Soraya Farias Aquino - PPG

Transcrição

Soraya Farias Aquino - PPG
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
MULHER, TRABALHO INFORMAL E VIDA COTIDIANA NA FEIRA MODELO
DA COMPENSA
SORAYA FARIAS AQUINO
Manaus, Amazonas
Mai./2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
SORAYA FARIAS AQUINO
MULHER, TRABALHO INFORMAL E VIDA COTIDIANA NA FEIRA MODELO DA
COMPENSA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia pela Universidade
Federal do Amazonas, como requisito obrigatório
para a obtenção do título de Mestre em
Sociologia.
Linha de Pesquisa: Sociedade, Meio Ambiente e
Trabalho
Orientadora: Profª. Dra. Maria Izabel de
Medeiros Valle
Manaus – AM
Mai./2010
2
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dra. MARIA IZABEL DE MEDEIROS VALLE (Presidente)
Assinatura:_____________________________________________________________
Prof. Dra. ELENISE FARIA SCHERER (Membro Externo)
Assinatura:_____________________________________________________________
Prof. Dr. ERNESTO RENAN MELO DE FREITAS PINTO (Membro Interno)
Assinatura:_____________________________________________________________
Dissertação apresentada e aprovada em 27/05/2010.
3
ABREVIATURAS
SEMPAB – Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento
GEMEF – Gerência de Mercados e Feiras
FMC – Feira Modelo da Compensa
SEMEF – Secretaria Municipal de Economia e Finanças
OIT – Organização Internacional do Trabalho
PAC – Pronto Atendimento ao Cidadão
CAIC – Cento de Atenção Integral à Criança
CAIMI – Centro de Atenção Integrada à Melhor Idade
CICOM – Companhia Independente Comunitária
INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social
ISS – Imposto Sobre Serviços
CBO – Classificação Brasileira de Ocupações
ZFM – Zona Franca de Manaus
CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
4
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Quantidade de feiras por Zona, p.21
Quadro 2 – Distribuição dos boxes/bancas por mulher, p. 27
Quadro 3 – Distribuição dos feirantes por atividade, p. 29
Quadro 4 – Distribuição das atividades comerciais entre os autônomos, p. 32
Quadro 5 – Os arranjos familiares, p. 94
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Divisão de Manaus por Zonas, p. 20
Figura 2 – Localização do bairro da Compensa em Manaus, p. 23
Figura 3 – Localização da FMC no bairro da Compensa, p. 25
Figura 4 – Entrada principal da FMC, p. 26
Figura 5 – Corredor de boxes, p. 31
Figura 6 – Corredor principal das bancas, p. 35
Figura 7 – Corredor de confecções e armarinhos, p. 37
Figura 8 – Área dos restaurantes. P. 39
Figura 9 - A FMC e seu entorno, p. 40
Figura 10 – o movimento de fregueses, p. 41
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, por mais essa oportunidade.
À professora Izabel Valle, que pela significativa orientação, me auxiliou na construção do
percurso que ora apresentamos como produto. Sua firmeza, apoio e incentivo funcionaram
como mola impulsionadora durante todo o desenvolvimento deste trabalho.
Aos professores do PPGS, fundamentais para a ampliação de muitos dos conceitos que
permitiram a realização dessa dissertação, assim como ao corpo administrativo do Programa.
À professora Elenise Faria Scherer e ao professor Jacob Carlos Lima, com seus comentários
imprescindíveis durante o exame de qualificação, o que permitiu melhorar o foco da pesquisa,
tornando sua realização mais tranqüila.
Ao senhor Stenilson T. Pontes, Diretor do Departamento de Mercados e Feiras, assim como à
senhora Rosemary Gomes, gerente de Mercados e Feiras da SEMPAB, que sem criar
obstáculos, autorizaram a pesquisa na FMC e forneceram informações valiosas para a
compreensão do funcionamento das feiras em Manaus.
Ao administrador da FMC, fiscais e feirantes, especialmente às mulheres que se dispuseram a
ceder parte de seu tempo para as entrevistas, sem a qual não teria sido possível a realização
deste trabalho.
Aos colegas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM,
pelo incentivo e apoio durante esta caminhada, especialmente ao prof. Raul de Souza
Nogueira Filho pela correção de língua inglesa e à professora Ana Ely de Oliveira Souza pela
revisão geral do texto.
E finalmente e não menos importante, à minha família e amigos por compreenderem as
ausências e a quase necessidade reclusão durante a construção desta dissertação.
6
RESUMO
Este trabalho apresenta o resultado dos estudos e pesquisas realizados nos últimos dois anos
sobre mercado informal e trabalho feminino, onde buscamos ressaltar aspectos das relações
sociais desenvolvidas no âmbito de uma feira. Apesar de enfatizarmos o papel da mulher,
desenvolvemos discussões sobre as questões de gênero, percebendo como homens e mulheres
se relacionam nesse contexto. Dessa forma, no percurso das discussões, destacamos
categorias que consideramos fundamental para o que se encontra aqui exposto, como o que
tem sido discutido sobre a inserção feminina no mundo do trabalho e de como isso tem se
dado, o aumento da informalidade como estratégia de sobrevivência e os mitos que perpassam
a construção das relações sociais entre homens e mulheres. Foi tentando entender o universo
feminino na informalidade de suas práticas profissionais e no cotidiano, onde também se
insere a vida familiar, que desenvolvemos esta investigação, tendo como finalidade,
compreender como se dá essa inserção e suas conseqüências na vida das mulheres
entrevistadas. É assim que apontamos entre os resultados o fato de que as relações sociais que
se estabelecem na vida das mulheres feirantes encontram-se condicionadas às necessidades de
sobrevivência, tendo sua centralidade no espaço público aqui representado pelo ambiente de
trabalho e mais especificamente na atividade econômica realizada por elas na feira.
Palavras-chave: Trabalho informal, gênero, relações sociais, cotidiano.
7
ABSTRACT
This dissertation presents the results of studies and research conducted over the past two years
on the informal market and female labor, where we try to emphasize aspects of social
relations developed in a street market. Although we emphasize the role of women, we develop
discussions on gender issues, noting how men and women relate to each other in this context.
Thus, in the course of discussions, we highlight the categories that we consider fundamental
to what is exposed here, as what has been discussed about the participation of women in the
workplace as marketer and how this has occurred, increasing informality as a strategy for
survival and the myths that permeates the construction of social relations between men and
women. Trying to understand the feminine universe at informality of their professional
practices and everyday life, where also fits a family life, we developed this research, and aims
to understand how this integration and its consequences on the lives of the interviewed
women. This is how we point among the results from the fact that social relationships that are
established in the lives of women on a street market are conditioned to the needs of survival,
and its centrality in the public space represented here by the working environment and more
specifically in economic activity performed by them in the street market.
Keywords: Informal job, gender, social relations, everyday life.
8
Não ignorar a vida cotidiana é o ponto de partida para decifrar
sociologicamente o possível.
José de Souza Martins
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................... 12
Capítulo I – MERCADOS E FEIRAS
- Entendendo o espaço da Feira................................................................................ 16
- A Feira Modelo da Compensa................................................................................ 22
- O trabalho na Feira Modelo da Compensa............................................................. 27
- A ambiência............................................................................................................ 33
- Os atores................................................................................................................. 40
- Entendendo o trabalho informal............................................................................. 42
- O formal e o informal no mundo do trabalho......................................................... 43
- A informalidade em Manaus.................................................................................. 46
- A mulher e o trabalho informal.............................................................................. 49
- Questões entre trabalho e gênero – Definindo gênero........................................... 51
- Um pouco de história sobre o trabalho feminino.................................................... 53
Capítulo II – TRABALHO E COTIDIANO
- A pesquisa de campo.............................................................................................. 58
- O trabalho no cotidiano.......................................................................................... 61
- Compreendendo o mito.......................................................................................... 69
- O patriarcalismo como imposição da superioridade masculina............................. 74
- A dupla jornada...................................................................................................... 81
- A hierarquia de status............................................................................................. 85
10
Capítulo III – A VIDA NO COTIDIANO
- Os limites entre vida cotidiana e vida privada....................................................... 90
- Formas de organização das famílias...................................................................... 93
- A interiorização da divisão sexual do trabalho e o convívio familiar.....................98
- As despesas familiares...........................................................................................103
- Espaços e tempos dedicados ao descanso e lazer..................................................108
- Discutindo o significado de felicidade..................................................................110
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................117
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................122
ANEXOS..................................................................................................................129
11
INTRODUÇÃO
O presente trabalho teve como objetivo, conhecer e investigar a mulher feirante da
Feira Modelo da Compensa na cidade de Manaus, e ainda, compreender como as relações
sociais no exercício do trabalho influenciam a vida produtiva da mulher feirante, assim como
seu cotidiano. Utilizamos para a realização da pesquisa o método etnográfico com a finalidade
de estabelecer os padrões que se constituem dentro das relações sociais, e para isso tornou-se
fundamental, além da observação participante, as entrevistas realizadas com oito mulheres
que ali trabalham com o comércio de frutas e verduras, priorizando aquelas que se encontram
em idade economicamente ativa, variando entre 25 e 50 anos. Apesar de a proposta ter se
limitado a essa faixa etária, tivemos a necessidade de, em duas situações, entrevistar uma
mulher de 23 anos e outra de 62. Isso se deveu à pequena quantidade de mulheres que têm
autorização para comercializar os produtos indicados, além da recusa de outras em participar
da pesquisa.
As negativas recebidas se deveram ao fato de algumas delas se sentirem inseguras
com relação ao que seria levantado como questionamento, podendo comprometê-las, o que
desde o início deixamos claro que não aconteceria. Algumas recusas foram muito incisivas,
demonstrando a falta de interesse em manter o diálogo, mesmo enquanto tentávamos explicar
a finalidade da pesquisa em questão. Entretanto, como nossa proposta tem base qualitativa, a
quantidade de mulheres entrevistadas não teve interferência direta nos resultados, já que
estávamos em busca de um padrão de comportamento para a análise de categorias mais gerais
que nos permitissem uma compreensão do trabalho realizado naquele espaço.
A pesquisa exploratória teve início em março de 2009, por meio de uma sondagem
do ambiente, o que nos permitiu levantar problematizações para concretizar o trabalho. Após
a autorização da Secretaria Municipal de Produção e Abastecimento – SEMPAB para realizar
a pesquisa, e com a anuência do Comitê de Ética em Pesquisa da UFAM, iniciamos o trabalho
de campo, que se estendeu até janeiro de 2010.
Partindo do tema “Mulher, trabalho informal e vida cotidiana na Feira Modelo da
Compensa”, procuramos compreender como ocorre à inserção da mulher no mercado de
trabalho informal e em que circunstâncias esse trabalho interfere na vida cotidiana, ou seja,
como tal inserção se estabelece na vida prática. Ao nosso objeto de investigação inserimos
12
algumas questões que o fundamentam, como alguns estudos realizados no âmbito das relações
de gênero. Tendo por base análises realizadas sobre tais relações e as mudanças ocorridas no
mundo do trabalho a partir da década de 1970, quando passou a existir uma crescente
inserção do número de mulheres no mercado de trabalho1, percebemos que os principais
fatores deste ingresso se deram principalmente quanto à necessidade de incremento da renda
familiar e a possibilidade de aumento do consumo. (BRUSCHINI, 1994, p. 179). Este e
outros estudos ainda apontam que nos últimos 50 anos, as mulheres têm despontado
significativamente como população economicamente ativa e que esta participação gira hoje
em torno da metade da população feminina. Entretanto, isso se faz perceptível principalmente
dentro do mercado informal, do mercado não remunerado e nos serviços domésticos. Estudos
também têm demonstrado que o percentual de participação oficial no mundo do trabalho cai à
medida que se considera a cor da pele, refletindo uma dupla discriminação: por ser mulher e
por ser negra. Podemos também acrescentar a esse dado, o forte preconceito que em geral se
estabelece ao também ser considerada sua condição socioeconômica.
Em busca de compreender como a mulher, ao se inserir no mercado de trabalho, lida
com seus iguais, é que nos propomos a investigá-la como feirante, como uma parcela da
representação feminina no mundo do trabalho e mais especificamente no mundo do trabalho
informal. Esta escolha se dá por nos permitir a apreensão do universo feminino dentro de uma
atividade produtiva que foge aos padrões formais, além de nos oferecer dados para inserir as
características do trabalho realizado em suas relações sociais. Nossa compreensão teve apoio
na busca em identificar como essas relações sociais condicionam o trabalho da feirante e
como os modos predominantes de contatos e trocas entre pessoas e grupos (as relações
sociais) se apresentam.
Tivemos como locus de investigação a Feira Modelo da Compensa – FMC,
motivados pela idéia de que as mulheres que ali trabalham desenvolvem suas atividades
produtivas acumulando outros papéis, como os de donas de casa, mães, esposas e
trabalhadoras, além de estabelecerem diversas formas de relações sociais. As questões
levantadas para o início da pesquisa se deram em busca das relações que condicionam o
trabalho da feirante, assim como em que moldes se estruturam essas relações.
1
Por mercado de trabalho entendemos a relação existente entre quem procura e quem oferece emprego, ou
seja, é a “articulação entre produção e reprodução social” (SILVA, 2003, p. 152).
13
Ao apontarmos como proposta de investigação a busca em compreender como as
relações sociais interferem na vida das mulheres feirantes da Compensa, é que definimos
como objetivo geral de nossa investigação, compreender como as relações sociais
estabelecidas no exercício de suas atividades condicionam o trabalho da feirante, tendo
ainda como objetivo específico, perceber os modelos de estruturação dessas relações. Para
tanto, partimos em busca da resposta à seguinte questão: em que sentido as relações sociais
presentes no trabalho da feirante interferem no seu dia a dia? Sabendo que a realidade social
toma formas diversas de acordo com as situações e relações sociais que os atores estabelecem
entre si, procuramos por meio desta investigação sair em busca de compreender o trabalho
informal para assim poder contribuir para a compreensão do significado desse tipo de
atividade, a partir do trabalho realizado pelas feirantes. Nesse sentido, tivemos a intenção de
realizar uma análise voltada para a questão gênero, tentando compreender as relações sociais
que se estabelecem na realização do trabalho da mulher. Inicialmente, presumimos que as
relações sociais mantidas no exercício de uma atividade profissional conduzem à ampliação
da reciprocidade e favorecem a construção das relações que se estabelecem no ambiente de
trabalho.
Para o trabalho de campo, partimos da idéia de que apesar de serem diversas as
críticas feitas aos métodos usuais utilizados em pesquisas realizadas na relação entre pobreza
e gênero, o que tem permitido outros procedimentos de análise que incluem além de dados
quantitativos um estudo que enfatiza outras dimensões qualitativas como importante fonte de
informação que encaminha a um aprofundamento dessas questões (SALLES e TUIRÁN,
1998, p.100), procuramos desenvolver uma investigação fundada na pesquisa etnográfica, em
busca de perceber como as relações sociais no trabalho se apresentam em seus diversos
aspectos. Além das entrevistas e observações, utilizamos como fonte de consulta, documentos
oficiais como o Estatuto dos Mercados e Feiras, os documentos fornecidos pela Secretaria
Municipal de Produção e Abastecimento - SEMPAB e mais especificamente pela Gerência de
Mercados e Feiras – GEMEF, além das informações que foram obtidas com os trabalhadores
locais que pudessem contribuir para a compreensão do objeto aqui proposto, visando à
construção de uma realidade com bases atualizadas e oficialmente fundamentadas, dando um
caráter prático às informações colhidas.
No primeiro capítulo, iniciamos o trabalho discutindo a definição de feira, o
comércio informal presente nesses eventos e a especificidade da Feira Modelo da Compensa.
14
Incluímos aqui também uma breve apresentação do bairro onde a feira encontra-se localizada,
além do ambiente e dos atores que interferem e tornam possível o trabalho da feirante.
Consideramos também importante discutir ainda neste primeiro capítulo o conceito de
trabalho informal como fundamento para a compreensão das categorias que são discutidas nos
capítulos seguintes, os quais informarão sobre o trabalho da mulher na feira.
No segundo capítulo, que identificamos como “Trabalho e cotidiano”, discutimos os
dados da pesquisa, construindo as categorias de análise. Inicialmente, são elas, trabalho e
cotidiano e as relações sociais presentes no trabalho na feira. Neste sentido destacamos a
situação da mulher no ambiente de trabalho, suas representações, a participação nas decisões
tomadas no local, as relações de gênero e os mitos que as envolvem, como o patriarcalismo, a
dupla jornada, além da hierarquia de status presente no local de trabalho.
No terceiro capítulo, intitulado “A vida no cotidiano”, inserimos a análise da relação
entre trabalho e família, que em sua totalidade resulta no cotidiano dessas mulheres.
Iniciamos, portanto, com a definição dos limites entre vida cotidiana e vida privada. Na
sequência, discutimos a interiorização da divisão sexual do trabalho dentro da família, assim
como os arranjos voltados para a administração das despesas familiares. Na continuidade,
trabalhamos com os espaços e tempos dedicados ao descanso e lazer, em que ressaltamos a
precariedade destes e fechamos com o convívio familiar, discutindo os conflitos e tensões
presentes neste âmbito. Nesta parte do trabalho também inserimos a discussão sobre o
significado de felicidade, muito presente nas falas das mulheres, tema que finaliza o capítulo.
Por fim, fazemos as considerações finais, apresentando os resultados da discussão
geral, em torno da estrutura das relações sociais, dos padrões predominantes de contatos e
trocas entre pessoas e grupos na Feira Modelo da Compensa e os condicionantes destas
relações.
15
Capítulo I
MERCADOS E FEIRAS
Entendendo o espaço da feira
Os mercados e as feiras são espaços de comércio tradicional que têm ultrapassado os
séculos, sendo entendido ao longo do tempo como importantes pontos de encontro para a
troca de mercadorias e de relações sociais. Esse espaço abrange uma possibilidade de
investigação interdisciplinar, possibilitando aos pesquisadores das diversas áreas do
conhecimento uma busca de respostas que unam, ao mesmo tempo, questões ligadas à
antropologia, economia, geografia, psicologia social, história e sociologia entre outras
(MOTT, 2000, p. 14). Foi neste locus rico em possibilidades que traçamos um roteiro de
investigação em busca do entendimento das relações sociais as quais se estabelecem no local.
As feiras são eventos que ocorrem em todas as cidades do mundo, incluindo aí
povoados, aldeias ou pequenas comunidades, podendo ser elas urbanas ou rurais. Apesar de
ser um espaço de troca/venda de mercadorias, nele está contido um ambiente potencial de
possibilidades de análises incluindo o fato de como esta troca/venda se insere no contexto das
relações sociais, permitindo uma ampliação de um espaço que pode ser compreendido a
princípio, como meramente econômico, a partir do contato primário e da própria negociação
do preço que ela possibilita. Ela representa mais uma alternativa profissional e um meio de
prover as necessidades tanto dos que ali trabalham quanto dos que a procuram em busca de
melhores preços, sendo ela uma alternativa de consumo que de certa forma concorre com os
supermercados e seus funcionários tão imparciais.
Apesar de serem realizadas desde a antiguidade, as feiras nos dias de hoje
apresentam uma característica que as colocam em uma posição singular dentro de um mundo
capitalista, uma vez que após a criação dos novos termos em 1972, pela Organização
Internacional do Trabalho – OIT diferenciando o trabalho formal do informal, esses espaços
são identificados como locais de realização do comércio informal, não sendo o que
16
necessariamente identificamos como trabalho ambulante2. O que estamos considerando é a
diferença que esse tipo de atividade apresenta com relação ao comércio formal, que obedece a
critérios oficiais de constituição e formalização de uma empresa. É nesse sentido que
entenderemos a partir de agora estes eventos, ou seja, como um local onde prioritariamente se
desenvolve a informalidade do trabalho, nos termos que conhecemos hoje3.
Ao procurarmos dados sobre as primeiras feiras no Brasil, podemos perceber que a
feira foi introduzida pelo colonizador português, pois nossos índios “não produziam
excedentes que justificassem transações comerciais nem dentro nem fora da aldeia” (MOTT,
2000, p. 21). Apesar de termos conhecimento sobre sua existência desde a Antiguidade, e
mesmo em regiões próximas a nós, as feiras só chegaram aqui com a implantação do
mercantilismo e a efetiva colonização desenvolvida por Portugal, no século XVI. Mesmo
assim, elas basicamente só existiam “nos centros urbanos, geralmente circundando o prédio
do mercado” (op. cit., 2000, p. 22).
É no âmbito dessas primeiras informações que precisamos entender a diferença entre
feira e mercado. É também em Mott (2000) que buscaremos uma primeira compreensão. Ele
define feiras e mercados como instituições que se inserem no sistema econômico e que “se
baseiam na produção, distribuição e consumo de bens e mercadorias”, além de representarem
uma alternativa profissional para homens e mulheres, (op. cit. 2000, p. 24). Para ele, estes
espaços
permitem o escoamento de gêneros agrícolas (geralmente hortaliças) produzidas por
pequenos sitiantes do cinturão verde das cidades e capitais, além dos produtos
vendidos por pequenos extrativistas, de frutas silvestres, crustáceos, artesanatos,
bens que dificilmente chegam às redes atacadistas dos supermercados (MOTT,
2000, p.33-34).
Para Ferretti (2000), apesar das feiras e mercados serem
2
A Lei Federal de Nº 6.586, de 06 de novembro de 1978, em seu Artigo 1º, classifica o comerciante ambulante
como “aquele que, pessoalmente, por conta própria e a seus riscos, exercer pequena atividade comercial em
via pública, ou de porta em porta”.
3
A compreensão atual tem como referência os parâmetros definidos pela Organização Internacional do
Trabalho – OIT em 1972, e que identifica esse tipo de trabalho como não pressupondo vínculo empregatício
nem garantias sociais por não pagar impostos nem ser cadastrado na Junta Comercial ou Delegacia Regional do
Trabalho.
17
locais onde se comercializam gêneros alimentícios e outras mercadorias e tenham
muitas semelhanças, tanto na sua estrutura como na sua função, apresentam muitas
diferenças (...) o termo feira em Portugal designa uma grande reunião comercial
regional, realizada via de regra com grandes intervalos de tempo, enquanto mercado
designa local destinado a abastecimento local realizado mais amiúde ” (Ferretti apud
Mott, 2000, p. 39).
No caso brasileiro, as feiras podem ocorrer semanalmente de forma itinerante ao ar
livre, assim como em construções especialmente reservadas para isso. Nas feiras localizadas
em prédios próprios para esse comércio, em alguns momentos essas aglomerações se
aproximam muito mais do que o autor referido cita como sendo características de um mercado
do que das feiras que ocorrem em outros países europeus, como citado, tendo ainda grandes
variações, o que torna mais difícil sua distinção (FERRETTI, 2000, p.39-40). Ferretti (2000)
ainda ressalta que o mercado é um local coberto, em geral construído ou administrado pela
prefeitura e que tende a funcionar diariamente, sendo encontrado em núcleos urbanos mais
populosos, enquanto as feiras são “reuniões comerciais” periódicas, realizadas em local
descoberto e em geral próximo dos mercados, e sendo seus comerciantes ambulantes, por não
terem local fixo para a comercialização (op. cit., 2000, p. 40-41).
É neste sentido que o acima descrito não corresponde à definição que encontramos
na Lei 123/2004, pois o que Ferretti (2000) chama de feira, neste documento é apresentado
como “feira livre”, diferenciando-se da feira coberta objeto do presente estudo.
Temos assim as seguintes definições, de acordo com a Lei nº. 123, de 25 de
novembro de 2004, elaborada com base na Lei Orgânica do Município de Manaus, que
“Dispõe sobre a organização e o funcionamento dos Mercados e Feiras no Município de
Manaus...”, em seu Capítulo I – Disposições Preliminares, Art. 3º, inciso I, diz que “mercado:
é o imóvel do patrimônio municipal dotado de divisões físicas onde se pratica o comércio
varejista dos gêneros e mercadorias mencionadas no art. 1º.” 4. No inciso II, “feira livre: lugar
público administrado pelo Município e desprovido de divisões físicas onde, em determinados
dias da semana e em horários preestabelecidos pratica-se o comércio varejista de gêneros e
mercadorias mencionados no artigo 1º”. Já no inciso III, define assim uma “feira coberta:
4
Os gêneros e mercadorias citados neste artigo se referem a “gêneros alimentícios, produtos agrícolas e
hortigranjeiros, doces e salgados, peças do vestuário, artigos de armarinho, cama, mesa, banho e cozinha, de
limpeza doméstica e higiene pessoal, secos e molhados, estivas em geral e congêneres” (MANAUS. Lei nº
123/2004).
18
imóvel do patrimônio municipal desprovido de divisões físicas onde diariamente se pratica o
comércio varejista de gêneros e mercadorias mencionados no art. 1º.” Ou seja, a única
diferença que se estabelece entre as três situações é o fato de a primeira, o mercado,
apresentar “divisões físicas”, o que as outras duas não apresentam. Por outro lado, a feira livre
se diferencia da feira coberta por esta se instalar em um imóvel e por ter comércio diário. É
essa definição de feira coberta que utilizaremos como parâmetro para a nossa investigação a
partir de agora.
De acordo com informações obtidas junto à Secretaria Municipal de Produção e
Abastecimento - SEMPAB, a cidade de Manaus possui 08 Mercados Municipais, 35 Feiras
Municipais, 02 Feiras Municipais Volantes e 48 Feiras Comunitárias. Os Mercados
Municipais se enquadram no modelo descrito pelo documento da Prefeitura por ter uma
estrutura com subdivisões internas. As Feiras, apesar de não estarem previstas subdivisões
físicas (boxes), podem apresentar estas divisões em alvenaria ou madeira, nestes casos,
apresentando portas e balcões. As Feiras Volantes, por se encontrarem em locais abertos e se
deslocarem semanalmente, são compostas apenas por bancas que são montadas no momento
de sua realização. Normalmente funcionam em ruas que são disponibilizadas especialmente
para isso em alguns dias da semana. Já as Feiras Comunitárias são criadas pelos moradores de
uma comunidade sem que isso se dê com a autorização antecipada da Prefeitura Municipal,
apesar do documento prever isso. Elas surgem em decorrência da necessidade da população
para obter uma renda, que muitas vezes, por falta de uma formação profissional, ocorre como
alternativa de sobrevivência, que costumeiramente se dá através da informalidade, onde
pequenos empreendedores se aglomeram para comercializar produtos de pequeno valor,
cabendo à Prefeitura apenas fazer o acompanhamento de seu funcionamento.
Em Manaus, as feiras são encontradas em várias regiões da cidade e se distribuem
dependendo da população e do tamanho dos bairros, por Zona. Ainda de acordo com a Lei nº.
123/2004, os mercados e feiras cobertas e livres deverão ser criados por iniciativa da
Prefeitura Municipal, considerando a densidade da população na área circunvizinha, fácil
acesso aos consumidores, satisfação da comunidade e infraestrutura adequada (Manaus, 2004,
Art.5º). Apesar dessa disposição, não é o que observamos na prática, ao considerarmos a
quantidade de Feiras Comunitárias que se espalham pela cidade, criadas aleatoriamente. Isso
pressupõe uma imensa necessidade de sobrevivência de uma população que cresce a olhos
vistos e se espalha por toda a periferia da cidade.
19
Manaus é uma cidade que se encontra dividida administrativamente em Zonas. A
Zona Oeste é constituída por 12 bairros, estando eles próximos ao Rio Negro e ocupando uma
área de aproximadamente 2.000 Km do município. Observamos então o mapa do município
de Manaus, a partir de algumas alterações realizadas na fonte original:
Figura 1 – Divisão de Manaus por Zonas
1
2
6
5
4
3
Fonte: http://www.manausonline.com/serv_trans_rodo_lurbana.asp
LEGENDA
1.
2.
3.
4.
5.
6.
Zona Norte
Zona Oeste
Zona Sul
Zona Centro-Sul
Zona Leste
Zona Centro-Oeste
Tendo por base o mapa da cidade de Manaus, observamos que a Zona Oeste divide
com a Zona Leste as maiores áreas da cidade, o que tornaria natural uma maior quantidade
destes eventos. Apesar disso, é a Zona Sul que possui uma maior quantidade de feiras,
distribuídas entre os 17 bairros que nela se inserem, e que se localiza na região mais central
20
do município, considerando que foi nessa região que construíram a Fortaleza de São José do
Rio Negro5, onde teve início a cidade de Manaus.
Temos então a seguinte distribuição de feiras por Zona, em ordem decrescente:
Quadro 1 – Quantidade de feiras por Zona
Zona
Quantidade de Feiras
Sul
11
Leste
07
Oeste
06
Centro-Oeste
04
Norte
02
Centro-Sul
01
Total
31
Fonte: Gemef/ Sempab, com a elaboração do quadro pela autora.
Acrescentem-se a este total, 02 (duas) Feiras Volantes: a Feira Municipal Prefeito I
na Zona Sul, que funciona de terça-feira a sábado nos bairros de Aparecida, Centro, Praça 14,
ao lado do Cemitério São João Batista e Cachoeirinha, nessa ordem, e a Feira Municipal
Prefeito II, que funciona nas Zonas Centro Sul e Centro Oeste, ocorrendo de quarta-feira a
sexta-feira, no Conjunto Eldorado, Centro Comercial Campos Elíseos e na Bola do Parque 10
de Novembro, também nessa ordem, e também administradas pela Prefeitura. Temos ainda a
Feira do Produtor Zona Leste e a Feira do Produtor Santo Antônio, o que perfaz o total de 35
feiras na capital do Amazonas.
Existem ainda como já citado, 48 Feiras Comunitárias, que são acompanhadas, mas
sem administração direta da Prefeitura Municipal. Isso ocorre porque o número crescente de
feiras tem uma demanda de fiscais que a própria administração municipal não consegue dar
conta. Dessa forma, elas têm cadastro na Prefeitura, porém não se inserem no controle, por
não serem passíveis de fiscalização ostensiva, como acontece com as Feiras oficialmente
acompanhadas, que em geral têm administradores fixos no local.
5
Fonte: http://www.brasilturismo.com/am/manaus/historia.php
21
A Lei Municipal nº. 123/2004 destaca ainda em seu Art. 24, que “cada mercado ou
feira será dirigido por um administrador, de livre escolha do Secretário da SEMAF [atual
SEMPAB], selecionado entre os servidores públicos municipais detentores de reconhecida
experiência na área do comércio e da administração pública, subordinado sempre à orientação
e ao controle do titular da pasta.” O administrador passa a fazer então o papel de mediador
entre a SEMPAB e a feira, sendo o responsável por tudo o que acontece no local, mantendo
atualizados os cadastros dos permissionários, podendo inclusive adotar medidas
administrativas.
O mesmo documento ainda dispõe entre outros, das Comissões Gestoras, que estão
presentes em cada mercado ou feira, e que deve ser “composta por um presidente, um vicepresidente e até três membros”, escolhidos em eleição direta e secreta pelos permissionários e
que tem a função de auxiliar o administrador, arrecadar o valor pecuniário para a vigilância,
limpeza e manutenção do local, devendo prestar contas mensalmente à Gerência de Mercados
e Feiras – GEMEF/SEMPAB (Manaus, 2004, Capítulo IV).
Para obter a permissão para trabalhar em uma feira ou mercado, o candidato deve ser
encaminhado pelo administrador da feira, onde entrará em uma lista de espera separada por
feira, podendo o candidato receber a permissão caso exista algum box desocupado. Para isso a
pessoa deverá preencher uma ficha de cadastro, que será acompanhada pelas cópias do RG,
CPF, título eleitoral e certidão negativa. A mesma coisa deve ocorrer no momento da
desistência do espaço. Os critérios de permissão são definidos pela SEMPAB.
Especificamente para a Zona Oeste no ano de 2009, encontravam-se disponibilizadas
pela SEMPAB, 1.067 (um mil e sessenta e sete) permissões, distribuídas entre seis feiras, um
mercado municipal e um mini-shopping, todos localizados naquela região. Como nosso
referencial de pesquisa se restringe à Feira Modelo da Compensa, é dela que trataremos a
partir de agora.
A Feira Modelo da Compensa
A Feira Modelo da Compensa - FMC encontra-se localizada na Zona Oeste, em um
dos mais populosos e antigos bairros periféricos de Manaus, que tem em torno de quarenta
anos de existência e aproximadamente 73 mil habitantes6.
6
Fonte: http://diariodacompensa.blogspot.com/2007_11_01_archive.html
22
Figura 2 – Localização do bairro da Compensa em Manaus
Compensa
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/compensa
Como Manaus é uma cidade que cresceu assombrosamente em virtude das frequentes
“invasões”, o bairro da Compensa se mostra como um bom exemplo desta situação,
representando aqui o que ocorreu com a maioria dos bairros localizados na periferia da
cidade, a qual cresceu rapidamente em virtude dos constantes processos migratórios. Para
Valle (2007),
O processo migratório para Manaus intensificado com a criação da Zona Franca
manauara caracteriza dois movimentos combinados: esvaziamento do interior
amazonense e „inchaço‟ populacional da capital do Estado. (...) A intensificação do
fluxo migratório teve como conseqüência, (...) o inchamento da cidade, a
proliferação de favelas, o aumento da criminalidade, da prostituição e do número de
menores carentes, o crescimento do desemprego e do subemprego, a elevação do
custo de vida, etc.” (Valle, 2007, p. 134-135).
É difícil encontrar dados sobre o surgimento dos bairros mais antigos de Manaus,
mas de acordo com o Jornal do Comércio (12/01/2006), o bairro da Compensa foi uma área
23
invadida na década de 60 por famílias removidas da Cidade Flutuante7, chamada assim por
serem as casas erguidas sobre balsas flutuantes na orla do Rio Negro, localizada ao sul do
bairro, ainda no governo de Arthur César Ferreira Reis. A invasão não ocorreu de forma
pacífica, pois a área pertencia à família Borel e tinha sido antiga propriedade de alemães. O
que hoje é o bairro recebeu inicialmente o nome de Vila Sapé, depois de Cidade das Palhas e
finalmente “o atual nome de Compensa, referência a uma antiga serraria que produzia lâminas
de compensado” (Jornal do Comércio, 12/01/2006).
Desde então o bairro da Compensa cresceu muito e hoje abriga além da sede da
Prefeitura Municipal de Manaus, a do Governo do Estado. Apesar de ser um bairro
urbanizado, percebemos que as grandes benfeitorias se deram ao longo de sua principal via, a
Av. Brasil. É nela que podemos encontrar além das sedes dos Governos municipal e estadual,
o Pronto Atendimento ao Cidadão - PAC, Centro de Atenção Integral à Criança – CAIC,
Unidade Básica de Saúde, Centro de Atenção Integral à Melhor Idade – CAIMI, 8º Distrito
Policial (Polícia Civil) e a Companhia Independente Comunitária da Polícia Militar – 8ª
CICOM, escolas estaduais e municipais, Centro Social Urbano, bancos diversos e um
comércio que varia de pequenos estabelecimentos comerciais a consultórios médicos e
dentários entre outros. É também por esta avenida que em breve se dará o acesso à Ponte
sobre o Rio Negro que ligará Manaus à Iranduba, município que se encontra na outra margem
do Rio. (Jornal do Comércio, 12/01/2006).
A Feira Modelo da Compensa funciona em uma rua perpendicular à Avenida Brasil,
em um prédio construído pela Prefeitura Municipal de Manaus, que em março de 2010
completou 16 anos de existência. Apesar de não existir oficialmente nenhum documento que
dê conta de sua criação, foi através de um antigo feirante que obtivemos um relato que nos
propiciou uma breve reconstrução de sua história, conforme aqui exposto.
A Feira Modelo da Compensa foi criada no final da década de 70 por iniciativa e
necessidade da própria comunidade do bairro, funcionando inicialmente como Feira da Índia,
onde hoje se encontra a Escola Estadual João Bosco (Compensa I). Ao serem expulsos do
local, mudaram-se para o final da Rua Amazonas e passaram a funcionar como Feira do
Bagaço. Expulsos mais uma vez, instalaram-se na Av. Brasil, em um terreno onde hoje se
7
Para Salazar (1985), a Cidade Flutuante situada na orla do rio Negro passou a ser uma alternativa de moradia
para as pessoas que não tinham condições de morar em terra, sendo o resultado de dois problemas:
“inexistência de emprego e de habitação em Manaus e o êxodo rural causado pelo ‘débâcle’ da borracha.”
(SALAZAR, 1985, p. 59).
24
encontra uma loja de materiais de construção.
Após muitas negociações, a Prefeitura
Municipal cedeu um terreno no lado oposto da avenida, onde ela se encontra até hoje
(Compensa II).
A primeira construção foi feita pelos próprios feirantes no ano de 1980. Em 1993 ela
sofreu uma reforma, passando a ficar sob a responsabilidade e administração da Prefeitura de
Manaus. Ao ser inaugurada em 1994, passou a ser chamada de Feira Modelo da Compensa.
Este nome se dá pelo fato de a mesma ser então a maior feira da cidade, devendo sua
arquitetura servir como modelo a todas as outras que fossem construídas em Manaus a partir
de então. Ela encontra-se localizada na Rua São Pedro, s/n, Compensa II e, oficialmente está
cadastrada na SEMPAB como Feira Municipal Compensa II. Entretanto, continuaremos
utilizando a denominação Feira Modelo da Compensa - FMC, por ser esta a sua identificação
(fachada) e o nome pelo qual a mesma é conhecida na localidade.
Figura 3 – Localização da FMC no bairro da Compensa
Fonte: http://maps.google.com.br
A FMC é composta por permissionários residentes em diversos bairros da cidade,
mas predominam os moradores do próprio bairro da Compensa, sendo eles 209 dos 329
25
permissionados. Encontramos também muitos moradores de bairros vizinhos e até de bairros
localizados no lado oposto da cidade.
Segundo o antigo administrador da FMC, ela ocupa o status de 4ª maior feira de
Manaus, entretanto, consultando o relatório da GEMEF/SEMPAB do ano de 2009,
percebemos que a mesma encontra-se na 3ª colocação em relação ao número de
permissionários e em 2ª em relação ao número de boxes. Temos assim, a Feira da Manaus
Moderna com 961 permissionários, 704 boxes e 240 bancas; a Feira da Panair com 754
permissionários, 194 boxes e 500 bancas e a Feira Modelo da Compensa com 329
permissionários, 232 boxes e 97 bancas. Com relação ao movimento nessas feiras, não
existem informações oficiais e talvez nesse sentido ela seja considerada a 4ª maior de Manaus.
Figura 4 – Entrada principal da Feira Modelo da Compensa
Entrada principal da FMC pela Rua São Pedro.
Fonte: arquivo da autora; jan./2010.
Do total de 329 permissionários da FMC, cerca de 127 são mulheres, sendo que são
elas também que ocupam e são permissionárias de 172 dos espaços destinados à
comercialização dos produtos e definidos como boxes e bancas lá existentes (tendo algumas
delas mais de um box ou banca), totalizando 172 permissões e significando que mais da
metade do espaço da feira é ocupado por elas. Uma outra observação a ser feita é que o uso de
26
cada box ou banca corresponde a uma permissão individual, o que com base nos mesmos
relatórios da GEMEF/SEMPAB, nos permitiram a elaboração do seguinte quadro:
Quadro 2 – Distribuição dos boxes/bancas por mulher
Quantidade de box/
Mulheres
Total
1
89
89
2
34
68
Mais de 2
04
15
banca
Total geral
172
Fonte: Dados fornecidos pela Gemef/ Sempab 2009, com a elaboração do quadro pela autora.
Percebemos então que 89 mulheres têm permissão para o uso de apenas 1 (uma) banca
cada, 34 têm 2 permissões cada e 4 delas possuem mais de duas permissões, ocorrendo
situações em que uma mesma mulher tem até 4 permissões de uso de Box ou banca.
Perguntado sobre os critérios utilizados para a obtenção de mais de uma permissão, o
administrador informou que isso é competência única da própria SEMPAB, pois é lá que são
feitos os registros e listas de espera para a permissão.
O trabalho na Feira Modelo da Compensa
A FMC tem o seu funcionamento iniciado às 04h da manhã, se estendendo por todo o
dia até as 21h, de domingo a domingo. Algumas situações são muito específicas, pois
dependendo do tipo de produto a ser comercializado, seu início pode ocorrer por volta das 8h
ou encerrar em torno das 17h. Essa flexibilidade no horário de funcionamento busca atender
às especificidades de cada atividade comercial ali desenvolvida. Entretanto, para alguns,
chegar à feira às 4h significa ter que acordar por volta das 2h da madrugada, principalmente
no caso dos que trabalham com peixes ou os que trabalham com frutas e verduras.
Este é um lugar onde é estabelecida a livre concorrência, onde cada feirante define seu
preço de acordo com o que achar que vale o produto a ser comercializado, embora seja levada
em consideração a oferta e a procura, a qualidade do que é oferecido, a procedência, safra e
27
entresafra e a própria aceitação do produto. O propósito é deixar que o mercado regule a
comercialização do que é oferecido na feira, sem a interferência do poder público. Assim, o
preço do produto é estabelecido levando-se em conta o transporte da mercadoria, o preço de
aquisição e a força de trabalho, sem deixar de lado, porém, os outros critérios mencionados.
Existem na Feira situações bem divergentes em que de um lado, podemos encontrar
alguns “autônomos”, como eles mesmos se autodefinem, bem sucedidos e com empresas
constituídas (uma pequena quantidade), por outro lado, encontramos a grande maioria que
vive com cerca de 02 salários mínimos/mês, segundo um dos representantes dos feirantes.
Muitos revendem produtos perecíveis que acabam por dificultar a obtenção de algum tipo de
lucro significativo, pois se não ocorre à venda no dia, o produto perde a qualidade. Aqui
também não encontramos nenhum tipo de produtor.
Entre as atividades comerciais desenvolvidas na FMC e com base nos dados
fornecidos pela GEMEF/SEMPAB, construímos o quadro a seguir que demonstra a
distribuição dos produtos comercializados. Nele começaremos a destacar a situação da mulher
na FMC, visualizando a totalidade dos espaços ocupados por elas e o comércio com cada tipo
de produto. Para dar destaque à posição da mulher, portanto, criamos uma coluna que nos
permite entender o quantitativo delas, além de deixar claro sua predominância em
determinadas áreas. Para tanto, encontramos a seguinte distribuição em ordem decrescente, na
qual classificamos os espaços mais ocupados por atividade, acompanhada pela referida
quantidade de boxes/ bancas utilizados por elas:
28
Quadro 3 – Distribuição dos feirantes por atividade
Atividade
Quantidade total de boxes/bancas
Boxes/ bancas com mulheres
Lanche
71
41
Estivas
35
20
Bazar
31
16
Frutas/verduras
29
15
Peixe
27
03
Confecções
21
21
Produtos regionais
16
06
Carne
09
01
Doces
08
05
Armarinho
07
06
Frango
07
06
Miúdos
06
-
Laticínios
06
01
Distribuidora
06
-
Café da manhã
06
06
Embalagens
04
02
Restaurante
04
04
Artigos religiosos
03
-
Frutas
03
01
Ourivesaria
02
-
Polpas
02
01
Sorveteria
02
02
Protético
02
-
Temperos
02
-
Panificadora
02
01
Salão
01
01
Calçados
01
-
Relojoaria
01
-
Jornaleiro
01
01
Total
315
160
Fonte: Gemef/ Sempab, com a elaboração do quadro pela autora.
29
Como podemos observar, os espaços ocupados na feira estão prioritariamente
reservados ao comércio de produtos alimentícios, sendo o comércio de frutas/verduras, peixe,
produtos regionais, carne, frango, miúdos, polpas ou somente frutas (em geral frutas mais
caras), o que corresponde a 98 bancas/boxes, seguido pelo comércio de alimentos prontos
para o consumo, que se distribui entre lanches, doces, café da manhã, restaurantes, sorveteria
e panificadora, somando 91 bancas/boxes e totalizando 189 espaços dedicados apenas ao
comércio de alimentos. Os boxes restantes, ou seja, 140 boxes/bancas comercializam produtos
não perecíveis ou de maior durabilidade.
Vale ressaltar que no comércio de produtos alimentícios, 33 boxes/bancas são
ocupados por mulheres, e no comércio de alimentos prontos para o consumo, 57 desses
espaços estão sob sua responsabilidade. Isso não significa que os 34 boxes/bancas restantes,
mesmo com a permissão de trabalho dada aos homens, sejam eles os preparadores de tais
produtos. Em geral, a elaboração dos alimentos fica por conta das mulheres, ficando o homem
apenas com a venda dos mesmos.
Portanto, nas atividades realizadas, as mulheres predominam nos setores de alimentos,
armarinho, confecções, frutas e verduras e praticamente não são encontradas no setor de
venda de carnes (01 para 09) e peixes (03 para 19), onde a predominância é masculina. Na
venda de frango encontramos 05 mulheres para 06 homens, significando que na venda deste
tipo de produto não são percebidas muitas diferenças, solidificando a ideia de que elas
mantêm suas áreas de atuação próximas às atividades consideradas tradicionalmente
femininas.
Observamos ainda pelos documentos fornecidos, que existe uma predominância de
mulheres no comércio de alimentos (lanche, doce, café da manhã e restaurante). Além disso,
dos 71 boxes de lanche, 40 são ocupados por mulheres; na venda de doces encontramos 05,
sendo o café da manhã serviço exclusivo delas, assim como a permissão para o trabalho com
os restaurantes.
Percebemos também que a área de confecções é exclusiva delas. Por outro lado,
também observamos que elas se encontram presentes em grande quantidade na venda de
frutas/verduras, onde das 29 pessoas 15 são mulheres, e das 31 que trabalham com bazar, elas
estão presentes em 16. Apenas 01 homem trabalha com armarinho, e um dado interessante a
ser destacado é que das 35 pessoas que trabalham com estivas, ocupação tradicionalmente
considerada masculina, 20 são mulheres.
30
Além dos boxes acima descritos, temos também 01 box utilizado pela comissão
8
gestora , 01 para trabalho de mídia (1 homem) e 02 para voz (1 homem e 1 mulher). Podemos
também identificar que existem 08 permissões sem atividade definida (2 homens e 3
mulheres, alguns com mais de uma permissão), e 02 boxes identificados como inexistentes. A
somatória corresponde aos 329 boxes/bancas, das quais 160 deles com a permissão de uso
para mulheres como já citado, e cinco que se distribuem entre inexistente e sem atividade
definida, também delas, totalizando 165 permissões, o que corresponde à metade mais 01 das
permissões concedidas pela SEMPAB.
Figura 5 – Corredor de boxes
Aqui encontramos um dos corredores da FMC reservado exclusivamente aos boxes.
Fonte: arquivo da autora; jan./2010.
É importante ressaltar que 19 das permissões concedidas têm seu espaço utilizado
como depósito e que as 08 permissões sem atividade definida constam no documento como
ativo, significando que o permissionário trabalha no local mesmo sem identificação do
produto que comercializa.
8
Esta comissão é composta por “um presidente, um vice-presidente e até três membros, todos escolhidos por
maioria absoluta dos permissionários, dentre os feirantes através de eleições diretas secretas com mandato de
dois anos, sem qualquer vínculo empregatício com o Município.” (MANAUS, Art. 28 da Lei 123 de 25/11/2004).
31
As bancas têm sua disposição principalmente ao longo do corredor principal, o qual
se encontra localizado ao lado direito da entrada da feira, e nos arredores do espaço interno,
sendo identificadas no documento fornecido pela GEMEF/SEMPAB, como BC. É nesses
espaços que observamos principalmente o comércio de peixes, carnes, frutas/ verduras, café
da manhã e temperos.
Quando se trata da situação dos permissionários a qual indica se eles são ativos ou
não no trabalho na feira, percebemos que dos 329, 19 são denominados de autônomos sendo
que destes, 08 são mulheres e 05 são homens, um deles tendo duas permissões. Por outro
lado, os homens só são encontrados como autônomos quando são vendedores de lanches,
tendo ainda 01 que realiza trabalho como protético. Todos os autônomos ocupam boxes,
sendo inexistente o uso de bancas por estas pessoas. Podemos identificar o tipo de atividade
em que os autônomos se distribuem no quadro a seguir:
Quadro 4 – Distribuição das atividades comerciais entre os autônomos.
Atividade
Total de permissões
Permissões para mulheres
Quantidade de mulheres
para autônomos
autônomas
Lanche
09
03
02
Estivas
03
03
02
Bazar
04
04
03
Confecções
02
02
01
Protético
01
-
-
Total
19
12
08
Fonte: Gemef/ Sempab, com a elaboração do quadro pela autora.
A busca de esclarecimentos para o fato de algumas pessoas se identificarem como
autônomas não existe oficialmente, mas percebemos que essas situações se encontram muito
próximas
daquilo
que
poderia
ser
denominado
micro
ou
pequeno
empresário,
descaracterizando o papel e a própria função social da feira, que não exige criação oficial de
uma empresa. E mesmo no caso de se autodenominarem empresários, a situação oficial de
constituição de uma empresa não é observada. Mas grande parte dos trabalhadores da feira se
auto-define mesmo como feirante, sempre enfatizando que ser feirante não o diminui em
32
nada, já que realizam um trabalho honesto. Essa é uma forma muito peculiar de tentar não se
sentir diminuído pelo status dado ao autônomo, que pressupõe uma posição de superioridade
em relação aos demais. Assumir-se autônomo dá uma idéia de mais poder, justificando uma
clara renúncia a ser identificado como feirante.
O autônomo é o profissional que exerce sua atividade econômica de forma não
organizada, ou seja, sem estrutura física ou estabelecimento para exercer suas atividades. Esse
é o caso do ambulante e como já vimos, de alguns feirantes que se identificam como tal.
Mesmo nesse caso, o autônomo não está livre de impostos, pois, ao se registrar como tal, a
carga tributária que incide sobre esse tipo de atividade são o Imposto de Renda sobre Pessoa
Física - IRPF, o seguro social presente no pagamento do INSS e o Imposto Sobre Serviços ISS9. No caso da feira, com apenas uma exceção, todos os outros que se declaram autônomos
acabam por não ter o registro oficial e muito menos pagam os impostos devidos, significando
que de fato essa realidade foge à regra. A diferença que se estabelece entre os que se
consideram autônomos e os que se identificam apenas como feirantes cria um certo mal-estar
que gera uma possibilidade de hierarquização do status, assunto que discutiremos no segundo
capítulo.
A ambiência
Nesta parte do trabalho iremos discutir mais amiúde o ambiente em que ocorre o
trabalho dos feirantes. Este ponto da pesquisa é referente à fase de observação, na qual
fazemos o uso de todos os sentidos para a descrição do local, enfatizando aspectos que em
geral passam despercebidos, a não ser nos casos em que pela rotina da observação, treinamos
o olhar para isso, ou seja, quando existe uma intencionalidade.
Para Martins (2006, p.86), a ambiência está ligada à preocupação ambiental que teve
início na década de 70 e se intensificou nas décadas seguintes. Este é um conceito que
trabalha as qualidades do ambiente relacionadas à luz, som, odores e as percepções em geral
nas quais o ambiente passa a se relacionar com o espaço e o tempo, estabelecendo
uma troca, uma circulação construtiva entre o dado e o configurado, o sentido e a
ação, o percebido e o representado: ela é a configuração sensível situada num local;
9
Fonte: http://www.sebraesp.com.br/faq/criacao_empresa/empreendedor/autonomo_empresa
33
ela é a expressão de uma cultura que alia função, arte e técnica; ela é a expressão
recepção de uma cultura por parte dos habitantes/usuários; ela é uma globalidade
perceptiva que une elementos objetivos e subjetivos representados como uma
atmosfera, um clima, um meio físico e humano e também um dispositivo técnico
ligado às formas construtivas. (Martins, 2006, p. 87).
A FMC é um espaço urbano onde predomina a circulação de produtos e pessoas,
sendo sua ambiência representada por um aglomerado de divisões denominadas setores, com
subdivisões em blocos que se distribuem de A a O. Temos ainda o setor de frente, o setor
extra e dois estacionamentos, um localizado na frente da feira e outro na parte de trás, que é
coberto. A entrada ao interior da FMC pela frente, se dá por três escadas, duas laterais e uma
central, sendo duas mais íngremes à esquerda e no centro e outra mais ampla, ladeada por
uma rampa à direita, que dá acesso à passagem principal.
O espaço interno apresenta passagem mais larga nos três corredores que cortam a
feira da frente até próximo ao estacionamento que fica na parte de atrás e que também permite
a entrada dos consumidores. Entre os blocos há espaços que não apresentam mais de 1,5m,
utilizados como via de deslocamento pelos transeuntes entre um bloco e outro.
Não percebemos espaços vazios nas passagens principais, sendo em geral todos eles
ocupados por bancas para a venda de produtos diversos. No último bloco são visíveis alguns
boxes fechados, localizados próximos aos banheiros coletivos, deixando claro que estes são
espaços desqualificados. A desqualificação do espaço é percebida pelo posicionamento que
este ocupa, sendo mais valorizados aqueles que se encontram mais na frente, próximo à
entrada principal da feira, ou aqueles que se encontram nos corredores mais movimentados.
De acordo com o atual presidente da feira (Comitê Gestor), a distribuição dos
espaços encontra-se fora dos padrões, pois segundo ele, o correto seria ter na área frontal a
venda de produtos considerados prioritários para o comércio na feira, como frutas, verduras,
carnes, peixes, e não os armarinhos, bazares e distribuidoras, como ocorre no momento. Outro
ponto a ser considerado é o fato de que, para ter acesso aos produtos o cliente precisa subir
escadas, o que, segundo alguns, dificulta a movimentação dos possíveis compradores. Para
estes, o correto seria a feira se encontrar no nível da rua.
Os boxes têm tamanhos diferenciados e seguem a lógica do produto vendido. Temos
os maiores que medem em torno de 4m2 que são usados para o comércio de estivas,
distribuidoras e restaurantes e estão localizados na frente e parte central da feira. Já os que
34
medem 2m2 são usados para a venda de frutas e o comércio de quinquilharias, tendo sua
localização mais à frente. Algumas armações são feitas de madeira e no caso das bancas de
confecções, todos os espaços são ocupados por produtos expostos. Os balcões de peixes,
carnes e frangos, expõem seus produtos para a apreciação pública e são dispostos em série em
um corredor largo localizado à direita da entrada principal (aqui considerada aquela que dá
acesso pela escada e pela rampa).
As bancas de frutas e verduras encontram-se sempre próximas aos balcões de carnes,
peixes e frangos, sugerindo que estes produtos devem ser acompanhados pelas verduras
expostas. Ocorre dessa maneira uma perfeita união entre o objetivo e o subjetivo, o observado
e o velado ao tornar natural a necessidade de acompanhamento de um para o outro.
Figura 6 – Corredor principal das bancas
Corredor localizado à direita da entrada principal e disponibilizado principalmente às
bancas de verduras e frutas, venda de frango e peixes.
Fonte: arquivo da autora; jan./2010.
A aparente desordem da feira esconde uma ordem imperceptível para os menos
sensíveis, para os que chegam com pressa ou estão só de passagem e acabam por perder a
oportunidade de perceber que aquele é um espaço onde novas culturas e novas representações
sociais se estabelecem, tornando necessário um olhar diferenciado para captar o sentido do
35
espaço recriado pelas pessoas que ali trabalham. Buscaremos a partir de agora descrever o
ambiente que nos permitirá compreender melhor as condições físicas, palco do trabalho dos
feirantes.
A luz
A iluminação natural predomina apenas nas áreas mais próximas da entrada,
enquanto na parte interna, o uso de iluminação artificial é imprescindível. Apesar de existirem
algumas telhas transparentes que permitiriam uma iluminação natural mais intensa, a falta de
limpeza e o acúmulo de sujeira não permitem a entrada da luz natural de forma eficaz. É isso
que propicia o fato de alguns ambientes parecerem escuros, principalmente, os que se
encontram na parte mais central da feira. Neste caso, o uso de luzes artificiais torna-se
necessário, sendo então, este, um fator relevante para a valorização do espaço.
A térmica
Considerando o calor do verão amazonense, percebemos que nas áreas mais centrais
não ocorre ventilação natural, sendo necessário o uso de ventiladores. O projeto arquitetônico
da feira não permite que o ar circule, sendo insuportável o calor nos horários de sol mais forte.
Além disso, a cobertura com telhas galvanizadas e a estrutura de ferro que as suporta é baixo
para permitir que o vento circule internamente.
Os sons
Os ruídos perceptíveis se dão em torno tanto do movimento de carros e ônibus que
transitam na rua em que a feira se encontra localizada, como internamente, onde podemos
ouvir um burburinho de sons que giram em torno das relações sociais que se estabelecem
entre os feirantes e os fregueses, nas negociações e nas ofertas que ocasionalmente são
utilizadas para chamar a atenção dos possíveis compradores. Também percebemos o barulho
de música que vem dos rádios e TVs que algumas vezes encontramos em alguns boxes, nas
conversas que ocorrem entre vizinhos de bancas, e do alto falante que chama por alguém ou
indica as ofertas do dia.
O barulho fica mais intenso nos finais de semana, quando a
quantidade de pessoas aumenta significativamente e o entra e sai de fregueses aquece a
economia da feira.
36
Os odores
Os odores se confundem em alguns momentos, o que torna difícil uma identificação
isolada. A cada bloco podemos identificar cheiros que variam entre ervas, frutas, peixes e
carnes, demonstrando que o cheiro que prevalece caracteriza os setores de venda. Sentimos
também em algumas áreas um mau cheiro que é proveniente principalmente dos banheiros, da
lixeira pública, dos esgotos e poças d‟água que se acumulam nos dias de chuva ao longo da
rua onde a feira está localizada.
As cores
Uma infinidade de cores se espalha pelas bancas. São cores que alegram o local e
chamam a atenção para as compras, sendo percebidas principalmente nas bancas de frutas/
verduras e de confecções, que se espalham ao longo da entrada da feira. A entrada funciona
como um destaque pelo colorido que proporciona aos que se encontram de passagem nas
proximidades.
Figura 7 – Corredor de confecções e armarinhos
Corredor inicial localizado paralelamente à entrada da FMC.
Fonte: arquivo da autora; jan./2010.
37
Manutenção e limpeza
A manutenção da feira encontra-se comprometida. Algumas telhas apresentam
rachaduras e furos e o piso de cimento se encontra necessitando de reparos, colunas de ferro
que apresentam sinais de ferrugem e desgaste, etc. De acordo com alguns feirantes, esse é um
problema de gestão, pois o comitê responsável pela manutenção, não tem dado a atenção
necessária para alguns detalhes que poderiam fazer a diferença. No que se refere à limpeza,
observamos uma grande quantidade de teias de aranha na cobertura, o piso sempre úmido na
área de venda dos peixes e lixo na calçada de entrada (provavelmente jogado pelos
transeuntes). Internamente não observamos grande quantidade de sujeira, pelo menos no que
se refere a lixo espalhado pelo chão, a não ser nos dias de intenso movimento.
Segurança
Internamente não observamos nenhuma situação que prejudique a segurança, mas
como a feira encontra-se localizada em um bairro considerado violento, a cautela nos dias de
muito movimento é fundamental, principalmente na entrada e na saída do local. Os feirantes
afirmam que o ambiente interno é seguro, todavia a saída requer cuidados, pois já ocorreram
situações de roubos e pequenos furtos nas proximidades.
Os espaços de “lazer” e alimentação
Estes locais são os destinados à venda de alimentos e bebidas. É nos restaurantes e
lanches que os feirantes se reúnem nos intervalos ou no final da tarde para conversar
descontraidamente, almoçar, fazer pequenos lanches ou tomar diversos tipos de bebidas,
incluindo as alcoólicas. A administração informou que a venda de bebidas alcoólicas somente
é permitida a partir das 10h da manhã para controlar o seu consumo, pois a venda iniciada
mais cedo propiciava a geração de tumultos durante o horário de trabalho.
Fomos
informados que algumas pessoas depois de beberem demais, acabam dormindo no
estacionamento, incapazes de retornar para suas casas. Algumas delas já são conhecidas por
todos que trabalham no local, pelas repetições das mesmas situações, e nesse caso pode ser
incluída até uma mulher que já foi identificada como moradora do bairro, mas não funcionária
do local.
38
Figura 8 – Área dos restaurantes e lanchonetes
Funciona como uma praça de alimentação onde podem ser encontrados restaurantes,
lanchonetes e pequenas mercearias.
Fonte: arquivo da autora; jan./2010.
O entorno
No entorno da feira podemos encontrar uma grande quantidade de ambulantes, que
aproveitam o movimento da feira para vender seus produtos. Alguns carregam armações de
ferro e se instalam nos muros próximos à espera de compradores, outros empurram uma
espécie de carro de mão adaptado, e seguem pela extensão das ruas para expor e vender suas
mercadorias. Encontramos também pedintes idosos e crianças, flanelinhas que se colocam na
rua para cuidar e lavar os carros enquanto as pessoas fazem compras, e carregadores para
ajudar a levar as sacolas até o carro (em geral crianças e jovens). Apesar de não terem a
segurança obtida com a permissão, estes acabam sendo beneficiados pelo movimento naquele
local.
O entorno encontra-se diretamente relacionado com a segurança, pois é do lado de
fora que se encontram a maioria dos problemas que aquele ambiente apresenta, e que pode em
algumas situações afastar os clientes. Por outro lado, a administração da feira não se
responsabiliza por nada do que acontece fora dali, priorizando apenas a segurança interna.
39
Figura 9 – A FMC e seu entorno
A FMC e seu entorno que oferece oportunidades para a compra de variados produtos.
Fonte: arquivo da autora; jan./2010.
Os atores
Encontramos entre os feirantes pessoas que vieram de diversas localidades do país,
principalmente nordestinos. Muitos deles aqui chegaram com a migração ocorrida durante a
criação da Zona Franca de Manaus e dizem com orgulho que através da feira conseguiram
educar seus filhos e manter o sustento da família. Outros são pessoas que chegaram mais
recentemente, no final da década de 1980, e encontraram no trabalho da feira uma estratégia
de sobrevivência viável para a superação dos obstáculos causados pela falta de qualificação e
até mesmo pela diminuição da oferta de emprego no Distrito Industrial de Manaus, nossa
maior fonte de postos de trabalho na cidade. Alguns são originários de lá e encontraram na
feira uma alternativa de vida após a demissão.
Para ser feirante não é necessária uma qualificação formal, nem existe nenhum tipo
de formação especial. Pela Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, o feirante se
enquadra no código 5242-05, estando entre os vendedores em bancas, quiosques e barracas e
tendo como principais características de sua descrição o fato de venderem “mercadorias nas
vias públicas, em pontos fixos, sob permissão governamental; compram e preparam
mercadorias para venda; organizam o local de trabalho, dispondo as mercadorias em feiras
40
livres, bancas, quiosques e barracas, para atender os compradores que procuram esse tipo de
mercado. Comunicam-se, apregoando a qualidade e o preço do produto.” 10
Figura 10 – O movimento de fregueses
A venda de peixes em um dia de domingo.
Fonte: arquivo da autora; jan./2010.
Observamos, dessa forma, que ao feirante é necessária uma maneira especial para
lidar com o público que somente é adquirida com a prática do trabalho realizado,
principalmente porque é isso que permitirá a fidelização do cliente. Assim faz-se proeminente
a troca de gentilezas entre o feirante e o consumidor, em busca do estabelecimento de uma
profícua relação, determinando as preferências dos fregueses, que muitas vezes se deslocam
até a parte posterior da feira para comprar dos seus feirantes preferidos. Nessa tática também
podemos encontrar as negociações, os descontos e o fiado, sendo esta última prática permitida
somente para os fregueses preferenciais mais antigos.
Observamos também que é nessa prática de negociação que o feirante desempenha
um papel, representando o que o freguês espera dele, cedendo na negociação ou insistindo na
valorização do produto a ser vendido para que a compra seja efetuada. Mas o freguês também
representa muitas vezes, tentando convencer o feirante a diminuir o preço, a oferecer
descontos, pechinchando, mesmo sabendo muitas vezes que a compra será realizada
independente do resultado da negociação. Aliás, a possibilidade de negociação direta é uma
10
Fonte: www.cbo.gov.br
41
característica própria das atividades que são exercidas no âmbito de uma relação social
primária, onde o contato direto entre o vendedor e o comprador forma a base da interação
social. Isso torna as feiras e os mercados ambientes que resistem ao tempo, principalmente
quando vemos aumentadas as relações impessoais nos grandes centros urbanos. Como um
ator atuando em um filme ou novela, a representação aqui ocorre como parte estruturante da
organização social presente no trabalho na feira, encontrando-se presente em todos os
momentos vivenciados naquele local, que, tomando por base Goffman (2007) em “As
representações do eu na vida cotidiana”, pode ser entendido como o cenário da atuação. Mas
trataremos mais sobre o assunto nas páginas posteriores, mais especificamente no segundo
capítulo. Por ora, precisamos esclarecer alguns pontos chave para a compreensão sobre o
trabalho na feira, incluindo aí as amplas discussões travadas em torno da formalidade e
informalidade do trabalho, questões que se encontram na tônica do dia e que fazem parte da
preocupação dos mais influentes governantes e de todos aqueles que se inquietam com as
questões sociais na atualidade.
Entendendo o trabalho informal
Diante da discussão realizada até o momento, identificamos o feirante como um
trabalhador informal. Apesar de não considerarmos que este trabalhador seja necessariamente
um desempregado pela crise desencadeada pela reestruturação produtiva11, podemos afirmar
que sua situação se insere no contexto dessa crise, ao analisarmos as transformações pelas
quais tem passado o mercado de trabalho, que tem permitido o florescimento de antigas
formas de produção e “O rápido crescimento de economias „negras‟, „informais‟ ou
„subterrâneas”, indicando no nosso caso, o “surgimento de novas estratégias de sobrevivência
para os desempregados ou pessoas totalmente discriminadas” (Harvey, 2004, p. 145).
Excetuando-se os casos em que as pessoas seguem uma tradição familiar de trabalho na feira,
temos observado que a maioria das pessoas que nela ingressam o faz em decorrência da
necessidade de desenvolver um trabalho produtivo que incremente a renda familiar ou que
permita a própria sobrevivência individual ou familiar.
11
A reestruturação produtiva trouxe em seu bojo novos métodos de gestão, inovações tecnológicas, a
terceirização, mudanças no mercado e nas relações de trabalho, causando a diminuição de postos de trabalho
e em conseqüência o aumento do nível de desemprego. (VALLE, 2007, p. 81-93).
42
Ao desenvolver uma noção ampliada de classe trabalhadora e incluir nela todos os que
“vendem sua força de trabalho em troca de salário”, Ricardo Antunes (2007, p. 103) insere
“os trabalhadores assalariados da chamada „economia informal‟ (...) [que são] indiretamente
subordinados ao capital”. Nesse sentido ele explica que sua compreensão de “economia
informal” se dá “basicamente nos trabalhadores assalariados sem carteira de trabalho, em
enorme expansão no capitalismo contemporâneo, e também dos trabalhadores individuais por
conta própria...” (op. cit., 2007, p. 103). É essa a compreensão que também temos ao
caracterizar a atividade do feirante como informal.
O formal e o informal no mundo do trabalho
É no cerne da reestruturação produtiva que podemos encontrar o trabalho informal
como um “problema”, dentro da atual perspectiva do mercado de trabalho. O trabalho
informal, na compreensão que temos atualmente, tem sua origem em uma “categoria
remanescente de séculos passados que conseguiu sobreviver mesmo com a implantação do
modo de produção capitalista no século XVIII, dando origem a uma forma modificada de
produção material” (ALVES e TAVARES, 2006, p. 425). Com o advento do capitalismo,
essas formas de produção independentes estiveram subordinadas ao sistema e passaram a ser
entendidas como as causas do subdesenvolvimento pelos teóricos da marginalidade.
Foi em 1972, que a Organização Internacional do Trabalho – OIT diferenciou o
trabalho formal do informal, quando o primeiro passou a ser caracterizado como unidades
produtivas organizadas e o segundo como unidades produtivas não organizadas. Nos anos 80,
este tipo de atividade passou a ser vista como intersticial dentro do sistema capitalista, tendo
como principais características (ALVES e TAVARES apud CACCIAMALI, 2006, p.427):
- o trabalhador que vive de sua própria força de trabalho, e que algumas vezes se utiliza
do
trabalho familiar ou subcontratando ajudantes;
- objetiva a renda para consumo individual e familiar, e a manutenção de sua atividade;
- domínio sobre a totalidade das etapas de produção.
Esta atividade assim caracterizada, não pressupõe a possibilidade de acúmulo de
capital em conseqüência dos baixos investimentos realizados, assim como do baixo retorno
financeiro que em geral se obtém. Todas essas características podem ser percebidas no
43
trabalho do feirante, seja no trabalho familiar, na renda para o consumo familiar e da
atividade, o conhecimento das etapas da produção e a impossibilidade de acúmulo de capital.
Nos anos 90, ocorreu um aumento da economia informal e “o crescimento de outras
formas de trabalho não regulamentadas pela legislação trabalhista” (ALVES e TAVARES,
2006, p. 428), como conseqüência da precarização do trabalho, e podemos incluir aqui o
incremento de atividades produtivas tradicionais, incluindo o trabalho na feira. Hoje, esta
força de trabalho se mostra heterogênea, dificultando uma precisão em seu conceito. Nessas
tentativas de conceituá-lo, podemos entender que este tipo de trabalho
... abrange uma grande diversidade de situações que inclui tanto atividades
informais tradicionais quanto as novas formas de trabalho precário. Os
trabalhadores informais tradicionais estão inseridos nas atividades que requerem
baixa capitalização, buscando obter uma renda para consumo individual e familiar.
Nessa atividade, vivem da sua força de trabalho, podendo se utilizar do auxílio de
trabalho familiar ou de ajudantes temporários... (ALVES e TAVARES, 2006,
p.431).
Alves e Tavares (2006, p. 430-434) também apontam as principais características da
informalidade que podem ser assim resumidas:
- a categoria dos trabalhadores informais tradicionais, na qual se inserem os
trabalhadores menos instáveis, que realizam atividades com algum conhecimento profissional,
os instáveis, que recebem por peça ou trabalho realizado e os ocasionais ou temporários, que
aguardam o retorno à inserção formal. O retorno financeiro dessas atividades depende do que
é oferecido e da clientela que adquire esses produtos e serviços;
- os assalariados sem registro, que não têm acesso às garantias sociais básicas e
geralmente apresentam um baixo nível de instrução e em consequência, obtêm salários muito
baixos;
- os que trabalham por conta própria, em atividades artesanais, pequenos ofícios,
pequenos comércios e outras atividades ocasionais, que eventualmente prestam serviços a
empresas maiores ligadas ao comércio ou à indústria.
Entretanto, independente da maneira como a informalidade é compreendida, o fato é
que ela foge ao padrão convencional de ocupação, por em geral, não admitir carteira assinada,
coberturas sociais, além de presumir perda de direitos tanto sociais, quanto políticos.
Baseados nas análises sobre a atual conjuntura, Santana e Ramalho (2003, p. 19) afirmam que
44
“... a economia informal não minimiza ou reduz a exploração, mas tem combinado
flexibilidade e exploração, produtividade e abuso, empresários agressivos e trabalhadores
desprotegidos”.
Em geral, pela instabilidade que esse tipo de ocupação proporciona, as pessoas são
levadas a essa situação, principalmente pela necessidade de sobreviver e pela falta de opção
por outro tipo de trabalho que os auxiliem na manutenção da própria vida. Para Scherer
(2004),
... o mercado informal é o desaguadouro de quase toda a força de trabalho que sai à
procura de emprego, tentando ganhar a vida de qualquer jeito. Muitas vezes os
trabalhadores desempregados desistem de procurar emprego no setor formal por
falta de condições financeiras para custear o transporte, lanche, etc. Na
informalidade caracterizam-se a um só tempo pela insegurança e aleatoriedade,
mas, por outro lado, inauguram formas alternativas de sociabilidade... (SCHERER,
2004, p. 139).
É dessa maneira que a informalidade aos poucos vai adquirindo o status de trabalho,
muitas vezes, mesmo sem o reconhecimento oficial, que percebendo seu aumento, tem
tentado através de algumas políticas públicas regularizá-lo e reconhecê-lo, criando créditos
para as micro e pequenas empresas, o acesso a pequenos empréstimos, instituindo programas
de qualificação profissional, alterando a lei para oficializá-lo dentro das pequenas atividades
caseiras como as costureiras, as doceiras, etc. Mas vale ressaltar que este “auxílio” vem na
maioria das vezes, carregado pela preocupação com a formalização do trabalho em toda a sua
extensão: inscrição nas Juntas comerciais, pagamento dos impostos, criação de cooperativas e
associações, etc., demonstrando a necessidade de seu reconhecimento junto aos órgãos
oficiais.
O trabalho informal diante da nova realidade vem conquistando seu espaço, pois
passa a ser visto como um problema estrutural face às novas necessidades do mundo
globalizado. Observamos que nele se encontram tanto trabalhadores desqualificados e com
baixa escolaridade (em sua maioria), quanto trabalhadores qualificados, que diante da
diminuição dos postos de trabalho ficam à margem, à espera de novas oportunidades. Nesse
caso, muitas vezes dois extremos se apresentam: de um lado, os jovens, sem experiência
profissional e muitas vezes sem qualificação, o que diminui suas chances de inserção, e de
outro, os mais velhos, também sem qualificação, ou com alguma experiência formal, mas que
45
em uma cultura que supervaloriza a juventude percebe o peso da idade como fator
obstacularizante. Esses e outros impasses são observados no país como um todo, e Manaus
não foge a isso.
A informalidade em Manaus
Manaus, assim como outras capitais do Brasil tem apresentado nos últimos anos, alto
índice de informalidade, também como consequência da reestruturação produtiva. Como
existe um movimento global, seus reflexos também incidem nas decisões que são tomadas em
nível local, principalmente se entendemos que a Zona Franca de Manaus e em especial o seu
pólo industrial, é constituído em sua grande maioria, por empresas transnacionais. Não
podemos entender a modernidade sem nos inserirmos nela, pois vivemos em uma área do
planeta ansiada pelo mundo e considerada como uma região com grandes possibilidades de
desenvolvimento ainda latentes. É importante percebermos como a transformação da base
produtiva se dá, a partir das novas exigências nacionais e internacionais, através de um
modelo de desenvolvimento externo às exigências locais. Não faremos aqui um grande
histórico sobre a criação da ZFM, apenas pretendemos situá-la para compreender a situação
atual dos trabalhadores na cidade de Manaus.
A ZFM foi criada dentro do modelo de substituição de importações e, segundo Valle
(2007), teve sua implantação efetivada com a associação do capital internacional com vistas
ao desenvolvimento regional. O Pólo Industrial de Manaus, desde a criação e instalação de
suas fábricas na década de 70, tem sido costumeiramente um dos maiores absorvedores de
mão de obra local e regional. Sua instalação intensificou o processo migratório que
“esvaziou” o interior do estado e “inchou” a capital, provocando invasões de terras na
periferia da cidade e sua favelização, sendo acompanhada pelo aumento da criminalidade, da
prostituição e pelo desemprego e subemprego crescentes.
A proeminência da indústria como grande geradora de novos postos de trabalho
deve-se às próprias características do setor moderno: montagem de produtos
mediante utilização de força de trabalho não especializada. O operariado do DI de
Manaus, em formação, emerge no processo de industrialização que, embora tardio,
é moderno do ponto de vista da fragmentação do processo de produção, o que
permite utilizar um grande contingente de trabalhadores sem qualificação e
46
formação profissional, porém capacitado para a execução da tarefa de montagem de
peças e componentes. (VALLE, 2007, p. 136)
Mas o desenvolvimento industrial, mesmo em seus momentos mais produtivos,
não acompanhou a expansão dos salários pagos ao trabalhador, o que repercutiu em sua baixa
qualidade de vida. Isso se mostrava ainda mais incisivo no que se refere ao trabalho feminino
que costumeiramente concentrou-se nas tarefas de mais baixa qualificação e remuneração,
demonstrando o baixo valor econômico das atividades realizadas e as relações de poder que aí
se estabelecem. (Valle, 2007).
Nos últimos anos, o Pólo Industrial de Manaus também tem sofrido as
consequências globais, e seus trabalhadores têm sentido o peso das mudanças estruturais
sofridas no mercado de trabalho, com a diminuição no número de empregos, as férias
coletivas, as demissões e a diminuição dos empregos com carteira assinada. O que vemos é o
recrudescimento da “expansão do emprego assalariado sem carteira assinada e dos
trabalhadores por conta própria”. (Valle, 2007).
Como consequência da falta de empregos, cresce o número de pais e mães de
família vivendo do subemprego, do “bico”, do trabalho pesado e mal remunerado. O
incremento dessa informalidade do trabalho pode ser constatado através do expressivo
aumento do número de camelôs, de bancas de churrasquinhos e pequenas lanchonetes
presentes nas ruas da cidade, além dos costumeiros problemas sociais que acompanham esse
tipo de situação.
Entre os trabalhadores da FMC, alguns são peças descartadas do grande quebracabeça formado pela Zona Franca de Manaus e principalmente do seu Pólo Industrial. Não
representam a maioria, talvez nem a metade, mas de certa forma se encaixam na grande
mudança que o mundo tem passado nos últimos anos. Como as feiras tradicionalmente
apresentam um quantitativo de pessoas com baixa escolaridade e sem formação profissional,
percebemos que bem poucos feirantes têm nesse tipo de atividade uma consequência ou o
resultado direto da reestruturação produtiva.
Por outro lado, para minimizar os prejuízos e os problemas causados pelo aumento
da informalidade em Manaus, em 2009 a Prefeitura de Manaus por intermédio da Secretaria
Municipal de Economia e Finanças – SEMEF, “aderiu ao programa „Empreendedor
Individual‟, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE/AM),
criado com base na lei nº. 128/08, que prevê a legalização de trabalhadores informais com
47
ganhos anuais de até R$36.000,00.” A idéia é permitir que os trabalhadores identificados
como autônomos tenham acesso a alguns benefícios sociais “como aposentadoria, auxílio–
doença, salário maternidade, pensão por morte e até CNPJ (para emitir notas fiscais) e ter
acesso facilitado a linhas de crédito”, e regularizando a situação de cerca de 200 mil
trabalhadores que vivem na informalidade no estado do Amazonas.12
Essa e outras ações são tentativas de reconhecer e oficializar um tipo de trabalho que
tem crescido espantosamente e que se por um lado, permite o sustento de centenas de
famílias, por outro, pressiona a economia formal, com o aumento da carga tributária e a
tendência em ampliar a sonegação.
Mas a informalidade do trabalho também tem seus reflexos no dia a dia das famílias.
Sobre isso, podemos de certa maneira compará-lo ao trabalho rural mais simples, voltado para
o regime de subsistência, pois o trabalhador que já foi engajado no trabalho formal vê aos
poucos o seu provento familiar, que em algumas vezes era regulado pelo mês ou pela
quinzena, passar a ser regulado pelo dia ou pelas horas de trabalho realizadas. O trabalhador
passa a ter um ritmo de vida determinado pelo dia, que também delimita suas alternativas de
esforço e repouso. Tudo isso sempre cercado por uma instabilidade com relação ao dia
seguinte, ao suprimento das necessidades da vida e ao próprio futuro.
O pior ocorre no caso da informalidade que passa de pai para filho, o que é percebido
em muitas situações. Quando isso acontece, vemos apenas ocasionalmente esse ciclo de vida
familiar quebrado, pois nas famílias em que a situação formal nunca existiu, a possibilidade
de reprodução dessas atividades tenderá a se repetir, por ser esse tipo de realidade em geral,
permeada por um baixo nível de escolaridade, que em detrimento da própria necessidade de
sobrevivência, encaminha esses indivíduos ainda muito jovens para o processo de incremento
da renda familiar, gerando um ciclo difícil de ser destruído.
Vemos então que a otimização do tempo, a reestruturação produtiva e o novo
panorama mundial aprofundou a exclusão, ao mesmo tempo em que ampliou as formas de
inserção precária, trazendo outros problemas referentes às relações sociais, às políticas
implementadas pelos governos, o acirramento do individualismo competitivo, entre outros.
Nesse contexto, tudo isso propicia um retorno às antigas regras de modelo de trabalho, onde a
autonomia e o desenvolvimento de uma cultura empreendedora têm sido reforçados como
12
Fonte: http://www.pmm.am.gov.br/noticias/empreendedor-individual/
48
uma das maneiras de minimizar as consequências desse processo. Por outro lado, vemos
aumentar a informalidade como estratégia de sobrevivência que na maioria das vezes
demonstra e evidencia o lado perverso do capitalismo em curso.
Se o que foi apontado acima é uma realidade para os homens, as mulheres sofrem
mais ainda nesse processo de inserção. Para Dupas (1999, p. 188), “as mulheres representam
uma fração majoritária no setor informal, devido à flexibilidade desse setor e a ausência de
oportunidades nas atividades formais da economia”. Mas essa é uma observação histórica, se
considerarmos que vivemos em uma cultura onde o homem sempre teve privilégios,
principalmente no que se refere aos postos de trabalho, ou seja, se para os homens a inserção
se mostra difícil, para as mulheres esta dificuldade aumenta em detrimento das características
que a própria realidade apresenta.
A mulher e o trabalho informal
Apesar de não podermos afirmar com convicção que a informalidade do trabalho se
apresente em todos os momentos como algo negativo, podemos, entretanto afirmar que
alguns elementos como a instabilidade e a incerteza podem contribuir para sua falta de
capacidade em se afirmar como uma atividade econômica e socialmente aceita ou desejável.
Isso se dá pelo fato de que, em uma sociedade na qual o trabalho, durante muito, tempo
significou possibilidade de planejar o futuro em longo prazo, permitindo o acesso a uma
renda, um estatuto e consequentemente a uma proteção social, significando uma “vitória sobre
a precariedade”, foi modificada. Esses direitos e segurança foram aos poucos sendo limitados
por sua desregulamentação, no bojo da crise da relação salarial, desestabilizando os que
tinham carreiras estáveis, instalando a precariedade e por vezes a falta de trabalho, e
finalmente a incerteza com relação ao futuro (CASTEL, 1998, p.150-153). É em meio a esse
contexto que em geral cresce e se estabelece a informalidade. Para Sena (2002, p.44-45), o
setor informal encontra-se subordinado ao setor formal e ao ocorrerem alterações no segundo,
estas podem causar mudanças no primeiro. Nesse sentido, as atividades informais estão
ligadas diretamente à lógica de acumulação capitalista, sendo uma estratégia a mais de
reprodução e expansão do capital.
49
No relatório de 2006 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA que trata
do desempenho do mercado de trabalho brasileiro naquele ano, encontra-se registrado que a
informalidade
Não obstante as muitas críticas e polêmicas que o conceito ainda carrega, ele
corresponde a uma inovação ao superar a visão dicotômica que antes prevalecia. O
segmento inserido no setor informal seria também composto por trabalhadores que,
ao não conseguirem se empregar no setor formal, dinâmico e protegido da economia
– e não dispondo de um seguro desemprego nos padrões dos países da Europa
Ocidental -, encontrariam nessas atividades uma alternativa de subsistência.
(BRASIL, 2006, p.310).
Apesar de fazer parte da lógica capitalista, a informalidade apresenta seu lado
negativo ao significar exclusão ou a inserção precária para muitos. Esse lado excludente do
sistema empurra os mais fragilizados, seja pela idade, pela baixa qualificação e até pelo sexo,
para a busca de estratégias de sobrevivência que em geral são encontradas no setor informal.
Dessa forma, o relatório do Ipea (2006) aponta como um dos grandes “malefícios da
informalidade” o fato de ela gerar empregos de baixa qualidade, remunerações insignificantes
e ineficiência e custos econômicos adicionais que devem ser combatidos. Dentro de uma
concepção econômica, a informalidade gera evasão de recursos pelo descumprimento da lei
(como os encargos trabalhistas e a contribuição previdenciária), além da
Agravante de que um menor grau de formalização reduz a base para a taxação,
induzindo maiores tributos e criando, como resultado, maior penalização para as
firmas mais produtivas – daí gerando incentivos para incremento da própria
informalidade, e assim por diante. (BRASIL, 2006, p.337).
Analisando a situação do mercado de trabalho brasileiro, o mesmo documento afirma
que,
A informalidade contribui, também, para fomentar uma cultura de sonegação e
desrespeito às normas legais, que é, em última análise, a razão de ser de sua
existência. A difusão desse processo acarreta a banalização de princípios e valores, o
que esgarça o tecido social, gera perda de credibilidade das instituições, propicia o
alastramento da marginalidade, e até mesmo alguma tolerância em relação a ela.
(op.cit., 2006, p.337).
50
Para a região Norte, o documento (BRASIL, 2006, p.340) também aponta um índice
de 59,9% de trabalhadores vivendo da informalidade em 2004. Como a análise é feita em um
conjunto do mercado de trabalho, as informações sobre os trabalhadores ocupados assim
como os devidos rendimentos, não diferenciam homens e mulheres que ocupam este setor,
não sendo possível por este documento esclarecer o percentual do trabalho feminino na
informalidade, apesar de ficar claro o seu crescimento de maneira geral entre 1992 e 2004,
período de análise do relatório.
Em busca da minimização dos problemas causados pelo aumento do trabalho
informal e pela precariedade da inserção feminina, assim como de outros atores sociais
excluídos no mercado de trabalho, governos e ONG‟s têm acenado para a criação de
alternativas de inclusão social através de políticas públicas. É nesse conjunto formado pelas
ações públicas e a sociedade organizada que cresce o debate e se inserem as questões ligadas
ao gênero, como uma necessidade de se repensar a realidade. Jussara Prá (2004, p. 52)
considera como fundamental para se conquistar a igualdade de gênero, a redefinição do
público e do privado. Já Blay (2004, p.29-30) chama a atenção para a distância entre o que foi
conquistado na legislação e a vida cotidiana, sugerindo que “mudanças quantitativas não
expressam mudanças nas relações sociais de gênero e que as mudanças ocorridas não foram
suficientes para alterar essas relações”. Discutiremos a seguir como estas questões têm sido
colocadas em debate e o que tem sido feito para a minimização das diferenças existentes nas
relações de trabalho entre homens e mulheres.
Questões entre trabalho e gênero
Falar das questões que se encontram presentes nas relações entre trabalho e gênero
não é tarefa fácil. Entretanto, nos propomos a discutir aqui os principais pontos que se
encontram presentes nessas relações, procurando conhecer e assim contribuir para o debate
em busca da elucidação de alguns problemas que se apresentam. Para tanto, começaremos
definindo gênero, passando por uma breve história da compreensão do trabalho feminino,
chegando até as propostas, programas e políticas voltadas para a inserção digna da mulher no
mercado de trabalho, analisando se as mudanças ocorridas têm sido benéficas para a atuação
da mulher como força produtiva.
51
Definindo gênero
Por gênero podemos entender uma categoria de análise histórica que explicita as
diferenças sociais entre os sexos, sendo constitutivo das relações sociais. É um conceito
relacional, que compreende “a idéia de que não é possível analisar homens e mulheres em
separado, já que um se define em relação ao outro” (COULOURIS, 2004, p. 61). Seu
emprego também é usado “para identificar os fundamentos biológicos e as construções
culturais que hierarquizam a cidadania, impõem códigos de conduta e geram dominação,
desigualdades e exclusões sociais” (PRÁ, 2004, p.45). A mesma autora nos diz que
O gênero enquanto variável sócio-cultural ligada às noções de classe social, raça/
etnia, idade ou crença religiosa é relevante para examinar perspectivas e
comportamentos e identificar as redes de relações sociais e políticas estabelecidas
por e entre gêneros. Portanto, o gênero como categoria de análise permite
dimensionar como valores atribuídos a atividades, a competências e às relações de
gênero interagem no espaço público com condicionantes sociais, culturais, políticos
e econômicos (PRÁ apud SILVEIRA, 2004, p. 45-46).
As relações de gênero ao se estabelecerem nas relações sociais reproduzem
ideologias e práticas e dão lugar a construções sociais que são assimiladas diferentemente por
ambos os sexos. Assim, “os sujeitos vão construindo suas identidades em relações sociais
atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representações e práticas” (COULOURIS,
2004, p. 68), e esses sujeitos, ao mesmo tempo em que as constitui, constituem-se dentro
dessas práticas.
Dentro da divisão sexual do trabalho, o sistema de gênero estabelece competências
diversas para os dois sexos, cabendo à mulher a influência no âmbito doméstico e privado,
enquanto ao homem cabe o espaço público. Isso valoriza diferenciadamente as
responsabilidades, escolhas, hábitos e comportamentos, delimitando pelo sexo a inclusão ou
exclusão da cidadania e os espaços sociais a serem ocupados, ao promover uma dificuldade de
inserção feminina na esfera pública. Entretanto, apesar de todas as dificuldades observadas,
muito já foi conquistado e mais ainda precisa ser superado no sentido de reverter a
“discriminação e a exclusão histórica a que muitas mulheres continuam sendo submetidas”,
pois “não foram eliminadas as tensões e as exclusões que acompanham a participação das
mulheres em sociedade”. (PRÁ, 2004, p. 47-51).
52
Um pouco de história sobre o trabalho feminino
O trabalho é uma necessidade humana, questão de sobrevivência, apesar de sua
forma de realização não ter sido a mesma nos diversos períodos da história da humanidade. O
próprio trabalho realizado pela mulher sofreu alterações, indo exclusivamente do trabalho
domiciliar relacionado aos cuidados com a família e com a casa, passando por pequenas
atividades produtivas ainda dentro do espaço privado, até que por volta dos séculos XVI e
XVII, ocorreu uma forma de trabalho industrial em domicílio, permitindo uma íntima ligação
entre este e a vida familiar. Entretanto, esse tipo de trabalho foi aos poucos diminuindo, dando
espaço ao trabalho nas fábricas e fazendo com que no século XIX, passasse a ser executado
prioritariamente por mulheres, imigrantes ou por minorias étnicas. Sua realização se dava
principalmente pela produção de artigos baratos e pela concorrência com produtos de baixo
preço, levando à sua deterioração, posto que naquele momento passou a ser visto como uma
forma degradada de trabalho. Seu retorno somente se deu de forma mais significativa no bojo
da reestruturação produtiva, representando uma alternativa no setor de serviços. (ABREU e
SORJ, 1993, p.11-12).
Para Lasch (1999, p.113-134) é possível dividir a história recente das mulheres em
dois momentos distintos: no primeiro, em que a vida da mulher girava em torno do trabalho
doméstico e dos filhos e, no segundo, após 1960, quando “elas passaram a fazer parte da mão
de obra, passaram a controlar seu corpo e desafiaram a supremacia masculina em todas as
suas formas – política, econômica e ideológica”. Para o autor, sempre existiu distinção entre o
trabalho masculino e o feminino, mas a separação entre a vida doméstica e o mundo do
trabalho só ocorreu no século XIX, (como já mencionado) quando houve um declínio da
produção doméstica e a intensificação do trabalho assalariado. O autor ainda observa que
mesmo com as qualidades femininas diferenciadas, por serem mais passíveis à cooperação,
não ocorreu uma diminuição do impulso masculino pela competição, nem alterou o processo
de produção capitalista, pois nesse sistema, o valor de troca sempre será superior ao valor de
uso, independente de quem produz.
Mais recentemente, a reestruturação produtiva estabeleceu “um novo modo de
produzir, e, portanto, novas formas de criação de riqueza” (VALLE, 2007, p.45), atingindo
todas as camadas sociais. Seu impacto abarcou indistintamente homens e mulheres,
estabelecendo mudanças estruturais no mercado de trabalho e trazendo como uma de suas
53
maiores consequências o aumento da informalização do trabalho, além de trazer em seu bojo
um pesado custo social representado pela exclusão social gerada pela
sensível redução do nível de emprego industrial, setor em que a oferta de postos de
trabalho apresenta maior qualidade (postos protegidos pela legislação trabalhista,
melhores níveis de remuneração, oportunidades de treinamento)... (VALLE, 2007,
p.213).
A redução do nível de emprego protegido dessa forma acabou por provocar um
aumento de empregos de baixa qualidade, assim como a precarização das condições de
trabalho.
É em meio a esse contexto que observamos nas duas últimas décadas um crescimento
significativo do emprego feminino, o qual tem sido denominado de feminização do trabalho.
Nogueira (2004, p. 67-74) também ressalta que entre as particularidades que se estabelecem
na divisão sexual do trabalho no Brasil, o valor pago às mulheres é em geral inferior ao dos
homens, a precarização do emprego atinge muito mais a elas, e a duração da jornada de
trabalho, que quanto menor for maior será sua presença, acaba por justificar a menor
remuneração, fazendo com que seja acentuado ainda mais a desigualdade de gênero.
Nas formas de trabalho emergentes no processo de reestruturação produtiva, em
geral precarizados em suas distintas formas, incluindo o trabalho no setor informal, percebese a predominância de mulheres na ocupação desses postos, o que reafirma a desigualdade da
divisão sexual do trabalho. Para Verônica Ferreira (2005, p.34), as mulheres já entram em
desvantagem porque sempre estiveram alijadas do acesso às tecnologias. Para a mesma
autora,
A vulnerabilidade e a precariedade são características do trabalho das mulheres no
capitalismo e antes dele, assim como a desvalorização social do trabalho reprodutivo
e, neste âmbito, a “invisibilidade” do trabalho doméstico realizado pelas mulheres,
seja nas zonas urbanas como nas zonas rurais. Com a reestruturação produtiva, essa
precariedade se acirra. Por um lado cresce a participação das mulheres no mercado
de trabalho, mas cresce justamente nos setores e postos de trabalho mais precários.
(FERREIRA, 2005, p. 34).
54
Somando-se a isso, podemos incluir o fato de que o trabalho realizado por mulheres é
muitas vezes considerado como uma atividade que não produz riqueza, como é o caso do
trabalho doméstico. A contradição se dá no fato de que ao mesmo tempo em que os afazeres
domésticos são considerados “trabalho de mulher”, quando se observa pelo ponto de vista
produtivo, o mesmo não é considerado trabalho. Essa é uma forma de visão que ainda não foi
alterada.
Ferreira (2005, p.37) também aponta que, para estudar ou trabalhar, as mulheres que
têm condições financeiras melhores, delegam os afazeres domésticos e os cuidados com as
crianças a outras mulheres pobres. Estas, por sua vez, precisam dividir seu tempo entre o
trabalho que realizam e os próprios afazeres, gerando um processo de dupla jornada. Assim,
elas liberam o tempo umas das outras, e isso gera outra forma de supressão de convivência
familiar e pessoal. Isso se mostra como uma bipolarização: “por um lado, uma pequena elite
de mulheres ocupando postos extremamente qualificados e valorizados, e de outro, mulheres
que ocupam postos informais, precários quanto às relações e condições de trabalho,
desvalorizados”. Percebemos assim que o re-emprego de formas antigas de exploração do
trabalho e de suas relações de opressão são instrumentais à reprodução do capital, assim como
a desigualdade entre homens e mulheres. (op.cit. 2005, p.38).
O trabalho reprodutivo realizado basicamente pelas mulheres no interior de suas
casas demonstra claramente a ausência de responsabilidade social por parte do Estado e do
empresariado, mesmo estando explícito que o “sobretrabalho realizado pelas mulheres é
funcional ao capitalismo e colabora para o crescimento de sua lucratividade”. Isso torna
necessária uma reflexão sobre como a percepção social das diferenças de gênero influenciam
nas desigualdades que geram prejuízos às mulheres. Essas relações de poder dão forma a uma
elaboração social hegemônica e histórica ao imprimir como espaço restrito da mulher o
âmbito privado, mesmo que mais recentemente ela tenha galgado o espaço público. Essas
relações acabam por se tornarem estruturadoras do modo de vida social. (SILVA, 2005, p. 4145).
É também nas últimas décadas que temos observado o crescimento de atividades
secundárias dentro do processo produtivo, algumas vezes terceirizadas por empresas de
grande porte, o que reforçou a fragilidade da economia. Como “o aumento da ocupação
feminina ocorreu predominantemente nessas atividades”, percebemos uma fragilidade na
manutenção dos empregos, que em geral não representam a formalização de inserção
55
profissional. Vemos então o desemprego como uma situação recorrente na vida da mulher, ao
mesmo tempo em que cresce seu papel enquanto membro responsável por boa parte dos
rendimentos no núcleo familiar. Esta situação se apresenta de forma mais explícita à medida
que nos afastamos dos grandes centros produtivos. Por outro lado, sua crescente contribuição
monetária para a manutenção da família demonstra que sua importância tem crescido em
termos de determinação da renda familiar, representando que “a estratégia de sobrevivência
da família tende a estar crescentemente centrada no desempenho das cônjuges.”
(MONTAGNER, 2000, p. 164-165).
Tendo por base o que tem sido apontado, podemos aqui levantar os seguintes
questionamentos: se a desigualdade de gênero no mercado de trabalho é um fato, o que a
reproduz? Que relações sociais as configuram e condicionam? Que mecanismos reproduzem
as diferenciações entre o trabalho do homem e o trabalho da mulher?
Para Abramo (2007, p. 06-07), alguns fatores evidenciam essas questões. Entre eles
estão presentes situações de ordem estrutural, intimamente ligada à ordem de gênero, fatores
ligados a divisão sexual e uma forte subvaloração econômica e social do trabalho feminino e
do seu papel na sociedade. Tudo isso tem a ver com os estereótipos que são criados, e por
consequência a imagem da mulher passa a representar força de trabalho secundária. Essas
imagens de gênero são representações construídas social e culturalmente e acabam por
determinar sua inserção, constituindo a ordem de gênero que abarca todas as esferas da vida
social.
Por ser o trabalho um locus significativo de reprodução, a noção de trabalho da
mulher como força secundária, encontra-se intimamente ligada aos papéis por ela
desempenhados na esfera doméstica e sua entrada no mercado de trabalho só ocorre
prioritariamente quando o homem, provedor oficial, não consegue suprir todas as
necessidades da família, sendo esse o motivo de sua inserção ocorrer de forma eventual,
instável e secundária, tendendo ela a bater em retirada no momento em que a situação retorna
ao seu curso “normal”, reforçando a tese de que ela não necessita tanto do trabalho, posto que
existe um cônjuge que mantém a família. Mas essa situação tem sido alterada e isso se faz
presente ao observarmos o crescimento de mulheres “chefes de família”, sendo elas muitas
vezes as únicas provedoras do sustento familiar, o que faz cair por terra à ideia de força
secundária, em que o trabalho seria apenas um interesse marginal em suas vidas. (ABRAMO,
2007, p. 13-14).
56
Outro ponto que pode ser destacado na inserção feminina no mercado de trabalho é
que sua incorporação continua subordinada ao poder masculino (MELO, 2002, p.69). Isso
mais uma vez reforça o já comentado fato de que a mulher não foi libertada completamente,
continua sendo uma cidadã incompleta, ao permanecer classificada como inferior ao homem,
vivendo em uma sociedade que segue a linha da dominação e da opressão mediada por uma
estrutura patriarcal. Nesse caso, sua subserviência contribui para a continuidade de sua
exploração. Por outro ponto de vista, alguns dados13 têm contribuído para afirmar o
crescimento das famílias chefiadas por mulheres e que estas tendem a ser quantitativamente
mais pobres, nos fazendo questionar se existem outras identidades que possam se apresentar
de maneira mais forte que a de gênero.
A partir do que tem sido discutido, e dos detalhes sobre o espaço produtivo aqui
ressaltado, passaremos agora ao âmbito da nossa pesquisa propriamente dita, dando destaque
às entrevistas e às conversas realizadas com as mulheres feirantes que trabalham com frutas e
verduras, analisando alguns aspectos que definimos como categorias de análise – o trabalho
da mulher feirante, as relações sociais e a vida cotidiana.
13
A Pesquisa Nacional por amostra de Domicílios – PNAD demonstra que “... embora a participação no
mercado de trabalho represente possibilidades de maior autonomia e emancipação para as mulheres, o
aumento do número de famílias chefiadas por mulheres nas quais somente elas são as responsáveis pelo
sustento da casa e dos filhos deve ser lido com cuidado. Tal aumento pode estar relacionado tanto ao aumento
da precarização da vida quanto do trabalho dessas mulheres”. (BRASIL, 2008, p. 20).
57
Capítulo II
TRABALHO E COTIDIANO
A pesquisa de campo
Para a presente pesquisa de base qualitativa, partimos de uma etnografia da Feira
Modelo da Compensa, com o intuito de termos uma visão mais abrangente do trabalho
naquele local e nele inserir a particularidade do trabalho da mulher. Para tanto, entrevistamos
oito mulheres priorizando aquelas com idade entre 25 e 50 que lá trabalham, com a venda de
frutas e verduras. De acordo com o levantamento realizado (Quadro 3, pág. 29), temos um
total de 29 box/bancas de frutas/verduras, sendo 15 deles utilizados por mulheres. As frutas e
verduras ali comercializadas em geral são as mais usadas pela população local, tendo como
principais artigos, tomate, pimentão, cebola, cheiro verde, pimenta de cheiro, alface, abóbora,
batata portuguesa e batata doce, banana prata, banana maçã e banana pacovã, limão, mamão,
abacate, laranja, melancia, pimentas diversas, etc. Boa parte dos produtos são oriundos da
própria região, vindos do interior do Amazonas ou de estados vizinhos, e por isso, temos a
predominância de frutas e verduras regionais, ocorrendo, entretanto a venda de frutas de
outras localidades do país e do exterior, de forma muito específica, podendo o comércio
destas variar no decorrer do ano, como por exemplo, a venda de uvas, maçãs, peras e outras
frutas que não são regionais, ocorre ocasionalmente e principalmente nas festas de fim de ano,
e mesmo nesse período não se encontram presentes em todas as bancas.
Do total das entrevistadas, apenas uma tinha permissão para o uso de um box, que
somado ao do marido, totaliza dois boxes para a venda exclusiva de frutas, tendo todas as
outras permissões para o uso de bancas. Como já foi mencionado, a diferença entre o box e a
banca ocorre pelo fato de o primeiro ser um ambiente reservado, podendo ter inclusive portas,
o que se encontra ausente nas bancas distribuídas ao longo dos corredores e que no horário
noturno são cobertas por lonas ou plásticos para a proteção da mercadoria.
As 15 bancas destinadas à venda de frutas e verduras se referem especificamente
àquelas que são licenciadas para as mulheres, ocorrendo situações em que a permissão se
encontra em nome de homens (em geral maridos ou parentes próximos), mas utilizadas por
mulheres (estes casos não fizeram parte direta de nossa investigação). A realização das
entrevistas ocorreu durante o horário de trabalho, e nesse sentido procuramos causar o
58
mínimo de transtornos, de forma a não atrapalhar a realização das atividades ao priorizarmos
os horários de menor movimento – após as 10 horas da manhã e no período da tarde.
Logo no início da abordagem, quando nos identificávamos como pesquisadora,
sentíamos certo receio e desconfiança por parte delas, que se colocavam na retaguarda, com
medo de se comprometerem. Em alguns casos percebemos até certa agressividade na negação
das informações, mesmo explicando qual a finalidade da pesquisa. Em geral, com poucas
exceções, após as explicações iniciais, elas acabavam cedendo e colaborando sem grandes
resistências. Deixávamos sempre claro que nenhuma das informações por elas emitidas traria
comprometimento individual, já que as mesmas não seriam identificadas nominalmente14.
Isso acabava por diminuir a resistência inicial, o que permitiu a realização da investigação.
Esclarecemos também, que a manutenção de um posicionamento aberto e de empatia
por parte da pesquisadora, acabou por surtir efeitos favoráveis, posto que após as primeiras
perguntas elas já se sentiam mais à vontade para responder às questões, acrescentando em
alguns casos informações que nem foram levantadas, mas que acabaram por ter imensa
relevância para a análise dos dados. Isso se deu pelo fato de termos percebido a necessidade
de valorizar determinadas questões que não estavam previstas, mas que acabariam por ter um
significado importante, ao deixá-las à vontade para expressar suas opiniões e anseios.
Outro ponto importante se refere à disponibilidade de tempo, pois em alguns casos,
para a realização de apenas uma entrevista utilizávamos uma manhã ou tarde inteira, pois
tínhamos que ser flexíveis, considerando que elas se dividiam entre o atendimento aos
fregueses, outras ocupações e a resposta às indagações feitas pela pesquisadora, mesmo nos
horários de pequeno movimento. Nesse caso, demonstrar não ter pressa também tinha sua
importância, pois o contrário significaria um trabalho de campo superficial e incompleto.
Todas as mulheres entrevistadas são detentoras de permissão para o uso de bancas,
não ocorrendo com nenhuma delas a permissão para o uso de mais de duas bancas. A escolha
pelas vendedoras de verduras se deu pela necessidade em compreender as dificuldades
encontradas por elas para o equilíbrio da renda familiar, já que a venda deste tipo de produto
pressupõe baixo rendimento mensal, em comparação com outros que pressupomos serem
mais lucrativos. Para isso, também optamos por valorizar as menores bancas, apesar de não
termos muita escolha, pela pequena quantidade de mulheres envolvidas com esse trabalho
(apenas 15) e a recusa de algumas delas em participar da pesquisa.
14
Ver Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCE, nos Anexos.
59
Apesar dos critérios iniciais impostos como limite de idade entre 25 e 50 anos, foi
necessário abrir exceção desse limite pela dificuldade em ter mulheres dispostas a ceder o
tempo para a entrevista. Dessa forma, entre as entrevistadas, temos uma com 23 anos, sendo
esta a mais nova, e outra com 63 anos, a mais velha, estando todas as outras no limite de
idade estabelecido antecipadamente.
As entrevistas ocorreram nos meses de dezembro de 2009 e janeiro de 2010, ora no
horário da manhã ora no da tarde, sempre em dias úteis, considerando que nos fins de semana
e feriados sempre apresentavam um grande movimento no local da pesquisa, tornando ainda
mais difícil sua realização. Outra ressalva é a segunda-feira, dia usado por alguns feirantes
para o descanso semanal, e para que a entrevista ocorresse nesse dia, o horário era combinado
antecipadamente.
Além das mulheres entrevistadas, mantivemos também conversas informais para o
esclarecimento de dúvidas com outros feirantes, fiscais da prefeitura, o administrador da feira,
o presidente do comitê gestor e outros funcionários da SEMPAB. Em geral, esses
esclarecimentos tiveram caráter mais abrangente em termos do funcionamento da feira e da
participação dos permissionários. Contando todo o período utilizado para a realização da
pesquisa, podemos esclarecer que ela teve início com a pesquisa exploratória, iniciada em
março de 2009, sendo suspensa durante a avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
UFAM no período de agosto a outubro, e tendo sua continuidade na segunda quinzena deste
último mês, com as observações e fotos do local. Iniciamos as entrevistas em dezembro,
fazendo uma parada no período das festas do fim de ano por motivos práticos e pelo excesso
de movimento na feira. Reiniciamos as entrevistas no mês de janeiro de 2010. Paralelo às
entrevistas,
tivemos
acesso
a
documentos
sobre
o
local
disponibilizados
pela
GEMEF/SEMPAB, incluindo relação de permissionários, regulamento, mapa da feira e a
seguir demos início à análise dos dados coletados, estabelecendo relações com as categorias
de análise. A partir deste momento, iremos nos deter às principais categorias de análise
propostas, iniciando com a relação entre trabalho e cotidiano. Para isso, destacamos algumas
questões levantadas nas entrevistas, nas conversas informais e nas observações. Para a
identificação das mulheres em seus depoimentos, utilizaremos a numeração da ordem
obedecida durante a entrevista, realizando para tanto, a transcrição literal das falas.
60
O trabalho no cotidiano
Sendo o trabalho atividade básica da vida humana, ele se encontra presente no
cotidiano de todas as pessoas de diversas formas. Ele pode ser percebido no tempo que um
aluno dedica aos estudos, nas atividades rotineiras da dona de casa, assim como nas atividades
remuneradas que permitem a sobrevivência das pessoas. Costumeiramente, chamamos de
trabalho toda atividade humana de transformação da natureza, tanto do ponto de vista humano
quanto material. O desenvolvimento do mundo capitalista tem enfatizado o papel do trabalho
como forma de obtenção de rendimentos que permitem o consumo e consequentemente sua
perpetuação. É por isso que por vezes a compreensão do termo trabalho passa a ter um sentido
equivocado, quando percebido apenas como aquela atividade que gera renda. Para Antunes
(2007, p.167), “a importância da categoria trabalho está em que ela se constitui como fonte
originária, primária de realização do ser social, protoforma da atividade humana, fundamento
ontológico básico da omnilateralidade humana”. Sendo assim, apesar de não se apresentar
como uma ação livre, o trabalho produz o gênero humano. Entretanto, torna-se necessário
uma integração entre as exigências sociais e a possibilidade de emancipação humana, pois,
sem isso, não ocorrerá à práxis15, ou seja, a relação entre teoria e prática, posto que o trabalho
como protoforma é o fundamento da compreensão do processo de humanização.
Tão inseparável da vida, o trabalho se encontra presente no cotidiano, e é somente na
vivência diária que podemos encontrar sua articulação na forma de trabalho-práxis, sendo isso
possível somente no momento em que este se torna consciente. Tornar o trabalho consciente
significa compreendê-lo como algo indispensável para a própria sobrevivência e é nesse
sentido que ele passa a ocupar um papel tão importante quanto todas as outras atividades
humanas, ao inserir-se no cotidiano. Para Heller (1992),
A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa da vida
cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. Nela
colocam-se em „funcionamento‟ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades
intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, idéias,
ideologias (HELLER, 1992, p.17).
15
Em Marx, a práxis como um conjunto de práticas, permite “que o homem transforme a natureza por
intermédio de seu trabalho transformando-se a si mesmo numa relação dialética. No marxismo, teoria e
prática são inseparáveis: os verdadeiros problemas que se colocam ao homem são de ordem prática, e todas as
teorias encontram sua explicação na práxis humana.” (DUROZOI e ROUSSEL, 1993, P.377).
61
Percebemos então que é na vida cotidiana que o trabalho se manifesta em sua
completude, sendo amadurecido na mediação entre os grupos e os indivíduos. É somente
nessa totalidade de compreensão do significado da palavra trabalho que podemos visualizar
a amplitude de seu sentido, depreendendo que o seu ideal não é um deslocamento como parte
do dia a dia e sim algo que junto com tantas outras situações valoriza esse cotidiano e se
insere no conjunto das relações sociais, estabelecendo a capacidade de ser humano. Somente
quando todos os sentidos da existência se inter-relacionam dando unidade ao vivido é que
podemos compreender o cotidiano, porque ele não se dá por partes, dividindo o dia para esta
ou aquela atividade, para este ou aquele afazer. A cotidianidade se dá no todo do fazer
humano.
O cotidiano das mulheres feirantes, sob o ponto de vista delas, tem como referência
central a realização do trabalho na feira. Apesar de praticamente resumirem seu dia a dia na
realização de suas atividades produtivas e nos afazeres domésticos, só com a compreensão do
todo que representa esse cotidiano é que podemos percebê-lo, pois isso não é perceptível sem
um olhar mais aguçado e proposital. É nessa percepção que encontramos a riqueza presente
em sua lida diária, nas trocas sociais que ocorrem durante a realização do seu trabalho, nas
preocupações com a vida familiar, nos sentimentos de prazer ao realizarem uma transação
comercial, no bate-papo com a vizinha de banca, nas discussões sobre o último capítulo da
novela, no sorriso espontâneo quando um possível comprador se aproxima, no olhar
comovido ao falar dos filhos ou netos, no cansaço demonstrado por mais um dia de trabalho,
no pensamento preso aos afazeres domésticos que as esperam em casa, na maneira como se
vestem, na simplicidade de suas palavras, no desejo de “melhorar de vida”, no suspiro
incontido de quando falam sobre a falta de tempo para o lazer ou para cuidar de si mesmas.
Muitas vezes seus olhos e suas ações denunciam suas angústias, medos e esperanças sem a
necessidade de expressar isso em palavras.
Por trabalharem muitas horas diárias (no mínimo 8 horas), e boa parte dessas horas
em pé, de domingo a domingo, em um espaço limitado, sem conforto, barulhento e apesar de
serem elas as próprias responsáveis por seu ritmo de trabalho, sabem que suas despesas
diárias dependem da dedicação a este, portanto, passando a ser significativas as horas a ele
desprendidas para o sustento da família. Elas são categóricas em afirmar que o seu dia a dia se
resume basicamente ao trabalho na feira, sendo algumas enfáticas ao lembrar que em geral
dedicam as horas de folga ao descanso, após a realização do trabalho doméstico. Elas
62
dormem, mas não tanto, reservando para isso apenas o tempo suficiente para repor a energia
gasta durante o dia. Diante de suas afirmações, isso significa que suas vidas têm sido
limitadas basicamente ao trabalho, perdendo assim aquela conotação de vida em seu sentido
mais amplo. Ao analisarmos o significado de vida para elas, podemos perceber que a ênfase
tem sido dada a produzir para ter, para sobreviver, sendo essa a finalidade primordial do
trabalho. Ressaltamos ainda que este “ter” é cercado por limitações que são determinadas pelo
poder de compra, sendo que a capacidade de consumir fica presa ao necessário e básico para a
manutenção da vida, tendo entre elas raríssimas exceções.
Se o cotidiano delas é a execução do trabalho na feira, ele é também todas as
experiências que estão envolvidas na realização desse trabalho. Para Heller (1992, p.18-21), a
vida cotidiana se apresenta de forma heterogênea e hierárquica. Em sua heterogeneidade se
inserem “a organização do trabalho e da vida privada, os lazeres, o descanso, a atividade
social sistematizada, o intercâmbio e a purificação”, mas em termos de hierarquia, a
estruturação do cotidiano sofre modificações que atendem a diferentes estruturas econômicas
e sociais e nesse sentido, percebemos o lugar prioritário que o trabalho ocupa na vida dessas
mulheres, sendo ele o responsável, centralizador e determinante de todas as outras atividades.
É por isso que a vida cotidiana torna-se a essência da vida social, pois ao ter em sua base a
vida individual, esta se reflete na vida social, por ser o indivíduo simultaneamente particular e
genérico, indivíduo e ser social. Ao mesmo tempo em que o genérico apresenta motivos
particulares, o particular torna-se a manifestação do genérico. É pelo fato de a cotidianidade
ser concomitantemente uma junção do particular e do genérico que ela se encontra predisposta
a alienação, ao se manifestar como uma atividade não consciente, pois
...Na coexistência e sucessão heterogêneas das atividades cotidianas, não há por que
revelar-se nenhuma individualidade unitária; o homem devorado por seus “papéis”
pode orientar-se na cotidianidade através do simples cumprimento adequado desses
“papéis”. (HELLER, 1992, p. 38)
O “simples cumprimento adequado desses papéis” corre o risco de transformar a
cotidianidade em conformismo, tendo este um sentido alienador. Essa alienação se dá
“quando ocorre um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de
desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a participação
consciente do indivíduo nessa produção.” (op. cit. 1992, p. 38). Esse conformismo foi
63
observado em alguns casos em que a resignação ao “destino” se mostrou presente nos
discursos quando, ao falarem da atividade desempenhada, demonstravam ser suas atividades
cercadas de uma monotonia sem esperanças de melhora sendo o futuro incerto, não podendo
ser feito nada para mudar o curso de suas vidas:
Eu nunca tive oportunidade de estudar porque comecei a trabalhar muito cedo e tive
que parar os estudos na 3ª série primária.16 Por não ter estudo, o jeito foi trabalhar na
feira como meus pais. Hoje estou conformada com isso e acho que não preciso de
mais nada. (feirante 4)
Estou aqui porque não tem outro jeito, não estudei e por isso não posso fazer outra
coisa. Aqui pelo menos temos segurança, pois os fiscais não mexem com a gente.
(feirante 5)
Outra mulher, que teve a oportunidade de estudar um pouco mais, se ressente do
trabalho no local, por achar que já viveu melhor e que sua vida hoje não permite mais novas
perspectivas:
Eu terminei o ginasial17, já tive emprego com carteira, já trabalhei no Distrito, mas
agora, tenho que trabalhar aqui. Não tem outro jeito de viver. (feirante 2).
Observamos nesses depoimentos o conformismo na falta de uma melhor maneira de
viver e no último caso, por falta de oportunidade de trabalho com carteira assinada, já que sua
idade (50 anos) dificulta ainda mais sua inserção no trabalho formal.
O cotidiano é determinado fortemente pela exterioridade, mas, ainda para Heller
(1992), apesar da hierarquia do cotidiano ter diversas determinações, esta é passível de ser
alterada por meio da “condução da vida”, que mesmo mantendo-se sua estrutura, consegue-se
impor uma marca individual tornando esta condução um desafio à desumanização (idem,
1992, 40-41) e ao conformismo resignado, possibilidade esta não consciente nem presente na
vida de algumas dessas mulheres.
16
17
Hoje, após revisão do ensino brasileiro, corresponde ao 4º ano do Ensino Fundamental.
Aqui ela se refere ao Ensino Médio completo.
64
É no cotidiano que nós também representamos os nossos papéis. Nessa representação
as mulheres seguem os modelos estabelecidos socialmente de mães, filhas, esposas ou
companheiras, feirantes, amigas ou irmãs e são condicionadas a eles. Entretanto o ser humano
É mais do que o conjunto de seus papéis, antes de mais nada porque esses são
simplesmente as formas de suas relações sociais, estereotipada em clichês, e
posteriormente porque os papéis jamais esgotam o comportamento humano em sua
totalidade. Assim como não existe nenhuma relação social inteiramente alienada,
tampouco há comportamentos humanos que se tenham cristalizado completamente
em papéis (HELLER, 1992, p. 106).
Por serem condicionados, os papéis sociais podem produzir comportamentos
contraditórios e isso foi observado em algumas atitudes, como por exemplo, quando nos
aproximamos de uma das mulheres, ela nos recebeu de forma carinhosa, oferecendo-nos sua
mercadoria; entretanto, ao ser informada de que se tratava de uma pesquisa, seu semblante
mudou: desfez o sorriso, tornando-se pouco receptiva e ressabiada. Ela usou da cordialidade
no exercício da profissão, como é de praxe, consolidando o objeto da função da linguagem
publicitária: usar de todos os artifícios persuasivos para vender um produto e esse interesse se
esvai no momento em que muda o foco da mensagem.
Observamos ainda que tal comportamento também é oscilante quando essas
mulheres desempenham seu papel de mãe ou esposa no local de trabalho, ou seja, ora
carinhoso ora agressivo com os filhos (muitas vezes adolescentes), em outras ocasiões, uma
clara submissão em relação ao companheiro, às vezes na tentativa de evitar desconforto
público.
Constatamos que o comportamento humano pode alterar-se subitamente de acordo
com a situação em que a pessoa se encontra para desempenhar o seu papel social, de acordo
com sua conveniência.
Goffman (2007, p.25) nos diz que na representação do seu papel, o indivíduo “dá seu
espetáculo” estando ou não compenetrado em sua atuação, podendo naquele momento ter um
comportamento cínico ou sincero18, de acordo com a crença em sua própria representação,
tendo em alguns casos um interesse pessoal. No exemplo citado, ambas as situações se
18
O cínico e o sincero para Goffman se referem ao fato de o ator estar ou não “compenetrado de seu próprio
número”, ou seja, “convencido de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira
realidade.”(GOFFMAN, 2007, p.25)
65
mostraram presente, tanto no comportamento inicial de acolhimento, quanto no posterior de
rejeição, sendo essa rejeição mais sincera e visível por ter o indivíduo convicção de sua
representação.
Para o mesmo autor (2007, p. 29), representação é “toda atividade de um indivíduo
que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo
particular de observadores e que tem sobre este alguma influência”. Nesse sentido, podemos
distinguir no âmbito dessa representação uma fachada enquanto expressão inconsciente
(desempenho observado) e o cenário (local onde ocorre a representação). No caso da feira,
observamos um padrão de comportamento, mantendo uma fachada que esconde conflitos
latentes. Esses conflitos não são revelados publicamente, pois a fachada da representação não
o permite, mas é só permanecer um pouco mais de tempo no local e observar as atitudes e
comentários para que isso se torne visível. A manutenção da fachada é uma exigência, pois
percebemos que existe um código de conduta que deve ser aceito e exercido por todos os
feirantes. Este documento (anexo da Lei 123/2004) que é entregue a todos os feirantes
disponibiliza os comportamentos esperados, indicando para isso os “cuidados básicos” a
serem respeitados no exercício profissional, estando entre eles: o uso do uniforme, o cuidado
com a aparência pessoal, a limpeza da banca, tratamento adequado ao consumidor e a
exposição de produtos de boa qualidade. Essas indicações são referentes tanto à fachada
pessoal quanto ao cenário onde a representação ocorre.
A fachada pessoal do feirante também pressupõe o uso de uma bata branca durante a
realização do trabalho, segundo o presidente do Comitê Gestor. Isso permitiria credibilidade
em relação à própria atuação profissional, mas seu uso só é observado principalmente entre os
vendedores de carnes e peixes e a explicação para isso é a sujeira que o corte desses alimentos
provoca na roupa, justificando seu uso. Os demais feirantes não a utilizam. Quanto ao cenário,
as bancas e boxes disponibilizam os produtos, obedecendo a uma organização com base nas
prioridades. Nas bancas, as frutas, sempre que possível são penduradas em pequenas redes ao
longo da estrutura de madeira que as cercam, enquanto as verduras em geral são expostas em
cima da própria banca, tendo algumas delas um leve declive em direção ao lado do
comprador. Este declive permite que os produtos fiquem mais acessíveis ao cliente, ao mesmo
tempo em que permite uma maior visibilidade do vendedor que se encontra do lado oposto,
que algumas vezes também se encontra em cima de um tablado, tendo uma visão privilegiada
de seus produtos.
66
Outra situação que a fachada esconde é a que denota a ocultação dos conflitos,
principalmente aqueles ligados à concorrência. Como as bancas vendem praticamente os
mesmos produtos, a concorrência é forte e em alguns momentos, segundo algumas mulheres,
desleal por significar falta de respeito principalmente com as pessoas que possuem bancas
menores e mais afastadas da entrada da feira e do corredor principal. Apesar disso, é
terminantemente proibido o assédio aos clientes na área dos corredores, sendo permitido
apenas “chamar o freguês” de dentro da própria banca. Esse é o padrão que garante a fachada
social e que deve ser mantido sob pena de advertência ou suspensão temporária das atividades
como forma de punição.
Por outro lado, também nos foi possível observar a conduta dos bastidores que
Goffman (2007, p. 121) define como “aquela que admite pequenos atos, que podem
facilmente ser tomados como símbolos de intimidade e desrespeito pelos outros...” Esses atos
estiveram presentes nos momentos de informalidade, quando os fregueses não se encontravam
por perto ou não estavam potencialmente dispostos à compra. Nesses casos, presenciamos
palavrões, agravos e falta de respeito. As conversas e atitudes de bastidores são significativas
na demonstração de que a representação no ambiente de trabalho se mantém de uma forma
geral controlada apenas naqueles momentos de maior movimento quando os possíveis
fregueses poderiam encontrar ali um ambiente pouco acolhedor e propício às compras. Além
disso, outros comportamentos também são típicos dos bastidores, como se distrair com outras
atividades, sair no horário de trabalho ou afastar-se da banca por alguns minutos.
Em várias ocasiões, nos horários de pouco movimento, ouvimos gargalhadas,
resultado de conversas pouco delicadas, algumas vezes envolvendo o comportamento
feminino e até mesmo sobre os atributos físicos de mulheres. Esse tipo de comportamento
também se insere no que José de Souza Martins designa como uma “forte precariedade da
vida privada”, pois as pessoas têm em público os mesmo comportamentos que teriam em suas
casas, ao confundirem o público e o privado, estando isso muito presente no caso brasileiro
(MARTINS, 2008, p. 86-87). E na feira, apesar de combatidas, essas situações sempre se
fazem presente.
Mesmo sendo considerado pelas mulheres entrevistadas como um ambiente de
respeito mútuo, não havendo discriminação ou preconceito entre homens e mulheres, deve-se
avaliar o que é por elas considerado respeito/desrespeito. Para elas, faltar com o respeito é
utilizar palavras de baixo calão ao se dirigirem a uma mulher, mas dependendo da pessoa ou
67
da situação isso pode ser entendido como elogio, principalmente entre as solteiras ou
separadas (na visão dos próprios homens), o que demonstra pouco respeito com relação às
mulheres e a reafirmação do machismo e da discriminação feita a elas. Nessa afirmação
podemos entender que o “desrespeito” pode ser consentido e somente no caso contrário será
ou poderá ser denunciado à Comissão Gestora ou à administração, colocando o infrator em
situação de punição ou suspensão. Mas isso só ocorre em casos extremos, pois caso contrário
poderá transformar a vítima em refém de uma situação desconfortável no ambiente de
trabalho, pois mesmo sendo maioria na feira, muitas das mulheres ainda aceitam o papel de
responsáveis pelas incursões masculinas, reforçando esses comportamentos machistas,
autoritários e desrespeitosos, acreditando que nada podem fazer contra isso. Já com relação à
diferença de tratamento entre homens e mulheres na feira, cinco delas afirmaram que não
existem diferenças e que todos são tratados igualmente, com a ênfase no fato de que as
mulheres são maioria no local. As outras afirmam a necessidade de a mulher se impor para
obter respeito, o que uma delas categoricamente definiu como “botar moral”. Neste caso se
encontram prioritariamente as mulheres solteiras, separadas ou em situações em que o
companheiro não trabalha na feira.
Comparando o dito e o observado, podemos afirmar que em geral a discriminação
contra a mulher pode aparecer de forma direta ou velada, sendo que na segunda situação
muitas vezes elas não têm consciência disso. Aceitar como natural atitudes, comportamentos e
opiniões que ferem os preceitos de igualdade também reforçam o mito da supremacia
masculina. Alguns mitos que naturalizam a distinção entre os sexos se fazem persistentes,
demonstrando a dificuldade de sua superação e se encontram presentes no dia a dia do
trabalho feminino. Mas ao compreendermos que estes mitos são construídos socialmente,
passamos a perceber que os mesmos são perfeitamente passíveis de modificações e que
dependem significativamente de ações e estratégias de enfrentamento. Ao percebê-los
cristalizados em nossa vida cotidiana, reproduzimos muitas vezes inconscientemente
discursos que os fortalecem. É nesse sentido que nos propomos a levantar questões sobre
alguns desses mitos e seus desdobramentos, principalmente no que se refere à participação da
mulher no espaço público.
68
Compreendendo o mito
Antes de iniciarmos nossa discussão, faz-se necessário compreender o significado de
mito. Toda sociedade tem seus mitos e sua compreensão sempre se encontra atrelada à cultura
de um determinado povo. Para Eliade (1977, p.27), o mito “enuncia um acontecimento (...)
um precedente exemplar para todas as ações e „situações‟ que, depois, repetirão este
acontecimento”. Já para Lima e Franco (2001, p.85), os mitos “são sistemas” que explicam o
mundo e a natureza humana sob a forma de representações coletivas que são transmitidas de
uma geração a outra. Ou seja, o mito estabelece um modelo de ação, de comportamentos a
serem seguidos e reproduzidos e desse modo são estabelecidas as construções identitárias do
masculino e do feminino. Ao definir essas identidades juntamente com os seus modelos, são
criados mitos que geram um espaço próprio de cada gênero. É assim que é definido o modelo
patriarcal como mediador das relações familiares, os afazeres domésticos como função
primordialmente feminina, a beleza e a juventude como valores indispensáveis principalmente
na mulher, com os padrões impostos para que se dê uma aceitação social, enfim, o mito da
oposição entre o masculino e o feminino. Nesse contexto, podemos perceber como estamos
rodeadas de padrões de comportamento que estabelecem o que é tipicamente feminino,
diferenciando-se das ações que são reservadas aos homens, ou aos padrões tipicamente
masculinos.
Roger Chartier (1995) em seu texto “Diferenças entre os sexos e dominação
simbólica”, levanta três principais questões sobre essas diferenças:
- O que valida os critérios de oposição entre os sexos;
- As representações femininas que consentem a violência e a diferença;
- Como se define a temporalidade da relação entre os sexos.
Considerando as questões levantadas, ele discute a idéia de que se deve ter cuidado
em não reproduzir “algumas simplificações da antiga história social”, ou seja, o cuidado em
não fazer generalizações que reafirmem as diferenças como universais e sim como
construções sociais, pois, é nestas construções que a dominação é incorporada e afirmada
como uma diferença de natureza, imposta e representada pela divisão social, estabelecendo
papéis e funções diferenciadas. São esses discursos que produzem as diferenças sexuais e a
oposição “entre atividade doméstica e atividade assalariada, entre função reprodutora e
trabalho produtivo, entre o lar e a fábrica” (CHARTIER, 1995, p.43).
69
Fica claro então, que precisamos ficar atentos às práticas discursivas e ao que é
falado para a demonstração de poder, pois a linguagem pode assumir diferentes significados,
posto que ela é uma interpretação e como tal precisa ser analisada, já que a experiência
perpassa o discurso, e toma formas históricas de organização social que dão margem às
questões de gênero. Entretanto, apesar de entendermos que comportamentos e opiniões
cristalizadas e reforçadas socialmente não podem ser desconsideradas, pois, enquanto à
mulher foi reservado o espaço privado, o ambiente familiar, as atividades domésticas e o
comportamento submisso - primeiro ao pai e ao irmão mais velho e depois ao marido, ao
homem foi reservado o espaço público, o trabalho fora do lar, à responsabilidade pelo
sustento da família, a palavra final.
Essa idéia perdurou por séculos, mesmo que
ocasionalmente tenha sido questionada, e permanece no senso comum e em nossos
comportamentos ainda nos dias de hoje. O poder da mulher se manteve na maioria das vezes
restrito ao espaço familiar, tornando necessário em sua revisão a possibilidade de um
empoderamento individual e coletivo em busca da equidade de gênero.
O empoderamento aqui é entendido como o “processo de aquisição de controle sobre
a própria vida, de desenvolvimento de habilidades de fazer coisas e definir suas próprias
agendas de mudança social, de organizar-se coletivamente e colocar demandas ao Estado”.
Mas, para que esse empoderamento se dê é de extrema relevância um aprendizado sobre como
o poder se estabelece e se mantém, dentro de uma visão crítica da realidade, de modo a se
manter a possibilidade de sua transformação (CARVALHO e RABAY, 2001, p.131), ou seja,
é exatamente ao analisarmos a necessidade de empoderamento das mulheres que fica claro o
seu importante papel no sentido de rever o poder destinado ao homem, que tem sua origem no
patriarcalismo19. Ao se encontrar imerso na maioria das noções e ações que reproduzimos a
todo o momento, o patriarcalismo cumpre o papel de manutenção das estruturas de poder.
Partindo desse princípio podemos inferir que aí se encontra presente o mito da superioridade
do homem sobre a mulher, mito este que é reforçado pela suposta necessidade de proteção
que a mulher muitas vezes sem querer ou sem se dar conta, cobra do homem.
Por outro lado, “sem tempo” para se dedicar a outras atividades, começando por uma
participação mais efetiva nas decisões que são tomadas em seu local de trabalho, aliada a
outras formas de participação política, torna-se difícil conquistar o empoderamento necessário
19
Patriarcalismo é a forma como se estrutura e organiza a vida coletiva, baseado no poder do pai, passando a
ter prevalência as relações masculinas sobre as femininas (XAVIER, 1998).
70
para lidar com o patriarcalismo enraizado. A participação dessas mulheres como
sindicalizadas ou nas reuniões organizadas pelo Comitê Gestor, em geral é muito pequena,
elas mesmas se fazendo ausentes, demonstrando a pouca capacidade ou interesse em discutir
assuntos “de homem” (mais um mito), como se fazer política fosse exclusividade deles. É por
isso que entre as entrevistadas, apenas uma é sindicalizada, já tendo inclusive se candidatado
ao Comitê Gestor, sem conseguir lograr êxito. De qualquer forma, em um ambiente
predominantemente masculino (sindicato e Comitês Gestores), seria difícil uma mulher ter
apoio exclusivo dos homens, afinal, considerando a baixa participação delas nas decisões
tomadas nesses ambientes, fica ainda mais complicado estabelecer naqueles, um espaço de
efetiva participação feminina.
Quando perguntamos o motivo da não participação nas reuniões do Comitê Gestor
ou no sindicato, obtivemos as seguintes respostas:
Não sou sindicalizada porque o sindicato não é ativo, e na feira, é o meu marido que
participa das reuniões e resolve tudo por lá. Enquanto isso, eu fico aqui trabalhando!
(feirante 1)
Saí do sindicato porque não vi vantagem de estar ali, mas algumas vezes participo
das reuniões do Comitê Gestor. (feirante 3)
Não sou sindicalizada nem participo das reuniões na feira, pois não quero me
envolver com essas coisas. Prefiro trabalhar para não perder tempo. (feirante 4)
Já fui sindicalizada, mas deixei de pagar, pois eles não fazem nada por nós, você só
gasta dinheiro e nada! E na feira, ultimamente não tem acontecido nada, nem
reuniões! (feirante 5)
Só participo das reuniões se tiver votação. Fora isso, fico por aqui mesmo. (feirante
6)
É perceptível que a maior preocupação delas é o sustento da família, não dando
grande importância a outras situações que as tirem do foco da venda de seus produtos nem de
seus outros afazeres, pois como já foi afirmado, a centralidade de suas vidas encontra-se no
trabalho. Por outro lado, a apatia relativa à participação e representação política confirma a
idéia de que,
71
As mulheres, enquanto grupo em oposição de desigualdade estrutural, não têm as
mesmas condições de acesso às arenas políticas e aos canais de poder que os
homens, devido aos limites impostos pelo seu papel social. Por sua vez, as arenas
políticas e canais de poder (construídas por homens) nas instituições corporativas de
representação de interesses, com normas próprias de recrutamento e treinamento
político. Além disso, diferentemente do homem, os ciclos de vida da mulher
segmentam sua vida, particularmente com a maternidade. Finalmente, para as
mulheres a relação custo-benefício é diferente daquela que se coloca para os
homens, já que elas, historicamente, têm obtido menos bens políticos.
(CARVALHO e RABAY apud AVELAR, 2001, p. 125)
Para a falta de interesse e o menor envolvimento da mulher na política, devemos
considerar tanto os aspectos institucionais quanto os atitudinais e os estruturais. No primeiro
caso temos a forma do sistema político que assimila apenas “grupos já legitimados” pelos
interesses de representação e de reprodução do sexismo, no segundo caso, a falta de preparo
da mulher para a competição, e no terceiro caso, a frequente segregação da mulher no âmbito
privado. (CARVALHO e RABAY apud Avelar, 2001, p. 125-126).
Neste sentido, observamos que o exercício da cidadania tem muitas limitações que
são determinadas pelo patriarcalismo, exigindo que a participação das mulheres se enquadre
no modelo masculino. Para Costa (2002),
Esse modelo liberal de cidadania independente, que pressupõe a existência de
cidadãos livres capazes de exercer seus direitos civis e políticos, não considera a
condição de subordinação e opressão a que, ainda hoje, as mulheres são submetidas.
Não leva em conta que sua condição de gênero oprimido as impede e obstaculariza o
exercício pleno de sua cidadania. (COSTA, 2002, p. 74)
É essa condição de subordinação que, ao se aliar ao modelo de cidadania liberal,
mantém a “exclusão feminina das instâncias de decisão e em especial das estruturas do poder
formal” (op. cit. 2002, p. 75), mantendo-as também fortemente ligadas ao âmbito doméstico.
Mesmo quando saem de casa para trabalhar, em geral, as condições também não se
mostram favoráveis, principalmente entre as mulheres com pouca escolaridade, que são
predominantes nas camadas mais baixas, tendendo a se submeterem também à ausência de
vínculos que a formalidade pressupõe. Isso também se relaciona com a procura por atividades
72
que permitam a flexibilidade, e assim possam conciliar o trabalho remunerado e o trabalho
doméstico.
Quando tratarmos do significado da palavra “trabalho” entre as feirantes, seu alcance
se restringiu à possibilidade do consumo básico necessário para a manutenção da vida, tendo
ênfase o pagamento das contas e o sustento da família.
Eu trabalho porque preciso, mas se pudesse não trabalharia, pois já me sinto
cansada. Comecei a trabalhar muito cedo e não sei quando vou poder parar, pois
tenho minha mãe para sustentar e ela já está muito velha. Gostaria de ter outros
meios para viver, sem precisar estar aqui todos os dias, o dia inteiro. (feirante 2).
É com o trabalho na feira que sustento meus filhos e pago as minhas contas. O
trabalho me dá dignidade. (feirante 3)
O trabalho me faz bem em todos os sentidos: comer, ajudar a família, poder criar
meus netos. Já estou cansada, mais quero poder trabalhar até o fim da minha vida,
que não está tão longe, pois já tenho 63 e não posso parar. (feirante 4).
As respostas dadas corroboram o que já foi exposto, isto é, o trabalho na feira é a
única alternativa de sobrevivência e a dignidade que ele representa se refere a ter acesso aos
bens de consumo fundamentais para a manutenção da família. Nesse caso, o trabalho tem um
valor objetivo, voltado apenas para a subsistência material.
Apesar de se sentirem agradecidas por terem este espaço de trabalho seguro, são
conscientes de que suas situações são o resultado da falta de qualificação para o exercício de
outra atividade, e que por falta de outras opções ali permanecem. Não consideram o trabalho
na feira ruim, mas também não acreditam que seja o melhor para elas, pois consideram-no
duro e de baixo retorno financeiro. É pensando dessa forma que elas insistem em dizer que
não é isso o que querem para seus filhos, já que no caso delas, essa foi a única opção para
conseguir sobreviver, uma vez que não tiveram outra escolha.
É dessa maneira que essa preocupação em sobreviver se reflete também na baixa
participação na tomada de decisões. Como não se sentem à vontade para tratar das questões
políticas, desacreditam na força do sindicato e até do próprio Comitê Gestor que elas
ajudaram a eleger, (algumas não sabem sequer o nome do atual presidente do Comitê, que
73
trabalha com elas ali) demonstrando total apatia e falta de compromisso com as discussões
que dizem respeito às suas próprias vidas e que poderiam ajudar a mudar o rumo delas.
Ainda sobre essa ausência política, parte da situação se insere em questões mais
amplas, relativas ao próprio processo de inserção nessas discussões e basicamente na idéia de
patriarcalismo muito presente na vida de todas elas.
O patriarcalismo como imposição da superioridade masculina
O patriarcalismo se estabelece como uma forma de estruturação e organização social
que tem como pressuposto o poder do pai e se reproduz com base no poder masculino sobre o
feminino. Essa concepção acabou por gerar uma série de elementos tanto sociais quanto
culturais que reafirmam a todo o momento a superioridade masculina. É nesse sentido que,
com base nos valores patriarcais, a mulher passa a ser vista como frágil, necessitando de um
homem para mantê-la e protegê-la, levando à visão equivocada da posse. E por ser o
patriarcalismo uma instituição anterior ao capitalismo, a apropriação do espaço doméstico
passou a ser assumido pelo poder patriarcal como forma de controle.
Ao partir de um conceito com base em visões teóricas a respeito do público e do
privado no âmbito da dominação e da transformação política, o patriarcado se apoderou das
verdades que passaram a ser aceitas socialmente, sendo, portanto o resultado de uma produção
social e tendo por trás de si ganhos que se restringem e beneficiam apenas a um determinado
grupo, nesse caso, os homens.
É nesse sentido que a visão patriarcal de sociedade manteve a mulher afastada das
decisões na esfera pública, restringindo inclusive sua participação política. Aliás, é muito
recente em nosso país essa inserção, sendo que em geral ela ainda se encontra muito
dependente da figura masculina. Para Carvalho e Rabay (2001, p.127), “a prática política das
mulheres se caracteriza pelo tradicionalismo e pela maternagem, restringindo-se ao âmbito
dos interesses do grupo ao qual pertencem.” Para as mesmas autoras,
Se o Estado liberal-democrático e a cultura política vigentes são uma construção
masculina (baseada na separação público-privado), e se a cidadania é um conceito e
uma prática masculina (sustentada por um domicílio patriarcal funcional), um novo
projeto democrático requer a reconstrução do sistema, das instituições e das práticas
políticas. (CARVALHO e RABAY, 2001, p. 127).
74
Na verdade, essa mudança requer transformações tanto culturais quanto identitárias,
sendo as mulheres as principais responsáveis pela reversão da ordem patriarcal e oligárquica.
Para isso é necessário, entretanto, que elas sejam liberadas “dos obstáculos inerentes ao papel
tradicional tanto no âmbito privado (liberação dos encargos domésticos e familiares) como no
público (enfrentamento do sexismo).” (CARVALHO e RABAY, 2001, p. 128). No primeiro
caso, quando se fala de liberação dos encargos domésticos e familiares, não queremos apenas
justificar a ausência e sim a necessidade da ausência, o que acaba por reafirmar a
responsabilidade do casal no que se refere às atividades domésticas e criação dos filhos.
Apesar de seis das mulheres entrevistadas serem casadas ou manterem uma união
estável com seus companheiros, todas foram unânimes em afirmar que o trabalho lhes dava
dignidade e certa autonomia em relação ao marido, mesmo sendo algumas vezes essa
autonomia relativa, pois a situação de submissão a ele se mostrou patente em algumas
situações, como no caso em que uma delas, sendo entrevistada na presença do marido, quase
não respondeu sem a interferência do companheiro, sendo que para a maioria das respostas ela
se referia primeiro a ele para só então fazer suas afirmações. Também pudemos vivenciar uma
situação contrária que poderíamos definir como aquela em que a mulher demonstra ter mais
poder sobre o homem. Neste caso, tratava-se de uma mulher com mais idade e aparentemente
muito autoritária com o marido, dando a entender que ela é o lado mais forte da relação.
Casos como esse só chamam a atenção por fugir do padrão social predominante, que
frequentemente coloca o homem como mais forte e dominante. Isso se deve aos mitos que
foram criados socialmente e que acabaram impondo à mulher um papel de submissão.
Trabalhar na feira para elas tem um significado especial, ao fazê-las pessoalmente se
sentirem úteis e produtivas. Por outro lado também significa sair do espaço doméstico,
conhecer outras pessoas, outras experiências, poder estabelecer objetivos, sentir-se “viva”
como disse uma delas, além de significar a conquista da “dignidade” como disse outra, pois
denota a divisão das despesas de casa e a consequente independência com relação ao marido
ou a capacidade de agir em busca de um futuro melhor. Uma delas enfatizou que só em não
ter que pedir do companheiro o que precisa, lhe dá uma autonomia que compensa todo o
esforço dedicado a esta atividade, mesmo isso tomando grande parte do seu tempo diário.
Quando tratamos da colaboração entre homens e mulheres e dos vizinhos de banca,
obtivemos a resposta que a grande maioria para obter ajuda precisa pagar. Com raríssimas
exceções, não existem favores prestados sem retorno, em geral financeiro. Ocasionalmente,
75
em casos de extrema necessidade, pode acontecer de se obter alguma colaboração, mas isso
em casos raros, principalmente quando existem bancas de parentes por perto, o que facilita a
troca de gentilezas e favores. Concluímos que o fato de ser mulher não oferece vantagens com
relação ao homem, e aquela idéia de solidariedade que a princípio pode rondar o imaginário
popular, está descartado, pois naquele ambiente é cada um por si.
Encontramos motivações diversas na escolha das mulheres pelo trabalho na feira, a
mais significativa foi a necessidade do sustento familiar. Algumas assumem o trabalho na
feira como falta de opção devido ao baixo nível de escolaridade, outras como consequência da
falta de emprego. Mesmo entre as que tiveram outras experiências profissionais, teve destaque
entre elas, o fato de que poucas trabalharam com carteira assinada. Algumas anteriormente
realizaram atividades como domésticas, trabalho ambulante com venda de churrasquinho,
doces e salgados. Duas nunca tiveram experiências profissionais anteriores, sendo que uma
delas trabalhou a vida inteira como feirante, desde os 16 anos, quando acompanhava o pai e
por isso não teve tempo para os estudos (tem o fundamental incompleto). Hoje ela está com
63 anos e não tem perspectiva de aposentadoria ou de um dia parar de trabalhar. Apenas duas
mulheres tiveram alguma experiência com carteira assinada. Uma trabalhou como cozinheira
e saiu do emprego devido ao baixo rendimento e ao tempo dedicado ao trabalho que acabava
por não compensar financeiramente. Outra trabalhou em um supermercado como açougueira,
e depois como montadora no Distrito Industrial até 1997. O desemprego a fez recorrer alguns
anos depois (2002), ao trabalho na feira. Todas as entrevistadas vivem da renda gerada pelo
seu trabalho no local, mesmo que encontremos em algumas delas o auxílio do companheiro
para as despesas familiares.
A necessidade de a mulher exercer uma atividade que gere renda como complemento
às exigências de manutenção da família, tem sido uma constante no dia a dia feminino. Isso
ocorre tanto pela incapacidade de seus companheiros em suprir todas as demandas familiares,
quanto pela vontade em sentir-se útil realizando uma atividade produtiva, o que tem
aumentado seu ingresso no mundo do trabalho. Para Bruschini (1994, p.180), a participação
feminina no Brasil marca profundas transformações sociais a partir da década de 70, passando
a ser uma necessidade econômica acirrada pela deterioração dos salários, o incremento da
renda familiar, o aumento da expectativa de consumo, a queda da fecundidade, a expansão da
escolaridade, entre outros aspectos.
76
“... Contudo, entender os movimentos de inserção das trabalhadoras no contexto
mais global do mercado de trabalho não significa deixar de lado as especificidades
do trabalho feminino, que não pode ser analisado sem se levar em conta o papel que
as mulheres ocupam na reprodução. Os primeiros estudos sobre o tema,
preocupados em analisar a presença ou ausência das mulheres do mercado sob o
impacto dos fatores econômicos, não levaram em conta o papel fundamental que a
mulher exerce na família, onde se dá a reprodução, limitando o âmbito de seus
resultados. Mas atualmente existe consenso de que a necessidade e as
possibilidades que a mulher tem de trabalhar fora de casa dependem tanto de
fatores econômicos quanto da posição que ela ocupa na unidade familiar.
(BRUSCHINI, 1994, p.182).
Aliado a isso, temos as crises constantes do modo de produção capitalista, que
afetam todas as áreas relativas ao desenvolvimento humano, interferindo na qualidade de
vida, no padrão de consumo e na oferta de empregos pela diminuição dos postos de trabalho.
A principal consequência da falta de emprego é a precarização do trabalho, que traz em seu
bojo o acirramento da falta de condições para a geração de renda, desencadeando um processo
de informalização da economia e das condições de vida da população. Nesse sentido, cresce o
número de pessoas vivendo do subemprego e do trabalho insalubre e mal remunerado, o que
provoca ao mesmo tempo profundas alterações nas relações do homem com a natureza,
consigo mesmo e com os outros indivíduos, contribuindo para o aumento de inúmeros
problemas sociais, incluindo aí a pobreza. A pobreza assim apresenta uma dupla dimensão,
tanto com relação aos baixos ingressos no processo produtivo formal quanto com relação à
impossibilidade de satisfação das necessidades básicas, consolidando dessa forma a exclusão
e sua reprodução. (SALLES e TUIRÁN, 1998, p.99).
Outro ponto a ser observado é que as mudanças operadas no mundo do trabalho têm
alterado a concepção de cidadania, pois a capacidade de se inserir socialmente passou a ser
condicionada à inserção produtiva, a ter emprego e a ser consumidor, passando a ser esta uma
forma determinante da inclusão. Nas condições atuais, os limites se estabelecem em face das
altas taxas de desemprego e do aumento da precariedade do trabalho. E a precariedade do
trabalho é patente em muitos dos casos observados.
Além da permissão para o trabalho no local, que garante a isenção de impostos como
o ICMS e ISS entre outros, que normalmente são pagos por micro e pequenos empresários, o
feirante não paga aluguel pelo uso do espaço, o que os coloca em posição de vantagem em
77
relação a outros tipos de comerciantes, ao realizarem o comércio informal com o aval da
Prefeitura.
A permissão para atuar na informalidade funciona como um mecanismo que ao
mesmo tempo em que procura aliviar as tensões causadas pelo alto índice de desemprego,
também serve para manter o controle do Estado sobre os supostos desempregados. Isso cria
um equilíbrio aparente de manutenção da ordem, mantendo os conflitos latentes e gerando um
suposto direito de manutenção da situação, direito esse que é reivindicado pelo permissionário
sempre que ele corre o risco de ter suspensa a permissão.
Quando perguntadas sobre as vantagens da permissão para a realização do trabalho,
fica claro a tranquilidade de poder trabalhar com a autorização, mesmo tendo para isso que se
submeterem às taxas e às regras estabelecidas pela administração. A garantia de permanência
no local, a princípio somente será quebrada com o abandono do mesmo ou alguma falta muito
grave. Além disso, ter um lugar certo para ficar representa a segurança que acaba por
compensar a falta de estabilidade financeira provocada pela inconstância dos rendimentos. As
vantagens de ter a permissão para trabalhar assim se resumem nas falas de algumas delas:
O bom de ter a permissão é que a administração não incomoda. Aqui trabalhamos
sossegadas. (Feirante 1)
É melhor ter permissão pela segurança que ela me dá. Aí eu não preciso sair
correndo para fugir dos fiscais. (Feirante 2)
Aqui eu tenho sossego de não ser incomodada pelos fiscais. Eles passam, olham,
veem que estamos trabalhando e vão embora. (Feirante 7)
Aqui na feira eu tenho sossego para trabalhar sem me preocupar com a fiscalização.
Eles não incomodam e eu trabalho tranqüila. (Feirante 8).
Analisando a renda, observamos que elas têm dificuldade em estabelecer um
parâmetro de ganho mensal devido à inconstância do que é vendido. Entretanto, contando
com os dias de mais movimento (sábado e domingo), afirmam que semanalmente podem ter
um ganho de até R$ 400,00 bruto, ocorrendo situações em que esta renda é inferior. No caso
em que esta renda semanal é maior, ocorreu apenas com uma delas que por trabalhar com
frutas mais caras (uvas, maças, pêssegos, morangos, etc.), pode ganhar em uma semana até
R$ 700,00 bruto. É claro que isso pode variar tanto de acordo com o dia da semana, a
localização da banca, ou o período do mês e até do ano. Devem ser considerados também
outros fatores que podem interferir nas vendas/lucro, como a questão estrutural da economia e
78
os períodos de safra e entresafra que determinam simultaneamente o poder de compra e o
preço dos produtos.
Quando o casal trabalha junto na banca, as tarefas são divididas, sendo que é ele o
responsável pela compra dos produtos a serem vendidos, enquanto ela fica responsável pela
venda durante o dia. Alguns maridos realizam atividades de ambulante nos arredores,
enquanto a mulher fica na feira. O fato de as compras serem realizadas duas a três vezes por
semana na Feira Cel. Jorge Teixeira (Manaus Moderna), sendo para isso necessário sair de
casa por volta das duas horas da manhã, é considerado papel masculino. Em apenas um caso,
especificamente o da única mulher solteira que mora com a mãe, é ela mesma que realiza esta
atividade. Para outras duas, que moram apenas com os filhos, a compra é feita pelos
atravessadores da FMC, por não ter condições de se dirigir ao local das compras e, portanto,
compra mais caro e em menor quantidade, consequentemente tendo que perder um pouco nas
vendas para compensar o preço em relação às bancas concorrentes. Todas pagam pelo
transporte da mercadoria, por não terem carro próprio para o deslocamento do produto.
Em cinco casos, são as mulheres as principais provedoras, seja por ser solteira,
separada ou ter seus maridos com muito mais idade que elas, ou ainda pela condição de
trabalho dele ser ainda mais precária que a dela, fora da feira, cabendo a estas a maior
responsabilidade pelo sustento da família. As três restantes têm o auxílio dos maridos que em
todos os casos trabalham com elas, mas são tidos como os principais provedores, mesmo que
elas também tenham as mesmas responsabilidades financeiras pela família. Nesse caso,
apenas uma citou o casal como provedor. Algumas também citaram os irmãos ou filhos no
auxílio com as despesas familiares, realizando todos eles atividades pelas quais percebem
baixa renda.
As mulheres que têm filhos maiores de idade veem nestes o auxílio financeiro
fundamental para as despesas com a família, sendo que algumas vezes os filhos trabalham nas
bancas com as mães, mesmo que seja apenas nos fins de semana ou no período das férias
escolares, no caso dos menores de idade. Nesses casos, as mulheres são enfáticas em afirmar
que a situação dos filhos é provisória e que elas não desejam para seus filhos o trabalho na
feira por ser esta uma atividade pouco valorizada. Elas desejam que seus filhos estudem e
mudem seus próprios destinos. De qualquer forma, temos percebido que o trabalho na feira
tem algo de perpetuação familiar, pois observamos casos de uma terceira geração trabalhando
79
neste local. É o caso da neta que manteve a licença do avô já falecido. Neste caso, os filhos
trabalharam com o pai e posteriormente, a neta assumiu o trabalho no local.
Essa permanência da permissão de uso do espaço dentro da própria família é apenas
um dos casos que devem ser observados na licença, pois os boxes/bancas são
comercializados, mesmo sem o conhecimento dos órgãos competentes, prática essa comum
entre os feirantes. Outra irregularidade percebida é o acúmulo de espaços, pois de acordo com
a Lei 123, art. 3º, incisos IV e V, que permite o uso “de um único núcleo comercial”, onde
cada permissionário deveria ter a licença para o uso de apenas um (01) box/ banca, o que não
ocorre, como já demonstrado. O uso dos espaços desta forma tem levado a uma compreensão
equivocada do seu uso. As pessoas que ali permanecem há mais tempo, têm a idéia de que são
detentoras do espaço, quando na verdade, têm apenas a licença de uso do mesmo que pode ser
revogada a qualquer momento, de acordo com a legislação. Dessa forma, não cabe a idéia de
hereditariedade na prática de mudança da concessão.
Como a administração pública não interfere nos preços, reina a livre concorrência. É
nesse sentido que a localização das bancas passa a ser imprescindível. Segundo algumas
mulheres, a concorrência é acirrada e quando uma banca tem a possibilidade de vender o
mesmo produto com preços mais baixos, acaba trazendo prejuízos às outras.
Aqui, cada um faz o que pode, mas as bancas maiores vendem mais. Além disso, as
pessoas que estão aqui há mais tempo, têm fregueses mais antigos que não compram
da gente de jeito nenhum! (feirante 6)
Aqui a concorrência é cruel! Todos brigam pelo freguês, e a briga começa na entrada
da feira. Como o meu Box fica aqui atrás, eu fico com o que sobra. O jeito é ser
simpática para conquistar a freguesia. ( feirante 3).
Aqui a concorrência é acirrada! Os preços variam muito, e eu compro os produtos de
um vendedor aqui da feira, porque não tenho como ir comprar na Manaus Moderna,
aí não dá pra baixar o preço, pois já compro caro. (feirante 2).
Entendemos então que, apesar de em geral todos comprarem basicamente no mesmo
local, o que pressupõe preços iguais, existe uma variação tanto na quantidade quanto na forma
de aquisição o que pode facilitar na hora da negociação. Outro fator é o espaço para a
exposição dos produtos. As bancas maiores (duas) têm esse espaço dobrado o que permite
80
uma maior visualização do que está sendo vendido. Fomos informados ainda sobre a natureza
e implicações das faltas a serem cometidas pelos feirantes. São infrações graves, por exemplo,
deixar as bancas sem atividade, assim como trabalhar alcoolizado o que pode acarretar a perda
da permissão para o trabalho local. Convém registrar que chamar, de dentro da banca, um
cliente para comprar não é considerado falta, entretanto, se o feirante estiver fora da banca e
se assim o fizer, poderá ser suspenso.
Para dar continuidade a essa discussão, consideramos fundamental abrir um espaço
para compreender ainda, o mito que justifica a dupla jornada de trabalho da mulher e suas
conseqüências em termos de participação social. Isso se faz necessário ao considerarmos a
unanimidade de afirmações sobre a responsabilidade que elas têm pelos encargos domésticos.
Neste caso, iniciaremos a questão com algumas discussões feitas sobre o assunto.
A dupla jornada
A dupla jornada de trabalho ou jornada estendida é uma especificidade feminina, já
que elas, historicamente têm assumido a responsabilidade com os afazeres domésticos, e
quando se inserem no mundo produtivo acumulam além do papel de dona de casa na
realização do trabalho reprodutivo, o trabalho produtivo remunerado. Com isso reforçam-se
os mitos que insistem em colocar a mulher em posições subalternas e a tendência é
sobrecarregá-las uma vez que ela acumula o trabalho produtivo e as atividades domésticas e
isso tem dificultado sua participação integral e a possível igualdade de condições. Esses
fatores só vêm contribuir para a manutenção da supremacia masculina nos setores produtivos
e em especial, nos postos de comando, ao mesmo tempo em que coloca a mulher em uma
situação de sobrecarga, além de ocupar postos menos valorizados e excludentes. Sobre isso,
Vieira (2002) nos diz que,
A mulher que conquistou [no final do século XX] maior visibilidade no mercado de
trabalho é a mesma a ser convocada a dar respostas múltiplas a uma série de
atribuições (...) Um outro fato que emerge nesta realidade é o de que mulheres e
homens estão diante de um desafio ameaçador não mais do gênero e sim da espécie
que é a feminização da pobreza e esta tem raízes diretamente vinculadas ao modelo
excludente tão bem realizado pelas sociedades ocidentais (VIEIRA, 2002, p.61).
81
O que Vieira (2002) chama de “feminização da pobreza” é uma conseqüência das
condições em que a inserção produtiva se dá, em geral ocorrendo por conta da baixa
qualificação que gera baixos salários, produto também da desigualdade percebida em relação
aos homens que também ganham mais, mesmo ocupando os mesmos postos que as mulheres.
Podemos também inferir que, “no caso das mulheres, a ocupação dos postos de trabalho
continua vinculada às chamadas qualidades femininas, nunca qualificações. Daí a
desvalorização do seu trabalho” (FERREIRA, 2005, p.35).
Essa constatação é feita quando confirmamos um pressuposto inicial de baixa
escolarização entre os feirantes. Apenas duas das mulheres têm o Ensino Médio completo,
duas o Ensino Médio incompleto, três o Fundamental completo e uma o Fundamental
incompleto. Todas então freqüentaram a escola sem exceção, mesmo não tendo concluído os
estudos, o que significa que não existem casos de analfabetismo. Em compensação, aliado à
baixa escolaridade, temos também a falta de experiência profissional que acaba
impulsionando essas mulheres para a realização de atividades que não exijam qualificação e
que se encontram em geral, próxima ao que Ferreira (2005) chamou de qualidades femininas
(observar mais uma vez o Quadro 3, p.29).
Considerando a necessidade que todas elas tem em exercer uma atividade que gere
renda, principalmente quando esta ocorre fora do ambiente familiar, faz com que isso passe a
representar um peso extra, fazendo com que elas muitas vezes se sintam culpadas. É nesse
sentido que o trabalho feminino passa a ter um efeito negativo, tanto ao afastá-la da família,
quando pelo fato de representar um acúmulo de funções e até mesmo na diminuição de tempo
para o descanso ou o lazer, perdendo a mulher, qualidade de vida e adquirindo doenças que há
pouco tempo atingiam prioritariamente os homens. Ocasionalmente, elas parecem até
envergonhadas em assumir que seu ideal de vida seria não precisar trabalhar fora de casa,
tamanha a pressão que se estabelece entre elas, afinal, em pleno século XXI as conquistas não
podem ser esquecidas e o seu lugar no mundo do trabalho precisa ser preservado. Por outro
lado, o quanto de “vida familiar” se perdeu dentro dessas conquistas? Algumas mulheres
entrevistadas confidenciam que se tivessem escolha não trabalhariam, nem teriam os
problemas que esse tipo de atividade determina, como por exemplo, a responsabilidade de
suprir financeiramente as necessidades da família, pois isso em muitos casos gera
preocupações que as fazem “perder o sono”.
82
Temos ainda as mais variadas explicações biológicas para o papel da mulher que têm
reforçado o peso de sua responsabilidade como mãe e como esposa para manutenção de um
modelo de família ansiado socialmente. Isso tem sido tão forte que muitas delas sentem culpa
por não terem mais tempo de educarem seus filhos, como se a responsabilidade fosse apenas
delas e não também do pai. Aliado a isso encontramos também o acúmulo de papéis que recai
sobre elas, mesmo quando trabalham fora, e principalmente sobre as responsabilidades com
os afazeres domésticos, onde fica claro que “a persistência de um modelo de família no qual
cabem à mulher as responsabilidades domésticas e socializadoras determina a necessidade de
uma constante articulação entre papéis familiares e profissionais...” (BRUSCHINI, 1994, p.
182).
Entre as feirantes, todas relataram que aproveitam as horas de folga para realizarem
trabalhos domésticos, tendo pouca ou nenhuma ajuda do companheiro e ocasionalmente das
filhas, principalmente quando estas são pequenas. Todas dedicam boa parte do dia ao trabalho
na feira, não sobrando muito tempo para elas mesmas, e praticamente não têm opção de lazer,
resumindo-se este em geral a assistir à televisão. Outra constatação é que a ajuda em casa
sempre recai sobre as filhas mulheres, ficando os filhos homens liberados dessas atividades.
Elas reforçam na educação dos filhos os conceitos e práticas correntes estabelecidas pela
sociedade patriarcal, não fazendo praticamente nada para mudar esse curso. O resultado
provável é que essas filhas e filhos reproduzirão essas práticas com seus maridos, esposas e
filhos, criando um ciclo de resistência às mudanças.
O ritmo de trabalho apesar de sua intensidade reservar alguns momentos de calmaria,
é cansativo por exigir muitas horas no local. Apesar das horas de trabalho serem definidas por
elas mesmas, não podemos esquecer que isso representa o sustento de todas elas, não
permitindo muito tempo para o descanso, ou seja, a quantidade de horas trabalhadas é
decisiva para garantir o suprimento de suas necessidades. Algumas permanecem das 6h da
manhã às 19 ou 20h e quando chegam a casa, precisam realizar todas as atividades
domésticas. Quando têm ajuda para dividir o horário na feira, com um filho ou filha (sendo
em geral a filha), tiram um tempo (entre 2 ou 3 horas diárias) para a realização dessas
atividades. Fica então claro que, levando-se em conta as especificidades de cada situação,
todas elas realizam dupla jornada.
É fato que a divisão sexual do trabalho é uma construção histórica e que nessa
construção houve perdas e ganhos. Entretanto, Hirata (2003), assim analisa essa questão, ao
83
lembrar que “a divisão do trabalho entre os sexos é o que está em jogo nas relações sociais de
sexo” (HIRATA, 2003, p. 114). Para ela,
A divisão sexual do trabalho é o suporte empírico que permite a mediação entre
relações sociais (abstratas) e práticas sociais (concretas) e a elaboração de hipóteses
de médio alcance. Em outros termos: suprima-se a imputação do trabalho doméstico
ao grupo social das mulheres e são as relações sociais que desmoronam, junto com
as relações de força, a dominação, a violência real ou simbólica, o antagonismo que
elas carregam. A divisão sexual do trabalho está no âmago do poder que os homens
exercem sobre as mulheres. (HIRATA, 2003, p. 114)
É neste sentido que as relações e práticas sociais estabelecem uma hierarquia que
atribui valores diferenciados ao trabalho do homem e da mulher e ao trabalho produtivo e
reprodutivo, reafirmando as condições de opressão e dominação existentes na divisão sexual
do trabalho.
Foi também em Hirata (1997) que buscamos subsídios para entender como essa
hierarquia social se estabelece no interior da reestruturação produtiva. Partindo de uma
pesquisa realizada em três países – Brasil, Japão e França, Hirata (1997, p.11) ressalta que o
emprego destinado a homens e mulheres dentro do processo de reestruturação produtiva, tem
sido dividido de acordo com o tipo de máquina utilizada, o tipo de trabalho e de organização
do trabalho, sendo em geral o trabalho manual e repetitivo destinado às mulheres e, o que
requer conhecimento técnico, destinado aos homens. Ela destaca ainda que apesar de os
empregadores reconhecerem a importância do trabalho da mulher, não o compreendem como
um trabalho que requer qualificação profissional. No caso brasileiro, a divisão do trabalho é
percebida de maneira mais enfática, e ela ainda aponta que apesar de ter ocorrido uma
integração maior das mulheres nos processos de inovação organizacional [isso] não
parece ter conduzido a mudanças sensíveis em termos de aumento de qualificação
[enquanto que a] precarização da força de trabalho (...) parece ter reforçado a
polarização das qualificações segundo o sexo... (HIRATA, 1997, p.13-14).
Mas, fatores como idade, estado civil e qualificação também são variáveis de um país
para o outro, além das práticas discriminatórias que são persistentes em algumas situações.
Percebemos assim que existe uma divisão social do trabalho que ultrapassa a compreensão de
84
força física e que se insere em um plano ideológico, disseminando e reforçando as diferenças,
e nela impondo os papéis que serão destinados a cada sexo e nesse caso, estabelecendo que a
mulher, independente das circunstâncias que a impulsionou a circular pelo espaço público,
deve carregar como ônus, a obrigatoriedade das atividades domésticas que historicamente tem
sido destinada a ela, ou seja, a manutenção da dupla jornada.
Na feira, campo de nossa investigação, essas questões também fazem parte da vida
diária da grande maioria das mulheres. Seis das entrevistadas são mulheres com mais de 40
anos e quatro delas iniciaram sua vida profissional após a separação dos maridos. A
necessidade de sustento familiar após a separação foi primordial para a saída da exclusividade
do âmbito doméstico. Isso em geral ocorre porque os ex-maridos percebem baixos
rendimentos além da inconstância destes, o que força essas mulheres, mesmo sem nenhuma
qualificação, a buscar meios de inserção profissional e assim garantir, mesmo que
precariamente as despesas familiares
Em geral a entrada da mulher na vida pública é obstacularizada tanto pela falta de
qualificação, quanto pela imposição do marido, além da necessidade de criação dos filhos, ou
seja, a arbitragem da vida profissional das mulheres ocorre prioritariamente no lar. Entre as
entrevistadas que se inseriram mais tardiamente no mundo do trabalho, todas são mães de no
mínimo três filhos, algumas delas ainda com filhos pequenos, como é o caso de duas que têm
filhos de 10 e 12 anos. Quando perguntadas sobre o que fazem para não deixar os filhos
menores sozinhos em casa, elas responderam que recorrem à ajuda dos filhos maiores, a
outros familiares e ocasionalmente aos vizinhos.
Na feira também encontramos outros elementos que não são exclusividade das
mulheres. Identificamos uma discriminação latente que se apresenta sob forma de
hierarquização no ambiente de trabalho, onde algumas pessoas estabelecem uma separação, e
ocupam posições que determinam condutas diferenciadas no exercício de seus papéis sociais.
Sobre isso teceremos algumas considerações.
A hierarquia de status
Abrimos um parêntese aqui para expressar que em nossas observações, o que
aparentemente pode ser identificado como um grupo comunitário homogêneo percebe-se uma
85
situação onde alguns grupos se diferenciam. Tomamos aqui a categoria hierarquia de status20
utilizado por Elias e Scotson (2000) que ajuda a esclarecer essa noção de diferenciação entre
os grupos e pessoas.
A base das relações sociais na feira apresenta de certa maneira, uma hierarquização
que define o status de uns em relação a outros. Temos assim um primeiro grupo onde
podemos incluir os autônomos, os mais antigos feirantes, os que possuem mais de um
box/banca, os que vendem produtos de maior valor econômico e os que apresentam uma
situação financeira definida, além de terem a fidelização dos clientes. Já no segundo grupo
podemos apontar os que se assumem como feirantes, os que se encontram na feira há menos
tempo, os que têm apenas um box/banca, os que vendem produtos de baixo valor econômico,
os que dependem do “fiado” para a manutenção do negócio e os que ainda não conseguiram
manter uma clientela assídua.
Sabemos que as diferenças sociais são estruturadas pela própria divisão da sociedade
de classes, mas quando existe uma distribuição desigual dos espaços concedidos, percebemos
que isso contribui para aprofundar as diferenças e a igualdade de condições. É nesse sentido
que encontramos na FMC uma hierarquia de status, que se encontra presente nos bastidores.
Isso também se dá tanto em relação ao posicionamento da banca/box, quanto com relação aos
produtos comercializados. É claro que aparentemente isso não é percebido, mas o fato é que
do ponto de vista econômico, ambas as situações colocam algumas pessoas em desvantagem,
criando uma forma distinta de estratificação social. As bancas que se encontram mais
próximas da entrada principal são beneficiadas com vendas melhores, em detrimento das que
ficam localizadas mais ao fundo, assim como as que estão localizadas no corredor principal se
sobrepõem às que se localizam nos corredores adjacentes.
Outros aspectos que podem reforçar essa hierarquia se referem tanto ao tempo de
trabalho na feira, assim como a relação aos grupos familiares que ali se formam. No primeiro
caso, o status adquirido com o tempo permite alguns privilégios em termos de
reconhecimento e respeito. Nessa situação se encontra um antigo feirante do local que se
orgulha de ter ajudado a construir a feira, sendo reconhecido por todos como alguém com
forte influência nas negociações e resolução de problemas. Falante, ele sabe tudo sobre o que
acontece ali, podendo responder qualquer questionamento feito sobre o trabalho na feira. No
20
Em Elias e Scotson (2000), a hierarquia de status se refere às relações de poder presentes nas relações
sociais, determinando o lugar ou posições dos demais membros de um grupo na estrutura social.
86
segundo caso, as redes familiares compostas por pais e filhos, irmãos, maridos/esposas,
também fortalecem os grupos. Há casos de encontrarmos permissão para o uso de
bancas/boxes para irmãos de uma família inteira, enquanto outros, sozinhos, se sentem
deslocados e excluídos das decisões, o que pode ser considerada como uma situação de
exclusão com relação aos demais. Isso ocorre, como dizem Elias e Scotson (2000), quando
“um grupo tem um índice de coesão mais alto do que o outro e essa integração diferencial
contribui substancialmente para seu excedente de poder” (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 22).
Fica claro então que este sentimento de exclusão aliado à falta de participação nas decisões
reforça um modelo que fortalece ainda mais a hierarquia de status, gerando mais insatisfações.
Elias e Scotson (2000) ainda destacam que
Embora possa variar muito a natureza das fontes de poder em que se fundamentam a
superioridade social e o sentimento de superioridade humana do grupo estabelecido
em relação a um grupo de fora, a própria figuração estabelecidos-outsiders mostra,
em muitos contextos diferentes, características comuns e constantes (ELIAS e
SCOTSON, 2000, p. 22).
A estas características comuns e constantes, muito presentes nas relações sociais,
Elias e Scotson (2000) chamam de constantes estruturais. É nelas que se diferenciam as
características de uns e de outros: melhores - piores, bons - ruins, apáticos – participativos,
etc. Esta oposição “faculta ao grupo estabelecido provar suas afirmações a si mesmo e aos
outros; há sempre algum fato para provar que o próprio grupo é „bom‟ e que o outro é „ruim”
(ELIAS e SCOTSON, 2000, p.23).
A hierarquia de status também se apresenta na divisão encontrada entre os que se
definem como feirante e os que se autodenominam autônomos. Isso se deve ao fato de ser
feirante significar uma posição de inferioridade, de acordo com uns poucos que não querem
ser chamados assim. Ser autônomo significa ter uma posição privilegiada com relação aos
demais, mesmo que aparente. Mas, como já citado, a maior parte dos trabalhadores dali se
identificam mesmo como feirante, quase como uma forma de não negar o que lhes dá
sustento.
Reconhecer as próprias limitações com relação ao poder de se diferenciar também
gera uma certa empatia entre os que se assumem feirantes, mesmo que não exatamente uma
aproximação, criando uma maior possibilidade de constituição de um grupo, afinal, dividir o
87
que já está disperso pode acarretar problemas de aceitação, principalmente entre os que se
encontram no local há mais tempo, e que por isso se sentem na responsabilidade de manter as
coisas como estão, evitando outros conflitos.
É visível também a formação de pequenos grupos que colaboram entre si visando ao
poder sobre os demais. Esses pequenos grupos se beneficiam da falta de participação da
maioria que se mantém alheia ao que é discutido e decidido. Prova disso é a baixa
participação nas reuniões e a adesão ao sindicato, que também contribui para isolar ainda mais
aqueles os quais se sentem deslocados.
Outro ponto que deve ser ressaltado se refere à posição da mulher com relação ao
homem. Observamos que as mulheres “sem marido” ou nos casos quando o marido não se
encontra diretamente em seu local de trabalho, passaram uma idéia de desprotegidas. Para
elas, as mulheres que trabalham com os companheiros ali têm inúmeras vantagens, que vão
desde o auxílio nas compras realizadas de madrugada, quanto com relação ao próprio trabalho
que passa a ser dividido. Aliado a isso se encontra a proteção contra os maus tratos recebidos
por alguns homens que se consideram superiores, colocando principalmente estas mulheres
em situação de inferioridade. Mas essa é uma crítica consciente que elas relatam e assumem
como não natural. Nesse caso também se torna visível a hierarquia de status que se impõe
com relação ao gênero.
Sobre essa imposição que confronta grupos diferenciados, Elias e Scotson (2000) se
perguntam:
Como se processa isso? De que modo os membros de um grupo mantêm entre si a
crença de que são não apenas mais poderosos, mas também seres humanos melhores
que os outros? Que meios utilizam eles para impor a crença em sua superioridade
humana aos que são menos poderosos? (ELIAS e SCOTSON, 2000, p. 20)
Para eles, esse elemento diferenciador nas relações sociais indica uma “constante
universal” em qualquer situação em que exista o predomínio de um grupo sobre outro,
gerando exclusão, controle social, estigmatização e preconceito.
Nos relatos e observações também sentimos isso como uma constante no trabalho na
feira, já tendo sido feitas indicações desse fato, e podendo ser acrescido de outros exemplos
práticos, como os apelidos, os estigmas persistentes, o isolamento provocado, o preconceito
declarado, os boatos e as fofocas. Os apelidos em geral, são aceitos, já que os que os têm,
atendem por eles, não parecendo constrangedor o fato de tê-los. Em uma ocasião, a própria
88
pessoa se apresentou pelo apelido. Mas o que nos parece mais incômodo são os estigmas, o
isolamento provocado e o preconceito. Isso porque não são situações aceitas pelas pessoas
que o sofrem, assim como fortalece a ideia de inferioridade atribuída por meio dessas ações.
Ser estigmatizado como bêbado ou mulher velha são simultaneamente estigmas atribuídos a
alguns homens e a algumas mulheres. Mas o que se encontra por trás do estigma de mulher
velha não é apenas o fato da velhice em si, já que ser velho deve a princípio, impor uma
condição de respeito. O problema se encontra no fato deste carregar junto a ideia de mulher
“mal amada”, sozinha, incapaz de manter uma família. Atrelado a isso, sempre se encontra o
isolamento imposto, em que pela própria situação, a mulher se fecha, não se sentindo aceita e,
portanto tornando seus dias de trabalho mais difíceis.
No referente aos boatos e fofocas, estes sempre se encontram presentes nos espaços
de convivência de grupos e dificilmente são possíveis de serem evitados. Mas este não é
privilégio da FMC, pois esse tipo de situação ocorre com frequência em ambientes que como
esse, se encontram diariamente homens e mulheres com diferentes concepções de vida e de
mundo. No caso da feira, isso ocorre principalmente nas horas de baixo movimento, quando
as conversas são inevitáveis para passar o tempo. É assim que, especificamente na falta do
que fazer, as histórias são criadas, aumentadas ou espalhadas dentro do grupo, sempre
causando mal estar aos atingidos e muitos vezes gerando conflitos e até confrontos pessoais.
89
Capítulo III
A VIDA NO COTIDIANO
Após analisarmos as questões ligadas às relações sociais no ambiente de trabalho das
mulheres entrevistadas, priorizaremos agora as questões que dizem respeito ao ambiente
familiar, tentando estabelecer relações com o trabalho e com os mecanismos que se ocultam e
se revelam no decorrer da vida cotidiana. Para isso procuraremos inserir o outro lado da vida
da mulher feirante que algumas vezes se manifesta no ambiente de trabalho e que é também
determinado por ele. Iniciaremos com a discussão feita por Martins (2008), que coloca as
dificuldades estabelecidas na compreensão e distinção entre vida cotidiana e vida privada.
Os limites entre vida cotidiana e vida privada
Quais os limites que se estabelecem entre a vida cotidiana e a vida privada21?
Encontramos em Martins (2008), esclarecimentos fundamentais para o entendimento destas
relações. Para ele, “Vida privada e vida cotidiana, como objetos de conhecimento científico,
são temas da atualidade, são temas da consciência social contemporânea e o são porque de
algum modo são problemas para a sociedade.” (MARTINS, 2008, p.84). Ele ainda levanta um
problema com relação à confusão estabelecida nas concepções de vida cotidiana e vida
privada, que na historiografia nacional22 se apresentam como equivalentes, sendo reduzidos à
categoria de conceitos. Ressalta ainda que o Brasil apresenta uma especificidade cultural que
“não favorece o desenvolvimento amplo e profundo da vida privada” ou pelo menos, não
como um “estilo dominante de viver” (op. cit. 2008, p. 85), e isso se dá pela sutileza dos
comportamentos que não se diferenciam na rua e em casa, demonstrando pouco cuidado com
a separação entre o público e o privado. A dificuldade no estabelecimento de situações bem
definidas também se encontra presente no próprio modo de viver, no qual a precariedade das
habitações não permite a delimitação de “aposentos bem definidos em suas funções e
relacionamentos” (MARTINS, 2008, p. 86).
21
A vida privada seria a contraposição da vida pública, ambas presentes na vida cotidiana. (MARTINS, 2008, p.
95)
22
Nesse caso, ele cita especialmente Ronaldo Vainfas que segundo ele, parte de uma idéia de cotidiano visto
pela ótica do senso comum, reduzindo sua concepção ao ambiente da casa e à vida do dia-a-dia alheios à
história. (MARTINS, 2008, p. 88)
90
Essas observações tornaram pertinentes a análise do modo de vida das entrevistadas,
no que se refere à moradia, observamos uma ausência da vida privada, e, principalmente um
comprometimento da intimidade, na vida das mulheres entrevistadas, sendo esta uma exceção
em apenas um caso (o da mulher sem filhos). Todas as mulheres entrevistadas moram na
Compensa, ou seja, trabalham perto de casa, o que pressupõe uma economia em termos de
gastos com transporte para sua locomoção, e apenas uma mora em casa alugada, tendo todas
as outras casas próprias.
As casas das entrevistadas têm entre três e seis cômodos, que são usados por todos da
família, sendo que em algumas situações, encontramos a ausência de delimitação de espaço
para todos dormirem, sendo necessário em alguns casos, recorrer aos espaços comuns, entre
eles a sala. Contando com os ambientes indispensáveis como a cozinha e o banheiro, algumas
casas têm apenas um quarto, onde dormem mãe e filhos. Apenas uma delas tem três quartos,
sendo esta ocupada por dez pessoas – o casal, quatro filhos e quatro netos, todos eles
abandonados pelas mães, ex-namoradas dos filhos (os filhos após engravidarem as
namoradas, levam as crianças para a mãe cuidar). Uma mulher solteira mora com a mãe de
84 anos em uma casa de dois pisos, sendo que no piso superior estão seus três irmãos com os
devidos companheiros e companheiras e no térreo, ela divide o espaço com a mãe. Neste caso,
a casa tem seis cômodos, sendo dois o número de quartos. As demais são famílias compostas
pelo casal, tendo eles entre quatro a sete filhos, que moram em casas de dois quartos e no
máximo cinco cômodos.
A tradicional separação de quarto para as meninas e quartos para os meninos,
possível nas classes com melhor poder aquisitivo, aqui não se encontra presente, até porque
outras prioridades são colocadas para as famílias e um quarto a mais significaria despesa e
muitas vezes necessidade de um espaço que o terreno em que a casa se encontra não tem. É
por isso que é comum os irmãos adolescentes dormirem no mesmo quarto que as irmãs pela
falta de espaço. Em algumas situações, além dos filhos ainda temos agregada à família, a
nora, que carrega com ela um filho pequeno e que também vai dividir um espaço já diminuto
para os que ali moram. Apenas nesses casos é colocado como necessário a criação de um
cômodo a mais para o acolhimento da nova família, sendo este em geral, apenas um pequeno
quarto. Vejamos os relatos:
91
Temos dois quartos em casa. Um é meu e o outro é dos meus quatro filhos. Como
estou separada, às vezes a filha menor dorme comigo. Fico com pena porque o
quarto que eles dormem é pequeno para tanta coisa e tanta gente. (feirante 3)
Não tem como ter quarto para todo mundo. Lá em casa somos dez pessoas, somos
quatro filhos e quatro netos, mais eu e meu marido. No máximo o que dá para fazer
é colocar os netos em um quarto, os filhos em outro e eu e meu marido no quarto de
trás. Ainda temos sorte, imagina se casa tivesse só dois quartos? (feirante 4)
Lá em casa tem dois quartos. Em um eu durmo com o meu marido e no outro ficam
os meus filhos (um garoto e três filhas já adolescentes). Não tem como separar, a
não ser que o menino vá dormir na sala, e eu não quero isso, porque senão ele assiste
televisão à noite inteira. (feirante 5)
Como vemos, a falta de espaços adequados para a distribuição da família não garante
um adequado desenvolvimento de comportamentos que sugiram uma vida mais reservada,
tornando-se a vida privada comprometida pela precariedade das condições a ela impostas.
É exatamente nesta dissociação entre o privado e o íntimo que devemos perceber os
momentos cotidianos da vida, que para Martins (2008) é encontrado “no público e no privado.
Em casa, mas também na rua e no local de trabalho: nos lugares em que o homem está
desencontrado em relação a si mesmo. Na casa sim, mas na intimidade, não...” (MARTINS,
2008, p. 88). Isso nos leva a refletir que, pelas condições de moradia das entrevistadas, seja
provável que os momentos íntimos muitas vezes se encontrem comprometidos pela falta de
delimitação dos espaços reservados para isso. É nesse âmbito que o público se confunde com
o privado, tendo seus reflexos na vida cotidiana, que mantém o seu curso através do vivido e
nas experiências que a configuram.
Falar do cotidiano é também falar do vivido e é por isso que abrimos um parêntese
aqui para compreender o significado do vivido através de uma aproximação com a palavra
vivência23. Para Gadamer (2008),
A vivência possui uma imediaticidade bem característica, que se subtrai a todas as
opiniões sobre o seu significado. O vivenciado é sempre a vivência que alguém faz
de si mesmo, e o que ajuda a constituir seu significado é o fato de ele fazer parte da
23
Vivência “se trata aqui de uma formação secundária da palavra ‘vivenciar’. (...) significa, de início, ‘ainda estar
vivo, quando algo acontece”. (GADAMER, 2008, p. 105)
92
unidade desse si mesmo e conter uma referência inconfundível e insubstituível com
o todo dessa vida una. (GADAMER, 2008, p. 113)
E ainda completa,
O modo de ser da vivência é tão determinado que não se esgota. Nietzche diz: “Nos
homens profundos as vivências duram longo tempo”. Com isso, quer dizer que elas
não são esquecidas rapidamente, sua elaboração é um longo processo e justamente
nisso reside seu ser específico e seu significado e não somente no conteúdo
experimentado originalmente (GADAMER, 2008, p. 113).
É desse modo que a vivência tem uma relação direta com a idéia de vida e é na vida
que esta vivência se exprime em sua concretude. Aqui nos referimos às experiências que são
travadas no interior da cotidianidade e que se expressam de forma indiscutível nos
comportamentos, nas falas, nos sentimentos e nos sonhos de cada uma das mulheres
entrevistadas. Por outro lado, é também com base nas próprias experiências que elas
estabelecem seus padrões de referência para definir suas vidas e nelas inserir os conceitos e
significados que foram construídos no decorrer dessa vivência. É nesse contexto que nos
referimos à vida privada como o lado oposto da vida pública, considerando as peculiaridades
que são próprias ao estilo de vida das entrevistadas e que se expressa tanto no ambiente de
trabalho quanto na vida familiar. Dessa forma, abriremos agora um espaço para compreender
a forma como estas famílias se organizam, convivem e distribuem os papéis entre seus
membros.
Formas de organização das famílias
Entre as feirantes entrevistadas encontramos uma diversidade de arranjos familiares,
como um casal sem filhos, uma filha que mora com a mãe, uma mulher separada que mora
somente com os filhos, constituindo o tipo de família monoparental, outra mulher separada
que mora com os filhos e um novo companheiro – família reconstituída24. Tirando essas
24
Em TEIXEIRA e RODRIGUES (2009, p.36) encontramos a família reconstituída como “a estrutura familiar
originada do casamento ou da união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros têm filho ou
filhos de um vínculo anterior”.
93
situações, todas as outras seguem o padrão predominante de família nuclear, formada pelo
pai, a mãe e os filhos.
Visualizando o quadro a seguir, podemos distinguir os principais tipos de entidades
familiares encontradas entre as mulheres entrevistadas:
Quadro 5 – Os arranjos familiares
Tipo de família
Quantidade
Nuclear
03
Monoparental
02
Reconstituída
01
Quadro elaborado pela autora.
Como já comentado, duas mulheres não se enquadram em nenhum desses modelos
familiares - uma por ser solteira e morar com a mãe e outra por estar em uma união estável,
mas não ter filhos. Nas famílias nucleares encontramos ainda uma família que agregou os
netos, outra que agregou um sobrinho à composição familiar, além da situação onde passou a
fazer parte da família e a morar na mesma casa, a nora e o neto. Temos também no caso da
única família reconstituída, uma mulher com dois filhos do casamento anterior e um filho do
novo companheiro.
Para Bruschini (1990), família pode ser definida como um
grupo de indivíduos ligados por elos de sangue (consanguinidade), adoção ou
aliança (casamento) socialmente reconhecidos e organizados em núcleos de
reprodução social. Famílias são grupos de procriação e de consumo, lugar
privilegiado onde incide a divisão sexual do trabalho, em função da qual determinase o grau de autonomia ou subordinação das mulheres (BRUSCHINI, 1990, p. 32).
Ainda para Bruschini (1990), o grupo conjugal que constitui a base elementar da
família tem nos permitido uma visão que se volta para a divisão de papéis como algo natural,
mas isso deve ser percebido como uma construção cultural mutável, devendo, portanto, ser
94
concebido como natural se for o caso, apenas a mulher e sua prole. (BRUSCHINI, 1990, p.
31).
Em Roudinesco (2003), podemos encontrar o que é definido como evolução da
família, distribuída em três grandes períodos: em um primeiro momento, encontramos a
família “tradicional” que tem a finalidade de “assegurar a transmissão de um patrimônio”,
com casamentos arranjados, dentro de uma ordem imutável e sendo a mulher submetida a
uma autoridade patriarcal; no segundo momento, encontramos a família “moderna”, fundada
no amor e no casamento e valorizando a divisão do trabalho entre os esposos, além de ter
inserida nessa relação o papel do Estado como responsável pela educação do filho, abrindo
espaço para uma divisão que se estabelece entre Estado e pais, pais e mães; no terceiro
momento, a partir dos anos 1960, encontramos a família “contemporânea” ou “pós-moderna”,
com duração relativa e na qual “a transmissão da autoridade vai se tornando cada vez mais
problemática à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentam”.
(ROUDINESCO, 2003, P. 19).
Dentro do que é definido como família pós-moderna, a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 (art. 226), prevê como tipos de família o casamento, a união
estável (formada pelo casal com ou sem filhos, mas sem a oficialização da relação) e as
famílias monoparentais, mas também abrindo espaço para outras formas de arranjos
familiares, como as famílias formadas por avós e netos, a família que agrega parentes ou
outros indivíduos (como a nora ou o genro) e as famílias reconstituídas.
Temos então entre as mulheres entrevistadas, famílias constituídas através do
casamento e pela união estável. Isso nos permite uma gama de suposições que podem
enriquecer nossa discussão, começando pelas respostas dadas à pergunta feita sobre o estado
civil das entrevistadas. Temos então:
Sou solteira, mas tenho um companheiro. Ainda não quis ter filhos porque trabalho
demais e não teria tempo para cuidar deles. (feirante 1)
Sou solteira e hoje moro com minha mãe. Vivi com um homem por algum tempo,
mas separei porque não agüentei os maus tratos. Se for para viver apanhando, é
melhor ficar só. (feirante 2)
95
Sou casada, mas no momento estou separada. Moro com os meus cinco filhos.
(feirante 3)
Sou casada há muitos anos com o mesmo marido e moro com quatro filhos e quatro
netos. Eu cuido das crianças porque as mães não quiseram saber delas e deixaram lá
em casa. (feirante 4)
Sou solteira, mas estou “casada” (vivendo com o companheiro) há 16 anos. Nós
temos quatro filhos que moram com a gente. (feirante 5)
Sou casada e moro com o meu marido, três filhos e um sobrinho que minha irmã não
quis criar. Ele está comigo desde pequenininho. (feirante 6)
Hoje vivo com os meus quatro filhos porque separei do meu marido. Um dos meus
filhos está casado e tem um filhinho. Todos moram lá em casa. A gente se aperta um
pouquinho, mas tudo bem, pois ela é uma boa moça e me ajuda muito. (feirante 7)
Continuo casada, mas no momento estou “amigada” com outro homem. Moro com
três filhos. Tenho um menino e uma menina do primeiro casamento e um filho de 10
anos do meu companheiro. Não queria ter mais filho não, mas Deus mandou...
(feirante 8)
Observamos então, que na diversidade das formações familiares, são as mulheres as
principais responsáveis pela prole. No caso de um novo casamento, é com ela que os filhos
permanecem. Podemos destacar, ainda, que dentro dos arranjos familiares, os agregados
(netos, sobrinhos, irmãos), assim como os idosos, também passam a ser responsabilidade
delas.
Diversos estudos25 definem a família como aquele tipo de instituição que tem entre
seus papéis uma função econômica, ao transformar a produção social em produção de uso
(prestação de serviços domésticos), é um espaço de repressão sexual e de autoridade, mas é
também um espaço de socialização e reprodução ideológica que transmite e reafirma valores.
Esses papéis que têm sido ressaltados nesses estudos, mesmo nos casos de um ou outro terem
maior destaque, não significa especificamente o descarte dos outros, já que todos eles se
encontram presentes nos estudos sobre a família (BRUSCHINI, 1990, p.40-41). Seja através
25
Aqui, Bruschini (1990) se refere às abordagens diversificadas presentes nos estudos sobre as atividades
desempenhadas pela família ou na família. (BRUSCHINI, 1990, p. 40)
96
de sua função econômica, como espaço de repressão e autoridade ou como âmbito de
socialização e reprodução ideológica, a família tem resistido no tempo para a manutenção de
suas funções. É em cima dessas considerações que destacaremos agora o cumprimento desses
papéis no interior das famílias das mulheres entrevistadas.
A mulher ocupa uma posição fundamental dentro da família e é de conhecimento
geral que o papel ideológico desempenhado por ela por meio da maternidade, contribui tanto
para “a estruturação da personalidade da nova geração, como também para a reprodução da
assimetria sexual e da organização social dos gêneros”. (BRUSCHINI, 1990, p. 57). É no
exercício desta posição que o poder exercido pela mulher dentro da família se constitui, tendo
como base o desenrolar da vida cotidiana. É na vida cotidiana que se centra o âmbito
ideológico, pois “é no „fazer‟ de todos os dias que surgem e se modificam ou desaparecem
idéias, atos e relações”, ou seja, é em casa que se originam os pressupostos ideológicos de
reprodução social. (op. cit. 1990, p. 59).
Os sentimentos, hábitos, capacidades e atividades que compõem a heterogeneidade
da vida cotidiana são ordenados e hierarquizados pelo sistema social, mas é a mulher
que faz com que se viva e se respeite esta hierarquia. Ela é a “fiscal” da
interiorização dos elementos ideológicos transmitidos na cotidianidade. É ela quem
guia a interiorização dos papéis sociais e sexuais de cada membro da família. Este é
o poder e a grande riqueza do papel da mulher no âmbito familiar, no exercício de
sua função socializadora. (BRUSCHINI apud CALVO, 1990, p. 61).
A despeito de a vida cotidiana ser o âmbito primeiro da interiorização ideológica, é
nela também que se torna possível a capacidade de transformação pessoal e social que não
ocorre de forma imediata, mas que, “apesar de lenta e gradativa, (...) esta transformação nas
relações „miúdas‟, aparentemente triviais da vida cotidiana, provoca mudanças em todos os
níveis da sociedade.” (BRUSCHINI, 1990, p.60). É nela que se encontra o lugar primeiro para
as transformações que nossa sociedade necessita e é no homem e na mulher comuns que se
encontra esta possibilidade.
Assumir o papel de educar e inserir os filhos na vida social, assim como distribuir as
funções que cabem a cada membro da família, passam a ser elementos diferenciais que
compõem as responsabilidades femininas. Ao conduzir a interiorização dos papéis sociais, a
mulher também reafirma comportamentos, atitudes e relações. É então na cotidianidade da
vida que se explicitam mudanças e permanências, conflitos, tensões e transformações que
97
passam a se inserir principalmente no campo de ação das relações sociais em geral e do
ambiente familiar em particular. Veremos a partir de agora como na vida familiar, que aqui
nos propusemos inserir na discussão da vida cotidiana, se configuram essas mudanças e
permanências.
A interiorização da divisão sexual do trabalho e o convívio familiar
A forma diferenciada de educar meninos e meninas tem sido recorrente e pode ser
apontada como uma das mais fortes causas de resistência às mudanças que se referem à
divisão sexual do trabalho. Entre as feirantes, não percebemos um padrão único26 com relação
a isso, mas prevalece à distinção entre os papéis sociais que são destinados aos meninos e os
que são destinados às meninas. É na menina que a mãe costumeiramente confia o auxílio nas
atividades domésticas, e é a elas que também é atribuída a função de cuidar dos filhos
menores, enquanto aos meninos é destinada a prioridade de sair em busca de emprego quando
a necessidade é premente, ficando para eles pouco ou quase nada das responsabilidades
domésticas, mesmo quando não trabalham. Os maridos e companheiros também mantêm o
mesmo padrão de ausência nos afazeres domésticos, pois seu trabalho é fora do lar.
Meu filho trabalha para ajudar nas despesas da casa e minhas filhas me ajudam nas
coisas de casa enquanto estou trabalhando na feira. À tarde elas vão para a escola e
eu faço o que faltar, pois só retorno para a feira às 15 horas. (Feirante 3)
Somos dez morando na mesma casa e como só tenho filhos homens, ninguém me
ajuda com as coisas. Sou eu que preciso fazer tudo, comida, lavar a roupa, cuidar
dos netos. Eu faço tudo sozinha. (Feirante 4)
É por isso que quando perguntadas sobre quem as auxiliava nos afazeres domésticos,
quatro mulheres afirmaram que têm nas filhas o apoio necessário para a realização dessas
atividades, mesmo quando estas se encontram ainda com pouca idade
27
. Três mulheres não
recebem ajuda de ninguém, ainda no caso da família ser composta por muitas pessoas, e
26
O padrão pode variar entre o auxílio exclusivo das filhas, ou a inclusão dos filhos, do marido e de outros
parentes ou agregados à família.
27
Uma delas afirmou que recebe algumas vezes, apenas nos casos de extrema necessidade, o auxílio de uma
filha de 12 anos, que se encarrega das atividades domésticas enquanto ela trabalha na feira.
98
apenas uma afirmou que todos auxiliam nas atividades de casa, inclusive o marido, que
quando necessário “varre a casa, cozinha, faz o que for preciso”, mas isso apenas quando não
tem outra pessoa para fazer, como por exemplo, quando ela está ocupada com outras coisas.
Ou seja, mesmo quando o marido ou filhos auxiliam nas atividades domésticas esse auxílio é
configurado apenas como ajuda e não como divisão de tarefas de fato, já que ocorre de
maneira ocasional, ficando sempre com a mulher a responsabilidade maior.
Eventualmente, a ajuda pode vir ainda de parentes próximos e raramente da
vizinhança. Isso ocorre porque existe uma grande preocupação em não perturbar outras
pessoas com os problemas da família, além de que parentes e vizinhos também precisam
cuidar da própria vida. Quando ocorre a ajuda de parentes, normalmente moças, essa ajuda
costuma ser gratificada com alguns “trocados” ou pequenos agrados. Isso ocorre em virtude
de se tentar manter a ajuda em casos de novas necessidades Para Bruschini (1990),
A manutenção da rede de parentesco e de amizade, através de visitas, telefonemas e
troca de presentes ou de pequenos favores, que reforçam laços de solidariedade e de
convivência, são fundamentais para o bem-estar físico e emocional de seus
membros... (BRUSCHINI, 1990, p. 110).
A estratégia de compensar de alguma forma o auxílio prestado e a manutenção do
contato com os parentes é a garantia da permanência da ajuda sempre que preciso. Por outro
lado, a ajuda do parente ou agregado ocorre mais frequentemente quando este se encontra na
mesma casa, como é o caso de uma das entrevistadas que mora com a mãe idosa:
Eu tenho que fazer tudo em casa, mas quando venho trabalhar, tenho a ajuda dos
irmãos, quando não estão trabalhando, e de uma cunhada, que cuida da minha mãe
enquanto estou aqui. Mas o resto eu tenho que fazer tudo sozinha. (Feirante 2)
Mais uma vez fica evidenciado o padrão doméstico que existe nas atribuições do
papel feminino, que nos casos de necessidade de auxílio são sempre as primeiras a serem
chamadas, ficando os homens sempre com os auxílios mais esporádicos e ocasionais.
Sabemos que os afazeres domésticos são inúmeros, não se limitando apenas aos
cuidados básicos com a casa. Podemos inserir também no âmbito destas atividades, a
preocupação com a compra dos produtos destinados à alimentação e higiene da família, além
da administração das despesas em geral e dos pagamentos em particular. Para Bruschini
99
(1990), “a administração ou gerência do lar engloba todas as demais atividades, sendo tanto
mais eficiente quanto mais bem integrados estiverem os demais afazeres domésticos”.
(BRUSCHINI, 1990, p. 110).
Nas responsabilidades costumeiramente destinadas às mulheres dentro de casa,
podemos encontrar, além das atividades rotineiras de cozinhar e lavar louça, que em geral são
atividades que exigem muito tempo e que se estendem pelo dia inteiro em sua repetição,
também as tarefas de lavar e passar roupas e fazer pequenos reparos em roupas usadas de toda
a família. Mas o trabalho não para aí, pois é ela que também assume o cuidado com as
crianças menores, ouve as queixas dos filhos e marido, é em geral a responsável pela
mediação dos desentendimentos familiares, de cuidar dos idosos ou de outro familiar quando
estes adoecem, acompanhar tarefas escolares dos filhos e assistir às reuniões de pais e mestres
na escola.
A preocupação com as compras ligadas à alimentação e higiene é outra tarefa
destinada à mulher. Isso exige idas ao supermercado e feira, o que em geral também requer
atenção redobrada com o produto que será adquirido. Abarcando tudo isso, encontramos as
preocupações com as despesas, o pagamento das contas e a atenção com os gastos. É ela que
precisa “dar um jeitinho” quando o dinheiro acaba, buscando alternativas entre as opções
disponíveis para a alimentação da família, fazendo arranjos, muitas vezes criativos na
elaboração dos alimentos que serão consumidos pelos familiares.
Nessa infinidade de tarefas realizadas muitas vezes apenas pela mulher, é que
podemos entender que o tempo gasto nas atividades domésticas que são realizadas pela
mulher trabalhadora é extremamente fragmentado e é assim que Nogueira (2006) o descreve.
A quantidade de tempo gasto no espaço doméstico pelas mulheres (...) introduz
diferentes dificuldades na organização espaço/temporal do trabalho na esfera
reprodutiva. Esse tempo das mulheres trabalhadoras modelado pelas suas atividades
e pela dependência das atividades e do tempo dos outros (companheiro, filhos, etc.)
se apresenta marcado pela fragmentação e pela superposição de tarefas.
(NOGUEIRA, 2006, p. 114)
É assim que esse tempo destinado ao trabalho reprodutivo algumas vezes torna esse
trabalho oculto ou invisível aos olhos dos familiares, ao ser fragmentado e distribuído, nas
horas que deveriam ser destinadas ao descanso, de acordo com as necessidades da família.
100
As atividades realizadas no âmbito do trabalho reprodutivo muitas vezes são
superiores às realizadas dentro do trabalho produtivo e neste caso, o tempo gasto para ambos
pode ou não ter equivalência em horas, significando, entretanto, que as duas situações são
determinadas por tempos distintos. Mas, o que é o tempo? Para Elias (1998), o tempo
designa simbolicamente a relação que um grupo humano, ou qualquer grupo de
seres vivos dotado de uma capacidade biológica de memória e de síntese, estabelece
entre dois ou mais processos, um dos quais é padronizado para servir aos outros
como quadro de referência e padrão de medida. (ELIAS, 1998, p. 33)
Dessa forma, o tempo só existe enquanto símbolo social utilizado pelas diversas
sociedades, tornando-se uma segunda natureza ao proporcionar uma forma de regulação
social que foi aperfeiçoado ao longo de séculos e se adequando em cada momento histórico e
a cada sociedade, de acordo com suas necessidades de uso. Ou seja, “o que chamamos de
„tempo‟ nada mais é do que o elemento comum a essa diversidade de processos específicos
que os homens procuram marcar com a ajuda de relógios ou calendários” (ELIAS, 1998,
p.84), constituindo um aspecto do desenvolvimento da sociedade, que não foi planejado nem
produzido por ninguém, mas que é socialmente adquirido e internalizado.
É aqui que se explicita o fato de que a fragmentação presente no trabalho reprodutivo
dificulta o estabelecimento do tempo cronológico em sua realização, coisa que não acontece
no trabalho produtivo, que em geral é bem delimitado.
Outro fator também interfere no tempo dedicado ao trabalho doméstico e isso se
refere especificamente ao uso da tecnologia que poderia abrir caminho para uma melhor
distribuição das tarefas, mas o uso de meios tecnológicos para o auxílio das atividades entre
as entrevistadas é muito baixo. Apenas uma tem máquina de lavar, sendo que todas as outras
têm que fazer a lavagem da roupa em tanques e principalmente no jirau28 improvisado. O
trabalho é sempre realizado pela mãe ou as filhas e nela estão incluídas roupas de todos os
membros da família. Neste caso, os homens sempre têm suas roupas lavadas e passadas por
uma delas. Nenhuma das mulheres se referiu ao uso do forno de microondas e nem mesmo à
cafeteira elétrica, que são objetos considerados de “luxo” por elas, mesmo tendo estes, preços
relativamente acessíveis. Já o uso do ferro elétrico para passar roupa e do liquidificador são
imprescindíveis. Como a prioridade é a alimentação da família, máquinas que auxiliem e
28
Estrado de madeira, que em geral é colocado na janela da cozinha para a lavagem de louças e roupas. O jirau
é muito utilizado em nossa região, substituindo o uso de pias, principalmente entre as famílias de baixa renda,
que vivem em condições precárias.
101
facilitem o trabalho não são consideradas prioridades dentro dos gastos familiares, mesmo
estes tenham em seu significado a idéia de poupar tempo.
Como a grande maioria delas estudou pouco, além de terem sido criadas para a
realização da lida doméstica, pois também foram o principal auxílio para suas mães, é assim
que elas também criam suas filhas mulheres, ensinando-as e inserindo-as nestas atividades.
Assim elas continuam reproduzindo os papéis sociais destinados às mulheres, contribuindo
para a manutenção da participação feminina das camadas sociais mais baixas, prioritariamente
na esfera doméstica.
Aliada às tarefas domésticas, as horas em companhia da família em geral são restritas
aos momentos de algumas das refeições diárias – almoço e jantar quando possível,
concorrendo ainda, com o tempo gasto na frente da televisão. Poucas são as ocasiões
destinadas às conversas, resumindo-se estas na maioria das vezes, à resolução de problemas
familiares. Aliás, a preocupação com os filhos é uma constante, não tendo elas tempo
suficiente para o acompanhamento dos mesmos, principalmente os menores e os adolescentes,
que são os que necessitam de uma vigilância mais próxima.
Em geral são as mães que recebem toda a carga de exigências sobre o
comportamento dos filhos, estabelecidas, principalmente, pela divisão dos papéis entre os
cônjuges. Neste caso, algumas decisões são tomadas conjuntamente, enquanto outras ficam
sob a responsabilidade dela. Quando a mulher cria os filhos sozinha, toda a responsabilidade
recai sobre elas mesmas, não tendo com quem dividir suas preocupações já que a separação
do pai das crianças, em geral está permeada pela total ausência do mesmo que com freqüência
constrói outra família, deixando para trás os filhos do casamento anterior.
Meu filho mais velho (17 anos) tem muitos problemas com o pai. Ele nunca aceitou
nossa separação e por isso me dá muito trabalho e preocupação. O pai nem aparece
para saber como eles estão. Mas também, agora que casou de novo, esqueceu que
tem filhos e só quer saber da filha da mulher que mora com eles.
No caso de um novo companheiro ser agregado à família, permanece a
responsabilidade com a mãe, não sendo ao parceiro permitida a interferência sobre a criação
dos filhos principalmente entre os adolescentes e adultos, que não aceitam intromissões de
terceiros. Isso contribui para a geração de atritos familiares e conjugais, tornando a
convivência familiar difícil.
102
Minha filha (16 anos) é rebelde e não aceita o padrasto. Ela diz que ele quer se meter
na vida dela, mas ele não é o pai e por isso ela não deixa. Ele fica furioso e algumas
vezes brigam. É um inferno. Eu já disse para ele deixar de se meter com ela, mas
não tem jeito, ele quer botar ela no cabresto a todo custo. (feirante 8)
As divergências relacionadas à criação dos filhos legítimos tendem a ser
solucionadas pelo próprio casal, coisa mais difícil de resolver no caso de famílias
reconstituídas, apesar de ser possível que o novo parceiro assuma os deveres de pai, sendo sua
aceitação facilitada principalmente quando sua entrada na família ocorre com os filhos ainda
pequenos. Desta feita, o relacionamento entre pais, filhos, enteados, netos e outros familiares,
dependendo da situação, pode ser equilibrado ou comprometido por fatores inerentes à própria
composição familiar.
A voz ativa da mãe em qualquer situação é constante, principalmente devido à
contribuição financeira que elas imprimem nas despesas familiares. Isso representa que o fato
de trabalharem fora de casa lhes permite uma posição determinante nas decisões tomadas
dentro de casa, mesmo nos casos em que os maridos são mais autoritários. O trabalho dessa
forma permite a ampliação das possibilidades de participação mais efetiva nas decisões
familiares, mais especificamente no que se refere à criação dada aos filhos, impondo limites
na interferência de terceiros, incluindo aí o novo companheiro ou outros familiares que
porventura queiram dar palpites na educação e na sua forma de relacionamento com a prole.
No que diz respeito à criação dos filhos então, a mãe se torna a maior responsável, sendo
cobrada a cada vez que algo sai errado, principalmente pelo parceiro, que muitas vezes cobra,
mas não assume o seu papel, eximindo-se da obrigação de dividir com a mulher a criação dos
filhos.
As despesas familiares
As despesas domésticas são no máximo responsabilidade do casal, no caso da
existência do marido ou companheiro. Os filhos quando trabalham passam a significar uma
preocupação a menos e por isso não há grandes exigências na divisão da despesa, até porque
em geral quando isso ocorre, ele logo “arranja mais uma boca para sustentar” (feirante 4),
casando ou engravidando uma moça, passando nesses casos, a responsabilidade a ser dele, e
103
ao mesmo tempo da família inteira, quando ele a leva para morar na casa dos pais. Aliás,
segundo relatos, os relacionamentos dos filhos duram pouco, ficando geralmente para a mãe
do filho ou da filha a responsabilidade da criação do rebento gerado por eles. É com a avó que
muitas vezes os netos ficam quando o relacionamento acaba, pois a mãe, em geral jovem,
precisa trabalhar e muitas vezes terminar os estudos. Nestes casos, a família precisa ser
reorganizada em suas tarefas para a acolhida de mais um ente. É nesse sentido que o aumento
inesperado da família nuclear também é apontado como uma agravante das condições de vida,
principalmente, quando se trata de mais uma criança em seu seio, representando despesas,
responsabilidades e preocupações a mais.
Não teve jeito, eu tive que ficar com os meus netos porque as mães não quiseram
ficar com eles. Eu não posso deixar meus netos por aí, sendo criados de qualquer
jeito, por isso nós resolvemos ficar com eles. Os pais não ajudam muito, eles dão
trabalho, e como eu já estou velha, precisava de mais sossego, mas Deus mandou,
fazer o quê? (Feirante 4)
Esse depoimento nos revela mais uma vez a responsabilidade das mulheres com
relação aos filhos e muitas vezes também aos netos e, neste caso, ficando o homem com uma
participação limitada, ao passar para a avó a principal responsabilidade pela criação de seus
filhos.
Quando a família aumenta, todos os moradores da casa são afetados, isso sem contar
com a ampliação dos gastos, principalmente quando se trata de crianças. Para a mesma
mulher (Feirante 4), a dificuldade foi assim relatada: “Nunca sobra dinheiro”, sendo esta
afirmação significativa para a compreensão desse fato. Isso representa que a renda, mesmo
com a ajuda de dois filhos e do marido, não tem sido suficiente para atender a todas as
necessidades da família, até porque três deles dependem do tempo dedicado ao trabalho, que
pode ser variável - um dos filhos realiza trabalhos ocasionais, ela e o marido dependem das
vendas realizadas no dia. Apenas um filho tem emprego de vendedor em uma pequena loja do
bairro, onde recebe em torno de um salário mínimo/mês. A constituição de uma renda mínima
fica então sob a responsabilidade do casal, que tenta manter os gastos sob controle,
priorizando a alimentação e o bem-estar das crianças.
A maioria das entrevistadas (sete), se referindo à relação ganho diário X gastos
familiares dizem que o ganho diário tem um gasto quase imediato, significando isso que
104
praticamente tudo que ganham é gasto nas necessidades mais básicas da família. Outros
gastos, como as compras do que é preciso para a casa, como móveis ou outros bens, exigem
um planejamento a prazos mais longos, já que não são realizados com frequência. Algumas
vezes, eles recorrem a compras de “segunda mão”, coisas já usadas, pois têm um preço
melhor, principalmente para coisas que têm urgência e somente se for possível o pagamento
parcelado. Quase nada pode ser comprado à vista, pois nunca existe dinheiro disponível para
isso.
Como o resultado do trabalho diário pressupõe um gasto quase imediato, não nos foi
relatado o hábito de compras no supermercado em grande quantidade (para o mês, a quinzena
ou a semana). Em geral, as compras são realizadas de forma esparsa, atendendo as
necessidades diárias. Isso denota a indisponibilidade de recursos financeiros próprios para
essa finalidade, também demonstrando que as despesas estão intimamente relacionadas ao
ganho, resultado do tipo de atividade profissional por elas desempenhadas, que depende das
vendas diárias, do reinvestimento das compras para abastecer a banca e do lucro advindo
disso, que segundo elas, é muito baixo.
Nunca fiz supermercado para o mês. Eu compro mesmo é no “seu Zé”, que me
vende fiado quando preciso e aí, quando tenho dinheiro eu pago. Mas eu sempre fico
devendo. A conta nunca acaba porque quando eu pago uma coisa, já tenho que tirar
fiado outra e aí começa tudo de novo... (Feirante 3)
Com tanta gente para sustentar é difícil comprar tudo que é preciso. Todo dia um
precisa de uma coisa. A gente vai se arrumando, um dia come melhor, no outro não
tanto, mas a gente vai levando a vida. (Feirante 4)
Às vezes, é o jeito fazer sopa de legumes no almoço, mas meus filhos não gostam
muito. Eles querem é comer todo dia arroz, feijão, carne, mas não dá. Eu
praticamente só trabalho para comer, pois tudo o que ganho vai para o sustento da
casa. (Feirante 5)
Como eu recebo por dia, nunca tenho dinheiro para comprar mais do que o
necessário, e isso quando tem como comprar! (Feirante 6)
A vida é dura, pois tenho que sustentar meus filhos e nesse caso, o mais importante é
comer. Tem que ter comida todo dia e a gente não vive sem isso, e comida é cara.
105
Não comemos carne todo dia, em geral a gente come muito ovo e às vezes frango
que é mais barato e rende mais. (Feirante 7)
As compras para casa são feitas na hora da necessidade, quando tem dinheiro.
Quando não tem, a gente se arruma do jeito que pode. (Feirante 8)
A vida difícil e a inconstância dos rendimentos determinam as estratégias de
sobrevivência, e as amizades no local de trabalho e na vizinhança colaboram com a satisfação
das necessidades da vida cotidiana, fortalecendo os contatos primários, assim como os laços
comunitários presentes nestas relações. Em casos de urgência e na falta de outros recursos, é a
estes que elas recorrem – compra “fiado” do frango, da carne, de ovos ou de outros produtos.
As privações são supridas temporariamente pelos conhecidos e assim, a rede social passa a ter
um papel fundamental.
Entre as entrevistadas, por trabalharem com venda de frutas e verduras, em geral os
apertos financeiros não comprometem totalmente a alimentação da família. Os produtos que
perdem a qualidade para a venda são consumidos pela família (aqui, é claro, não se inserem
os produtos estragados). Mas levar frutas e verduras para casa não pode ser feito diariamente,
sob pena de comprometer o próprio negócio, como uma delas explicou.
Em períodos de vendas fracas, aumentos do preço dos produtos ou no caso de
despesas extras, quando se torna necessária a ampliação dos recursos financeiros, a maioria
delas disse que não há o que fazer porque a feira e as atividades domésticas tomam muito do
seu tempo. Algumas mulheres, em casos extremos, recorrem à venda em casa de bolos e
churrasquinhos, mas isso também exige investimento inicial que em um momento de
dificuldade torna difícil sua realização. Além disso, se o negócio for ocasional, também
impede que as vendas ocorram de modo satisfatório, gerando mais prejuízo que lucro. Nos
casos em que existe um marido ou companheiro, é ele que passa a ter o importante papel de
suprir as necessidades familiares, mas não ficando a mulher livre da grande pressão que recai
sobre ela, por socialmente ser aquela que mais se responsabiliza e se preocupa mais com a
prole e seus dependentes.
Nesse caso, analisando as dificuldades observadas no que se refere à sobrevivência
das famílias em questão, nos perguntamos sobre a importância do trabalho produtivo
feminino para a reprodução da família e de suas necessidades. No caso das mulheres feirantes,
ele é primordial ou complementar? Todas as entrevistadas têm participação ativa na renda
106
familiar, mesmo tendo auxílio do companheiro, filhos ou outros parentes, significando que o
ganho diário tem papel fundamental para a subsistência da família, não podendo ser
considerado apenas como complementar. Mas isso não é uma prerrogativa desse caso
específico, pois ocorre com um grande número de mulheres. Sobre isso, Nogueira (2006)
assim o identifica
O dito valor “complementar” do salário feminino é, na grande maioria das vezes,
imprescindível para o equilíbrio do orçamento familiar, especialmente no universo
do proletariado. (...) [Isso significa que] a questão da inserção da mulher no mundo
do trabalho produtivo não se dá unicamente pela sua necessidade de emancipação,
mas também pelo primado da necessidade, para a busca da sobrevivência e
reprodução. (NOGUEIRA, 2006, p. 124-125)
Percebemos que é prioritariamente pela impossibilidade do companheiro (quando é o
caso) suprir todas as necessidades da família, ou mesmo pela ausência de outra forma de
obtenção de renda, que as mulheres entrevistadas foram inseridas no mundo do trabalho. O
trabalho, a partir dessa inserção, passou a ter uma relevância significativa em suas vidas, mas
elas se queixam sobre o cumprimento da dupla jornada. O maior problema que encontramos
nessa situação se refere ao fato de elas terem que trabalhar fora de casa e ainda realizar as
atividades domésticas. Aliás, sobre isso algumas delas afirmam (quatro), que mesmo tendo
sido criadas para serem mães e donas de casa, o trabalho doméstico não é um tipo de
atividade que gere satisfação pessoal, até porque na maioria das vezes, ele entra como uma
obrigação para elas. Para Nogueira (2006),
Fica claro o quanto que os papéis e referências de gênero aparecem denunciando as
desigualdades presentes na divisão sexual do trabalho no espaço reprodutivo,
gerando uma tensão, mesmo que encoberta, nas relações sociais de sexo, inserida na
estrutura da família patriarcal. A imposição de um excesso de responsabilidade com
o trabalho doméstico e com a vida familiar à mulher indica o quanto essa divisão
sexual do trabalho ainda permanece impregnada de estruturas de dominação de
gênero. (NOGUEIRA, 2006, p. 127-128)
Vemos então que o trabalho reprodutivo determinado pela divisão sexual
sobrecarrega a mulher através dos inúmeros afazeres e preocupações que se encontram
presentes em seu cotidiano e que no caso das feirantes, assim como de tantas outras mulheres,
107
este cotidiano tem uma carga de tarefas que as sobrecarregam, muitas vezes sendo
complicadamente ampliada no contexto da preocupação com os filhos e filhas, deixando
pouco tempo para a preocupação e o cuidado com elas mesmas. É por isso que elas também
não têm grandes vaidades. Aliás, ter tempo para si mesmo é algo que poucas vezes acontece,
ficando esse tempo restrito essencialmente aos cuidados pessoais básicos.
Espaços e tempo dedicados ao descanso e lazer
A falta de tempo para os cuidados pessoais também se estende para os momentos de
descanso e lazer. Entre as mulheres entrevistadas, os horários considerados de descanso são
utilizados para a realização dos afazeres domésticos e quanto ao lazer, não foi citado mais do
que assistir televisão e principalmente as novelas, que se apresentam como um momento de
integração familiar. Devemos considerar que isso se refere ao fato de que, como a
preocupação fundamental se encontra no sustento da família e principalmente na alimentação,
praticamente nada sobra das despesas que possam ser disponibilizadas para os momentos de
lazer com a família. Elas assim se referem a isso:
Nas horas de descanso eu aproveito para cuidar da casa. As meninas não fazem as
coisas direito e eu tenho que ficar em cima! À noite, sentamos na sala para assistir à
novela. (Feirante 3)
O que eu faço nos momentos de descanso? Eu não descanso, pois tenho que fazer as
coisas de casa e cuidar dos meus netos. Às vezes assisto à novela à noite... (Feirante
4)
As falas citadas são recorrentes. Todas as mulheres trabalham nos afazeres
domésticos nas horas que deveriam ser dedicadas ao descanso e ao lazer, não têm mais do que
a televisão para assistir. Uma delas assim explicou o fato:
Eu não costumo sair, pois só chego a casa depois das oito da noite, muito cansada.
Como tenho ainda as coisas de casa para fazer, faço com a televisão ligada. Às vezes
dá para sentar um pouquinho e assistir à novela. No dia que dá, vou para casa na
hora do almoço e meu marido fica na banca. Esse tempo eu aproveito para adiantar
108
as coisas de casa e às vezes até durmo um pouquinho, mas não é todo dia. (feirante
5)
É na falta de tempo e de recursos para o lazer que a televisão se apresenta como um
meio de distração barato e acessível, pois a conta só chega ao final do mês embutida nas
despesas de energia elétrica, o que facilita seu uso. Ela funciona como um instrumento de
distração para adultos, adolescentes e crianças. Por outro lado, disponibilizar recursos para ir
ao cinema ou assistir um show, está fora de suas possibilidades, pois isso significaria gasto
desnecessário.
Outras alternativas ocasionais de lazer aparecem, de forma mais esporádica, como o
aniversário de algum familiar ou amigo, e este se apresenta como um momento que abre
espaço para conversas com outras pessoas, além da possibilidade de “botar as fofocas em dia”
(feirante 2), sendo este um importante momento de socialização. Para Elias (2000, p. 121), a
fofoca “não é um fenômeno independente. O que é digno dele depende das normas e crenças
coletivas e das relações comunitárias.” Em geral, este fenômeno carrega em si informações
que tanto podem ser depreciativas quanto elogiosas sobre terceiros, sendo apenas uma meia
verdade que ela tenha uma função integradora, pois na verdade ela também tem “a função de
excluir pessoas e cortar relações”, em um momento de disputa por atenção e de rivalidade de
status entre grupos (ELIAS, 2000, p. 125). Dessa forma, mesmo nesses momentos de
socialização, existe a possibilidade de um afastamento ainda maior entre os grupos que pode
ser causado pela fofoca, limitando ainda mais as possibilidades de integração e lazer.
As viagens ao interior para rever familiares são alternativas ainda mais raras,
considerando que as feirantes não têm direito garantido a férias. Isso apenas ocorre em casos
de extrema necessidade, quando da morte, por exemplo, de algum ente muito querido ou para
a resolução de algum problema muito importante que não possa ser resolvido por outra
pessoa. Férias ou mesmo viagem de férias, nesse caso, encontra-se praticamente ausente da
vida dessas mulheres, se configurando em uma possibilidade remota.
Eu nunca soube o que é férias. Não dá para tirar, pois se parar de trabalhar, cadê o
dinheiro para pagar as contas? Eu quase nem consigo tirar um dia inteiro de folga
por semana... (feirante 6)
Eu só fiz uma viagem para o interior, depois que vim embora para Manaus. Minha
família mora em Eirunepé e estive lá para o enterro de uma tia que me criou até
109
grandinha. Quando casei, vim embora para cá e nunca mais encontrei meus parentes
de lá. Foi um momento triste, mas pude rever parentes e amigos de infância.
(feirante 8).
Mas os filhos das feirantes, principalmente os adolescentes e adultos, têm outras
opções de lazer, representadas principalmente pelas festas populares oferecidas pelo Governo
do Estado ou pela Prefeitura, além de terem maior liberdade em frequentar pequenas casas de
shows presentes no próprio bairro e que proporcionam festas nos fins de semana a preços
acessíveis. Apesar de serem locais muito frequentados, também são neles que as mães
depositam as maiores preocupações com o bem-estar e segurança de seus filhos, já que
estamos falando de um bairro que tem sido costumeiramente considerado um dos mais
violentos de Manaus.
Temos então entre as feirantes entrevistadas uma ausência de momentos para o lazer,
seguido de pouco tempo para o descanso e o convívio familiar, que também se encontra
comprometido, restringindo-se estes curtos espaços de tempo, principalmente a algumas
poucas horas da noite durante a semana, já que as feirantes trabalham também aos sábados e
domingos, dias considerados os mais movimentados na feira. É assim que é constituído o
cotidiano dessas mulheres, em uma constante alternância entre o trabalho e a vida familiar,
passando estas experiências a ter repercussão em todos os aspectos da vida, dando sentido ao
fazer diário ao construir significados sobre suas vivências e experiências. É na construção
desses significados que analisaremos agora a noção de felicidade para elas.
Discutindo o significado de felicidade
Mesmo sem ter sido diretamente parte dos questionamentos feitos na entrevista,
inserimos esta discussão apenas como complementar e sem intenção de grandes
aprofundamentos, já que esta foi uma palavra recorrente e que se fez presente em algumas das
respostas, quando pedíamos que fossem acrescentados outros comentários. As mulheres
entrevistadas sempre iniciavam suas considerações dizendo que eram felizes por trabalharem
naquele local (na Feira), mesmo tendo uma vida de dificuldades, principalmente com as
preocupações e incertezas em relação ao atendimento das necessidades básicas da família.
Isso foi uma constante, especialmente ao enfatizarem o fato de trabalharem e se sentirem
110
úteis, além de não dependerem exclusivamente de seus parceiros. É muito provável que o
fato de elas se definirem como felizes tenha a ver com suas vivências e experiências
anteriores que lhes permitiram criar um parâmetro, a fim de comparar momentos felizes e
infelizes, felicidade e infelicidade.
Para a discussão sobre o significado de “felicidade” recorremos a Bauman (2009),
que coloca seu debate no contexto da sociedade pós-moderna, questionando a crença de que a
crescimento econômico e felicidade andam sempre juntos. Para ele, baseando-se em relatórios
de pesquisas realizadas nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, nem sempre as melhoras nos
padrões de vida estão associadas ao bem-estar subjetivo e
embora os índices de satisfação com a vida declarados cresçam amplamente em
paralelo com o nível do PNB29, eles só crescem de modo significativo até o ponto
em que carência e pobreza dão lugar à satisfação das necessidades essenciais, “de
sobrevivência” – e param de subir, ou tendem a decrescer drasticamente, com novos
incrementos em termos de riqueza. (BAUMAN, 2009, p. 8-9)
É considerando isso que Bauman (2009) se pergunta: “o que há de errado com a
felicidade?” A felicidade encontra-se na ausência de erro, na riqueza, na melhoria do padrão
de vida? Já que estudos têm comprovado que as melhoras nos padrões de vida resultam em
um “ligeiro declínio do bem-estar subjetivo” e indicadores apontam que juntamente com o
nível de riqueza, cresce também a taxa de criminalidade e o aumento da incerteza,
demonstrando que “a busca da felicidade como tal, reconhecida como atividade absorvente,
consumidora de energia, enervante e repleta de riscos, provoca maior incidência de depressão
psicológica...” É provável que o problema se encontre no que o mesmo autor aponta: as
estatísticas medem muitas coisas, mas não medem “o que faz a vida valer à pena”
(BAUMAN, 2009, p. 7-10).
É Bauman (2009) que também vai à busca de outros autores para a compreensão do
termo em diferentes contextos históricos. Em Kant, ele encontra o fato de que “o conceito de
felicidade (...) é de tal modo indeterminado que, embora todos desejem atingi-la, não podem,
contudo, afirmar de modo definitivo e consistente aquilo que realmente desejam e
pretendem.” Aristóteles “concordava que a felicidade pode ser definida como uma série de
maneiras...” compostas principalmente por desejos. Já Blaise Pascal diz que a felicidade é
29
Produto Nacional Bruto.
111
procurada onde não pode ser encontrada e que “A causa única da infelicidade do homem (...)
é que ele não sabe como ficar quieto em seu quarto”, sendo isso uma forma de desligamento
de si mesmo (op. cit. 2009, p. 40-51).
No artigo “Os determinantes empíricos da felicidade no Brasil”, que teve como base,
dados retirados da Word Values Survey em cinco países, entre eles o Brasil, Corbi e MenezesFilho (2004), assim pontuam o bem-estar humano, entendido aqui como felicidade:
o bem-estar humano é composto por duas dimensões básicas: a dimensão objetiva e
a subjetiva. A dimensão objetiva é aquela passível de ser publicamente apurada,
observada e medida por fora, e que se reflete nas condições de vida registradas por
indicadores numéricos de nutrição, saúde, moradia, criminalidade, etc... A dimensão
subjetiva consiste na experiência interna de cada indivíduo, isto é, tudo aquilo que
passa em sua mente de forma espontânea, que ele sente e pensa sobre a vida que tem
levado (CORBI e MENEZES-FILHO apud GIANETTI, 2004).
É nesse ponto de interseção entre o objetivo e o subjetivo que se torna difícil a
garantia de confiabilidade nas respostas dadas às perguntas que envolvem questões como o
caso da felicidade. É que, ao envolver a subjetividade, essas questões
permitem que cada pessoa faça uso de sua própria definição de bem-estar, tornando
a comparação interpessoal inviável. Por outro lado, a essência da resposta é comum
à maioria das pessoas de diferentes regiões do mundo, consistindo principalmente
nas preocupações sobre a vida familiar, saúde, situação financeira e emprego. Dessa
forma, mesmo que cada indivíduo tenha a liberdade de definir seu próprio conceito
de bem-estar, na prática o teor das respostas varia pouco entre os indivíduos.
(CORBI e MENEZES-FILHO, 2004).
Isso nos faz acreditar que são muitos os fatores que podem ter relação direta com a
idéia de felicidade, incluindo questões pessoais e familiares, sendo que o nível de renda pode
ou não ampliar esses níveis de bem-estar pessoal, dependendo de cada situação, e interferir
nas respostas de tal proposição.
Para o mundo contemporâneo, capitalista e consumista, o que passou a significar
felicidade? Ser feliz é apenas ter acesso aos bens materiais? Entre as mulheres investigadas
que se declaram felizes, essa afirmação alcança uma dimensão que nos parece estar
necessariamente ligada ao grau de satisfação pessoal. Para elas, ser feliz é poder ter o
necessário para o sustento da família, não precisando de muito mais para isso, fugindo ao
112
padrão de felicidade30 que muitas vezes somos impelidos e ao mesmo tempo, impedidos de
alcançar. Mas, apesar de se declararem felizes, reconhecem que parte dessa felicidade é
comprometida em alguns momentos pelo que elas chamam de destino:
Eu não tive como mudar meu destino, mas mesmo assim sou feliz, vivendo desse
jeito. (feirante 6)
Sou feliz porque sou conformada com o meu destino, porque nunca tive muita sorte
na vida mesmo. (feirante 4)
Sempre acreditei que meu destino seria este: casar, ter filhos e viver sossegada. Não
sou sossegada o tempo todo, pois tem a preocupação com os filhos. Mas sou feliz
assim mesmo. (feirante 7)
Estes depoimentos apontam significativamente para o que podemos identificar como
impotência e conformismo frente à realidade. Mas o conformismo aqui também se apresenta
como uma forma de ação, ao ter o sentido de se adequar à realidade dentro das limitações
geradas pela própria vida. Nesse caso, a felicidade se encontra intimamente ligada ao modo de
viver que elas têm atualmente, tomando por base experiências anteriores.
Mas, é a felicidade nosso destino? Para Bauman, (2009), “o destino de um
indivíduo31 não é sua sorte”, pois o que chamamos de sorte, “não depende de nós” e é
“modelado no curso de nossa vida”. Já o destino é modelado individualmente ou em grupo “e
só quando ficamos sem os recursos e/ou a determinação para prosseguir na tarefa de
modelagem e remodelagem é que ele se transforma em „sorte” (BAUMAN, 2009, p.55). Ele
ressalta ainda que
... tendemos a estender nosso destino pessoal na soleira da sorte impessoal não
porque nossas escolhas não tenham impacto sobre o itinerário de nossas vidas; nós o
fazemos porque, no momento em que causamos esse impacto, não temos
consciência (...) nós fazemos a diferença, embora não possamos ter certeza sobre
qual é a diferença que fazemos. Tudo que fazemos ou deixamos de fazer fará
diferença – não podemos evitá-lo... (BAUMAN, 2009, p. 55)
30
O padrão de felicidade aqui colocado, diz respeito à ampliação da possibilidade do consumo de bens
materiais, como exposto em Bauman (2009).
31
Do ponto de vista sociológico, a categoria indivíduo tem aqui um caráter intersubjetivo, sendo compreendido
de forma inter-relacionada, partir de sua inserção na sociedade e nos grupos que a constituem.
113
Essa referência se delineia para o que é considerado um padrão de normalidade ou
uma forma de naturalização do inquestionável ou inevitável, pois diante de um destino
desconhecido, a vida que se tem, passa a ser o padrão de felicidade – já que conhecido e
vivido. Então, muitas vezes na afirmação da felicidade se encontra presente a certeza da vida
cotidiana, significando a incerteza dessa vida, ou as privações das necessidades, a ausência de
felicidade. Por outro lado, ainda para Bauman (2009, p. 63), as ameaças de infelicidade estão
mais presente entre as pessoas que se encontram “no meio”, entre a base e o topo da
hierarquia social, já que os que se encontram na base dessa hierarquia, praticamente não
conseguem alterar sua situação inferior. No caso dos depoimentos citados, a impossibilidade
em mudar a vida passa então a ser chamada de destino, sendo este imutável, natural e
indiscutível.
Podemos incluir aí também a mudança ocorrida na maneira de pensar e conviver com
as situações diversificadas que o mundo atual apresenta. Em Bauman (2009), “a „arte da vida‟
significa coisas diferentes para os membros das gerações32 mais velhas e mais novas, mas
todos a praticam. As gerações anteriores se deixavam levar sem grandes resistências e os
sacrifícios representavam um ganho futuro. Ao fazer uma comparação com os mais jovens,
que passam a conviver desde muito cedo com a incerteza, os riscos e desapontamentos, os
sacrifícios já não representam certeza, pois a vida é vivida com base no agora, fruto de um
“mundo líquido-moderno (...) em revolução permanente, [e onde] os „eventos singulares‟
[constituem] lembranças dos tempos da modernidade sólida” (BAUMAN, 2009, p. 87).
Provavelmente, em cima dessa observação o parâmetro de felicidade sofre uma alteração, e é
assim que “nos dias de hoje, cada homem e cada mulher é um artista nem tanto por escolha
quanto, por assim dizer, por um decreto do destino universal” (op. cit. 2009, p. 76).
Muito ligado a idéia de sorte e de destino se encontram os sonhos, não exatamente
aquele que se sonha dormindo, mas aquele que se sonha acordado, como um bom presságio,
ou como uma espera consciente de futuro. Os sonhos mais freqüentes entre as mulheres
entrevistadas se voltam para seus filhos, já que boa parte delas já não acredita que seja
possível fazer alguma mudança em suas próprias vidas. Para elas, o futuro dos filhos é o que
conta agora, e isso se consolida em suas próprias palavras,
32
A categoria “geração” em Bauman (2009, p. 77-85), tem o “sentido de uma totalidade com traços comuns a
todas as suas unidades, mas que não podem ser encontrados fora dela”. Em Mannheim passa a ter o sentido
de “sujeito coletivo” (op. cit. 2009, p. 78).
114
Dos meus sete filhos, acredito que dois viverão melhor porque estudam, mas os
outros, já têm filhos, têm a vida dura como a minha. Não foi isso que sonhei para
eles. (feirante 4)
Não quero meus filhos na feira, eles vão estudar para ter outra vida e quem sabe até
ser um doutor! (feirante 8)
Meus filhos são tudo que eu tenho. Eles precisam estudar para viver diferente, ter
mais recursos, trabalhar num bom emprego... (feirante 5)
Hoje eu sonho pelos meus filhos, pela felicidade deles, que eles cresçam, trabalhem
e vivam melhor que eu. (feirante 6)
Percebemos então, que os sonhos não realizados individualmente são transformados
em sonhos familiares, depositados no futuro dos filhos e na espera por dias melhores. Boa
parte desses sonhos almeja também uma transformação na vida das próprias mulheres,
partindo do princípio de que se os filhos tiverem uma vida melhor, elas também serão
beneficiadas direta ou indiretamente. Os sonhos desta forma, também encaminham para a
felicidade, pois “minha busca da felicidade pode se concentrar na preocupação com meu
próprio bem-estar ou na preocupação com o bem-estar de outros.” (BAUMAN, 2009, p.123).
Neste caso específico, o sonho depositado no outro constitui a possibilidade da própria
felicidade.
Para uma feirante que é solteira e sem filhos, seus sonhos se restringem ao que ela
identificou como “viver em paz” (feirante 2), aqui entendido como trabalhar e ter o que
precisa para viver (comprar o necessário para sua vida – alimentos principalmente, assim
como poder incrementar a compra/venda dos produtos para a banca, mantendo-se sem
grandes preocupações financeiras). Percebemos especificamente aqui, uma preocupação com
a imediatez da vida, já que neste caso, como ela mesma falou, sua vida acaba nela, diferente
das mulheres com filhos ou que ainda pensam em tê-los, presume-se então uma continuidade
de suas vidas. Esta senhora foi uma das entrevistadas que não se referiu em nenhum momento
à palavra “felicidade”, como estado de espírito durante a entrevista, permanecendo séria ou
talvez triste (para nós foi difícil de identificar, pois ela manteve um certo distanciamento).
Mas Bauman (2009) diz que “é o sujeito que deseja a felicidade. E isso significa cada um de
nós, contanto que todos consideremos a busca da felicidade como nosso desafio e tarefa e
115
façamos dela nossa estratégia de vida” (Bauman, 2009, p. 123). Assim, a busca da felicidade
torna-se um projeto pessoal, dependendo de cada um, sua busca e seu estabelecimento.
Como buscar a felicidade é um projeto pessoal que pode se realizar a partir de nós,
mas também do outro, é assim que em termos de perspectiva de futuro vemos a família tornarse o ambiente propício para as mudanças até então não concretizadas na vida das mulheres
entrevistadas, assim como para os sonhos não realizados, pois é na família e mais
especificamente nos filhos, que são depositados todos os recursos de transformação dessa
mesma vida.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória do trabalho realizado, que teve seu início com observações a princípio
desinteressadas e movidas por curiosidade pessoal, deu-nos a liberdade de ampliar a visão
sobre a forma e o significado do trabalho, especialmente daquele realizado pela mulher. A
busca de um diferencial nos permitiu uma investigação voltada para a informalidade,
considerando que este tem demonstrado um crescimento significativo nas últimas décadas, ao
mesmo tempo em que os postos de trabalho com carteira assinada têm sofrido quedas
expressivas neste mesmo período. Desde o final do século XX, já se discutia as questões
relacionadas ao trabalho formal como um grande ponto de interrogação, ao se pensar nas
transformações do mundo contemporâneo viabilizadas neste contexto, principalmente no que
se refere ao seu futuro.
Foi nesse sentido que a pesquisa nos possibilitou uma aproximação maior com o
universo do trabalho em uma feira, que tem características muito próprias no que se refere às
novas e velhas concepções de trabalho, considerando que ao mesmo tempo em que a feira
representa uma alternativa atual de trabalho e inserção profissional mesmo que fora dos
padrões convencionais, também representa a permanência de uma atividade que tem
atravessado os séculos em sua existência.
As discussões que foram travadas no interior da investigação nos proporcionaram a
ampliação de conceitos e definições que permeiam a categoria trabalho de forma mais ampla,
além de nos oferecer uma aproximação com os mais diversos debates que têm sido
desenvolvidos a esse respeito no meio acadêmico. Isso nos permitiu, dentro da especificidade
do trabalho da mulher vendedora de frutas e verduras da Feira Modelo da Compensa,
relacionar questões mais amplas em um contexto delimitado, o que nos fez perceber que
algumas generalizações podem ser aplicadas em situações específicas sem perder suas
características. Entre estas generalidades podemos apontar:
1. A condição da mulher que trabalha na feira não a torna diferente de tantas outras
mulheres que precisam se dividir e ao mesmo tempo conciliar as necessidades de
trabalhar fora e dentro do espaço doméstico. Esta afirmação nos autorizou a levantar
pontos a respeito da dupla jornada e posteriormente sobre a manutenção da divisão
sexual do trabalho no ambiente familiar, que se reproduz através da criação dos
filhos, justificando o trabalho em dobro realizado pela mulher.
117
2. As dificuldades em assumir um posicionamento que permita às mulheres uma
inserção igualitária no mundo do trabalho e a luta diária em prol da construção de
uma identidade feminina, que lhes garantam o respeito e a dignidade em um mundo
edificado no poder patriarcal, que historicamente tem colocado a mulher em posições
inferiorizadas e desprivilegiadas. Aqui inserimos as discussões sobre os mitos que
instituem como lugar da mulher o ambiente privado e ao homem o espaço público,
provocando a condição desprovida de direitos iguais que ela em geral ocupa fora de
casa, ao ser encontrada preferencialmente nos postos de trabalho mais precários e
menos valorizados.
3. Na feira, o tempo de trabalho está diretamente relacionado com a condição de
subsistência do grupo familiar, mesmo no caso da existência de um companheiro que
contribua com as despesas, e mesmo nestas condições, observamos uma renda que se
encontra aquém de suas próprias necessidades. Isso também é percebido em diversas
outras atividades que se encontram fora do padrão formal e mesmo dentro dele (o
caso de alguns vendedores de lojas que têm seu ganho mensal baseado nas vendas),
sendo que neste caso, temos um salário mínimo de garantia para o mês.
4. A mulher feirante, também não apenas contribui com a renda familiar, sendo sua
participação efetivamente necessária para o sustento da família, o que lança por terra
a idéia de que o trabalho da mulher entra apenas como complementar ao trabalho do
homem, passando a ser uma necessidade imperiosa diante do orçamento restrito,
destinado basicamente à manutenção da casa e das pessoas que nela vivem.
Quando tratamos do significado do trabalho, por outro lado, percebemos uma
diversidade de opiniões no que diz respeito à sua necessidade. Enquanto para umas
significava a possibilidade de igualdade de direitos e condições, o sustento dos filhos ou o
auxílio necessário à manutenção da família, para outras esse significado se transforma em um
fardo, seja pela idade ou pela obrigatoriedade de sua realização, que independe de sua
vontade. Neste último caso, o trabalho passa a ser visto apenas como um meio de
sobrevivência, perdendo assim seu mais amplo sentido, que pressupõe a possibilidade de
interação, de práxis e de desenvolvimento da própria condição humana.
Na realização do trabalho produtivo e mais especificamente no ambiente da feira,
pudemos identificar situações que aproximam e afastam os feirantes, o que pode algumas
118
vezes comprometer as relações sociais, gerando situações de conflitos latentes. Entre estas
situações, podemos apontar:
- O ambiente da feira, mesmo mantendo uma aparente igualdade de condições,
esconde diferenças sutis, intimamente ligadas à distribuição desigual dos espaços e
consequentemente das condições de renda obtida, contribuindo para uma competição
também desigual entre os vendedores. O significado disso é que o que poderia ser
identificado como um ambiente de solidariedade e camaradagem esconde conflitos
que não são explicitados durante o horário de trabalho.
- As relações sociais na feira são permeadas por momentos de tranquilidade (horários
de menor movimento) e de tensão (horas de grande movimento) que são atribuídas à
concorrência, na qual a capacidade de venda se encontra constantemente atrelada à
possibilidade de convencer o freguês a comprar o produto exposto. A tensão
encontra-se aí presente exatamente pela impossibilidade de uma ação mais agressiva
por parte do feirante, visando atender o código de ética, que não permite um
comportamento direto de interpelação ao freguês, o que pressupõe uma concorrência
respeitosa tanto com relação aos compradores, quanto aos colegas das bancas
vizinhas. Mas o que se vê ali não foge ao que é reconhecidamente observado em
outros setores e serviços, com uma concorrência acirrada pela luta diária de
sobrevivência.
- Outro ponto que pode ser destacado sobre as relações sociais no ambiente de
trabalho, é a hierarquia de status que se encontra presente, mesmo que parcialmente
ocultada pela aparente igualdade de posições. É na hierarquia de status que se
mantém as posições diferenciadas de cada feirante, sendo essas posições relativas ao
espaço ocupado, localização, opção de se definir como feirante ou autônomo, a
oportunidade de ter parentes ou amigos próximos trabalhando no local, e até mesmo
a capacidade de ser mais popular ou mais amigável, também presente em outras
situações no mundo do trabalho.
Já a busca em decifrar no cotidiano da mulher feirante as relações sociais
predominantes, percebemos que é nessa interposição entre o trabalho e a vida no lar que este
cotidiano tem seu significado mais preciso, e é representado pelas atividades da vida familiar
em toda a sua extensão – cuidados com a casa, os filhos ou parentes que delas necessitam.
Como vimos, a exterioridade do trabalho no lar não expõe a princípio toda a sua amplitude,
119
que requer uma gama imensa de pequenas atividades durante o dia. E esse dia não se restringe
a isso, sendo que este constitui apenas uma parte da lida diária. A vida é tão intensa de
afazeres, que resta pouco tempo para o descanso, o cuidado pessoal e o lazer. Na verdade, o
trabalho na feira é central, gravitando ao seu redor os cuidados com a família, permanecendo
em última posição, e somente o tempo que resta, as preocupações individuais.
Foi exatamente entre o ambiente de trabalho e o ambiente familiar que conseguimos
identificar os mais variados papéis sociais empreendidos pelas mulheres feirantes no seu fazer
cotidiano. Algumas vezes como mulher, mãe, filha, avó, dona de casa, trabalhadora e
responsável pela família, entre outros. É no exercício desses papéis desempenhados que elas
se encontram realmente como mulheres, abrindo espaço para a libertação e autonomia, que se
traduz através do trabalho realizado fora do lar.
As relações sociais são assim condicionadas pela vida em família, pelas necessidades
diárias, pelos sonhos e angústias, pela incerteza e principalmente na luta pela sobrevivência.
Reafirmamos, entretanto que todos estes elementos condicionantes de suas vidas são os
mesmos que perpassam a vida de grande parte das mulheres que realizam a dupla jornada e
exercem atividades precárias. Aliás, a precariedade encontrada no trabalho dos feirantes nem
se aproxima da precariedade do trabalho realizado por tantos homens e mulheres que não têm
sequer um espaço garantido para trabalharem, como é o caso dos ambulantes que se
encontram no entorno da feira e nas proximidades, que precisam fugir da fiscalização da
Prefeitura para conseguir suprir as mínimas necessidades de suas famílias. Os próprios
feirantes reconhecem que diante desta situação, são privilegiados por terem garantido pelo
menos o espaço para o sustento de seus filhos, tendo em vista as dificuldades encontradas no
mundo do trabalho, principalmente entre aqueles que se inserem nas estatísticas que apontam
para a baixa escolaridade e a falta de formação profissional. É por isso que as mulheres não se
sentem vítimas e pretendem continuar lutando pela sobrevivência, sempre acreditando em
dias melhores e com esperanças no futuro.
Embora não tenhamos tido a pretensão de esgotar as questões levantadas e nem de
apresentar afirmações conclusivas, procuramos conciliar o ambiente produtivo e alguns
aspectos da vida familiar para assim podermos perceber que, ao mesmo tempo em que estes
universos se opõem, são eles também os responsáveis pelo todo, ambos condicionantes da
vida das mulheres entrevistadas. E foi isso que procuramos esclarecer – que o trabalho não se
explica por si mesmo, assim como a vida familiar também não o faz sozinha, sendo necessária
120
uma análise desse todo para que seja inserido nele a visão de totalidade do fazer humano, que
não se esgota nele mesmo, mas que passa a ser uma permanente construção e reconstrução
diária e que se revela na plenitude do cotidiano de cada uma dessas mulheres.
121
BIBLIOGRAFIA
ABRAMO, Laís Wendel. A inserção da mulher no mercado de trabalho: uma força de
trabalho secundária? 2007. 328 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponíveis/8/8132/tde-23102007-141151/ . Acesso em: 16 jun.
2009.
ABREU, Alice Rangel de Paula e SORJ, Bila. Trabalho a domicílio nas sociedades
contemporâneas- uma revisão da literatura recente. In: O trabalho invisível – estudo sobre
trabalhadores a domicílio no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1993, PP.179-212.
AGUIAR, Neuma. Perspectivas feministas e o conceito de patriarcado na sociologia clássica e
no pensamento sociopolítico brasileiro. In: AGUIAR, Neuma (org.). Rio de Janeiro: Record;
Rosa dos Tempos, 1997.
ALVES, Maria Aparecida e TAVARES, Maria Augusta. A dupla face da informalidade do
trabalho: “autonomia” ou precarização. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do
trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006 (p. 425-444).
ANTUNES, Ricardo (org.). A dialética do trabalho – escritos de Marx e Engels. São Paulo:
Expressão Popular, 2004.
_________. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.
_________. Os sentidos do trabalho- ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São
Paulo: Boitempo, 2007.
ARENDT, Hanna. A condição humana. Trad. de Roberto Raposo, pósfácio de Celso Lafer.
10ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1999.
_________. A arte da vida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2009.
BLAY, Eva Alterman. Políticas públicas para superar obstáculos à equidade de gênero. In:
Marie Jane Soares Carvalho e Cristianne Maria Famer Rocha (orgs.). Produzindo gênero.
Porto Alegre: Sulina, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.
_______. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. O desempenho recente do mercado de
trabalho brasileiro, In: Brasil, o estado de uma nação. Disponível em:
http://en.ipea.gov.br//index.php?s=11&a=2006. Acesso em 25 jun. 2009.
122
_________. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais
2002. Pesquisa por amostra de domicílios. Rio de Janeiro, 2002. Acesso em 27 de jun. 2009.
__________. Presidência da República – Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, II
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília – DF, 2008. Disponível em:
<http://200.130.7.5/spmu. docs/Pro-eq_1_relatório.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2009.
_________. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. PNAD 2007 primeiras análises.
Demografia e gênero, número 11, volume 3, de 07 de outubro de 2008. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_presidencia/08_10_07_Pnad_PrimeirasAnali
ses_N11demografia.pdf Acesso em 25 jun. 2009.
BRUSCHINI, Maria Cristina A. Mulher, casa e família: cotidiano nas camadas médias
paulistanas. São Paulo: Fundação Carlos Chagas: Vértice, Editora Revista dos Tribunais,
1990.
_________. O trabalho da mulher brasileira nas décadas recentes. Revista Estudos Feministas.
Publicação semestral – CIEC – Escola de Comunicação UFRJ. Número especial. Out./1994.
CAPRÓN, Guénola e PEREIRA, Maurício. Ambiência e urbanidade em um centro comercial
do Rio de Janeiro: o caso de Downtown na Barra da Tijuca. In: GOMES, Maria de Fátima
Cabral Marques (org.). Cidade, transformações no mundo do trabalho e políticas públicas: a
questão do comércio ambulante em tempos de globalização. Rio de Janeiro: DP&A: FAPERJ,
2006.
CARVALHO, Maria Eulina Pessoa de e RABAY, Glória. Mulher e participação política. In:
FERREIRA, Mary et al. Os poderes e os saberes das mulheres – a construção do gênero. São
Luiz: EDUFMA; Salvador: REDOR, 2001.
CASTEL, Robert. As metamorfoses do trabalho. In: José Luiz Fiori et al. Globalização, o fato
e o mito. Rio de Janeiro, Editora da UERJ, PP. 147-163, 1998.
CASTELS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venâncio Majet. – (A era da
informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CHARTIER, Roger. Diferença entre os sexos e dominação simbólica (nota crítica). In:
Cadernos Pagu Fazendo história das mulheres (4). Campinas, São Paulo: 1995.
CORBI, Raphael Bottura e MENEZES-FILHO, Naércio Aquino. Os determinantes empíricos
da felicidade no Brasil. Artigo apresentado para a Associação Nacional dos Centros de PósGraduação
em
Economia
–
ANPEC,
2004.
Disponível
em
http://www.anpec.org.br/encontro2004/artigos/A04A152.pdf . Acesso em 16/04/2010.
CORIAT, Benjamin. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Trad.
Emerson S. da Silva. Rio de Janeiro: Revan: UFRJ, 1994.
123
COSTA, Ana Alice Alcântara. Refletindo sobre as imagens da mulher na cultura política. In:
FERREIRA, Sílvia Lúcia; NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. (orgs.). Imagens da mulher
na cultura contemporânea. NEIM/UFBA, 2002.
COULOURIS, Daniella Georges. Gênero e discurso jurídico – possibilidades para uma
análise sociológica. In: Marie Jane Soares Carvalho e Cristianne Maria Famer Rocha (orgs.).
Produzindo gênero. Porto Alegre: Sulina, 2004.
CURADO, Jacy. Gênero e os sentidos do trabalho social. Campo Grande: UCDB, 2008.
DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, Estado e o futuro
do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999 (cap. 6: p. 165-192).
DUROZOI, Gérard e ROUSSEL, André. Dicionário de filosofia. Trad. Marina Appenzeller.
Campinas, SP: Papirus, 1993.
ELIADE, Mircea. Função dos mitos. In: Tratado de história das religiões. Lisboa, Portugal:
Cosmos, 1977.
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Editado por Michael Schöter, Trad. Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders – sociologia das
relações de poder em uma pequena comunidade. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2000.
FANNY, Tabac. Mulheres públicas, participação e poder. Rio de Janeiro: Letra Capital,
2002.
FERREIRA, Verônica. O novo e o velho no trabalho das mulheres. In: SILVA, Carmem;
ÁVILA, Maria Beatriz; FERREIRA, Verônica (orgs.). Mulher e trabalho. Recife: SOS Corpo
– Instituto Feminista para a Democracia; São Paulo: Secretaria Nacional sobre a mulher
trabalhadora da CUT, 2005.
FERRETTI, Sérgio (org.). Reeducando o olhar: estudo sobre feiras e mercados. São Luiz:
Ed. UFMA; PROIN (CS), 2000.
FONSECA, T. M. Gênero, subjetividade e trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
FRIGÉRIO, Tea ET al. Hermenêutica feminista e gênero. Nº. 155/156. São Leopoldo, Rio
Grande do Sul: 2000.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I – traços fundamentais de uma hermenêutica
filosófica. Trad. De Flávio Paulo Meurer e nova revisão da tradução de Enio Paulo Giachini.
Petrópolis, RJ: Vozes, Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2008.
GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. 2ª edição. São Paulo: Ed. UNESP,
1991.
124
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Trad. Maria Célia Santos
Raposo, 14ª Ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
GOMES, Maria de Fátima Cabral Marques (org.). Cidade, transformações no mundo do
trabalho e políticas públicas: a questão do comércio ambulante em tempos de globalização.
Rio de Janeiro: DP&A: FAPERJ, 2006.
GUARESCHI, Pedrinho A. e GRISCI, Carmem L. I. A fala do trabalhador. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1993.
HAGUETTE, Tereza Maria Frota. Metodologias qualitativas nas Ciências Sociais. 6. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2004.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder.
4. ed., São Paulo: Paz e Terra, 1992.
HIRATA, Helena. Reestruturação produtiva, trabalho e relações de gênero. Revista
Latinoamericana de Estudos do Trabalho. Ano 3, n.6, São Paulo: Alast, 1997.
HIRATA, Helena e KERGOAT, Danièle. A divisão sexual do trabalho revisitada. In:
MARUANI, Margaret e HIRATA, Helena (orgs.). As novas fronteiras da desigualdade –
homens e mulheres no mercado de trabalho. Trad. Clevi Rapkievicz, São Paulo: Editora
SENAC São Paulo, 2003.
JORNAL DO COMÉRCIO. 12/01/2006.
KREIN, José Dari. Reestruturação produtiva e sindicalismo. In: Liana Carleial e Rogério
Valle (orgs.). Reestruturação produtiva e mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Hucitec
– ABET, 1997 (p. 439-479).
LASCH, Christopher. A mulher e a vida cotidiana: amor, casamento e feminismo.
Organizado por Elisabeth Lasch-Quinn; tradução de Heloísa Martins Costa. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.
LIMA, Déborah Kelman de e FRANCO, Simone Teixeira da Costa e Silva. Mitos e ritos na
construção da identidade feminina. In: FAGUNDES, Tereza Cristina Pereira Carvalho (org.).
Ensaios sobre gênero e educação. Salvador, UFBA. Pró-Reitoria de Extensão, 2001.
MANAUS. Prefeitura Municipal – Secretaria Municipal de Produção e Abastecimento. Lei
Nº. 123, de 25 de novembro de 2004.
MARTINS, Angela Maria Moreira. Ambiências que abrigam o comércio informal. In:
GOMES, Maria de Fátima Cabral Marques (org.). Cidade, transformações no mundo do
trabalho e políticas públicas: a questão do comércio ambulante em tempos de globalização.
Rio de Janeiro: DP&A: FAPERJ, 2006.
125
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na
modernidade anômala. 2. ed. ver. ampl., 1ª reimpressão, São Paulo: Contexto, 2008.
MARUANI, Margaret e HIRATA, Helena (orgs.). As novas fronteiras da desigualdade:
homens e mulheres no mercado de trabalho. Tradução de Clevi Rapkievicz, São Paulo:
Editora SENAC São Paulo, 2003.
MELO, Hildete Pereira. O mercado de trabalho nos anos 90 – revisitando a invisibilidade do
trabalho feminino. In: Um debate crítico a partir do feminismo: reestruturação produtiva,
reprodução e gênero. São Paulo: CUT, 2002.
MONTAGNER, Paula. Dinâmica e perfil do mercado de trabalho: onde estão as mulheres?
In: ROCHA, Maria Isabel Baltar da. Trabalho e gênero – mudanças, permanências e
desafios. Campinas:ABEP, NEPO/UNICAMP e CEDEPLAR/UFMG/SP: Ed. 34, 2000.
MOTT, Luiz. Feira e Mercados: pistas para a pesquisa de campo. In: FERRETTI, Sérgio
(org.). Reeducando o olhar – estudo sobre feiras e mercados. São Luiz: Editora UFMA;
PROIN(CS), 2000.
NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. A feminização no mundo do trabalho: entre a emancipação e
a precarização. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2004.
__________. O trabalho duplicado: a divisão sexual no trabalho e a reprodução – um estudo
das trabalhadoras do telemarketing. 1. ed., São Paulo: Expansão Popular, 2006. (Coleção
Trabalho e emancipação).
NORONHA, Eduardo G. “Informal”, ilegal, injusto: percepções do mercado de trabalho no
Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais vol. 18, n. 53, out. 2003.
PRÁ, Jussara Reis. Gênero, cidadania e participação na esfera pública. In: Marie Jane Soares
Carvalho e Cristianne Maria Famer Rocha (orgs.). Produzindo gênero. Porto Alegre: Sulina,
2004.
PROBST, Elisiana Renata e RAMOS, Paulo. A evolução da mulher no mercado de trabalho.
Revista Leonardo Pós. Órgão de divulgação científica e cultural do ICPG. Vol. 1, n.2 – jan. –
jun./2003.
ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2003.
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Livraria
Quatro Artes Editora, 1969.
__________. Do artesanal ao industrial: a exploração da mulher. São Paulo: Hucitec, 1981.
SALAZAR, João Pinheiro. O abrigo dos deserdados – estudo sobre a remoção dos
moradores da Cidade Flutuante e os reflexos da Zona Franca na habitação da população de
baixa renda em Manaus. 1985. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
126
SALLES, Vânia e TUIRÁN, Rodolfo. Pobreza, hogares y condición femenina. Revista
Latinoamericana de Estúdios del Trabajo. Ano 4, nº. 7, 1998.
SANTANA, Marco Aurélio e RAMALHO, José Ricardo. Além da fábrica – trabalhadores,
sindicatos e a nova questão social. São Paulo: Boitempo, 2003.
SANTOS, Graciete. A insuficiência da política de produção e renda para as mulheres. In:
SILVA, Carmem; ÁVILA, Maria Betânia; FERREIRA, Verônica (orgs.). Mulher e Trabalho.
Recife: SOS Corpo – Instituto feminista para a democracia; São Paulo: Secretaria Nacional
sobre a mulher trabalhadora da CUT, 2005.
SCHERER, Elenise Faria. Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na Zona
Franca de Manaus. Revista Somanlu, ano 4, n. 1, jan. a jun. de 2004.
SENA, Ana Laura. O trabalho informal nas ruas e praças de Belém: um estudo sobre o
comércio ambulante de produtos alimentícios. Belém: NAEA, 2002.
SILVA, Carmen. Raízes da desigualdade. In: SILVA, Carmen e ÁVILA, Maria Betânia,
FERREIRA, Verônica (orgs.). Mulher e trabalho. Recife: SOS Corpo – Instituto Feminista
para a Democracia; São Paulo: Secretaria Nacional sobre a Mulher Trabalhadora da CUT,
2005.
SINGLY, François de. Sociologia da família contemporânea. Trad. Clarice Ehlers Peixoto.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado e RODRIGUES, Renata de Lima. Multiparentalidade
como efeito da socioafetividade nas famílias recompostas. In: Revista Brasileira de Direito
das Famílias e Sucessões. Ano XI, nº. 10, jun/jul. São Paulo: IBDFAM; Ed. Magister, 2009.
TITTONI, Jaqueline. Trabalho, poder e sujeição: trajetórias entre o emprego, o desemprego
e os “novos” modos de trabalhar. Porto Alegre: Dom Quixote, 2007.
VALLE, Izabel de M. Globalização e reestruturação produtiva: um estudo sobre a produção
offshore em Manaus. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007.
VIEIRA, Ivânia Maria Carneiro. O discurso operário e o espaço da fala da mulher – um
estudo sobre a linha de montagem. Manaus: Ed. Valer/ Gov. do Estado do Amazonas, 2002.
WEBER, Florence. Trabalho fora do trabalho: uma etnografia das percepções. Trad. Roberta
Ceva. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
XAVIER, Elódia. Declínio do patriarcado – A família no imaginário feminino. Rio de
Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1998.
127
Sites consultados:
http://diariodacompensa.blogspot.com/2007_11_01_archive.html
Acessado em 05/02/2010.
http://www.manaus.am.gov.br/noticias/empreendedor-individual-1/
Acessado em 15/02/2010.
http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf
Acessado em 15/02/2010.
http://www.sebraesp.com.br/faq/criacao_empresa/empreendedor/autonomo_empresa
Acessado em 18/02/2010.
http://www.brasilturismo.com/am/manaus/historia.php
Acessado em 18/02/2010.
http://www.manausonline.com/serv_trans_rodo_lurbana.asp
Acessado em 18/02/2010.
http://portalamazonia.globo.com/pscript/amazoniadeaaz/artigoAZ.php?idAZ=360
Acessado em 19/02/2010
http://maps.google.com.br
Acessado em 19/02/2010
http://wikipedia.org/wiki/Compensa
Acessado em 19/02/2010.
128
Anexos
129
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO - TCLE
PERMISSIONÁRIA
Convidamos a Sra. a participar do Projeto de Pesquisa “O trabalho informal da mulher na
Feira Modelo da Compensa”, realizado dentro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia que
pretende compreender como as relações sociais estabelecidas no cotidiano condicionam o trabalho
da feirante. As pesquisadoras Soraya Farias Aquino e Drª Maria Izabel de Medeiros Valle,
responsáveis pelo projeto, pedem autorização para poder entrevistar, tirar foto e fazer gravação
audiovisual com sua pessoa. A Sra. foi escolhida pois é permissionária cadastrada na Prefeitura e
atua no local pesquisado, a Feira Modelo da Compensa. Esta pesquisa tem a finalidade de entender
as relações sociais presentes no trabalho da feirante, utilizando como procedimentos as
observações, entrevistas, fotos e gravações audiovisuais. A pesquisa não oferece risco à participante,
pois os procedimentos acima podem ser recusados pela entrevistada a qualquer momento. Os
benefícios da pesquisa são confirmar ou modificar as antigas informações e levantar informações
novas, permitindo uma melhor compreensão sobre o trabalho realizado pela mulher na feira.
A Sra. tem toda a liberdade e direito para decidir recusar em participar da pesquisa ou retirar
seu consentimento mesmo depois de realizada a entrevista e os procedimentos, não tendo com isso
nenhuma despesa ou nenhuma de valor pecuniário. A sua participação é extremamente importante.
Informamos ainda que os resultados da pesquisa serão analisados e publicados, mantendo a
identidade de todos os participantes em sigilo absoluto. Para qualquer outra informação o (a) Sr. (a)
poderá entrar em contato com a pesquisadora pelo telefone (92) 3657-5502 e pelo endereço Av.
Gen. Rodrigo Otávio Jordão, 3000, Campus Universitário, setor sul, bloco D, Departamento de
Ciências Sociais, bairro Coroado, CEP 69077-000, Manaus, Amazonas.
Fui informado sobre o que o pesquisador quer fazer e porque precisa da minha colaboração,
e entendi a explicação. Por isso, eu concordo em participar do projeto, sabendo que não vou ganhar
nada e que posso recusar quando quiser. Estou recebendo uma cópia deste documento, assinada,
que vou guardar.
________________________________ ou
_____/______/______
Assinatura do participante
__________________________________
Pesquisador responsável
______/______/______
Impressão do dedo polegar
130
Entrevista nº.:...............
Idade:................................
Data:....../........./...........
Estado Civil:.........................................
Filhos: ( ) sim Quantos:................................ ( ) não
Escolaridade: ( ) Fundamental completo
( ) Ensino médio completo
( ) Fundamental incompleto
( ) Ensino médio incompleto
( ) Ensino superior completo ( ) Ensino superior incompleto
( ) Não freqüentou a escola
Casa: ( ) própria ( ) alugada
cômodos:...............................................................................
Bairro:............................................................ Quantos moram na casa?......................................
Além de você, quem mais auxilia na renda familiar?....................................................................
Quem é o principal provedor?.......................................................................................................
Profissão:.......................................................................................................................................
Tempo de trabalho na feira: .................. meses/anos
É a licenciada para o uso da banca: ( ) sim ( ) não Se não, quem é:......................................
Qual a vantagem de se tirar a permissão para trabalhar na feira?................................................
.......................................................................................................................................................
Motivos que a fizeram trabalhar como feirante:...........................................................................
.......................................................................................................................................................
Horas de trabalho/ dia:.........................
Dias de trabalho/ semana:....................................
Tempo de descanso:............................ O que faz nas horas de descanso?...................................
.......................................................................................................................................................
Produtos comercializados:............................................................................................................
Como e onde são obtidos?............................................................................................................
Motivos da escolha do produto:...................................................................................................
131
Tem a ajuda de outras pessoas para a realização do seu trabalho? De quem?.............................
........................................................................................................................................................
Quais os melhores dias para a venda?.Qual o seu faturamento neste dia?...................................
........................................................................................................................................................
O que pensa sobre o trabalho na feira:..........................................................................................
........................................................................................................................................................
Outras experiências profissionais:..................................................................................................
Atual renda mensal:........................ Renda semanal.................................... É suficiente para o
sustento da família?.......................................................................................................................
Se necessário, como a renda pode ser complementada?..............................................................
.......................................................................................................................................................
Como conseguiu o dinheiro para iniciar o negócio?......................................................................
.......................................................................................................................................................
Recebe auxílio para os afazeres domésticos? De quem?..............................................................
.......................................................................................................................................................
Como participa das decisões tomadas no local de trabalho?........................................................
.......................................................................................................................................................
É sindicalizada?Quais as vantagens em ser sindicalizada?............................................................
Já se candidatou ao comitê gestor da feira?........................... Se não, por que?..........................
.......................................................................................................................................................
Existe diferença de tratamento entre homens e mulheres na feira? De que tipo?.......................
.......................................................................................................................................................
Existe alguma forma de colaboração entre homens e mulheres? De que tipo?...........................
.......................................................................................................................................................
Como você vê a concorrência entre os vendedores?....................................................................
.......................................................................................................................................................
132
Que necessidades poderiam ser supridas para melhorar suas condições de trabalho?
.......................................................................................................................................................
Qual o significado do trabalho para você?....................................................................................
.......................................................................................................................................................
.......................................................................................................................................................
Outros Comentários:......................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
........................................................................................................................................................
133