FRANK ZAPPA E ensaio filosófico

Transcrição

FRANK ZAPPA E ensaio filosófico
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FRANK ZAPPA
E ensaio
filosófico:
O JOGO
de
Ricardo
Nachmanowicz
DO
DESMEMBRAMENTO
[Lumpy Gravy] 1
Resumo: O artigo consiste em um trabalho especulativo de estética musical com
um comprometimento particularista, ou seja, não se interessa em sistemas
estéticos como os conhecidos tradicionalmente pela filosofia. Aqui, fazer filosofia
da música ou estética musical significa elucidar, expor e mesmo buscar soluções
que expressem verbalmente o que seja o teor, o significado ou uma questão
presente em uma obra específica. No presente caso, expomos e buscamos elucidar
e apontar verbalmente para elementos presentes na obra Lumpy Gravy de Frank
Zappa.2
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Álbum: Frank Zappa, ©1968, Rikodisc.
Ricardo Miranda Nachmanowicz é graduado em Filosofia pela UFMG, possui mestrado em Música pela
UFMG, e mestrado em Estética e Filosofia da arte pela UFOP. Desde 2013 é Doutorando em filosofia
pela UFMG. E-mail: [email protected]
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A atitude de Duchamp ao colocar um mictório em exposição num museu
poderia, não facilmente, inspirar uma estranha tentativa de um simples criador de
animais do Zoológico, em sua intenção ainda primeva, expondo alguns macacos mortos.
E isto, longe de ser um gosto pelo errado, poderia converter-se em uma grande
admiração pelo descabido, por aquilo que não cabe, daquilo que não tem lugar.
Entender o que cabe neste mundo e o que não cabe é uma simples tarefa, a de
educação à mesa, mas quando senta-se à mesa um filho com penteados extravagantes o
avô diz calmamente: “calma minha filha, está cabendo no mundo, neste mundo está
cabendo”. O avô sabe, por experiência, que as coisas mudam de lugar.
O banheiro fora uma casinha, só, e após muito tempo entrou para dentro das casas, os
concertos eram realizados no jardim, onde se enterravam os mortos, que agora se
afastaram a um cemitério particular, longe da cozinha e das salas de concerto, o jardim é
apenas um lugar para se admirar.
Este processo de distinções foi contínuo e podemos remetê-lo quase que universalmente
a todo processo civilizatório, não identificado apenas ao processo ocidental, mas à tarefa
cultural que o Humano se colocou. A diferenciação e a rejeição das ferramentas
naturais, do alimento cru, da morada sob os atributos da geografia, sempre procedeu de
um único modo: a separação.
O divórcio é um imperativo científico, necessário, traz um bem e força uma
contranaturalidade, esquecida na próxima geração, nada que o tempo não dê conta.
Porém, em seu ato criativo, a separação que exigimos é uma dor, o mundo todo onde
originariamente era o lugar da minha morada e alimentação, eu me separo dele, e sinto a
perda, mas uma vantagem, minha exclusão do convívio com os outros bichos me fixou
num lugar, e meu desejo é ambiguamente o de permanecer em casa.
Quando tratamos de um “lugar cultural”, de um produto artístico, temos que transpor o
campo da necessidade, da comodidade e da fisiologia para o da percepção, do
agradável, da identificação, da técnica. A pergunta que quero fazer é: De que forma,
dentro da arte, mudamos os móveis de lugar?
Sim, na música, certo processo social, estético, perceptivo e analítico vem ao longo da
história distinguindo suas próprias funções, ou criando mesmo a categoria de função
social, ou função espiritual, ou religiosa, ou mesmo, funções estéticas, ou função
alguma. Porém, quem é o executante destas distinções, quem decide quem fica e quem
vai? Fiquemos por enquanto com a história.
Uma certa percepção que antes se incumbiu de distinguir o comer do dormir,
pois que poderia ter sido entendido enquanto processos causais e seqüência necessária,
se encarregou de separá-los em ambientes diversos, atestando o seu compromisso com a
história. Esta percepção e esta nova distinção é documentada e materializada em forma
de cômodos e inserido na sociedade em forma de casa. Às vezes sendo contrariada, pois
a distinção entre festas musicais e enterros pode ser abolida propositadamente se os
parentes se reunirem para "beber o defunto", estende-se o cadáver sobre a mesa da
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cozinha, e confraterniza-se até a hora de seu sepultamento. Trata-se de uma festa
extravagante, onde uma dor profunda autoriza a dessacralização de toda a vida mesmo.
A percepção musical, em sua história, fez suas escolhas e nomeou cada uma
delas quando se distinguiam: ópera, cantata, sonata, samba, erudita, instrumental, escala
maior, etc. Ou classes de diferenças: cânone, contraponto, fuga e serialismo.
Distinguimos entre música de elevador, música de ambulância e música de ginástica,
música barroca, clássica ou romântica, o interesse de ouvir música se diferenciou e cada
interesse pegou para si um nome próprio.
No entanto, o fato de o banheiro ter se distanciado dos museus não configura
problema algum, mas pode vir a ser um problema o fato de aquilo que foi matéria dos
museus possa estar entulhado e trancafiado em um banheirinho, pois não há muita regra
para estas distinções, ou, há regras demais envolvidas.
Frank Zappa parece ser o rei do entulho, a distinção musical parece ser o seu
assunto e a primeira impressão que temos de Lumpy Gravy é a de um completo
devaneio desgostoso. Aquele que possui alguma predileção musical se sente traído, pois
certamente se identificará com um trecho que logo será interrompido bruscamente
causando dúvidas sobre a real integridade da obra, ou da moral do compositor.
Quando os estilos estão todos bem definidos, o ouvinte se põe à tarefa de
reconhecê-los e Frank Zappa dispõe todos em sua bandeja, um rock de garagem de
péssima qualidade, um complexo jogo timbrístico e rítmico, seguido por sons
eletroacústicos pueris e concluindo em um tape de solo de guitarra colocado em
velocidade rápida. A quantidade de objetos é tal que aquela tarefa de reconhecer os
estilos se torna ineficiente, surge uma ansiedade sobre o destino da obra e a mera
identificação do estilo não pode perfazer o conteúdo musical, se o ouvinte desiste destas
tarefas se perde em sensações desconexas, que é o gosto de alguns. Não quero aqui me
ater em “debates”, estou querendo apontar para uma característica da música de FZ,
para um dado sensível, sua inquietação não se trata de mera especulação.
Neste ponto o conteúdo musical se coloca em questão, pois, uma música que se
desfaz por inúmeras intenções, fracassos e acertos não quer propriamente estar acabada,
como uma grande obra artística é capaz, ela quer expor certas questões acerca do
conteúdo, há sim um argumento cético, discorre-se a respeito de todas as possibilidades
do assunto, e no final postula-se a impossibilidade... do conhecimento absoluto, ou, da
música pura.
Bordões sonoros significando não mais que exatamente o seu próprio
preconceito, utilização de técnicas “contemporâneas” a extrair um conteúdo
“romântico”, ou a supervalorização de um trecho e ao mesmo tempo a introdução de
timbres com um tom de deboche, tudo é dissimulado e nisto consiste o contrário do
alienado. A demonstração do domínio técnico e conceptual do elemento musical
coadunam a força de seu experimento cético e nos conduz a um questionamento sobre a
unidade da obra musical, de um fenômeno restrito à partitura ou circunspecto pela
sociedade, pelos costumes, pela história.
A respeito da unidade da obra, por mais inegável obviedade, é este um assunto
que os “grandes compositores” tomam para si, fazer o material refrear e multiplicar-se
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como um ser só, o adjetivo original, remetendo-se à origem. Esta obra original,
esquecida e vaporizada no tempo, guardada e esfacelada em guetos de memória, é desta
grande obra que FZ retira a matéria, intenção e conteúdo a transformá-los em entulho,
tentando deixar a grande obra cair em contradição, duvidando de sua unidade, mesmo
que acatando esta tarefa, de uma “obra”, sua aceitação como tal se dá simplesmente por
se tratar de mais uma distinção feita pelo ouvido ou por outras relações estabelecidas.
Mas duvidar da unidade só foi possível porque Lumpy Gravy não se colocou como
grande obra, é uma obra que traz questões musicais com polaridade invertida, mas esta é
uma distinção específica de sua música.
Aqui devemos saber o que é Lumpy Gravy. Foi o quarto disco lançado por
Frank Zappa, em 1968, e o primeiro projeto solo de FZ sem nenhuma banda de apoio.
Zappa descreveu este disco como: “a curiously inconsistent piece, which started out to
be a BALLET, but probably didn't make it." É apesar de tudo uma obra orquestral,
porém entrelaçada com antigas gravações e diálogos non-sense, entre outros diversos
materiais e técnicas, principalmente ligados à musica concreta. Este álbum é
comumente lido pela crítica como uma excêntrica mistura entre elementos eruditos e
vulgares, ou seja, não poderia se enquadrar na tendência do final da década de 60
daquele século, de se procurar uma fusão comercial entre os elementos do jazz, rock, e
técnicas eruditas de composição.
O que resulta desta desconstrução da forma? Desta hábil percepção da música de
Stravinsky?
Resulta a desconstrução da distinção atual da escuta, de um projeto que veio à
tona a partir da metade do século XX e que se vê hoje em dia plenamente realizado
enquanto Indústria Cultural. Uma projeção não linear, não apenas de um passado da
música, mas de um passado da própria escuta, onde ela era capaz de fazer uma sinfonia
completa, que, passando pelos urros do animal desafiador, ao som da lâmina, do vento
nas folhagens, do som dos comuns, da música festiva, e encerrando-se com o uivo
distante e o som calmo do coração na hora do descanso. Uma audição única e constante,
um significado que é capaz de transpor materiais, conceitos e situações, porque somente
musical.
A distinção entre tantos estilos, trazidos pela indústria fonográfica, categorizou a
escuta e uniu um ethos, um pathos e uma cultura em um único e singelo momento, num
single, em um LP. E neste contexto, trair a “categoria” perceptiva é abrir o sentido
musical, neste ponto também a obra original está categorizada, mesmo a contra-gosto.
Obviamente com tantas referências musicais sendo citadas e para possibilitar
que as tenhamos como meras citações, Lumpy G. incorre/recorre a superficialidades, a
fazer rápidas exposições, a não haver desenvolvimento, colagem, e assim, justamente
assim, FZ consegue seduzir o ouvinte à escuta de uma grande obra. As distinções
devem ser contra-feitas.
Resumindo as questões aqui impostas, Lumpy Gravy quer que tanto o ouvinte
leigo como o profissional adquira uma postura radical ao se escutar música, pelo
simples e improvável caminho de ouvi-la, significá-la, sem se entregar a ansiedade de
um single.
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FZ estabelece um tipo de diálogo musical que parece flertar com o conceptual.
De toda forma, seu material musical contém os problemas que tentou resolver: a forma
“diálogo” poderia perfazer um estilo, concretizar uma distinção?
Ah, e a respeito do criador do Zoológico do primeiro parágrafo, não sei falar mais sobre
ele.
“... porque algumas coisas são entediantes.”3
Links:
http://www.youtube.com/watch?v=apTPXPBMBXk
http://www.youtube.com/watch?v=IYPjefGzeCg
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Frank Zappa, frase final da obra Lumpy Gravy.
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