as minhas
roupas no meio da rua. Fiquei atordoada e fui morar em uma casa
de prostituição. Não sei dizer como fui parar nesse lugar, só sei que
passei a morar lá. Não sabia como era, como funcionava, não sabia de
nada. Peguei doença e fui alertada por um dos clientes que disse que
eu precisava me cuidar, pois se passasse para alguém eu podia até ser
morta.
Com 14 anos tive que sair dessa casa, pois um bandido que gostava
de mim veio cumprir a promessa de que iria me matar caso me
encontrasse com outro. Eu não tinha nada com esse homem e não
queria desistir do cabeleireiro com quem eu namorava. Ele saiu da
cadeia e foi me procurar. Comecei a gritar, pessoas apareceram e eu
consegui fugir. Fui morar em outro lugar, em outro bairro, em outra
casa de prostituição.
Nessa nova casa eu também quase morri. Dessa vez um cliente foi
pagar, mas não encontrou a carteira e me acusou de roubo. Ele partiu
para cima de mim e começou a me espancar. Fiquei adormecida com
as pancadas na nuca e com os gritos vieram me acudir. Consegui fugir
para dentro do mato, vomitei sangue. Chamaram a polícia e fomos
para delegacia. O garçom que viu a mulher do homem tirando a
carteira do bolso dele foi depor e esclareceu todo o mal entendido.
Com 15 anos fui para Minas Gerais morar em um restaurante. Na
estrada passei boa parte da minha adolescência. Sempre na boleia de
um caminhão.
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E aos 18 anos me vi novamente na primeira casa de prostituição
que morei. Nessa casa conheci um caminhoneiro de três corações
que sempre passava por lá. Ele transportava charque. Nessa época
engravidei da minha primeira filha e voltei para a casa da minha mãe.
O caminhoneiro que sempre passava por lá deixou de passar. Tive a
menina, mas a recuperação do parto não foi fácil. Passei dois meses
na cama com os pontos inflamados. Fui melhorando aos poucos sob
os cuidados de minha mãe. Deixei a menina com a minha mãe e fui
para Sergipe.
Em Sergipe morei com um rapaz que me tirou da boate. Fui morar
em outra boate, mas não para trabalhar de noite. Ele era garçom. Foi
nessa época que engravidei do meu segundo filho. Fomos morar na
casa da sogra, mas nunca tive sorte com homem. Depois de dois anos
em Sergipe, ele começou a desgostar de mim.
Voltei para a Bahia e lá encontrei uma pessoa que já tinha conhecido.
Começamos um romance e fui morar na casa da mãe dele. Engravidei
do meu terceiro filho. Morei 3 anos e 7 meses com ele, mas ele era
muito violento. Ele me batia muito, não me dava nada, dependíamos
dos pais dele e era extremamente mulherengo. Um dia fui atrás dele
e ele não gostou e quebrou o meu nariz. Eu era louca por ele, mas foi
acabando. Eu fazia tudo direitinho e ele continuava me batendo.
Um dia fiquei sabendo que um caminhoneiro conhecido estava pela
região. Como na hora da novela eu sempre ia dormir, resolvi fugir
nessa hora. Mandei um bilhete para o caminhoneiro marcando um
encontro. Sai com o menino e com algumas roupas. Ele veio ao meu
encontro e eu disse que eu não podia explicar, mas eu precisava
fugir agora. Conseguimos fugir. O pai do menino ficou em estado de
choque e foi atrás da gente, mas não conseguiu nos achar. Foi assim
que eu cheguei em São Paulo no ano de 1978.
Em São Paulo fui morar na casa de uma tia. Foi aí que começou
outra luta na minha vida. Primeiro morei na casa dos outros, depois
consegui alugar um quarto. Naquela época não tinha creche e eu tinha
que deixar o menino com a minha prima. Nós morávamos longe,
então deixava ele no domingo e só pegava na sexta-feira. No domingo
era um chororô danado e na sexta só alegria.
Nessa época conheci o meu atual marido. Ele era casado e vivia
dando em cima de mim, me convidava para sair, mas eu não
dava bola. Um dia acabei ficando grávida de outro rapaz. Foi um
desespero, pois eu não podia ter esse bebê, a vida estava muito difícil.
Aconteceu essa tragédia e fui obrigada a tomar o remédio, mas não
tinha nem dinheiro para comprar. Tive que pedir para ele. E foi assim
que fomos morar juntos. Fomos morar juntos por causa de uma
necessidade. Não era o que eu queria, mas fui me apegando. Estamos
a 27 anos casados e foram muitas decepções. Com ele eu tive mais
três filhos.
Hoje continuo em uma situação de violência dentro de casa. Estou me
fortalecendo para sair de mais essa situação. Tenho pena dele, mas
não aguento mais. Hoje conheço os meus direitos e sei que eu e os
meus filhos merecemos uma vida sem violência.
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Vou contar a história de
uma Maria guerreira.
Essa Maria é a minha
mãe.
Ela nasceu na Bahia, em Mundo Novo, no ano de 1935. Veio para
São Paulo em busca de uma vida melhor. Aos 18 anos, começou a
trabalhar na fábrica de tecelagem Matarazzo. Ao chegar a São Paulo,
Maria foi morar com seu irmão em um cortiço familiar. Depois de um
tempo, conseguiu alugar um quarto e foi morar sozinha.
Um dia, recebeu a notícia de que seu pai estava internado em um
hospital de deficientes e que tinha sido transferido para São Paulo
para se tratar em Franco da Rocha. Ficou internado um ano e veio a
falecer aos 50 anos. Foi muito difícil para a sua mãe aceitar a morte
do marido e Maria se mostrou muito forte para ajudar a mãe que
precisava de muita atenção.
Nessa época, conheceu uma senhora que estava com um bebê recémnascido, que não era dela, e queria que alguém o adotasse. Maria
vendo a situação da criança doente e desnutrida, resolveu pegar para
cuidar até que alguém adotasse, o que nunca aconteceu. Aos 22 anos,
Maria se viu solteira, trabalhando, pagando aluguel e cuidando de um
bebê. A cunhada ajudou-a olhando a menina enquanto Maria ia trabalhar. Na mesma época conheceu o meu pai, o qual achou estranho uma
moça solteira e virgem criando uma criança sozinha.
Aos 24 anos Maria casou com José e logo ficou grávida de sua
primeira filha. Com a chegada da menina bateu uma vontade em José
de voltar para a Bahia. Maria não queria, mas seguiu o marido já com
o seu segundo filho na barriga. Chagando lá, viram que iriam passar
necessidade e retornaram para São Paulo.
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Meu pai não permitia que minha mãe tomasse contraceptivos e a cada
ano ela tinha um filho. No total foram 13, 4 mulheres e 9 homens.
O meu pai também era muito violento, batia em minha mãe e bebia
muito. Presenciei muitas vezes minha mãe sendo machucada, e em
uma delas o meu pai chegou a enfiar uma caneta na barriga de minha
mãe que estava grávida. Por sorte não perfurou.
Ela pensou em deixá-lo muitas vezes, mas não sabia como ia cuidar
de tantas crianças e pagar aluguel. Maria nunca deixou de trabalhar
para ajudar no sustento de seus filhos e voltou a morar perto do irmão
para ter alguma ajuda. Um tempo depois, José teve tuberculose e foi
internado em Campos do Jordão. Ela ficou seis meses desamparada e
teve que pedir ajuda da Legião Brasileira de Assistência, no Tatuapé,
e por muito tempo recebeu ajuda de uma pessoa de coração enorme.
Depois de recuperado, meu pai voltou para casa, mas não deixou de
ser violento. Maria nunca se separou, mas não foi por falta de vontade
e sim por causa de seus filhos.
Um dia, minha mãe conseguiu comprar um terreno, no qual construiu
uma casa de três cômodos. Nossa vida melhorou, mas as violências
continuaram até o meu pai morrer precocemente aos 46 anos. Ele
passou mal sozinho na construção onde trabalhava. Teve um derrame
cerebral.
Maria teve que continuar sua batalha sozinha para manter sua família
sempre unida e para criar os 11 filhos menores. Criou seus filhos com
muita garra e determinação e também ajudou a criar três netos. Hoje,
Maria está com 79 anos e cheia de saúde.
Eu e todos os meus irmãos não sofremos mais violência e temos
consciência do que minha mãe sofreu durante 24 anos de casada.
Hoje, trabalho com mulheres em situação de violência, ajudando-as a
saírem dessa situação.

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