“O humanismo lírico de Guignard”.

Transcrição

“O humanismo lírico de Guignard”.
O HUMANISMO LÍRICO DE GUIGNARD*
Frederico Morais
Frederico Morais é crítico de arte
Críticos, artistas, poetas, diretores de museus, galeristas, colecionadores, leiloeiros,
empresários, banqueiros, todo mundo ama Guignard. Eu não tenho dúvida de que, se
consultados, os visitantes (especialistas ou leigos), adultos e crianças, brasileiros ou
estrangeiros, de uma exposição reunindo nossos mais destacados modernistas, irão apontar
Guignard como o mais empático e comunicativo, o que realizou a obra mais envolvente. E
comovente.
Desde 1929, quando o artista se fixa no Rio de Janeiro, depois de viver por mais de 20 anos
na Europa, esta unanimidade existe. De Mário de Andrade ao antropófago Oswald de
Andrade, de Segall a Portinari, de Iberê Camargo a Amilcar de Castro, de Manuel Bandeira
e Cecília Meireles a Carlos Drummond de Andrade, de Gilberto Chateaubriand a Sérgio
Fadel, de Franco Terranova a Jean Boghici, de Juscelino Kubitschek a Carlos Lacerda,
todos, até aqueles que por alguma perversão intelectual viram no artista a representação do
mal, se deixaram seduzir por sua obra em algum momento de suas vidas. Ou para sempre.
Muitos foram seduzidos pelas qualidades do professor, o qual, sem adotar qualquer método
rígido de ensino, a não ser a prática continuada do desenho, formou várias gerações de
artistas brasileiros, tanto no Rio de Janeiro quanto em Belo Horizonte.
Cada nova geração de artistas brasileiros, redescobre em Guignard um referencial, um
ponto de apoio, um estímulo. Rubens Gerchman, por exemplo, encontrou em obras como
Os Noivos e A Família do Fuzileiro Naval, afinidades temáticas. Para Guignard, entretanto,
não se tratava, como em Gerchman, e também, um pouco mais tarde, em Luiz Zerbini, de
uma apropriação crítica e tropicalista do kitsch, mas de uma manifestação de seu cândido
humanismo, de sua adesão à “alma brasileira”. Da mesma forma, para alguns artistas da
chamada “geração 80”, como Beatriz Milhazes, ele antecipa, em sua dimensão decorativa,
o lado pattern da arte atual, que trouxe a pintura de volta à bidimensionalidade, a superfície
da tela dinamizada por arabescos e signos gráficos. Finalmente, são os novos críticos, as
vezes tão dogmáticos, que começam a reavaliar a criação guignardiana à luz de novas
interpretações teóricas.
E se hoje, esta unanimidade é tão evidente, Guignard nada fez no sentido de impor sua
personalidade e sua obra. Dizia-se das capelas mineiras à época colonial, que elas eram
simples e modestas por fora, para que não assustassem o fiel com manifestações de fausto.
Era no interior da igreja que o fiel, quase em êxtase, deveria ser colhido pela beleza da talha
e da imaginária, e assim melhor amar a Deus. Com Guignard ocorre algo parecido. Num
primeiro contato, suas obras parecem demasiado modestas. O deslumbramento vem aos
poucos, com a descoberta de um mundo de sutilezas temáticas e formais. São os longes da
paisagem ouropretana e fluminense, a aura luminosa emoldurando os cabelos da modelo, o
invólucro da luz na estrutura gótica dos bambus, a estesia de mil flores que se abrem para a
paisagem, o poema épico do Sacrifício de Tiradentes, a féerie junina, a musicalidade de
suas Fantasias de Minas, o apuro ornamental, o desenho primoroso, o requinte da cor, as
matérias nuviosas.
Guignard nunca foi um erudito, um teórico afeito às discussões estéticas. Na Europa, como
no Brasil, passou ao largo das últimas tendências e das inúmeras rupturas no interior da
história da arte. Não esteve ligado a grupos nem se filiou a movimentos. Não teve apoio
oficial. Só tinha a seu favor, a verdade de sua arte. E foi com ela que nos conquistou.
Como não era um intelectual, pintou a realidade ao seu redor. Figurou os frutos e os objetos
sobre a mesa, as flores junto à varanda, os instrumentos de trabalho em seu ateliê, a música
que ouvia, ilustrou poemas que leu, retratou amigos, alunos e a si próprio. Esteve sempre
atento à paisagem que o circundava. No Rio, pintou o Jardim Botânico, em Niterói, a Praia
de Jurujuba, em Itatiaia o Vale do Paraíba, em Minas, as cidades do Ouro e do diamante,
Lagoa Santa; em Belo Horizonte, a Serra do Curral e o Parque Municipal. Com solida
formação artesanal, enfrentou todos os gêneros da pintura – paisagens, marinhas, naturezasmortas, flores, retratos, auto-retratos – além de temas religiosos, históricos e alegóricos. E
nunca abandonou o desenho.
Num ensaio de 1984, “Retrato e auto-retrato da arte brasileira”, afirmei que há em nossa
arte uma componente lírica, visível ou legível em artistas tão diferentes como Volpi,
Antonio Bandeira, Aluísio Carvão, Maria Leontina e até mesmo numa obra radical como
Homenagem a Cara de Cavalo, de Hélio Oiticica. É esse lirismo – nosso humanismo – que
dá à arte brasileira equilíbrio emocional. De um modo geral, o artista brasileiro é contra
toda forma de autoritarismo. Uma afirmação como a de Siqueiros sobre o muralismo
mexicano – “la única ruta es la nuestra” parece inviável no Brasil. Uma exceção terá sido o
dogmatismo concretista. Guignard representa o auge desse humanismo lírico na pintura
brasileira, como também do que Lourival Gomes Machado denomina, a propósito de alguns
temas recorrentes na obra do artista, de “lirismo nacionalista”, e que ele define como “um
passo legítimo para a segunda fase do Modernismo brasileiro”.
Como é sabido, a vida de Guignard foi marcada por uma série de acontecimentos
dolorosos. Talvez tudo tenha começado com o lábio leporino. Nasceu com abertura total
entre a boca, o nariz e o palato. Sua mãe teve muito trabalho para amamentá-lo e, devido à
sua dificuldade para deglutir, foi uma criança desnutrida, frágil e com problemas de
crescimento. A série de operações para corrigir este defeito congênito se prolongou até a
juventude e resultou no fechamento parcial do lábio superior, mas não impediu a
regurgitação de alimentos nem diminuiu sua dificuldade para falar.
O crítico Clarival do Prado Valladares, com sua linguagem de médico-patologista, fez um
retrato cruel do menino Guignard, “cuja presença era cômica e repulsiva”, “dando horror e
compaixão aos seus pais”. Em 1945, Rubem Navarra descreveu assim seu encontro com o
artista, na Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte: “Reconheci-o de longe, os mesmos
gestos do ator aposentado. O balanceio do corpo segue o ritmo da ventania que passeia
pelas avenidas. Em sua animação bastante posada, o eufórico bufão pouco falta que não
executa piruetas clássicas. A infame doçura do ar mineiro que lhe bate nos nervos, o faz
transbordar em gestos. Sua esquisita voz de Frankestein tem o agouro teatral dos antigos
expressionistas. Guignard, Guignol”.
Este retrato que o notável crítico paraibano, à época residindo no Rio de Janeiro, fez do
artista, capta apenas os sinais exteriores da sua personalidade complexa, mas não avança no
sentido de compreender as razões desse comportamento. Afinal, incapaz de completar as
palavras, de armar a frase, ele apelava muito para a mímica, desenvolvendo uma
gestualidade intensa, mas quase sempre carinhosa e bem-humorada. O lábio leporino o
incomodava, claro, e ele não escondia isto, sendo fácil perceber nos seus muitos autoretratos este defeito físico, transferido, algumas vezes, para suas figurações de Cristo,
definidas por Carlos Drummond de Andrade, como “auto-retratos expressionistas”. Certa
vez, ao ser homenageado no Automóvel Clube de Belo Horizonte, desculpou-se, bemhumorado, pelo defeito físico, “do qual eu não tenho culpa”.
A fragilidade da criança, com a conseqüente necessidade de protegê-la, criou uma relação
muito especial entre Guignard e seus pais. Adorava a mãe, da qual disse certa vez que o
“beijava com doçura. Beijo leve como pássaro pousando sobre a superfície de um rio. Era
bela, tocava piano e tinha linda voz”. Admirava o pai, que suicidou-se com arma de fogo,
deixando uma fortuna que teria sido dilapida pelo padrasto, nobre arruinado do Sul da
Alemanha. Este, apaixonado por corridas de cavalos, quis fazer do enteado um jóquei, e,
mais tarde, para se ver livre dele, internou-o numa escola de agronomia em Vevey, no
interior da Suíça. Guignard descrevia-o como um homem ríspido e autoritário, referindo-se
a ele apenas como “o barão de tal e tal” ou como “o malandro do barão”.
Mas os infortúnios do nosso artista não terminaram ainda. Em Munique, apaixonou-se por
Anna Doring, estudante de música, casando-se com ela três meses depois de conhecê-la.
Mas em plena lua-de-mel é abandonado pela jovem esposa de 25 anos, que viria a falecer
sete anos depois, tuberculosa, tendo sido enterrada como indigente. Sua mãe e sua única
irmã, ambas de nome Leonor, morreram jovens, quando o artista ainda se encontrava na
Europa, e, do “barão de tal e tal”, não se teve mais notícias. Assim, quando retornou ao
Brasil, em 1929, estava absolutamente só e na miséria. Apesar de tantos atropelos, não se
tornou uma pessoa amarga ou ensimesmada. Por isso, mesmo nos momentos mais
doloridos de sua vida, introduz em seus desenhos e pinturas, notas de puro humor e
deliciosa fantasia.
Todos estes lances biográficos transparecem em sua pintura de modo tão intenso, que é
impossível não considerá- los na avaliação de sua obra, marcada por uma poesia mesclada
de nostalgia e por um lirismo que será a base de seu humanismo criador. Em Guignard,
portanto, há uma perfeita simetria entre obra e vida.
Como um demiurgo, Guignard retirou os objetos de sua banalidade, de seu prosaísmo
cotidiano. Marcou com extrema sensibilidade e ternura todos os locais onde morou ou
trabalhou: pensões, hotéis, mansões, escolas. Era através de um desenho feito no bar, de um
retrato, de um cartão de natal, de um arabesco pintado sobre o móvel, de um bilhete
convidando suas alunas da escola do parque para um chá, ou para posar; com uma nota de
elogio ou crítica do trabalho, que ele deixava sobre o cavalete de seus “colegas” da “Flor de
Abacate”, junto com um vidro de verniz por ele preparado, que Guignard se comunicava
com as pessoas, com o mundo que o rodeava.
Emerge aqui um aspecto fundamental de sua criação: a dimensão decorativa. Este capítulo
da produção guignardiana pode ser analisado em três vertentes. A primeira é constituída
pela obra propriamente decorativa, aquela que extrapola os limites da tela e do papel, para
se fixar em tetos, murais, painéis, móveis, objetos vários. Neste particular, a obra-prima é o
teto que pintou, em 1943, no palacete da rua Rumânia, no Cosme Velho, hoje sede do RioArte, no qual “mostra” a paisagem de Olinda. Na verdade, trata-se de uma reinvenção de
Olinda, pois ele nunca esteve na cidade pernambucana. Mas esta Olinda reinventada por
Guignard é, simultaneamente, um símbolo da criação do mundo. Nela encontramos os
extremos da vida e da morte, do homem e de Deus, do trabalho duro e do lazer, da natureza
e da religião, do campo e da urbe, do mar e da floresta, da coragem e do medo. Lutando
contra o mar, roçando a terra, orando, enterrando seus pares, brincando, o homem completa
e constrói a paisagem de que é parte.
A segunda vertente, é constituída por cartões natalinos ou de aniversário, avisos, bilhetes,
convites e dedicatórias para seus alunos e os cadernos com “pensamentos”, aforismos e
desenhos com que presenteou algumas amigas. Podem ser situadas nessa mesma vertente,
os inúmeros “desenhos de bar” e outros, cheios de irreverência, nos quais também se autorepresenta, metalinguisticamente, e que incluem textos que falam de seu encantamento pela
vida ou pela paisagem que tem à sua frente e, finalmente, as ilustrações para poemas.
A terceira vertente compreende aquilo que, de decorativo, encontra-se na pintura de
cavalete, nos retratos ou arranjos florais, no estampado dos vestidos e na ornamentação em
torno de seus modelos femininos e até no modo como assina muitas de suas telas e painéis.
Mais uma vez, é a biografia do artista que explica este refinamento decorativo. Guignard
nasceu em Nova Friburgo e morou em Petrópolis, cidades serranas, que guardam ainda hoje
uma certa aura de nobreza. Seus avós eram franceses. O paterno foi cabeleireiro da corte do
Imperador, o materno, comendador abastado. O pai teria sido fiscal de impostos em
Petrópolis, proporcionando à família bem-estar econômico. Educou-se na Europa, vivendo
em cidades com fortes tradições culturais, repositórios da história da arte, como Munique,
Florença e Paris. E durante algum tempo, por volta de 1923, em Munique, atuou como
negociante de arte e antiquário. De volta ao Brasil, sozinho e empobrecido, como vimos,
pode contar com a ajuda de amigos, tendo sido hóspede de famílias endinheiradas, de
embaixadores, governadores e ministros, morando em residências elegantes de
Copacabana, Botafogo, Gávea ou Santa Teresa. Pode até vestir-se com certa elegância,
freqüentando cassinos e salões da moda. Em Belo Horizonte, a partir de 1944, foi recebido
pelas famílias mais tradicionais, gente culta e refinada, ligada ao Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, continuando seu convívio com artistas renomados, poetas, escritores,
médicos, cientistas, políticos e livreiros. Nessas residências, onde passou longas
temporadas, encontrou um decor barroco e/ou rococó: móveis, imaginária, prataria, objetos,
livros de arte e boa música. Guignard reinava, participava de festas, recebia visitas ilustres,
era motivo de todas as atenções. Reencontrava, assim, o ambiente familiar que lhe faltava
desde que retornou ao Brasil em 1929.
Como Manoel da Costa Athayde, nos tempos do ciclo do ouro e do Barroco, Guignard era
um artista completo. E como ele, era afável, educado, galanteador, maneiroso no trato com
as autoridades e os poderosos, insinuante, nunca se esquecendo de beijar as mãos de u’a
mulher bonita. Guignard não dourou nem prateou altares barrocos, não fez a policromia de
imagens nem foi o encarnador magnífico das esculturas do Aleijadinho, mas com muito
gosto e sensibilidade soube complementar o desenho elegante de armários, arcas, bancos e
tantos outros móveis coloniais com delicados desenhos de flores e corações, dando aos
ambientes domésticos uma aura de refinamento e arte. Respondia assim, com amor,
galanteria e arte, à acolhida que lhe davam.Toque de mestre, toque mágico.
Receita de artista
A carta que enviou ao desconhecido Mário Maués, aconselhando-o no seu aprendizado
artístico, deve ser considerado o documento-base para o exame da personalidade e da obra
de Guignard. Ela contém indicações preciosas que ajudam a esclarecer vários pontos
obscuros de sua biografia, especialmente sua formação artística. Datada de 1952, foi
divulgada pela primeira vez no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, pelo crítico Jayme
Maurício, 10 dias após sua morte em Belo Horizonte, ou seja, em 6 de julho de 1962.
Não se trata, evidentemente, do único documento importante sobre Guignard. O próprio
artista se encarregou de deixar outros, entre eles, a curta autobiografia reproduzida no
catálogo da mostra-retrospectiva realizada no Museu de Arte de Belo Horizonte, em junho
de 1963.
Contudo, a “carta-receita” a Mário Maués é uma espécie de síntese de todos os demais
documentos e, isoladamente, assume importância igual à que tem, em relação ao
Aleijadinho, os “Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa, distinto
escultor mineiro mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho”, datado de 1858, de autoria
de Rodrigo José Ferreira Bretas.
Frase por frase, palavra por palavra, a leitura da carta, além de esclarecer e fornecer dados
sobre a vida-obra de Guignard, é riquíssima de indicações sobre o modo de ser do artista,
seu relacionamento com a arte, com o circuito de arte e, sobretudo, com as pessoas.
Extraordinariamente educado, maneiroso, galante, Guignard se mostra, na carta, ao mesmo
tempo, adulto e infantil, humilde (“falando de minha pessoa”) e pretensioso (“sei o que
estou fazendo”), severo na crítica e condescendente no comentário. Optando, ora pelo
tratamento senhorial (“vossas qualidades”), ora sugerindo intimidade (“o amigo”),
referindo-se a si próprio, as vezes, com ingênua arrogância (“depois de Portinari sou eu, e
não concordando com tudo o que ele faz”), outras, com terna humildade.
Divulgo e comento, a seguir, a carta.
“Muito prezado senhor e amigo (1)
Infelizmente acontece que o amigo, como tantos outros, foi ludibriado em estudar desenho
copiando figurinos.
Vejo mais uma vez que tais “professores” de colégio (2) não entendem nada de nada. E o
grande mal está aí.
Não há outro jeito do que começar de novo, mas da seguinte maneira: 1ª. prova:
Num tamanho de 15x 10 cm desenhar logo do natural (paisagem). (4, 7)
Material: um lápis faber 3H e borracha (3). Desenhar essa prova com o maior carinho
possível. Poderá levar dois dias, ao todo cinco horas.(4) Sempre desenhar do natural (4),
movimentos de corpos, natureza-morta (5) ou retrato, este último o mais difícil (6). A
primeira prova 15x 10 cm é somente para ver as vossas (1) qualidades sob o modo de ver
mas é também prova importantíssima. Pelos trabalhos emoldurados, parece haver boa
vontade e qualidades para fazer algo. O melhor seria o amigo fazer uma prova com a minha
presença que eu logo lhe indicaria o caminho certo.
Na paisagem, tudo o que está perto será mais escuro e a profundidade mais clara (7).
Tempo de sol. Fiz meus estudos na Alemanha sob uma disciplina muito a rigor. 3 anos de
pintura e 6 de desenho (8). Custou muito mas foi. E hoje estou contentíssimo de ter
estudado tanto. Naturalmente aprendi pelos modos acadêmicos, mas depois meu instinto
pessoal me guiou para minha personalidade e liberdade completa. (9).
Dizem por aí que muitos artistas modernos não sabem desenhar. É um grande engano, eles
na maioria o sabem muitíssimo bem, como Picasso, Raoul Dufy, Van Gogh e até dois
super-realistas, Max Ernst e Salvador Dali. Também Leonardo da Vinci e o maior de todos,
Botticelli (10).
Muitos artistas foram gênios natos, outros grandes talentos e alguns apenas talentos
querendo aprender (10).
Minha profissão como artista requereu muito exercício, muita boa vontade e principalmente
uma grande tenacidade. Sem isto nada se faz (11).
Visitar a miúdo boas exposições de arte, estudar mais a miúdo originais ou boas
reproduções dos antigos. Quando o amigo tiver tempo, vá estudar umas reproduções que
estão na Biblioteca Pública do Rio, Salas de estampas, pastas Piper Ver/ag, Zeichnungen
A/ter Meister, volumes 1 a 12.
As melhores estão nas pastas 7 a 10. Elas são tão perfeitas que até parecem originais. (12).
Falando de minha pessoa, sou muito combatido, mas isto não me faz nenhum mal porque
tenho muita prática e sei o que estou fazendo. (11). Apesar de brasileiro nato, já sou
internacional, tendo exposto em Paris, Nova Iorque, Berlim, Veneza, Montevidéu e Buenos
Aires (13). Só daqui a cem anos é que nós seremos melhor considerados. (10). Depois de
Portinari sou eu. Não concordando com tudo o que Portinari faz. (14). Espero que o amigo
me tenha compreendido e talvez teremos em breve possibilidades de nos encontrar e falar
melhor sobre a matéria “aprender”. (3).
Com todo o meu respeito e um abraço cordial, (1)
Alberto Guignard (15).
Guardar esta “receita” porque é muito importante.”
1 - Muito prezado senhor e amigo
Jayme Maurício, ao divulgar a carta, nada esclarece sobre seu signatário, grafando o
sobrenome Manés. Nascido em Manaus, AM, em 1918, Mário Maués transferiu-se para o
Rio de Janeiro, onde, a partir de 1963, freqüentou o Instituto de Belas Artes, hoje Escola de
Artes Visuais do Parque Lage, àquele tempo, instituição rançosamente acadêmica.
Participou do Salão Nacional de Belas Artes e outros certames igualmente acadêmicos nos
quais conquistou menções honrosas como desenhista e pintor. Aparentemente não houve o
encontro sugerido por Guignard e Maués optou por uma formação acadêmica, uma década
depois. Quando escreveu sua “receita”, Guignard residia em Belo Horizonte, onde era
diretor da escola que hoje leva seu nome. E foi, portanto, como professor mais do que como
artista, que Maués o procurou, enviando-lhe alguns desenhos emoldurados.
Usando várias vezes a palavra amigo, despediu-se dele, no fecho da carta “com todo o meu
respeito e um abraço cordial”, Guignard, educadíssimo, sempre se dirigiu aos seus alunos
como colegas ou mesmo como mestres, que é como se refere a Geza Heller e Iberê
Camargo, em carta que dirigiu ao primeiro, em 1943. Na verdade, mais que professor,
Guignard considerava-se um companheiro, evitando a relação vertical e impositiva entre
mestre e aluno. Como testemunhou sua aluna, a pintora mineira Maria Helena Andrés:
“trabalhando com seus alunos, reviveu de maneira quase única o antigo mestre, figura
desaparecida nos tempos modernos”.
Para seus alunos, deixava bilhete e recados: “prezadas senhoritas e distintos cavalheiros...”
Mas não é só: certa vez, surpreendeu um auditório de crianças, começando a aula com o
tradicional “meus senhores e minhas senhoras”. Vivendo em estado de encantamento, ele
mesmo meio criança, meio anjo, Guignard interessava-se por todas as pessoas, fugindo às
hierarquias e à rígida estrutura social.
2 - Nunca acreditei ser professor
Em carta que dirigiu ao escritor Múcio Leão, de quem realizou um belo retrato, Guignard
dizia: “Nunca acreditei ser professor. Nasceu sem querer, e vai indo muito bem”. Naquele
momento, 1952, ele estava certamente se referindo à sua experiência como diretor da
“escola do parque”, na capital mineira. “A escola é ótima, o mestre de primeira ordem.
Tudo induz a crer que em Belo Horizonte vai se formar dentro de dois ou três anos mais um
núcleo forte de artes plásticas no Brasil", escreveu Mário de Andrade após visitá-la em
setembro de 1944. Estava certo. Guignard formou várias gerações de artistas mineiros que
iriam se destacar na arte brasileira, como, para citar apenas três nomes, Amilcar de Castro,
Mary Vieira, e Farnese Andrade.
Na verdade, sua experiência como professor já era relativamente longa. Dois anos depois
de retornar ao Brasil ainda indeciso sobre seu futuro como artista, começou a ensinar
desenho e pintura na Fundação Osório, até hoje em funcionamento no Rio Comprido, que
atendia a cerca de 200 crianças, órfãs de militares. Ali ensinou até 1943. Cassilda Martins,
diretora de ensino da fundação, definiu o método de ensino de Guignard como intuitivo e
instintivo: “Despertar na criança a idéia e o senso da linha, a expressão e o valor do
colorido, dar à aluna liberdade de expandir sua imaginação sem peias restritivas, tal é o seu
objetivo para a iniciação, que depois se disciplinará na observação, na cultura, no estudo, na
prática da arte. Ele nada impõe e tudo consegue das crianças”. Durante seis meses de 1936,
ensinou desenho livre no Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, ao lado de
Portinari. Contudo, por alguma razão ainda não suficientemente explicada, não teve êxito.
Numa carta que endereçou a Portinari, sem data, lamenta o seu “caso”: “Você bem conhece
a minha maneira de trabalhar e sinto muito dever lhe dizer que tudo vai ao contrário, e
assim para mim, como artista, com idéias justas e leais, essa causa me magoou muito”.
Em 1942, a convite do Diretório Acadêmico da Escola Nacional de Belas Artes, Guignard
expôs, ali, desenhos e pinturas realizados durante sua estada, entre 1940 e 1942, no Hotel
Repouso, em Itatiaia. A partir dessa mostra, passou a freqüentar a escola, interessando-se
pelos alunos, que, “aliás, começaram a desenhar como ele. Ficava batendo papo na porta da
escola, saia com os alunos, todo mundo apaixonado por ele, deixando os professores
furiosos”, conta Maria Campello. Um dia anunciou, pelos jornais, sua intenção de dar aulas
gratuitas no terraço do prédio da União Nacional dos Estudantes (Praia do Flamengo).
Apareceram 30 alunos, a maioria da própria ENBA, entre os quais estavam Iberê Camargo,
Geza Heller e Elisa Byington. Na verdade, não eram alunos no sentido tradicional, mas
“pessoas que entravam e saíam à vontade, não havia matrícula, ninguém se conhecia pelo
nome. Cada um sentava onde podia”. Iberê, Geza e Elisa concluíram que era impossível
continuar trabalhando naquelas condições. Decidiram, então, formar um grupo menor,
convidando Guignard para orientá-los. O local foi descoberto por Iberê: um casarão situado
à rua Marquês de Abrantes, 4, na fronteira, entre os bairros do Catete e Flamengo, onde,
antes funcionara um cabaré chamado “A flor de abacate”. Desativado, transformara-se num
pardieiro, habitado por muitas famílias. Por isso, quando Manoel Bandeira escreveu uma
crônica sobre o grupo, referiu- se a esse ateliê coletivo como “A nova flor de abacate”.
Além dos três, integraram o grupo Alcides da Rocha Miranda, Vera Mindlin, Milton
Ribeiro e Werner Amacher. A única mostra do grupo teve lugar, no final de 1943,
novamente na Escola Nacional de Belas Artes, e recebeu críticas elogiosas. Enciumado, o
diretor da escola, fascista notório, estimulou alguns alunos a desmontá-la violentamente,
resultando na destruição de várias obras, provocando repulsa geral do meio intelectual
carioca. Com sua contundência habitual, Iberê, em entrevista aos jornais, condenou a ação
ignóbil, enquanto Guignard limitou-se a dizer que “só queria mostrar meu método de
ensino, demonstrar como é que os estudantes devem desenhar”. Convidado pelo então
prefeito, Juscelino Kubitschek, a dirigir o recém criado curso de Desenho e Pintura da
capital mineira, Guignard transferiu-se, ainda em 1943, para Belo Horizonte, e o grupo se
desfez.
Em sua carta a Mario Maués, condena o modo como o desenho é ensinado nas escolas de
segundo grau, mas sua crítica, obviamente, pode ser estendida às escolas de belas artes,
cujo ensino se funda na cópia de originais acadêmicos. Para Guignard, sem dúvida,
“aprender” fazer arte tinha um sentido muito mais amplo que um simples artesanato ou o
domínio de uma técnica especifica. Significava uma ampliação da percepção, para não
dizer do próprio viver. E é por isso, certamente, que além do exercício proposto, queria
discutir com seu “aluno”, a “a matéria aprender”.
3 - Desenhar Iogo do natural
O desenho assume em Guignard posição de absoluto destaque. Em Munique, onde estudou,
só foi autorizado por seus professores a pegar em um pincel depois de desenhar
exaustivamente, durante vários semestres. Tudo, portanto, começa com o desenho. O
próprio artista, ao destacar as três fases de sua carreira, diz que a primeira delas, 1924/1929
é de “muitos desenhos”. Na verdade, Guignard desenhou a vida inteira. Já pintor
consagrado, as principais fases de sua obra eram precedidas ou pelo menos acompanhadas
de intensa produção desenhística: paisagens de Itatiaia ou cidades barrocas de Minas. Em
seu período carioca, exercitou o desenho com seus alunos, ao mesmo tempo que realizou
ilustrações para jornais (suplemento “Letras e Artes”) e livros (entre outros, os “Poemas
traduzidos”, de Manuel Bandeira) o mesmo fazendo, mais tarde, em Minas Gerais
(ilustrações para os livros de Lúcia Machado de Almeida sobre Ouro Preto, Sabará e
Diamantina). E em sua derradeira viagem à Europa, em 1961, pouco antes de morrer,
retomou o desenho, passando para o papel o grafismo da velha arquitetura parisiense.
Rubem Navarra comentando o Salão Mineiro, realizado dois anos depois da chegada do
artista a Belo Horizonte, pergunta se “ele mesmo com todo o seu grande talento, estará livre
do abuso desenhístico em sua carreira”, vendo motivo de alarme em sua “obsessão gráfica”.
Preocupação descabida: o desenho nunca ameaçou a integridade de sua pintura e, se em sua
obra, ele ganhou autonomia, foi sempre tratado um pouco à antiga. O lápis Faber 3H,
duríssimo, cujo emprego ele recomenda a Maués, funciona como uma espécie de estilete,
resultando numa linha-sulco, impossível de ser corrigida. Daí a surpreendente sugestão do
uso da borracha, que o próprio Guignard condenava, como testemunham vários de seus
alunos. O treino constante do desenho objetivava alcançar a precisão contra a correção da
borracha. Mas para isso era preciso tempo (dois dias, dizia na sua “receita’) e muita
paciência. Como escreveu Amilcar de Castro, num poema-depoimento de 1979: com
Guignard aprendemos que “Para desenhar, / era bom, antes, lavar as mãos, / Ser atento. /
Ser decidido e corajoso. / Riscar sem medo de errar.”. Talvez resida aí, nesse desenho
limpo e econômico, uma explicação para o fato de tantos alunos mineiros de Guignard
desenvolverem seu trabalho dentro da vertente construtiva.
De início, portanto, muito rigor, “partindo do natural” só depois o lápis começa a libertar-se
em ondulações, círculos e “oitos” para captar “movimentos de corpos”. Já antes, em uma
outra “receita”, Guignard explica ao seu aluno Nils Kaufmann que desenhava em forma de
oito para que “a luz, que sinto, possa iluminar no papel o desenho”, completando: “O
exercício continuado faz o mestre. Veja como aprende um aluno de piano. É incessante o
exercício que ele tem de fazer: dó, ré, mi, fá, sol... No desenho é a mesma coisa: só que em
vez de exercícios de notas e de ouvido, tem que ser um exercício visual”.
4 - Natureza-morta
Guignard pintou um número relativamente pequeno de naturezas-mortas em diferentes
épocas. Contudo, elas representam um conjunto extremamente coeso, no qual o artista
manifestou o melhor de seu rigor construtivo.
5 - Retrato, o mais difícil
Guignard considerava o “retrato, o mais difícil” entre os gêneros. No entanto, uma parte
considerável de sua obra é constituída por retratos. Por isso mesmo, o melhor e o pior de
sua obra estão nos retratos. Nos melhores, como escreveu Márcio Sampaio, o modo de ser
do modelo, “imergia com leveza de quem leva flores ao amigo. Guignard vasculhava os
porões da alma, mas geralmente só trazia de volta, para fixar na tela, as qualidades que se
aproximavam das suas próprias. Mas nunca haveria de trair o modelo, impingindo-lhe
caracteres falsos”. Ou seja, no retrato, a questão vai além do domínio técnico: sua
realização exige do artista intimidade com o modelo, convivência ou mesmo amizade. Ou
ainda: há um dado subjetivo: o artista precisa fazer viver na tela o seu modelo, no qual
funde suas próprias qualidades sua visão humanista.
6 - Na paisagem: o próximo e o distante
Falando da paisagem, Guignard afirma na carta que “o que está mais perto será mais escuro
e a profundidade mais clara”. O que vale tanto para a pintura como para o desenho. Num
caso e noutro, servem como exemplos, suas paisagens do Vale do Paraíba, captadas a partir
de Itatiaia. No primeiro plano, o artista descreve o arbusto, as árvores, os pequenos
acidentes topográficos, tudo com minúcia e paciência. O que se segue, depois, na sucessão
de planos, é a amplidão do espaço montanha e vale. A luz banhando tudo. O próprio artista,
que recomendava captar a paisagem do ponto mais alto, com freqüência, em seus desenhos,
se punha, metalinguísticamente, bem no alto, de onde contemplava, extasiado, a paisagem à
sua frente.
7 - Uma disciplina muito a rigor
Os dados referentes aos estudos artísticos de Guignard são freqüentemente confusos e o
próprio artista, em seus depoimentos, entrevistas a jornais e autobiografias, não ajuda a
esclarecê-los. Na carta a Maués, Guignard afirma: “Fiz meus estudos na Alemanha, sob
uma disciplina muito a rigor. Três anos de pintura e seis de desenho. Custou muito, mas foi.
E hoje estou contentíssimo de ter estudado tanto. Naturalmente, aprendi pelos métodos
acadêmicos, mas depois meu instinto pessoal me guiou para minha personalidade e
liberdade completa”. Num outro documento, “Auto-retrato psicológico”, no qual refere-se a
si mesmo na terceira pessoa, diz ainda que “De acadêmico passou a moderno, após ter visto
uma exposição de arte moderna alemã: o modernismo o fascinou”. Finalmente, em um
depoimento assinado, recolhido pela poetisa Celina Ferreira, ele diz que começou a estudar
desenho e pintura na cidade de Munique em 1915. Depois de um ano de prática me foi
possível desenhar um pouco bem. Tinha iniciado no caminho acadêmico, não sabendo, é
claro, o caminho certo. Depois de um certo tempo houve reação e tive contato com
estudantes novos. Esta passagem para a liberdade me custou muito. Se não me esqueço,
creio ter visto em Munique, em uma exposição de jovens modernos, um novo de nome
Lasar Segall. Creio que o grupo tinha o nome de “Die Bruecke”. Quase todos eram
revolucionários e bem políticos de esquerda. Foram muito combatidos na era do fascismo
alemão, mas hoje são novamente respeitados como verdadeiros artistas. Fazia parte do
grupo uma revolucionária de talento formidável, Kaethe Kolwitz, e Alfred Kubin. Minha
época de estudos não deu em nada. Estudei muito nas coleções da Pinacoteca de Munique.
Somente mais tarde, em Florença, aproveitei muitíssimo”.
Como se vê, estes vários documentos são contraditórios, negando e afirmando os mesmos
fatos ou dados relativos à sua formação. Por exemplo, na carta a Maués, Guignard se diz
contentíssimo de ter estudado tanto, enquanto no depoimento a Celina Ferreira ele afirma
que sua época de estudos não deu em nada, tendo aprendido muito mais nas visitas
freqüentes que fazia à Pinacoteca de Munique. Por outro lado, com toda certeza, a mostra
que ele disse ter visto, não terá sido do grupo “A ponte”, criado em 1905, do qual não
fizeram parte Segall, Kaethe Kolwitz ou Kubin. É mais provável que ele tenha visto alguma
exposição da “Freie Sezession”, de Berlim, a que esteve vinculada Kolwitz, ou mesmo da
“Dresdner Sezession, Gruppe 1919”, fundada em 1919 por Segall, Otto Dix, Conrad
Felixmuller e Otto Lange, entre outros.
Novos documentos, originais, permitem por ordem nas coisas. Assim: Guignard instala-se
em Munique em 1915, onde freqüenta, a partir do ano seguinte a “Konigliche Bayerische
Academie der Bildenden”, em Munique, tendo como professores, Adolf Hengeler e
Hermann Groeber. O primeiro, desenhista, desfrutou de uma certa notoriedade como artista
gráfico e ilustrador e o segundo, pintor, fora membro da “Secessão”, alemã. Ambos
atestam, em documentos trazidos por Guignard, na rápida viagem que fez ao Brasil, em
1924, que ele freqüentou a Academia, primeiro como estudante de “desenhos naturais”
(1917/1918), e, depois, totalizando nove semestres, os cursos de inverno e verão, obtendo
“a primeira nota em aplicação, aproveitamento e comportamento”. Não foram, portanto,
nove anos, mas nove semestres de estudos.
8 - ...modernos não sabem pintar.
Trata-se, aqui, provavelmente de resposta a uma afirmação muito comum acerca dos
artistas modernos: eles não sabem desenhar, qualquer criança pinta igual etc. Dos nomes
citados na carta, os que mais visivelmente marcaram a sua pintura foram Dufy e Botticelli.
O crítico e historiador de arte Jacques Lassaigne via em Dufy uma “mistura de ingenuidade
e aparente fineza” e creio que o mesmo se pode dizer do nosso artista. Por sua vez, Giulio
Carlo Argan vê nas paisagens imaginárias e irreais de Botticelli um desinteresse total em
torno de toda pesquisa de sistema, um completo abandono da experiência direta da
realidade e o tratamento da linha como ritmo e incessante continuidade. Guignard referia-se
a Botticelli como “o maior de todos”, tendo admirado sua obra em Florença, cidade onde
“aproveitou muitíssimo” e onde teria pintado, segundo alguns depoimentos, seu primeiro
quadro. Decorar os cabelos e os vestidos de seus modelos com flores é igualmente uma
tradição que Guignard foi buscar no pintor florentino.
9 - ...só daqui a cem anos
Nesta passagem da carta, Guignard revela uma visão romântica da arte, ao considerar o
artista um ser dotado de uma sensibilidade toda especial, por isso mesmo “combatido” por
seus contemporâneos: “... só daqui a cem anos seremos melhor considerados”. Típico desta
visão é a distinção que faz entre aqueles que já nasceram artistas, a estrela do gênio gravada
na testa, os simplesmente talentosos e os que se dispõem a serem talentos.
Contraditoriamente, entretanto, na lição que ministrou ao seu aluno Nils Kaufmann,
sustenta que todas as pessoas são naturalmente talentosas e para aprender a desenhar basta
o exercício continuado.
10 - Minha profIssão como artista
Da mesma forma, referindo-se a si próprio, não se considera nem gênio nem simplesmente
talentoso, mas um profissional, e para chegar a sê-lo precisou esforçar-se muito. Pintor,
desenhista, gravador, autor de ilustrações e obras decorativas, Guignard exerceu todas estas
tarefas com entusiasmo e senso de responsabilidade. Artista completo, pintou paisagens,
marinhas, naturezas-mortas, retratos, flores, cenas de costumes e do cotidiano, temas
religiosos e, finalmente, históricos. Nada lhe escapou. Por isso dizia que mesmo
“combatido”, “nada receava, pois tenho muita prática e sei o que estou fazendo”.
11 - ...apreciar e estudar ótimas reproduções
Recordemos que Guignard, em seus tempos de estudante, visitava assiduamente a
Pinacoteca de Munique, que tem em seu acervo uma das mais completas coleções de arte
flamenga, que iria marcar fortemente sua pintura. No Rio de Janeiro foi um freqüentador
habitual da seção de iconografia da Biblioteca Nacional. A coleção mencionada pelo artista
em sua carta a Maués encontra-se ainda na Biblioteca Nacional. O título correto é
Zeichnungen A/ter Meister (Prestel Geselschaft Frankfurt Main). Reproduz originais de
desenhos de artistas alemães, flamengos, holandeses, franceses e italianos do período
situado entre o Renascimento e o Barroco, e que se encontram nos museus de Bremen,
Frankfurt, Weimar, Hamburgo. Eis alguns nomes: Drer, Piero de Cosimo, Joachim Patinir,
Ruysdael, van Dyck, Hans Baldung Griem, Lucas Cranach, Jan van Eyck, Hugo van der
Goes, Brüeghel, Giorgione, Veronese, Tiepolo, Mantegna, Botticelli, Francesco Lippi,
Leonardo da Vinci, Predis, Guardi, Rafael, Magnasco, Piranesi, etc. Em outra carta,
endereçada a uma aluna do Rio, Guignard volta a recomendar o exame da coleção: “Vá a
senhora estudar na Biblioteca Nacional (entrando, a segunda porta à direita), falar com o sr.
Bicudo. Apreciar e estudar e reestudar as ótimas reproduções (“tão boas que parecem
verdadeiras”) dos mestres antigos. São, creio, 10 ou 11 volumes. Os de números 8,9, 10 e
11 são os mais perfeitos. Aí a senhora verá maravilhas tão lindas, que dão lágrimas nos
olhos. Aprecie bem um desenho de Giorgione, um de Predis, um de Claude Lorrain e
muitos outros... que delícias...”. Guignard sempre tinha à mão livros de história da arte e na
Escola do Parque, carente de recursos, cobria as paredes e painéis com reproduções de
obras de artistas modernos e antigos.
12 - Brasileiro nato, mas internacional
Alberto da Veiga Guignard nasceu em Nova Friburgo, RJ, em 25 de fevereiro de 1896,
filho de Alberto José Guignard, fiscal de impostos em Petrópolis, e de Leonor Augusta
Veiga. O avô materno, José Antonio Vieira Veiga, era comendador muito abastado, tendo
desempenhado importantes funções no governo imperial, enquanto o avô paterno, Charles
Guignard, segundo consta, veio ao Brasil como cabelereiro da corte do Imperador.
Guignard residiu na Europa entre 1907 e 1929, inicialmente em Vevey, na Suíça, a seguir,
em Munique, na Alemanha, Grasse, na França, e Florença, na Itália.
Os avós franceses, a longa permanência na Europa e a voz fanhosa, conseqüência do lábio
leporino, faziam Guignard parecer um estrangeiro no Brasil. Por outro lado, nos primeiros
anos, após seu retorno ao Brasil, esteve muito ligado aos artistas alemães que vinham ou
aqui residiam, através da Pró-Arte, fundada em 1931, por Theodor Heuberger, sob cujo
patrocínio realizou diversas exposições individuais. Por isso, conta Augusto Rodrigues, um
dia, “tomou de uma só vez, num botequim, uma garrafa de cachaça para mostrar aos
incrédulos que era brasileiro” e não satisfeito, alista-se, em 1935, com 39 anos de idade, no
Exército Nacional, recebendo o certificado de reservista de 3ª Categoria. “Brasileiro nato,
mas internacional como artista”, realmente expôs em Munique (desenhos em mostra oficial,
de 1922, e no Palácio de Vidro, em 1923), em Paris (pintu- ras, no Salão de Outono, em
1927 e 1928, e no Salão dos Independentes, em 1928), na Bienal de Veneza, em 1928
(retratos da mãe e do padrasto e um auto-retrato), na Ar- gentina (IX Salão de Arte de
Rosário, 1929, individual em Buenos Aires, em 1930, e participação no Salão Nacional de
Belas Artes da mesma cidade, em 1937, no qual foi premia- do com uma de suas obras
primas, "Bambus") e nos Estados Unidos (individual no Roerich Museum, de Pittsburg, em
1935). Até a data de sua carta, já integrara outras três im- portantes coletivas de arte
brasileira no exterior: a do Roerich Museum, de Pittsburg, a que circulou por Montevideu,
La Plata, Buenos Aires e Santiago, no Chile, em 1945, organizada pelo escritor Marques
Rebelo, e a mos- tra de artistas brasileiros em benefício da Royal Air Force/ RAF, em
Londres, 1945. Uma tela de Guignard, Noite de São João, foi adquirida, em 1942, pelo
Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
13 - Depois de Portinari sou eu
O enorme prestígio de Portinari ofuscava seus contemporâneos. Contudo, entre os
intelectuais, especialmente entre os poetas, Guignard impo-se. Para isso, certamente, afora
o lirismo de sua obra, contribuíram muito sua personalidade alegra, seu comportamento
afável e sua comunicabilidade. “Orgulho-me de ter sido dos primeiros a reconhecer sua
força e sua elegância, a sua graça delicada, sobretudo, sua personalidade, logo destacada
por Mário de Andrade”, escreveu o poeta Manuel Bandeira. E acrescentou: “A esse respeito
pode-se mesmo dizer que superava Portinari. Não que faltasse personalidade ao pintor de
Brodovski. Tinha-a, ao contrário, muito forte. Mas era influenciável, e, ao mesmo tempo,
influenciava grandemente. Houve tempo em que não havia pintor no Brasil de talento que
não lhe tivesse sofrido a influência. Menos Guignard, que sempre foi Guignard, a quem
talvez, por isso mesmo, Portinari chamou, num poema, “o maior de todos nós”.
14 - da Veiga Guignard
Em seus primeiros anos de Brasil, assinava seus desenhos e pinturas, “da Veiga Guignard”,
tal como aparece grafado nos dois documentos de seus professores alemães ou como era
chamado por Mário de Andrade. Depois de 1933, passou a assinar seus trabalhos apenas
com o último nome, como também seus bilhetes, cartas e depoimentos. Daí o surpreendente
Alberto Guignard com que assina a carta a Mário Maués. (1975/2000)
MORAIS, Frederico. O Humanismo Lírico de Guignard. In. MUSEU NACIONAL DE
BELAS ARTES. O Humanismo Lírico de Guignard. Rio de Janeiro. Associação dos
Amigos do Museu Nacional de Belas Artes, 2000. p. 15 - 33.
Nota: o texto acima e os verbetes que acompanham cada uma das obras expostas, seguem
muito de perto outros ensaios e livros já publicados pelo autor, a saber: 1 – “Guignard: um
documento-base” (Folha de São Paulo, 23.03.1975), 2 - Alberto da Veiga Guignard
(Monteiro Soares Editores e Livreiros, Rj, 1979, 185 pp), 3 – “A Olinda de Guignard na
casa de Barros de Carvalho” (Rio-Arte, Rj, 1985, 49 pp), 4 –“O Grupo Guignard” e “Os
dissidentes” (apresentação das mostras conjuntas, “A nova flor de Abacate – Grupo
Guignard/1943” e “Os dissidentes/1942”, realizada na Galeria Banerj, Rj, em dezembro de
1986), 5 – “Guignard: Paixão Cotidiana”, apresentação da mostra realizada na galeria do
Instituto Cultural Itaú, em Belo Horizonte, novembro de 1992), 6 –“Um conluio de
sensibilidades”, em Improviso para Guignard, Universidade Federal de Juiz de Fora, 1996,
e 7 –“Guignard, mestre da flor” (catálogo do leilão da Bolsa de Arte do Rio de janeiro,
31.08.1999).

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