Mulheres camponesas em defesa da saúde e da vida

Transcrição

Mulheres camponesas em defesa da saúde e da vida
Mulheres camponesas
em defesa da
saúde e da vida
AMTR-SUL
2008
Publicação da
ASSOCIAÇÃO DE MULHERES TRABALHADORAS RURAIS
DA REGIÃO SUL DO BRASIL
Abril de 2008
Organizadoras:
Vanderléia L. P. Daron
Zenaide Collet
Contribuição:
Luciana Piovesan
Justina Cima
Salete Girardi
Ilustrações:
Márcia B. Aliprandini
Projeto Gráfico:
MDA Comunicação Integrada
Impressão:
Gráfica Passografic
Apoio:
Convênio 060/2005
Secretaria da AMTR-SUL
Rua Sete de Setembro, 2070
Bairro Distrito Presidente Médice
89.806-150 - Chapecó - Sc
www.mmcbrasil.com.br
Apresentação
3
É
com alegria que o Movimento de Mulheres Camponesas – MMC
publica mais um instrumento de apoio à reflexão e estudo para as
dirigentes e militantes sobre a saúde. Este material apresenta uma
síntese dos muitos debates que vem acontecendo no MMC sobre a
saúde e suas relações com o projeto de agricultura camponesa, as
plantas medicinais, as sementes crioulas, a alimentação saudável e a
reeducação alimentar.
Todo este esforço tem por objetivo partilhar informações e experiências que
estão sendo realizadas pelas mulheres camponesas e contribuir na unificação e
aprofundamento dos temas que por ora perpassam a vida do MMC, acreditando
que: “quem faz já sabe, mas quem pensa sobre o que faz, faz melhor”.
Temos consciência de nossa contribuição na luta pela emancipação da mulher que vem acompanhada com a luta pela transformação da sociedade. Por este
compromisso estamos todas convocadas a fortalecer e ampliar novos grupos de
mulheres para debater sobre a necessidade de saúde e vida.
Assim fortalecemos nossas lutas através de uma história aonde cada mulher
camponesa vai descobrindo que tem um papel fundamental na mudança das relações e na construção da nova sociedade tendo como princípio a vida, a justiça e o
bem estar de todas e todos.
Fortalecer a luta em defesa da vida.
Todos os dias!
Coordenação Nacional do MMC
Abril de 2008
4
"Cada pessoa brilha com luz própria entre
todas as outras. Não existem duas fogueiras
iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras
pequenas e fogueiras de todas as cores.
Existe gente de fogo sereno, que nem percebe
o vento e gente de fogo louco que enche o
ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos,
não alumiam nem queimam: mas outros
incendeiam a vida com tamanha vontade que
é impossível olhar para eles sem pestanejar e
quem chegar perto pega fogo".
Eduardo Galeano
Sumário
5
1. Mulheres: histórias de dor, resistência e emancipação................................................... 7
1.1. As mulheres na história........................................................................................7
1.2. Influência da cultura grega e romana sobre nossas vidas e as
lutas de resistência das mulheres......................................................................10
1.3. Feminismo e a luta das mulheres camponesas...................................................15
2. A situação de vida e saúde das mulheres camponesas no Brasil
e a luta por saúde...........................................................................................................17
3. Mulheres camponesas, saúde e construção do projeto popular de agricultura.............29
4. Saúde: direito de todas(os) e dever do estado...............................................................33
4.1. A política pública de saúde no Brasil:
entre as necessidades do povo e os interesses do capital.................................33
4.2. O Sistema Único de Saúde: luta, conquista e desafio.........................................37
4.3. Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde..........................................................40
4.4. Passos para garantir os direitos no Sistema Único de Saúde (SUS).....................41
5. Saúde integral, defesa da vida e emancipação - experiências do MMC..........................43
5.1. Plantando Saúde.................................................................................................46
5.2. Recuperação de sementes crioulas de hortaliças...............................................48
5.3. Alimentação saudável: necessidade vital............................................................50
6. Referências......................................................................................................................55
6
O passo seguinte
O passo seguinte não é o próximo
O passo seguinte é o necessário,
Para termos a certeza
De que continuaremos caminhando juntas (os),
Unidas (os) pelos mesmos ideais de luta,
Pelos mesmos sentimentos de liberdade
Pelo mesmo compromisso de transformação!
Fragmentos do poema de Edmundo Colen
Mulheres:
histórias
de dor, resistência e emancipação
A
s mulheres são a maioria da
população brasileira e são as
que mais buscam os serviços
públicos de saúde através do
SUS, para seu próprio atendimento, mas principalmente
acompanhando crianças, familiares, idosos,
pessoas com deficiências, amigos e vizinhos.
São cuidadoras que, muitas vezes cuidam
mais dos outros do que de si próprias.
O processo de saúde-adoecimento está
intrinsecamente relacionado com as condições de vida das pessoas, com o trabalho, o
ambiente, ou seja, há um conjunto de questões que determinam e/ou condicionam os
processos de saúde e de adoecimento das
pessoas. No caso específico das mulheres e
da população negra e indígena, além disto,
pesa as marcas da opressão, dominação, exploração e violência que foi sendo imposta
pela sociedade de classes e sustentada pela
cultura racista e patriarcal.
Por isto, que para refletir sobre a saúde das mulheres camponesas é preciso fazer
uma breve recuperação da trajetória histórica e do papel das mulheres.
1.1. As mulheres na história
Um dos elementos fundamentais para
entender as relações humanas, em especial,
o papel que a mulher desempenha na família, no trabalho, nos espaços de decisão têm
sido a análise histórica social e cultural.
Quando oriundo de um contexto de luta
pela emancipação humana e social, o papel
da mulher tem sido fundamental para o avanço não só das relações compreendidas entre
1
7
o masculino e o feminino, mas, sobretudo,
para a transformação da sociedade patriarcal,
capitalista e neoliberal, sinalizando para as
possibilidades reais contidas no sonho por um
mundo mais justo, igualitário e digno.
Entretanto, “ainda é forte na humanidade, tal ‘superioridade’ do homem frente
à suposta ‘inferioridade da mulher’, historicamente construída, produzida e imposta às
gerações como um modelo ‘natural’ da vida
em sociedade”. Tais idéias são reforçadas,
reafirmadas e agradam ao modelo patriarcal
e capitalista em que vivemos, que encontra
sobretudo na dupla face da opressão/exploração a perpetuação de uma humanidade
“sem rumo” e sem perspectivas. Um “modelo” de sociedade que se legitima conduzindo
a massa dos humanos à base da dependência,
da falta de autonomia, da violência, seja ela
institucionalizada ou não. Compreender essa
construção histórica é uma necessidade das
dirigentes e lideranças do Movimento de Mulheres Camponesas - MMC, pois acreditamos
na possibilidade de novas relações sociais de
gênero, classe, raça, etnia e com a natureza.
A história da humanidade é marcada
pela atuação de mulheres e homens no desenvolvimento do ser humano. O TRABALHO é um
dos elementos fundamentais que diferencia a
espécie humana dos animais e que produz as
riquezas que deveriam ser partilhadas entre
todos. Vamos conhecer um pouco das marcas dessa história, levantando apenas algumas
questões motivadoras, a fim de que possamos
em nossa disciplina militante encontrar algumas referências e motivações para um estudo
mais aprofundado, ao qual estão todas convocadas a fazer, para melhor compreender a dinâmica da vida humana e da sociedade.
Vamos levantar alguns elementos a partir dos modos de produção
nas diferentes sociedades, vejamos:
8
Mais ou menos 125 mil anos antes de
Cristo, a este período da história, foi dado o
nome de paleolítico1 médio. As pessoas se organizavam em clãs também chamadas de comunidades primitivas, ou tribos, eram nômades, ou seja, não tinham lugar fixo para morar,
construíam abrigos temporários nas cavernas
para se protegerem e se defenderem dos outros animais. Aos poucos aprenderam a utilizar pedaços de madeira para derrubar o fruto
da árvore e arrancar as raízes. Assim foram organizando pequenos instrumentos de trabalho que os auxiliavam na coleta dos alimentos
e, ao mesmo tempo, serviam de auto defesa
no ataque de animais. O trabalho da mulher e
do homem era igual. No estudo dos sítios arqueológicos no sul da África constatou-se que
70% da alimentação das comunidades primitivas vinham das coletas de vegetais2.
Aos poucos foram descobrindo vários
instrumentos que auxiliavam na busca de
alimentos. As redes foram criadas para facilitar a caça de pequenos animais. As caçadas
eram comunitárias, delas participam mulheres, homens e crianças, “o problema é que as
redes resistem menos aos efeitos do tempo
do que as lanças e pedras afiadas3”.
Essas informações, embora pouco divulgadas, mostram como a mulher sempre trabalhou e desempenhou um papel relevante no
desenvolvimento e no auto-sustento da humanidade. A sobrevivência das comunidades
primitivas só foi possível devido às relações de
entre - ajuda e solidariedade existentes neste
período. Assim como os trabalhos da sobrevivência era tarefa de todos, da mesma forma, a
defesa, a proteção, o cuidado com as crianças
era responsabilidade de todos.
Neste período, o aprendizado vinha da observação onde,
ao mesmo tempo em que a
mulher observa as mudanças
que ocorrem em seu corpo
como à menstruação, a gestação, a amamentação, entre
outras; ela percebe a reprodução das sementes e dos
animais. Assim, começa a semear desenvolvendo lentamente a primitiva
técnica agrícola. O plantio das sementes foi
garantindo a alimentação fazendo com que
as comunidades primitivas permanecessem
mais tempo no mesmo lugar. Juntamente
com o plantio das sementes ocorre também
a domesticação de pequenos animais, como:
o cachorro, a galinha, o porco, a ovelha, a cabra, entre outros. A terra, a alimentação, as
ferramentas pertenciam ao coletivo.
O cuidado com a vida era muito forte
e havia uma relação estreita entre cuidar da
vida, da saúde com a natureza, utilizando as
plantas medicinais e com a dimensão da espiritualidade. A mulher era portadora de uma
sabedoria imensa a este respeito e sabia como
Um período é o tempo que transcorre entre um fato histórico e outro, que altera a estrutura social. Cada cultura
tem estabelecido, graças a seus historiadores, os diferentes períodos históricos de sua sociedade. A cultura ocidental, ou melhor, a européia, que é determinante no meio de nós, estabeleceu dois períodos a Pré-história e a
História.
2
ZILHMAN Adrienne e TANNER Nancy (cientistas). O sexo forte. Artigo da Revista Veja, 1999, p. 110-115.
3
Depoimento no mesmo artigo da cientista SOFFER Olga. O sexo forte. Artigo da Revista Veja, 1999, p. 110-115.
1
lidar com o cuidado, com os mistérios da vida
e com a espiritualidade.
É interessante observar que nestas disputas o
grupo dominado se tornava escravo do outro.
Este período na história é conhecido
como o fim do período paleolítico e início do
período neolítico, ou seja, mais ou menos 12
a 10 mil anos antes de Cristo.
Já em outras sociedades, entre elas alguns povos da América pré-colombiana possuíam uma organização mais igualitária entre homens e mulheres sem diferenças hierárquicas.
Esta relação com a terra faz surgir à técnica da cerâmica inventando a panela e, com isso,
melhorando as condições de cozimento, os potes auxiliando no armazenamento dos alimentos, bem como, a construção de casa de barro
oferecendo mais segurança à comunidade.
Porém, a organização da sociedade
criou estruturas e formas com características
bem distintas. Entre o povo da Babilônia, no
século VII antes de Cristo, a inferioridade da
mulher era concebida como inspiração divina, conforme consta no Código Hamurábi:
Estes são exemplos de como a mulher
ocupava papel determinante na sociedade e
na economia, ou seja, a descoberta da agricultura, com o plantio das sementes; a criação das cerâmicas que permitiu guardar e
proteger os grãos e alimentos, criando condições de sobrevivência dos grupos que antes eram nômades e estavam vulneráveis as
condições do clima, ao ataque de animais e à
falta de alimentos.
A descoberta de metais como o cobre,
o ferro e o bronze favoreceram a invenção de
novas ferramentas, como a charrua (tipo
de arado primitivo), foice, enxada, machados, pilão,
lanças, arpões...
Com isso, a
agricultura toma um
novo impulso e passa dos quintais para áreas maiores exigindo mais trabalho e proteção
das plantações, pois outros grupos nômades
que ainda não tinham descoberto a técnica do
plantio buscavam os alimentos nas plantações.
Essa disputa primitiva originou as guerras, a
propriedade privada e a divisão do trabalho.
Pilão de pedra
Isto também era reforçado pelo Alcorão,
livro sagrado dos Muçulmanos recitado por Alá a
Maomé no século VI. Na cultura persa, os filósofos
reforçavam a submissão das mulheres. Na cultura
grega vale destacar os diferentes papéis desempenhados pelas mulheres, citamos três exemplos:
a) A mulher na sociedade minóica4 era livre, podia adquirir propriedades e ser
independente, além de ter um papel
de destaque no culto.
b) A mulher espartana5 se destacava pela
força militar. A educação da mulher era
quase igual à dos homens, participando de exercícios físicos, de torneios e
atividades desportivas. O objetivo era
A civilização minóica foi uma civilização que se desenvolveu na ilha de Creta, a maior ilha do mar Egeu, entre
2700 a.C. e 1450 a.C. Teve como principal centro a cidade de Cnossos. O termo “minóico” deriva de Minos,
título dado ao rei de Creta.Os minóicos foram uma civilização pré-helênica da idade do bronze, em Creta, no mar
Egeu. Baseando-se em descrições da arte minóica, essa cultura é freqüentemente descrita como uma sociedade
matriarcal voltada para o culto à deusa.
5
A sociedade espartana era fortemente estratificada, sem qualquer possibilidade de mobilidade entre os três grupos
existentes: os Esparciatas (filhos de pai e mãe espartanos, sendo os únicos que possuíam direitos políticos. As
muheres podiam herdar o klêros, (lotes de terra), mas só no caso de não ter existido descendência masculina e com
o objetivo de o transmitirem. Os espartanos não podiam exercer o comércio.), os Periecos (habitantes da periferia,
eram integrados no estado espartano ao qual pagavam impostos. Apesar de serem livres, não tinham direitos políticos e dependiam dos Espartanos em matéria de política externa. Estavam obrigados à participação na guerra,) e
os Hilotas. (Eram os servos, que pertencendo ao estado espartano, trabalhavam nos kleros, entregando metade das
colheitas ao Espartano e eram duramente explorados. Deveriam cultivar essa terra a vida inteira e não podiam ser
expulsos de seu lugar. Levavam uma vida muito dura, sujeita a humilhações constantes.)
4
9
dotá-las de um corpo forte e saudável
para gerar filhos sadios e vigorosos ressaltando o papel de reprodutora, pois
os filhos eram sinal de vitalidade. Comandavam o lar e eram respeitadas,
mas não tinham direitos políticos. Já a
mulher escrava era subjugada e usada
como objeto de prazer.
c) A mulher ateniense quando era casada
vivia a maior parte do tempo confinada às paredes de sua casa, exercendo
funções domésticas, estando submissa
a um regime de quase reclusão, com a
função de procriar e cuidar da família.
Mesmo a jovem não podia encontrarse livremente com rapazes, visto que
viviam fechadas nos aposentos destinados às mulheres onde deviam permanecer separadas dos homens.
10
A inferioridade da mulher começa a ganhar força com o avanço da política e da filosofia grega. Aristóteles escreve justificando como
virtude e graça natural o silêncio da mulher,
significava, portanto, efetivamente, o mesmo
que excluí-la inteiramente da cidadania. Essas
idéias se expandem e são incorporadas pelo
império romano quando domina a Grécia.
Isto nos leva imediatamente de volta à natureza da alma: nesta, há por natureza uma parte
que comanda e uma parte que é comandada,
às quais atribuímos qualidades diferentes, ou
seja, a qualidade do racional e a do irracional.
(...) o mesmo princípio se aplica aos outros
casos de comandante e comandado. Logo, há
por natureza várias classes de comandantes
e comandados, pois de maneiras diferentes o
homem livre comanda o escravo, o macho comanda a fêmea e o homem comanda a criança.
Todos possuem as diferentes partes da alma,
mas possuem-nas diferentemente, pois o escravo não possui de forma alguma a faculdade
de deliberar, enquanto a mulher a possui, mas
sem autoridade plena, e a criança a tem, posto que ainda em formação. Devemos, então,
dizer que todas aquelas pessoas têm suas
qualidades próprias, como o poeta (Sófocles,
Ájax, vv.405-408) disse das mulheres: "O silêncio dá graça às mulheres, embora isto em nada
se aplique ao homem” (Aristóteles, Política, I,
1260 a-b, pp. 32e 33)6.
É a partir deste contexto e destas relações, acima mencionadas que vai sendo
originada a sociedade de classe e a cultura
patriarcal. Ou seja, a divisão entre senhores
e escravos, entre os que plantavam o alimento e os grupos nômades, entre os que tinham
ferramentas e os que não possuíam. Esta divisão começa a aparecer também na relação
entre o homem e mulher.
Mas é fundamental lembrar que este
fato não atingiu toda a humanidade em uma só
vez e muito menos em todas as comunidades,
mas que com o tempo foi incorporando outros
aspectos de dominação, como a dominação étnico-racial tão forte no período da colonização
e que ainda se reproduz. Esta divisão se desenvolveu principalmente na Europa e veio para as
Américas através da colonização.
1.2. Influência da cultura grega
e romana sobre nossas vidas
e as lutas de resistência das
mulheres
Do ano 476 d.C. com a desintegração
do Império Romano no Ocidente até o ano
1.453 com a queda de Constantinopla, a Europa viveu o modo de produção feudalista7.
Este modo de produção tinha clara divisão
social entre senhor feudal e servo. O senhor
TÔRRES. Moisés Romanazzi Considerações sobre a condição da mulher na Grécia Clássica (sécs. V e IV a.C.)
Revista Mirabilia 1, acessado em 8 de abril de 2008.
7
O feudalismo foi um modo de organização social e político baseado nas relações servo-contratuais (servis). Tem
suas origens na decadência do Império Romano. Predominou na Europa durante a Idade Média. Segundo o teórico
escocês do iluminismo, Lord Kames, o feudalismo é geralmente precedido pelo nomadismo e em certas zonas do
mundo pode ser sucedido pelo capitalismo. Os senhores feudais conseguiam as terras porque o rei dava-as para
eles. Os camponeses cuidavam da agropecuária dos feudos e em troca recebiam o direito à um pedaço de terra para
morar e também estavam protegidos dos bárbaros. Quando os servos iam para o manso senhorial, atravessando a
ponte, tinham que pagar um pedágio, exceto quando iam cuidar das terras do Senhor Feudal. Com a decadência e
a destruição do Império Romano do Ocidente, por volta do século V d.C. (de 401 a 500), como conseqüência das
inúmeras invasões dos povos do oriente, chamados povos bárbaros e das más políticas econômicas dos imperadores,
várias regiões da Europa passaram a apresentar baixa densidade populacional e baixo desenvolvimento urbano. Isso
ocorria devido às mortes provocadas pelas guerras, às doenças e à insegurança existentes logo após o fim do Império
Romano. A partir do século V d.C., entra-se na chamada Idade Média, mas o sistema feudal (Feudalismo) somente
passa a vigorar em alguns países da Europa Ocidental a partir do século IX d.C., aproximadamente.
6
feudal era latifundiário dono da terra, da
produção, do exército, e os servos deviam
trabalhar a terra, fazer limpeza e manutenção do castelo, das estradas, das pontes e em
épocas de guerra tinha que compor o exército para defender o senhor.
O camponês neste período
não tinha terra. Tinha
uma parceria desigual
com o proprietário, com o
dever de cultivar a terra,
devolver a maior parte,
além de pagar impostos,
zelar pela propriedade
e defender o senhor em
situações de guerra.
Nesta sociedade a mulher camponesa
era explorada igual ao homem em relação à
força de trabalho porque ambos eram praticamente despojados dos bens, não tinham
propriedade a proteger. As camponesas trabalhavam muito: cultivavam as terras, fiavam
e teciam a lã, geravam e cuidavam das crianças, que seriam os braços para produzir e defender o senhor feudal e suas propriedades.
A esposa e a filha do senhor feudal também eram subordinadas, não participavam das
decisões, não tinham o direito de escolher homem para casar, mas devia aceitar aquele que
o pai escolhesse, pois o objetivo do casamento
era assegurar a propriedade privada. Quando
era esposa não podia vender nem hipotecar
seus bens sem a autoridade e consentimento
do seu marido. Devia ser fiel e dar filhos legítimos para garantir a herança, além de cuidar
das crianças doentes e das tarefas da casa.
É importante dizer que o casamento
como nós conhecemos hoje foi instituído pela
igreja católica no século XI. A partir daí começa se reforçar e exaltar a idéia de que o papel
da mulher é de boa esposa, impondo papéis
e tarefas que são para os homens e outras
tarefas que são para as mulheres. Em muitas
culturas, as mulheres carregam a responsabilidade principal de cuidar das filhas (os), do trabalho doméstico que implica em (limpar, passar, cozinhar, cuidar de doentes...), enquanto
os homens, tradicionalmente, nascem com a
responsabilidade de chefiar a família.
Com o casamento a mulher estaria restrita a um só parceiro, que ela devia obediência, fidelidade e respeito. Durante a Idade
Média (de 476 a 1.453), a falta de conhecimento sobre a natureza feminina causava
medo e insegurança aos homens. A igreja
que tinha o poder e o controle sobre as pessoas fundamentava a inferiorização da mulher frente ao homem. O discurso mais conhecido é o pecado de Adão e Eva onde Eva,
a mulher é a pecadora e a responsável por
seduzir Adão para o pecado original.
Além disso, Maria, mãe de Jesus é colocada em nosso universo simbólico religioso
como a mulher virgem, obediente e sempre
a serviço dos outros.
Estas idéias expressam e reproduzem
a cultura patriarcal, contrariando aquilo que
diz na Bíblia, no Magnificat - Canto de Maria,
no evangelho de Lucas 1,46-55, que profetiza
a ação do Messias. São versos fortes como
este: “Todas as gerações, de agora em diante, me chamarão feliz...” “Ele mostrou a força
de seu braço: dispersou os que tem planos
orgulhosos no coração”.[...] “Encheu de bens
os famintos, e mandou embora os ricos de
mãos vazias”. Este exemplo nos ajuda a entender como muitas idéias sobre as mulheres
e seu papel são construídas historicamente
pela religião, pelo Estado, pela Escola, pela
Família e outras instituições, na tentativa de
naturalizar as desigualdades. Se estas idéias
foram criadas, podem também serem transformadas na sociedade.
Todas as sociedades passaram por muitas mudanças, mas na organização da sociedade romana a divisão entre patrícios e plebeus eram bem distinta. O titulo de cidadão
romano era muito valorizado, mas era concedido apenas para os homens brancos e ricos.
Como os plebeus: trabalhadores, escravos,
estrangeiros, mulheres não participavam do
processo político não tinham titulo de cidadã/
cidadão romana. A organização em comunidade baseava-se em comunidades gentílicas.
O regime gentílico se estruturava em torno
dos gens, que reuniam famílias identificadas
por laços de consangüinidade e religião. Não
havia a propriedade privada da terra.
A terra pertencia à comunidade onde a
autoridade máxima de cada grupo era exercida
11
12
pelo “pater familias” (o pai-chefe familiar).
Com a expansão do comércio, aumenta a
população, crescem as cidades e, ao mesmo
tempo, intensifica-se o processo de desagregação das comunidades. Roma tornou-se um
grande centro urbano com muita desigualdade social. A divisão do trabalho deu origem
ao processo de apropriação privada da terra
por parte dos chefes das famílias gentílicas –
os "pater". Os agregados em torno dos "pater" mantinham seu nome e suas tradições,
formando a aristocracia romana.
Será que estes modos de vida deram
origem ao patriarcado? O patriarcado é uma
palavra grega = pater. Referindo-se a um território governado por uma autoridade religiosa chamada de patriarca que tem poder
sobre todos que lhe estão subordinados.
Com o tempo, se constituiu uma ideologia
com base na hierarquia e na desigualdade
impondo concepções que naturalizam e justificam a manutenção de privilégio status de
superioridade para o homem, e status inferioridade, serviçal e obediente para a mulher. Para manter a subordinação da mulher
foram usados vários métodos como: proibição, violência, exclusão, discriminação.
Ao mesmo tempo, houve mulheres
que resistiram e contestaram essa ideologia,
como é a escritora francesa Chiristine de Pizan (1364 à1430) autora do livro "A Cidade
das Mulheres" no qual defende a igualdade
entre os sexos. Chiristine pode ser considerada uma das primeiras feministas por apresentar um discurso em favor da igualdade entre
os sexos defendendo uma educação idêntica
às meninas e meninos.
Outro exemplo é da camponesa Joana
D’Arc, que ainda criança vê seus familiares
mortos na Guerra dos cem anos entre França
e Inglaterra. Muito jovem comanda exército
francês expulsando os ingleses. Por este ato
é acusada de feiticeira, bruxa, presa e condenada à morte na fogueira em maio de 1431.
Na verdade, Joana D’Arc marcou seu tempo
com sua liderança, autonomia e decisão questionando as instituições conservadoras que,
para não serem desestabilizados condenavam
todos os que contestavam a ordem estabelecida. O exemplo disso é a caça às bruxas primeiramente iniciada pela igreja do século XV.
Com a desestruturação do modo de produção feudal e o início do modo de produção
capitalista, o trabalho livre passa a ser valorizado e comercializado. Surge uma série de retrocessos na condição da mulher na sociedade
ocidental. Muitas delas deixam de freqüentar
universidades, perdem o direito à propriedade
e herança, entre outros. Embora precisamos
ter presente que a formação de uma sociedade
é uma complexidade muito grande.
O modo de produção capitalista é definido como um sistema de organização de
sociedade baseado na propriedade privada
dos meios de produção, na divisão de classe
social (burguesia e trabalhadores), na exploração da força de trabalho, na comercialização das mercadorias gerando cada vez mais
lucros concentrando riqueza nas mãos de
poucos visando sempre mais lucros.
No século XVII, na França, a burguesia,
classe que estava em ascensão formada principalmente por comerciantes ricos, descontentes com os nobres que detinham o poder
político se organiza com o objetivo de tomar
o poder. No lema: “liberdade, fraternidade e
igualdade”, os artesãos, aprendizes, proletários, servos e camponeses semi ou livres se
sentem representados e se juntam para derrubar a monarquia francesa. Ao assumir o
controle do Estado a burguesia exclui o povo e
usa o Estado para garantir a propriedade privada dos meios de produção, ou seja, o poder
dos senhores feudais, da nobreza é substituído pelo poder da burguesia, do capital.
Para o povo só muda e
se aperfeiçoa as formas
de exploração. Antes
eram explorados pelos
senhores feudais e agora
são explorados pela
burguesia capitalista. Antes
eram servos e agora são
proletários.
A situação da mulher no capitalismo
passa a ser atrelada aos destinos da propriedade privada. Como esposa ela garante os filhos legítimos que vão herdar a propriedade;
se a mulher é herdeira garante o aumento do
capital do marido. Quando é proletária, vai
garantir os operários, ou seja, mão de obra
para as indústrias capitalistas.
As mulheres burguesas são apenas reflexos/esposa de seus maridos. São modificadas e adequadas conforme a necessidade
de seus donos. As mulheres trabalhadoras
do campo e da cidade são como animais de
carga, enfrentam uma tripla jornada de trabalho penoso e difícil.
Quando o modo de produção capitalista passou a industrializar as tarefas domésticas como a fabricação de roupas, de alimentos as mulheres tiveram que concorrer ao
mercado de trabalho. O trabalho que faziam
antes que era fonte de renda como a costura,
bordado, conservas, chimias, entre outras,
passa a ser produzido pela indústria e com
máquinas mais aperfeiçoadas. Para as mulheres terem a renda restou oferecer/vender
a força de trabalho ao industrial.
Mas isto não alterou a forma de divisão
do trabalho doméstico. Muito pelo contrário:
Permaneceu com a responsabilidade lavar,
cozinha, limpar, passar, cuidar de filhos... reforçando ainda mais a tripla jornada de trabalho. Além disto, a mulher ao vender a força de trabalho recebe salário menor que os
homens. Essa relação desigual interessou ao
capitalista, pois é mais uma forma de manter a mesma produção sobrando mais lucro.
Para manter esta desigualdade é necessário
difundir a idéia de que o trabalho da mulher
é inferior e, portanto, de menor valor. Dá
para concordar com essas idéias?
Em todas as partes do
mundo, em todos os espaços
há mulheres que se organizam,
resistem, lutam, enfrentam
buscando romper com os
padrões estabelecidos.
É fundamental entendermos que o modelo de funcionamento da sociedade capitalista não acontece de forma mecânica, mas é
garantido pelo Estado que por sua vez utiliza
as instituições: escola, família, meios de comunicação, exército, igreja, repassando uma ideologia com objetivo de manter o controle
sobre a sociedade.
Aos poucos a
mulher vem adquirindo consciência
crítica de si mesma como pessoa
e da sociedade. Se organiza,
questiona, luta,
denuncia... Vamos apenas citar
alguns exemplos da luta das mulheres no Brasil enfrentando a opressão e a exploração.
Primeiramente, vamos lembrar a dominação que os colonizadores brancos, europeus impuseram sobre os povos nativos
justificando que não tinham cultura, não
trabalhavam e não tinham alma. Portanto,
poderiam ser explorados. Mas este povo
sempre resistiu e lutou na defesa de sua
identidade, sua terra e seu modo de vida.
Entre outras, lembramos a luta das mulheres
guaranis e tupiniquins no Espírito Santo na
luta de enfrentamento contra o monocultivo
e o domínio das transnacionais e a defesa de
seus territórios.
Dandara
Já em 1597, homens
e mulheres negras enfrentam a escravidão, o poder
de seus senhores, o castigo..., resistem e lutam pela
liberdade. Constroem entre
outras a experiência dos
Quilombos dos Palmares
– Terra livre, tendo várias
13
líderes, dentre as quais podemos relembrar
de Dandara (companheira de Zumbi de Palmares), Anastácia, Aqualtume e outras. A
luta de resistência deste povo e destas mulheres continua nas comunidades tradicionais, quilombolas e de remanescentes de
Quilombos.
14
No início do século XX,
as mulheres operárias se
organizam reivindicando
melhores condições de
trabalho na indústria:
redução da jornada de
trabalho, direito a férias
remuneradas, fim do trabalho
infantil, igualdade salarial,
educação, entre outros.
As primeiras Ligas Camponesas8 surgiram no Brasil, em 1945, depois da ditadura
do presidente Getúlio Vargas. O movimento
tinha como objetivos básicos lutar pela reforma agrária e pela posse da terra. Neste movimento havia as ligas femininas, mas com raro
registro histórico.
É possível encontrarmos diversas tentativas de escritos feitos por mulheres, mostrando como a opressão/exploração das mulheres é fruto de um processo histórico de
construção. Portanto possível de ser mudado. Vejamos:
A escritora Simone de Beauvoir escreve o livro O Segundo Sexo em (1949),
ela começa a defender que a hierarquia
entre os sexos não é uma fatalidade biológica e sim uma construção social. Para
além da luta pela igualdade de direitos,
incorpora o questionamento das raízes
culturais das desigualdades, afirma:
“não se nasce mulher, se faz mulher”.
Para nós, feministas, marxistas, faz-se
mulher em um determinado tempo histórico, em um tipo de sociedade determinada por formas de relações entre as
8
classes, incluindo aí também raça/etnia,
gênero, geração e orientação sexual. Ou
seja, fazer-se mulher em cada tempo e
período de realização de um sistema social ganha conotações particulares cores
e matizes próprias e diversas.
Elizabeth Lobo no livro: A Classe Operária tem dois sexos, trabalho, dominação e resistência (1991), mostra o masculino e o feminino, e não apenas um,
como parece sugerir os estudos clássicos
e o discurso sindical dominante. Esse é o
ponto de partida de uma reflexão apaixonada sobre as relações entre gênero e
classe social, gênero e ação política.
Ivone Gebara (2001), fala da necessidade de uma reapropriação de poder
roubado, sendo que, este poder que falta
às mulheres, as coloca em desvantagem
em todos os aspectos com relação aos homens.
Apesar dos avanços que as mulheres
fizeram em muitos países, as diferenças
de gênero continuam servindo de fundamento para as desigualdades sociais,
de gênero e étnico-raciais.
As mulheres camponesas no decorrer da história entenderam que a
opressão de gênero e a exploração de
classe não servem para a humanidade.
Perceberam também que a ideologia de
dominação dos ricos sobre os pobres,
dos brancos sobre os negros e índios,
dos homens sobre as mulheres serve ao
interesse de manter a relação dominante. Isso também se dá na relação com a
natureza onde os humanos dominam e
exploram os bens naturais em vista da
concentração de riquezas.
Assim entendemos como a ideologia
dominante impede de ver, ou seja, vela e
encobre a realidade, naturaliza e justifica
as relações desiguais na esfera econômica,
política, social, cultural, de gênero, étnicoracial e com a natureza.
No Brasil, as ligas camponesas são conhecidas como a associação de trabalhadores rurais que se iniciou no Engenho
Galiléia, no Estado de Pernambuco, em 1955, a partir da reivindicação de caixões para os camponeses mortos. O temor dos grandes proprietários acabou por hostilizar o movimento que, junto ao advogado e político Francisco Julião,
tornou-se um movimento de amplitude nacional pelos direitos à terra, em defesa da Reforma Agrária.
Precisamos de uma consciência
crítica que nos permita ver
a realidade e os fenômenos
sociais, políticos, econômicos
e culturais e, assim, pensar
formas de superação desta
realidade e de construção de
uma nova sociedade.
Por isso, a importância da organização
das mulheres camponesas em um movimento autônomo, o MMC, tendo como missão
a libertação e emancipação da mulher, a
construção do projeto popular de agricultura a partir dos princípios da agroecologia e a
transformação da sociedade, na perspectiva
feminista e socialista.
1.3. Feminismo e a luta das
mulheres camponesas
pelo fim da violência, pela autonomia política e do corpo, entre tantas outras. Nunca se
conformaram com a condição de opressão,
exploração, discriminação e violência que foi
sendo um dos pilares de sustentação do escravismo, depois do feudalismo e hoje do capitalismo. Inclusive em algumas experiências
do socialismo real, as mulheres batalharam
muito para a busca de emancipação.
No mundo, os movimentos de mulheres
continuam resistindo e articulando a luta de
classe, popular e feminista. Mas, por muito
tempo foram se formando pré-conceitos sobre a luta feminista tanto na sociedade, quanto nos movimentos sociais. Isto aconteceu
porque o feminismo, além de ser uma atitude política que analisa as relações de gênero,
étnico-raciais e de classe, realiza o enfrentamento ao patriarcado e busca a construção de
uma sociedade igualitária com a socialização
do poder, das riquezas e do saber.
“Sempre que penso nas mulheres, me
vem à imagem de um rio enorme e
caudaloso que temos que atravessar.
Umas apenas molham os pés e
desistem, outras nadam até a metade
e voltam, temendo que lhe faltem as
forças. Mas há aquelas que resolvem
alcançar a outra margem custe o que
custar. Da travessia, vão largando
pedaços de carne, pedaços delas
mesmas. E pode parecer aos outros
que do lado de lá vai chegar um trapo
humano, uma mulher estraçalhada. Mas
o que ficou pelo caminho é tão somente
a pele velha. Na outra margem chega
uma nova mulher...”
Zuleica Alambert
A forma poética acima expressa como
tem sido a trajetória de luta das mulheres.
No processo de libertação dos povos, as mulheres sempre estiveram presentes nas lutas
por transformação da sociedade, se por um
lado foram ocultadas dos escritos, por outro
marcaram a trajetória histórica, tendo participação ativa em greves, guerras, revoluções
e nas lutas por direitos. Também tiveram um
papel de destaque na produção da sobrevivência como alimentação, saúde, educação e
O feminismo é uma referência histórica de análise das relações sociais de gênero,
étnico-raciais e de classe, expressos na luta
de dor, de resistência, de sangue, de valorização, de libertação e de emancipação das
mulheres no mundo.
15
O Movimento de Mulheres Camponesas afirma a luta feminista, popular na perspectiva socialista e agroecológica, construindo uma nova sociedade com novas relações.
Estas novas relações supõem compartilhar
o poder, as riquezas e o saber, superando a
dominação, a opressão, a exploração e a violência, cultivando o respeito e preservação
entre os seres humanos e deste com a biodiversidade, a natureza.
16
Neste sentido, o feminismo se constitui numa forma de pensar o mundo, a sociedade, o ser humano e as suas relações, afirmando as mulheres como protagonistas da
história, junto com todos os sujeitos sociais e
não apenas os homens, brancos, ricos, heterossexuais,... como impõe a cultura patriarcal, racista e a sociedade capitalista.
Além disto, o feminismo se constitui
também como uma teoria sociológica, ou
seja, uma forma de ver, analisar, refletir sobre
o mundo, a sociedade e as relações humanas
que traz como contribuição fundamental, a
reflexão de que todas as relações humanas
são relações de poder. E que estas relações
de poder podem ser de reciprocidade, respeito, pluralidade e policultura ou podem ser
de opressão, dominação, monocultura.
Ao trazer este elemento para análise,
as vertentes feministas também questionam todas as formas de naturalização das
desigualdades econômicas, sociais, políticas
e culturais que são impostas na sociedade.
Também contribuem para o desvelamento (tirar o véu que esconde a realidade) e o
rompimento da alienação que a sociedade
capitalista produz, onde os seres humanos já
não se reconhecem mais naquilo que produzem pela exploração que vivem.
Por isto, o feminismo na perspectiva
popular e socialista é uma ferramenta política de afirmação das mulheres como protagonistas da sociedade. Constitui-se como
uma teoria sociológica que, aliada ao materialismo histórico-dialético, contribui para
ver, desvelar, compreender o mundo, a sociedade, o ser humano e suas relações, bem
como, produzir consciência crítica de classe e
construir parâmetros, princípios e bases para
a construção de uma nova sociedade.
Por fim, cabe destacar que ao refletir sobre
a emancipação das mulheres é preciso
considerar:
8 A discriminação que as mulheres enfrentam em todos os aspectos da sociedade
humana e a indignação frente à realidade em que vivem marcadas pela sobrecarga de trabalho, dominação, exploração, discriminação e violência, geradora
de sofrimento, doenças e morte.
8 A importância da dimensão política e a
prática das mulheres de movimentos e
organizações sociais, as quais vêm descrevendo cenários de transformações e
mudanças efetivas na realidade em que
estão inseridas.
8 A inserção das mulheres nestes movimentos e organizações decorre de fatores relacionados com as necessidades econômicas, como também, fazem
parte de uma opção consciente de lutar
pela implantação de um projeto de sociedade que está em construção.
8 As mulheres camponesas que se identificam com a vida, a terra, a biodiversidade e sua preservação; tomam posição
e expressam sua indignação frente às
formas de destruição da vida buscando
romper com a concepção de naturalização dos fenômenos sócio-culturais, dos
papéis e relações sociais de classe, gênero, étnico-raciais.
Por isto, afirmamos:
sem feminismo
não há socialismo!
A situação da vida e saúde
das mulheres camponesas no Brasil
ea
luta por saúde
* Esta reflexão tem como base parte da dissertação de mestrado “Educação, Cultura Popular
e Saúde: experiências de mulheres trabalhadoras rurais” de Vanderléia Daron, 2003.
“Em muitas mulheres trabalhadoras rurais,
a vida começa correndo na frente do corpo.
Antes mesmo da fêmea se revelar nele,
elas desempenham as funções de mães,
mão de obra, costureiras, esteio da casa,
professora da família.
No campo a mulher faz-se adulta
antes de ser criança.
Cria filhos sem ter peito,
embala o irmão em lugar de boneca,
brinca de casinha em fogão de verdade.
Vigorosas como os brotos depois da chuva,
crescem feitos rebento, abrindo passagem”.
Gislene Silva
P
ara analisar a situação de saúde
das mulheres camponesas no
Brasil, é preciso analisar as condições de vida e cidadania dentro de determinado contexto,
identificando os impactos disso na saúde das
mulheres trabalhadoras rurais. Daí resulta a
necessidade de perceber que a igualdade de
direitos vem sendo historicamente negada às
mulheres, constituindo-se num fator de discriminação, evidenciado em relações desiguais
de poder tanto na família quanto no mundo
do trabalho e na sociedade em geral.
Esse processo vem associado à dinâmica geral da sociedade, visto que a riqueza se
concentra cada vez mais nos países
mais ricos9. Como a distribuição da
riqueza se dá de forma injusta, desencadeia processos desiguais na
economia, na política e na cultura. Pela opção das elites mundiais
e dos governos aliados, ao capital
em sua fase neoliberal, ou seja, o
“projeto da modernidade”10, pelo
qual a construção das relações se
dá em função do lucro, e não da
promoção da vida em todas as
suas dimensões, vêm se agravando as desigualdades entre ricos e
pobres, entre homens e mulheres, entre os países desenvolvidos
e os em desenvolvimento, e vem
sendo destruída a cadeia ecológica dos seres
vivos. Cada vez mais se consagra o poder do
capital sobre o trabalho, transformando a
vida em “mercadoria”, negando os direitos
humanos e de vida, solapando a democracia
e agravando a dependência externa dos países pobres frente aos direitos fundamentais,
como a questão da soberania alimentar, das
sementes, da água, das plantas medicinais,
colocando todos na lógica do mercado.
No caso específico da agricultura no
Brasil, desde a década de 1960, o setor
agropecuário e extrativista da economia
nacional vem sendo sistematicamente desnacionalizado em nome de diversas modernizações. A chamada “Revolução Verde”11
Fazem parte dos países mais ricos os Estados Unidos, Canadá, Japão, Inglaterra, França, Alemanha, Itália.
Importante e profunda reflexão acerca do projeto da modernidade encontra-se em PALUDO. Educação popular
em busca de alternativas: uma leitura desde o campo democrático e popular.Porto Alegre, Camp e Tomo Editorial, 2001.
11
Nas décadas de 1940 e de 1950, as fundações Rockefeller, Funcações Ford e Kellog, com apoio financeiro do
Banco Mundial e da ONU, introduziram pesquisas no campo das sementes de milho, arroz e trigo e de insumos
no México Filipinas e Índia. Esse processo de modernização foi denominado de “Revolução Verde”.
9
10
2
17
foi consolidando a agricultura industrial de
base química no mundo. No Brasil, os governos militares, bem como, os que se sucederam, deram continuidade a esse modelo de
modernização. Desde então, a agricultura
brasileira vem sendo submetida a diferentes
processos que a subordinam aos interesses
do grande capital industrial de base norteamericana. Contribui nesta análise Carvalho,
afirmando que a agricultura brasileira
18
vivenciou fases de mudanças tecnológicas
em que predominavam objetivos como o
aumento da produtividade, uniformidade e processamento; o deslocamento das
sementes não híbridas pelas híbridas; a
introdução de patentes de germoplasma
e, mais recentemente, os organismos geneticamente modificados. Essas mudanças
estavam e estão sob direção intelectual
(geração científica e tecnológica e políticas
públicas) dos intelectuais orgânicos dos
capitais multinacionais. Como conseqüência desses processos deu-se a ascendente
concentração e centralização oligopolista
das empresas privadas de sementes, a presença do capital multinacional na pesquisa
científica e tecnológica relacionadas com
as sementes e a pressão dessas empresas
na definição da legislação sobre a matéria.
(CARVALHO, 2002, p. 6).
Nesse sentido, o autor ressalta que os
governos brasileiros apoiaram essas medidas
de diversas formas, que vão desde as políticas
de subsídios agrícolas, à criação de instituições
públicas de pesquisa e assistência técnica, com
o objetivo de atuarem na consolidação das
mudanças tecnológicas induzidas pelas multinacionais. Como resultado desse processo há
o monopólio de empresas multinacionais nos
ramos de sementes, agrotóxicos, fertilizantes
químicos e de produção de fármacos. Os dados estatísticos ilustram esse quadro:
As 10 maiores empresas de cada ramo
controlam 84% do mercado mundial de
agro-químicos, 60% do mercado mundial
veterinário, 48% do mercado mundial farmacêutico e 30% do mercado mundial de
sementes. Cinco dessas grandes corporações estão presentes simultaneamente nos
quatro ramos assinalados: Phamacia (antes
a Monsanto); Syngenta (fusão da Novartis
e Astra-Seneca); Dupont; Dow Chemicals
e Aventis. Essas cinco empresas controlam
100% das sementes transgênicas do mundo e somente a Monsanto vendeu 94% das
sementes transgênicas plantadas em 2001.
(CARVALHO, 2002, p. 6).
Este processo de uso indiscriminado de agrotóxicos vem provocando sérios riscos à saúde humana,
animal e ao ambiente como um todo.
Pesquisa realizada durante sete anos num
hospital de Passo Fundo12 analisou seiscentos casos de crianças e levantou a hipótese
de que, em decorrência do uso de agrotóxicos, nasceram com deformações ósseas,
hidrocefalia, anencefalia, entre outras; muitas dessas nem sobreviveram; e a cada 1000
crianças, 4,5 nascem com anomalias.
Além disso, conforme Anvisa (2003,
p.3), num estudo científico sobre o impacto da
cultura do tabaco no ecossistema e na saúde
humana da região de Santa Cruz/RS, iniciado
em agosto de 1999 e concluído em novembro de 2001, pesquisadores da Universidade
de Santa Cruz do Sul, (Unisc), Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) concluíram que “as mulheres são mais afetadas
por distúrbios nervosos do que os homens”.
A pesquisa aponta uma série de elementos
e dados preocupantes comprovando que os
agrotóxicos, entre eles, os organofosforados
e os ditiocarbamatos, são produtos neurotóxicos que afetam o sistema nervoso por causa do seu elevado índice de toxidade. Dos
casos analisados, as maiores vítimas são as
mulheres. Ainda segundo a Anvisa (2003, p.
3), “outro dado preocupante é que 138 (44%)
dos entrevistados demonstraram um forte
grau de suspeição de morbidade psiquiátrica, sendo que a freqüência dos casos suspeitos foi maior em mulheres (60%) do que em
homens (31,6%)”.
Assim, a implantação desta lógica capitalista no campo ameaça os pequenos agricultores, sobretudo o trabalho das mulheres, sob
pressão das grandes indústrias de alimentos,
de sementes, de insumos agrícolas e de integrados. Dessa forma, colocam em perigo a
saúde e a segurança dos alimentos, a autonomia dos camponeses (as) e favorecem a privatização de bens coletivos, como a saúde, a
educação e o saneamento, entre outros.
12
A enfermeira Mara Taggliari realizou sete anos de
estudo num hospital em Passo Fundo RS - região
que tem alto índice de uso de agrotóxicos. Informações extraídas do Documento: Projeto de Sementes crioulas do MMA/SC.
Este modelo de consumo capitalista que
a sociedade foi incorporando com base na exploração dos bens naturais e na produção de
mercadorias descartáveis e não duráveis trouxe muitos prejuízos a saúde humana e ambiental. A cada dia percebemos o aumento de
doenças, empobrecimento do solo, a falta de
água, a perda da biodiversidade entre outras,
devido ao uso exagerado de agrotóxicos, monocultivos, desmatamentos, a poluição das
indústrias, lixo, enfim... o planeta não agüenta
mais esta forma de vida e reage com catástrofes, secas, enchentes, ciclones, doenças,
epidemias,..., provocado pelo aquecimento
global e pela destruição da natureza.
Para esta lógica de desenvolvimento
capitalista neoliberal continuar acumulando
riquezas, a América Latina deverá fornecer
para os países ricos matérias primas agrícolas e matérias primas minerais (ferro, gás,
petróleo, etanol). Por isso, a estratégia das
empresas transnacionais do agronegócio
ganha força e incentivo político e financeiro
nos países da América Latina, especialmente
o Brasil.
O agro-combustível é uma aliança de três
grandes matrizes do capital transnacional13
13
14
imperialista do mundo que controlam as sementes, petróleo, maquinários e carros formando uma rede de grandes lucros. a) Na
agricultura - ADM, Cargil, Monsanto, Bunge,
Sinngenta, Bayer e Dupont através da engenharia genética, transgênicos... controlam o
comércio das sementes; b) no setor energético as transnacionais: Shell, Total e Bristish
Petroleum... controlam o petróleo; c) nas
indústrias automotoras, como: Volkswagen,
Peugeot, Citroen, Renault e Saab a fabricação de maquinários e automóveis com etanol e agro-combustível.
Essas três matrizes formam atualmente uma parceria inédita transnacional com o
discurso de garantir energia para o consumo
exagerado dos países ricos. Este processo
acelera o desmatamento, o desaparecimento de espécies nativas, a perda das propriedades físicas e químicas do solo com os monocultivos da soja, cana-de-açúcar, mamona,
canola. Se acentua o desrespeito aos direitos humanos, trabalho escravo, mortes por
exaustão (excesso de trabalho), como também, a falta de alimentação e o aumento da
fome no mundo.
Por outro lado, estas empresas transnacionais impõem uma forma de integração dos pequenos agricultores neste modelo, através dos chamados “integrados” (de
frango, suínos, fumo), onde cerca de 70% da
produção brasileira de aves e suínos provém
de estabelecimentos com menos de 50 hectares14. Desta maneira, o trabalho e a produção dos camponeses estão cada vez mais
dependentes e com poucas possibilidades de
buscar outras alternativas.
As empresas de celulose estão fechando suas fábricas nos Estados Unidos e na
Europa e se instalando na América Latina.
Aqui encontram muita terra, água, clima favorável, mão de obra barata e governos dispostos atenderem seus interesses. Mais de
90% da celulose produzida no Brasil é para
a exportação.
Eric Holt Gimenez, coordenador da organização Food First,
MENEGHELLO, Geri E., KOHLS, Volnei K., BARUM, Alexandre O., BEZERRA, Antônio J. A.., RIGATTO, Paulo SISTEMAS INTEGRADOS DE FRANGOS E SUÍNOS: UMA VISÃO DOS PRODUTORES
Rev. Bras. de AGROCIÊNCIA, v.5 no 2, 166-170. mai-ago,1999
19
20
A empresa transnacional, sueco finlandesa, a Stora Enso está invadindo nosso
território comprando de forma ilegal e/ou no
nome de outros, chamados “laranjas15” áreas no Rio Grande do Sul, próximo à fronteira
com o Uruguai para plantar eucaliptos, pinos
para indústria de celulose e exportar para
os países ricos. Desrespeitando o artigo 20,
parágrafo 2 da Constituição Federal que diz:
estrangeiros não podem adquirir terras em
uma faixa de 150 Km da fronteira do Brasil
com outros países a fim de garantir a soberania nacional. Além de ameaçar a soberania
do país estão destruindo as riquezas naturais
como o aqüífero guarani e o Bioma Pampa,
expressão da biodiversidade nesta região
para atender a demanda de consumo de
seus países.
Atualmente a Aracruz Celulose S. A. é a
maior produtora de celulose branqueada de
eucalipto no mundo, representa 35% da produção mundial, produz cerca de 2,4 milhões
de toneladas/ano. Utiliza exclusivamente
plantio de eucalipto para produzir celulose
de fibra curta de alta qualidade, como papel
para imprimir e escrever. A mesma empresa
possui 263 mil hectares de terra própria no
Espírito Santo, além de mais 81 mil hectares
consorciados com agricultores/as. Mais a
unidade de Guaíba/RS, outra na fazenda Barba Negra, em Barra do Ribeiro/RS.
Outra empresa de celulose é a Votorantin Celulose e Papel – VCP, que está investindo na área florestal, adquirindo terras
para o plantio de eucalipto no Estado de São
Paulo, em regiões próximas às fábricas e a
implantação de uma nova reserva florestal
da VCP no Sul do Estado do Rio Grande do
Sul podendo eventualmente incluir o norte
do Uruguai, com a compra já efetuada de 66
mil hectares de terras.
Todas nós sabemos do potencial de recursos naturais estratégicos: água doce, biodiversidade, madeira, minérios entre outros
que compõe o bioma da Amazônia: Também
sabemos da ofensiva das transnacionais na
15
exploração da madeira, dos minérios, do
alumínio e agora na exploração dos recursos
hídricos para a construção de hidroelétricas
e a exploração da biodiversidade como matéria prima básica para fármacos, transgenia
e nanotecnologias. Só no ano de 2007, foram
destruídos 7 mil km2 da mata amazônica
para a criação de gado, já que em outras regiões do Brasil avança os monocultivos de soja,
cana-de-açúcar para a produção de etanol e
agro-combustível.
Outra questão que preocupa os povos
da Amazônia é a medida provisória número
422 de março de 2008, que legaliza as terras
públicas griladas até 1500 hectares. Até março de 2008, o Incra podia dar títulos aos posseiros que tivesse posse comprovada até 100
hectares. A gravidade desta medida é que ela
rompe com o princípio de posse de estar morando e trabalhado na terra, além do latifúndio poder regularizar as terras griladas.
Também o presidente revogou a portaria do Incra que tinha poderes de regularizar áreas quilombolas. Assim que uma
comunidade apresentava requerimento ao
Incra, este designava peritos para análise. Ao
se comprovar, o Incra encaminhava a posse
coletiva da terra direito garantido na Constituição Federal, às comunidades indígenas
e quilombolas. Mais uma vez o governo tira
Inicialmente, a Stora Enso adquiriu as terras em nome da Empresa Derflin, que é o braço da multinacional
para produzir matérias-prima. Como a Derflin também é estrangeira, não conseguiu legalizar as áreas.
Por isso, a Strora Enso criou uma empresa laranja: a Agropecuária Azenglever, de propriedade de dois
brasileiros:João Fernando Borges e Otávio Pontes (diretor florestal e vice presidente da Stora Enso para a
América Latina, respectivamente).Eles são atualmente os maiores latifundiário do RS.
direito e favorece as multinacionais. No Estado do Pará estão 50% de todas as áreas de
remanescentes quilombolas e muitas dessas
áreas estão griladas por grandes empresas
como Aracruz e a Vale.
O semi-árido brasileiro é uma área que
abrange oito Estados do Nordeste, onde moram 36 milhões de pessoas. É um bioma com
características próprias, onde chove entre
300mm a 800mm/ano. A caatinga, a mata
branca dos nativos Tapuias guarda uma biodiversidade maravilhosa. É uma espécie de
planta milenar que há 12 mil anos enfrenta
sabiamente as mudanças climáticas adaptando-se e enfrentando vigorosa e firme até
os dias atuais a brutalidade e violência dos
modelos de desenvolvimento econômico.
75% das áreas do planeta são de climas semi-árido ou árido. O semi-árido brasileiro é o
mais populoso e é onde chove mais.
O maior problema no
armazenamento de água no
semi-árido é protegê-la da
evaporização e garantir sua
qualidade.
As grandes empresas no intuito de
ganhar dinheiro retomam um projeto ainda
do tempo do imperador D. Pedro II de fazer
a transposição do Rio São Francisco. De lá
para cá a engenharia, aperfeiçoando as técnicas de transporte de água a longa distância,
aprimora formas de exploração da natureza
e do povo a serviço dos interesses do grande
capital transnacional. Grandes obras favorecem a grandes empresas onde 70% da água
devem ser destinadas a projeto de irrigação,
26% para o abastecimento urbano e 4% para
as populações rurais. Quem mesmo irá se
beneficiar com este projeto?
De outro lado, o povo do
semi-árido desenvolveu
cisternas adaptadas às famílias
e sua realidade de trabalho.
Em Brasília na Câmara dos Deputados
e no Senado tramitam vários projetos de interesses das transacionais, vejam alguns a
seguir:
1. Projeto 6424/05, propondo a redução
da reserva legal obrigatória na Amazônia
passando de 80% para 50%, ainda permite que a área de reserva seja também de
monocultivos de árvores exóticas como:
eucaliptos, palma de dendê entre outros;
1
Projeto de Lei nº. 2.335 de 2007, que
22. Opropõe
Alteração da Lei de Cultivares.
Este projeto vai restringir os direitos dos
agricultores de guardar parte de sua colheita para usar como semente para o
plantio no ano seguinte. Também impedirá que o produto seja comercializado
sem autorização do dono da propriedade intelectual da semente ou muda, ou
seja, para comercializar seu produto o
agricultor(a) terá que pagar uma taxa ao
dono da variedade (royalty).
da Lei de Biossegurança que
33. Alteração
permitir a utilização, registro, patenteamento e licenciamento das Tecnologias
Genéticas de Restrição de Uso, popularmente conhecidas como sementes
Terminator, através do PL 268/2007. Se
o uso destas tecnologias for liberado no
Brasil, as empresas poderão produzir e
comercializar sementes de plantas transgênicas estéreis. Os riscos a saúde e ao
meio ambiente destas tecnologias ainda
são pouco conhecidos, o que torna muito
arriscada a sua utilização.
4. Flexibilização dos critérios de importação
e simplificação dos procedimentos de registro dos agrotóxicos no Brasil. Existem
grandes pressões no Senado e na Câmara
por parte das empresas químicas no sentido de facilitar o registro de novos agrotóxicos e promover a circulação destes
produtos nos países do Mercosul. O governo já autorizou o registro de produtos
por equivalência. Isto quer dizer, se o produto for considerado semelhante a um
produto que já está registrado, não precisará passar por uma série de testes que
4
21
medem os impactos da utilização deste
produto para a saúde e o ambiente.
5. Projeto de alteração dos Direitos previ5
denciários. O governo aprovou a Medida
22
Provisória 410/2008, que vai para discussão e votação no Senado Federal e passa
a se chamar Projeto de Lei de Conversão
– PLC 08/2008. Ressaltamos os principais
pontos que nos preocupam e com os
quais não concordamos na Medida Provisória: 1) Artigo 48 § 3º - Mudança de
idade para aposentadoria: a Constituição
de 1988 no Art. 201 inciso II garante ao/a
segurado/a especial a aposentadoria aos
55 anos para a mulher e de 60 anos para
o homem. Chamamos atenção para a gravidade e inconstitucionalidade da Medida Provisória que aprovou que para o/a
trabalhador/a rural que não comprove
consecutivamente 15 anos de atividade
rural, a mulher se aposentará com 60
anos e o homem com 65 anos de idade.
A medida também trata de contratos de
curta duração sem obrigação de carteira
assinada. Ainda no Artigo 25 § 11 trata de
pagamento do IPI dos produtos artesanais e industrializados, isto é uma ameaça, pois, se o agricultor/a comercializar
produto que esteja sujeito à cobrança de
IPI, ele perde a condição de segurado/a
especial. Entre outros pontos que levam
o trabalhador (a) rural perder direitos.
Além disso, esta medida carimba recurso
do crédito rural para habitação, nós defendemos que o governo fortaleça uma
política específica para a habitação rural.
Esses e outros projetos que tramitam
na Câmara Federal e no Senado vêm comprometer a vida e o trabalho das camponesas
(es). Vão beneficiar o agronegócio e o grande
capital transnacional. Precisamos tomar cuidado, pois através dos meios de comunicação são apresentados como ação inovadora,
tecnologia, avanço científico..., mas a serviço
de quem? Quem irá se beneficiar com esses
projetos? Quais serão as conseqüências na
vida cotidiana?
“Depois de a última árvore sem
frutos, o último rio envenenado,
o homem perceberá que
dinheiro não se come.”
Gustavo de Assis
Além da pobreza, dos milhões de famintos, crescem as desigualdades salariais,
as péssimas condições de trabalho, o trabalho não reconhecido e/ou não remunerado,
a comercialização do corpo das mulheres e a
violência sobre as mulheres e crianças. Estatísticas internacionais indicam que uma em
cada três mulheres é ou já foi agredida pelo
parceiro. No Brasil, estudos baseados nos
boletins de ocorrência emitidos pelas delegacias apontam que cerca de 25% da população feminina é vítima de violência.
Segundo documentos da ONU, a violência contra as mulheres está fortemente
enraizada no mundo inteiro, pois a discriminação atinge as mulheres do berço ao túmulo. Conforme o documento, além de sofrer
violência física, as mulheres são discriminadas no acesso à saúde, à educação, ao mercado de trabalho, ao título de posse da terra,
entre outros.
De outro lado, as grandes forças econômicas mundiais, representadas por empresas
dos Estados Unidos, para manter seu poder
econômico, político e cultural, vêm mostrando que não há limites para sua ação quando
suas políticas são ameaçadas; se necessário,
usam da guerra para destruir os que resistem
ou enfrentam suas políticas, como é o caso
da guerra contra o Iraque.
Ao mesmo tempo, cresce a pobreza no
campo, com a exclusão das classes populares e a discriminação de mulheres, negros,
índios, idosos e crianças. O acesso dessas
pessoas aos serviços de saúde e educação e
às necessidades básicas, inclusive a alimentação, fica, muitas vezes, situado no embate
entre os interesses do lucro, de um lado, e,
de outro, a necessidade de garantia desses
direitos preconizados na Constituição. No
entanto, para as elites capitalistas no Brasil
e governos aliados às suas políticas, a saída
apresentada para o campo foi políticas compensatórias, a exemplo do Banco da Terra,
uma solução de “mercado” para um enorme
problema social que só pode ser resolvido
através de uma profunda reforma agrária.
No âmbito de Brasil, segundo Melo ,
com base num recorte de gênero,
16
a estrutura de mercado de trabalho brasileiro, no qüinqüênio de 1993/1998, observa-se uma taxa de participação em dobro
de mulheres que trabalham sem remuneração. Esta taxa chega a ser escandalosa
quando se observa o caso das mulheres rurais, onde 815 delas trabalham sem remuneração; isto de um lado desnuda a questão da invisibilidade do trabalho feminino,
de outro explica a pobreza que ronda os
lares rurais. (MELLO, 2002, p. 10).
Percebe-se que a pobreza tem, cada vez
mais, a expressão das mulheres. A própria
Organização das Nações Unidas atesta que
as mulheres representam 70% da população
que vive em estado de miséria. As mulheres camponesas, que, além de enfrentarem
a dureza das conseqüências desse modelo
como todos os trabalhadores rurais, acabam
sentindo na pele as marcas da sobrecarga de
trabalho de sol a sol na roça, do cuidado com
a casa, comida, roupas, animais, pomar, horta, entre outras tarefas cotidianas, da opressão, da discriminação e violência, marcas
desse modelo de sociedade que determinam
seu caráter perverso e desumano17.
Na esfera da economia, especificamente na produção, as mulheres enfrentam
o centro da lógica neoliberal, que é acabar
com a soberania alimentar dos povos, pois
são as mulheres que, historicamente, vêm
cumprindo essa função na propriedade.
Além disso, o fato de elas sempre terem trabalhado ao lado dos homens na roça, o reconhecimento da profissão de trabalhadora
rural só foi conquistado com muita luta das
mulheres em 1988, sem, contudo, ter havido
mudanças na administração dos bens produzidos coletivamente. Ainda, a par disso, pelo
fato de serem as geradoras da vida humana,
as mulheres acabam assumindo o conjunto
das responsabilidades (no espaço privado)
pelos cuidados, proteção e educação dos filhos (as), reproduzindo a força de trabalho
16
17
que sustenta o próprio sistema.
Na esfera da política, encontra-se quase
que em todos os espaços a mulher ocupando
as funções de serviços e de representação.
No entanto, os espaços de decisão ainda prevalecem como lógica prioritária dos homens.
Certamente, é esse um processo histórico e
que exige atuação das mulheres, de um lado,
e, de outro, mecanismos de democratização
e incentivo à participação dentro das famílias, nas comunidades rurais, nas entidades
(movimentos, sindicatos, cooperativas, partidos etc.). Também requer condições para
que as mulheres possam participar, como a
divisão das tarefas domésticas, rodízios de
participação em mobilizações, solidariedade, entre outras, que precisam ser construídas para que a participação não fique só no
discurso, mas se efetive.
Na esfera da cultura, a opressão e a
discriminação sobre as mulheres sustentamse pela ideologia burguesa machista, que,
quando não consegue a hegemonia pelo
convencimento das mulheres de que sua
condição é esta e que deve ser assim, vale-se
da repressão e da violência para oprimi-las.
Neste campo, percebe-se um crescimento de
músicas que discriminam e colocam a mulher
numa condição inferior à do homem, como
veiculando a idéia de que apanhar faz bem
(como a música “um tapinha não dói”, e “ajoelha e chora”), bem como, reforço a formas
de comportamento que consideram a mulher numa posição inferior; em propagandas
que utilizam o corpo da mulher como objeto.
Além disso, a educação ainda é sexista, ou
seja, educam-se as mulheres para a reprodução e os homens para a produção, reforçando comportamentos discriminatórios.
No I Fórum Internacional em Defesa da
Saúde dos Povos, realizado em Porto Alegre
durante o II Fórum Social Mundial, em janeiro de 2002, afirmou-se a necessidade de
denunciar os efeitos das macropolíticas de
ajuste sobre a saúde dos povos e de agir no
sentido de mudar a direção do processo hegemônico em curso:
Hildete Pereira de Melo é professora da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Esta análise baseia-se no texto “A afirmação da cidadania na luta das mulheres trabalhadoras rurais” na obra
Direitos humanos no Brasil: diagnóstico e perspectivas”, de DARON, V.L.P.; GUADAGNIN, I. Rio de Janeiro: Ceris, 2003. p. 130-134.
23
Esse contexto demonstra o quanto o
respeito à vida, aos direitos humanos e à saúde das classes populares e, especialmente,
das mulheres camponesas ainda está longe
de ser efetivado. Como conseqüência desse
processo, a vida das mulheres
é marcada pela baixa auto-estima, pela falta
de poder, discriminação, pelo medo e pela
dependência [...]. Por outro lado, a atual
situação dos homens também não é nem
confortável, nem saudável. [...] O custo da
negação de parte de si mesmos em favor
da cultura de masculinidade e do exercício
deste tipo de poder traz sérias conseqüências para a saúde dos homens. (COSTA,
2000, p. 12).
24
Queremos denunciar ao mundo os efeitos
devastadores das políticas de ajuste macroeconômico e da militarização das relações
internacionais, sobre a possibilidade e a
qualidade de vida dos povos, e afirmar que
esses efeitos não são acidentes excepcionais das políticas econômicas neoliberais,
mas sim a própria essência de uma lógica
que objetiva a maximização do lucro, a destruição da capacidade de seguridade social
dos Estados e da própria identidade dos
estados nacionais, dividindo o mundo através de um imenso apartheid social, onde
regiões, países e continentes são relegados
à condição de expectadores da monstruosa acumulação de capitais internacionais.
Disto resulta a face mais impiedosa da chamada globalização econômica ou mundialização do capital: a profunda iniqüidade
que se estabelece com uma lógica perpetuadora da injustiça social, tornando os ricos
cada vez mais ricos e os pobres desesperadamente mais pobres, com a fragilização
da vida infantil e da terceira idade e a feminilização da pobreza. (...) A saúde como
expressão complexa das determinações
econômicas e sociais sobre as condições
de vida, é um campo de luta pelo pleno
respeito aos direitos sociais, econômicos e
culturais dos povos. A saúde é um direito
humano essencial, direito fundamental de
cidadania e um bem público. È dever do
Estado, ao qual desejamos como defensor
do interesse público, defendendo esses interesses na arena do mercado, evitando a
mercantilização da saúde. (FSM, 2002).
Cabe ressaltar que as mulheres sentem com mais intensidade essas marcas e,
por isso, são as que mais utilizam os serviços
de saúde (em busca de atendimento para si
e para seus familiares), que mais consomem
remédios e que mais têm depressão. Ao procurar os serviços de saúde, entretanto, acabam não resolvendo seus problemas, porque
a forma como se encara a saúde da mulher
não enfrenta as causas verdadeiras que incidem sobre o processo saúde-doença vivenciado por elas.
A estória contada por uma médica
psiquiátrica18 caracteriza um pouco o que
ocorre com uma mulher ao buscar atenção
à sua saúde. Ilustrativamente a personagem
é chamada de “Maria com vergonha de ser
mulher”:
Vamos acompanhar a trajetória de uma mulher que vamos chamar “Maria com vergonha de ser mulher” no serviço de saúde à
procura de alívio para seu sofrimento. Ela
tem em geral de 30 a 45 anos de idade, mas
com aparência de muito mais, quase não
consegue mais trabalhar fora, mas em casa
a jornada continua a mesma. E, quando chega à médica de loucos, já passou por vários
especialistas: neurologista, ginecologista,
cardiologista... As suas queixas são vagas:
dor de cabeça, irritabilidade com as crianças,
histeria, desinteresse pela vida, desinteresse
18
Assuncion Caputti é uma médica psiquiatra feminista. A história apresentada foi relatada durante a
Oficina Estadual do MMTR sobre a Saúde da Mulher, realizada em Passo Fundo em julho de 2000;
foi uma homenagem especial feita às mulheres da
1ª Conferência Municipal da Mulher de Bom Jesus/
RS – abril de 2000.
por seus afazeres, sensação de vazio na cabeça, dormência no coração, sem prazer nas
relações sexuais, choro sem motivo, palpitações, entre outras. Mas já tem o rótulo: É só
nervos! Mas não tem solução. O único jeito
é tomar uns medicamentos - “todos fraquinhos” (Lexotam, Diempax, etc.), receitados
por aqueles que não sabem o que fazer com
suas queixas e lembram que as mulheres são
as que mais consomem medicamentos. Nas
consultas seguintes, refazemos com “Maria
com vergonha de ser mulher”, um caminho
de desconhecimento e silêncio sobre seu corpo e de submissão ao que se convencionou
ser mulher. Mas ela sente um desconforto,
um mal-estar com este papel, essa situação
que não consegue expressar em palavras,
que lhe foram cassadas ao longo do tempo,
só através de sintomas físicos ou emocionais
que os profissionais de saúde, em geral, não
aprenderam a decifrar e que tentam abafar
com a medicação. Tentamos então, ajudar
a “Maria com vergonha de ser Mulher” a
recuperar sua voz, sua auto-estima, abrir a
“caixa de Pandora”19 e entender seu silêncio.
Ao abrir esta caixa, percebe-se que: a) ainda
menina foi molestada sexualmente por um
adulto em quem confiara e que a usou seja
por ameaça ou porque não acreditaram nela;
b) vendo sua mãe apanhar todo dia do pai,
pensou que era natural; c) ao se tornar mãe,
ainda adolescente, perambulou sozinha pelos hospitais atrás de uma vaga, porque afinal
ela não se cuidou, porque ser mãe é padecer
no paraíso; d)na 20ª vez que não se cuidou
apareceu o parceiro e exigiu que abortasse,
mas como é proibido, deu um jeito sozinha
e foi parar na emergência do hospital, onde
a deixaram sangrar quase até morrer porque
tinha cometido um crime; e) aos 35 anos de
idade começou a se sentir meio esquisita antes de menstruar, estava com TPM (Tensão
Pré Menstrual); f) aos 37 anos, como sangrava demais, tiraram seu útero e limparam
tudo, afinal, já tinha quatro filhos. Ela queria
tratar e conservar seu útero, sua mãe menstruou até os 52 anos, mas mais uma cruz calou e submeteu-se e pensou “que bom que
tenho um calmante senão enlouqueço”. Mas
tudo veio à tona quando sua filha de 14 anos
falou (porque ela ainda tinha voz) que o padrasto alcoolizado tentara molestá-la sexualmente. Dona Maria achou que era a hora de
resgatar sua voz na voz da filha. Não podia
ser conivente com o silêncio com o que tinha
acontecido. Precisava resgatar sua auto-estima e tornar-se “Maria Sem Vergonha de Ser
Mulher”.
25
A estória transcrita traduz na vida de
uma mulher um conjunto de situações cotidianas que ela enfrenta e a que se submete,
acabando muitas vezes sem força de reação,
doente; faz refletir sobre as imagens da mulher construídas historicamente e que incidem em seu processo de saúde/doença e na
forma como ela é tratada. Por muito tempo,
a mulher foi vista como “fábrica de bebês”,
de modo que bastava cuidar do útero e mamas em seu corpo; por conta disso, pensar a
saúde da mulher era o mesmo que pensar o
processo reprodutivo. Ademais, a mulher é
a “cuidadora”, mas ninguém pergunta o porquê dela ser a cuidadora e o porquê de ninguém cuida da cuidadora.
Buscando compreender um pouco
mais o que se passa com as mulheres, a estória procura trazer à tona alguns aspectos
assustadores Os sintomas de doenças muitas vezes é o desgaste do seu dia-a-dia onde
ninguém ouve seus planos, seus desejos, sua
sexualidade. A tripla jornada que a mulher
enfrenta, o trabalho doméstico não reconhecido, a dependência econômica, a não
autonomia sobre seu corpo, o sentimento
de culpa, inferioridade, gera um conjunto de
19
Conforme o mito de Pandora, havia uma caixa cheia
de segredos que ninguém poderia tocar.
26
situações onde a deixa sem forças de enfrentar e mudar as relações anulando sua participação no processo de decisão.
com o respeito às diferenças, o acolhimento
às queixas das mulheres em espaços de escuta e de educação em saúde.
Esse cotidiano faz parte
do universo das mulheres
brasileiras, especialmente
das trabalhadoras rurais e
urbanas, apesar de não ser
exclusividade das mulheres
das classes populares, pois
a discriminação de gênero
perpassa as classes sociais.
Esta reflexão encontra espaço nas reuniões de mulheres. Num dos grupos de mulheres
camponesas estava o nome de várias mulheres
mortas e os comentários feitos foram:
No entanto, as possibilidades que se
colocam para as mulheres das classes populares são diferentes das que estão na classe
dominante, pois as relações de gênero e classe se entrelaçam. A estória transcrita traz
elementos do processo de saúde/doença
que envolve o indivíduo nas questões objetivas, subjetivas e intersubjetivas, com o meio
em que vivem, as relações que estabelecem
com as pessoas, com a natureza e as relações
sociais no espaço da produção e na esfera da
reprodução, do poder e da cultura. São aspectos que na maioria das vezes os profissionais de saúde sequer consideram na relação
que estabelecem com as pessoas que procuram os serviços de saúde. Os processos de
atenção às doenças, construídos pela medicina moderna, não dão conta da complexidade que é pensar a saúde, cujo centro deveria
ser a compreensão da “teia da vida”, e não
somente as doenças como são hegemonicamente tratadas atualmente.
Por outro lado, a estória traduz a possibilidade da busca e do processo de transformação de uma mulher com vergonha, culpa,
submissão, medo e resignação para uma mulher sem vergonha, liberta, que aprendeu a
ter voz e fazer valer seus direitos, que exige
que os profissionais de saúde a escutem, que
se coloca enquanto sujeito ativa, construtora
da história. Levanta a necessidade de a violência ser encarada como problema de saúde
pública; de que o sistema público de saúde
(SUS e dentro dele o PAISM) se implemente
como uma nova forma de pensar a atenção
integral à saúde de todos e das mulheres,
com participação popular e controle social,
“Estas foram companheiras que morreram
por causa do machismo e escravidão, agrotóxicos e medicamentos químicos. Uma
delas, o marido era tão egoísta e machista
que, como ele sabia que tinha câncer de
intestino e ia morrer logo, enquanto teve
forças, matou a mulher a pauladas e depois
se matou, para não dividi-la com os filhos e
com o grupo de mulheres”.
Depoimentos, cartas, histórias contadas pelas mulheres nos encontros, nos grupos de mulheres camponesas demonstram
o quanto essa condição produz medo, ansiedade, angústia, sentimento de culpa e impotência diante da realidade. As mulheres vão
desvelando essa face oculta à medida que
vão participando do Movimento de Mulheres, que vem se constituindo num espaço de
acolhimento, de valorização, de reconhecimento da mulher como ser humano e sujeito
político e social.
Ao perguntar às mulheres quais as maiores dificuldades que enfrentam em sua organização no MMC o que mais aparece é a dificuldade de participarem, ou seja, de saírem de
casa, de perderem o medo e a vergonha, de
conseguirem se libertar dentro do espaço familiar na sua relação com o marido, onde muitas
são estupradas, pisadas e não ouvidas.
Por isso, a dura realidade vivenciada
pelas mulheres camponesas constitui-se na
matriz da emergência da luta por saúde no
MMC. Essa condição é que leva as mulheres
se organizarem e buscando, através da luta
por saúde e de outras lutas mais gerais, um
novo modo de viver e de se relacionar.
Ademais, vale trazer presente também
que a lógica com que se tratou a saúde da
mulher historicamente fez-se a partir de uma
visão dualista de corpo, a idéia do corpo como
uma máquina, da intervenção do homem sobre o corpo da mulher, a tecnologia pensada
pelos homens sobre as mulheres e uma visão religiosa e teológica calcada num Deus
masculino que controla as ações da mulher.
As duras marcas dessa realidade segregadora
e discriminadora constituem o núcleo estruturante da resistência popular das mulheres
camponesas frente a essa condição que não
está aí por acaso, mas dentro de um modelo
que se impõe mundialmente.
para o meio rural ele ainda é insuficiente e o
que existe não está ligado à realidade de quem
vive, mora e trabalha na roça. Além disso, os
profissionais de saúde não estão preparados
para trabalhar com essa realidade20.
Assim, a experiência que vem
sendo desenvolvida pelas mulheres
camponesas através das lutas, ações
e organização no MMC tem como
bases estruturantes:
A realidade marcada pela opressão, disAa) criminação,
sobrecarga e violência, uma
realidade dura, segregadora, desigual e
excludente, produtora de uma dinâmica
de doença e morte das pessoas como
sujeitos sociais e políticos. O núcleo duro
dessa realidade vivenciada e experimentada pelas mulheres camponesas como
ser individual e, de forma coletiva, como
classe e gênero, constitui-se como matriz da emergência da luta por saúde no
Movimento de Mulheres Camponesas;
libertação/emancipação: sentido
Bb) Vida,
profundo da luta por saúde no MMC,
Por outro lado, é preciso construir políticas e ações de atenção integral à saúde das
camponesas e de toda a população do campo e da floresta. São milhões de camponeses
(as), ribeirinhas, sem terra, assentados pequenos (as) agricultores (as) populações que
residem em comunidades remanescentes de
quilombos, reservas extrativistas e comunidades tradicionais e indígenas, que precisam
ter atenção à saúde com o respeito à realidade, necessidades, cultura e modos de vida.
Isso porque o campo da implantação de políticas de saúde, apesar da conquista constitucional da saúde como direito e das leis que
regulamentam o Sistema Único de Saúde,
por caracterizar-se como uma práxis
portadora de uma dinâmica educativa
popular e de uma mística de libertação
como mulher, gênero, classe e enquanto nação;
construção da saúde integral pela
Cc) Apráxis
das mulheres camponesas é um
dos pilares da luta por saúde. Aqui, vale
salientar a concepção popular de saúde
subjacente a essa experiência;
d) O sentimento de pertença ao movimenD
to como forma determinante para resistir e se construir como gente, tendo
mais vida, saúde e dignidade, ou seja, de
20 Interessante analisar como de fato o SUS no meio rural ainda é insuficiente em sua implantação. As várias
reivindicações apresentadas ao Ministério da Saúde pelos movimentos do campo evidenciam a fragilidade
desse sistema, que tem dificuldades de funcionamento no meio rural; ao mesmo tempo, denotam a necessidade
de repensar políticas tanto para o sistema de saúde quanto para o redirecionamento da lógica do desenvolvimento rural e urbano brasileiro. São sinais de que a população rural, composta de uma diversidade de sujeitos
como os sem-terras, as mulheres camponesas, as quebradeiras de coco, as populações ribeirinhas, remanescentes de quilombos, pequenos agricultores, atingidos por barragens, jovens, idosos, crianças, indígenas, entre
outros, está completamente excluída dos processos de desenvolvimento e das ações e políticas de saúde. Essa
caracterização provocou o surgimento do “grupo da terra” dentro do governo para pensar políticas capazes de
responder às necessidades e demandas apresentadas pelos movimentos do campo. De qualquer maneira, apesar
de um passo significativo, isso ainda é insuficiente se pensarmos os limites que têm as políticas públicas numa
sociedade subordinada aos interesses do capital internacional.
27
sair da lógica da exclusão na sociedade,
evidenciando a relevância da dimensão
política enquanto ser humano;
A potencialidade e as possibilidades
Ee) que
a luta e o trabalho em saúde pro-
28
porcionam para as mulheres, suas famílias, comunidades; o potencial das
relações que a saúde estabelece com o
cotidiano, com a vida, com a natureza,
com a produção, com o corpo, com o
ser mulher, com a cultura popular, com
a fé e a religiosidade, com o desenvolvimento, com a política pública, com o
enfrentamento das causas da fome, miséria e doença.
Como afirma uma dirigente do movimento: “Lutar por saúde exige se contrapor
ao projeto neoliberal, do lucro e da morte de
milhões de pessoas, como conseqüência de
um modelo centrado no lucro e não na saúde”. Há um entendimento comum no movimento acerca do tipo de enfrentamento que
é feito ao lutar por saúde, cujos interesses
em jogo são pesados e poderosos, porque se
contrapõe o projeto de vida com o modelo
da doença em vista do lucro para alguns, que
colocam a vida à mercê dos interesses econômicos hegemônicos.
A distância entre pobres e ricos
Articuladas às bases que dão solidez a
luta por saúde, está a relação com a mudança da realidade e a construção de um novo
projeto de sociedade.
O jeito próprio de fazer saúde apresenta aspectos fundamentais para a análise
sobre os modos de cuidar da saúde, promovendo, protegendo e curando; evidenciando
uma dimensão educativa da luta por saúde
no MMC a partir da educação popular.
- Não tema querida! Quando nos alcançarem,
estarão todos derretidos pelo aquecimento global!
Vem...,
Que somos mulheres gerando a vida,
gerando guerreiros
e guerreiras de cabeças erguidas!
Marchando, lutando,
com força, com brio,
construindo com garra,
com força que ampara a utopia,
o sonho de um novo Brasil!
Fragmentos do poema de Daniel Salvador
Mulheres camponesas,
saúde e construção do
Popular de
Projeto
Agricultura
29
A
o estudar a agricultura camponesa vimos que ela ao longo
dos tempos foi se constituindo
como um modo de vida com
valores princípios e limites. Ali
o trabalho familiar procura garantir a produção diversificada de auto-sustento e renda. Possui uma ciência de combinar a produção vegetal e a criação animal o ano todo.
Na agricultura camponesa o ambiente: terra,
água, sementes, plantas, animais fazem parte das relações de convivência e de trabalho,
assim como o sol, a lua, a chuva, a geada, as
estações do ano, os ciclos da natureza expressam esperança, morte, transformação e vida.
Elas sabem organizar o quintal combinando
variedades de flores, plantas medicinais, pomar privilegiando perto da casa a sombra
para acolher amigas (os), as vizinhas (os). A
comunidade também é um espaço significativo onde todos se conhecem, se encontram
para a celebração, a festa, o jogo, muitas vezes ali se dá organização, os conflitos, a troca
de experiências, entre outras.
Mas também a agricultura camponesa
reproduziu padrões e limites da cultura patriarcal de opressão da mulher, do modelo capitalista de exploração da classe trabalhadora. Por
muito tempo, a dominação de gênero e a exploração de classe atuaram fazendo da mulher
um ser inferior, menos preparada, invizibilizando seu trabalho e suas potencialidades.
Em todos os tempos houve mulheres
que reagiram, enfrentaram os limites, rompendo padrões e forjando novas relações.
Também é verdade que muitas mulheres
aceitaram a subordinação, no entanto, nas
atividades do Movimento de Mulheres Camponesas encontramos muitas experiências
3
de mulheres camponesas valorosas e espertas que resistiram e continuam batalhando
pela própria emancipação.
Lutam pela valorização e reconhecimento de seu trabalho. Cultivam seu roçado. Criam pequenos animais. Plantam de
tudo para o consumo da família e também
para a comercialização, como: batatinha,
amendoim, pipoca, arroz, cana-de-açúcar,
plantas medicinais, flores, verduras, pêssego, laranja, uva, banana, abacate, entre outras. Participam da comunidade, organizam
o Movimento autônomo envolvendo outras
mulheres. Buscam se apropriar do estudo,
do conhecimento participando de cursos e
outros espaços de capacitação, enfim são
mulheres agentes de profundas transformações na sociedade. Pois, fazer agricultura
camponesa não se trata de voltar ao passado, mas sim ressignificar valores da cultura
camponesa de autonomia, de diversificação
da produção, de cuidado com ambiente, de
novas relações sociais.
30
Essa mudança exige opção pessoal,
familiar, comunitária e um profundo desejo
e disposição de repensar a maneira de agir.
Neste sentido o Movimento de Mulheres
Camponesas – MMC defende e luta pela
construção de um projeto popular de agricultura camponesa, promotor de saúde e vida,
a partir dos princípios da agroecologia tendo
a compreensão e a necessidade:
De preservar o ambiente como
condição de viver. Entendemos como o espaço de estabelecer novas relações sociais e
ambientais. Incorporar o valor do cuidado,
respeitar todas as formas de vida. “Os recursos naturais (terra, água, ar, biodiversidade,
energia...) são bens comuns, patrimônio dos
povos a serviço da humanidade”.
Da produção e economia camponesa. Defendemos que a produção camponesa deve ser agroecológica, que venha
proporcionar a autonomia das famílias no
auto-sustento e renda integrando campo e
cidade. Para isso é preciso pensar o acesso e
controle dos meios de produção (terra, equipamentos, tecnologia), que possa garantir a
segurança e a soberania alimentar, a recuperação das sementes crioulas ou tradicionais,
respeitando a biodiversidade local e regional.
Distribuir renda inclusive para as mulheres
camponesas significa valorizar e reconhecer
o trabalho da mulher na produção de alimentos diversificados e saudáveis.
De nova compreensão do trabalho.
Somos os únicos seres capazes de projetar
e refletir sobre o que fazemos e porque fazemos. O trabalho pode possibilitar nossa
humanização, ou a nossa desumanização.
Sendo o trabalho que gera toda a riqueza os
poderosos sempre se apropriaram da força
de trabalho dos povos e especialmente das
mulheres e dos jovens para enriquecer, por
isso é necessário abolir a compra da força
de trabalho. O desafio é ressignificar o trabalho como identidade, realização e crescimento de mulheres e homens. É necessário
desenvolver tecnologias simples, acessíveis e
adequadas que tornem o trabalho no campo menos penoso, mais leve e gratificante. É
pelo trabalho que realizamos a solidariedade, a entre-ajuda, seja na produção, na organização da casa, na busca do conhecimento,
no cuidado dos filhos e filhas, no embelezamento, enfim, em todas as dimensões que
envolvem a vida.
De construir novas relações combinando o projeto de vida e o projeto de sociedade, onde o relacionamento com as pessoas
e com o ambiente seja pautado nos valores de
vida, alegria, no respeito à diversidade étnicoracial, de gênero, econômica, política, cultural, ecológica, valorizando todas as gerações.
De valorizar a cultura camponesa e
feminista entendida como um modo de vida
que implica no modo de ser, de se relacionar
socialmente no campo, valorizando o trabalho
na terra, o cuidado com a biodiversidade e a
defesa da vida. Além disto, precisa respeitar e
fortalecer a arte e a cultura camponesa através de crenças, rezas, rituais, visitas, pratos típicos, mutirões de trabalho, danças, rodas de
viola, mateadas, literatura de cordel, repente,
trovas, festas típicas, cirandas, entre outras.
Da participação das mulheres como
protagonistas em todos os espaços de decisão sobre a produção, o patrimônio, o dinheiro, as relações humanas, políticas e comunitárias, de maneira a garantir a manutenção e
o avanço do campesinato.
De garantir Políticas Públicas para
viabilizar, potencializar, facilitar, ampliar e garantir os direitos das trabalhadoras e trabalhadores no campo. As pessoas que moram
no campo precisam de:
8 Reforma Agrária com o acesso a terra e
produção de alimentos saudáveis;
8 Previdência Pública Universal e Solidária e a garantia da condição de seguradas
especiais e dos direitos adquiridos (salário maternidade, aposentadoria, auxílio
doença, acidente de trabalho, auxílio reclusão), bem como, sua ampliação.
8 Saúde pública de qualidade, integral,
humanizada e com efetiva participação
popular e funcionamento do Sistema
Único de Saúde - SUS.
8 Subsídio público para investimento na
agricultura camponesa, garantido as mulheres o acesso e autonomia na administração. E seguro agrícola para a reposição nas perdas dos produtos atingidos
por intempéries.
8 Documentação pessoal e profissional
às camponesas e camponeses facilitando o acesso aos benefícios e o reconhecimento de sua profissão.
8 Moradia digna, saneamento, luz e estradas para facilitar as condições de vida
no campo, e lazer, com direito ao acesso
de atividades culturais nas comunidades
rurais (cinema, teatro esportes...).
8 Investimento público na pesquisa, ciência e tecnologias a serviço da vida,
adequadas às necessidades da agricultura camponesa agroecológica e que venha facilitar o trabalho no campo, bem
como, de acesso a todos.
8 Políticas públicas de combate à violência e proteção de mulheres e crianças.
8 Política de comercialização e aquisição
direta de alimentos e produtos da agricultura camponesa, para os trabalhadores da cidade e entidades públicas (escolas, creches, hospitais...).
8 Educação popular do campo com o
princípio da educação popular, construção da consciência emancipatória, valorizando e incentivando o saber popular.
Diante da real situação do campo para
potencializar e melhorar a vida destas famílias é
necessário investimento público, com recursos
e políticas adequadas. A agricultura camponesa produz 70% de toda a produção diversificada de alimentos que vai a mesa, diariamente,
do povo brasileiro. Diante do que representa
a agricultura camponesa é que precisamos
fortalecer nosso Movimento, articular nossas
lutas para que o dinheiro público seja investido na produção de alimentos saudáveis, uma
vez que a maior parte do investimento público
é destinada para o agronegócio. Não se trata
apenas de inverter esta lógica, mas de assumir
um projeto de agricultura fundamentado em
princípios de justiça, equilíbrio e vida.
O campo não é o lugar de quem
não teve oportunidade na vida.
Estar no campo hoje é acima de
tudo uma opção e uma missão
de produzir alimentos saudáveis,
preservando os bens naturais
comprometidos com a vida, a
saúde e a justiça para todos.
Como começar?
Para começo de conversa não há uma
receita para construir o projeto popular de
agricultura camponesa a partir dos princípios
da agroecologia. Todos têm algo a fazer. Se
você tem um quintal, terreno, lavrado, gleba,
fundo de pasto ou roçado, você pode começar cuidando e preservando deste espaço. A
seguir teremos algumas idéias para você começar pensar, avaliar, propor e praticar.
1. O primeiro ponto é ter a convicção de
que precisa mudar a forma de produzir.
Normalmente esta iniciativa num primeiro momento é pessoal, mas aos poucos
o diálogo vai motivando a família. O despertar para a mudança pode vir da troca
de experiências, de estudos reuniões, debates, intercâmbio, entre outros.
2. Com a tomada de decisão pela mudança precisa fazer um estudo organizado do
que possuem, ou seja, um levantamento
31
das potencialidades de seu quintal ou de
sua unidade de produção: tipo de terreno,
quantidade de água, plantas, biodiversidade, ventos, mata nativa, animais...
3. Analisar se o que deseja produzir é compatível com o solo, o clima, bem como, o
que já possuem, ou precisam adquirir e
que recursos disponibilizam.
32
4. Planejar a produção de forma que garanta a diversidade de produção vegetal e
animal, necessária para o auto–sustento.
Mas também a produção que será disponibilizada para renda e onde e como irão
comercializar.
5. Analisar a disponibilidade da força de trabalho
6. Organizar o controle financeiro em relação ao investimento e a renda para avaliar a viabilidade da produção.
7. É importante que todos os membros da família busquem o estudo, à formação e capacitação. Precisamos ter consciência de
que o projeto popular de agricultura está
sendo construído, por mãos de mulheres
e homens, jovens, idosos e crianças todos
têm algo a contribuir e precisa de muito
estudo, reflexão, conscientização.
8. Organizar o processo de recuperação e
manejo do solo. Você sabia que uma colher de chá de solo agrícola contém: 200
nematóides, 218 mil algas, 288 mil amebas, 400 mil fungos, 1 bilhão de actinomicetos e 1.000 bilhões de bactérias? Todos
esses microorganismos são úteis e necessários para o equilíbrio do solo e conseqüentemente a produção saudável.
9. Precisa livrar-se dos agrotóxicos, fertilizantes, adubos químicos, sementes híbridas ou transgênicas. A autonomia vem
da capacidade de recuperar, melhorar,
produzir e controlar sementes e mudas
crioulas. Organizar na unidade de produção ou quintal a diversificação de grãos,
frutas, flores, tubérculos, hortaliças, combinando a criação animal com agricultura
faz parte da cultura camponesa.
10. Nossa soberania alimentar começa em
casa produzindo a própria alimentação
saudável.
11. O pomar diversificado garante uma
grande biodiversidade: animal e vegetal.
Contribui com a alimentação equilibrada,
saudável e de qualidade.
12. As árvores e matas são fundamentais
para o equilíbrio ecológico. O controle de
animais ajuda manter a umidade, regular
o clima e as chuvas. Pode ser utilizado em
sistemas de agro-floresta, combinando a
produção de frutas, ou madeira para lenha, consumo doméstico e outras necessidades com a produção de animais, leite,
mel e outros.
13. Outra questão que precisa pensar é sobre as possibilidades de geração de energia. Ela é indispensável para facilitar a
vida cotidiana.
14. Cuidar da água! Preservar e proteger
rios, fontes, córregos mananciais... Coletar água das chuvas. Fazer pequenos
açudes. Criar peixes. Ter água boa para o
consumo familiar e em abundância para
os animais, hortaliças e outros cultivos.
15. Cada pessoa precisa tornar-se cientista de sua própria profissão, aprendendo
com a natureza, com o comportamento
das plantas, dos animais e do meio ambiente, sem dispensar o acesso ao estudo,
qualificação, formação, política e técnica.
16. Exercitar a criatividade, o envolvimento das pessoas para decidir, arriscar, desafiar, propor, experimentar e construir
o projeto popular de agricultura camponesa repartindo o poder e criando novas
relações de co-responsabilidade.
17. Participar e envolver-se na luta da classe
trabalhadora pelos direitos (previdência,
saúde, educação, cisternas, créditos, reforma agrária e outros) e na luta de transformação da sociedade.
18. Exercitar a troca e partilha de sementes
e a entre ajuda em períodos de plantio e
colheita.
19. Criar novas relações de envolvimento
e participação nas decisões, bem como,
novo relacionamento com o ambiente.
Convidamos a todos e especialmente a
você mulher camponesa para com coragem inteligência e perseverança, buscar
através da agroecologia construir um
mundo melhor para viver!
Saúde:
direito de todas(os)
e dever do Estado
4
33
4.1. A política pública de saúde no Brasil: entre as necessidades
do povo e os interesses do capital21
I
nicialmente, cabe destacar, que, ao
analisar a saúde no Brasil, é preciso
considerar que as políticas e instituições de saúde desempenharam
um papel histórico inegável para a
constituição e estabilização da ordem socioeconômica brasileira; ajudaram a modelar certos traços estruturais dessa ordem, entre os
quais a tendência de concentração de poder e
a exclusão das classes populares dos circuitos
de decisão econômica, política e cultural do
país. Segundo Vasconcelos (2001)22,
a relação entre os serviços de saúde e a população é condicionada por dimensões estruturais complexas, que requerem a análise
histórica, pois se inserem nos processos sociais, os quais dependem de dinâmicas culturais, políticas e econômicas que acontecem
fora dos serviços de saúde. Daí a importância de analisar as políticas sociais e, no caso
específico, a da saúde, não com base numa
análise intrínseca a ela nem como ideal a ser
alcançado pela sociedade, “mas a partir da
compreensão da base material e das relações objetivas e subjetivas em que ocorreram ou ocorrem”. (VASCONCELOS, 2001)
Assim, cabe analisar, mesmo que de
forma breve, como esse processo se deu no
Brasil, evidenciando a forma como as classes
populares eram consideradas em cada momento histórico, na perspectiva de análise de
que as políticas sociais vêm sendo, em algum
grau, vinculadas à acumulação capitalista23.
O período de desenvolvimento agroexportador, especialmente no Brasil Império,
Vasconcelos (2001, p. 74) caracteriza como da
“ausência do ator popular na cena política”, demonstrando que os escravos (grande maioria da
população), como não tinham nenhum reconhecimento social e político, não possuíam nenhum tipo de direito. As condições de vida e de
saúde dos (as) trabalhadores (as), especialmente dos escravos, eram extremamente precárias.
Nesse sentido, há estimativas de que o índice de
mortalidade era superior ao da natalidade24.
O controle do Estado sobre a sociedade é uma das características do pensamento
mercantilista, no qual o bem-estar da sociedade identificado com o bem-estar do Estado, típico do período monarquista no Brasil:
um Estado centralizado, com forte aparato
jurídico-legal, portador do poder de decisão
e de execução; um Estado intervencionista,
no qual a sociedade deve servir ao mesmo.
Daron, Vanderléia. Esta parte tem como base a dissertação de mestrado.
Vasconcelos, Eymard Mourão, é médico e atua na área da saúde na perspectiva da educação popular. Tomo
como referência de análise a obra A saúde nas palavras e nos gestos: reflexões da rede de educação popular e
saúde.São Paulo: Hucitec, 2001, capítulo 3: “Participação popular e educação nos primórdios da saúde pública
brasileira”.
23
Para aprofundar essa abordagem histórica desde o processo de urbanização, que ocorreu a partir da primeira
Revolução Industrial na Inglaterra do que emergiram os problemas de ordem sanitária, educacional, habitacional e de segurança, recomenda-se a leitura de Rizzotto em sua tese de doutorado sobre O banco mundial e as
políticas de saúde no Brasil nos anos 90: um projeto de desmonte do SUS. Campinas, 2000.
24
Conforme análise feita por Vasconcelos (p.77, 2001), a partir dos dados do primeiro censo de 1872, analisados
por Celso Furtado.
21
22
34
Essa análise histórica pode ser feita também considerando as políticas e instituições
de saúde no Brasil a partir de longos períodos
e principais momentos da conjuntura da história, como a proclamação da República em
1889, passando pela restauração dos direitos
políticos e civis cassados no pós-1964 e a partir
da década de 1980, posteriormente passando
pela Nova República e culminando com o processo de políticas neoliberais da Era Collor e de
Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).
nais. Esses institutos favoreciam as categorias
de trabalhadores urbanos, que já esboçavam
algum nível de organização ou eram fundamentais para a economia agro-exportadora dominante. Os recursos para esse fim eram provenientes de contribuições dos trabalhadores,
empresários e governos, no entanto eram utilizados para financiar o processo de industrialização do país e só tinha direito à assistência
quem pagasse. Mais uma vez, a grande maioria
do povo não tinha acesso a esses direitos.
Assim, entre 1889 e 1930, o modelo de
saúde criado era concentrado em nível nacional e o sistema, organizado e implementado em instituições públicas. Caracterizavase por campanhas sanitaristas, destinadas a
combater epidemias urbanas e, mais tarde,
endemias rurais. Nesse período, doenças
como febre amarela, varíola, cólera e tuberculose levaram a população portadora a sentir vergonha, o que se agravava com a falta
de atendimento médico de caráter público.
A população pobre só dispunha de atendimento filantrópico nos hospitais de caridade
mantidos pela Igreja. As campanhas sanitaristas eram organizadas como campanhas
militares, dividindo em distritos as cidades
ou locais, encarcerando os doentes de moléstias contagiosas e obrigando-os a práticas
sanitárias pela força, ou seja, eram tratados
como caso de polícia25.
A ação do Estado na saúde dividiu-se
em dois ramos: o da saúde pública de caráter
preventivo, desenvolvido através de campanhas, e a assistência médica de caráter curativo, que se desenvolvia através da ação da
Previdência Social.
Em 1923 foram criadas e organizadas
em Lei as Caixas de Aposentadoria e Pensões
(Caps), com as quais, pela primeira vez, o Estado interferiu para criar mecanismo destinado
a garantir ao trabalhador algum tipo de assistência. É claro que isso se deu pelo processo
de pressão que vinha sendo feito por meio de
greves pelos trabalhadores no início do processo de industrialização do Brasil; por conta disso,
só tinham direito trabalhadores ligados a empresas marítimas e ferroviárias, onde o nível de
organização de trabalhadores era maior.
O período seguinte, entre 1930 e 1950,
pode ser considerado clientelista-populista pela
forma de intervenção do Estado na economia,
observando-se a criação de institutos de seguridade social (institutos de aposentadorias e
pensões), organizados por categorias profissio25
É interessante destacar que no período
anterior, especialmente a partir de 1808, com
a criação da Faculdade de Medicina na Bahia,
os problemas de saúde eram justificados
como causados pelo fato da população ser da
raça negra, evidenciando uma visão discriminatória com relação aos negros e mestiços.
Somente a partir da década de 1930,
sob a influência de uma nova vertente advinda da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que enfatizava as condições de higiene
e sanitarismo, e utilizando o instrumento da
psicanálise que chegava ao Brasil, começou
a ser admitido que os problemas de saúde
enfrentados pela população pobre não se
davam por causa da degeneração racial, mas
pelas condições miseráveis de vida que enfrentavam, bem como, levantou-se a possibilidade de explicar as diferenças culturais
existentes e de dar importância à educação
como aliada aos processos de saúde.
Nesse contexto, havia a necessidade
de dar resposta ao grave problema pobreza/
doença. Desenvolveu-se, então, uma nova
forma de compreensão e prática na relação
do Estado com a sociedade, que enfatizava a capacidade da comunidade de se unir,
de se organizar, de se esforçar e participar
em ações simplificadas nos serviços e em
ações sobre o meio ambiente. Os problemas, nessa visão, eram de ordem técnica e
nunca resultado de opções por modelos de
Uma boa análise desse processo é feita pelo filme História da Saúde Pública no Brasil, editado pela Fiocruz,
Rio de Janeiro, 2000.
desenvolvimento, razão pela qual a comunidade envolvia-se em ações compensatórias
do Estado, mas não se dava conta de que as
causas dos problemas estavam no modelo de
desenvolvimento e nas políticas do Estado.
Somente em 1950 foi criado o Ministério da Saúde, que priorizou as ações de saúde
com ênfase na assistência médica individual.
Todavia, paralelamente a esse processo, passaram a ser investidos recursos na construção
de grandes hospitais e centros de atendimento médico, equipamentos e medicamentos.
Nesse período, fortaleceu-se o modelo norteamericano de atenção à saúde26.
Entre 1960 e 1963, na luta por reformas
de base, que constituía uma das referências
do período, a questão da saúde estava presente no sentido de garantir acesso ao povo.
As resoluções da 3ª Conferência Nacional de
Saúde, realizada em 1963, já apontavam para
uma reforma sanitária no país de base municipalista, com uma visão mais ampliada de
saúde, indicando a necessidade de articular
a saúde aos projetos de desenvolvimento27.
O discurso do então presidente do Brasil na
sessão inaugural afirmava:
A saúde, sabem os senhores mais do que
eu, é um índice global, resultante de um
conjunto de condições – boa alimentação,
habitação higiênica, roupas adequadas,
saudável regime de trabalho, educação,
assistência médico-sanitária, diversões e
ainda outros fatores que só podem ser conseguidos em conseqüência do desenvolvimento econômico da nação e da distribuição eqüitativa de suas riquezas (NITERÓI,
1992, p.24).
Com o golpe militar de 1964, entretanto, ocorreu uma abertura expressiva ao capital internacional. No que se refere à saúde,
foi o período em que houve sucateamento da
saúde pública, ênfase na saúde e previdência
privadas; como conseqüência, tanto dessas
políticas quanto do próprio modelo de desenvolvimento geral do país, assistiu-se a uma deterioração das condições de saúde das classes
populares. Em 1966, houve a unificação de
recursos dos fundos de pensões e aposentadoria no INPS, financiadas a fundo perdido.
Esses fundos financiaram, em grande
parte, os hospitais, que passaram a receber
do Estado para prestar assistência à população. Além disso, na década de 1970, parte
dos recursos do INPS foi destinada a pagar
obras como a Transamazônica, Itaipu, Ponte
Rio-Niterói, grandes usinas, empresas e hospitais, por serem recursos desvinculados do
Orçamento da União. Nesse período, também foi criado o Funrural como extensão
da previdência aos rurais28. Na época foram
criadas várias siglas, entre as quais INPS, Iapas, Inamps e INSS. Então, o Estado militarista, que compreende os vinte anos de ditadura militar, reorganizou a saúde com base no
modelo sanitarista, em forma de campanhas,
e do modelo curativo de atenção médicoprevidenciária29 do período populista.
Como esse modelo não dava conta das
necessidades de atenção à saúde, surgiram,
a partir da década de 1960, os movimentos
sociais urbanos, exigindo do Estado políticas
que assegurassem ao povo excluído o acesso aos bens e serviços e melhores condições
de vida. Tais melhorias só poderiam ser conquistadas através da luta, da pressão e mobilização do povo organizado em movimento. A organização popular voltou-se para o
enfrentamento com o Estado e o sentido da
participação era acumular forças para a batalha permanente pela mudança geral do modelo de sociedade existente.
Nesse período instalou-se no Brasil a indústria farmacêutica e, com ela, houve o avanço dos interesses do capital
multinacional.
27
A lei nº 378 de janeiro de 1927determinou que, com intervalos nunca superiores a dois anos, seja convocada pelo
presidente da República uma Conferência Nacional de Saúde. No entanto, a primeira foi realizada em 1942,
a segunda em 1950 e a terceira em 1963. Após, aconteceram várias conferências nacionais de saúde, mas a 8ª
Conferência Nacional foi a que demarcou as bases e os parâmetros para a Constituição Federal de 1988 e as leis
que regulamentam o SUS. A 12ª Conferência Nacional de Saúde realizou-se em 2003, com o tema “Saúde: um
direito de todos e dever do Estado. A saúde que temos, o SUS que queremos”.
28
Na realidade, significou uma forma de arrecadar recursos dos rurais para a Previdência, mas não representou
benefícios para os trabalhadores rurais. Nesse período, tinha atendimento médico somente quem contribuísse e
a aposentadoria só era concedida ao homem com mais de 65 anos de idade.
29
Previdenciária: forma de atendimento que só oferecia os serviços de saúde aos trabalhadores com carteira de
trabalho assinada.
26
35
Madel Luz (1991), destaca que, no final
da década de 1970 e início da 1980, o contexto
da saúde foi marcado pelos movimentos populares e pela luta por reformas das políticas
sociais e de saúde, que havia atingido níveis
críticos de condições. O povo brasileiro vinha
se deparando com a falta de políticas públicas
de saúde. Como exemplo dos questionamentos que vinham sendo feitos no período está a
seguinte afirmação de Jorge Amado:
Se não fossem a bexiga, o tifo, a malária, o
analfabetismo, a lepra, a doença de Chagas,
a xistossomose, outras tantas meritórias
pragas soltas no campo, como manter e ampliar os limites das fazendas do tamanho de
países, como cultivar o medo, impor o respeito e explorar o povo devidamente? Sem
a desenteria, o crupe, o tétano, a fome propriamente dita, já se imaginou o mundo de
crianças a crescer, a virar adultos, alugados,
trabalhadores, meeiros, imensos batalhões
de cangaceiros - não esses ralos bandos de
jagunços se acabando nas estradas ao som
das buzinas dos caminhões-a tomar as terras
e a dividi-las? Pestes necessárias e beneméritas, sem elas seria impossível a indústria das
secas, tão rendosa; sem elas, como manter
a sociedade constituída e conter o povo, de
todas as pragas a pior? Imagine, meu velho,
essa gente com saúde e sabendo ler, que perigo medonho! (AMADO. J. 1978).
36
Assim, a luta pela Reforma Sanitária
iniciou-se nessa fase, através da conjugação
de forças incluindo profissionais de saúde e
gestores comprometidos com a saúde das
classes subalternas e movimentos populares, que culminou com as deliberações da 8ª
Conferência Nacional de Saúde e foi responsável pela luta e formulação do conjunto das
conquistas obtidas na Constituição de 1988.
A partir da reorganização do país em
busca da construção do regime democrático,
desenvolveram-se, com divergências e até antagonismos, as disputas por políticas públicas
de saúde, o que permitiu certas práticas institucionais o surgimento de outras nos domínios
da participação popular em serviço de saúde
e de descentralização institucional. Diferentemente do que ocorreu nos países que optaram pelo “Estado de bem-estar social”, onde
a ampliação e extensão de políticas sociais se
deram no processo de incorporação do plane30
jamento na ótica keinesiana, no Brasil, as políticas sociais, dentre as quais a da saúde, surgiram e se implementaram unicamente a partir
de demandas e pressões sociais imediatas.
Daí oscilarem “ora o caráter de compensação,
em face de reivindicações dos trabalhadores,
ora com a marca da benevolência, quando se
trata da população mais carente, que se encontra excluída do processo produtivo ou integrada a ele de forma marginal e sem poder
de pressão”. (RIZZOTTO, 2000, p. 37).
A autora afirma que, nos países periféricos , as políticas sociais não são progressivas
nem acompanham o crescimento econômico,
marcado por um caráter compensatório e restrito, próprio do modo como o capitalismo se
desenvolveu e se consolidou nesses países.
30
No campo da saúde, as políticas adotadas pelos governos de caráter burguês e a
resposta às reivindicações dos movimentos
sociais foram através de políticas compensatórias, ações pulverizadas e fragmentadas
para silenciar suas pressões ou ações de caráter campanhista, não se constituindo em
políticas públicas de caráter permanente.
Isso não ocorreu por acaso, mas associado
ao tipo de Estado burguês, cuja marca central foi um Estado desenvolvimentista, conservador, centralizador e autoritário, com o
objetivo de manter a ordem econômica capitalista do Brasil no cenário mundial.
A autora considera os países periféricos como os países em desenvolvimento ou empobrecidos, ou seja, aqueles que estão marginalizados e/ou subordinados aos países do centro ou os desenvolvidos e ricos.
Segundo Bacelar (1995, p.56), o Estado
desempenhava a função de promover a acumulação privada na esfera produtiva e o essencial das políticas públicas estava voltado para
promover o crescimento econômico, acelerando o processo de industrialização, implantando
um projeto industrial sem alterar as relações
de propriedade da terra e, muito menos, o objetivo de proteção social ao conjunto da sociedade. O Estado assumiu o papel de realizador
mais que de regulador e nas políticas macroeconômicas teve papel importante dentro da
lógica de patrocinar a industrialização.
Adentrando mais nessa questão, Paludo
(2001, p. 39 - 40) afirma que o Estado que se
conformou com o projeto da modernidade
teve como desdobramentos: a consolidação
do modo capitalista de produção e sua ideologia, o papel coercitivo nos momentos em que
o projeto capitalista poderia sofrer algum tipo
de mudança, o caráter instrumental, particular, subordinado e transitório, com um discurso de universalidade que não se concretiza.
É dentro dessa perspectiva que se situam a saúde e os avanços conquistados pela
luta popular da Reforma Sanitária31, a qual
permitiu que o povo brasileiro conquistasse
na lei um sistema público e universal de saúde, através do Sistema Único de Saúde.
Entretanto, a conquista em Lei não significou a efetivação do acesso ao direito à
saúde, pois este continua na disputa com os
interesses do capital que vem aceleradamente mercantilizando a saúde.
4.2. Sistema Único de Saúde: luta, conquista e desafio
O
SUS que todos conhecemos
faz parte da luta da população
brasileira pela cidadania e representa uma conquista no que
diz respeito ao direito à saúde.
É a participação da sociedade na política de
saúde que aproxima cada vez mais o SUS da
democracia participativa e da justiça social,
principalmente se a gente considerar que
tem como princípios:
de vida. Assim preconiza a Constituição Federal em seu artigo 196: “A Saúde é um direito
de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações
e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (BRASIL, 1988, p.133).
3. igualdade na assistência a qualquer cidadão independente de sua condição social,
econômica, orientação sexual e etnia.
No entanto, a partir da década de 1990,
com as novas tendências e o reordenamento
na economia mundial, sob a hegemonia neoliberal, através da internacionalização do capital,
especialmente o financeiro e da reestruturação
produtiva, aliada à opção neoliberal dos governos brasileiros ao cumprirem a agenda neoliberal estabelecida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), deixou-se de investir recursos para
o financiamento da saúde pública brasileira. De
outro lado, um conjunto de elementos combinados vem acarretando que o SUS concreto
não seja aquele preconizado em lei.
A concepção de saúde como um “bem
público” foi assegurada em 1988 quando da
aprovação da nova Constituição, que, em seu
artigo 196, afirma a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido através de políticas sociais e econômicas, o que revela uma
concepção de desenvolvimento com qualidade
Dentre os vários fatores, podem-se
destacar a ineficácia da proposta de mudança da visão saúde-doença com o enfoque nos
problemas e o escamoteamento das causas,
a lógica assistencialista; os serviços de saúde insuficientes e os que existem ineficientes por não uso, ou uso equivocado; recursos
1. garantir para toda a população o acesso aos serviços de saúde;
1
direito de ser atendido em todas suas
22. onecessidades
e situações, desde a participação nos grupos, às vacinas e consultas nos postos de saúde até os problemas
mais complicados nos grandes hospitais;
3
A Reforma Sanitária é um movimento da década de 1970 no Brasil levado a cabo por profissionais de saúde,
trabalhadores, acadêmicos e pesquisadores da saúde, gestores comprometidos com a saúde pública e os movimentos populares que exigiam reformas profundas na área da saúde.
31
37
38
humanos insatisfeitos, desassistidos, muitos
despreparados técnica e humanamente e,
mesmo, descomprometidos com a sociedade;
o controle social incipiente; a atenção centrada no hospital, no médico, nos medicamentos e equipamentos; a relação com o privado
permeada pelos trinta anos de terceirização
sem controle e oscilando entre a exploração
e a benevolência conivente; o financiamento
insuficiente com risco de privatização. Colocase a necessidade de efetivar a dignidade das
pessoas com a humanização no atendimento,
a solidariedade, a cidadania, o controle popular sobre o Estado, a justiça e a eqüidade.
Essa realidade de desmonte do SUS não
acontece por acaso, pois, a partir da década
de 1990, o Banco Mundial tem se convertido
no maior financiador externo de atividades
de saúde nos países em desenvolvimento e
uma voz importante nos debates sobre políticas de saúde. O Banco Mundial atua em
quatro áreas: empréstimos e créditos, subsídios para o desenvolvimento, assessoramento em políticas e investigação.
O assessoramento em políticas tem
sido um dos caminhos pelo qual o banco
mais tem atuado, aliadas às demais áreas, realizando estudos e orientando as políticas de
saúde nos países no sentido de fortalecer a
estratégia neoliberal, abrindo as portas para
a privatização desta área social tão importante tanto nos países da América Latina quanto do Leste europeu – países ex-socialistas
(BEYER, 2000, p. 91-113).
Cabe assinalar também que outra estratégia de domínio dos Estados Unidos sobre os
países vem se dando no campo da tecnologia
agrícola, ou seja, a questão dos agrotóxicos
(que vieram no pacote agrícola americano
na chamada “Revolução Verde”, pelo qual se
construíram as bases da dependência e exclusão dos camponeses ao mercado internacional) e, mais recentemente, através dos transgênicos. O verdadeiro interesse que está por
trás do monopólio e da imposição das sementes transgênicas é o controle sobre os alimentos e as sementes no mundo. A utilização das
sementes geneticamente modificadas fere
a soberania alimentar das nações de todo o
mundo já que os agricultores não podem produzir suas próprias sementes e são obrigados
a consumir os insumos agrícolas das empresas
produtoras dos transgênicos. Quem não tiver
o direito de produzir e multiplicar sementes,
jamais poderá produzir os alimentos de que
sua comunidade e seu povo necessitam.
Diante dessa realidade é que ganha
força o papel dos movimentos sociais populares e da sociedade civil organizada em suas
lutas pela defesa da igualdade dos direitos
fundamentais: individuais, sociais e políticos,
do acesso à vida e à saúde de todos como
condição de vida e de cidadania e da construção de modos de atenção à saúde de forma integral para o conjunto da população.
Para isso, é necessário avançar na ação
intersetorial, na ótica integrada de saúde e
doença, na integralidade da atenção à saúde, procurando formas que diminuam o uso
indiscriminado de medicamentos, democratizando o saber em saúde. Outra questão e a
tecnologia e os equipamentos em saúde sob
o controle social, buscando formas de protocolização de condutas, constituindo o usuário enquanto sujeito ativo e não cliente passivo. Além disso, precisa enfrentar a questão
do financiamento da saúde; fortalecendo o
controle social e a participação popular na
definição, no gerenciamento, na fiscalização,
no atendimento, no processo de cura, garantindo a universalidade do acesso, a igualdade
do direito e a eqüidade na atenção.
Regulamentado pelas Leis 8080 e 8142
de 1990, o SUS é definido como um sistema
público, único em cada esfera de governo,
descentralizado e com a participação da sociedade exercendo o controle social sobre a
política nas Conferências e nos Conselhos de
Saúde, onde participam os atores do campo
da saúde: gestores, os trabalhadores, os produtores dos serviços e os usuários.
Mas como toda política é desafio, a
luta continua. Pois uma coisa é ter as leis e as
normas que orientam a implantação da política, e outra coisa é ver essas leis serem cumpridas de fato. Dessa forma a implantação e
o desenvolvimento do SUS vêm acontecendo
entre duas forças: de um lado a existência de
políticas neoliberais que visam diminuir o papel do Estado como responsável pela inclusão social de grande parte da sociedade brasileira e a presença de grupos que pensam
a saúde como objeto de lucro econômico e
político; e, do outro lado, as forças populares
que procuram garantir na prática as idéias
que vinham sendo construídas, ou seja, um
SUS universal, participativo, que resolva os
problemas que lhe competem de forma humanizada, integrada, equitativa e que promova a saúde da população.
Assim, a implantação do SUS foi acontecendo orientada por Normas Operacionais
que, durante toda a década de 90, regularam
o funcionamento do sistema, garantindo, de
certa forma, avanços no SUS, mas caminharam no rumo contrário a uma real descentralização, dependendo de portarias ministeriais, transformando os recursos financeiros
em mecanismos de centralização. Estas normas diziam respeito desde o tipo de atendimento que devia ser feito, quem devia fazer
e como seria financiado, definidos no nível
central, sem a discussão e negociação com
os níveis estaduais e municipais.
O financiamento, muito mais conhecido como repasse de recursos fragmentados
que dependiam da adesão dos municípios
a programas, contribuiu muito para que os
conselhos de saúde passassem a ser somente
fiscalizadores das inúmeras contas, rubricas e
despesas, impedindo a autonomia dos municípios diante da necessidade de resolver problemas que não faziam parte das caixinhas.
As Conferências Nacionais de Saúde
vem afirmando a necessidade de implantação efetiva do SUS. O documento-base da 12ª
Conferência Nacional de Saúde, cujo tema
foi “Saúde: um direito de todos e um dever
do Estado – a saúde que temos e o SUS que
queremos”, apontou os impasses, os avanços
e os desafios para a saúde do povo brasileiro.
A abordagem expressa neste documento, salienta os avanços obtidos e as dificuldades ou
impasses para a implantação de uma política
pública de saúde com caráter universal num
contexto de hegemonia mundial neoliberal, ao
mesmo tempo em que reafirma os princípios
e diretrizes. Um dos aspectos abordados no
documento explicita: A efetivação do direito
à saúde depende do provimento de políticas
sociais e econômicas que assegurem o desenvolvimento econômico sustentável e distribuição de renda, cabendo especificamente ao
SUS a promoção, proteção e recuperação da
saúde dos indivíduos e das coletividades de
forma eqüitativa. (BRASIL, 2003, p.29).
Assim, entre os anos de 2003 a 2006,
o Ministério da Saúde junto a representação
das secretarias estaduais (CONASS) e municipais (CONASEMS) foi construindo um processo de negociação e compromissos da operacionalização do SUS entre os gestores das três
esferas de governo, na perspectiva de superar
dificuldades burocráticas/administrativas que
dificultam a participação mais efetiva dos municípios na gestão do SUS, contribuindo para
a efetivação e consolidação de suas diretrizes
constitucionais. O resultado disto é PACTO
PELA SAÚDE aprovado por unanimidade pelo
Conselho Nacional de Saúde e publicado em
PORTARIA Nº 399/GM de 22 de fevereiro de
2006, que tem por finalidade maior promover a melhoria na quantidade e qualidade dos
serviços ofertados à população e a garantia
do acesso a esses serviços, tornando possível
ações de cooperação técnicas e solidárias entre SES, SMS e MS na construção de novos instrumentos que ampliam e qualificam a gestão
pública dos sistemas e serviços de saúde.
O Pacto pela Saúde é um
acordo assumido entre os
responsáveis pela implementação
do Sistema Único de Saúde, ou
seja, as secretarias municipais,
estaduais, do Distrito Federal e
o Ministério da Saúde a fim de
garantir avanços na política e na
organização do SUS.
• O PACTO PELA VIDA estabelece compromissos entre os gestores do SUS com prioridades que apresentem impactos sobre a
situação de vida da população brasileira.
• O PACTO EM DEFESA DO SUS estabelece
compromissos políticos entre os gestores a
fim de consolidar a efetivação do processo
da Reforma Sanitária Brasileira, expressa
em princípios na Constituição Federal.
• O PACTO DE GESTÃO define as responsabilidades sanitárias de cada gestor municipal,
estadual e federal para a gestão do SUS nos
aspectos da descentralização, regionalização,
financiamento, planejamento, programação
pactuada e integrada, regulação das ações e
serviços, participação e controle social e gestão do trabalho e da educação na saúde.
39
40
No contexto atual, os desafios centrais
caminham na direção da luta pela efetivação
concreta do acesso do direito à saúde com
consolidação do SUS como uma política social, pública, de caráter universal, em defesa da vida e da saúde individual e coletiva
e promotora da cidadania com participação
popular, ao mesmo tempo, em que precisa
ser reinventado considerando as necessidades da população brasileira. Essa perspectiva vem sendo apontada pelas resoluções de
conferências de saúde e das plenárias nacionais e estaduais de conselhos de saúde.
O que se coloca como desafio é
a própria reinvenção do SUS, mantendo
seus princípios e diretrizes, mas repensando
os modos de atenção à saúde, priorizando
recursos e ações de promoção e proteção à
saúde, sem abandonar a assistência, com resolutividade, com equipes multiprofissionais
de atenção à saúde que se sintam sujeitos
técnicos e pedagógicos na relação e valorização da pessoa humana em seu compromisso
ético com a vida. Além disso, coloca-se como
fundamental repensar a gestão da política pú-
blica de saúde através da gestão participativa,
com a co-responsabilidade do poder público
nos níveis municipal, estadual e federal, bem
como, o fortalecimento das diversas formas
organizativas populares na área da saúde para
fazer frente à hegemonia neoliberal.
Há um conjunto de Políticas de
Saúde que precisamos conhecer melhor para exigir sua implantação no
SUS. Assim tem a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, a Política
Nacional de Plantas Medicinais, a Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS, a Política Nacional de Saúde da População do Campo e da Floresta, a
Política Nacional da População Negra, entre
outras. Cabe à sociedade civil, especialmente
aos movimentos sociais populares e organizações, avançar nas lutas cotidianas para que
o direito à saúde e às condições dignas de
vida seja efetivado na prática. Essa luta assume caráter estratégico no contexto mundial
de desmonte do Estado e de políticas sociais
e de avanço da mercantilização da vida e dos
direitos fundamentais dos seres humanos.
4.3. Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde32
U
m dos instrumentos importantes para cada cidadã e cidadão
brasileiro lutar no dia-a-dia pela
efetivação do direito à saúde é a
Carta dos Direitos dos Usuários
da saúde, publicada pelo Ministério da saúde em 2006.
Esta carta baseia-se em seis princípios
básicos de cidadania. Juntos, eles asseguram
ao cidadão o direito básico ao ingresso digno
nos sistemas de saúde, sejam eles públicos
ou privados. A carta é também uma importante ferramenta para que cada cidadã e cidadão conheça seus direitos e possa ajudar o
Brasil a ter um sistema de saúde com muito
mais qualidade. Esta carta serve para você
conhecer alguns de seus direitos na hora de
procurar atendimento de saúde. Estes direitos estão assegurados por lei desde 1990.
32
Princípios da carta dos direitos
dos usuários da saúde
Todo cidadão tem direito a ser atendido
com ordem e organização
Quem estiver em estado grave e/ou maior sofrimento precisa ser atendido primeiro. É garantido
a todos o fácil acesso aos postos de saúde, especialmente para portadores de deficiência, gestantes e idosos.
Todo cidadão tem direito a ter um
atendimento com qualidade
Você tem o direito de receber informações claras
sobre o seu estado de saúde. Seus parentes também têm o direito de receber informações sobre
seu estado. Também tem o direito a anestesia e a
remédios para aliviar a dor e o sofrimento quando
for preciso. Toda receita médica deve ser escrita
de modo claro e que permita sua leitura.
Esta carta foi feita com a participação dos governos federal, estaduais e municipais e do Conselho Nacional
de Saúde. Em caso de dúvida, procure a Secretaria de Saúde do seu município. Esta Carta foi publicada pelo
Ministério da Saúde Brasil. Ministério da Saúde.Carta dos direitos dos usuários da saúde / Ministério da
Saúde. – Brasília:Ministério da Saúde, 2006.8 p. (Série E. Legislação -4de Saúde)
Todo cidadão tem direito a um
tratamento humanizado e sem
nenhuma discriminação
Passos para garantir os direitos no
Você tem direito a um atendimento sem
nenhum preconceito de raça, cor, idade,
orientação sexual, estado de saúde ou
nível social. Todo cidadão tem direito
ao atendimento humanizado, acolhedor
e livre de qualquer discriminação. Os
médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde devem ter os nomes bem
visíveis no crachá para que você possa
saber identificá-los. Quem está cuidando
de você deve respeitar seu corpo, sua
intimidade, sua cultura e religião, seus
segredos, suas emoções e sua segurança.
O Sistema Único de Saúde – SUS é o conjunto de ações e serviços de saúde prestados por
órgãos e instituições públicas federais, estaduais
e municipais ou por entidades a ele vinculadas.
O SUS foi conquistado pelo povo brasileiro e está
consolidado na Constituição, garantindo atendimento universal, igualitário e integral a todas as
pessoas, seja nas unidades de saúde, ambulatórios, laboratórios, clínicas, hospitais, instituições
privadas contratadas... sem que nada seja cobrado. Esse atendimento já foi pago pela cidadã e
cidadão, através das contribuições sociais e dos
impostos arrecadados pelo governo.
Todo cidadão deve ter respeitados os seus direitos de paciente
Você tem direito a pedir para ver seu
prontuário sempre que quiser. Tem também a liberdade de permitir ou recusar
qualquer procedimento médico, assumindo a responsabilidade por isso. E não
pode ser submetido a nenhum exame
sem saber. O SUS possui espaços de
escuta e participação para receber suas
sugestões e críticas, como as Ouvidorias
e os Conselhos Gestores e de Saúde.
Todo cidadão tem direito a atendimento
que respeite a sua pessoa, seus valores e
seus direitos.
Todo cidadão também tem deveres na hora de buscar atendimento de saúde
Você nunca deve mentir ou dar informações erradas sobre seu estado de saúde.
Deve também tratar com respeito os
profissionais de saúde. E ter disponíveis
documentos e exames sempre que for
pedido. Todo cidadão também tem responsabilidades para que seu tratamento
aconteça da forma adequada.
Todos devem cumprir o que diz a
carta dos direitos dos usuários da
saúde
Os representantes do governo federal,
estadual e municipal devem se empenhar para que os direitos do cidadão
sejam respeitados. Todo cidadão tem direito ao comprometimento dos gestores
da saúde para que os princípios anteriores sejam cumpridos.
Sistema Único de Saúde (SUS)
O que fazer para garantir o atendimento
Sempre que você ou alguém de sua família
necessitar de atendimento, procure o primeiro
posto de saúde mais próximo. Neste local você
não deve pagar nada pelo atendimento prestado. Em caso de emergência, vá ao Pronto Socorro
mais próximo de seu município. Ali você deverá
ser atendida(o) pelo médico de plantão.
Todo hospital conveniado com o SUS deve ter
Pronto Socorro ou atendimento de Emergência,
com plantão 24 horas, sem cobrar nada do usuário. O médico que você for consultar é responsável pela solicitação de exames ou qualquer outra necessidade. Você não deve pagar nada por
qualquer procedimento solicitado pelo médico:
exame de sangue, urina, fezes, ultra-sonografia,
raios-X, tomografia,... enfim, tudo o que o médico solicitar, você deve levar para a Secretaria
de Saúde providenciar. Após a solicitação pelo
médico, a Secretaria Municipal de Saúde é responsável pela autorização, encaminhamento e
pagamento.
Se você precisar de um atendimento no hospital e necessitar ficar em observação, você tem o
direito de ser atendida (o) pela ficha verde (BAU
– Boletim de Atendimento de Urgência), sem pagar nada. Caso necessite de internação, ficará na
enfermaria ou quarto coletivo. Esta é a acomodação garantida pelo SUS. Todo atendimento deve
ser pela AIH (Autorização de Internação Hospitalar) e você não pagará nada. Mesmo quando não
houver leito na enfermaria, o hospital é responsável por internar o paciente, sem a necessidade
de pagamento de qualquer diferença (Portaria
113 de 01 de setembro de 1997).
41
42
Se o paciente necessitar de um tratamento especializado, que não tem no município, seja hospitalar ou não, os profissionais e a Secretaria de Saúde tem obrigação
de encaminhar para um hospital regional,
acompanhado da AIH. A Secretaria da Saúde também e responsável pelo transporte.
Nos Hospitais conveniados com o SUS,
toda gestante em processo de parto tem
direito de acompanhante, sem pagar nada.
(Lei Federal 11.108 de 07 de abril de 2005).
O que fazer quando houver dificuldades
de atendimento
Se o hospital, médico (a) ou outro profissional da saúde recusar atendimento, devemos ir até a Delegacia de Polícia ou Promotoria, junto com algumas testemunhas, e
fazer uma denúncia de omissão de socorro.
É importante você saber que quem assina o convênio com o SUS é o hospital e
a Secretaria Municipal de Saúde. Portanto,
todos os profissionais que ali trabalham, inclusive o médico e anestesista, não podem
cobrar pelo atendimento prestado.
Se você for vítima de cobranças ilegais
ou qualquer outra irregularidade saiba
como se defender e denunciar:
• Consiga uma testemunha (não pode ser
alguém da família)
• Não aceite pressão do tipo prender receitas ou documentos
• Quando você tiver dúvidas ou for obrigado (a) a pagar, faça o pagamento com
cheque pré-datado e nominal
• Em qualquer situação, exija recibo que
conste o tipo de procedimento que foi
prestado. Não aceite recibo que diga que
é doação ou contribuição espontânea
• O procedimento seguinte é fazer a denúncia, se possível por escrito, ao Promotor
• Se a cobrança for feita em município de
Gestão Plena no Sistema Municipal, denuncie na diretoria de Controle, Avaliação
e Auditoria do município em que aconteceu a cobrança
• Se for em município da Gestão Plena da
atenção Básica, denuncie no Centro de
Auditoria e Controle de sua região.
• Você pode fazer a denúncia no disque
Saúde
Ligação Gratuíta: 0800 61 1997
Fax: 61- 3448 8923 e 61-3448 8926
Caixa Postal 6216 CEP 70740-971
www.saude.gov.br
Saúde integral,
defesa da vida
e emancipação
experiências do MMC
O
MMC vem desenvolvendo lutas
pela garantia do acesso à saúde
pública, combinadas com o fortalecimento do controle social,
trazendo um conjunto de elementos reveladores de um novo jeito de cuidar da saúde,
pensado a partir do paradigma da saúde e não
da doença, que tem como elemento central
o “cuidado” enquanto essência do humano
(BOFF, 1999). As mulheres trazem o “cuidado” como princípio norteador da vida e das
relações. Cuidar significa valorizar, respeitar,
ouvir, zelar pelo outro enquanto pessoa que
se faz revelar e que, na relação humana, se
dignifica. A esse propósito, “saúde é acolher
e amar a vida assim como se apresenta, alegre e trabalhosa, saudável e doentia, limitada e aberta ao ilimitado que virá além da
morte” (BOFF, 1999).
O jeito feminista de tratar a saúde implica cuidar da vida, do conjunto das relações
com a realidade circundante. Relações essas
que passam pela higiene, pela alimentação,
pelo ar que se respira, pela terra onde se
planta e se vive, pela maneira como organiza a casa, a vida e os espaços coletivos. Passa
também pela forma como cada um se situa
dentro de um determinado espaço ecológico.
Esse cuidado reforça a identidade como ser de
relações, buscando um equilíbrio e visando à
integralidade e à totalidade do ser humano.
Assim, a integralidade da saúde tem
uma interface determinante com a dimensão histórica do ser humano enquanto sujeito individual e coletivo da construção social,
cultural, econômica e política da sociedade.
Aliado a isso, o MMC adotou como princípio
o ressignificar a sabedoria popular e a fertilidade da terra e da vida como um todo. Esse
trabalho vem no sentido de enfrentar um dos
5
43
problemas centrais do mundo atual, onde
tudo virou mercadoria, até mesmo o essencial, como a própria vida humana.
Para que tudo isso realmente aconteça na prática, o movimento realiza as ações
educativas na área da promoção à saúde da
mulher e da família camponesa, articulando a
construção do ser humano integral; a agroecologia, as plantas medicinais; a alimentação
saudável; o uso de terapias complementares
na atenção à saúde e a luta para a garantia
de acesso do povo ao direito de ter atenção
integral à saúde pública, através do SUS.
Neste sentido precisam ser considerados
três elementos básicos:
8 O primeiro estabelece uma relação entre o
conceito de promoção à saúde com o Projeto de Sociedade que se quer construir. A
saúde está vinculada diretamente ao modo
como vivemos, aos princípios que defendemos, ao alimento que comemos, ao ar que
respiramos, as amizades e relações interpessoais e sociais que cultivamos.
8 O segundo mostra que não podemos separar o trabalho de promoção à saúde da
conscientização, na perspectiva da formação política; da luta pelos direitos como a
moradia, terra, saneamento básico, educação e do engajamento nas lutas gerais
por mudanças estruturais do sistema capitalista neoliberal.
8 O terceiro tem a ver com o conceito de
saúde integral, ou seja, a concepção de
integralidade da atenção à saúde que tem
como pressupostos:
a) Uma visão de ser humano integral, como
sujeito social e portador de direitos de
vida, dignidade e cidadania;
44
b) O compromisso ético com a vida - sua
defesa, preservação e qualificação em
todas as suas dimensões;
c) Um projeto de desenvolvimento da sociedade entendido como processo de
construção de vida digna a todas as pessoas, que integra as várias dimensões e
princípios da vida e da saúde e não da
lógica do capital;
d) A saúde como direito de todos e dever
do Estado, através da efetiva implantação do SUS, com o caráter de relevância
pública da saúde, e, portanto, colocada
sob o controle social e a participação
popular, conforme a Constituição Federal e suas leis complementares;
e) A incorporação da concepção de Educação
Popular nas práticas junto com as mulheres e famílias, compreendendo que o processo e as relações construídas no campo
da saúde também são educativos;
f) O entendimento de que Saúde é um aspecto integral da vida diária, não se limitando apenas em ficar bem depois de
uma doença.
Nessa perspectiva é que o
MMC, com a marca “Plantando
Saúde”, vem desenvolvendo
ações educativas, lutas
concretas e desenvolvimento
de experiências buscando
construir esse novo modo de
viver e ter saúde na roça.
Com base nas experiências que vêm
sendo realizadas pelas mulheres, as quais
receberam o nome de “multiplicadoras” de
sabedoria, de vida, de saúde, de esperança, o movimento vai dando continuidade ao
processo formativo, organizativo, de luta e
ao trabalho de educação e promoção à saúde da mulher e da família rural a cada ano,
redefinindo os processos e o tipo de ações,
conforme a avaliação do trabalho realizado e
as exigências que a conjuntura apresenta.
Esse tipo de trabalho também vem trazendo elementos acerca da integralidade da
atenção à saúde, do acolhimento das pessoas, do vínculo que as mulheres têm com as
famílias, com o modo de tratar a saúde, que
merecem uma análise mais aprofundada e
evidenciam o quanto o cuidado à saúde requer que se compreenda a complexidade da
teia da vida. Essa experiência tem como fio
condutor as relações de gênero, classe e projeto popular, que constituem a identidade
do próprio movimento, ou seja, a libertação
das mulheres, a transformação da sociedade
e a construção de uma nova sociedade e de
novas relações sociais de gênero, de raça e
ecológicas.
Assim, a luta por saúde tem como eixos
norteadores que se articulam entre si: a) o
direito à saúde pública atuando na área das
políticas públicas gerais e da saúde, b) o eixo
da promoção da saúde da mulher e da família camponesa sendo a saúde como um novo
modo de vida.
Dessa forma, as mulheres camponesas
desenvolvem esse trabalho intervindo no
cotidiano de suas vidas na propriedade, no
espaço da produção (produzindo sem agrotóxicos e transgênicos, optando pela agroecologia), nas relações familiares (dividindo
as tarefas domésticas, construindo um jeito
coletivo de cuidar-se no núcleo familiar –
dialogando, entendendo, cuidando, curando,
protegendo, estabelecendo limites e responsabilidades individuais e coletivas), com o
grupo de mulheres (dialogando, trocando saberes e práticas, fazendo os remédios juntas,
refletindo, organizando e se formando) e com
as comunidades (acompanhando as pessoas
que precisam de apoio e atendimento, com a
“farmacinha”, conversando, escutando, participando da vida comunitária,...).
Além disso, desenvolvem todo um processo de formação, organização e conscientização das mulheres e realizam uma série de
ações, lutas e mobilizações de enfrentamento
das questões específicas que dizem respeito à
saúde da mulher e da família rural, assim como,
junto com outras organizações nas demais lutas por melhores condições de vida e saúde,
enfrentam o próprio sistema capitalista.
Nesse processo de organização, formação, luta e desenvolvimento de experiências
de promoção à saúde da mulher e da família,
as mulheres camponesas, vinculadas ao MMC
estabelecem uma relação entre a saúde e a
previdência: “O tripé da Seguridade Social, a
saúde, a previdência e a assistência social, nos
mostram a grande relação que deve existir
para que as pessoas possam viver com segurança e felizes. Por isso, devem ser públicas,
de caráter universal e de qualidade garantidas
mediante um conjunto de outras políticas”.
Esse trabalho tem uma relação muito
forte com o cotidiano de vida das mulheres e
famílias camponesas, como já foi abordado,
com a dimensão da fé e da espiritualidade, que
é muito forte na cultura das famílias rurais. Os
símbolos e os rituais religiosos ligados à vida e à
saúde são ressignificados a partir da mística libertadora, ganhando um sentido mais profundo e encarnado no cotidiano das mulheres.
Nesse processo, as mulheres enfrentam muitas dificuldades no desenvolvimento
do trabalho de base; mostram as dificuldades
que às vezes enfrentam em socializar o que
aprendem as distâncias para poderem participar, a condição de empobrecimento e do
público no meio rural ser praticamente constituído de idosos. Mas as dificuldades maiores referem-se à participação das mulheres
em momentos de luta fora de sua região e de
permanecerem mais de um dia fora de casa
por conta das exigências de trabalho no meio
rural, pois muitas vezes os homens não dão
conta das tarefas que historicamente foram
delegadas às mulheres.
Por outro lado, essa práxis já vem produzindo um conjunto de resultados no cotidiano
de vida das mulheres que denota sinais vagarosos, mas firmes de mudança. Dentre os
vários aspectos apresentados pelas mulheres, podem-se destacar:
•A conquista de direitos, como o reconhecimento da profissão, a aposentadoria, o salário maternidade, saúde, alfabetização e documentação para as mulheres, entre outros. O
que chama a atenção é que todas as mulheres
entendem o movimento como instrumento de
luta que garantiu, por meio de mobilizações,
esses resultados, os quais incidiram positivamente sobre suas vidas;
•O início de mudança na produção, que as mulheres afirmam: “a gente planta na lavoura de
tudo, planta verduras, mandioca, feijão, arroz,
banana”. “Nós aqui começamos a mudar com o
trabalho da agroecologia”;
•Construção de novas relações: percebe-se mudança na relação com o ambiente, nas relações
familiares e no papel das mulheres, como se
pode ver nas falas: “a gente foi dividindo as
tarefas em casa, sobrando mais tempo para
todos participarem das lutas também. “Uma
vez a mulher era só em casa. Hoje a gente é
da casa, da família, da comunidade e da luta”.
“Tem mulheres com mais participação, organização, mais saúde, solidariedade e entre-ajuda
e as mulheres estão aprendendo a cuidar de si
e da saúde da família”. “As pessoas não estão
mais precisando tomar antidepressivos, porque estão bem e encontraram razão pra viver.”
•O fortalecimento da organização do movimento é outro aspecto bastante salientado pelas
mulheres, como resultado de todo o trabalho
que vem sendo desenvolvido e do respeito que
“as mulheres vêm conquistando e exercendo a
cidadania, se organizando e exigindo seus direitos, cobrando dos responsáveis”. “A consciência que temos para o enfrentamento a tudo
o que vem destruindo a vida e a saúde”. “Mu-
lheres mais livres para falar e participar”;
•Uma companheira mostra o processo e os resultados que vêm ocorrendo com a condição
enquanto mulher:
“Mas quando a mulher toma consciência da
condição, não consegue conviver com a contradição/opressão e aí precisa dar passo para
enfrentar e se libertar. É uma constante, todas
nós passamos por este processo. É um processo, se avaliando, porque não se dá num passe
de mágica, tem a ver contigo, com a sociedade
e com as pessoas que te rodeiam. Aí ninguém
mais segura, vão para a luta. Quando acredita
em alguma coisa, e tem claro onde quer chegar ninguém segura. O movimento tem sido
espaço para as mulheres participarem e terem
a dimensão mais ampla do Brasil e do mundo.
O movimento dá oportunidade da mulher ver
o mundo com uma visão maior das coisas. Espaço privilegiado e paralelo a esta sociedade
que diz que não é possível, nós mostramos que
é possível. Isto é o que vai dando sentido para
a vida dela e da comunidade do MMC. Assim,
depois que supera o conflito inicial que dá, a
família muda, a propriedade muda, a forma de
produzir, de planejar, de rever juntos. É um impacto muito forte”.
O processo de mudança que cada mulher vai construindo à medida que participa do
movimento desvela o fetiche de sua condição
feminina imposta histórico-culturalmente, enfrenta os conflitos e contradições, vai fazendo
emergir o seu “ser mais” como ser humano e
como mulher. Esse resultado não se mede e
muitas vezes não se visualiza num passe de
mágica, mas precisa ser observado como processo de luta por valorização, participação, cidadania, libertação e emancipação.
45
5.1. Plantando saúde
46
O Movimento de Mulheres
Camponesas entende a promoção
à saúde como uma das formas de
resistência e de continuidade da vida
na agricultura.
A saúde é uma das lutas que acompanha
a trajetória de organização das mulheres camponesas no Brasil. De um lado, lutando para que
o direito à saúde seja efetivado e, de outro, para
viabilizar experiências de educação, promoção e
cuidado à saúde das famílias rurais onde o MMC
atua. Estas formas de educar, promover, proteger e cuidar da vida e da saúde das mulheres e
das famílias camponesas traz no seu bojo a sabedoria milenar que as mulheres têm de cuidar
utilizando a natureza, as plantas medicinais, os
alimentos, as orações, a espiritualidade e a mística acolhedora, cuidadora e transformadora da
vida e das relações.
Esta experiência vem ganhando visibilidade com o nome “Plantando Saúde” que tem
por objetivos:
8 desenvolver o ser humano de forma integral
na perspectiva de construir novas relações de
gênero e étnico-raciais no campo, permeadas
pela igualdade e reciprocidade;
8 fortalecer a produção de alimentos saudáveis e
a agroecologia a fim de construir um projeto de
agricultura camponesa promotor de vida, saúde e cidadania das mulheres e de todos os que
vivem e trabalham na agricultura;
8 conhecer e fortalecer o uso adequado de
plantas medicinais no cotidiano de vida, cultura e identidade das mulheres e famílias
camponesas;
8 potencializar a alimentação saudável e modos
de vida promotores de saúde individual, familiar e comunitária no meio rural;
8 incentivar e valorizar o saber popular na saúde.
Para realizar este tipo de trabalho, o
Movimento fez várias reivindicações junto aos
governos federal e estaduais. No caso do Rio
Grande do Sul, em 2001 foi conquistado equipamentos básicos para a utilização adequada
de plantas medicinais e a promoção da alimentação saudável articulados a um processo formativo junto aos grupos de mulheres camponesas organizadas pelo Movimento.
Neste sentido, este trabalho educativo,
de promoção, proteção e cuidado popular em
saúde, chamado de “Plantando Saúde” vem se
desenvolvendo com as especificidades e exigências
de forma diferenciada e peculiar em cada momento e em cada território. Assim, teve uma fase mais
voltada à saúde da mulher, nos direitos sexuais e
reprodutivos, passou para o debate da saúde da
família até o momento de repensar o processo de
produção e os modos de vida na agricultura e as
relações humanas e com a natureza como formas
de promoção e proteção à saúde.
Esta construção vem sempre permeada por
um processo formativo junto com as mulheres
camponesas que desencadeiam ações formativas
junto aos seus grupos, famílias e comunidades.
Esta formação contempla a reflexão acerca do “ser
mulher” e do “ser humano”; da promoção à saúde da mulher no seu ‘ser integral”; da história da
medicina e dos cuidados em saúde, da saúde e da
agricultura camponesa agroecológica, das plantas
medicinais, da alimentação saudável; da história
da mulher na humanidade; da saúde ambiental,
das práticas tradicionais e integrativas de saúde,
do Sistema Único de Saúde e das várias políticas
de atenção integral à saúde, entre outras temáticas apresentadas pelas próprias mulheres.
Ao refletir sobre o ser mulher parte-se do pressuposto que somos um todo no universo composto
das várias formas de vida. Daí a importância do respeito à biodiversidade e de compreender o ser humano dentro desta complexidade e não como ser
exclusivo. Além disto, as relações humanas precisam
ser reconstruídas com base no poder partilhado e na
reciprocidade, superando o patriarcado e todas as
formas de opressão, dominação, discriminação e
violência. Desta forma, para ter boa saúde, é preciso
construir o projeto de vida articulado com um projeto de sociedade justa, democrática e solidária.
Entretanto, para que isto aconteça, é preciso enfrentar os conflitos diários, tendo posição
própria e sentindo feliz pelo que se é como mulher
e pelo que se faz.
Assim, promover a saúde diz respeito a enfrentar as barreiras que esta sociedade impôs culturalmente sobre mulheres e homens, criando muitas
limitações, preconceitos, pessimismos, culpas, medos, inseguranças, sentimentos de inferioridade,
especialmente sobre as mulheres. Isso tudo vem
causando frustrações, angústias e doença. Entretanto, juntas e organizadas, é possível superar estas
dificuldades, enfrentar os desafios e construir novos caminhos de saúde, vida e libertação.
Por isto, para o MMC, promover a saúde é
construir um modo digno e saudável de vida. Este
modo de vida está fundamentado nas novas relações entre mulheres e homens, no cuidado com
o corpo, a mente, o espírito e o ambiente. Promover saúde tem a ver também com a alegria, o
bom humor, a respiração, o sono, as caminhadas,
os exercícios físicos, o lazer saudável, a conversa,
o diálogo, o carinho e o afeto para com os outros;
enfim, ter equilíbrio em nossa vida cotidiana.
Para isso, é preciso conhecer a história das
mulheres, da humanidade e da ciência para saber
e se posicionar diante das situações diárias e não
ter vergonha de mostrar o conhecimento acumulado nas vivências e experiências que temos e
aprendemos do saber popular junto ao povo com
o qual convivemos.
Para ter saúde do corpo e do ambiente é
fundamental saber como produzir o alimento saudável e saber como se alimentar de maneira nutritiva. Por isso, o MMC vem construindo a reflexão
e a prática de implementação do projeto de agricultura camponesa com os princípios agroecológicos, aliados à luta para ter acesso e permanência
à terra, o cuidado com o ambiente e a garantia de
condições básicas de vida (moradia, alimentação,
terra, direitos sociais). Tudo isso é indispensável
para o bem estar das pessoas que vivem no campo
e, ao mesmo tempo, todas sabem que para conseguir isso é necessário muita luta e organização,
muita garra, coragem e ousadia.
Sabemos que o ser humano e todos os animais desde sua origem até hoje sempre usaram e
dispuseram das plantas como base alimentar (alimento nutritivo do corpo, curando as necessidades
causadas pelo desgaste diário do trabalho humano)
e terapêutica (prevenir e tratar de doenças). Esta
sabedoria vem passando de geração em geração,
através das crenças, costumes, saberes e práticas.
junto à população como herança da humanidade. As mulheres contribuíram muito na multiplicação e preservação destes saberes e costumes
em todos os espaços onde participaram e participam. Por isso, o MMC defende e orienta o uso
das plantas medicinais na promoção, proteção e
no cuidado à saúde das pessoas e também dos
animais, como fruto da identidade e compromisso em defesa da vida e da natureza.
Acreditamos que ampliar o
conhecimento sobre as plantas
medicinais é uma forma de resistir
e fortalecer a luta das mulheres
camponesas na construção do
Projeto de Agricultura Camponesa
na perspectiva agroecológica e
feminista.
Isto porque a natureza tem uma diversidade
rica e variada de plantas medicinais e é ali onde os
humanos encontram seu equilíbrio energético e
curativo. As plantas têm a virtude de expelir as toxinas do organismo, purificando-o e suprimindo a
falta de certos elementos nutritivos. Elas oferecem
uma grande quantidade de princípios ativos que
podem ser utilizados na preparação de remédios.
Assim, desta relação histórica com a natureza, as mulheres camponesas vem partilhando
e utilizando as plantas medicinais na arte da cura
e do alimento para amenizar dores e problemas
de saúde do corpo, para fortalecer, energizar e
embelezar o corpo e o ambiente. Arte herdada
das mulheres bruxas, curandeiras, benzedeiras,
cozinheiras... Este dom é preservado através do
respeito (humildade), de reverência (adoração),
do reconhecimento (gratidão), da partilha e da
solidariedade diante das plantas medicinais e
do que a natureza oferece aos seres humanos.
Assim, é preciso que o saber popular sobre o uso das plantas medicinais e sobre os cuidados com a vida e a saúde sejam multiplicados
através de valores materiais e simbólicos como
rituais, cantos, danças, chás, tinturas, caldos,
banhos, inalações, gargarejos, entre outros, aliados com a solidariedade e a missão consciente
das mulheres temperada com ternura e paixão.
As plantas medicinais são encontradas em
florestas nativas, hortas, capoeiras, jardins... com
grande diversidade. O conhecimento e reconhecimento da composição das plantas medicinais
47
48
acontecem através dos sentidos: o tato (tocar,
sentir), o olfato (cheirar), a visão (olhar), a audição (ouvir) e o paladar (mastigar, saborear). Através dos sentidos é que as mulheres vem identificando a planta, de que forma deve utilizá-la e
qual sua função para o organismo. São inúmeros
os “remédios” desenvolvidos a partir de uso das
plantas, desde o surgimento dos humanos e animais. Esses saberes vem sendo partilhados historicamente e até hoje ajudam no cuidado das
pessoas, animais e do ambiente camponês.
Assim, o MMC vem trabalhando, intercalando as etapas de formação, atividades práticas
relacionadas às plantas medicinais e à agricultura, como: preparação do horto medicinal, caldas,
biofertilizantes, secagem das plantas medicinais,
estudos, bem como, mobilizações, reuniões produção de materiais (cartazes, folders, cartilha, logotipo, rótulos). Também acontecem festas, celebrações, rituais, caminhadas, danças envolvendo
as mulheres camponesas dos grupos de base.
Este trabalho tem uma mística libertadora
profunda que envolve todas as mulheres. As oficinas teóricas (estudo, dinâmicas, trabalho em grupo, cochicho) e práticas permanentes e integradas
a cada momento (misturas de tinturas, de elixires
e pomadas, sucos, xaropes, alguns alimentos);
debates sobre o projeto de agricultura, as lutas,
as trocas de conhecimento, de mudas, sementes, receitas, identificação das plantas medicinais,
exercícios físicos e muito diálogo e alegria nos momentos de encontro das mulheres.
O acompanhamento deste processo é feito
por mulheres técnicas agropecuárias ecológicas
ligadas ao movimento que tem conhecimento sobre esta temática articulada com a saúde.
Este trabalho vem construindo um novo
modo de fazer e pensar a saúde, de construir o
desenvolvimento no campo. Um desenvolvimento que valoriza as famílias camponesas e promove
vida, cidadania e contribui para que o campo seja
um lugar bom de viver e de ser feliz.
5.2. Recuperação de sementes crioulas de hortaliças
O MMC entende que as sementes
representam para a humanidade
a continuidade da vida e
preocupado com as conseqüências
do modelo de agricultura
capitalista: agrotóxicos, sementes
transgênicas, adubos químicos,
esgotamento do solo, perda da
biodiversidade, doenças, entre
outros, assume a luta em defesa
das sementes crioulas patrimônio
da humanidade.
No final da década de 1990, o MMC/SC, na
medida em que fazia o debate sobre que projeto de agricultura precisamos para termos vida
e dignidade iniciou algumas práticas de produção agroecológica. Este tema norteou a reflexão da Assembléia Estadual, de 2001, onde foi
deliberado que o MMC deve construir um novo
projeto de agricultura agroecológica voltado
para a transformação da sociedade e capaz de
garantir condições de vida para todos.
Foi intensificado a motivação que o movimento já fazia anteriormente relativa à importância de produzir em suas unidades de
produção uma alimentação de qualidade. E
nesta Assembléia as mulheres camponesas já
trouxeram experiências de produção orgânica
que estavam desenvolvendo e apresentaram na
assembléia, como: produção de sementes de batatinha crioula, radichi, feijão, fermento de pão
caseiro, iogurte e produção de mel de abelha
jataí, entre outras. As mulheres reafirmaram o
compromisso de ressignificar a sabedoria popular, as experiências herdadas de nossos ancestrais
e ousar mais na produção agroecológica.
Esta decisão levou o MMC a planejar um
programa de recuperação, produção e melhoramento de sementes crioulas de hortaliças, capaz
de responder os anseios e os desafios das mulheres
camponesas. Constituiu-se uma equipe onde participou dirigentes do MMC e técnicas(os) identificados com e pelo MMC que já vinham trabalhando
com uma concepção fundamentada na agroecologia, para elaborar a proposta inicial do programa,
que posteriormente, foi aprovada pela direção. Os
inúmeros momentos de estudo, reflexão e debates
com as mulheres contribuíram neste processo.
Objetivo geral
4 Construir com as Mulheres Camponesas a experiência prática e teórica de recuperação, produção e melhoramento de sementes crioulas
de hortaliças, como ação concreta das mulheres na construção do projeto popular de agricultura camponesa a partir dos princípios da
agroecologia.
Objetivos específicos
4 Trabalhar as novas relações de gênero na família, no trabalho, na produção e na relação
com o ambiente;
4 Oportunizar as mulheres camponesas o
aperfeiçoamento político e técnico na recuperação, produção, uso de sementes crioulas
de hortaliças, a partir das práticas acumuladas pelas mulheres;
4 Incentivar as mulheres camponesas para a
produção de alimentos em sua unidade de
produção ou no seu grupo, bem como, recuperar sementes crioulas de hortaliças, cultivando o sentimento de novos valores a serem
compartilhados com as futuras gerações;
4 Denunciar o modelo capitalista transnacional e alertar sobre as conseqüências dos
alimentos transgênicos e as tecnologias que
destroem a vida;
4 Elevar a auto-estima e valorização da profissão de Trabalhadora Rural capaz de produzir,
criar e recriar participando ativamente na produção e reprodução da vida;
4 Criar as condições para que as mulheres camponesas participem das oficinas e sejam agentes de um novo projeto de agricultura camponesa a partir dos princípios de agroecologia.
As práticas de recuperação, produção e
melhoramento de sementes crioulas de hortaliças destinam-se às mulheres camponesas dos
grupos de base do MMC/SC, que desejam estudar e desenvolver as experiências em suas unidades de produção e grupos.
Esta atividade desenvolve-se através de
oficinas, observando os princípios da educação
popular: “quem faz já sabe. Quem pensa sobre
o que faz, faz melhor” e que a gente “aprende
fazer, fazendo”. Assim o estudo parte do conhecimento de cada mulher presente, que com a ajuda da monitora o assunto é aprofundado, avaliado buscando agregar outros elementos políticos
e técnicos, contribuindo para que cada mulher
se aproprie do saber.
Num primeiro momento foram realizados
encontros de sensibilização apresentando a proposta do programa e também construído alguns
critérios para a participação, pois não se tratava
de um curso apenas, mas de uma opção de vida
e de projeto de sociedade e para isso necessitava
de disposição para realizar a mudança, na forma
de trabalho e na produção. As coordenadoras do
MMC no município fazem à inscrição das mulheres camponesas que desejam iniciar as experiências observando os critérios de participação:
•Desejo inicial de continuidade e persistência,
•Desenvolver o espírito de troca, partilha,
entre-ajuda e compromisso com a vida.
•Vontade de lutar para mudar o modelo atual e construir um projeto popular de agricultura agroecológica e de sociedade
•Assumir o compromisso de praticar o que
aprende na unidade de produção e grupo;
•Produzir sementes para compartilhar.
As oficinas são desenvolvidas com acompanhamento da coordenação e monitoras do
Movimento de Mulheres Camponesas e de
técnicas(os) que prestam assessoria e aprofundamento teórico e político.
Após a realização de três oficinas regionais, curso e seminários com as monitoras, realizou-se um seminário estadual com a
participação das mulheres, de técnicas(os) e a
coordenação do MMC/SC para avaliação, aprofundamento e sugestões para a continuidade e
agenda de trabalho.
Filhas da terra alimentando sonhos
de libertação
No dia 8 de março de 2003, foi realizado o seminário estadual em Curitibanos/SC,
com a presença de 800 mulheres, representando dos grupos, onde apresentaram suas
experiências, prepararam sementes para fazer a partilha: cenoura, tomate, alface, cebola, pepino, radiche, feijão-de-vagem, melão,
melancia, pimentão, orégano, salsa, batatinha, chicória, rúcula, mostarda, quiabo, chuchu, couve, alho, morango, gila, melancia de
porco, ervilha, gengibre, fava e batata cará.
49
Também criaram o desenho, ou seja,
o logotipo das experiências, músicas, poesias, entre outras produções. O lema escolhido foi: filhas da terra produzindo sementes
crioulas de hortaliças, alimentando sonhos
de libertação.
50
No seminário foi deliberada a continuidade, ampliação e qualificação das práticas
de recuperação de sementes crioulas de hortaliças nos municípios para facilitar e ampliar
a participação das mulheres. Constatou-se o
avanço no processo, mas o desafio está em
garantir um grupo de mulheres que priorize
a recuperação, produção e melhoramento de
sementes crioulas de hortaliças constituindose um grupo referência neste trabalho.
Para as oficinas de sementes temos um
grupo de monitoras populares com conhecimento técnico, político-pedagógico que
acompanham os 70 grupos com diferentes
experiências. Neste espaço, diferentes temáticas são trabalhadas, entre elas: desenvolvimento da agricultura, formação e manejo do
solo, modelo químico de agricultura e suas
conseqüências para a saúde, agroecologia,
desenvolvimento sustentável, recuperação,
produção, colheita, secagem e armazenamento de sementes crioulas, reeducação alimentar, soberania alimentar.
É necessário elevar o nível de consciência de que sem uma ambiente saudável,
livre os agrotóxicos, transgênicos, ou qualquer outro poluente, é impossível produzir
sementes crioulas. Este é um desafio local,
mas também global, pois para ter saúde é
preciso entender a relação da produção até
o preparo dos alimentos para as refeições.
Recuperar as sementes é preservar a vida!
5.3. Alimentação saudável: necessidade vital
Falar sobre alimentação é falar
sobre uma necessidade vital de
todo ser humano, animal e vegetal.
A saúde depende do consumo de
alimentos saudáveis, bem como,
das relações sociais de igualdade
no local de trabalho, na família, na
comunidade, enfim do ambiente por
onde vivemos.
O alimento com seus nutrientes: proteínas, hidratos de carbono, lipídios, vitaminas e sais minerais, que depois de digerido
é metabolizado33 e transportado, através do
sangue para as células e tecidos sustentando
e dando energia vital ao organismo. O que
não serve (bagaço) é eliminado através das
fezes, urina, suor e respiração.
Nos últimos 20, 30 anos aconteceram
muitas mudanças no modo de vida alimentar ocorrida a partir da imposição do modelo químico agrícola. É comum observar em
muitas famílias camponesas a troca do açú-
car mascavo pelo açúcar branco; do limão
ou da laranja pelo refrigerante; do plantio de
produtos do auto-sustento pela aquisição no
super mercado..., enfim os alimentos industrializados, fabricados com conservantes, corantes, aditivos químicos, entre outros foram
tomando conta do cotidiano.
É neste sentido que não dá para pensar
em uma alimentação saudável sem que pensemos no processo de produção e de preparação. Nós do MMC temos claro que a saúde
esta intimamente ligada com a produção e
por isso, lutamos por um projeto de agricultura baseado na agroecologia34. Há muito
tempo o médico grego Hipócrates que viveu
entre o ano 460 a 377 antes de Cristo ensinou:
"Que o teu alimento seja o teu medicamento
e que o teu medicamento seja o teu alimento". E disse também: "Deixa de lado a droga,
se puderes curar o paciente com alimento".
É no alimento que encontramos a saúde e
a cura do corpo. Diante da importância da
alimentação para a saúde, se faz necessário
Metabolismo (do grego metabolismo, significa “mudança”, troca) é o conjunto de transformações que as substancias químicas sofrem no interior dos organismos vivos. O termo “metabolismo celular” é usado em referência ao conjunto de todas as reações químicas que ocorrem nas células. Estas reações são responsáveis pelos
processos de síntese e degradação dos nutrientes na célula e constituem a base da vida, permitindo o crescimento
e reprodução das células, mantendo as suas estruturas e adequando respostas aos seus ambientes.
34
Referimo-nos à agroecologia como a forma de produção que traz em si uma resistência ao modelo de agricultura
química moderna, permeada de participação, descentralização, diversidade, tendo com um dos pressupostos o
conhecimento das mulheres camponesas e dos agricultores.
33
perguntar-se: Como é preparado o solo para
o plantio das sementes? Quem produziu? De
onde vem? Que qualidade tem as sementes,
mudas..., que são utilizadas para o plantio?
De modo geral há diferenças a serem consideradas no objetivo da agricultura química e
da agricultura agroecológica?
O feijão, arroz, milho, café, pão, batatinha, alface, laranja, banana enfim, produzida
com adubos, fertilizantes, agrotóxicos terá
seus nutrientes alterados, bem diferentes
daquela produzida de forma agroecológica.
Desta forma uma alimentação saudável depende da qualidade dos produtos, ou seja,
como são cultivados. Não há dúvidas de que,
a forma de fazer agricultura interfere diretamente na alimentação.
As transnacionais através da propaganda influenciam diretamente na organização
das pequenas unidades de produção camponesa, alterando o modo de viver, de trabalhar
e organizar a lavoura, a casa, a ornamentação e jeito de fazer a alimentação. Em outras
palavras a industrialização da agricultura tem
provocado mudanças na maneira de Ser e de
Pensar, condicionando as pessoas à adesão
ao mercado, constituindo-se na maioria das
vezes defensoras do modelo de agricultura
capitalista.
O milho36 tem suas origens nos planaltos
do México, em solo centro-americano cultivado há aproximadamente 7000 anos
pelos povos astecas. O milho é especialmente rico em carboidratos, ou seja, açúcares, por isso é um alimento energético.
Possui também algumas vitaminas como
B1, a B2, vitamina E o ácido pantatênico,
além de alguns minerais, principalmente
o fósforo e o potássio.
A abóbora37 tem muitas variedades. É uma
cultura muito difundida no Brasil. Originária da América era à base da alimentação
dos povos Asteca, Inca e Maia. Pertence
à família Cucurbitácea, a mesma da me-
Aos poucos a reorganização da cadeia
agroalimentar, proposta pelo agronegócio
passa a ser incorporada na vida cotidiana de
quem vive no campo e as conseqüências são
irreparáveis a saúde humana, animal e ambiental. O alimento deixa de ser um bem comum, passa a ser uma mercadoria, ter dono
e seu principal objetivo é o lucro. À medida
que a humanidade se envolve com modelo de
agricultura química, cresce o ritmo de eliminação das espécies. Segundo ZANBERLAM, J;
FRONCHETI, A. (1994), de 1500 a 1850 se extinguia uma espécie de vida a cada 10 anos;
de 1850 a 1950 era extinta uma espécie por
ano, de 1950 a 1990 foram extintas 10 espécies por ano. As estimativas eram de que até
2005, seria extinta uma espécie por hora.
Os impactos do modelo de agricultura
química implantada através do programa da
Revolução Verde são evidentes. Em se tratando de alimentação precisa considerar que ao
eliminar o número de espécies, conseqüentemente a humanidade reduz as variedades
em seu cardápio diário. Isto empobrece a
base alimentar trazendo graves prejuízos à
saúde. Conforme estudos35 realizados aproximadamente 150 anos atrás, á humanidade
se alimentava utilizando em torno de três mil
espécies de vegetais. 90% desta produção
eram consumidas pelas populações locais.
lancia, do melão, do chuchu e do pepino.
A abóbora é um fruto rico em vitamina A.
Também fornece vitaminas do complexo
B, cálcio e fósforo. Tem poucas calorias e é
de fácil digestão.
A mandioca38 é um arbusto que, teria tido
sua origem mais remota no oeste do Brasil (sudoeste da Amazônia) e que, antes
da chegada dos europeus à América, já
estaria disseminado como cultivo alimentar até o México. No Brasil possui muitos
sinônimos, diferentes em cada região, tais
como: pau-farinha, macaxeira e outros.
Foi cultivada por várias nações indígenas
que consumiam suas raízes, tendo sido
MACHADO, Luiz Carlos Pinheiro, FILHO, Luiz Carlos Pinheiro Machado, RIBAS, Clarinton D. E. C.
Sementes, Direito natural dos Povos. Org. CARVALHO, Horacio Martins de. Sementes Patrimônio dão
Povo a serviço da Humanidade. Ed. Expressão Popular, 1. edição, São Paulo – SP, 2003, p. 246.
36
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre - milho
37
http://www2.correioweb.com.br/hotsites/alimentos/abobora/alimentos.htm
38
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre – mandioca
35
51
52
exportada para outros pontos do planeta,
principalmente para a África onde constitui em muitos casos, a base da dieta
alimentar. A mandioca é excelente fonte
de carboidratos, cálcio e fósforo. Possui
também uma boa quantidade de vitamina C. A folha de mandioca é rica em proteína, vitamina A, ferro, cálcio, vitamina
C e fósforo. Mas precisa de cuidado no
preparo das folhas para não correr risco
à saúde, pois conforme o preparo pode
intoxicar.
O Feijão. São muitas as variedades originárias da África, do Antigo Egito e da Grécia.
Os povos cultivavam o feijão como símbolo de resistência e vida. No feijão encontramos: calorias, glicídios, proteínas, lipídios, vitaminas B1, B2, B3, cálcio, fósforo,
ferro, sódio, potássio.
O abacate é conhecido mais de 500 variedades, de três origens diferentes: a guatemalteca, a antilhana e a mexicana. Uma
fruta rica em vitamina A, acido fólico, e
potássio, o abacate tem mais proteína
que qualquer outra fruta, cerca de 2g para
cada porção de 110g. Possui, ainda, quantidades úteis de ferro, magnésio e vitaminas C, E e B6.
Se vamos perguntar para nossas avós
como era preparado o café da manhã, elas
logo vão lembrar do cuscuz, tapioca, broa
de milho, pão de queijo, polenta e outros.
Hoje percebemos que esses alimentos foram
substituímos pelo pão de trigo42, biscoitos,
massas, margarina e outros. Com isso nosso
corpo esta mais saudável? Qual é a razão de
tanta mudança em pouco tempo? Se pararmos para analisar, perceberemos que estas
mudanças são planejadas, pensadas e organizadas pelos poderosos, donos das grandes
empresas multinacionais que controlam a
produção agrícola, industrial e o consumo.
Como vimos inicialmente, muitas famílias
camponesas enganadas pela propaganda das
39
40
41
42
O girassol39 é uma planta originária das
Américas domesticadas por volta do ano
mil antes de Cristo pelos povos Incas. As
sementes de girassol são ricas em Vitaminas E, D e complexo B, e o óleo de semente de girassol é bastante popular.
A batata-doce40 é a quarta hortaliça mais
consumida no Brasil. É uma cultura tipicamente tropical e subtropical, rústica, de
fácil manutenção, boa resistência contra
a seca e ampla adaptação. Originária das
Américas Central e do Sul , sendo encontrada desde a Península de Yucatam, no
México, até a Colômbia. Tem mais de 1000
espécies. Cultivada pelos povos Maias,
Incas e Astecas. A batata-doce é rica em
carboidratos, vitamina A, B1 e B5, e sais
minerais como Cálcio, Fósforo e Ferro.
A batata41 é rica em carboidratos. Contêm
sais minerais, vitamina C e, em pequenas
quantidades, vitaminas do Complexo B
para não perder os nutrientes lava-se as
batatas para retirar a terra, sem descascálas e nem cortá-las leva-se ao fogo com
água suficiente para cobri-las, até cozinharem completamente. A batata crua ou
o suco em jejum combate dores e gastrite
estômacal e enfermidades do intestino.
indústrias começaram a buscar no supermercado e levar para sua mesa o azeite, o ki-suco,
a mortadela, as bolachas, salsichas, e outros
embutidos, enlatados. Aos poucos deixam de
ensinar as filhas e filhos como se faz a manteiga, o queijo, a chimia, o salame, o suco, como
plantar o feijão, arroz mandioca, amendoim... e
criar pequenos animais. De vez em quando nos
deparamos com camponesas(es) que preferem
comprar o repolho, batatinha, tomate, arroz e
outros, sob o argumento de que não tem tempo ou não produz. De fato, muitas vezes não
produz por causa do esgotamento do solo, do
uso exagerado dos agrotóxicos, das estiagens...
isso é uma grave constatação que implica na
continuidade da vida das futuras gerações e
que nos desafia a uma ação afirmativa.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Girassol
http://www.cnph.embrapa.br/cultivares/bat-doce.htm
http://www.vitaminasecia.hpg.ig.com.br/batataorientacao.htm
GIOVANNI, Julia Di Agricultura na Sociedade de Mercado. As mulheres dizem não á tirania do livre mercado. Sof. 2006 : p. 24).
Esta prática que aparentemente
é cômoda e fácil adquirir no supermercado produtos que até pouco tempo
cultivávamos na horta, nos leva além
de uma vida menos saudável, mas sobretudo a perda da autonomia. Muitas
camponesas estão perdendo o costume, a técnica de produzir, conservar e
garantir os alimentos.
Esta cultura camponesa herança
milenar de nossos ancestrais vem sendo
substituída pelo processo de globalização e internacionalização das mercadorias padronizando as ofertas de gêneros
alimentícios em todos os supermercados de norte a sul do país. 70% dos produtos industrializados são derivados de
cinco culturas: milho, trigo, arroz, soja e
batatinha. E quinze espécies respondem
por 90% dos alimentos vegetais43 consumido pela humanidade.
A padronização da alimentação afeta os
processos vitais do ser humano, não respeita
a cultura, idade, origem, variedades, e muito
menos o clima, solo,...provoca a falta de resistência, fraquezas, doenças, desequilíbrios e
até mortes, pois se trata de um processo de
extinção das espécies e variedades importantes para a formação de todos os órgãos do corpo, bem como, garantir as resistências contra
vírus e doenças. É um mecanismo de produção perigoso que ameaça a continuidade da
vida do planeta inclusive da espécie humana.
A preservação do solo, a diversidade de espécies é vital para o equilíbrio e vida saudável.
Estudos recentes demonstraram
que na produção agroecológica num
solo rico em matéria orgânica as plantas
crescem de forma natural produzindo
alimentos com alto teor de vitaminas
e minerais. Desta forma entendemos
a inter-relação que tem entre o solo –
produção – alimentação – saúde.
Em uma área de monocultivo, ou seja, plantio sucessivo de uma única cultura retira do solo
sempre o mesmo nutriente, provocando o esgotamento e enfraquecimento do solo e diminuição
das espécies. Por exemplo: em uma área de terra
onde se planta repetidas vezes milho, por conseqüência vai faltar nitrogênio no solo. Isso se agrava com as freqüentes aplicações de fertilizantes,
agrotóxicos e semente híbrida ou transgênicas.
Este processo desequilibra o solo causando
uma espécie de “ferida” trazendo conseBenefícios nutritivos de verduras biológicas
qüências e doenças incontroláveis como:
a ferrugem na soja, a sigatoka negra na
banana, cancro cítrico na laranja, além
de nascer plantas de forma descontrolada prejudicando a produção. Se isso não
bastasse às conseqüências aparecem
também nos animais, como: a gripe aviária nas aves, a vaca louca e outros.
FONTE: Estudio Realizados por la Rutgers University (Miliequivalentes de minerales
por 100 gramas) Fonte: Boletin de la asociacion VIDA SANA, verno del 2002. pg. 10-12.
Cientificamente lãs alimentos biológicos son más seguros y mas nutritivos!
43
Voltamos afirmar que a monocultura produz alimentos pobres em nutrientes. Na tabela ao lado observe a diferença
entre alguns alimentos de produção agroecológica comparando com os alimentos produzidos de forma convencional,
MACHADO, Luiz Carlos Pinheiro, FILHO, Luiz Carlos Pinheiro Machado, RIBAS, Clarinton D. E. C.
Sementes, Direito natural dos Povos. Org. CARVALHO, Horacio Martins de. Sementes Patrimônio dão
Povo a serviço da Humanidade. Ed. Expressão Popular, 1. edição, São Paulo – SP, 2003, p. 246.
53
quer dizer usando agrotóxicos e produtos
químicos.
54
O modelo de agricultura química além
de destruir as espécies de vegetais e animais
os alimentos são de baixo valor nutritivo.
É comum ouvir mães se queixar que seus
filhos(as) têm deficiência de ferro. Conforme a tabela, vemos que o feijão produzido
a partir da agricultura química/convencional quase não tem ferro. Daí a importância
de analisar a qualidade da alimentação que
ingerimos e, ao mesmo tempo, de produzir
alimentos agroecológicos.
As inúmeras experiências
agroecológica que vem sendo
desenvolvidas têm mostrado
uma grande capacidade na
recuperação das variedades de
vegetais animais, aumentado
biodiversidade, melhorando a
qualidade nutricional e a saúde.
Mais do que nunca é necessário assumir a Campanha da alimentação saudável.
Ela nos ajuda a perceber que somos parte do
ambiente e precisamos dar atenção à qualidade dos alimentos, da água, do sol, do ar,
ao mesmo tempo, cuidar do ambiente de
trabalho, descanso, higiene, repouso. A alimentação também influencia na defesa e resistência do organismo, no comportamento,
disposição física e sexual, humor, memória,
inteligência, mente, enfim no corpo todo e
nas relações com as pessoas e o ambiente.
As mulheres camponesas organizadas
em movimento recuperam a luta milenar
com ações de proteção, preservação e cuidado das sementes, das florestas, das plantas medicinais e ornamentais, da mata, dos
pequenos animais, entre outros. Elas ensinam e ao mesmo tempo, detém a capacidade de garantir a biodiversidade, a soberania
alimentar respeitando e integrando as múltiplas formas de vida. É neste contexto histórico que, as mulheres camponesas organizadas no movimento autônomo incorporam
em suas lutas, a perspectiva de construção
de um projeto popular de agricultura a partir
dos princípios da agroecologia, capaz de garantir a soberania alimentar.
A conservação do solo, o cuidado com a produção
de alimentos saudável, combinada com a luta
pela transformação da sociedade é fundamental
para que se tenha um corpo belo, forte,
capaz de gerar VIDA!
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www.saude.gov.br