Jan Van Eyck - Artis - Universidade de Lisboa

Transcrição

Jan Van Eyck - Artis - Universidade de Lisboa
Jan Van Eyck
(c. 1380/90-1441)
Vitor Serrão
(IHA-ARTIS-FLUL)
AGRADECIMENTOS
Maria João Neto
Pedro Flor
Fernando Baptista Pereira
Luís Urbano Afonso
Pedro Lapa
e
Museu Berardo
Lionello Venturi
(Modena, 1885 – Roma, 1961)
Nos setenta anos da edição de PARA
COMPREENDER A PINTURA...
O sucesso de Para compreender a Pintura. De
Giotto a Chagall (1945) , e o compromisso
social do seu autor, é o triunfo da própria
autonomização da História da Arte nas suas
vertentes de alta divulgação, e a valorização de
um método: o relativismo histórico, na tradição
de Riegl e de Wolfflin, aliado a um renovado
formalismo, a crítica objectiva de julgar as
formas e o poder imaginativo dos criadores.
«obra máxima da
própria essência da
arte da Pintura
independentente
do lugar ou tempo,
pela sua profunda
humanidade ...»
Erwin Panofsky,
1953
Jehan van Eyck, ou jɑn vɑn ɛik, nasceu em Maaseik pouco antes de
1390 (quase de certeza em 1488) e faleceu na cidade flamenga de
Bruges a 9 de Julho de 1441. Ele é, reconhecidamente, a mais
fortes e mediatizada personalidade da Pintura do Renascimento do
Norte durante. É autor de obras celebérrimas como o Políptico de
Gand (em colaboração com seu irmão Hubert van Eyck), a Virgem
com Van der Paele, as iluminuras do Livro de Horas Turim-Milão.
Devem-se-lhe seguramente de vinte e cinco pinturas executadas de
1432 a 1439, dez delas assinadas com a fórmula em caracteres
gregos ALS IK KAN (Assim pelo melhor modo que eu (Eyck) posso).
O
A oficina de Jan van Eyck segundo Jan van der Straet (1525-1605), dito Stradanus.
Percurso artístico de Jan van Eyck
O artista – o mais célebre dos Primitivos Flamengos e nome maior
da pintura proto-renascentista nórdica -- nasce c. 1488 em Masseik
(Holanda), recebe influência da escultura tardogótica (Broedeldam,
Sluter, foi provável discípulo do Mestre de Flémalle (Robert Campin
e deve a sua inovação ao citado ‘atrevimento’ no modus operandi.
Usa o óleo como diluente com secagem rápida e os preparados de
branco para conferir à película cromática um brilho intenso. Serviu
João da Baviera, conde de Holanda, em Liège, de 1422 a 1424. Mas
em 1425 é já pintor de câmara do Duque Filipe o Bom, instala-se
em Lille por cinco anos, viaja a Espanha e Portugal em missões do
duque, e só em 1430 se fixa definitivamente em Bruges.
É ainda obscuro o que Jan deve a seu irmão Hubert van Eyck, com
quem teria trabalhado como miniaturista-iluminador e no retábulo
de Gand, começado c. 1420 por Hubert. Outro irmão, Lambert, foi
também pintor. Hubert, que a lenda pinta como pintor celebrado
no seu tempo, é ainda uma incógnita e tem escassa obra segura.
As Três Marias no Túmulo, obra iniciada por Hubert Van Eyck
cª 1410-20 (Rottrerdam, van Beuningen).
Obra completada na oficina de Jan Van Eyck cª 1440
Retrato de Filipe o Bom, com o
Colar da Ordem do Tosão de Ouro,
Por Roger de la Pasture (réplica de
um original perdido)
Filipe o Bom, Duque de Borgonha,
conditor Belgii, governador dos Países
Baixos de 1417 a 1467, tornou o
território da Bélgica durante meio século
um pólo fundamental da estabilidade
europeia. À frente de uma Flandres que
governa com o seu chanceler Nicolas
Rolin a partir de Bruges ou de Bruxelas e
que inclui os conselhos de Namur,
Hainaut, Brabante, Limbourg, Somme,
Luxemburg, e os principados episcopais
de Liège e Cambrai, o tempo de Filipe o
Bom é uma espécie de chefe da
cristandade,
afirma
as
virtudes
cavaleirescas, cria uma corte luxuosa
onde se protegem as artes e letras e que
atrai a Bruges (então com 150.000
habitantes) mercadores, banqueiros e
artistas. O ambiente estável propicia o
desenvolvimento das artes.
Filipe o Bom (iluminura das Chroniques de Hainaut) rodeado da sua
corte brugense, com o chanceler Rolin à esquerda. Em 1430, casou
com Isabel de Portugal, filha de D. João I, que será mãe de seu
sucessor, o príncipe Carlos, o Temerário.
O Ofício dos Mortos, fólio do
chamado Livro de Horas de
Turim. Desta obra truncada,
iniciada pelo duque de Berry,
a autoria da chamada «mão
G», de cerca de 1417-20, que
integra iluminuras delicadas
de realismo, frescura de cor
e arrojadas paisagens na
zona inferior, foi identificada
(pelos historiadores de arte
como Hulin de Loo, Max
Friedlaender, Lorn Campbell,
Maryan Ainsworth) como
sendo uma obra precoce de
Jan Van Eyck.
O Nascimento de São João do Livro de Horas Turim-Milão atesta a mão de
Jan van Eyck, c. 1420, no delicado modo de banhar de luz as atmosferas e
formas, no arrojo de interpretar o espaço, na visão paradisíaca da terra, e já
quase anuncia o estilo do Retábulo de Gand.
Jan Van Eyck e oficina,
Díptico do Calvário e
do Juízo Final, cª
1425-1430.
Metropolitan Museum,
New York (565x195 mm)
Jan Van Eyck, Retrato de
Homem com turbante azul e
anel, cª 1428-30, Museu
Nacional de Brukenthal,
Sibiu, Roménia
O que torna a arte de Jan Van Eyck ruptural
com a tradição gótica flamenga é, antes de
mais, o prodígio técnico com que tira partido
de cores finamente ligadas pelo óleo (com
ovo e vernizes secativos) numa película
transparente e brilhante de finas camadas
cristalinas de glacis sobre uma preparação
branco-marfim de cola animal e cré que se
impregna desse ligante à base de óleo e que
integra o brilho lumínico, a profundidade dos
relevos, o jogo de sombras, as dinâmicas do
espaço, que releva o desenho e o afirma.
Trata-se da descoberta genial de um novo
meio de expressão poética que mostra o
orgulho e plenitude de uma época estável,
tão diferente das conquistas da perspectiva
dos antigos que o Proto-Renascimento
entretanto desenvolvia em terras italianas.
Percurso artístico maduro de Jan van Eyck
Já a obra madura de Jan van Eyck, após 1430, como pintor da corte de
Filipe o Belo e membro da guilda de Tournai, está documentada com
exactidão, até à morte em Bruges em 1441.
Em 1427, foi alvo mesmo de uma homenagem em Tournai por parte
de colegas e admiradores.
Conhecem-se vinte e cinco pinturas absolutamente identificadas, dez
delas assinadas com o célebre moto ALS IK KAN, que surge pela
primeira vez em 1433.
Com a morte, a viúva Margareta e os filhos de Jan Van Eyck vão
continuar a ser alvo da protecção do Duque, que pagava um salário
excepcional ao artista.
O mito cria-se: os humanistas Ciriaco de’Pizzicolli (1449) e
Bartolomeu Facio (1456) elogiam a sua obra, e o tratadista Giorgio
Vasari (1550), destaca-o como inventor da pintura a óleo e um dos
‘primi lumi’ do Renascimento.
Castelo e convento de Avis, hoje
em ruínas, onde Jan Van Eyck e
a missão de Borgonha passam
nove meses de Outubro de 1428
e o Verão de 1429, por causa da
peste que grassava em Portugal.
O célebre pintor tomou aí a
vera efígie da futura duquesa de
Borgonha D. Isabel,
filha do rei D. João I.
O casamento de
Isabel com Filipe o Bom
decorreu em Bruges no
dia de Natal de 1429.
Cópia de um perdido
Retrato de Isabel de
Portugal pintado
durante a viagem a
Portugal de Jan van Eyck
(com estada de nove
meses em 1428-1429
em Avis e Lisboa) para
contratar o casamento
da Infanta, filha de D.
João I, com Filipe o Bom
de Borgonha
Em 2013, Barbara von Barghahn publicou o livro Jan van Eyck and
Portugal 's "Illustrious Generation“, onde investiga a missão do
artista a Portugal para pintar dois retratos da princesa, bem como
as relações entre a casa de Borgonha e a dinastia de Avis. Defende
aí que o pintor teve uma «segunda missão diplomática» em 1437,
ligada à expedição a Tânger do Infante D. Henrique e à aliança
pretendida por D. Duarte com Afonso V de Aragão. Resta ainda
descobrir o impacto de Jan Van Eyck na arte portuguesa, antes da
eclosão do fenómeno Nuno Gonçalves após 1450...
Jan Van Eyck, Estigmatização de S. Francisco de Assis, cª
1430, Galeria Sabauda, Turim (existe versão menor no Museu de
Filadélfia, adquirida em Lisboa cerca de 1830)
Jan Van Eyck, Estigmatização de
São Francisco de Assis, cª 1429-1430.
Filadélfia, John G. Johnson Collection.
Acrescenta-se um dado pouco conhecido dos
estudiosos de Van Eyck: no inventário feito
em 1517 dos bens de Margarida de Áustria,
governadora dos Países Baixos, vem citado o
retrato de uma dama portuguesa: «ung
moyen tableau de la face d’une Portugaloise
que Mme a eu de don Diego fait de la main
de Johannes et est fait sans huelle, sans
couverture ni feuillet…».
O mesmo quadro reaparece no inventário da
casa em 1523, feito em Malines: «jeune
dame accoustrée à la mode de Portugal, son
habit rouge fouré de martre tenant en la
main droite un rolet avec un petit Saint
Nicolas en hault»…, e acrescenta-se que se
chamava ao quadro «la belle Portugaloise».
Era, muito provavelmente, um dos retratos
que Jehan van Eyck pintou em Avis, em
1428, de Isabel de Portugal, para ser enviado
a Filipe o Bom.
Unificação de pormenores
Mestre de Flémalle, Virgem com o Menino, NG
Jan van Eyck, Virgem do Cónego van der Paele, 1436, GM
Retrato do cardeal Niccolò Albergati de Jan Van Eyck,
1431, desenho com anotações escritas no dialecto de
Maaseik, região de Liège de onde era originário o artista) e
pintura a óleo no Kunsthistorisches Museum de Viena.
Jan Van Eyck, Leal Souvenir,
assinado e datado de 10 de
Outubro de 1432, National
Gallery, Londres
O génio eyckiano atesta as altas
virtudes flamengas, com a
ambiguidade da sua divisa, com que
assina: ALS IK KAN, «assim e pelo
meu melhor modo». O retrato
mostra assume o realismo, com
descrição minuciosa dos gestos e
adereços, mesmo na bela ilusão
marmórea do parapeito onde se
inscreve o título.
St Bavon, Gand
O políptico do Cordeiro Místico, iniciado cerca de 1426 por Hubert e
já acabado em 1432, é o primeiro caso de retábulo na Flandres com 5
metros de altura e vinte painéis em anverso e reverso. Encomenda
do rico mercador Josse Vijdt e sua mulher Isabelle Boorlut, mostra
numa paisagem florescente a Adoração do Cordeiro Pascal por anjos,
santos mártires, juízes íntegros, eremitas e peregrinos, sob a luz da
aurora, verdadeira epopeia da fé …
O Retábulo do Cordeiro Místico (completado em 1432) dos irmãos
Hubert e Jan Van Eyck, Catedral de Saint Bavon, Gand
São, ao todo, vinte painéis.
Aberto, vemos Adão e Eva, anjos músicos,
o Padre Eterno, a Virgem e o Precursor, e
a Adoração do Cordeiro Místico.
Fechado, vemos os profetas Zacarias e
Miqueias, as sibilas Eritreia e Cumana,
a Anunciação, os doadores, São João
Baptista e São João Evangelista.
«…vi o retábulo de São João (de Gand)
Pintura estupenda e cheia de inteligência»
(Albrech Durer, 1521)
A obra foi definida como conquista definitiva da
pintura de realidade no Norte…
O painel OS JUÍZES ÍNTEGROS (IVST
IVDICES) foi alvo de roubo na noite de
10 de Abril de 1934, e teve de ser
substituído por um hiper-restauro
(cópia) da autoria de Joseph-Marie
van der Veken (1872-1864).
Uma ode sobre o políptico de Gand do
poeta Lucas de Heere (1559), ao
elogiar o conjunto, refere que neste
painel estavam os retratos de Hubert,
o primeiro juíz, e de Jan van Eyck, na
terceira fila.
Retábulo da Catedral de
Saint-Bavón, Gent
Jan van Eyck (Hubert?)
Pormenor
A narrativa retabular (séculos XIII-XVI)
Os mais antigos quadros «verticais» colocados sobre e atrás da
mesa de altar, surgidos na Itália, substituindo os formatos
«horizontais» directamente derivados dos frontais de altar, mais
comuns na Espanha e na Europa do Norte, apresentam, ao centro,
«imagens de devoção» (de S. Francisco de Assis, p. ex., rodeadas de
pequenas cenas narrativas dos seus milagres e dos passos mais
significativos da sua Vita).
O trecento e as décadas iniciais do Quattrocento, em Itália e também
em Espanha e Alemanha, vai desenvolver o gosto pelos polípticos,
verdadeiras estruturas arquitectónicas ao gosto gótico, com registos
sobrepostos, enquadrando tábuas de diferentes formatos. O registo
principal é constituído geralmente por três, cinco ou sete painéis,
sendo o central o de maiores dimensões. Em altura, apresenta dois
ou três registos, terminando no topo em formastriangular à maneira
de gablete e contemplando na base uma predela.
Sassetta, Retábulo de Borgo San Sepolcro, 1444
• Nas catedrais e nalgumas igrejas monásticas surgiram polípticos
pintados nas duas faces, uma virada para a nave e para os fiéis e
outra virada para o coro e para o clero, disposto atrás do altar
• O surgimento da «pala» de altar no palco florentino na
década de 1430, com o célebre retábulo da Anunciação
de Fra Angélico, impõe a unificação retabular: a própria
estrutura arquitectural, de cariz renascimental, funciona
apenas como moldura, através da qual se admira a cena
representada (e unificada). Caso próximo pode ser visto,
na mesma data e a Norte dos Alpes, no célebre Políptico
do Cordeiro Místico de Hubert e Jan Van Eyck, terminado
em 1432, em que dois dos registos formam duas cenas
unificadas, distribuídas por cinco e por quatro painéis de
suporte.
• Fontes: AA. VV. Poliptiques, Paris, Louvre, 1990; Fernando António
Baptista Pereira, Imagens e Histórias de Devoção. Espaço Tempo e
Narrativa na Pintura Portuguesa do Renascimento (1450-1550),
Lisboa, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2001

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