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Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Demétrio de Azeredo Soster Fabiana Piccinin (organizadores) Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 1 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Demétrio de Azeredo Soster Fabiana Piccinin (organizadores) Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 1ª edição Santa Cruz do Sul 2016 2 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar CONSELHO EDITORIAL Antonio Fausto Neto – Unisinos Ernesto Söhnle Jr. – UNISC Eunice Piazza Gai – UNISC Fernando Resende – UFF Jesús Gallindo Cáceres – Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (México) João Canavilhas – Universidade de Beira Interior (Portugal) Walter Teixeira Lima – UMESP Rua Oswaldo Aranha, 444 Bairro Santo Inácio Santa Cruz do Sul/RS CEP 96820-150 www.editoracatarse.com.br facebook.com/editoracatarse N234 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar [recurso eletrônico] / Demétrio de Azeredo Soster, Fabiana Piccinin (organizadores) – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2016. 200 p. Texto eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web. 1. Narrativa (Retórica). 2. Comunicação de massa. 3. Literatura - Teoria. 4. Jornalismo. 5. Audiodescrição. I. Soster, Demétrio de Azeredo. II. Piccinin, Fabiana. ISBN: 978-85-69563-07-5 CDD: 808 Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Projeto gráfico e diagramação: Daiana Stockey Carpes Revisão: Rodrigo Bartz 3 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Sumário 6 APRESENTAÇÃO Eunice Piazza Gai PREFÁCIO Demétrio de Azeredo Soster e Fabiana Piccinin 10 Estratégias narrativas no contemporâneo: o caso das séries televisivas Fabiana Piccinin 12 A narrativa institucional de Zero Hora como estratégia de aproximação dos leitores no processo de convergência jornalística Cristiane Lindemann 32 O quarto narrador como um problema de circulação Demétrio de Azeredo Soster 50 O Ouvidor: além do escutar, narrar Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller 65 O percurso do método: a criação de uma metodologia de pesquisa Gabriel Steindorff 74 O processo de criação do jornalista narrador literário: um olhar para Eliane Brum Kassia Nobre 90 Perspectivas acerca da biografia jornalística Rodrigo Bartz 108 A narrativa dos quadrinhos e as fronteiras com o jornalismo José Arlei Cardoso 123 Real ao dobro: a potencialização da legitimidade jornalística pelo uso de estratégias literárias Ricardo Duren 143 4 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Uma perspectiva hermenêutica para os estudos de literatura: abordagem do texto Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe Joseylza Lima 159 A audiodescrição como estratégia narrativa para um jornalismo acessível Daiana Stockey Carpes 174 Estratégias narrativas em entrevistas pingue-pongue: uma análise de “As 30 melhores entrevistas de Playboy” Pedro Piccoli Garcia 186 5 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Apresentação O livro, Narrativas do ver, do ouvir e do pensar, que ora se publica, é resultado de uma trajetória de estudos, pesquisas, discussões acerca das narrativas, que se iniciou a partir do ingresso da professora Dra. Fabiana Piccinin e do professor Dr. Demétrio de Azeredo Soster, da área da Comunicação Social, no Mestrado em Letras da UNISC, em 2010. Agregaram-se ambos a um projeto já existente no Programa, sobre narrativas literárias, coordenado por mim. Esse foi o embrião a partir do qual as relações de pesquisa entre as áreas de Letras e de Comunicação Social foram se estabelecendo. Foi, portanto, pelo viés da narratividade que ocorreu a integração de uma área nova, a Comunicação Social, a um programa já existente, o PPGL/UNISC, com atividades de pesquisa ensino e orientações focadas nesse tema. Alunos de Comunicação e de Letras já passaram pelo grupo, ingressaram no Mestrado e realizaram suas dissertações no decorrer desses anos. Os textos que compõem o livro são uma espécie de registro dessa história e, além das proposições de pesquisa dos professores coordenadores, resultam também de dissertações já defendidas ou em andamento. Participam da publicação os professores que iniciaram o grupo de pesquisas, os alunos daquela primeira hora, além de outros, doutora, mestres e uma mestranda da área da literatura. O fato de que a temática das narrativas tenha se tornado o elo entre as duas áreas é relevante, pois acabou por conferir uma identidade a muitas pesquisas desenvolvidas no Programa. É assim que as teorias narrativas, que tem sua matriz no âmbito da Teoria da Literatura, podem ser de grande valia para o entendimento e a análise das variadas formas de narrar, do contexto midiático. Está contemplado no livro, Narrativas do ver, do ouvir e do pensar, um universo significativo de narrativas, desde as biografias, os seriados, os contextos 6 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar institucionais de ouvidoria, obras clássicas como o Werther, de Goethe, a audiodescrição como modo de narrar, etc. O foco do livro, o estudo de diferentes narrativas, evidencia, valoriza e se fundamenta num modo específico de conhecimento, o modo narrativo, que, hoje, parece não estar mais relegado ao incerto e depreciado terreno do subjetivismo, mas constitui uma forma legítima do saber. Os assuntos abordados nos textos que compõem o livro referemse, pois, a diferentes narrativas. Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller, em “O Ouvidor: além do escutar, narrar”, reflete sobre a atividade do ouvidor e sua necessária prática de escuta de narrativas. Não só a escuta, mas a interpretação das histórias contadas e a atenção são elementos importantes na atuação desse profissional. Cristiane Lindemann apresenta um estudo sobre “A narrativa institucional de Zero Hora como estratégia de aproximação dos leitores no processo de convergência jornalística” em que busca compreender a convergência midiática sob a perspectiva das audiências, no referido jornal. Daiana Stockey Carpes, com o texto intitulado “A audiodescrição como estratégia narrativa para um jornalismo inclusivo”, discorre sobre o processo de inclusão de pessoas com deficiência, a partir da prática da audiodescrição, associando-a à forma narrativa, sendo aquela uma narrativa acessível aos cegos. Demétrio de Azeredo Soster propõe o texto “O quarto narrador como um problema de circulação”; nele descreve o percurso da pesquisa realizada ao longo dos anos em que o grupo se desenvolveu sob a sua orientação. Nos estudos sobre o quarto narrador e suas complexificações, procura entender as vozes narrativas do sistema midiático comunicacional. Fabiana Piccinin, também professora orientadora do grupo, integra o livro com um estudo sobre “Narrativas audiovisuais no contemporâneo: pensando as estratégias narrativas das séries televisivas”. Nele, alinhando-se ao pensamento de Motta, aborda as novas mídias e audiências, considerando-as mais pelo viés da significação simbólica da diegese e menos pelos caminhos da estrutura. Para tanto, aponta a necessidade de atentar para os contextos sociais, técnicos e discursivos em que elas aparecem. Gabriel Steindorff propõe o artigo intitulado: “O percurso do método: a criação de uma metodologia de pesquisa” em que descreve o 7 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar seu percurso de elaboração da pesquisa que resultou na sua dissertação de mestrado Além de um castelo de cartas: a metaficção em House of Cards , apresentada ao PPGL-UNISC. José Arlei Rodrigues Cardoso, no texto intitulado “A narrativa dos quadrinhos e as fronteiras com o jornalismo”, aborda as histórias em quadrinhos, um tema bastante discutido e cultuado na atualidade. O autor traz reflexões importantes sobre diferentes perspectivas a partir das quais são estudadas e produzidas. Traça uma história do desenvolvimento dessa atividade e caracteriza-a como uma arte híbrida em que ocorre uma integração entre imagem e texto. Situa essas narrativas num contexto de fronteiras entre literatura e jornalismo. Joseylza Lima Silva, com o texto “Uma perspectiva hermenêutica para os estudos de literatura: abordagem do texto Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe” apresenta um estudo interpretativo da famosa obra de Goethe, no intuito de mostrar que uma escuta atenta das narrativas pode ser fundamental para desenvolver uma nova atitude de professores e alunos diante dos textos literários. Kassia Nobre, apresenta o texto “O processo de criação do jornalista narrador literário: um olhar para Eliane Brum”, um estudo sobre a obra A vida que ninguém vê, da jornalista e escritora Eliane Brum, mostrando que a autora se comporta como um narrador literário, em textos onde transgride o manual de redação jornalística e vale-se de recursos tipicamente literários. Pedro Piccoli Garcia, em “Estratégias Narrativas em Entrevistas Pingue-Pongue: uma Análise de As 30 melhores entrevistas de Playboy”, discute a utilização de recursos textuais presentes em entrevistas jornalísticas do formato pingue-pongue. Sua atenção considera o padrão de entrevistas praticado por revistas em que são empregados artifícios textuais na composição do relato da conversa face a face. O autor analisa esses artifícios enquanto estratégias discursivas adotadas com propósitos específicos. Ricardo Luís Düren apresenta um estudo intitulado “Real ao dobro: a potencialização da legitimidade jornalística pelo uso de estratégias literárias”. Nele desenvolve a hipótese de que determinadas narrativas jornalísticas empregam artifícios literários, como forma de garantir ou evidenciar o efeito de real e “para reforçar sua legitimidade pré-existente”. Considera que esse fato constitui um diálogo onde os sistemas jornalístico 8 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar e literário se interinfluenciam. Por fim, realça a presença de descrições geradoras de efeito de real na obra 1808. Rodrigo Bartz, em “Perspectivas acerca da biografia jornalística”, trata da interferência de recursos literários no jornalismo, mais especificamente, nas biografias, assinalando a perspectiva ficcional nelas existente. Trata-se, enfim, de uma trajetória de pesquisa que se consolida com a publicação de um livro, e pode representar um significativo incentivo aos estudantes das áreas envolvidas, além de ser um exemplo que deu certo em termos de atividades interdisciplinares. Eunice Terezinha Piazza Gai Professora do Departamento e do Mestrado em Letras da UNISC. 9 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Prefácio Um percurso de pesquisa em movimento É tarefa relativamente fácil reconstruir um caminho de pesquisa, em especial se ele for vigoroso do ponto de vista acadêmico, ou seja, for marcado, desde sua gênese, pela produção de livros, artigos, participação em eventos etc. Neste caso, uma competente revisão bibliográfica conduz o hermeneuta ao percurso realizado, tornando possível, como sugerido acima, a reconstrução do caminho percorrido. O mesmo não pode ser dito, infelizmente, da origem primeira da pesquisa; aquele que, no diálogo com Merleau-Ponty, nos conduz à essência do vivido, tornando tudo o que se disse daquele momento elucubração teórica, construção reflexiva, algo que se diz sobre o objeto sem nos referirmos necessariamente a ele. Quanto o assunto é localizar, na aurora do tempo, quando tudo se iniciou, o momento primeiro, aí a situação se complica um pouco mais, à medida que, na perspectiva fenomenológica, a visada exige pelo menos uma presença em relação, um ser-no mundo. Não vamos repetir o que já está narrado na apresentação de Eunice Piazza Gai e no capítulo 3 deste livro, mas salientar que foi de um encontro realizado à sombra dos ligustros existentes entre os prédios 14 e 15 do Departamento de Comunicação Social que tudo se iniciou, que a pesquisa deu seus primeiros passos. Reunião de trabalho, claro, com propósito e metas definidas, mas marcada sobretudo pela vontade de acontecer, pela propositividade, pelo querer ir adiante. 10 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Se nasceu vigorosa, a julgar pela produção; e, por que não, longevidade, haja vista os seis anos transcorridos, é porque desde sua origem a pesquisa se estabeleceu sob o signo da interdisciplinariedade, pois foi acolhida pelo PPG de Letras da Unisc, onde encontrou, pelo viés dos estudos em narrativa, condições de se aprimorar e ganhar amplitude. E é justamente esta a essência do Narrativas do ver, do ouvir e do pensar, que agora chega até você em formato digital: um livro cuja pretensão é marcar, pela produção dos que dele participam, mais que um estágio de pesquisa, ou uma espécie de marco evolutivo de onde chegamos, sempretensões totalizantes. E é em razão disso que aqui se encontram textos nossos enquanto pesquisadores, como também de alu¬nos e ex alunos que se tornaram mestres e doutores, tendo por preocu¬pação comum a narrativa e as relações estabelecidas com a mídia e com a literatura. O que se quer, aqui, é ilustrar, quem sabe, no diálogo com Bergson, a percepção que o conhecimento que se tem das coisas do mundo, sempre muda, sempre se transforma, e que na gênese do movimento reside nossa razão primeira e última de ser. Que assim o seja, então. Uma boa leitura a todos. Demétrio de Azeredo Soster Fabiana Piccinin Santa Cruz do Sul, julho de 2016. Inverno 11 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Estratégias narrativas no contemporâneo: o caso das séries televisivas Fabiana Piccinin1 1 Mídias, novas gramáticas e novas audiências A investigação acerca da natureza e comportamento das narrativas midiáticas, que marca o trabalho empreendido, em termos da graduação no âmbito da Comunicação Social e da Pós-Graduação no Programa de Letras, tem se constituído num caminho de pesquisa dinamicamente organizado em duplo circuito. Tanto oportunamente contribui o conhecimento clássico da teoria da literatura e da narrativa ao mundo das manifestações midiáticas, quanto e da mesma maneira, estas reconfiguram as pesquisas da narrativa literária, inserindo-se no espectro de pesquisas e teorizações por conta de suas performances, práticas e usos culturais. Neste sentido, e de forma harmônica à própria vigência de valores associados ao chamado “giro linguístico” observado a partir do final do século XX (Motta: 2013), a narrativa passa a ser observada menos por sua face estrutural e mais pela significação simbólica da diegese numa visada mais ampla em direção às humanidades em geral. Passa, assim, a ser pensada justamente na relação com outros campos de conhecimento e o que daí pode derivar enquanto possibilidade artística, antropológica, filosófica, psicológica e midiática. Em razão disso, e conforme reflexões já travadas anteriormente (PIC1 Professora e pesquisadora do Departamento de Comunicação Social do Programa de Pós Graduação em Letras (UNISC). Integrante do GENALIM (CNPQ) Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Comunicacionais, do GIP Tele, Grupo Interinstitucional de Pesquisa sobre Telejornalismo e da RENAMI (SBPJor) Rede Nacional de Pesquisa sobre Narrativas Midiáticas. [email protected] 12 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar CININ, 2012; PICCININ, 2013), o comportamento e as configurações gramaticais das narrativas contemporâneas têm sido compreendidas a partir da relação estabelecida destas com seu contexto de época, considerando sua natureza, anatomia, gramáticas e performances além das tecnologias e suportes por meio dos quais se dão a conhecer. Ou seja, estudar as narrativas pressupõe considerar o contexto sócio-técnico-discursivo em que estão inseridas, em alinhamento com a perspectiva de Scholes e Kellog (1977, p. 47), de que “toda época e cultura têm suas formas narrativas”. No caso da narrativa contemporânea, é requerer, assim, que se leve em conta as injunções decorrentes do período compreendido como o pós-moderno e seus padrões sociais, tecnológicos e discursivos correspondentes. Do ponto de vista da organização societária e dos discursos que a estruturam, trata-se de um momento em que as epistemologias vigorosas da Modernidade e suas crenças na capacidade de explicar a realidade objetivamente e dar a ela respostas totalizantes, são gradativamente substituídas pela relativização das grandes verdades. Ao cogitar as possibilidades das explicações científicas, o contemporâneo vai revelando a emergência de um cansaço existencial, proveniente dos efeitos relativos à racionalização exagerada (RUIZ, 2003). Assim, no lugar da linearidade do discurso fundamentado na racionalidade moderna, emerge a multiplicidade de argumentos ou jogos de linguagem (GRANDIM, 2015), que por sua vez levam à expressão de narrativas paralelas e multiformes como diz Murray: (...) as histórias impressas e nos filmes estão pressionando os formatos lineares do passado, não por mera diversão, mas por esforço para exprimir uma percepção que caracteriza o século XX, ou seja, a vida enquanto composição de possibilidades paralelas. A narrativa multiforme procura dar uma experiência simultânea a essas possibilidades, permitindo-nos ter em mente, ao mesmo tempo, múltiplas e contraditórias alternativas. (MURRAY, 2003, p. 48-49). A superação da estética racionalista e consequente relativização das epistemologias modernas são bastante bem traduzidas pela metáfora da liquidez apresentada por Bauman (2001) e por Santaella (2007). Líquidas são as ideias e os conceitos que sustentam o contemporâneo, porque mudam continuamente por sua natureza fluida e porque assumem, em decorrência disso, a forma da estrutura que lhes dão suporte. E que por extensão se manifestam em novos formatos das narrativas, 13 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar oportunizando a reciclagem de suas intrigas ficcionais, recriadas para circular por diferentes plataformas midiáticas reconhecidas na hibridação de seus desenhos. Se antes tendiam a gêneros e formatos definidos e delimitados, agora as narrativas caminham nessa inevitável interlocução, estruturando-se na “mistura e combinação” de uma pela outra. Ou como diz Figueiredo (2010) (...) na contramão das categorizações estabelecidas com a modernidade, cada vez mais o texto vai deixando de ser considerado uma obra fechada em si, para ser visto a partir de narrativas e de suas conexões no interior de uma ampla rede formada por inúmeros outros textos. Também Murray (2003) diz que a experiência de viver no século XX implica a possibilidade de se poder ser diferentes pessoas em diferentes mundos possíveis que se alternam em histórias que se entrecruzam infinitamente no mundo real. E mais do que isso, que estas possibilidades demandam um novo lugar à audiência, na medida em que esta passa a desejar a transposição e o reagrupamento de elementos das histórias, dada a necessária habilidade de ter em mente múltiplas alternativas de um mesmo universo ficcional. Como diz a autora, nas histórias multiformes, em conformidade com os movimentos da experiência contemporânea que se exprimem nas possibilidades simultâneas de narrativas, as influencias ocorrem como que por “ (...) um reflexo da física pós-einsteniana, ou de uma sociedade secular assombrada pela imprevisibilidade da vida, ou de uma nova sofisticação no modo de conceber a narração (...) (2003, p.49)”. Assumindo, portanto, a inerente relação entre a conjunção sóciotécnica-discursiva contemporânea e a anatomia dos discursos, observa-se que as narrativas midiáticas mudam suas proposições e orientações em função de responder às novas circunscrições do contexto que se apresenta. Ao se reconhecer frente às inovações tecnológicas às consequentes injunções sociais que significam, as narrativas oferecem novos discursos que se orientam, sobretudo, por conquistar as audiências. Ou seja, se a experiência pós-moderna é o tempo das relativizações das verdades e categorizações, em termos midiáticos a erosão dos limites vigorosos modernos também incide, tanto na configuração das tramas narrativas na medida em que apresentam esta multiplicidade de formatos e ofertas às audiências, quanto também nas questões afeitas ao seu conteúdo. Por efeito, em termos de temática, as “recicladas intrigas” das narra- 14 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar tivas midiáticas também resultam contextualmente da influência estética que diz respeito à substituição das grandes metanarrativas que marcaram a era moderna, como bem trata Lyotard (2004), pelas microhistórias. Estas passam a ganhar força neste momento com suas valorações dos eventos cotidianos e ordinários (FIGUEIREDO, 2010), porque contam com a força de representação e proximidade ao “real verdadeiro”. E por isso, estão mais preocupadas agora em tratar da vida em seus minimalismos e cotidianidades para, por meio destes, alterar também sua relação com o público numa tentativa de convencimento sobre as realidades que apresenta. É dizer, portanto, que diante de tanta e diversa oferta de narrativas – neste caso as audiovisuais –, ganha força aquela que se apresenta como a “verdadeira” porque espontânea e que, por espontânea, mais capaz de se aproximar e convocar esta audiência insistentemente disputada. Esse esforço da mídia em buscar a aproximação com seu público por meio da oferta do “real mais real do que o real” vem suceder e tentar superar a crise da representação, quando a estética realista, até então sob a crença na objetividade moderna (FIGUEIREDO, 2010), passa a assumir a impossibilidade do relato objetivo. As narrativas contemporâneas, por conseguinte, tomam por norte, cada vez mais, a proximidade dos relatos e destes com suas audiências, porque estão empenhadas em trazer o real “autêntico”. A autenticidade, nestes casos, se dá pelos investimentos na humanização e na busca de uma equiparação entre o narrador e seu narratário. Ou como diz Figueiredo (2010, p. 3), “(...) a credibilidade do relato não é conferida pela objetividade ou transparência do discurso do narrador-intelectual, mas, ao contrário, pela ênfase no lugar de onde se fala, procurando-se também, deixar claros os recursos utilizados no registro (...).” Também Zizek (2003) entende que o investimento midiático na “estética do real” é uma resposta ao sentido de virtualização e porosidade contemporâneos que resultam na necessidade dos indivíduos “por experiências reais”. As mídias, portanto, que lidam com as ficções tendem a fazê-lo alternando a trama base da ficcionalidade com representações de eventos verdadeiros. É por sua capacidade de referir e retratar este real que, na concepção de Jost (2012) as narrativas ganham tanta adesão e credibilidade dos públicos. A realidade Virtual, diz o autor, generaliza esse processo de oferecer um produto esvaziado de sua substância: oferece a própria realidade esvaziada de sua substância, do núcleo duro e re- 15 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar sistente do Real – assim como o café descafeinado tem aroma e gosto do café de verdade sem ser o café de verdade, a Realidade Virtual é sentida como a realidade sem o ser. Mas o que acontece no final desse processo de virtualização é que começamos a sentir a própria “realidade real” como entidade virtual (ZIZEK, 2003, p.25). Assim, as promessas de transparência e de autenticidade na trama estão relacionadas com o sentido de redução dos artifícios e das mediações destas diegeses e, consequentemente, com uma ligação muito estreita entre a narrativa e o mundo empírico. Um real apresentado, por assim dizer, sem mediações, como sintoma da necessária desconstituição dos artifícios ou de tudo que possa sugerir a artificialidade deste narrar. (...) a vertente de realismo que se tornou predominante, hoje, caracteriza-se por valorizar o envolvimento do narrador com o fato narrado, isto é, a falta de distanciamento e a intimidade da abordagem, que são tomadas como prova de sinceridade – o que permitiria ao leitor ou espectador aproximar-se das verdades particulares, parciais. Ou seja, a ênfase não recai num realismo de representação, mas num realismo de base testemunhal, apoiado na narração que se assume como discurso. (FIGUEIREDO, 2010, p. 75). As provas de sinceridade e transparência, por sua vez, incidem nas narrativas audiovisuais contemporâneas configurando novos formatos e desenhos e gerando demandas na relação com os públicos ao apontar para as necessidades de aproximação dos seus dizeres em suas temáticas e formatos. Assim, líquidas (BAUMAN, 2001), em um cenário de limites, classificações e gêneros cada vez mais difusos, as mídias audiovisuais vão adotando novas formas e estruturas narrativas tendo por princípio gramáticas autenticadoras dos discursos, marcadas pela redução dos artifícios, como estratégia de sedução às suas audiências. Auxiliadas pelas possibilidades tecnológicas, as narrativas vão fazendo mesclar os papéis de quem narra e escuta, resultando no movimento que hoje se compreende como o de “redução da distância entre o palco e a plateia”. A confiabilidade ao ato de enunciação, portanto, será dada conforme a estratégia da emissão, por sua promessa de gradativa diluição das fronteiras entre seu dizer e suas audiências, convencendo-as deste lugar de mais cumplicidade e, eventualmente, protagonismo. Diz Murray da tendência de convocação do público: Em cafés-teatros, membros da plateia são escalados para fazer 16 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar “pontas” como atores, em encenações coletivas, tais como um casamento cômico, um julgamento num tribunal ou um velório. (...). Em todas essas reuniões, a fascinação consiste em atrair os espectadores para o palco, para o reino da ilusão. (MURRAY, 2003, p. 54). Nos acordos que dão origem às novas gramáticas contratuais, entre as emissões midiáticas e suas audiências, a ideia da transparência e da “verdade” dos conteúdos ofertas passa a estar obrigatoriamente vinculados ao sentido de proximidade entre ambas as instâncias. O esforço das mídias se dá, portanto, na direção da dissolução da estrutura dicotômica moderna e vigente até então entre emissor e receptor, de maneira que a narrativa passa a ser estruturada tendo por base sua capacidade justamente de harmonizar estes agentes, agora em novos lugares e papéis, com auxílio das novas possibilidades tecnológicas. 2 Narrativas audiovisuais na hipertelevisão Dentro do universo midiático, a análise dos novos contratos narrativos audiovisuais assume conotação fundamental, dado o fato de que a televisão, por meio de suas produções, estabeleceu-se como “o epicentro do audiovisual”. (OROZCO, 2014). Ou como diz Carlón (2014), a investigação é sempre necessária e pertinente uma vez que, a TV “mudou a nossa maneira de conceber e experimentar o real” ao possibilitar que, do real, fosse percebida a representação e não o representado. Ou ainda, para Eco (1984), tratar da importância dos estudos do audiovisual em termos televisivos, aponta para a carga e a ênfase verossímil que a Tv tem e com a qual opera e pretende seduzir suas audiências tendo a pretensão de ofertar o “mundo como ele é”. Um efeito de sentido caro a este momento orientado pela estética do real e da necessidade de suas comprovações. Neste sentido, diz o autor que as transformações sócio-técnico-discursivas contemporâneas geram o que denomina a nova idade da Tv (ECO, 1984) que, em sintonia com o momento midiático atual, transforma as gramáticas de oferta e consumo, suas interações e incidências em termos de tramas narrativas. Na distinção feita por Eco (1984), há dois modelos de televisão, nomeadas como paleo e da neo Tv. Ambos modelos coexistem, embora cada um a seu modo, instituindo relações específicas com seus públicos. A paleo Tv estrutura-se pela lógica da grade de programação 17 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar axiomática com estrutura fixa tanto horizontal – com dia certo – quanto vertical – com horário também determinado. O que determina certo tipo de narrativa e de consumo específico em acordo com os contratos gramaticais estabelecidos com estas audiências. Na paleo Tv, a conquista do público está orientada pela ideia de fisgá-lo para a programação em fluxo contínuo de modo que este faça sua adesão à agenda ofertada pela televisão, internalizando horários e dias determinados, capazes de serem incorporados às suas programações. A força da convocação está, portanto, junto com o conteúdo ofertado, no próprio dia e horário de uma programação mais vista no conjunto do que isoladamente. Já a neo Tv2 opera por um modelo de oferta do produto audiovisual em rede e a partir da rede, em que o consumo pode se dar em hora, dia e em quantas vezes as audiências determinarem, conforme suas demandas. Neste modelo, oferta-se uma autonomia maior aos usuários que podem decidir pela construção de agendas próprias e que, em função disso, podem ser seduzidos pela força da trama narrativa. Só esta os convencerá a de fato desfrutar o produto, posto que está disponível sob demanda para que usufrua quando e quanto lhe interessar. A emissão, neste caso, tem apenas e tão somente, com sua capacidade de atrair e manter este indivíduo assistindo a um determinado produto audiovisual, sem poder contar com o “modormo” da paleo Tv que além de determinar dia e hora, chama durante a programação em fluxo, para as próximas atrações. Para Scolari (2014), a neo Tv de Eco é a hipertelevisão, entendida como a que passa dos modelos (CARLÓN, 2014) de Tv broadcasting e narrowcasting para o da Tv nestcasting que passam a relativizar os lugares do que até então entendeu-se rigidamente como os da emissão e o da recepção dentro do circuito midiático televisivo. Também Souza Filho (2015) diz que se experencia neste momento, a terceira idade desta mídia 2 Os números mostram que já há mais consumo dos produtos audiovisuais neste modelo, sob demanda, do que na Tv broadcasting. Os chamados portais de conteúdo e entre eles o Netflix (2015), são objeto de consumo no Brasil, segundo pesquisa, de 82% dos entrevistados que disseram assistir vídeos sob demanda, contra 73% que afirmaram assistir TV aberta. Também o uso desses serviços sob demanda é consideravelmente alto. Os usuários passam uma média de 13,6 horas por semana assistindo aos chamados vídeos digitais, cerca de 8,1 horas a mais do que passam vendo TV aberta no mesmo período. E dentro deste espectro de oferta, as séries de TV são os conteúdos mais assistidos nos serviços de vídeo digital no Brasil, ao lado do consumo de filmes e música. 18 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar com o netcast3. Neste modelo, as operações dos conteúdos audiovisuais que se dão a partir da internet e por meio de possibilidades interativas mais sofisticadas, disponibilizam conteúdos em suportes físicos diversos, como as Tvs abertas e por assinatura e /ou também na rede, oportunizando nesta flexibilização dos papéis de emissor e receptor: (...) o nascimento de espécies bastardas, ou seja, meios híbridos que adotam ou simulam gramáticas e narrativas de outros meios. Essas novas produções constroem um espectador modelo que exige do espectador real as competências cognitivas e interpretativas que caracterizam os nativos digitais. (SOUZA FILHO, 2015, p. 91). Também Jenkins (2008) alerta para a reconfiguração da Tv, inserida no contexto das mudanças do sistema midiático, próprias do momento contemporâneo. O autor observa a diluição do poder e centralidade da mídia em relação aos conteúdos ali publicizados a partir dos novos suportes e do novo lugar concedido às audiências, indicando que estes não vão significar o fim das mídias tradicionais, mas a reafirmação de um novo modelo estabelecido em função das possibilidades ofertadas pela convergência que depende fortemente da participação ativa dos consumidores. Essa condição, resultante das histórias construídas em diferentes meios de comunicação nomeada por Jenkins como transmidia storytelling, vai constituir um lócus privilegiado em que o mundo da mídia se encontra com o espectador, inaugurando novos protocolos relacionados à questão da interpretação. Para Jenkins (2008. p. 27), “(...) a convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos”. É importante lembrar que, como bem diz Scolari (2014) a era da hipertelevisão fala para uma geração criada em ambientes digitais interativos, que desenvolveu habilidades perceptivas e cognitivas específicas. E, portanto, os programas “hospedados” em plataformas de conteúdo operados pela lógica de um consumo sob demanda que 3 Segundo Souza Filho (2015, p. 91) as três etapas da Tv estão associadas às suas formas de operação e consumo. A primeira, característica do momento do surgimento da Tv, o Broadcasting, é o modelo segundo ele, caracterizado pela transmissão unidirecional do conteúdo para um público amplo e indefinido. A segunda seria o narrowcasting, onde a Tv já está marcada pela multiplicação e segmentação do conteúdo oportunizando mais flexibilidade para seus públicos. E a terceira é a Tv da era netcast. 19 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar podem ser acessados graças à rede, são oferecidos, além da televisão convencional, por meio dos chamados dispositivos móveis como computador, ipad e notebooks além do celular, exigindo que as narrativas audiovisuais sofistiquem e aprimorem seus formatos, conteúdos e ofertas interativas. Está se tratando de um telespectador modelo que coloca em jogo todas as suas competências narrativas, perceptivas e cognitivas para interpretar um produto textual cada vez mais atomizado, multitela, e transmídia, carregado de personagens que conduzem uma complexa trama de programas narrativos (SCOLARI, 2014, p. 49). O que resulta numa relação diferenciada com seu público, obrigando as produções audiovisuais a subverterem os padrões e operações narrativas canônicas praticadas até então. Também Lacalle (2010) contribui para esta ideia de um novo receptor fruto das interações oportunizadas pela aproximação entre a televisão e a internet ao dizer que os internautas acabam por se constituir em comunidades interpretativas que se caracterizam pela apropriação dos textos televisivos substituindo relações tradicionais de identificação e recepção pela produção de novos significados, posto que a Internet expande os limites de interpretação do texto televisivo até extremos impensáveis. A Internet é, portanto, uma grande aliada da televisão, ao invés de competir com a pequena tela (LACALLE, 2010), colocando emissores e espectadores em condições de operarem discussões abertas sobre episódios ou notícias dos atores. O modelo televisivo netcast vai, assim, por meio das novas gramáticas narrativas, articuladas inclusive por novas possibilidades interativas, demandando e gerando performances também originais por conta de instituir neste processo um consumo mais individualizado e ativo, como diz Machado e Veléz (2014): (...) o surgimento no cenário audiovisual de novos protagonistas, os interatores, está forçando mudanças cada vez mais radicais em direção a modelos de conteúdo que possam ser buscados a qualquer momento, em qualquer lugar, fruídos de maneira como cada um quiser e abertos à intervenção ativa dos participantes. Este novo tipo de consumidor/produtor está exigindo experiências midiáticas de uma mobilidade mais fluída, formas de economia mais individualizadas, que permitam a cada um compor suas próprias grades de programas e decidir de maneira particular de como vai interagir com elas. (MACHADO, VELÉZ, 2014, p. 55 - 56). É dizer, portanto, que a emergência de formas assíncronas e perso- 20 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar nalizadas de consumo dos conteúdos televisivos, conforme pontua Fechini, (2014), impõe desafios a esta mídia. É preciso reinventar produtos e serviços, tanto em termos da indústria quanto dos conteúdos ofertados que deem conta do aproveitamento das novas possibilidades tecnológicas na direção de aproximar e oportunizar mais protagonismo ao mundo da recepção. Telleria (2015) também indica como a oferta de produtos audiovisuais em fluxo e sob demanda - separando, portanto, conteúdos dos suportes agora vinculados “à nuvem”, vão configurando novas gramáticas do mundo da emissão ao se relacionar com o mundo da recepção, inaugurando novos gêneros e formatos, e fazendo multiplicar os formatos narrativos, muitas vezes, advindos de uma única história original: The dissolution of the link between content and support, which had been the basis for the definition of genres and formats, reaches its peak with the expression of the distribuition models based on storage services and cloud sync. The mobile environment is, in essence, a multi-device one, whose core lies on the access and consumption mode conception to the content and services. (TELLERIA, 2015, p. 206). As interações oportunizadas às audiências vão incidir, portanto, também nas tramas narrativas como nos romances vitorianos ou nos seriados de televisão contemporâneos que investem no envolvimento com o público no desenrolar da história, observando esse enredo que, como diz Murray (2003, p.51), “incentiva a especulação sobre quais possibilidades serão desenvolvidas”. São estabelecidas gramáticas narrativas associadas a estratégias e promessas de proximidade e cumplicidade com o receptor, além de oferecer a ele a “explicitude” de processos produtivos e de bastidores para continuamente convencê-lo das transparências desse dizer. Ou no dizer de Calabrese (1987), a “verificabilidade” dos eventos é característica da idade neobarroca marcada, por sua vez, por este tempo em que as novas tecnologias vão estabelecendo uma relação direta com a insuficiência na confiança do real ofertado. Também Lipovetsky e Serroy (2009, p.133) lembram, referindo-se ao cinema hipermoderno, que as narrativas audiovisuais contemporâneas, orientadas pela autorreferência, promovem por meio das novas interações, a redução das distâncias entre palco e plateia, pressupondo, portanto “(...) agora um espectador “cultivado” pela mídia, que não é bobo, com quem ele instaura um efeito de cumplicidade, fundado sobre uma cultura de imagens e arquétipos compartilhados”. 21 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 3 Gramáticas de portais de conteúdo e séries televisivas O movimento que busca oportunizar um lugar de maior protagonismo ao espectador por parte do mundo midiático – neste caso especificamente da televisão na sua relação com as possibilidades da rede – pode ser bem evidenciado por meio das séries4 televisivas. Ao acompanhar as emergências do contexto sócio-técnico-discursivo, as produções televisivas buscam ofertar às audiências experiências efetivas de identificação e proximidade por meio da aposta do que Mitell (2012) chama de complexificação de suas narrativas. Esta marcada, entre outros, pela fruição mais rica e multifacetada que proporciona, em sintonia com as demandas do espectador contemporâneo que, segundo o autor, tende a aderir a programas complexos de uma forma muito mais apaixonada e comprometida do que à maior parte da programação da televisão convencional. Para Mitell (2012), a complexificação das narrativas das séries: (...) é uma redefinição de formas episódicas sob a influência da narração em série – não é necessariamente uma fusão completa dos formatos episódicos e seriados, mas um equilíbrio volátil. Recusando a necessidade de fechamento da trama em cada episódio, que caracteriza o formato episódico convencional, a complexidade narrativa privilegia estórias com continuidade e passando por diversos gêneros. Somado a isso, a complexidade narrativa desvincula o formato seriado das concepções genéricas identificadas nas novelas – muitos programas complexos (embora certamente não sejam todos) contam histórias de maneira seriada ao mesmo tempo em que rejeitam ou desconsideram o estilo melodramático. (MITTEL, 2012, p. 37). A complexificação da narrativa assim, ao juntar as possibilidades da narração episódica – que resolve a trama na unidade narrativa – e o serial – que estende o desenrolar da intriga ao longo da temporada - vem resultando num modelo híbrido que, jogando com mais elementos, exige também mais descobertas e especulações das audiências, oportunizando 4 É importante registrar que, no âmbito da pesquisa, esta se inicia em termos da observância das narrativas audiovisuais investigando as questões associadas ao jornalismo de televisão. O telejornalismo tem sido objeto de pesquisa nos projetos desenvolvidos junto ao GENALIM, Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas, vinculado ao Programa de Pós Graduação em Letras e onde se tem, no âmbito da pesquisa sobre narrativas e seus contextos sócio-técnico-discursivo buscado compreender como as ofertas de “real” se apresentam nesses programas. Já esse projeto que se dedica à pesquisa das séries chamado “Narrativas Audiovisuais na Hipertelevisão” é o primeiro que se volta ao estudo de um produto audiovisual ficcional. 22 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar novas soluções e desdobramentos por meio das novas possibilidades interpretativas que buscam engajar o público: O tipo de fruição mais distinto nesses programas é admirar o desafio narrativo apresentado a partir da violação das regras de narração de uma maneira espetacular. Através da estética operacional essas narrativas complexas convidam os espectadores a se engajarem no programa assumindo o mesmo patamar de analistas formais, dissecando as técnicas utilizadas para transmitir demonstrações espetaculares da arte do storytelling; este modelo de acompanhamento formalmente consciente é altamente encorajado já que sua fruição está associada ao nível de consciência que transcende o foco tradicional na ação diegética típica de muitos espectadores. (MITELL, 2012, p. 44). Esquenazi (2010, p. 32-35) também lembra que as séries televisivas nascem, enquanto gênero, por sua natureza narrativa estruturada a partir de episódios. E que as histórias ali contadas tanto podem encerrar a completude da diegese principal no episódio ou ao longo de uma temporada (serial). Mas que a essência que define uma série está associada à implicação afetiva da narrativa por meio de seus personagens com seus públicos, associando-a especialmente à plausibilidade. Ou seja, a autora recupera os primeiros estudos sobre séries feitos por Ien Ang para explicar seu conceito de “realismo emocional” e reafirmar, assim, que a cumplicidade estabelecida entre a narrativa serial e os espectadores não advem do fato de serem supostamente “engolidos pela ficção”, mas pela possibilidade de instaurar-se entre a narrativa e o público um balanço constante de identificação e distanciamento. A implicação afetiva dos telespectadores é forte. Ainda que seja frequentemente condensada pela relação deles com uma personagem “preferida”, nunca se resume a isso: a identificação com uma personagem nada explica. É todo universo ficcional que está na origem da adesão. A afeição nunca desmentida pelos vilões das diferentes séries não se explica de outra maneira. A capacidade de estes universos se repercutirem na vida social dos públicos pode parecer impressionante: mas, embora “privada”, a vida televisiva não está afastada da corrente pública, profissional e social dos públicos. (ESQUENAZI, 2010, p. 35). Observa-se assim que, ao percorrer este caminho da complexificação narrativa, as séries televisivas tornaram-se contemporaneamente gêneros de grande sucesso justamente porque vêm intensificando, e de forma muito hábil, em suas tramas narrativas as “experiências reais” e por vezes auto e metarreferentes como decorrência de um 23 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar esforço em tornar a audiência cúmplice da narrativa. Ou como diz Jost (2012), as séries televisivas são fenômenos de consumo, especialmente na Tv sob demanda, porque evocam, pela ficção, credibilidade por conta de que oferecem capacidade vinculatória com os sujeitos ao investirem em referências “reais”, já socializadas em narrativas midiáticas outras, com personagens cotidianos inseridos no mundo dos eventos “verdadeiros”. Oportunizando o processo ativo do espectador que passa especular a respeito da diegese e de seus desdobramentos nos diferentes espaços oportunizados aos integrantes das comunidades interpretativas das séries. (...) a primeira via de acesso à ficção é a atualidade, que os defensores do realismo identificam como realidade em geral. A palavra parece clara, quando, com efeito, ela abrange duas maneiras bem diferentes de construir nosso presente e nossa relação com a história. A atualidade tem, portanto, duas faces: a dispersão e a persistência. (JOST, 2012. p. 28). As alusões aos eventos cotidianos são, portanto, metarreferências da própria mídia e dizem respeito, segundo Jost (2012), a uma das características destas narrativas nomeada como dispersão. E que tem como essência a “ (...) aparição e a desaparição de todos estes acontecimentos, pequenos ou grandes, que atravessam a vida das pessoas e a das mídias no cotidiano. São, assim as verdades do mundo (...) suscetíveis de provocar essa despressurização da ficção e sua absorção da realidade” (JOST, 2012, p. 28). Ao mesmo tempo, esta característica marcante das séries televisivas que responde em parte pela grande sedução que exerce junto às audiências está consorciada com outra marca, segundo o autor, que é a persistência. Como a dispersão oferece risco na medida em que, ao atualizar, pode também desatualizar as tramas, os roteiristas empregam a persistência também como concepção de atualidade, que permite um acesso bem mais universal às suas séries. “É tudo aquilo que persiste, aquilo que os telespectadores, sejam eles americanos ou não, sentem como contemporâneo” (JOST, 2012, p.29). Neste sentido, para o autor estas são as grandes contribuições das séries que dizem respeito ao seu esforço por compor um retrato realista do contemporâneo por estarem relacionadas aos saberes por elas ofertados. Para Jost (2012), as séries investem em três domínios 24 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar do saber que são 1) o saber enciclopédico concernente ao patrimônio científico; 2) o saber e o fazer e as competências profissionais relacionados ao modus operandi da categoria profissional ali mostrada e 3) o saber-ser e o que chama de gestão de comportamento. Para que os indivíduos sejam seduzidos por este saber com o qual a série pode produzir vinculações, estes devem estar articulados com as personagens que ora narram sobre a temática da vida privada, da vida profissional ou da vida em sociedade5. Jost (2012) vai insistir, portanto, que as séries conseguem chegar a este público, notadamente dono de um novo perfil de comportamento, por conta de transformar o visto em vivido e a desvelar a interioridade humana a partir da interioridade das coisas. Trata-se, assim, de apreender a realidade pela consciência de um personagem ou mesmo ver através de seus olhos. Diz o autor que o acesso à verdade depende da capacidade do herói de compreender o outro, assim poder entrar nos meandros de sua alma. Sofrer com a personagem, num processo identificatório, pode ser a melhor maneira de encontrar a solução para um problema (JOST, 2012). Em termos estruturais, algumas emergências nas séries podem ajudar a interpretar o quadro atual em que se inserem narrativamente, como por exemplo, a recorrência a temáticas e personagens complexos e humanizados (FORSTER, 1969). As personagens redondas tem a força de serem baseadas nos “fatos reais”, e por isso capazes de refletir verossímeis vicissitudes da condição humana, com todos os revezes que isto pode significar. O protagonista abandona a personificação estrita do bem ou do mal, portanto não é mais o 5 Séries como The newsroom e House são bons exemplos disso. Em The newsroom, os diferentes saberes a que se refere Jost (2012) são apresentados na narrativa que mostra o cotidiano de uma redação, explicitando por meio dos bastidores, os desafios do tratamento das notícias x as questões culturais e pessoais da equipe. O telejornal é exibido por uma televisão a cabo denominada USB e a história é conduzida por meio do personagem principal, Will McCallister (Jeff Daniels), que vive um coâncora de personalidade forte, que, ao voltar de férias, descobre terem ocorrido várias mudanças na produção do programa. House da mesma maneira mostra os dilemas do mundo dos profissionais da medicina, evidenciando os como são feitos os diagnósticos, bem como os consequentes tratamentos das doenças e suas implicações humanas. Neste caso, a narrativa é conduzida pela personagem principal que é um médico polêmico, irreverente e anti-social que não confia em ninguém, muito menos em seus pacientes. Dr. House, (Hugh Lurie) formou uma excelente equipe de três médicos, escolhendo apenas os melhores (de acordo com seus critérios pessoais e duvidosos) para diagnosticar doenças em casos misteriosos e já desacreditados. Fontes: http:// www.saraivaconteudo.com.br/Noticias/Post/46252 e http://www.minhaserie.com. br/serie/70-house 25 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar olimpiano modelo de um ideal, para converter-se num personagem que, aos moldes nietzschianos, é demasiadamente humano e, mais do que isso, personificado pelo sujeito ordinário, anônimo e comum 6. No lugar dos grandes feitos, as imperfeições que revelam a condição humana da personagem que se apresenta em conjunção com suas habilidades. Estas por sua vez, não são algo do extraordinário ou do super-humano, mas capacidades muito possíveis a cada qualquer indivíduo. (...)as séries atuais nos fazem penetrar em um mundo perto da nossa casa, um mundo próximo; a pequena criminalidade, os tráficos substituíram o grande banditismo e os golpes audaciosos, ao mesmo tempo em que as cidades e suas periferias tornaramse teatros das operações. A aventura está na esquina (...). (JOST, 2012, p. 46). Assim, ao desvelar a interioridade das coisas, como diz Jost (2012), a verdade da narrativa muitas vezes se revela na intimidade da matéria ou na profundidade da alma. E em razão disso, as séries apresentam estruturas ficcionais marcadas pelo uso da voz over que mais que se instituir como uma voz interior, desempenham um sentido de narrar e comentar o que vivem, tratando de sentimentos e emoções. Um exemplo dessa dinâmica é observado em séries que incorporam tematicamente também aquilo que se entenderia por bastidores ou discussões sobre a própria essência do narrar como expedientes metanarrativos que buscam, em última análise, a proximidade e cumplicidade do narratário. Narrador é o que conta, sofre e reflete sobre esse próprio contar, constituindo por vezes, camadas narrativas diferenciadas pelo domínio da diegese. Ou seja, a delimitação do nível narrativo está relacionada com situações narrativas em que a informação 1) é partilhada entre o narrador e as demais personagens com o público, ou 2) apenas do narrador com público, 6 Um exemplo de personagem humanizado e anônimo pode-se encontrar na série Breaking Bad. A série apresenta a vida do químico Walter White (Brian Cranston), um homem brilhante frustrado em dar aulas para adolescentes do ensino médio, enquanto lida com um filho sofrendo de paralisia cerebral, uma esposa grávida e dívidas intermináveis. Quando o já tenso White é diagnosticado com um câncer no pulmão, o mesmo sofre um colapso e abraça uma vida de crimes, começando a produzir e vender metanfetaminas com o seu ex-aluno para assegurar o futuro financeiro de sua família após sua morte. Mesmo percorrendo um caminho pouco ortodoxo para um herói, usufrui da torcida dos fãs. Fonte: https://pt.wikipedia.org/ wiki/Breaking_Bad. 26 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar instituindo neste último uma relação exclusiva com este de maneira ao torná-lo cúmplice do narrado7. Do ponto de vista da forma, pode-se observar exemplos dessas tentativas de aproximação com as audiências como a adoção de técnicas de captação e edição de imagens que simulam situações de “ao vivo” ou de um sentido de redução da edição e pós-produção bem ao gosto da linguagem documental. Trata-se de planos sequência que bem podem indicar no seu transcorrer “erros construídos” ou imagens com “ruídos” que indiquem semanticamente a espontaneidade e autenticidade do captado. Todos, movimentos que denotam os esforços narrativos em buscar este receptor, dizendo a ele que as convocações feitas se baseiam em emissões muito próximas do real, ainda que ficcionais8. 4 Considerações Finais O que se pode depreender da reflexão trazida aqui é que as narrativas, em suas performances, acompanham as estruturas e influências estéticas e técnicas do tempo e contexto em que estão inseridas. Neste caso, as narrativas audiovisuais apresentam uma configuração que manifesta, por decorrência, a valoração sócio-técnica-discursiva deste tempo, e que está relacionada à contínua reconstrução, significação e hibridação 7 Sobre a questão da cumplicidade estabelecida entre o narrador e a sua audiência pode bem ser observada na série House of Cards. Na série, o político corrupto Frank Underwood (Kevin Spacey) usa todos os expedientes para se tornar presidente dos Estados Unidos. O desenrolar da história é pontuado pelas interlocuções de Frank com o público, com quem confidencia informações e comentários importantes acerca da cena política vivenciada. Para tanto, ao dirigir-se de frente para o telespectador, Frank quebra a quarta parede, conceito oriundo do teatro e adotado pela ficção em que se simula existir uma parede no lugar do público. Em função da cumplicidade estabelecida entre Frank e a plateia a partir da quebra da quarta parede, estabelece-se aqui diferentes níveis narrativos na série. A dissertação Além de um castelo de cartas: A metaficção na série House Of Cards tratou da questão da metaficção na série. Fonte: http://btd.unisc.br/Dissertacoes/GabrielSteindorff.pdf 8 A série de suspense True Dectetive apresenta o trabalho de dois detetives, Rustin Spencer (Mathew McConaughey) e Martin Eric (Woody Harrelson), e é ambientada no estado de Louisiana, EUA em 3 décadas distintas: 1995, 2002 e 2012. Essa linha do tempo vai e volta, o que faz uma conexão bem legal com uma das idéias de Nietzsche citadas na série: a de que o tempo é um círculo plano. O uso do plano sequência é frequente na série, mas no quarto episódio, ficou famoso o ousado plano sequência de seis minutos utilizado para mostrar uma cena de perseguição. A complexa mise-en-scène do desfecho deste quarto episódio foi tão impactante, que mesmo sabendo que Cohle não corria nenhum grande perigo, experimenta-se grande tensão durante um ataque à casa dos traficantes. Fontes: http://www.planocritico.com/critica-truedetective-1a-temporada/ e http://www.ligadoemserie.com.br/2014/02/true-detective-quando-a-tv-consegue-ser-melhor-que-o-cinema/#.V0tnZCF2GgQ 27 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar própria do que se evidencia no contemporâneo. Diante de tanta oferta narrativa e das possibilidades ofertadas pelas condições tecnológicas, as narrativas audiovisuais se reinventam para manter e estreitar o diálogo com este novo público. Com relação às séries, essas reproduzem enquanto produtos audiovisuais, os valores e configurações necessárias para manter e tornar ainda mais vigorosa a correspondência entre o âmbito da emissão e da recepção. Para isso, apostam na complexidade de suas narrativas, capazes de vincular este público pelas possibilidades de situações e soluções dramáticas que podem ofertar. Buscam a cumplicidade de suas audiências marcando a narrativa por estratégias de sentido que corroborem a ideia do real e de sua proximidade na história contada, investindo em protagonistas humanizados que experimentam as situações mais cotidianas e ordinárias. Neste processo, esses personagens têm seus dilemas desvelados na medida da possibilidade de ali se obter problematizações verdadeiramente densas. Em razão disso, pode-se dizer que o sucesso das séries é decorrência desse conjunto de emergências relacionadas a estas narrativas que garantem mais qualidade às mesmas, bem como justificam um debruçar investigativo sobre elas. Enfim, tem-se a legitimidade necessária para desse olhar extrair-se elementos que definitivamente podem contribuir para o estudo das narrativas de maneira largamente entendidas e das narrativas midiáticas de forma mais específica. 5 Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 258 p. CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1999. 209 p. (Arte & comunicação ; 42) CARLÓN, Mario. Repensando os debates anglo-saxões e latino-americanos sobre o “Fim da Televisão”. In: CARLÓN, Mario & FECHINI, Yvana. (orgs.). O fim da televisão. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2014. 134 p. ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 353 p. ESQUENAZI, Jean-Pierre. 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Respaldamonos no pressuposto de que a convergência jornalística refere-se a um processo de integração dos modos tradicionalmente separados de comunicação, que afeta as empresas, as tecnologias, o público e os profissionais em todas as fases de produção, distribuição e consumo de conteúdo. Assim, a pesquisa identificou e analisou as transformações dos espaços do leitor decorrentes da convergência jornalística na redação do jornal ZH delineando novos elementos, práticas e configurações que derivam da inserção das audiências na produção jornalística institucionalizada. A publicação estudada ocupa a posição de líder em circulação no 1 Doutora em Comunicação e Informação (UFRGS, 2014); professora no Departamento de comunicação Social e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), onde atua junto ao Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas (Genalim); também integra o Grupo de Pesquisa Laboratório de Edição, Cultura & Design (LEAD/UFRGS/CNPq). 2 A tese, intitulada “O jornal Zero Hora e seus leitores no contexto de convergência jornalística”, foi defendida em abril de 2014, junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS). 32 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Rio Grande do Sul e quarta no Brasil3 e é editada pelo maior conglomerado de mídia do Sul do país, o Grupo Rede Brasil Sul de Comunicação (RBS). Ocorre que, durante a pesquisa, identificamos com frequência a manifestação da empresa em espaços como o Blog do Editor (meio digital) e a Carta do Editor (meio impresso), reforçando a importância do leitor e indicando canais de aproximação deste com o jornal. Posterior à realização da pesquisa de doutorado, seguimos acompanhando o veículo e verificamos a recorrência destas publicações, não apenas nos espaços já mencionados, mas também na fanpage4 de ZH e do próprio grupo RBS. Assim, com vistas a dar sequência ao trabalho de investigação, definimos como objetivo deste artigo analisar as narrativas da fala institucional de ZH publicadas na Carta do(a) Editor(a) em 2014 e 2015 e disponibilizadas na web, visando compreender as estratégias do veículo ao referir-se aos seus leitores, considerando que estas manifestações fazem parte do processo – em andamento – de convergência midiática. 2 ZH, os leitores e a tecnologia É tradição em Zero Hora a criação de canais, setores ou estratégias para estreitar vínculos com seus leitores, bem como o investimento em tecnologias digitais de comunicação e informação – e, não raras vezes, estes dois eixos estão correlacionados. Em abril de 1995, ZH se tornava o primeiro veículo da RBS com endereço eletrônico: [email protected]; em junho de 1995, foi lançado o primeiro site de Zero Hora na internet, tornando-o o segundo jornal com edição digital no país (o primeiro foi o Jornal do Brasil). Em 2001, com a chamada RBS Interativa, que um ano depois foi reformulada, passando a trabalhar com ênfase no RBS Direct, o grupo introduziu no Brasil o conceito CRM (Costumers, Relationship Management – gestão de relacionamento de clientes), que “se tornou o maior banco de dados, de nomes, do País, atuando desde São Paulo e Porto Alegre” (SCHIRMER, 2002, p. 187). 3 Dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) indicam que ZH alcançou 208.963 em circulação total no mês de fevereiro de 2016, somando edições impressa e digital. O jornal Folha de S.Paulo (SP) lidera a lista, seguido por O Globo (RJ) e Super Notícias (MG). 4 Fanpage (ou “página de fãs”, em português) é uma página criada dentro da rede social Facebook, na qual empresas, instituições ou marcas publicam conteúdos e interagem com seus públicos. 33 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Em 19 de setembro de 2007, o site zerohora.com foi lançado em substituição à antiga página estática do jornal ZH, que até então era publicada no portal ClicRBS. O projeto nasceu com a intenção de agregar conteúdos de fontes diversas, utilizando uma linguagem mais apropriada para as redes e explorando características como atualização contínua, canais colaborativos, conteúdos multimídia e recursos de recuperação de memória (consulta a edições anteriores, utilização de banco de dados). Neste mesmo ano ocorreu a unificação das redações de ZH e zerohora. com, iniciativa que representou um avanço da empresa em conformidade com as tendências do mercado impostas pela evolução das redes digitais, e que evidencia a imersão do jornal no processo de convergência jornalística (LINDEMANN, 2014). A partir de 2009, o periódico passou a investir no lançamento de produtos mobile, com versões para tablets, smartphones e celular – o que, inferimos, para além das adequações ao processo convergente em termos tecnológicos, faz parte das estratégias de aproximação do público e da fidelização dos leitores que, cada vez menos, consomem o jornal impresso (LINDEMANN, 2014). Em dezembro do referido ano, as notícias e os cadernos fixos já estavam disponíveis no Kindle e em fevereiro de 2011, a empresa disponibilizou o aplicativo do jornal para iPad, Motorola Xoom e Galaxy Tab. Também em 2011, foram lançados aplicativos de ZH para o iPhone, BlackBerry e para os smartphones que utilizam o sistema Android, permitindo aos internautas visualizarem notícias e conteúdos multimídia produzidos por ZH. Ainda neste mesmo ano, o site passou por uma reformulação e, de acordo com Gleich (2013), “um ponto muito importante foi a inclusão de links para redes sociais”. Além disso, conforme a diretora de redação, houve uma preocupação em abrir seções de participação para os leitores e em exibi-las visualmente de modo mais organizado. “Esse foi um dos pilares da nossa mudança”. No dia 4 de dezembro de 2011, em texto5 assinado pelo então diretor de redação de ZH, Ricardo Stefanelli, a empresa divulgou a criação do selo Do Leitor, que passaria a ser utilizado junto às notícias ou fotos provenientes de colaboradores no jornal impresso. O intuito, consta na publicação, era conversar ain5 Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/editor/2011/12/03/carta-do-editor-dialogo-permanente/?topo=13,1,1,,,13 Acesso em: Acesso em: 24 jul. 2016. 34 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar da mais com o público e dar voz a quem sabe se fazer respeitar. A empresa apresentou mudanças gráficas e novas formas de comunicação entre profissionais e a sociedade, garantindo que, com a iniciativa, o conteúdo enviado pelos leitores iria circular em todo o jornal, não apenas na página tradicionalmente utilizada para expor opiniões, notas e comentários do público6. Portanto, 2011 pode ser considerado um ano marcante no que tange às estratégias do jornal envolvendo a relação com seus leitores, uma vez que novos projetos surgiram com ênfase nesta proposta – em grande medida alicerçados em recursos tecnológicos. No dia 20 de janeiro de 2012, igualmente no Blog do Editor, um post7 foi publicado convidando os leitores para se inscreverem para a segunda edição do Conselho Virtual de ZH, que tem o propósito de melhorar o jornal constantemente. Conforme explica o texto, “a ideia é criar um espaço de discussões em que o grupo sinta-se à vontade para criticar, sugerir e conversar abertamente sobre ZH. Como os debates são online, podem participar leitores de todo o Estado, Brasil ou mesmo do Exterior.”8 Em setembro de 2012, a diretora de ZH, Marta Gleich publicou, em carta na página dois do jornal (Carta da Editora), que também foi veiculada no Blog do Editor9, um texto exaltando a participação do público como produtor de conteúdo por meio da rede social de fotos e vídeos Instagram. “Nas últimas duas semanas, Zero Hora publicou na sua edição impressa 43 fotos do Instagram”, disse ela na abertura do texto, acompanhado de nove fotos feitas pelos colaboradores. Segundo a jornalista, mais de 1,7 mil pessoas participaram de seis “missões” dadas pelo jornal. Já em abril de 2013, foi publicado, no Blog do Editor, um texto intitulado “Nos 49 anos de ZH, seja um dos editores do jornal”10, convidando os leitores a ajudar a construir o jornal do dia 4 de maio. Segundo consta no post, a referida edição 6 Tradicionalmente, a página dedicada para conteúdos enviados pelos leitores em ZH era a página 2. Em maio de 2013, o jornal passou por uma reforma gráfica e estes conteúdos não têm mais página fixa, variando diariamente. 7 Nome dado a cada publicação feita em um blog (texto, fotografia, vídeo ou áudio). Também chamada de postagem. 8 Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/editor/2012/01/20/zh-seleciona-leitores-para-onovo-conselho-virtual/?topo=13,1,1,,,13 Acesso em: 24 jul. 2016. 9 Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/editor/2012/09/22/carta-da-editora-a-vida-sobas-lentes-do-instagram/?topo=13,1,1,,,13. Acesso em: 24 jul. 2016. 10 Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/editor/2013/04/23/nos-49-anos-de-zh-sejaum-dos-editores-do-jornal/?topo=13,1,1,,,13. Acesso em: 24 jul. 2016. 35 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar traria – e assim o fez – em destaque pautas sugeridas e comentadas pelos leitores. Ainda em 2013, o jornal investiu profundamente em um projeto que estabeleceu uma nova editoria, chamada Do Leitor. Vale lembrar que, no quesito “relacionamento com leitores” ZH se destaca pelo pioneirismo ao criar, em 1991, a Editoria de Atendimento ao Leitor, cuja principal responsabilidade era a produção da página dois de ZH, com ênfase em textos de opinião e comentários enviados pelos leitores, e também o atendimento aos leitores em relação a assuntos editoriais (MINUZZI, 2007). O primeiro grupo a trabalhar especificamente com os leitores localizava-se na mesma sala do departamento de Arte e Fotografia, separada da redação. Em 2011, ocorreu uma mudança de nome, para Editoria de Relacionamento com o Leitor, e a primeira mudança de espaço físico deste grupo se deu em dezembro de 2012, como ação estratégica de um projeto maior, que estava sendo maturado desde então pelos gestores do jornal. Na ocasião, a equipe foi para dentro da redação, logo na entrada de uma das portas (lateral esquerda)11 – ou seja, no “fundão”, se considerarmos que no extremo oposto ficam as salas da chefia e, no centro, o chamado “meião”, onde encontram-se o editor-chefe, seus assistentes e o editor do jornal digital (LINDEMANN, 2014). Conforme Vergara (2013), na época editora assistente da Editoria de Relacionamento com o Leitor, “foi bem clara essa diretriz de que o leitor não poderia ficar afastado, lá com os departamentos técnicos”. Em maio de 2013, o novo projeto foi implementado – o que acarretou alteração de funções entre os profissionais envolvidos e, cerca de 30 dias após (junho/2013), uma segunda mudança de nome e geográfica dentro da redação. A editoria passou a denominar-se Editoria do Leitor, localizada ao lado do “meião” – portanto, um espaço de grande visibilidade e de fácil acesso a todos os demais membros do corpo editorial de ZH –, coordenada pela jornalista Barbara Nickel, até então editora de Mídias Sociais. Esta mudança evidenciava, à época, uma nova concepção acerca do leitor, como revelou a diretora de redação, Marta Gleich: 11 A redação tem formato de “U”, sendo que em cada uma das pontas há uma porta de entrada. 36 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar A ideia é trazer cada vez mais o leitor para o centro da redação. O Relacionamento com o Leitor 12 era uma coisa secundária. Ao trazer ele para cá [centro da redação], simbolicamente e, de fato, estamos dizendo: o Relacionamento com o Leitor é tão importante quanto qualquer uma das outras editoriais. Com este movimento teremos realmente o leitor no centro do jornal, esse é o significado. Se a gente faz um jornal para o público, o público tem que estar aqui dentro, então esta é a ideia. (GLEICH, 2013) Conforme a diretora de ZH, “o jornal que não se abrir para os leitores e para um conteúdo dosado, está ralado. Nós temos que fazer isso, o público espera isso da gente, essa participação maior, porque é assim que está a vida”. (GLEICH, 2013) Para dar conta desta demanda, foram agrupados na nova editoria três setores que, conforme Gleich, se sobrepunham e se complementavam: Relacionamento com o Leitor, Divulgação e Mídias Sociais. Contudo, o projeto durou apenas um ano, sendo extinto em maio de 2014. A partir de então, a aposta do jornal passou a enfatizar essencialmente o relacionamento com o público via mídias sociais, as produções especiais multimídia13, bem como em conteúdo mobile (tablets e smartphones) (NICKEL, 2014). Segundo Nickel (2014), a grande preocupação de ZH era, nesta altura, estar mais próxima do leitor, fazendo um jornal útil e necessário para a condução de suas tarefas – e, para tanto, a exigência passava a ser, mais do que nunca, ouvir o leitor. O percurso de ZH nos permite a constatação de que a convergência jornalística acarreta transformações que transcendem as questões tecnológicas, afetando também as estratégias de ação (incluindo o âmbito econômico), os espaços físicos, as equipes e os produtos finais. São estabelecidas novas relações entre jornalistas e audiências, afetando as rotinas produtivas e resultando em conteúdos diferenciados (ou na tentativa destes), cuja proposta inclui contemplar a voz do leitor. Nossa proposta, a partir deste cenário, é averiguar de que modo ZH expressa estas iniciativas no canal denominado Carta do(a) Editor(a), entendendo que as publicações neste espaço representam a fala institucionalizada do jornal e fazem parte da estratégia de estreitamento 12 No dia da entrevista (maio/2013) as mudanças ainda não haviam ocorrido, por isso a diretora fala em Relacionamento com o Leitor e não Editoria do Leitor. 13 Até o dia 6 de junho de 2016 a seção “Especiais ZH” continha 84 reportagens multimídia. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/especiais-zh Acesso em: 6 jun. 2016. 37 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de vínculo com o público, o que é uma forte característica da convergência midiática, na qual insere-se o jornalismo. Antes da análise, porém, identificaremos quem é o narrador que assume este espaço, visando compreender seu potencial e sua função na relação com o leitor. 3 As vozes narrativas Uma das alternativas possíveis para compreender a relação entre o jornal ZH e seus leitores é por meio da narratologia, que procura descrever de forma sistemática os códigos que estruturam a narrativa e os signos que esses códigos compreendem (LOPES; REIS, 1988). A partir de Motta (2013, p. 79), tomamos como pressuposto que a narratologia se dedica “ao estudo dos processos de relações humanas que produzem sentidos através de expressões narrativas14” – a exemplo do jornalismo, história ou biografias no campo factual, e dos romances, cinema ou telenovelas no campo ficcional. Assim, a narratologia “inclui todas as produções do ser humano cuja qualidade essencial é o relato de uma sucessão de estados de transformação e cujo princípio organizador do discurso é o contar” (MOTTA, 2013, p. 79). Procuramos, a partir desta teoria e considerando o atual cenário de convergência jornalística, “entender como os sujeitos sociais constroem instersubjetivamente seus significados pela apreensão, representação e expressão narrativa da realidade.” (MOTTA, 2013, p. 79). Nesta conjuntura, pois, os narradores são agentes fundamentais do processo de enunciação, conforme já apontado pelo Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Midiáticas (Genalim), do qual fazemos parte. As chamadas “vozes narrativas” 15 – ou seja, as emissões realizadas pelos narradores – têm diferentes níveis de poder no ambiente jornalístico, o que pode ser verificado a partir da proposta de Motta (2013), que categoriza três narradores ou instâncias narrativas por meio das quais as enunciações têm lugar. São eles: 1) Primeiro narrador: narrador-jornal, extradiegético, fora da 14 Grifo do autor. 15 Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/6254/4242 Acesso em: 22 de jul. de 2016 38 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar história; refere-se à organização jornalística, que viabiliza, por meio de seus agentes, o dispositivo jornal (e os demais dispositivos dessa natureza); 2) Segundo narrador: narrador-jornalista, intradiegético, dentro da história; é, portanto, “o jornalista, a voz que enuncia propriamente a narração, organiza e costura a tessitura da intriga, dispõe as ações, conflitos, personagens e cenas.” (MOTTA, 2013, p. 228); 3) Terceiro narrador: narrador-personagem, intradiegético, dentro da história. Este grupo concerne às fontes ou personagens das narrativas. Baseado em Genette (1998), o modelo proposto por Motta (2013) foi adaptado para análise de notícias veiculadas em jornais. Estes, como aponta Soster (2015), dialogam com seu público-alvo por meio de dispositivos que têm como uma de suas principais marcas a periodicidade, e são geridos por uma hierarquia produtiva, dentro de organizações, o que interfere nas instâncias narrativas. “A interferência, observa-se, é mútua; mas tende a ser mais incisiva, e determinante, do primeiro para o terceiro narradores.” (SOSTER, 2015, p. 28) A seção Carta do(a) Editor(a) é veiculada semanalmente em ZH, além de ser replicada no site do jornal, e não tem caráter noticioso – contudo, é um espaço de interlocução entre o veículo e seus leitores. Verificamos, a priori, uma confluência entre o primeiro e o segundo narradores, uma vez que o jornalista (segundo narrador) que escreve assume um papel hierárquico na empresa, falando, na quase totalidade das vezes, em nome da mesma (primeiro narrador). Assim, nosso objetivo é analisar as Cartas do(a) Editor(a) para verificar as estratégias narrativas destes narradores, a partir da proposta de Motta (2013), em especial para compreender de que modo ZH vem se posicionando institucionalmente para relacionar-se com o leitor. Em tempos de convergência – processo este que acarreta tensões no campo jornalístico, perda de leitores, mudança de hábitos no consumo de notícias, dentre outros tensionamentos – acreditamos ser esta uma reflexão oportuna. 4 Cartas do(a) Editor(a): uma estratégia narrativa institucionalizada Conforme já relatamos, além dos meios tradicionais para manifes- 39 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar tação do público, como telefone, e-mail e colunas opinativas, o jornal ZH tem criado projetos que visam acompanhar as tendências da web 2.0 e explorar o potencial dos leitores no fornecimento de imagens, textos, sugestões de pauta e vídeos. Há, também, uma preocupação nítida em estabelecer uma aproximação com o público, principalmente através das redes sociais, conforme demonstram resultados da pesquisa de Lindemann (2014). A divulgação destas esferas interativas é feita por meio impresso e também digital, via canais institucionais, como as Cartas do(a) Editor(a), o Blog do Editor e perfis em redes sociais, ou mesmo nos espaços editoriais, em textos que visam, sobretudo, incentivar as pessoas a participar e fazer com que sintam-se parte do jornal, conforme veremos a seguir, quando apresentaremos e discutiremos algumas destas publicações. A Carta do(a) Editor(a), publicada semanalmente em ZH (versão impressa) e também reproduzida no site zerohora.com, foi escolhida para análise nesta pesquisa. Trata-se de uma coluna de cunho institucional, onde o editor-chefe da publicação ou a diretora de redação – com raras exceções, como verificamos neste estudo – escrevem sobre acontecimentos dos bastidores da redação, escolhas editoriais, novos produtos, mudanças na equipe ou no espaço físico da empresa, bem como no projeto gráfico ou editorial, premiações recebidas pelos jornalistas, colaboradores ou pela própria ZH e/ou RBS. Como objeto de análise delimitamos as cartas veiculadas no Blog do Editor na seção Carta do(a) Editor(a) durante os anos de 2014 e 2015. No primeiro ano encontramos 62 posts na referida categoria, sendo que 53 destes tinham o mesmo cabeçalho utilizado na versão impressa (Figura 1), o que nos leva a acreditar tratar-se do mesmo conteúdo16. Com relação à autoria, em 2014 identificamos 44 posts assinados pela diretora de redação, Marta Gleich, seis assinados pelo editor-chefe, Nilson Vargas, dois assinados pelo diretor-executivo de jornalismo do Grupo RBS, Marcelo Rech, e um assinado por Diego Araujo, editor de esportes. As nove postagens que não possuíam o referido cabeçalho17 também não estavam assinadas. Já em 2015, tabulamos um total de 47 posts, dos quais 46 possuíam o cabeçalho, 16 Não recorremos ao veículo impresso para realizar a comparação, visto que o foco desta análise é o suporte digital. 17 Nestes casos, há algumas variações em termos de conteúdo, com uso de vídeos além de imagem e texto. 40 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar também utilizado na versão em papel. Quanto à autoria, 41 textos foram assinados por Marta Gleich, cinco por Nilson Vargas e apenas um não estava assinado (o único que não continha o cabeçalho). Figura 1 – Identidade visual dos posts na categoria Carta do Editor, no Blog do Editor • Fonte: zerohora.com. Conforme Motta (2013), não há narrativa ingênua, quem narra tem sempre algum propósito. “Quer atrair, seduzir, envolver, convencer, provocar efeitos de sentido.” (MOTTA, 2013, p. 196). Ou seja, a narrativa funciona como um elo entre sujeitos ativos no processo de comunicação e é papel do analista identificar os dispositivos retóricos que revelem o uso intencional dos recursos linguísticos e extralinguísticos pelo narrador. Tomando como base este princípio, nosso estudo tem como proposta central verificar as estratégias narrativas contidas nas Cartas do(a) Editor(a) em relação aos leitores de ZH. Para tanto, após coletar os posts já mencionados, de 2014 e 2015, 41 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar fizemos uma leitura exploratória e mantivemos no corpus apenas aqueles em que os autores dirigem-se de modo enfático aos leitores, o que resultou em 18 publicações (13 de 2014 e cinco de 2015), todas assinadas pela diretora de redação, Marta Gleich. Também elaboramos, a partir deste primeiro contato com os textos, categorias para classificação das estratégias narrativas encontradas, que são: 1) Assuntos e/ou pautas relevantes para o leitor: textos que apregoam a realização de um jornalismo de utilidade pública / serviço, visando atender às necessidades do público; 2) Redes sociais e dispositivos móveis: textos que denotam a busca do estreitamento de vínculo com os leitores via Facebook e Instagram, por exemplo, bem como a oferta de produtos multiplataforma, indicando que ZH está acessível em vários dispositivos e alcançando, assim, um público diversificado; 3) Ações de aproximação: textos que exprimem interesse do jornal em inserir o leitor na produção de conteúdo; que apresentam pesquisas com o público cujos resultados servem de base para justificar mudanças editoriais e gráficas; que demonstram atendimento às demandas/críticas/queixas do leitor. O Quadro 1 exibe um resumo dos resultados que, em seguida, serão analisados e discutidos. Quadro 1 – Classificação dos conteúdos postados nas Cartas do(a) Editor(a) Categoria Publicações por ano Total de posts 2014 2015 1) Assuntos e/ou pautas relevantes para o leitor 3 1 4 2) Redes sociais e dispositivos móveis 5 1 6 3) Ações de aproximação 5 3 8 Fonte: produção própria. Conforme indicamos na abertura deste trabalho, em consonância com pesquisa anterior (LINDEMANN, 2014), entendemos que a convergência jornalística, para além das transformações tecnológicas, também 42 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar pode ser verificada em outras instâncias, como na gestão, nas estratégias editoriais e econômicas, nas rotinas de produção, nos produtos e também na relação entre empresa, jornalistas e público. Ao analisar as Cartas do(a) Editor(a) de 2014 e 2015, veiculadas no suporte digital – muitas das quais também publicadas no veículo impresso – verificamos que as premissas do projeto de ZH para o ano de 2014 (NICKEL, 2014) apareceram com saliência na narrativa de Marta Gleich. No papel de diretora de redação – portanto, ocupando um cargo hierárquico que lhe autoriza falar em nome da empresa – , a jornalista reforçou várias vezes a preocupação de ZH em produzir conteúdo relevante para os leitores (Categoria 1), bem como endossou o investimento do jornal em mídias sociais e dispositivos móveis (Categoria 2), corroborando com sua própria fala em entrevista concedida anteriormente a esta pesquisadora (GLEICH, 2013). Como exemplos da Categoria 1, podemos citar: “A partir do segundo semestre de 2013 o assunto mobilidade tornou-se prioritário em Zero Hora, por uma razão básica: sua relevância para nossos leitores. Mobilidade diz respeito a todos, porque não há quem não precise se mover de um ponto a outro.” (Texto: “O grande debate da mobilidade”, veiculado no dia 04/01/2014). “Há mais de 20 anos, Zero Hora tem pautado a cobertura de eleições pelo interesse do público. Não fazemos, aqui, reportagens para candidatos ou partidos. Nosso enfoque é a vida do leitor/eleitor, o que interessa a ele, o que pode mudar na sua vida em termos de saúde, educação, segurança, transporte, emprego, infraestrutura, economia e assim por diante.” (Texto: “Nosso voto vai para o leitor”, veiculado no dia 05/07/2014). “Foi numa reunião de editores que a pergunta surgiu: como a gente pode se tornar mais relevante e útil na vida do leitor? (...) – Precisamos ajudar o leitor a passar por essa crise – disse a editora FêCris Vasconcellos.” (Texto: “Encare a crise com Erik”, veiculado no dia 05/09/2015) Tais narrativas mostram que o jornal tenta suprir algumas demandas dos leitores e faz questão de endossar isso na fala institucionalizada. Os jornalistas esmeram-se em saber quais são as reivindicações ou carências do público pretendendo, assim, transformar ZH em um produto necessário na rotina dos consumidores. Em entrevista concedida em 2014, Nickel (2014) falava da necessidade de reforçar a boa relação com as audiências. Este era um dos objetivos da equipe da Editoria do Leitor, ainda em fase de planejamento na ocasião. “Para esse ano [2014], a gran- 43 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de preocupação é estarmos mais próximos do leitor no seguinte sentido: fazer matérias que sejam relevantes para a vida das pessoas” (NICKEL, 2014). A intenção, conforme a jornalista, era fazer um jornal útil, a ponto de todos sentirem a necessidade de lê-lo para conduzir melhor suas tarefas. “Isso significa que a gente precisa ouvir muito mais as pessoas, para saber o que elas querem, o que elas precisam. Prestar atenção no que elas estão dizendo é uma coisa imprescindível.” (NICKEL, 2014) Na Categoria 2, Redes sociais e dispositivos móveis, enquadramos os trechos expostos abaixo: “Barbara Nickel, da editoria do Leitor, avisou na sexta-feira que, dentro de poucos dias o Facebook da Zero Hora alcançará a marca de 1 milhão de curtidores. (...) O crescimento acelerado de curtidores no Facebook não é o único fenômeno identificado pelo time: há um decréscimo no número de e-mails recebidos, e isso não significa que vocês, leitores, estão escrevendo menos para nós. A instantaneidade das redes sociais está substituindo o e-mail, assim como o e-mail substituiu as cartas.” (Texto: “A embaixada do leitor na redação”, veiculado no dia 08/03/2014). “Na madrugada de quinta-feira, o facebook (sic) de ZH completou 1 milhão de curtidores. Ficamos tão felizes com esta marca que a registramos numa foto com toda a Redação. (...) – Pelo Facebook conversamos com os nossos leitores diariamente e conseguimos conhecê-los melhor. Os questionamentos e as críticas nos ajudam a melhorar constantemente o trabalho que fazemos na Redação. Também recebemos sugestões e comentários que acabam virando reportagens, e dos quais só ficamos sabendo graças a esse contato permanente com o nosso público – diz ela [Barbara Nickel].” (Texto: “Carta da editora: a Redação agradece ao leitor”, veiculado no dia 22/03/2014). “No mês de julho, Zero Hora alcançou pela primeira vez a marca de 10 milhões de usuários no site. (...) Analisando o fenômeno com Barbara Nickel, nossa editora-chefe digital, e Thiago Medeiros, gerente de Produto Digital, há três principais conclusões: primeiro, tem mesmo muito mais gente consumindo ZH em meios digitais. Segundo, você mudou seu comportamento, e está cada vez mais acessando informações em diferentes plataformas. Lê o jornal no papel, no computador, no smartphone, no tablet. Terceiro, nós mudamos totalmente o site, nossos aplicativos, o mobile site e estamos com mais jornalistas produzindo conteúdo próprio para o digital, e isso tem dado muito resultado.” (Texto: “10 milhões de usuários”, veiculado no dia 09/08/2014) “Cada vez mais, o leitor leva Zero Hora consigo, na rua, no caminho 44 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar para a faculdade ou trabalho, no supermercado, no estádio, no parque, no ônibus, na praia, em todo lugar. No primeiro trimestre de 2015, chegou a 46% o percentual de visitas mobile a nossos conteúdos digitais. Ou seja: de cada cem vezes que alguém consulta informações e notícias digitais de ZH, 46 são de dispositivos móveis (smartphones e tablets) e 54 de desktops ou computadores de mesa. (...) Outro número importante, pelo qual toda a Redação agradece aos leitores, é o da audiência desses conteúdos digitais, que bateu mais um recorde em março: 26,9 milhões de visitas. Se comparados os números do primeiro trimestre de 2015 aos do primeiro trimestre de 2014, o crescimento é de 30%, de 59,5 milhões de visitas, somando-se janeiro fevereiro e março, para 78,0 milhões.” (Texto: “O leitor em movimento”, veiculado no dia 04/04/2015) Os segmentos destacados denotam a obstinação de ZH em evidenciar a harmonia da redação com as tecnologias digitais – o que, em nossa leitura, é uma estratégia narrativa para aproximação entre ZH e o público. Além das redes sociais, também fazem parte deste contexto os investimentos em conteúdo mobile – tablets e smartphones, cada vez mais utilizados pela coletividade para acessar informações, dentre outras finalidades – , bem como a criação de uma equipe de jornalistas para trabalhar especificamente com conteúdos para o jornal online, conforme apontavam, à época, Nickel (2014) e Vergara (2014). Tal panorama salienta o quanto ZH está atenta às tecnologias e representa uma preocupação – fundamentalmente econômica – em alcançar um público que, como indicam as pesquisas, tem deixado o veículo impresso em detrimento de outras plataformas. Por fim, na Categoria 3, Ações de aproximação, destacamos os seguintes trechos: “Aproveito este espaço para fazer um convite especial a vocês. Comparecer ao Parque da Redenção neste domingo a partir das 13h para o Piquenique dos 50 anos de Zero Hora. (...) Lá estarão nossos colunistas, jornalistas, numa grande aproximação de Zero Hora com o seu público (...). O piquenique se dará ao redor da Estação ZH, um espaço temporário do jornal no parque, que tem como objetivo levar um pedacinho de Zero Hora do seu público. É mais uma maneira de dizermos: “Estamos perto de você, leitor, queremos ouvi-lo, queremos que você seja parte deste jornal”.” (Texto: “Um piquenique com os leitores”, veiculado no dia 24/05/2014) “A partir de hoje a Copa está concentrada em um caderno, e não 45 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar mais nas primeiras páginas do jornal, como vínhamos fazendo desde o dia 1º de junho. Depois de receber algumas observações de leitores, realizamos uma pesquisa com nossos assinantes e o resultado foi: 57% preferem a cobertura de Copa em um caderno separado, 30% gostariam de vê-la na editoria de Esportes ao final do jornal e apenas 4% aprovaram o formato usado até agora (nas páginas iniciais). Nosso mantra aqui na Redação é produzir o jornal que você lê todo dia a partir das suas necessidades.” (Texto: “ZH ouviu seus leitores”, veiculado no dia 12/06/2014) “Neste fim de semana, o Gustavo Foster, repórter digital de Zero Hora, inventou uma nova. Toda semana, ZH publica no site e em aplicativos “7 Coisas para o Fíndi”. São atividades bacanas para se fazer na sexta, no sábado e no domingo. Cinema, teatro, show, passeio, exposição, tem de tudo. O Gustavo costuma fazer a curadoria desse conteúdo. Mas ele resolveu perguntar, no Facebook de ZH, que está se aproximando de 1,5 milhão de curtidores (obrigada, queridos leitores), que tipos de dicas o público quer. Veio cada ideia boa! Onde fazer trabalho voluntário. Passeios curtos para fazer com a família, próximo à Região Metropolitana. Livros. Passeios de bike. Circo.” (Texto: “A contribuição dos leitores”, veiculado no dia 02/08/2014) “Na semana passada, perguntei aos leitores o que Zero Hora deveria fazer com os comentários em notícias e artigos publicados no site. Hoje os comentários são liberados, sem moderação da Redação, e algumas pessoas os utilizam para ofender e caluniar, baixando o nível da discussão, em vez de aproveitarem o espaço para o debate construtivo. Nossa equipe de desenvolvimento de produtos digitais já começou a trabalhar nisso. Sem censurar a possibilidade de participação, devemos partir para um controle maior do cadastro dos participantes. Essa solução deverá ser implementada em 2016. Agradeço aos leitores atenciosos que dedicaram tempo para nos responder. Foram dezenas de contribuições. Reproduzo algumas respostas à pergunta que fiz: Zero Hora deveria seguir com os comentários abertos, sem mediação?”. (Texto: “Comentários”, veiculado no dia 26/09/2015) Averiguamos, nos textos da diretora de redação, propostas de ações que ambicionam uma aproximação física entre jornalistas e leitores; também aparecem pesquisas endossando qual é o gosto do leitor e indicando que tais parâmetros norteiam as decisões editoriais de 46 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar ZH – ou seja, o jornal estaria apresentando o conteúdo que o público efetivamente deseja; além de pesquisas que mostram envolvimento do leitor em outras decisões, que não são pontualmente de cunho editorial, como a moderação ou não de comentários no site do veículo. Tratam-se, pois, de artifícios que intencionam dar transparência ao funcionamento da redação, mas que são, sobretudo, estratégias narrativas para fidelizar o leitor. 5 Reflexões finais A convergência jornalística é um processo ainda em curso que afeta os modelos de negócios, as práticas profissionais, as rotinas produtivas, os conteúdos e a relação entre jornalistas e público. Grande parte destas transformações decorre das invenções tecnológicas, que aceleram processos, oportunizam novos modos de apuração, produção, distribuição e circulação das informações. Imbuída neste ambiente mutável, ZH tem realizado ações nítidas para acompanhar as demandas que surgem. E, conforme indica a pesquisa de Lindemann (2014), corroborando com dados do levantamento aqui apresentado, o maior jornal gaúcho tem mantido a tradição – cujo berço é anterior ao estopim tecnológico digital – de apostar na proximidade com o público como forma de cativá-lo e fidelizá-lo. Logo, sustentamos que a preocupação em “agradar” o leitor é uma tática jornalístico-empresarial evidente nas narrativas analisadas. O discurso de Marta Gleich nas Cartas do(a) Editor(a) representa um elo entre as estratégias da empresa, os jornalistas e o público. Em consonância com Motta (2013), salientamos que não há narrativa ingênua, ou seja, quem narra tem sempre algum propósito para com os sujeitos ativos no processo de comunicação. No caso do veículo estudado, a fala institucionalizada visa mostrar aos leitores que assuntos e/ou pautas relevantes para eles são prioridade na pauta do dia, atendendo suas necessidades; que as redes sociais e os dispositivos móveis estão sendo usados com afinco pela redação, para que todos possam se manter informados permanentemente, em qualquer suporte ou canal; e, ainda, que há interesse do jornal em inserir o público na produção de conteúdo e nas decisões tomadas internamente. Em tempos de tensões no campo jornalístico, perda de leitores, 47 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar mudança de hábitos no consumo de notícias, dentre outros enfretamentos, acreditamos ser este um método de trabalho oportuno. Conforme dados do State of the News Media 2015, um dos mais importantes relatórios sobre a situação da mídia norte-americana, produzido anualmente pelo Pew Research Center, nos sites de notícias, a audiência oriunda de mobile segue crescendo, mas quem acessa pelo desktop tem um tempo de permanência maior de leitura. Além disso, a pesquisa indica que o Facebook é a porta de entrada de notícias para mais de 50% dos entrevistados.18 No Brasil transcorre algo semelhante. A Pesquisa Brasileira de Mídia (BRASIL, 2014)19 aponta que 48% dos brasileiros utilizam a internet e gastam, em média, cinco horas do seu dia conectados. Dentre as razões que justificam este uso, estão: 67% diversão/entretenimento; 67% buscar informações/notícias; 38% passar o tempo livre e 24% estudar, dentre outras com menor incidência. O emprego de aparelhos celulares como forma de acesso chegou a 66%, contra 71% em computadores ou notebooks e 7% em tablets. Um dos influenciadores deste resultado é o uso de redes sociais: 92% dos internautas estão conectados a elas, sendo as mais utilizadas o Facebook (83%), o WhatsApp (58%) e o Youtube (17%). Complementando tais resultados, é interessante observar, de acordo com pesquisa realizada pela agência Quartz20, que o Brasil ocupa o primeiro lugar da lista de países que mais consomem notícias por meio do Facebook – 67% da população tem este hábito, contra 57% da população da Itália, que aparece em segundo lugar. Portanto, é legítima a estratégia de ZH de aproximar-se do público através de diferentes dispositivos – sejam digitais ou mesmo analógicos, como a Carta do(a) Editor(a), publicada tanto em papel quanto no site do jornal, e que apresenta, em sua narrativa, marcas evidentes deste jogo jornalístico-empresarial, como bem apontamos. Em compensação, instiga-nos saber se, ao fisgar os leitores, lhes é oferecido o jornalismo que, de fato, eles esperam e merecem. Afinal, em tempos de convergência – e 18 Os dados foram reproduzidos pelo Farol Jornalismo. Disponível em: http://faroljornalismo.cc/blog/2015/05/01/newsletter-farol-jornalismo-43-especial-state-of-thenews-media-coberturas-do-nepal-e-de-baltimore-e-as-ultimas-do-crowdfunding. Acesso em: 6 jun. 2016. 19 A Pesquisa Brasileira de Mídia foi realizada pelo IBOPE com 18.312 pessoas maiores de 16 anos. O trabalho de campo ocorreu em novembro de 2014. 20 Dados reproduzidos pelo Observatório da Imprensa. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/e-noticias/cerca-de-70-dos-brasileiros-se-informam-pelo-facebook/. Acesso em: 6 jun. 2016. 48 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de crise (de modelos de negócios, em especial) – não basta estar perto; é preciso disponibilizar conteúdo de qualidade para, assim, conquistar a credibilidade e fidelizar o público. Referências BRASIL, Presidência da República. Pesquisa brasileira de mídia 2015: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília: Secretaria de Comunicação Social (Secom), 2014. Disponível em: http://www. secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf. Acesso em: 20 mai. 2015. GENETTE, Gerard. Nuevo discurso del relato. Madrid: Cátedra, 1998. GLEICH, Marta. Marta Gleich: depoimento, 2013. LINDEMANN, Cristiane. O jornal Zero Hora e seus leitores no contexto de convergência jornalística. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 2014. Disponível em: http://hdl. handle.net/10183/100146. Acesso em: 20 mai. 2015. MINUZZI, Marcus Vinícius. Diálogo entre jornalistas e leitores: a participação do público através do ombudsman de imprensa e do Conselho do Leitor de Zero Hora. Tese. Unisinos. São Leopoldo-RS, 2007. MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013. NICKEL, Barbara. Barbara Nickel: depoimento, 2014. LOPES, Ana Cristina M.; REIS, Carlos. Dicionário de teoria narrativa. São Paulo: Ática, 1988. SCHIRMER, Lauro. Da Voz-do-Poste à Multimídia. Porto Alegre: L&PM, 2002. SOSTER, Demétrio de Azeredo. A reconfiguração das vozes narrativas no jornalismo midiatizado. In: Rizoma. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 1. Santa Cruz do Sul: Unisc, jul/2015, p. 23-35. VERGARA, Nereida. Nereida Vergara: depoimento, 2013. VERGARA, Nereida. Nereida Vergara: depoimento, 2014. 49 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar O quarto narrador como um problema de circulação midiática Demétrio de Azeredo Soster1 1 Percurso de pesquisa O objetivo deste capítulo é demarcar o percurso de pesquisa que possibilitou a emergência do conceito de quarto narrador e suas complexificações, bem como os desafios de que se apresentam desde então. Por esta perspectiva, os dispositivos que compõem o sistema midiático-comunicacional, em determinadas situações, são detentores de vozes narrativas; compreender como se dão estes processos de enunciação permitir identificar este que estamos chamando de “o quarto narrador”. Sob outro ângulo, insere-se da discussão a problemática da circulação, à medida que a identificação do quarto narrador se estabelece em uma ambiência midiatizada, reconfigurando lugares. Iniciaremos com dois reconhecimentos e uma conclusão: 1) o sistema midiático, em determinadas circunstâncias, é detentor de voz narrativa, cujos processos de enunciação lhe emprestam, a um tempo, identidade e diferença na relação com o meio em que se insere e com os demais sistemas, e, decorrência disso, 2) que emerge desta “condição” um novo extrato narrativo, que denominamos quarto narrador. A conclusão, decorrência de 1) e 2), é que este quarto narrador, 1Pós-doutoranto pelo PPG de Comunicação da Unisinos. Professor-pesquisador do Programa de Pós Graduação em Letras e do Departamento de Comunicação Social da Unisc. Integrante o Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e ComunicacionaisGENALIM (CNPQ). Coordena a (SBPJor) Rede Nacional de Pesquisa so¬bre Narrativas Midiáticas (RENAMI), ligada à SBPJor. [email protected] 50 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de natureza multifacetada e plurivocal, afeito antes a uma processualidade que a um lugar situacional, como veremos adiante, reconfigura as perspectivas seminais de Genette (1988) e Motta (2013), à medida que reconhece no diálogo entre os dispositivos o “lugar” em que as enunciações se estabelecem. Reconhecê-lo como tal coloca-nos diante da seguinte questão: o quarto narrador é um problema de circulação? A opção pela abordagem via circulação, no diálogo com Bergson (2005) e Marcondes Filho (2010), reafirma a percepção que, caso queiramos compreender a essência do que estamos afirmando neste capítulo, ou seja, que a voz do quarto narrador se estabelece processualmente, é preciso pensá-lo se transformando a cada instante. Se isso se evidencia dessa forma, é porque a sociedade, neste momento evolutivo, está estruturada sobre complexos mecanismos de circulação fortemente marcados por processos interacionais de referência (BRAGA, 2007) que se dão sobre bases midiatizadas. A observação do objeto, pelas condições descritas acima, encontra consideráveis barreiras epistemológicas por pelo menos dois motivos: 1) por ele dizer respeito, seminalmente, a uma relação sistêmi¬ca; ou seja, observá-lo em parte permite que se veja, antes, a parte que o objeto como um todo. (BERTALANFFY, 2006); 2) sua análise representar uma observação de segunda ordem, à medida que ele, enquanto objeto, se estabelece a partir de complexos processos de enunciação gerados por dispositivos sócio-tecnológicos, o que requer gramáticas específicas de compreensão. No que tange ao primeiro ponto, o registro dos acontecimentos, à revelia de sua natureza, nos aproxima apenas de forma indiciática da essência dos mesmos, à medida que esta, por estar em constante processo de transformação, é inapreensível. A observação é de segunda ordem, por outro lado, porque o objeto emerge de processualidades sistêmicas (LUHMANN, 2009). Ou seja, o que vemos, quando identificamos o quarto narrador, é uma reconfiguração do acontecimento a partir do diálogo existente ente os dispositivos que integram o sistema midiático. Por este viés, analisamos, fenomenologicamente, antes, os movimentos de quem observa (o sistema) que necessariamente aquilo que é observado. (LUHMANN, 2009). Do ponto de vista metodológico, estamos falando de um caminho de pesquisa de natureza qualitativa (DEMO, 2000) à medida que se debruça sobre um objeto a um tempo complexo e emergente. Para compreendê-lo melhor, descreveremos caminho que nos trouxe até este 51 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar estágio da pesquisa; inseriremos, na discussão, o quarto narrador e, nela, a questão da circulação. 2 Como chegamos até aqui A percepção que existe, para além dos extratos identificados seminalmente por Genette (1988) e Motta (2013), um quarto nível narrativo e que, para compreender sua essência, precisamos deixar, na análise, o âmbito do dispositivo e considerar as operações existentes entre os dispositivos do sistema midiático, está diretamente relacionada ao caminho do grupo de pesquisa Narrativas comunicacionais reconfiguradas. Por este viés, ainda em 2010, o grupo, formado pelos professoresdoutores Demétrio de Azeredo Soster e Fabiana Piccinin, além dos então alunos de graduação em jornalismo Joel Haas, Pedro Picolli Garcia e Vanessa Kannenberg (monitora), começou a estudar, pelo viés da teoria da narrativa, como se estabelecia a intersecção da comunicação com a literatura. Interessava, sobretudo, observar as estratégias que jornais impressos diários estavam realizando para fortalecer seus vínculos identitários, e, com isso, viabilizar suas operações (SOSTER et. al., 2010) Dentre as constatações, considerando, por exemplo, pesquisa realizada de 1º a 30 de setembro de 2010 com os jornais Zero Hora, de Porto Alegre, e Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, é que estes movimentos podiam ser identificados pela emergência de textos mais elaborados nas amostras analisadas. Ou seja, relatos de natureza interpretativa e diversional encontradas em jornais diário, mais afeitos a notícias, por exemplo, sugeriram operações realizadas pelos dispositivos para se diferenciar dos demais, e, com isso, viabilizar suas próprias operações. A partir de 2012, e até 2014, agora com novos integrantes – Diana de Azeredo (monitora), Daiana Stockey Carpes, Rodrigo Bartz e Vanessa Costa de Oliveira – a pesquisa deixa de lado finalmente o âmbito do dispositivo e começa a prestar mais atenção aos movimentos de natureza sistêmica, tendo por objeto central, ainda, as imbricações entre o jornalismo e a literatura. A atenção, a partir deste momento, passa a se concentrar sobre a imbricação entre os dois campos de conhecimento por meio da análise de formatos específicos de publicação de natureza jornalístico-comunicacional, genericamente chamados de livros-reportagem e biografias jornalísticas. 52 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Na categorização de Lima (2009), livros-reportagem são veículos de comunicação impressa não periódicos que “(...) apresentam reportagens em grau de amplitude superior ao tratamento costumeiro nos meios jornalísticos periódicos” (LIMA, 2009, p. 26). Já biografias de natureza jornalísticas são vistos como uma variante dos livros-reportagens, mas que, diferentemente dos primeiros, se estabelecem quando “(...) um jornalista centra suas baterias mais em torno da vida, do passado, da carreira” (LIMA, 2009, p.45) de alguém. A proposta era observar a emergência destes formatos de narrativa e as reconfigurações decorrentes da utilização, por parte do jornalismo, de recursos da narrativa de natureza literária que acabam por transformar tanto o que é da ordem do jornalismo como da literatura em uma perspectiva dialogal. É dessa época, por exemplo, que emergem artigos como “Reconfigurações narrativas no jornalismo e na literatura2”, publicado na Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo (Rebej). Partiu-se do princípio que, não obstante as origens das imbricações entre jornalismo e literatura remontarem ao surgimento do primeiro, no século 13, em algum lugar da Europa central, este modelo de narrativa parece ocupar um lugar diferenciado nos dias que se seguem, reconfigurando a prática tanto no que tem de jornalístico-comunicacional como de literária, especialmente, e de modo diferencial, na contemporaneidade, como estratégia de identidade. As atenções se debruçaram, à época, sobre os livros-reportagem e biografias de Fernando Morais, como se pode observar pelo artigo “O que dizem os gêneros nas narrativas jornalísticas não-biográficas de Fernando Morais3”, apresentado em Manaus, Amazonas, durate o 35º encontro da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVI (Intercom) - Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Partia-se do pressuposto, no artigo, que observar a riqueza narrativa dos livros-reportagem de Fernando Morais de natureza não-biográfica implicava analisar, de um lado, as categorias e os gêneros que a compõe, enquanto que, de outro, o papel que ela ocupa no sistema midiático-comunicacional. A hipótese que norteou a pesquisa é que as categorias e suas derivações eram, antes, indexadores de camadas mais profundas de significação que mecanismos de compartimentalização textual. 2 Disponível em: http://www.fnpj.org.br/rebej/ojs/index.php/rebej/article/viewFile/314/199 Acesso em: 7 de junho de 2016 3 Disponível em http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2013/resumos/R8-0046-1. pdf Acesso em: 7 de junho de 29016 53 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar A pesquisa permitiu observar, à época, que a emergência destes formatos de narrativa juntos aos demais dispositivo do sistema midiático (rádios, jornais, revistas, televisões, sites etc.) se dava em decorrência de movimentos que buscavam, ao fim, fortalecer os laços identitários do referido sistema. A pesquisa avança e começa a tomar dimensões mais amplas, a partir de 2015, quando se insere, na discussão, o primeiro, segundo e terceiro narradores identificados primeiro por Genette (1988), na literatura, e, depois, por Motta (2013), na comunicação. 3 Os três narradores Sinteticamente, eles podem ser assim descritos (SOSTER, 2015): Primeiro narrador – Reconhecê-lo como tal implica observar que os relatos que nos chegam pela televisão, rádios, sites, jornais e revistas impressos, no que eles têm de jornalísticos, para ficarmos em alguns exemplos, são enunciados dos dispositivos a que se referem (a manchete do jornal, por exemplo), evidentemente, mas, também, das organizações e instituições que viabilizam os mesmos. Ou seja, o primeiro narrador, que é extradiegético, é, em sua essência, seminalmente plurivocal, à medida que é formado por agentes e processos dos mais diferentes matizes e naturezas (empresários, diretores, editores etc.). Segundo narrador – “É o jornalista, a voz que enuncia propriamente a narração, organiza e costura a tessitura da intriga, dispõe as ações, conflitos, personagens e cenas.” (MOTTA, 2013, p. 228). O jornalista-narrador, que é intradiegético, possui autonomia operacional, mas suas ações estão condicionadas ao primeiro narrador. Por exemplo: o jornalista, mesmo tendo liberdade, em maior ou menos grau, de elaborar sua pauta, esta estará sempre umbilicalmente ligada ao local (dispositivo) em que ele vai publicá-la em seus mais diversos sentidos (espacial, temático, ideológico etc.) Terceiro narrador – São as fontes, ou personagens, das matérias. Intradiegéticos, igualmente, porque dentro das histórias, e subordinados principalmente ao segundo narrador. Também aqui, a percepção de que as fontes são subordinadas deve ser relativizada, à medida em que elas podem ter ascendência tanto sobre o segundo narrador como o primeiro. “(...) estes atores sociais passam muitas vezes a narrar como testemunhas, ganha status de personagens e voz ativa na história, transformando-se, 54 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar em última instância, também em narradores” (MOTTA, 2013, p. 230). A partir deste momento, e com base no caminho seguido até aqui, os pesquisadores avançam em direção a camadas mais profundas de significação e começam a prestar atenção nos processos de enunciação que emergem dos relatos analisados. Constata-se, em primeiro lugar, a existência dos três níveis narrativos em livros, por exemplo, mas com uma diferença importante na relação com as categorizações anteriores: em determinados formatos de narrativas, o segundo narrador ganha relevância diferenciada, na comparação com os demais. Tem-se, dessa forma, uma espécie de reconfiguração do processo de disputa de poder entre as vozes narrativas, partindo da proposição de Motta (2013). Podemos pensar a disputa de vozes narrativas a partir do gráfico abaixo: Gráfico 1 – disputa de vozes narrativas Primeiro narrador (extradiegético) Segundo narrador (intradiegético) Terceiro narrador (intradiegético) Fonte: elaboração do autor Observe-se que o esquema diz respeito, principalmente, à análise de dispositivos como jornais e revistas impressos, cuja processualidade é fortemente marcada por dinâmicas de circulação mais aceleradas, cuja marca mais visível é a periodicidade. Contudo, uma vez transplantada para os livros-reportagem e as bibliografias de natureza jornalísticas, observa-se, aí, uma reconfiguração importante, haja vista que estes não circulam da mesma forma que os jornais; não devem ser pensados, portanto, em termos de periodicidade. O gráfico abaixo demonstra o que estamos afirmando: 55 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Gráfico 2 – reconfiguração das vozes Primeiro narrador (extradiegético) Segundo narrador (intradiegético) Terceiro narrador (intradiegético) Fonte: elaboração do autor A pesquisa observou que, por este viés, o segundo narrador passa a exercer uma centralidade operacional, na comparação com os demais extratos narrativos (primeiro e segundo narradores). Esta reconfiguração, como dito, é decorrência principalmente da temporalidade por meio da qual o dispositivo “livro” dialoga com seu entorno. Ao não se ver premido por amarras temporais – e a ausência de periodicidade é a face mais visível deste processo – o segundo narrador (jornalista) tem condições de interferir mais incisivamente sobre as escolhas tanto sobre o primeiro como sobre o terceiro narradores. 4 O quarto narrador O estágio atual da pesquisa, iniciado em 2015, debruça-se sobre a emergência de um quarto narrador. A diferença, na comparação com os demais extratos narrativos, como salientado, é que o quarto narrador se personifica antes em uma processualidade; quando em movimento, portanto, que em um lugar situacional (jornal, revista etc.), como ocorria com os modelos anteriores. Pensá-lo 56 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar como tal requer que se considere tanto os processos de enunciação realizados pelos dispositivos como o diálogo que se dá entre estes. Os sentidos que emergem desta processualidade é que dão forma ao quarto narrador. Importante salientar, ainda que, como frisado no artigo. “A literatura, o sistema midiático e a emergência do quarto narrador”, veiculado na revista Signo4, estamos falando, nesta perspectiva de um narrador de natureza multifacetada e plurivocal. Não parece haver, neste caso, como sugerimos nos gráficos 1 e 2, uma disputa de vozes, representadas, nas imagens, pelo primeiro, segundo e terceiro narradores por pelo menos dois motivos: o quarto narrador existe, como dissemos, a partir do diálogo entre os dispositivos, e, ato contínuo, se estabelece antes em uma processualidade que em um lugar situacional. Não quer dizer que ele não dialogue com os demais extratos narrativos, mas, antes, que, por ser decorrência dos processos de enunciação destes, não disputa “espaço de fala” com eles. O gráfico abaixo nos permite compreender melhor o lugar ocupado pelo quarto narrador. Gráfico 3 – o lugar do quarto narrador Primeiro narrador (extradiegético) Quarto narrador (extradiegético) Segundo narrador (intradiegético) Terceiro narrador (intradiegético) Fonte: elaboração do autor 4 Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view/7336. Acesso em: 7 de junho de 2016 57 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Observe-se que as ofertas de sentido, decorrentes dos processos de enunciação dos dispositivos que, em seu conjunto, personificam aquele que estamos chamando de quarto narrador não é axiomática. Ou seja, não pressupõe que as transformações que se estabeleçam a partir daí interfiram apenas no entorno do sistema midiático (meio e demais sistemas). Verifica-se aqui, em essência, o que identificamos em outro momento (SOSTER, 2009) como a gênese do jornalismo midiatizado. Ou seja, do jornalismo cujos dispositivos, mais que vetores de midiatização, são afetados pela processualidade desta, midiatizando-se: os dispositivos responsáveis pela midiatização são afetados pela processualidade desta. Para melhor ilustrar o que estamos afirmando, vamos supor que, no esquema abaixo, os pontos “a”, “b” e “c” (círculo menor) sejam os primeiros, segundo e terceiros narradores, e que sejam identificáveis, portanto, no âmbito do dispositivo. Por essa lógica, “d” é o quarto narrador e “e” e “f” são, respectivamente, o ambiente e os demais sistemas, sociais ou não. Gráfico 5 – processualidades diferenciadas “a” + “b” + “c” “e” “d” “f” Fonte: elaboração do autor Pois bem, ao se tornar “identificável”, o quarto narrador – “d” – mais que se tornar visível, passa a dialogar com “e” e “f”, interferindo na dinâmica funcional destes. Esta interferência, por sua vez, acaba por afetar tanto o quarto narrador – “d” – como “a” + “b” + “c”, relacionalmente. 58 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Compreender as transformações que se dão no diálogo entre “a” + “b” + “c” + “d” + “e” + “f” implica, portanto, 1) reconhecer a existência do quarto narrador; 2) observar que ele não exerce uma centralidade operacional, 3) que as partes, isoladas, integram, mas não sintetizam, o todo; e, finalmente, 4) que se trata de um problema, como estamos defendendo, de circulação midiática. Afirmar que o quarto narrador representa um problema de circulação, no diálogo com Fausto Neto (2010), é assumir, desde aqui, que a circulação, sofrendo as injunções dos processos de midiatização, passa a ser compreendida como um novo lugar na arquitetura comunicacional midiática: A circulação deixa de ser um elemento “invisível” ou “insondável” e, graças a um trabalho complexo de linguagem e técnica, segundo operações de dispositivos explicita sua “atividade construcionista”, gerando pistas, novos objetos, e, ao mesmo tempo, procedimentos analíticos que ensejam a inteligibilidade do seu funcionamento e dos seus efeitos. (2010, p. 3) Por esta perspectiva, usado o gráfico 5 como parâmetro, o que observamos na relação existente entre “a” + “b” + “c” + “d” + “e” + “f” é mais que o diálogo entre as vozes narrativas de um dispositivo (a” + “b” + “c”), a emergência de uma nova instância narrativa a partir do contato deste com os demais dispositivos (“d”) – o quarto narrador –, e destes com o meio (“e”) e demais sistemas (“f”). O que percebemos, nas zonas de contato entre cada uma das instâncias, é a formação de “espaços de potencialidades”, na nomenclatura de Fausto Neto (2010), ao invés de intervalos ou simples zonas de passagem. Os intervalos, enquanto regra naturalizada, devem ser lidos como complexa processualidade, enfeixando relações sobre as quais não se detém o controle de suas dinâmicas. A própria existência, trajetos e efeitos dos vínculos que reúnem produção e recepção resultam do “aparelho circulatório”, enquanto efeito de suas próprias disposições, na medida em que é este último que define e impulsiona sobre quais condições se fundem as operações de sentido. (2010, p. 8) Isso posto, podemos afirmar que a instância “d”, ou seja, o quarto narrador, existe, de um lado, como temos defendido, em decorrência dos processos de enunciação que se dão entre os dispositivos, mas que se complexifica substancialmente, e eis a direção que a pesquisa caminha, 59 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar quando pensado pelo viés da circulação. Ou seja, antes como uma relação entre “a” + “b” + “c” + “d” + “e” + “f” que um lugar situacional. Compreender o que isso significa é o desafio que se apresenta daqui para frente. 5 Percurso de pesquisa Sinteticamente, temos o seguinte percurso de pesquisa. 5.1 A narrativa jornalística em sua intersecção com a literatura. O projeto, iniciado em 2010 e encerrado em 2012, foi o primeiro passo no sentido de observar as reconfigurações que estavam ocorrendo com o jornalismo, tendo como ponto de partida a emergência de formatos pouco canônicos no sistema jornalístico, caso dos livros-reportagem e das biografias de natureza jornalística. Principais produções no período: SOSTER, D. A.; PICCININ, F. (Org.). Narrativas Comunicacionais Complexificadas. 1. ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2012. v. 1. 294p . SOSTER, D. A.. Reconfigurações narrativas no jornalismo e na literatura. Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo (Rebej), v. 3, p. 96-108, 2013. SOSTER, D. A.; PICCININ, F. . Da anatomia do telejornal midiatizado: metamorfoses e narrativas múltiplas. Brazilian Journalism Research (Online), v. 8, p. 118-134, 2012. 5.2 Jornalismo e literatura: narrativas reconfiguradas. De 2012 a 2014, e a partir do que havíamos pesquisado nos dois anos anteriores, passamos a pesquisar mais pontualmente as referidas configurações do jornalismo, desta vez com mais atenção aos diálogos existentes entre os sistemas e considerando as complexificações que se estabeleciam entre os campos do jornalismo e da literatura. 60 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Principais produções no período: SOSTER, D. A.; PICCININ, F. (Org.). Narrativas comunicacionais complexificadas 2: a forma. 1. ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2014. SOSTER, D. A.; PICCININ, F. . Narrativas literárias no jornalismo impresso diário: o caso dos jornais Zero Hora e Gazeta do Sul. Brazilian Journalism Research (Online), v. 1, p. 128-149, 2014. SOSTER, D. A.; PICCININ, F. . Literary narrative in the daily print media: Zero Hora and Gazeta do Sul. Brazilian Journalism Research (Online), v. 1, p. 122-143, 2014. SOSTER, D. A.. Reconfigurações narrativas no jornalismo e na literatura. Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo (Rebej), v. 3, p. 96-108, 2013. SOSTER, D. A.; CARPES, D. S. ; AZEREDO, D. ; DUREN, R. ; BARTZ, R. ; OLIVEIRA, V. C. . APROPRIAÇÕES JORNALÍSTICAS NO CAMPO LITERÁRIO: RECONFIGURAÇÕES NARRATIVAS IDENTIFICADAS NA OBRA NÃO BIOGRÁFICA DE FERNANDO MORAIS. In: Fabiana Piccinin; Onici Claro Flôres; Rosângela Gabriel; Rosane Cardoso. (Org.). Tecendo conexões: cognição, linguagem e leitura. 1ed.Curitiba: Multideia, 2014, v. , p. 441-450.5. SOSTER, D. A.. Vozes narrativas reconfiguradas nas biografias de natureza jornalística. In: Demétrio de Azeredo Soster; Fabiana Piccinin. (Org.). Narrativas comunicacionais complexificadas 2: a forma. 1ª ed.Santa Cruz Do Sul: Edunisc, 2014, v. , p. 89-110. SOSTER, D. A.. Jornal Unicom e revista Exceção: práticas laboratoriais impressas. In: Demétrio de Azeredo Soster; Mirna Tonus. (Org.). Jornalismo-laboratório: impressos. 1ª ed.Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2013, v. 1, p. 153-165. SOSTER, D. A.; MOURA, D. O. ; ROSA, A. P. ; QUADROS, C. I. ; STACHESKI, D. ; MOGNON, F. ; COUTINHO, I. ; GUERRA, J. L. ; NUNES, J. ; CAETANO, K. ; MAIA, K. ; AGUIAR, L. ; LIELNICZUK, L. ; FORT, M. C. ; KASEKER, M. ; VECHIO, M. ; GENTILI, V. . Jornaliso II: congresso da SBPJor em Curitiba atesta expansão da pesquisa. In: João Cláudio Garcia Lima; José Marques 61 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de Melo. (Org.). Panorama da comunicação e telecomunicações no Brasil 2012/2013. 1ª ed. Brasília: Ipea, 2013, v. 4, p. 171-177. SOSTER, D. A.. Jornalismo e literatura: narrativas configuradas. In: Eunice Piazza Gai, Vera Lúcia de Oliveira. (Org.). Narrativas brasileiras contemporâneas em foco. Santa Maria: Editora UFSM, 2012, v. , p. -. SOSTER, D. A.. Sistemas, complexidades e dialogias: narrativas jornalísticas reconfiguradas. In: Demétrio de Azeredo Soster, Fabiana Piccinin. (Org.). Narrativas Comunicacionais Complexificadas. 1ª ed.Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2012, v. 1, p. 89-110. SOSTER, D. A.. Complexidades, sistemas e redes sociais: metamorfoses do ensino-aprendizado. In: Raquel Longhi; Carlos d’Andréa. (Org.). Jornalismo convergente: reflexões, apropriações, experiências. 1ª ed. Florianópolis: Insular, 2012, v. 1, p. 1-272. SOSTER, D. A.; PICCININ, F. ; HAAS, J. ; GARCIA, Pedro Piccoli ; Kannenberg, Vanessa . Jornalismo diversional e jornalismo interpretativo: diferenças que estabelecem diferenças. In: José Marques de Melo; Roseméri Laurindo e Francisco de Assis. (Org.). Gêneros jornalísticos: teoria e práxis. 1ed.Blumenau: Edifurb, 2012, v. 1, p. 95-107. 5.3 Narrativas comunicacionais reconfiguradas. É onde, desde 2015, temos observado com mais atenção não apenas os três níveis narrativos referidos anteriormente como a emergência do quarto narrador. Ou seja, representa o marco que projeta a pesquisa antes para processualidades operacionais dos campos que para as áreas do conhecimento, ainda que siga dialogando com as mesmas. Principais produções no período: SOSTER, D.A. A literatura, o sistema midiático e a emergência do quarto narrador. Signo (UNISC. Online), v. 1, p. 154-161, 2016. SOSTER, D. A.. Dialogia e atorização: características do jornalismo mi- 62 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar diatizado. Rebej (Brasília), v. 5, p. 4-20, 2015. SOSTER, D. A.. A reconfiguração das vozes narrativas no jornalismo midiatizado. Rizoma: midiatização, cultura, narrativas, v. 3, p. 23-35, 2015. SOSTER, D. A.; BARTZ, R. . Biografia jornalística: algumas possibilidades. Guavira Letras, v. 21, p. 187-201, 2015. SOSTER, D. A.. O jornalismo midiatizado e a reconfiguração das vozes narrativas nos livros-reportagem de Eliane Brum. In: Antonio Fausto Neto; Natalia Raimondo Anselmino; Irene Lis Gindin. (Org.). Relatos de investigaciones sobre mediatizaciones. 1ªed.Rosario (AR): UNR Editora. Editorial de la Universidad Nacional de Rosario, 2015, v. , p. 255-270. SOSTER, D. A.. O sistema como quarto narrador do jornalismo. In: Ana Carolina Rocha Pessôa Temer; Marli dos Santos. (Org.). Fronteiras híbridas do jornalismo. 1ª ed.Curitiba: Appris, 2015, v. 3, p. 161-176. REFERÊNCIAS BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas: fundamentos, desenvolvimentos, aplicações. Rio de Janeiro: Vozes, 2013. BRAGA, José Luiz. Mediatização como processo internacional de referência. In: MÉDOLA, Ana Sílvia; ARAÚJO, Denize Correa; BRUNO, Fernanda. (org.) Imagem, visibilidade e cultura midiática: livro da XV Compós. Porto Alegre: Sulina, 2007. DEMO, Pedro. Complexidade e aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento. São Paulo: Atlas, 2000. GENETTE, Gerárd. Figuras III. Barcelona: Lumen, 1988. GRONDIN, Jean. Hermenêutica. São Paulo: Parábola Editorial, 2012 LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 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Intercom, 2010. 64 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar O ouvidor: além do escutar, narrar Ana Claudia de Almeida Pfaffenseller1 1 Introdução O presente estudo traz uma reflexão sobre a atividade do ouvidor, especificamente do ouvidor brasileiro (com suas peculiaridades), e a relação da prática da escuta (ferramenta de trabalho essencial do ouvidor) com o ato da narrativa. Por ouvidor, entendemos o profissional que atua como mediador nas relações entre uma instituição ou organização e os seus públicos interno ou externo. O ouvidor, conforme Sá (2004, p. 54), deve saber ouvir o “do outro lado”, fazendo uma “leitura”, pois, muitas vezes, serve como intérprete e tradutor de quem o procura. “A leitura do ouvidor é a alma da comunicação”, sendo que ser “ouvidor é saber falar ao ‘do outro lado’, encontrando a palavra certa, a resposta exata”. Por narrativa, entendemos “o discurso capaz de evocar, através da sucessão de fatos, um modo dado como real ou imaginário, situado num tempo e num espaço determinados” (SODRÉ, 1988, p. 75). Sodré (1988) ainda frisa que a narração é a construção verbal que fala acerca do mundo. A narrativa é “a história resultante da sucessão de eventos e estado de coisas mediados por personagens numa perspectiva crono(lógica)” (PICCININ, 2012, p. 68). Assim, o objetivo deste artigo – frisando a figura do ouvidor, da ouvidoria brasileira e da narrativa – é pesquisar se há, de fato, narrativa no traba1 Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Unisc 65 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar lho do ouvidor e, além disso, buscar entender quais os tipos de narrativas podem ser encontradas, caso existam. Buscamos, sobretudo, fazer uma aproximação entre a narrativa e a escuta, que é o ouvir com atenção. 2 A ouvidoria 2.1 Contextualização histórica A primeira vez que se falou na figura do ouvidor no Brasil foi no período colonial, em meados do século XVI, quando já existia o ouvidor-mor – nomeado pelo rei de Portugal, que exercia a tarefa de administrar a justiça da coroa junto à população. Posteriormente, em 1713, na Suécia, surgiu um novo conceito de ouvidor, ou ombudsman (palavra que vem do sueco e significa: “ombud”, representante, e “man”, homem), que seria o precursor do ouvidor moderno, conforme Calado (2012). Contudo, essas figuras e suas funções, mesmo após mudanças, ainda eram distantes do conceito atual de ouvidor e de ouvidoria, pelo menos no contexto brasileiro. O primeiro ombudsman no Brasil, após início do processo de redemocratização, deu-se na empresa privada Rhodia, no ano de 1985. Esse profissional nasceu como um representante do consumidor. Um ano depois, a prefeitura de Curitiba instituiu o seu ouvidor. Já em 1989, o jornal Folha de São Paulo lançou o primeiro ombudsman da imprensa brasileira (VISMONA, 2005). A partir dai, várias ouvidorias surgiram, tanto na esfera públicas (como as sistêmicas: municipais, estaduais e federais; e as setoriais: da área educacional e da saúde), quanto em particulares (empresas dos mais variados segmentos). Especificamente as ouvidorias universitárias no Brasil são recentes, pois começaram a surgir apenas a partir dos anos 90, com a criação da primeira ouvidoria na Universidade Federal do Espírito Santo, em 1992. As ouvidorias universitárias têm como premissa agirem como “um instrumento da democracia participativa, que propicia um canal acessível de comunicação de alunos, professores, servidores e da comunidade externa, com a Administração Superior, contribuindo para sintonizá-la com os anseios coletivos” (VILANOVA, 2005, p. 101). É clara a distinção entre o ombudsman tradicional e a ouvidoria brasileira, que, apesar de ter adotado estrutura e sistemas semelhantes nas 66 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar suas operações, não podem ser considerados como instituições iguais, conforme Oliveira (2005). No presente estudo, usaremos o termo ouvidor apenas, apesar de não estarem, no nosso entendimento, bastante definidas as diferenças entre o uso do termo ombudsman e ouvidor (inclusive também são usados os nomes: procuradores do povo ou procuradores do público, defensores , mediadores, entre outras definições). Nota-se apenas que a palavra ombudsman é mais usada no meio jornalístico e a palavra ouvidor no meio empresarial. Contudo, há o uso das duas nomenclaturas, em muitos casos, para designar o mesmo tipo de profissional em nosso país. 2.2 O papel da ouvidoria A ouvidoria é um canal de comunicação entre os públicos e a instituição ou organização, e vice-versa, pois, conforme Almeida e Fava (2012, p. 16-17), “a Ouvidoria é sem dúvida um importante canal para que a Instituição possa ouvir e ser ouvida”, visto que, assim como escuta no momento em que recebe uma manifestação, a ouvidoria (representando a instituição ou organização) também é escutada, quando responde à demanda daquele cidadão o qual representou quando tratou do assunto no âmbito interno. O ouvidor, desta forma, trabalha com um mediador, a partir de um relato de um demandante, que é aquele (ou aqueles) indivíduo(s) que fez uma manifestação junto à ouvidoria. Segundo Oliveira (2005, p. 47), “a ouvidoria brasileira é, sem dúvidas, um canal de diálogo com a população; uma porta aberta para a participação através do escutar”. É fato que as ouvidorias começaram sua atuação, desde seus primórdios, justamente com o caráter da escuta de manifestações oralizadas, por meio de contatos feitos pessoalmente, face a face, contudo, logo com o passar do tempo, adotou-se as correspondências e o telefone (que não deixa de ser oralizado também) para facilitar o acesso aos demandantes. Hoje, com as inúmeras tecnologias existentes, grande parte das manifestações são feitas virtualmente (por e-mail ou formulários on-line). Os registros nas ouvidorias normalmente podem se dar no formato de: consultas, reclamações, denúncias, sugestões ou elogios. Porém, cada Ouvidoria pode ter a sua maneira de nomear as manifestações que recebe. 67 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar O processo de trabalho do ouvidor acontece já a partir da escuta ou leitura da manifestação do demandante (daquele que procura a ouvidoria), posteriormente o ouvidor redige o texto, analisa a questão e, em seguida, faz os devidos encaminhamentos do assunto com os responsáveis competentes, que, no caso, avaliam a situação e fornecem um retorno, uma resposta para o ouvidor que contemple o assunto. O ouvidor, de posse da resposta, repassa a informação, após sua análise, para o demandante, dando um retorno para o seu manifesto. Ainda há, especialmente nas ouvidorias de instituições públicas, o caráter investigativo, quando o ouvidor não apenas trabalha de forma receptiva, mas proativa, quase que como um fiscal. 3. Narrativa e ouvidoria Apesar de Benjamin (1987) dizer em seu clássico texto O narrador, que a arte de narrar está quase entrando em extinção, pois, entende o autor que cada vez mais estão ficando raros aqueles que sabem narrar adequadamente. Entendemos que o narrador não irá morrer, porque, como bem disse Motta (2012A, p. 53), “a narrativa retornou definitivamente à cena cultural”. Benjamin referia-se à arte de se narrar histórias oralizadas, fala do narrador clássico, pois temia o fim dessa figura com a chegada do romance e do jornalismo. Contudo, como afirmou Barthes (1976, p.19), “a narrativa está sempre presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades”. Desta forma, se sempre existiu e existirá narrativas, acreditamos que sempre haverá o narrador, aquele que narra algo e, havendo narrador, haverá o ouvinte, pois, assim como para existir a escuta, entendemos que é preciso que haja, antes, alguém disposto a narrar, para haver a narrativa é preciso que exista alguém com disposição para escutar. De acordo com Santiago (1989, p. 2-3), Benjamin conseguiu caracterizar três tipos (elocuções) de narrador: o primeiro estágio ele nomeia como “o narrador clássico”, que tem como função “dar ao seu ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência”; o segundo, nomeou como “o narrador do romance”, que tem a função “de não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor”; e o terceiro, nomeou como “o narrador que é jornalista”, aquele que “só transmite pelo narrar a informação, 68 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar visto que escreve não para narrar a ação da própria experiência, mas o que aconteceu com x ou y em tal lugar e a tal hora”. Para Santiago (1989), enquanto Benjamin desvaloriza o “narrador do romance” e o “narrador jornalista”, o pós-moderno os valoriza, porque esses narradores transmitem uma “sabedoria” que surge a partir da observação de uma vivência alheia a eles, “visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência” (p. 3). No presente estudo, entendemos que o narrador ouvidor também se enquadre aqui, talvez próximo do narrador jornalista, afinal, narra uma vivência que não é a sua. Benjamin (1987) diz que as melhores narrativas escritas são “as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (p. 198). Ele ainda salienta que “a experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte que recorreram todos os narradores” (p. 198). Logo, Benjamin defende um narrador falante e nós acreditamos em um narratário (destinatário do ato narrativo) ouvinte e também falante, que é o ouvidor. Segundo o Código de Ética do Ouvidor/Ombudsman (2014, p.1), uma das caraterísticas do exercício das atividades da função é “ouvir seu representado com paciência, compreensão, ausência de pré-julgamento e de todo e qualquer preconceito”. E, para ouvir, entendemos que é preciso que haja, antes, alguém disposto a narrar. Por outras palavras, é dizer que, para que haja histórias escritas (baseadas nas histórias faladas), é preciso que existam as histórias oralizadas, e para que estas aconteçam, é preciso que haja, além do narrador, o narratário, que, sobretudo, é aquele que escuta. Conforme Gaudreault e Jost (2009, p. 57), “não há narrativa sem que haja uma instância que narre”. Assim, frisamos que, em uma ouvidoria, não há narrativa sem alguém que escute e que, em um segundo momento, também narre. Toda manifestação feita em uma ouvidoria é uma narrativa. E, tendo em vista que o próprio ouvidor também se transforma em narrador, no momento em que interpreta, redige e organiza o relato do manifestante, ele narra não as suas, mas as experiências alheias. E, se assim o faz é porque em momento anterior escutou, logo, o ouvinte é uma figura fundamental no contexto em que se dá o processo da narrativa no presente estudo. Segundo Motta (2012B, p. 23), “as narrativas permeiam toda a nossa existência. Estudá-las é refletir sobre o significado da experiência humana e sobre o quê as narrativas realizam enquanto atos de fala”. 69 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Para Motta (2012B), estudar as narrativas é entender o sentido da vida, dada sua importância. Ou seja, narrar é inerente ao ser humano. Aprendemos a contar histórias muito antes da aquisição da linguagem escrita ou até mesmo da oral. Conforme Gaudreault e Jost (2009), há diferença entre a narrativa oral, “mais simples”, em que se supõe um narrador, uma única atividade de comunicação narrativa que se dá no momento, quando dois interlocutores estão em presença um do outro (in praesentia) e a narrativa escrita, que não é entregue no mesmo momento em que é emitida (in absentia) e, além disso, tem intermediário (que pode ser um livro, uma revista, um jornal, ou o relato do ouvidor, no nosso entendimento neste artigo). Assim, compreendemos que em uma ouvidoria existem as duas formas de narrativa: primeiro, quando da escuta do relato do demandante, por parte do ouvidor, ai se dá a narrativa oral, quando o ouvidor é o narratário e o demandante o narrador; e, em um segundo momento, há a narrativa escrita, quando o ouvidor se transforma em narrador a partir do instante em que interpreta a narrativa do demandante e a transcreve, intermedia. Ele, de posse da narrativa escrita intermediada, trabalha como narrador a outro narratário, que é o responsável competente (a quem será encaminhada a manifestação) que, por sua vez, pode servir de narrador para outras instâncias, até que volte a dialogar com o ouvidor, narrando sua resposta. Neste ponto, o ouvidor é, pelo menos, um duplo narrador e um duplo ouvinte, pois está intermediando uma segunda narrativa, que é a resposta. É importante destacar, conforme definição de Gaudreault e Jost (2009), o sistema de igualdades e desigualdades proposto por Todorov: quando “narrador > personagem”, o narrador sabe mais do que a personagem sabe; quando “narrador = personagem”, o narrador sabe o mesmo que a personagem sabe; e, quando “narrador < personagem”, o narrador sabe menos do que a personagem sabe. Desse ângulo, podemos dizer que o ouvidor é o narrador e o demandante a personagem. Assim, quando o ouvidor-narrador é “= a personagem”, ele sabe aquilo que o demandante relatou, ambos têm a mesma informação, já quando o ouvidor-narrador é “< que o personagem”, há pontos que a personagem ou omitiu ou esqueceu de relatar. Esses são os dois casos possíveis que se pode encontrar. O ouvir-narrador como “> que a personagem” acreditamos que não é possível haver, pois a comunicação se dá basicamente pela narrativa do demandante, por sua história contada, logo, o ouvidor-narrador 70 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar não tem como ir além do que lhe é dito. Isso mesmo quando o ouvidor está em diálogo com o responsável competente, que, por ventura, pode saber de coisas que o demandante não sabe. Nesse caso, o narrador passa a ser o responsável e não mais o demandante, assim o ouvidor não tem como saber além do que lhe é contado por cada narrador em seu tempo. Logo, o narrador-ouvidor ou sabe o mesmo ou sabe menos que o narrador-demandante. Ai está novamente uma aproximação com a narrativa jornalística informativa e um distanciamento da narrativa literária, quando o narrador pode ser onisciente e saber mais do que o dito pela personagem. Obviamente que, após os encaminhamentos dos assuntos o ouvidor poderá ter outras versões além da que foi narrada pelo demandante, mas nesse caso, serão sempre outras novas narrativas, de outros narradores com suas verdades. 4. Conclusão Pensando na figura do ouvidor, na ouvidoria e na narrativa, o intuito deste trabalho é apresentar uma possibilidade de se pesquisar acerca dos tipos de narrativas encontradas no trabalho do ouvidor. Trata-se de uma relação entre a narrativa e a escuta. Concluímos, com este estudo, que o ouvidor é sim um narrador e, mais do que isso, possui uma peculiaridade, pois é o que nomeamos de “ouvidor-narrador”, pois escuta e narra (é o saber ouvir e o saber falar, conforme Sá, 2004). Desta forma, afirmamos que o ouvidor é primeiramente um ouvinte e posteriormente transforma-se em um narrador, pouco antes (no momento em que faz a leitura, conforme Sá, 2004) e durante o processo de mediação existente na atividade laboral de uma ouvidoria. Acreditamos que o narrador de Benjamin, ao menos no que se refere à ouvidoria, não irá morrer enquanto as ouvidorias existirem, uma vez que a escuta de histórias/manifestações oralizadas (ou até mesmo as escritas) é definitivamente fundamental para a atividade do ouvidor. Concordamos com Motta (2012B) de que narrar é sim inerente aos humanos. De fato, as narrativas nos acompanham em toda a nossa vida. Vivemos e somos a partir do que narramos, de nossas histórias, sendo que “narra-se pelo prazer gerado por quem o faz e por quem o recebe” 71 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar (PICCININ, 2012, p. 69). O ouvidor, ou ombudsman, como frisou Dummar (2004, p. 7), “é o acesso ao outro e a nós mesmos”. Assim, se a ouvidoria é um canal de diálogo, de acesso e troca entre uma instituição ou organização e seus públicos, nas experiências relacionais mediadas por uma ouvidoria também há a narrativa, visto que há o ouvinte e o narrador. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Ana Claudia de ; FAVA, Andréa . 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São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Associação Brasileira de Ouvidores, 2005. p. 91-102. VISMONA, Edson Luiz. Dez anos da ABO e a construção da ouvidoria brasileira. In: VISMONA, Edson Luiz (Org.). A ouvidoria brasileira: dez anos da Associação Brasileira de Ouvidores/Om¬budsman. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Associação Brasileira de Ouvidores, 2005. p. 14-31. 73 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar O percurso do método: a criação de uma metodologia de pesquisa Gabriel Steindorff1 1 Introdução Escrever um trabalho científico, ao nível de uma dissertação de mestrado é uma tarefa de bastante fôlego e dedicação. Basicamente, na dissertação de mestrado Além de um castelo de cartas: a metaficção em House of Cards2, pode-se falar em três passos bem delimitados. O primeiro consiste em uma análise exploratória onde o pesquisador procura o problema de sua pesquisa. O segundo, na fundamentação teórica, o qual, buscou-se em autores consagrados a teoria que deu suporte a pesquisa. No terceiro, foi criada a metodologia para o trabalho, ou seja, momento, no qual, se pensa na estrutura do trabalho e na forma de abordagem que será utilizada. Evidente que esses quatro passos, citados anteriormente, já são uma metodologia de trabalho, um método preliminar que ajuda a sair da página em branco para a primeira página completa. Este artigo não tem a pretensão de um guia sobre metodologia, mas pretende mostrar o percurso de elaboração da metodologia de pesquisa utilizada na dissertação de mestrado Além de um castelo de cartas: a me1 Mestre pelo PPG Letras e professor do Curso de Comunicação Social – UNISC. E-mail: [email protected] 2 Disponível em: http://repositorio.unisc.br/jspui/bitstream/11624/808/1/GabrielSteindorff.pdf 74 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar taficção em House of Cards , apresentada como requisito parcial para obtenção do título de mestre, ao Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Deste modo, tem o objetivo de elucidar e contribuir para a reflexão a respeito de processos metodológicos, muitas vezes encarados com um pouco de temor pelos acadêmicos. 2 Passo um: análise exploratória A fase da análise exploratória inicia-se com a identificação do problema de pesquisa e a definição do objeto a ser pesquisado, esses dois itens aparecem quase juntos. No caso da dissertação que estamos tratando, aconteceram exatamente no mesmo momento. Por incrível que pareça, foi num momento de descontração onde a busca por descanso, trouxe a vontade de sentar diante a televisão e assistir algo diferente, que não tivesse relação com à pesquisa. Assim, foi escolhida a série House of Cards, e a intrigante quebra da quarta parede, promovida pelo seu protagonista Frank Underwood. Desta forma, observou-se que o protagonista dirigia-se ao espectador, com o objetivo deste último, se sentir a segunda pessoa do relato, entregando a ele informações que os demais personagens não tinham acesso. House of Cards é uma série norte-americana baseada num livro homônimo, do escritor e político britânico Michael Dobbs. A série já havia sido adaptada para a televisão em 1990 pela BBC de Londres, no entanto nesta oportunidade teve apenas uma temporada. Tanto o livro quanto a série britânica contam a história de Francis Urquhart, um político sem escrúpulos que, de forma ilegal, cumpre uma escalada até se tornar o Primeiro Ministro Britânico. A versão americana da série teve algumas modificações em relação à obra original. Em vez de se passar na Inglaterra, se passa nos Estados Unidos. Em decorrência deste fato, o cargo a ser galgado por Francis é o de presidente, já que o país desta versão não possui o mesmo sistema de governo do cenário original, e por consequência, não tem Primeiro Ministro. Outra adaptação foi o sobrenome do protagonista que foi alterado para Underwood, além de ser frequentemente utilizado o apelido de Francis, Frank, para referir-se a ele. Nesta versão, após perder a vaga de secretário de estado que es- 75 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar perava no novo governo, Frank resolve tomar o poder por seus próprios meios ilícitos. O personagem possui uma grande rede de colaboradores que estão dispostos a ajudá-lo em seus planos mediante recompensas, às vezes financeiras e às vezes sob a forma de influência. Quando possível utiliza-se parceiros eventuais que são captados por meio de extorsão e chantagem e quando não servem mais, são descartados. Além dos aliados do meio político, Frank tem duas aliadas que aparecem de forma relevante na série, a esposa Claire Underwood e a jornalista e amante Zoey Barnes. House of Cards tornou-se relevante para a pesquisa, pois além da linguagem pouco usual, foi a primeira grande produção feita especificamente para um canal de vídeos exclusivamente da internet. A série também chama a atenção por ser disponibilizada sempre no formato de temporadas inteiras, o que, segundo Kevin Spacey (apud MURARO, 2013), dá mais liberdade ao espectador. Ou seja, o espectador não precisa esperar um tempo determinado para assistir um novo episódio, pode assistir um após o outro até o fim da temporada, se assim desejar. A série é desenvolvida em duas linhas de enredo em que a principal utiliza a linguagem tradicional do cinema e a secundária utiliza a metalinguagem. Ou seja, na linguagem tradicional, o espectador percebe a história como testemunha ocular, como se estivesse presente à ação. Na narrativa metalinguística, tem seu lugar alterado para a segunda pessoa, com o narrador dirigindo-se diretamente a ele, e lhe fazendo confidências. Desta forma, o narrador dirige-se à câmera como se estivesse falando com o espectador, e não mais o ignorando como se não soubesse que a narrativa estivesse sendo assistida. House of Cards tornou-se interessante para este estudo, justamente, devido às várias interações do narrador intradiegético, direcionadas ao espectador. Frank Underwood frequentemente se dirige ao espectador por meio de linguagem oral e gestual. Isto tem a intenção de criar no espectador sensação de proximidade com a narrativa e cumplicidade com o narrador. A cumplicidade é o ponto chave da interação entre narrador e espectador nesta série, porque o narrador confessa somente ao espectador, seus desejos mais íntimos e seus sentimentos a respeito de outros personagens. No momento em que a pesquisa foi iniciada, a série contava com duas temporadas, totalizando vinte e seis episódios. No percurso espectatorial da série, foi que o problema de pesquisa foi se revelando. É importante salientar que isso não acontece de uma hora pra outra, muitas vezes o pesquisa- 76 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar dor não tem ainda a fundamentação teórica necessária para reconhecer o potencial do seu objeto, entretanto, estava claro que o as interações com o espectador tinham alguma relevância para uma pesquisa científica. 3 Passo dois: a fundamentação teórica A partir da revisão bibliográfica, o problema de pesquisa vai aparecendo. Começa-se, portanto, a entender o quanto um elemento observado no objeto de pesquisa pode render por intermédio da ótica de determinados autores, convocados a reforçar o paradigma elaborado para a pesquisa. No caso de Além de um castelo de cartas: a metaficção em House of Cards, descobriu-se dois conceitos fundamentais para a elaboração da base teórica que permitiria, posteriormente, a criação de categorias metodológicas, através das quais foram divididas as amostras colhidas no objeto. Foi de extrema importância entender que toda a vez que, o protagonista Frank Underwood, dirigia-se ao espectador, tratava-se da quebra da quarta parede, atualizada no audiovisual, mas herdada dos primórdios do teatro. Segundo Xavier (2003), manter a quarta parede consiste em os atores que representam papeis, ignorarem a presença do público, ou no caso do vídeo, ignorarem que estão representando para serem captados por uma câmera, e posteriormente serem observados. Desta maneira, segundo o autor, a ficção fica aprisionada em seu caráter imaginário e protegida da realidade, para se fixar como um mundo possível, que finge ser real. Mas Xavier (2003) ainda considera que o poder de aprisionamento do audiovisual ainda é maior “pois o espaço imaginário se projeta na pura superfície (a luz da tela); não há atores no espaço da sala, o que auxilia na produção do efeito de autonomia da ficção.” (XAVIER, 2003, p.18). Outro fator fundamental na construção das categorias de análise foi perceber que a quebra da quarta parede é uma forma de expressão das narrativas metaficcionais. Entende-se, desta maneira, porque esta quebra subverte as formas de narrativas realistas tradicionais, dando à obra a consciência de estar sendo consumida – seja ela lida ou assistida. Através de Hutcheon (1984), abordou-se o conceito de metaficção, em que foi possível perceber que este tipo de narrativa trata-se de obra de ficção que tem em si mesma seu referente, que fala sobre si mesma e se reflete em si mesma. Ou ainda, histórias marcadas pela introspecção, 77 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar introversão e autorreferência. Ou seja, o foco está na própria obra, refletindo-se e se autorreferenciando. E desta maneira, muda a posição do espectador, que diante deste tipo de obra, é convocado com maior intensidade a ser coautor interpretativo da obra. Tendo como base este conceito geral de metaficção, Hutcheon (1984) avança em direção a uma categorização mais minuciosa do conceito. Para a autora a metaficção pode ter duas formas: implícita e explícita. À categoria da metaficção implícita juntam-se todas as formas de autorreferências textuais internas ao texto, até mesmo, em situações sutis em que muitas vezes o público pode não estar ciente que está diante de uma narrativa metaficcional. Como exemplos dessa modalidade pode-se citar os gêneros textuais como as histórias de detetive e os trocadilhos em que os textos têm uma relação de estrutura com outros textos ou um sentido diferente do que está escrito. Já nas categorias explícitas, percebe-se a autoconsciência de forma bastante evidente e integrada na narrativa. Assim, a metaficção explícita pode aparecer por meio de alegoria no enredo, nas metáforas ou até mesmo nos comentários. Hutcheon (1984) salienta que várias técnicas podem ser utilizadas para gerar este efeito, tais como a perspectiva em abismo (mise en abyme3) ou até mesmo a criação de um pequeno mundo paralelo com o objetivo de mudar o foco da ficção para a narração. Nesta última possibilidade, o mundo paralelo pode ser criado pelo narrador intradiegético4, ao dirigir-se ao leitor/espectador ideal, ignorando a presença dos outros personagens. E, assim, destitui a narrativa principal, ou seja, a narrativa de onde o personagem-narrador parte originalmente, de uma realidade proposta para uma ficção declarada, dando mais credibilidade ao mundo paralelo compartilhado por narrador e narratário5. Quan3 Para Prince (1989) o a expressão mise en abyme significa uma duplicação da obra dentro da própria obra. Segundo o autor este termo tem origem na heráldica, ciência que estuda os brasões. Diz-se que a figura no brasão está en abyme , quando ela representa uma duplicação do brasão em miniatura, no próprio brasão. No caso do audiovisual seria como utilizar uma câmera apontada para um televisor. Se o sinal da câmera fosse colocado no mesmo televisor que está sendo utilizado de modelo, seria possível perceber vários televisores, um representado dentro do outro. 4 Segundo Genette (1972), o narrador intradiegético é aquele que é percebido dentro do mundo ficctício, mundo também chamado de diegese. Este narrador é subordinado ao narrador extradiegético, mas também pode ter outro narrador intradiegético, subordinado a ele, em outra metadiegese. 5 Segundo Reis e Lopes (1988), o narratário é uma entidade textual que compõe com o narrador uma relação de comunicação semelhante a do autor com o leitor. O narratário é o que Eco (1995) chama de leitor ideal, ou seja, o leitor pra quem o narrador imagina que se dirige, o leitor que o narrador imagina que tenha determinadas informações não contidas na narrativa e que vão beneficiar sua compreensão dela. 78 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar do constituído este “mundo paralelo”, o leitor não tem mais a impressão, como na ficção realista, de que os acontecimentos se desenvolvem diante dos seus olhos, mas tem a impressão de que participa da ação, nem que seja, como confidente do personagem. Desta maneira, a narrativa metaficcional se consolida, e ao quebrar a quarta parede, reforça laços de relacionamento entre narrador e narratário. A quebra da quarta parede, além de um recurso estético narrativo metaficcional, também denota que ficção mudou seu foco para outro nível do relato. Isso seria como se o narrador estivesse imerso em uma piscina, mas colocasse a cabeça para fora da água para se comunicar com o espectador. Genette (1972) explica que a narração em níveis narrativos está ligada estritamente à instância narrativa, ou seja, de onde se está falando. Para o autor, todo acontecimento relatado está situado em um nível narrativo imediatamente superior ao que a história acontece. Desta forma, o autor explica que é possível encontrar diversos níveis como este dentro de uma narração, como se fossem narrações a respeito de narrações. Assim, dentro da narração pode haver outro narrador, este intradiegético, encarregado de narrar uma história que terá alguma relevância para a primeira. Nesta obra, Genette (1972), não discorre os pormenores do seu conceito, mas elenca os principais tipos do que também chama de narração em segundo grau. O primeiro tipo, para o autor, trata de uma relação direta da diegese com a metadiegese. Desta forma, teria função explicativa, mostrando ao leitor e ao público interno do romance (no caso de um relato de um personagem a outro), que tipo de acontecimento os levou até aquela situação em que se encontram. O segundo tipo - que Genette (1972) observou - trata de uma relação temática que não tem nenhuma relação espaço-temporal direta com a narração em primeiro nível, podendo se apresentar de forma contrastante ou análoga em relação ao nível superior. Assim, é possível pensar em um filme em que um personagem relata um fato a outro personagem, mas é mostrado ao espectador um flashback6 contraditório ao relato. Logo, a narrativa tem o objetivo de mostrar ao espectador que o primeiro personagem mente ao segundo, entretanto isso pode não causar efeitos na narrativa de primeiro nível. 6 Segundo Reis e Lopes (1988), este recurso, também chamado de analepse é entendido por um “movimento temporal retrospectivo destinado a relatar eventos anteriores ao presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores ao seu início.” (p.203) 79 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar No terceiro tipo, Genette (1972) observa que há um menor grau de relação entre o nível diegético da história e o nível metadiegético. Nesta modalidade, o próprio ato narrativo se torna a diegese, independente do conteúdo das narrativas que o constituem, e nele essas narrativas, em segundo grau, têm função de distrair o leitor ou obstruir a solução da história. O autor exemplifica esta modalidade com a obra As mil e uma noites, na qual a protagonista adia sua possível morte contando ao sultão, seu marido, histórias que lhe interessem independente do conteúdo delas. Genette (1972) ainda observa que a importância da instância narrativa é crescente do primeiro ao terceiro tipo. No primeiro tipo trazido pelo autor, o encadeamento direto da narração em segundo grau passa pela narrativa e poderia substituí-la. No segundo, a relação entre os níveis é obrigatoriamente mediada pela narração, que se torna indispensável para o encadeamento das narrativas. No terceiro, a relação está somente no ato narrativo e na situação presente da narrativa, as metadiegeses – narrações subordinadas à narração principal – não tem importância maior que a narrativa principal, podendo ser substituídas por quaisquer conteúdos desde que não alterem a narrativa principal. Genette (1972) trata a metaficção basicamente como uma relação de níveis internos da história. Esse nivelamento é necessário para se estipular de onde a história está sendo contada. No entanto, Genette (1972) não aborda as transgressões aos cânones do romance observados na maioria dos teóricos da metaficção. Ao final deste processo, é possível enternder que as interações por parte do narrador Frank Underwood são ao mesmo tempo: quebras da quarta parede (XAVIER, 2003), recursos metaficcionais (HUTCHEON, 1984) e mudanças na instância narrativa do relato (GENETTE, 1972). Nesse momento, tem-se a base solidificada para que se possa mais uma vez observar o objeto, e desta vez, começar a recortar amostras capazes de sinalizarem se o paradigma contruído até o momento poderá ser comprovado. 4 Terceiro passo: a criação da metodologia de análise A partir da terceira fase começa o trabalho efetivo de análise. Nesse momento, já se identificou o padrão de repetição, ao qual as amostras irão se ligar. No caso de Além de um castelo de cartas: a metaficção em House 80 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar of Cards, este padrão seria o momento em que o personagem Frank Underwood olha diretamente para a câmera e comunica-se com o espectador. Assim, para dar conta da análise do objeto, assistiu-se novamente os 26 episódios disponíveis nas duas primeiras temporadas de House of Cards, desta vez com o objetivo de identificar e catalogar todas as ocorrências em que de Frank Underwood dirigia-se diretamente ao espectador. Posteriormente, selecionou-se 5 episódios, e destes 9 cenas que mostram de forma mais evidente a forma que a metaficção se apresenta na série, de acordo com a proposta desenvolvida. Identificado o padrão de repetição e as amostras para a análise, criou-se um problema de pesquisa, ou seja, uma pergunta que para ser respondida indicou o caminho a ser seguido. A pergunta inicial, baseada nos conhecimentos adquiridos na fundamentação teórica foi: como os níveis diegéticos e a metaficção se apresentam em House of Cards? Partindo deste problema, o caminho natural que foi seguido, consistiu em elaborar hipóteses que pudessem ser comprovadas ou refutadas durante o processo. Tanto a confirmação quanto a refutação das hipóteses tiveram importância no processo, em função de confirmar a direção em que a pesquisa deveria tomar, ou a desistência de caminhos que não teriam relevância para o objetivo final. Segundo Demo (2000), a hipótese tem três funções primordiais: I- é um pré lançamento, um “chute” preliminar, seguindo algum “faro” por isso essencialmente aberto e que pode, depois em vez de confirmado, ser rejeitado; II- tem a finalidade de orientar o trabalho dentro de certo caminho que imaginamos promissor, permitindo também selecionar bibliografia, conceitos-chaves, procedimentos metodológicos; III- aponta para algum problema que gostaríamos de enfrentar, alguma pergunta que mereceria resposta, algum objetivo ainda não explorado. (DEMO, 2000, p.162) Deste modo, união da fundamentação teórica e da observação do objeto indicou o caminho, ou seja, a resposta da pergunta era que a metaficção e os níveis diegéticos se apresentavam em House of Cards, por meio da interação do personagem Frank Underwood com o espectador. Desta forma, o narrador criaria no destinatário a sensação de cumplicidade, ou segundo Hutcheon (1984), exigindo de forma mais enfática a presença do espectador diante da obra e criando um mundo paralelo que somente narrador e espectador compartilham. No entanto, a análise das amostras expôs que a pesquisa poderia 81 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar avançar mais, foram notadas diferenças no conteúdo das interações do personagem com o espectador. Silva (2015) elucida que o pesquisador deve contar com certa liberdade metodológica para alcançar seus objetivos e que mudanças de rumo durante o processo são compreensíveis. “Analisar implica, portanto, encontrar diferenças na repetição e repetição na diferença. Em outros termos, analisar é fazer emergir a contradição, o paradoxo, a diferença, a repetição, o encoberto, o recoberto, o descoberto sob o familiar.” (SILVA, 2015, p.52) Na análise de Além de um castelo de cartas: a metaficção em House of Cards surgiu, portanto, a diferença na repetição. Em outras palavras, recortaram-se as situações em que o personagem olhava diretamente para a câmera, mas nesse recorte emergiu a diferença de conteúdo de cada interação. Assim como Hutcheon (1984) na sua obra sobre a metaficção narcisista, na qual, dividiu as ocorrências metaficcionais em implícitas e explícitas, e posteriormente, criou os sub-grupos linguística implícita e diegética implícita, e linguística explícita e diegética explícita, também houve a necessidade de subcategorizar as amostras percebidas em House of Cards. Assim, foram concebidas as categorias metaficcional diegética, metaficcional confessional e metaficcional gestual, que pretendiam explicar as motivações metaficionais diegéticas explícitas (HUTCHEON, 1984) observadas na série. Como dito anteriormente, foram selecionadas 9 amostras para análise na dissertação, mas para este artigo serão apresentadas apenas 3. Uma para cada categoria desenvolvida. 3.1 Categoria Metaficcional Diegética À categoria metaficional diegética atribuem-se todas as interações diegéticas explícitas, as quais o narrador utiliza para apresentar personagens, antecipar situações e explicar os acontecimentos ao espectador. Destarte, o narrador pode trazer ao conhecimento do espectador acontecimentos ocorridos no passado diegético, ou seja, em um momento anterior ao início da narrativa. Esta categoria também pode ser identificada quando o narrador prevê alguma situação que irá ocorrer mais adiante no desenvolvimento da história. Ou ainda explicar a importância de determinado personagem, fazendo o espectador dar mais atenção a ele. 82 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Portanto, todos os fatores que envolvem a diegese podem ser agrupados nesta categoria. Por exemplo, no primeiro episódio de House of Cards, Frank fala de seus hábitos cotidianos, apresentando o ambiente ao espectador. No entanto, esta cena trata mais de sua rotina pessoal, de uma preferência sua pelo churrasco de costelas. É possível notar aqui um pouco da construção do personagem quando Frank fala um pouco de si. Ilustração 1 – Conhecendo o personagem Meu prazer secreto é uma boa costela, mesmo às 7h30 da manhã. Não há mais ninguém aqui. Freddy às vezes abre só pra mim. Em minha cidade natal, na Carolina do Sul, as pessoas não têm muito dinheiro. Costelas são um luxo, como... [Frank abre o jornal e lê a manchete: PROJETO DE LEI DE EDUCAÇÃO MUITO À ESQUERDA DO CENTRO – ASSOCIA GRANDE FINANCIAMENTO A MANDATOS LIBERAIS] ... Natal em julho. [Frank joga o jornal na mesa onde é possível se ler: WALKER É EMPOSSADO E PROMETE REFORMAS EDUCACIONAIS ABRANGENTES. A câmera retorna à Frank que olha diretamente para ela e sorri] Fonte: House of Cards, episódio 1 Nesta amostra, observa-se que o narrador dá informações importantes ao espectador. Como, por exemplo, sua frequente presença na churrascaria de Freddy, que muitas vezes abre o estabelecimento só para que Frank faça uma refeição. Frank também fala um pouco das suas origens e de seu povo, justificando seu “ritual” com um pouco de nostalgia. Sabemos por intermédio desta interação que Frank, apesar de ter uma vida confortável como congressista norte americano, conhece a pobreza do lugar onde nasceu, a ponto de comparar uma simples refeição com um presente de natal. Desta forma, é mostrado ao espectador um pouco do passado da diegese, ou seja, de onde vem o personagem, e porque ele tem tamanha fome de poder. Frank já não é mais um reles cidadão pobre da Carolina do Sul, agora é o presidente do congresso americano e está fazendo articulações. Ou seja, está dando as cartas do jogo. Além de apresentar o personagem, é importante ressaltar que a cate- 83 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar goria metaficcional diegética é observada em outros momentos da série apresentando situações, ou justificando as ações com acontecimentos passados, ou ainda mostrando como as coisas funcionam no mundo desta ficção. 3.2 Categoria Metaficcional Confessional A ocorrência metaficcional encontrada com maior frequência em House of Cards, inclusive em associação com a categoria metaficcional diegética, é a categoria metaficcional confessional. A esta categoria atribuem-se as interações referentes a juízos que o narrador faz em relação a outros personagens, confissões a respeito de seus medos e valores, estratégias que está desenvolvendo e que não seriam bem vistas se contasse a alguém. Esta categoria agrupa as interações que dizem respeito à personalidade do narrador, sua ética ou falta dela, suas confissões a respeito de ocorrências bastante privadas de sua vida ficcional. A amostra selecionada para ilustrar esta categoria faz parte do episódio quatorze da série, início da segunda temporada. Na ocasião, Frank havia sido empossado vice-presidente e não havia interagido nenhuma vez com o espectador. Em função disso, no final do episódio, o narrador utiliza sua fala para lembrar ao espectador que estão juntos nessa “viagem narrativa”. Frank também se justifica por ter matado Zoey Barnes, uma personagem até então importante na série. A justificativa de Frank para o assassinato pode ser interpretada como a perda do controle que ele tinha sobre ela. Desta forma, por ela ter acesso a demasiadas informações sobre o narrador, precisou ser silenciada para que não atrapalhasse seus planos. Ilustração 2 – Autoconsciência Achou que eu tinha me esquecido de você? Talvez esperasse que sim. Não perca tempo lamentando a Srta. Barnes. Todo gatinho cresce até virar um gato. No começo parecem inofensivos, pequenos, quietos, tomando leite no pires. Mas quando suas garras ficam longas o bastante eles tiram sangue, às vezes, da mão que os alimenta. Para quem está subindo ao topo da cadeia alimentar, não pode haver misericórdia. Só existe uma regra: cace ou seja caçado. Bem-vindo de volta! Fonte: House of Cards, episódio 14 84 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Esta cena também é rica na escolha do movimento de câmera. Na primeira frase, Frank olha diretamente pra si no espelho e então diz: “Achou que eu tinha me esquecido de você?”. O narrador não olha pra câmera como nas interações anteriores, mas pela fala o espectador pode deduzir com quem o narrador está falando, ou seja, com ele, no outro lado da tela. Depois desta primeira frase, Frank vira-se para a câmera, que vai se aproximando de seu rosto. Isto cria um movimento de intimidade, aproximando o narrador do espaço fora da narrativa, como se estivesse lentamente entrando no espaço seguro da sala do espectador. Como na categoria anterior, as ocorrências metaficcionais confessionais se repetem várias vezes durante toda a obra. Neste sentido, podemos conhecer as intensões, desejos e juízos de Frank Underwood em relação aos outros personagens da trama. 3.3 Categoria metaficcional gestual A categoria metaficcional gestual consiste em interações em que o narrador não utiliza a fala para expressar um sentido, mas gestos e performances. Assim, pode dirigir-se ao expectador através de olhares, gestos com a cabeça ou com as mãos. Este tipo de interação geralmente se dá quando o narrador já explicou o que aconteceria por meio da interação com as categorias anteriores. A categoria metaficcional gestual, na maioria das vezes, é antecedida por uma interação do tipo metaficcional diegética, por se tratar de uma confirmação de uma situação prevista, mas isso não impede que seja empregada após uma interação do tipo metaficcional confessional. A interação por meio dos gestos reforça o sentido e dá maior credibilidade à atuação de Kevin Spacey como Frank Underwood, por ser mais semelhante aos diálogos que as pessoas compartilham na vida real. Devido a estas características de reforço, é possível conceder à categoria metaficcional gestual, a maior importância no rompimento da quarta parede (XAVIER, 2003) nesta série. Por não utilizar-se de recursos sonoros, esta categoria, não seria possível sem o olhar do narrador diretamente para a câmera. E assim, sem o gesto do olhar, as demais categorias também haveriam de se reconfigurarem, já que, o que indica a mudança de nível diegético (GENETTE, 1972), é justamente, o olhar do narrador em direção à câmera. 85 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Em House of Cards a utilização da expressão gestual, muitas vezes substitui diálogos que servem para intensificar ideias já expostas. Os diálogos verbais, nesses casos, além de desnecessários soariam como artificiais na narrativa. Os recursos gestuais e faciais mostramse mais sutis e sofisticados que os verbais. Ao mesmo tempo, a utilização desse tipo de interação amplia a cumplicidade do narrador com o espectador, colocando essas duas entidades tão próximas que são capazes de se comunicarem apenas através de um olhar em determinadas situações. Novamente, reforça-se e altera-se a relação entre o narrador e o espectador. O primeiro exigindo maior participação do segundo (HUTCHEON, 1984). No décimo quinto episódio de House of Cards, Frank utiliza-se de uma interação metaficcional gestual para mostrar ao espectador que sua influência sobre o presidente está aumentando. Frank após perceber que o presidente estava inclinado a aceitar a sugestão de Raymond Tusk – que atuava como conselheiro do presidente e se consolidava como principal rival de Underwood –, para manter o diálogo com a China a respeito da violação de propriedade intelectual dos produtos de empresas americanas pelos chineses, recorre a sua aliada, Catherine Durant, secretária de estado. Ele a convence de fazer o contrário do que o presidente lhe pediu, manter o diálogo com a China, e dá a entender aos chineses, que os Estados Unidos não serão tolerantes com a situação. Isto força o presidente a posicionar-se a favor de uma possível guerra com o país asiático e anunciar isto em um pronunciamento. Ilustração 3 – Gestual [Frank faz um gesto com as sobrancelhas para a câmera vendo o pronunciamento o presidente sobre a resposta que deveria dar aos chineses. Frank percebeu que o presidente preferiu seguir o conselho que ele lhe induziu ao contrário da recomendação de Tusk.] Fonte: House of Cards, episódio 15 86 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Assim, Frank mostra ao espectador nesta interação, não somente que sua influência sobre o presidente está aumentando. Mas também mostra que conhece os meios necessários para que seus planos corram como ele deseja. Isto, mais uma vez, reforça a relação com o espectador que pode sentir-se acompanhado pelo condutor, não só da narrativa, mas do destino dos personagens dentro da diegese. Isto posto, a interação metalinguística gestual consolida-se como uma das mais fortes evidências da metaficção em House of Cards, em decorrência de se referir a um comentário feito pelo narrador, sobre a diegese que ele constitui, se autorreferenciando. Criando assim o efeito de mise en abyme, o qual, a perspectiva metaficcional avança em direção ao interior da obra duplicando-se. 3.4 Observações gerais Ao analisar cada categoria desenvolvida buscou-se diferenciar uma da outra de forma mais evidente com o objetivo didático de ressaltar características próprias e singulares de cada uma. Deste modo, é possível conceber que nenhuma das categorias apresentadas foi percebida de forma pura e isolada. Todas as amostras dependiam de aspectos de todas as categorias, em diferentes proporções. A escolha por rotulá-las como metaficcionais diegéticas, confessionais ou gestuais, se deu em função da predominância de uma característica sobre as outras. Entretanto, é importante perceber que existem diversas características que foram observadas e que compõe de forma básica o que se desenvolveu neste estudo. Inicialmente, percebeu-se que os padrões de interação com o espectador se repetiam por olhares do narrador em direção à câmera ou por falas que colocavam o espectador em posição de destinatário da comunicação. Estas interações caracterizam-se como metaficcionais por transgredirem as convenções tradicionais da ficção realista, que tendem a conceber a arte como uma representação da realidade. Ao quebrar a quarta parede (XAVIER, 2003), por meio destas interações, o narrador assume ao espectador que esta narrativa não tem o objetivo de ser uma representação da realidade, mas sim pura ficção. As interações do narrador com o espectador também denotam uma 87 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar mudança no nível narrativo da obra. Pois, como visto em Genette (1972), estes níveis narrativos estão atrelados à instância narrativa. Ou seja, de onde o narrador está falando. Em House of Cards, observa-se a mudança de instância quando há também a mudança de posição do espectador. Considerações finais É importante constar que este artigo não tem a pretensão de se tornar um guia metodológico para pesquisas envolvendo a metaficção, ou níveis narrativos e muito menos o audiovisual. Trouxe-se aqui, nada mais do que o relato do desenvolvimento da metodologia em uma pesquisa específica, a fim de contribuir com o pensamento acadêmico a respeito das possibilidades de desenvolvimento metodológico. Esta pesquisa se desenvolveu a partir de observações exploratórias originadas de uma inquietação nascida ao assistir o primeiro episódio de House of Cards. As interações metaficcionais do narrador, que levantaram as primeiras dúvidas a respeito de que tipo de obra essa série se tratava, foram aos poucos respondidas com a imersão na teoria. Percebeu-se, depois de longas sessões de apreciação e análise desta série, que Frank Underwood não é a melhor pessoa pra se ter como inimigo. Ao mesmo tempo, ele oferece ao espectador o lugar a seu lado para viajar através da narrativa que conduzirá entre a história e suas confissões. Desta forma, faz o espectador entrar na diegese e participar de forma ativa de assassinatos e falcatruas que comete. O que emergiu desta pesquisa, após o caminho percorrido, foi que a metaficção (HUTCHEON, 1984) aliada aos níveis narrativos (GENETTE, 1972) cria de forma mais contundente a sensação de cumplicidade e envolvimento do espectador com a obra audiovisual. A criação de um microcosmo entre narrador e espectador, que ocorre pela mudança de nível narrativo, proporciona ao narrador que faça confissões e comentários ao espectador sem comprometer-se com os demais personagens da ficção. Isto gera um sentimento de participação no espectador, que tem a impressão de estar imerso na obra de ficção em posição privilegiada. Esta pesquisa, por fim, mostrou que a metaficção pode emergir como diferencial nas obras audiovisuais, podendo tirar o espectador do 88 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar papel de construtor passivo da narrativa e podendo causar a sensação de participação. Ao mesmo tempo, proporcionou a reflexão sobre o narrador metaficcional, que, no audiovisual, em especial no seriado, apresenta-se íntimo do espectador. Criando assim, além da relação de identificação, tradicionalmente observada no cinema, uma relação de maior cumplicidade. Além disso, observou-se que a quebra da quarta parede pode ser entendida como uma marca das produções que buscam utilizar estratégias que convoquem o espectador a interagir. Referências bibliográficas DEMO, Pedro. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras,1994. GENETTE, Gérard. Figuras III. Barcelona: Lumen, 1972. HUTCHEON, Linda. 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São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 89 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar O processo de criação do jornalista narrador literário: um olhar para Eliane Brum Kassia Nobre1 1 Introdução O diferente e o diferencial da obra da jornalista Eliane Brum2 estão na construção de uma narrativa com marcas autorais, a partir da utilização de recursos de observação e redação originários da (ou inspirados na) literatura. A autora se comporta como um “narrador literário” (SODRÉ, 2009) ao transgredir o manual de redação jornalístico e utilizar recursos da retórica literária. Desta forma, o que se observa nas reportagens da autora é o uso de recursos literários na composição de textos que priorizam histórias de vida de pessoas anônimas convertendo-as no próprio acontecimento jornalístico. O presente artigo mostrará como o jornalista narrador literário transforma a fonte em personagem, por meio da análise da obra A vida que ninguém vê (2006), e, em seguida, mostrará que é possível investigar o processo de criação deste narrador ao pesquisar os bastidores da produção, tendo como caso as reportagens de O olho da rua (2008). 1 Mestra pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 2 A jornalista trabalhou durante 11 anos como repórter do jornal Zero Hora, em Porto Alegre, e dez como repórter especial da Revista Época, em São Paulo. Atualmente, é colunista na versão brasileira do jornal espanhol El País. Publicou três livros-reportagens: Coluna Prestes: o avesso da lenda (1994); A vida que ninguém vê (2006) e O olho da rua (2008), além dos romances Uma duas (2011) e Meus desacontecimentos (2014) e do livro de crônicas A menina quebrada (2013). 90 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 2 A fonte que vira personagem As reportagens do livro A vida que ninguém vê foram, inicialmente, publicadas por Eliane aos sábados durante o ano de 1999 na coluna “A vida que ninguém vê” do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Todas as histórias foram ambientadas no estado do Rio Grande do Sul. O objetivo do espaço era apresentar textos de pessoas comuns e situações ordinárias. Após a coluna, as reportagens foram publicadas no formato livro em 2006. A obra venceu o Prêmio Jabuti de 2007 na categoria livro-reportagem. O olhar da autora foi direcionado para figuras anônimas, algo que é observado na literatura e, com menos frequência, no jornalismo. A reportagem, segundo Sodré e Ferrari (1986), assumiria esta perspectiva de representação da figura humana, pois possui o foco no “quem”, entre as perguntas clássicas do jornalismo: quem, o quê, como, quando, onde e por quê. Assim, o essencial da reportagem está no interesse humano. Como representou Brum, ao relatar mais do que acontecimentos, e sim singularidades de histórias de vida de pessoas desconhecidas em suas reportagens: Eliane procurava fugir da vala comum da pauta, cavando suas próprias histórias em quebradas escondidas da mídia onde descobriria personagens e assuntos que não estão nas agendas das redações – do solitário enterro de pobre à toca do colecionador das sobras da cidade, do carregador de malas no aeroporto que nunca voou ao cantor cego que inferniza a vizinhança anunciando a mega-sena acumulada (KOTSCHO, 2006, p. 180). A autora comenta, em um depoimento, sobre o interesse por contar histórias de pessoas anônimas: “Sempre gostei das histórias pequenas. Das que se repetem, das que pertencem à gente comum. Das desimportantes. O oposto, portanto, do jornalismo clássico [...] O que esse olhar desvela é que o ordinário da vida é o extraordinário” (BRUM, 2006, p. 187). Assim, A vida que ninguém vê demonstra, primeiramente, um olhar insubordinado da autora que rompe com o vício e o automatismo do jornalismo que busca um herói do cotidiano: A rua e seus personagens, suas surpresas diárias, seus anti-heróis, é sua matéria-prima. No livro, Eliane conta a história de pessoas normalmente tidas como párias, ou invisíveis, numa linguagem mais moderninha, ou não-incluídos socialmente, segundo o dicionário do politicamente correto. É o mendigo que passa o dia inteiro deitado numa rua de Porto Alegre, vendo a vida do rés-do-chão. Ou um pai que acaba de enterrar o filho natimorto. Ou um louco da comunidade. Esses são personagens que vimos 91 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar no nosso cotidiano, mas fingimos que não os vemos, ou somos levados a achar que sua condição é natural. No máximo, estendemos a mão e derrubamos uma pequena esmola, se for o caso de um mendigo. Mas Eliane é diferente. Ela tem a sensibilidade à flor da pele, e entende que, para descobrir o tema de uma grande reportagem, basta mudar o ângulo, o foco – ou, numa palavra, o olhar (LIMA, 2006). Ao fugir das fontes convencionais, Brum concretizou a fala de Medina (2003, p. 79) sobre a necessidade de oxigenar a pauta viciada para uma renovação na atmosfera claustrofóbica de uma redação. Assim, o olhar de Brum procurou por pessoas anônimas para traduzir dilemas humanos em reportagens. As narrativas contam histórias de anti-heróis do cotidiano que ganham destaque de Ulisses: O ser humano, qualquer um, é infinitivamente mais complexo e fascinante do que o mais celebrado herói. [...] Esse [...] é o encanto de A vida que ninguém vê. Inverter essa lógica que nos afasta para mostrar que o Zé é Ulisses e o Ulisses é Zé. [...] E cada pequena vida uma Odisséia” (BRUM, 2006, p. 195). A obra é exemplo de um jornalismo focado em pessoas, por isso, humanizado. Ou seja, “os textos de Eliane Brum revelam um fazer que prioriza a humanização, que significa trazer o ser humano para o foco dos acontecimentos, dando voz aos personagens, mostrando sua índole, suas angústias, os sentimentos” (FONSECA; SIMÕES, 2011, p. 11). Para as autoras, A vida que ninguém vê é fruto de um momento de interação, de imersão, de uma realidade que se construiu a partir da participação de Brum. “É o real enquadrado por meio dos olhos e da escrita de Eliane Brum” (FONSECA; SIMÕES, 2011, p. 10). Com essa característica, as reportagens despertaram o interesse de leitores do jornal gaúcho Zero Hora que sinalizaram por meio de e-mails e cartas uma identificação com as histórias de vida narradas por Brum. “Toda semana desembarcavam e-mails e cartas contando sobre vidas próprias, vidas de outros [...] Toda semana me alcançavam relatos que acabavam assim: ‘Descobri que a minha vida é especial. Mudou tudo’” (BRUM, 2006, p. 188). Para aguçar a reflexão de seu leitor, Brum constrói fontes/personagens que representam mais de um conceito dentro da narrativa, diferentemente do jornalismo que costuma separar suas fontes em conceitos estabelecidos – boas/más; vítimas/culpadas. Para a construção de personagens complexas, Brum busca em suas 92 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar fontes representações que vão além de suas falas: ela observa profundamente as pessoas para a captação de gestos, comportamentos, linguagem e tudo que ajude na composição da figura que será a protagonista da narrativa. Ou seja, características que tornem a fonte palpável para o leitor: O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que palavras escolhem, que entonação dão ao que falam e em que momentos se calam revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. Escutar de verdade é mais do que ouvir. Escutar abarca a apreensão do ritmo, do tom, da espessura das palavras – e do silêncio (BRUM, 2008, p. 37). 3 Marcas da literatura A primeira marca literária identificada no texto da jornalista foi a caracterização física e moral das pessoas, para que o leitor pudesse melhor visualizar e entender as ações delas nas reportagens (BRAIT, 1985). Esta caracterização foi representada pela descrição de aspectos, como fisionomia, vestuário, personalidade, caráter e modo de vida. Ação frequentemente realizada pelos romancistas para apresentar suas personagens. O resultado deste efeito na literatura e na reportagem é a “ampliação” do real, já que o leitor terá mais artifícios para conhecer a história. A caracterização também permite a humanização da personagem e da fonte para aproximá-las ainda mais do leitor através do mecanismo de identificação. Além de caracterizar o que é visível, como a descrição física, Brum arrisca uma construção psicológica das pessoas na narrativa, outra marca da literatura no texto da repórter. O relato de pensamentos, desejos e sonhos, em tese, é permitido apenas aos romancistas, que podem ter o controle de seus personagens, já que são suas criaturas, frutos de sua criação. Na literatura, as descrições da personagem, ao mesmo tempo que revelam detalhes sobre a figura humana, permitem a complexificação do ente da ficção, o que evita o seu reducionismo. Ou seja, quanto mais diferentes facetas o autor revelar sobre a personagem, mais o leitor construirá diferentes perfis de uma mesma personagem. Ela poderá ser boa ou má ao mesmo tempo e será tão complexa quanto são as pessoas “reais”. Assim, quanto mais aberta for a narrativa, maior será a possibilidade de relativações, interpretações e complefixações. Por ser uma marca subjetiva, a descrição psicológica não seria permitida em um jornalismo que se diz objetivo, ao descrever a realidade com uma suposta precisão. 93 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Porém, Brum, ao modo da literatura, aposta em uma escuta e em uma observação aprimoradas para a interpretação daquilo que foi manifestado por suas fontes por meio de gestos e palavras, além da imersão no ambiente da narrativa para melhor conhecer a pessoa e aqueles que convivem com ela. O que remete ao trabalho dos realistas e naturalistas que realizavam uma observação profunda da realidade e das pessoas. O diálogo entre Brum e suas fontes – que foi utilizado na íntegra em algumas reportagens – é outro recurso literário empregado pela jornalista na tentativa de transpor para o leitor o momento da conversa entre a repórter e seu entrevistado, o que provoca no leitor a sensação de também estar presente na cena, intensificando o efeito do real (CANDIDO, 1998). 4 A importância da personagem Na literatura, a atuação da personagem é essencial no desenrolar da trama. Muitas vezes, é através da história da personagem que são apresentados outros componentes da narrativa, como o enredo e o espaço. E, principalmente, pelo fato de que não há narrativa literária sem personagem. No espaço da narrativa de Brum, todas as fontes viraram protagonistas das histórias e, por meio delas, foram apresentados outros componentes da narrativa, o que mostra que a pessoa é mais importante do que o fato. Outra característica importante diz respeito ao fato de Brum ter um estilo dissertativo para construir o seu texto, o que se assemelha à prosa literária. A jornalista faz a sua interpretação da realidade que observa e, por meio de críticas, analisa o comportamento humano diante de situações vividas nas narrativas. Mais uma característica que se assemelha às narrativas literárias, quando o narrador apresenta seu ponto de vista na narrativa e direciona o leitor para um caminho ou caminhos. Assim, por meio das histórias das fontes/protagonistas, Brum – através do narrador – permite que o leitor reflita ao criar um efeito de “moral da história”. O que também remete à literatura é o fato de as reportagens dizerem respeito às protagonistas que estão em um momento de conflito em suas vidas. Dessa forma, a autora consegue revelar aspectos psicológicos e sociológicos da vida humana. O jornalismo tem o costume de trazer ao conhecimento público fontes que passam por situações-limites, porém a diferença é que a narrativa de Brum, a partir desta construção 94 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar psicológica e sociológica e de recursos literários, consegue avançar nisso propondo a reflexão sobre o assunto e não apenas a sua exposição. Assim, a narrativa de Brum demonstra a possibilidade de o repórter tornar-se um narrador literário e utilizar-se de estratégias já reconhecidas por romancistas para melhor apresentar a realidade ao leitor. Atitude esta que vai de encontro ao jornalismo que se diz por princípio neutro e imparcial em seu relato e à ideia de que o jornalista não pode interpretar a realidade, apenas informar sobre ela, principalmente na categoria do gênero informativo. O jornalista, como narrador literário, amplia a visão do leitor sobre os fatos e pessoas e, assim, pode – como fez Eliane Brum – ter uma fonte complexa que engloba valores, posicionamentos e atitudes para desmistificar a figura humana. A interação entre repórter e fonte percebida nos textos de Brum contradiz a realidade aparente das redações, principalmente com o uso das novas tecnologias na produção jornalística. O meio digital facilita e conduz o processo de produção do jornalismo para que ele seja realizado sem o contato direto do repórter com a sua fonte, se assim desejar. Isso se constitui em algo que inviabiliza uma observação profunda e uma posterior interpretação do jornalista para a construção da caracterização da pessoa na narrativa. Ao mesmo tempo em que se constata a produção jornalística imersa nas novas tecnologias, observar-se a ascensão de produções humanizadas. Conforme Soster (2010 et al., p.1-2), as representações desse gênero se tornam elementos diferenciadores – diante da prática do jornalismo online e sua produção homogênea – ao prender a atenção do leitor por meio de narrativas estruturadas com recursos literários. 5 O jornalista narrador literário Partindo da constatação de que a jornalista utiliza-se dos recursos literários para estruturar sua narrativa a partir da história das fontes, percebe-se, na forma de construção, que estas tendem a assumir qualidades da personagem literária, constituindo-se numa estratégia da autora quando assume este lugar de narrador literário (DOS SANTOS, 2013). Sodré (2009, p. 144) explica que o jornalista narrador literário utiliza uma linguagem pessoal, tornando-se personagem da própria história e dá cores de aventura romanescas a seu relato com a intenção de captar ainda mais a atenção do leitor. Para o entendimento do comportamento deste 95 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar tipo de narrador é interessante observar como atua o “narrador clássico” de Benjamin (1987) e o “narrador pós-moderno” de Santiago (2012). A principal característica do narrador clássico é a capacidade de sua narrativa intercambiar experiências com o leitor, de maneira que o ato de narrar advenha da experiência do narrador. Para Benjamin, não há narrativa sem a experiência, então, o narrador necessariamente precisa experimentar algo para contar uma história. Já o narrador pós-moderno se distancia da ideia benjaminiana, porque não narra sobre suas experiências, mas colhe informações de terceiros para construir sua narrativa. A principal diferença defendida por Benjamin entre narrar (narrador benjaminiano) e informar (narrador pósmoderno) é que os fatos em uma informação já chegam acompanhados de uma explicação. Já na narrativa, o leitor é livre para interpretar a história como quiser e, com isso, o episódio narrado ganha uma amplitude que não existe na informação (BENJAMIN, 1987, p. 203). Assim, o narrador pós-moderno é, na verdade, um grande observador da vivência dos outros. A partir dela, constrói a sua narrativa. “A figura do narrador [pós-moderno] passa a ser basicamente a de quem se interessa pelo outro (e não por si) e se afirma pelo olhar que lança ao seu redor, acompanhando seres, fatos e incidentes (e não por um olhar introspectivo que cata experiências vividas no passado)” (SANTIAGO, 2012, p.42). Ao passo que o narrador clássico introduz suas experiências na narrativa, o pós-moderno se afasta (muitas vezes se esconde) da narração para enaltecer a voz da pessoa observada. A “sabedoria” da narrativa midiática não advém do narrador, e sim da ação daquele que é observado. A sua essência não deixa de ser a experiência, mas ela não é vivida, apenas observada. Entre os narradores pós-modernos, estaria, segundo Santiago (2012, p. 39-42), o narrador do romance (literário) que quer ser impessoal e objetivo diante da coisa narrada (utilizando-se da voz da personagem para contar sua história), mas que, no fundo, confessa-se em sua narrativa. Ou seja, suas experiências estão em seus relatos, apesar da evidente e necessária preocupação da literatura em diferenciar narrador e autor. Já o jornalista, que se comporta como narrador literário, é um narrador pós-moderno porque se utiliza da experiência do outro para construir sua narrativa, mas se torna menos impessoal e passa a narrar sobre os fatos, e não apenas informá-los, aproximando-se do narrador benjaminiano. Para isso, busca novos formatos, investindo em recursos típicos 96 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar da literatura – profunda observação, imersão na história a ser contada, fartura de detalhes e descrições, texto com traços autorais, reprodução de diálogos e uso de metáforas (Necchi, 2009). Dessa forma, o jornalista narrador literário aproxima-se do trabalho realizado pelo autor de ficção para construir suas reportagens, ainda que tenha sempre claro que as narrativas – literária e jornalística – são construções baseadas na realidade, mas que possuem finalidades e, principalmente, intenções diferenciadas. No caso do jornalismo, essa diferenciação diz respeito ao seu compromisso com a referencialidade e com os discursos sobre o real (DOS SANTOS, 2013). 6 O jornalista como agente criador Como foi descrito, o jornalista narrador literário não observa a realidade imparcialmente, como o narrador pós-moderno de Santiago (2012), mas também não relata apenas sobre as suas experiências, como o narrador de Benjamim. É certo, ainda, que as reportagens possuem inspiração nos romances da literatura. O questionamento que poderia surgir é como, afinal, seria a produção deste texto. É possível afirmar que o jornalista narrador literário é uma figura fundamental na criação do texto, já que será o seu olhar singular que irá conduzir a construção da reportagem. Ele se torna um agente criador3, o que possibilita a investigação do seu processo criativo em todos os momentos de produção: pesquisa, entrevista e redação. Sabe-se, entretanto, que este olhar não é solitário, já que o repórter não é um ser isolado. A linha editorial e as relações dele com o tempo e o espaço em que está inserido atuam de maneira decisiva em conjunto com o sujeito criador. Como afirma Morin (1998), o menor conhecimento do sujeito comporta elementos biológicos, cerebrais, culturais, sociais e históricos. O ato criador é relacionado, muitas vezes, à inspiração ou à genialidade do artista. O trabalho, a transpiração, que envolve todo o processo criativo permanece nos bastidores ou nos ateliês. Poucas vezes é compartilhado com o público, que só tem acesso ao produto disponível no mercado, seja na galeria, cinema, livrarias ou bancas de revista. 3 Termo utilizado por Salles (2008) para definir o autor ou o artista da obra que será analisado o processo de criação. 97 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Como afirma Salles (2011, p.22), “muitos aspectos da criação artística aparecem a seus fruidores envoltos em uma aura que mais mitifica do que explica esse engenhoso labirinto da mente humana”. Para a autora, o processo criador envolve uma lógica complexa e que não é possível a sua total explicação. No entanto, é possível conhecê-lo melhor por meio de uma análise crítica: É uma investigação que vê a obra de arte a partir de sua construção, acompanhando seu planejamento, execução e crescimento, com o objetivo de melhor compreensão do processo de sistemas responsáveis pela geração da obra. Essa crítica refaz, com o material que possui, a construção da obra e descreve os mecanismos que sustentam essa produção (SALLES, 2011, p. 22). A Crítica Genética se propõe a discutir o processo criador de obras literárias a partir de manuscritos ou outros registros deixados pelo artista sobre a obra. “O interesse da Crítica Genética está voltado para o processo criativo artístico. Trata-se de uma investigação que indaga a obra de arte a partir de sua fabricação. Como é criada a obra? Essa é a grande questão” (SALLES, 2008, p. 28). Os estudos foram ampliados para outras manifestações artísticas, como artes plásticas, música, teatro e cinema. Conforme Salles e Cardoso (2012, p. 44), os processos comunicativos em sentido mais amplo, como a fotografia, publicidade e o jornalismo, também receberam a atenção da Crítica Genética. A Crítica Genética trabalha com os documentos de processo que são os registros materiais do processo criador. Ou seja, “a coleta sensível que o artista faz ao longo do processo, recolhendo aquilo que, sob algum aspecto, o atrai. São seus modos de se apropriar do mundo” (SALLES, 2008, p. 68). A partir da observação dos documentos de processo, o crítico poderá analisar as etapas da reportagem e entender melhor as tomadas de decisões e a construção dos textos. Desta forma, o estudo do percurso criativo na construção de reportagens poderá ampliar o conhecimento teórico já existente sobre a prática e teoria da narrativa jornalística. Porém com o olhar diferenciado da Crítica Genética para os documentos dos bastidores da produção com a finalidade de entender e analisar o percurso escolhido pelo jornalista. A jornalista Eliane Brum incluiu, ao final das reportagens da obra O olho da rua (2008), o making off da construção das reportagens (do- 98 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar cumento de processo), que podem auxiliar o entendimento das mesmas. Os textos são impressões pessoais da autora e mostram a preocupação da jornalista em revelar ao público a forma como foi construída as suas reportagens, revelando, assim, a forma que ela lida com o jornalismo. 7 Os bastidores de Eliane Brum Para entender os caminhos escolhidos pelo agente criador é interessante observar o que o motivou ao iniciar a jornada. Ou seja, qual é a sua busca ao criar, compor ou escrever. Salles denomina como “projeto poético” os gostos, crenças e as preferências estéticas e éticas que regem o modo de ação do artista ou do jornalista. “Por meio dessas formas de retenção de dados, conhecemos, entre outras coisas, as questões que o preocupam e suas preferências estéticas” (SALLES, 2011, p. 44). Na apresentação do livro O olho da rua (2008), Eliane Brum relata qual são os seus principais objetivos e preocupações ao escrever: Meu ofício é encontrar o que torna a vida possível apesar de tudo, a delicadeza na brutalidade do cotidiano, a vida na morte. É esse o mistério que me fascina. E o olhar que escolhi como farol nessas andanças pelos muitos Brasis é o da compaixão, aquele que reconhece no outro a fratura que já adivinhou a si mesmo [...] A realidade é complexa e composta não apenas de palavras. É feita de texturas, cheiros, nuances e silêncios. Na apuração de minhas matérias, busco dar ao leitor o máximo dessa riqueza do real, para que ele possa estar onde eu estive e fazer suas próprias escolhas. Este livro também é uma confissão de fé na reportagem, aquela que vai para a rua se arriscar a ver o mundo. É uma confissão de minhas escolhas, meus sustos, meus dilemas e também de meus erros. Porque, como diz Sérgio Vaz, grande poeta da periferia de São Paulo, quem ama erra. Para cada reportagem há uma reflexão sincera, vísceras à mostra, sobre o que fiz e vivi – como repórter, como gente (BRUM, 2008, p. 14; grifo meu). Percebe-se que a busca da jornalista, retratada no prefácio do livro, vai além da obra em si. Representa os princípios direcionadores da forma como entende o fazer jornalismo. Até porque, como afirma Salles (2008, p. 50): “Todo o processo de apreensão do mundo é feito, normalmente, em função de uma obra ou de um projeto que vai além da construção de uma obra específica”. Desta forma, o depoimento da autora mostra estes princípios direcionadores da sua narrativa. Como ela afirma: “O olhar que escolhi como farol”. 99 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Algo que ela não abre mão ao escrever e acaba por se tornar uma marca pessoal que foi recorrente nos textos para a Época e que também apareceram na contribuição da jornalista ao Zero Hora, no início da carreira. A delicadeza é um deles. A aproximação com a literatura permite este movimento por meio da humanização da narrativa. Ou seja, uma narrativa centrada em pessoas, quando o jornalista compreende as ações dos sujeitos para atribuir significado e sentido aos acontecimentos e, assim, proporcionar ao público, mais que a explicação, a compreensão das ações humanas (IJUIM, 2012, p.133). A humanização também é descrita quando a autora fala de compaixão. Ou seja, a empatia que ela possui com suas fontes ao escrever sobre suas histórias. Narrar a história com “o máximo de riqueza do real” também é outra escolha da jornalista que utiliza recursos da literatura como a descrição física de pessoas e de lugares para ambientar o leitor na narrativa. Ao relatar que a reportagem é uma confissão com escolhas, dilemas e erros, a autora permite que seu trabalho não seja visto como uma verdade absoluta, mas sim como um texto em estado de permanente inacabamento, que poderia ter diferentes versões. “O objeto considerado acabado representa, também de forma potencial, uma forma inacabada. A própria obra entregue ao público pode ser retrabalhada ou algum de seus aspectos [...] pode ser retomado” (SALLES, 2011, p. 85). A partir destas observações sobre o texto de Eliane Brum, o presente artigo analisará a forma como foram construídas as reportagens “A floresta das parteiras”, “O sobrevivente”, “Mães vivas de uma geração morta” e “Vida até o fim” a partir do que foi fornecido pelos textos sobre os bastidores destas matérias “Reportagem por cesariana”, “Olhar para ver” e “Minha vida com Ailce”. 8 A floresta das parteiras A reportagem “A floresta das parteiras” é o texto que abre o livro O olho da Rua (2008) e conta a história de parteiras do Amapá. Eliane Brum relatou o oficio de mulheres que vivem no Norte do Brasil e são responsáveis pelo nascimento de quase toda a população do Estado. A narrativa gira em torno da vida destas mulheres e da função que elas exercem. A jornalista inicia o making off com uma confissão de erro. O título “Reportagem por cesariana” já indica um arrependimento da autora 100 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar que não acompanhou um parto porque precisou deixar a região, antes do momento do nascimento: Cometi o mesmo erro dos médicos. Não esperei o tempo do parto. Era a minha primeira reportagem na Época. Eu e a fotógrafa Denise Adams partimos para o Amapá para fazer a matéria em quatro dias. Na sequência, faríamos uma entrevista com Roseana Sarney, então governadora do Maranhão, na sua casa, em São Luiz. [...] Não há nada que justifique ter deixado passar um parto feito pela parteira mais antiga do Amapá, uma índia caripuna de 96 anos, por causa de alguns dias e de uma entrevista com a Roseana Sarney (nada pessoal). Então, errei (BRUM, 2008, p. 36 e 37). Conforme Salles (2011, p. 69), “limites internos ou externos à obra oferecem resistência à liberdade do artista”. No caso da reportagem, o deadline, prazo final para a entrega do material, é o que poderá delimitar o trabalho do repórter. Se a jornalista tivesse acompanhado o parto, a reportagem, certamente, seria diferente. O que demonstra a possibilidade de diferentes matérias e que aquela que chega ao público é apenas uma versão de outras possíveis, não uma versão única. No depoimento da jornalista também é perceptível a sua insatisfação, o que ela chama de erro, com o resultado da sua apuração, já que não pode esperar o parto. Segundo Salles (2008), a sensação de insatisfação do criador vem pelo fato dele lidar com a sua obra em estado de contínuo inacabamento. “O objeto dito acabado pertence, portanto, a um processo inacabado. Não se trata de uma desvalorização da obra entregue ao público, mas da dessacralização dessa como final e única forma possível” (SALLES, 2008, p. 21). As observações de Eliane Brum sobre a reportagem “A floresta das parteiras” permitiram ainda uma reflexão da autora sobre o jornalismo. Em um momento do making off, ela afirma que é preciso respeitar a linguagem das parteiras. Ou seja, deixar a fonte falar sem um direcionamento forçado do repórter. O que as pessoas falam, como dizem o que têm a dizer, que palavras escolhem, que entonação dão ao que falam e em que momentos se calam revelam tanto ou mais delas quanto o conteúdo do que dizem. Escutar de verdade é mais do que ouvir. Escutar abarca a apreensão do ritmo, do tom, da espessura das palavras – e do silêncio (BRUM, 2008, p. 37). Mais adiante, a jornalista explica o que fazer para captar a nuance 101 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de suas fontes que vão enriquecer com detalhes a sua narrativa: “Bastava escutar e anotar cada suspiro para não perder nada. [...] Especialmente nesta reportagem, meu trabalho de repórter foi apenas escutar, prestar atenção em cada gesto, ênfase, trejeito e passar tudo para o papel” (BRUM, 2008, p. 38). Salles (2011) escreve sobre a percepção do artista na hora de criar a obra. E que esta percepção é uma forma de exploração do mundo. “O processo de apreensão dessas imagens revela a ação do olhar dominando a realidade com armas poéticas” (SALLES, 2011, p. 97). Na reportagem, as vozes das parteiras, realmente, dão o tom do texto. Frases como: “Parteira não tem escolha, é chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo”, de Maria dos Santos Maciel, a dona Dorica. Em outro momento, a parteira Alexadrina também afirma: “Mulher e floresta são uma coisa só. A mãe-terra tem tudo, como tudo se encontra no corpo da mulher. Força, coragem, vida e prazer”. Sobre as frases, Brum comenta no making off: “Nem que quisesse, nem que eu estivesse fazendo ficção e pudesse inventar, eu chegaria perto da beleza com que elas se expressavam” (BRUM, 2008, p. 38). A jornalista conclui o making off desta reportagem com outra reflexão sobre o ofício do jornalista. Fala sobre a importância da participação efetiva do repórter na construção da pauta. Segundo Brum, a realidade precisará afetar\ mexer\ perturbar o repórter para que ele possa traduzi-la de maneira mais verdadeira ao seu leitor. “Porque só tem graça ser repórter quando nos entregamos à reportagem e deixamos que ela nos transforme. Se um dia eu voltar a mesma de uma viagem ao Amapá ou para a periferia de São Paulo, abandono a profissão. Ser repórter é renascer e se recriar a cada reportagem” (BRUM, 2008, p. 39). 9 O sobrevivente e Mães vivas de uma geração morta A reportagem “O sobrevivente” relata a história do único sobrevivente do documentário “Falcão – Meninos do Tráfico”, que relatou no Fantástico, programa da TV Globo, a vida de meninos de favela e periferia que são assassinados por trabalhar para a venda ilegal de drogas. Já a reportagem “Mães vivas de uma geração morta” é sobre as mães que perderam os seus filhos para o tráfico. 102 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar O texto sobre os bastidores das reportagens foi intitulado “Olhar para ver” em alusão ao documentário que, segundo Brum, mostrou cenas para ver. Ou seja, para conhecer a realidade destes jovens. O comentário de Eliane Brum sobre o documentário ainda pode gerar uma discussão sobre os programas que noticiam a violência, mas não realizam, de fato, uma reflexão sobre o tema. Violência não é uma novidade na programação de jornalismo da televisão brasileira. [...] A diferença é que a maioria dos programas é feita não para que possamos ver – mas para que possamos continuar não vendo. A maioria deles, com a voz do apresentador ou do repórter ao fundo apontando o que devemos ver ou como devemos ver, não mostra, esconde. [...] Essa foi a diferença do documentário de MV Bill e Celso Athayde. Eram cenas para ver – não para assistir. [...] Eu acredito que, nas ruas do mundo, o grande desafio é olhar para ver. E olhar para ver é perceber a realidade invisível – ou deliberadamente colocada nas sombras. Olhar para ver é o ato cotidiano de resistência de cada repórter, de cada pessoa (BRUM, 2008, p. 236 e 241). Eliane Brum explica que a pauta da reportagem “O sobrevivente” foi a partir da repercussão do documentário exibido no Fantástico. A segunda reportagem foi uma sugestão da repórter no momento da apuração da primeira. Brum conta ainda que tinha uma entrevista com o único sobrevivente entre os dezessete garotos do documentário. Mas o acaso fez com que a repórter entrevistasse ainda uma fonte significativa para a reportagem, que não estava prevista na pauta. Os acasos podem acontecer no jornalismo, o diferencial estaria na forma como o repórter lida com eles. Salles (2011) discute sobre o acaso e como ele pode ser incorporado na criação. Já os documentos de processo auxiliam na identificação deste acontecimento. Os documentos de processo e os relatos retrospectivos conseguem, às vezes, registrar a ação do acaso ao longo do percurso de criação. São flagrados momentos de evolução fortuita do pensamento daquele artista. A rota é temporariamente mudada, o artista acolhe o acaso e a obra em progresso incorpora os desvios. Depois deste acolhimento, não há mais retorno ao estado do processo no instante em que foi interrompido (SALLES, 2011, p. 41). No caso da reportagem, a fonte inesperada ajudou na construção do texto. Brum explica: 103 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Às vezes, supostamente, já temos o suficiente para escrever um texto, mas se pararmos nesse ponto nunca saberemos o que deixarmos de contar. Nem o leitor. [...] Às vezes essa última tentativa não dá em nada. Mas em outras encontramos algo precioso – ou até a chave do texto. Foi o que aconteceu na conversa com a tia de Fortalece [único sobrevivente] [...] Eu acabara de descobrir como contaria a história. Pelos nomes – essa era a chave do texto e da vida (BRUM, 2008, p. 238). Assim, a reportagem “Mães vivas de uma geração morta” surgiu de um acaso fortuito para a repórter que conseguiu contar a história por uma perspectiva diferente daquela mostrada pelo programa Fantástico: A primeira pergunta era: como eu poderia colaborar com este debate, como eu poderia acrescentar algo a essa discussão. A realidade da vida – e da morte – dos meninos do tráfico já havia sido mostrada com absoluta competência por MV Bill e Celso Athayde. Compliquei a pauta virando os meninos do avesso. Pude então mostrar outro olhar sobre eles: o das mães (BRUM, 2008, p. 240). 10 Vida até o fim Salles (2011, p 132-135) afirma que o estudo do percurso criativo de uma obra pode ser observado sob a perspectiva da construção de conhecimento. Ou seja, ao analisar documentos de processo de uma obra, busca-se o conhecimento do ambiente em que o artista está inserido; da matéria-prima utilizada por ele e sobre o próprio artista. O percurso criador também se torna um processo de autoconhecimento. Ao observar a reportagem “Vida até o fim” e o documento de processo “Minha vida com Ailce”, é possível identificar o quanto o trabalho foi intenso e transformador para a vida da jornalista. Brum também escrevia semanalmente para o site da revista Época na coluna de crônicas “Nossa sociedade”. No texto “Escrivaninha Xerife”, que narrou sobre a sua decisão de sair da revista Época, a jornalista conta sobre o impacto desta reportagem na sua escolha: Em 2008, comecei a escrever sobre a morte, de várias maneiras, em minhas reportagens na ÉPOCA. Olhar o rosto da morte, para mim, era desatar o nó que ainda me impedia de viver uma vida mais viva. [...] Ao fazer a principal reportagem desta série, quando acompanhei uma paciente de câncer até o fim da sua vida, perdi um naco da minha alma de supetão. Levei um tempão para parar de sangrar, como quem acompanha esta coluna sabe. [...] 104 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar A vida rugiu com mais força dentro de mim depois dessas várias reportagens sobre a morte. [...] Faço 44 anos em maio. Fiz uns cálculos e descobri que preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro – e eu quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como já disse mais de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na hora de comprar minha escrivaninha Xerife e mudar de cenário (BRUM, 2010). Pode-se afirmar que o primeiro romance da autora Uma duas (2011) também teve ecos da reportagem já que uma das personagens principais é diagnosticada com câncer terminal igual à merendeira Ailce. No makinf off, Brum questiona os limites de intervenção do repórter na história a ser contada e acaba discutindo temas importantes para o jornalismo, como a objetividade e imparcialidade: Algumas pessoas me perguntaram sobre o nível de intervenção do repórter, eu, na travessia da personagem, ela. Esse é um tema caro ao exercício do jornalismo. Isenção e objetividade se colocam para o jornalista como um ideal que deve ser perseguido, mas que jamais será atingido por completo. Nossa simples presença – ou decisão de fazer uma reportagem – já altera a realidade sobre a qual vamos escrever. Quanto mais claro isso ficar para o leitor, maior será a honestidade do nosso trabalho. [...] Em meus textos, procuro deixar muito claro ao leitor qual é o meu lugar e onde minha interferência foi decisiva (BRUM, 2008, p. 419). Ao contar sobre suas escolhas, principalmente aquela de não ser imparcial, a jornalista tem a oportunidade de mostrar a forma como constrói a reportagem. Como neste trecho que relata como foi a relação com Ailce: Eu quase não fazia perguntas, optei por apenas pontuar suas respostas, numa escuta delicada e muito, muito atenta. Por um lado, minhas perguntas, se incisivas, contaminariam suas respostas: ela poderia usar minhas palavras em vez das delas para se referir a esse momento limite da vida. Por outro, eu correria o risco de atropelar seus sentimentos se abordasse questões para as quais ela ainda não estava preparada. No primeiro caso, essa interferência impossibilitaria uma reportagem honesta; no segundo, machucaria Ailce. Um exemplo: ela jamais usou a palavra “câncer”, eu nunca pronunciei a palavra “câncer”. Se eu falasse “câncer”, não poderia saber que Ailce não usava esta palavra e, assim, não compreenderia algo crucial da forma como ela lidava com a doença que a mataria (BRUM, 2008, p. 420). Mais uma vez, os documentos de processo auxiliaram o entendimento da forma de agir da jornalista diante da reportagem em construção. Desta forma, pode-se afirmar que a análise do processo criativo evi- 105 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar dencia a possibilidade de um conhecimento a mais sobre o jornalismo e sobre os desafios da reportagem. Referências BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985. BRUM, Eliane. A vida que ninguém vê. Porto Alegre: Arquipélago, 2006. _____________ O olho da rua: uma repórter em busca da literatura da vida real. São Paulo: Globo, 2008. ______________. Faro jornalístico para achar grandes desacontecimentos. [abril de 2011]. Recife. Diário de Permambuco. 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Anais...Rio Grande do Sul: Intercom, 2010. 15p. 107 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Perspectivas acerca da biografia jornalística Rodrigo Bartz1 1 Introdução A curiosidade, em relação à biografia, está diretamente ligada ao nosso interesse em estudar as complexificações que emergem quando o narrador (jornalista de ofício) resolve dialogar com a literatura, neste gênero (biográfico) que abarrota as prateleiras de livrarias e bibliotecas, sendo inclusive número um em vendas em alguns sites2. Por meio de estudos, realizados no grupo de pesquisa3, abordamos o que significa para o jornalismo valer-se de recursos da literatura para dar conta de seus relatos. Buscamos também encontrar recorrências ou motivos dessas complexificações e reformulações no campo do jornalismo, quando nos deparamos com uma ocorrência biográfica que nos perturbou. Verificamos que quando dialogam com a literatura muitas biografias, tomando alguns fatos da vida do biografado, os transformam em 1 Professor e Mestre em letras. Email:[email protected]. Lattes: http://lattes. cnpq.br/6488912051189206. 2 http://www.liraneto.com/2012/05/getulio-o-mais-vendido-na-livraria.html. http://top10mais.org/top-10-livros-mais-vendidos-no-brasil-em-2014/. http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/09/andressa-urach-festeja-biografia-no-topoda-lista-dos-livros-mais-vendidos.html. 3 Narrativas Comunicacionais Reconfiguradas. Iniciado em março de 2013, junto ao PPG em Letras em parceria com o curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Projeto de pesquisa que tem por objetivo observar as reconfigurações decorrentes da utilização, por parte do jornalismo, de recursos da narrativa de natureza literária que acabam por transformar tanto o que é da ordem do jornalismo como da literatura, em uma perspectiva dialogal. Hoje, GENALIM (CNPQ) Grupo de Estudos sobre Narrativas Literárias e Comunicacionais. 108 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar signos abundantes de significações que reconstituem a escrita biográfica por meio da fragmentação do sujeito conforme Barthes (2011), fazendo emergir o que ele chama de biografemas. Assim, esses biografemas resultariam da montagem de uma biodiagramação com base na coleta e escolha de biografemas: “[...] armados num bastidor biográfico, em função de certo design, um interpretante -objeto a que chamaríamos de significado da vida em questão.” (PIGNATARI, 1996, p. 13). Os biografemas são, pois, uma forma de ficcionalizar os documentos e provas, uma vez que sem factualidade e comprovação documental os biografemas também não existem. E quando se valorizam demasiadamente os biografemas ou fatos de pouca ou nenhuma importância, a biografia se torna o que Pignatari (1996) chama de puzzle em que se pode “observar enormes lacunas [...] transformando-se num arquipélago bizarro de biografemas flutuantes.” (PIGNATARI, 1996, p. 17). Comprovamos, em nossos estudos, que apesar de híbrida, significando a mescla de muitos gêneros e tendências, a biografia possui elementos e inclinações, principalmente narrativas e de estilo, que permitem classificá-la como jornalística. Constatamos que nas biografias escritas por jornalistas muitas das peças do quebra-cabeça biográfico ou puzzle não se encaixam ou parecem pertencer a outro jogo. Além disso, percebemos que as biografias jornalísticas têm em seu entorno, para legitimar seus relatos, informações paratextuais e, de certa forma, na sua grande verdade tem um pouco de ficção e muita ficção na sua verdade. Outrossim, percebemos que as biografias jornalísticas acompanham, em alguns aspectos, as mudanças ocorridas no cenário da ficção brasileira contemporânea corroborando com as afirmações de Karl Erik Schollhammer (2011) e que, hoje, vivemos uma verdadeira fusão dos campos ficcional e factual fazendo com que a biografia, paradoxalmente, seja o testemunho legitimador do real em uma nomenclatura ficcional. Então, a proposta de nosso trabalho é muito mais o debate dessa(s), digamos, intertextualidade(s) do gênero biográfico, do que propriamente uma cristalização ou conceitualização do gênero em estudo. Queremos sim entender esses suportes que estabelecem novos meios de interação e redefinem práticas sociais. Produto, estilo impuro, o gênero biográfico se situa na divisa entre a vontade de reproduzir o real e o ficcional, que fica de acordo com as feições criativas do jornalista escritor. 109 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 2 Os nossos achados Vilas Boas evidencia em sua tese doutoral (2006) que não acredita na possibilidade de uma biografia jornalística. No decorrer de sua pesquisa essa chance se tornou “insustentável porque é imensa a variedade de intercâmbios possíveis entre diversas áreas do conhecimento do indivíduo humano e para a biografia em particular” (VILAS BOAS, 2006, p.15). Opta, assim, por seguir a trilha da multidisciplinaridade característica da narrativa biográfica. Porém, mesmo construídas de forma intertextual e interdisciplinar, como afirma Dosse (2009) “um gênero impuro”, seguimos algumas trilhas existentes em uma tentativa de classificação, ou de abordagem, das biografias ditas jornalísticas. Vejamos algumas. Uma das maneiras, que usamos em pesquisas anteriores, foi por meio das categorias e gêneros jornalísticos. Encontramos exemplos de todas as categorias nos moldes propostos por Melo e Assis (2010), (exceto a utilitária4), que, na verdade, funcionam como indexadores de camadas mais profundas de significação, conclusão essa obtida após leituras de algumas biografias e livros-reportagem, em parceria com o grupo de pesquisa Narrativas Comunicacionais Reconfiguradas. Nas categorias informativa, interpretativa e diversional alguns gêneros são mais recorrentes que outros5. A categoria diversional é encontrada com mais recorrência nas biografias e nos livros-reportagem. Encontramos, por mais de uma vez, os dois gêneros propostos por Melo e Assis (2010). De acordo com Demétrio de Azeredo Soster (2011), a produção classificada como interpretativa e diversional ganhou maior visibilidade devido à profunda imersão tecnológica que vive o jornalismo. Isso acontece, segundo ele, porque as duas formas tornaram-se elementos de constituição identitária e diferenciadora diante de um sistema midiático-comunicacional. Assim, outra forma de abordagem seria por meio da midiatização, ou jornalismo midiatizado que permite compreender como 4 Em uma das abordagens de nosso Grupo de Pesquisa, verificamos as riquezas narrativas das obras do jornalista Fernando Moraes. Para tanto analisamos, de um lado, as categorias e os gêneros que a compõem, e de outro, o papel que ela ocupa no sistema midiático-comunicacional, elaborando um artigo apresentado no INTERCOM Manaus (2013) com o título, “O que dizem os gêneros nas narrativas jornalísticas não-biográficas de Fernando Moraes” disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2013/resumos/R8-0046-1.pdf. 5 Mais exemplos ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 53 – 59. 110 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar modelos de jornalismo se revigoram em meio a um cenário de profunda imersão tecnológica6. A abordagem pelo viés dos gêneros, segundo Soster (2013), se apresenta como uma estratégia para compreendermos reconfigurações que emergem destas narrativas. Como Jornalismo midiatizado, Demétrio de Azeredo Soster (2009) define aquele cujos dispositivos mais do que veículos de midiatização são alterados por esse processo, midiatizando-se. O jornalismo midiatizado para Soster (2013) é composto pela: auto referência, coreferência, descentralização, dialogia e atorização. A dialogia tornou-se a mais relevante característica para nossa pesquisa. Por conseguinte, nessa característica, o jornalismo vai buscar em outras áreas conhecimentos/legitimação enquanto campo, como ocorre nas biografias, classificadas como jornalísticas. Não se trata aqui de apenas uma hibridização, mas sim de uma nova realidade sócio-discursiva que complexifica sua estrutura7. Para Demétrio de Azeredo Soster (2013) é particularmente por meio da dialogia, isto é, pelo diálogo entre dois ou mais campos do conhecimento, em uma perspectiva midiatizada, que encontramos tal emergência nos gêneros discursivos do jornalismo, como o diversional e o interpretativo, assentados principalmente em livros-reportagem e biografias jornalísticas. Em Lima (2009), mesmo tendo como seu objeto de análise somente o livro-reportagem, também encontramos algumas considerações que se encaixam perfeitamente nas biografias. Para Lima, o livro-reportagem perfil procura evidenciar o humano de uma personalidade pública ou anônima. Inclusive, sustenta que: “[...] uma variante dessa modalidade é o livro-reportagem-biografia, quando um jornalista, [...], centra suas baterias mais em torno da vida, do passado, da carreira [...] normalmente dando mais destaque ao presente” (LIMA, 2009, p.45). Na mesma esteira, observamos a teoria de Genro Filho (2012), pois se pode aplicar ao campo do jornalismo como um todo. Ao fundamentar 6 O sistema midiático-comunicacional, denominado “jornalístico”, estabelece-se como tal quando os jornais e revistas impressos, rádios, televisões, webjornais, sites jornalísticos, blogs e microblogs de natureza jornalística são unidos por meio da web. (SOSTER et.al.2010, p. 4). 7 Ocorre, por exemplo, quando o jornalismo vai buscar na literatura, por meio de reportagens ou livros-reportagem, o substrato para sua própria manutenção enquanto jornalismo, o mesmo ocorrendo com a literatura. É o que se percebe, a título de ilustração, quando escritores passam a se valer, cada vez mais, de dispositivos como jornais e revista para emprestar sentido e amplitude aos seus relatos, que acabam por se transformar nesta relação. Isso já ocorria desde pelo menos os folhetins, é bem verdade, mas não com a intensidade que se verifica hoje. (SOSTER, 2013, p. 101). 111 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar as categorias universal, singular e particular afirma que é possível enquadrar todos os acontecimentos jornalísticos em tais. Proposta pelo autor, a pirâmide em pé, imagem pela qual descreve sua teoria, aponta que um texto informativo jornalístico parte da singularidade como característica primeira do jornalismo para a particularidade e a universalidade8. Assim, os pilares de Genro Filho são relevantes, pois com eles podemos verificar se a biografia jornalística busca elementos jornalísticos como singularidade e, consequentemente, se diferencia, sendo que aqui a singularidade é um ponto importante, enquanto para outras ciências, como Sociologia nem tanto. Queremos dizer com isso que os pilares de Genro Filho auxiliam na distinção entre uma biografia histórica, mais pautada na universalidade e uma biografia jornalística mais pautada na singularidade do personagem biografado. Além disso, encontramos, não raras vezes, nas narrativas biográficas as técnicas norteadoras dos escritores do Creative nonfiction9. Mesmo que não se tenha uma predominância deste ou daquele campo percebemos que uma das formas de intertextualizar literatura e jornalismo, na escrita biográfica, ocorre por meio das técnicas ou procedimentos que guiam o movimento alavancado pelos escritores americanos em meados dos anos cinquenta. Embora não se tenha documentos oficias que comprovem, ou seja, não podemos afirmar que a narrativa biográfica contemporânea é influenciada somente e diretamente pelo movimento, percebemos por meio dos procedimentos usados pelos adeptos do New Journalism que temos mais uma possível porta de entrada para introduzir elementos literários em escritas biográficas10. E, após ter delineado espaço, não restritivo, mas, de certa forma, norteador das biografias quanto a sua classificação, isto é: jornalística; adentramos na abordagem biografemática. Explicamos o conceito. Para Barthes (2010), biografema é entendido como uma espécie de 8 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 67– 70. 9 A primeira delas é a construção cena-a-cena. Decorrente da primeira técnica, a segunda consiste em testemunhar o fato e registrar os diálogos em sua totalidade. A terceira técnica é a alternância do foco narrativo, cujo objetivo é apresentar cada cena ao leitor através dos olhos de uma personagem particular, propiciando a ele a sensação de estar dentro da cena. A quarta da construção minuciosa que consiste em reunir e citar os gestos e hábitos cotidianos, a personalidade, o comportamento com familiares, crianças, empregados, e vizinhos, além de outros pormenores que permeiam a vida dos personagens e que servem para delimitar estilo de vida, por exemplo. (Wolfe, 2005) 10 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 78 – 81. 112 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar anamnese factícia, uma imitação que é mais da ordem da fabulação, daquilo que não toma como modelo um Real-Imaginário, mas que o inventa na sua necessidade de fazer algo com ele. Esse sujeito revisitado por Roland Barthes está aos pedaços, disperso, “um pouco como as cinzas que se lançam ao vento depois da morte” (BARTHES, 2010, p.14). E a partir de então Barthes se depara com seu anseio: Se eu fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a algumas inflexões, digamos: biografemas, em que a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado a mesma dispersão! (BARTHES, 2010, p.14). Ao abordar a semiótica da biografia, Décio Pignatari (1996, p.13) afirma que o trabalho biográfico é realizado por alguém que, como uma aranha à caça da mosca, arma uma teia por meio dos diversos recursos utilizados pela biografia, como o documental, o factual e o ficcional, isto é, “capta, lê a vida de alguém”. Pignatari propõe, dessa forma, a concepção de biodiagrama como um conjunto de biografemas. Ao extrair fios das mais variadas naturezas sígnicas o biógrafo elabora uma tessitura (biodiagrama). A prática biografemática faz uso do material acerca da vida do autor, porém de forma desfragmentada, como um compósito de signos soltos prontos para pontilharem outros rostos, culminando em jogos de mentiras e verdades. Em sua pesquisa, Luciano Bedin da Costa (2011) afirma que ao invés de modelos exemplares de biografias de heróis ou de personagens religiosos a prática biografemática volta-se para o comum, para o potente que se entranha no ordinário, para as imprecisões do rosto, numa espécie de etnologia do minúsculo. Assim, a biografia resultaria da coleta de biografemas. Entendemos, em nossos achados, biografemas como essas cinzas soltas, como afirmou Roland Barthes, essas luzes salientes em um quarto repleto delas quando algumas dessas luzes, escolhidas pelo narrador, tornam-se o foco principal, isto é, uma valorização do aparentemente insignificante que dá valor à escritura. Em nossa abordagem propriamente dita, além de Luciano Bedin da Costa (2011), encontramos no Biografismo de Vilas Boas (2008), uma análise consistente acerca das biografias. Mesmo que Vilas Boas não se refira à palavra biografemas, nos sentimos seguros, nos momentos de abordagem, de sua relação com a escrita bio- 113 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar grafemática. Os biografemas, como afirma Costa (2011), são muito mais apegados com a-história, narrando não o nascimento e a morte, mas as várias mortes que temos em vida. Esses traços insignificantes (estilhaços) de verdade tornam a vida uma potência. No encontro com algumas potencias de vida, personificadas nos personagens biografados, por vezes, tem-se uma sensação biografemática. Tal sensação, que sentimos no momento de nossa abordagem, nos fez costurar os biografemas com o biografismo, pois essa biografemática leitora que se instaurou em nós nos fez ser absorvidos por essa cinza heroica precoce e paradoxal com que o narrador, alinhava biografematicamente seu personagem. Como biografemas fatais, entendemos aquelas passagens em que o narrador evidencia sua intencionalidade de atribuir ao biografado o sucesso, a predestinação. Para tanto, reunimos a concepção de biografemas de Barthes (2010) com o fatalismo de Vilas Boas (2008, p. 88) que é “[...] esse afã de realçar várias qualidades supostamente inatas, que expliquem o herói vitorioso”. E como biografemas extraordinários aquelas tentativas do narrador em mostrar as diversas facetas de seu personagem e não somente seu sucesso. Isso, amparados na concepção de Barthes (2010), e Costa (2011) acerca dos biografemas, juntamente com a posição de Vilas Boas (2008) acerca do tema. Observamos, em abordagens anteriores11, que o narrador usa os biografemas como forma de ficcionalizar a narrativa biográfica. Percebemos que algumas opções biografemáticas fornecem ao leitor informações implícitas, ou seja, por meio da leitura dos biografemas podemos perceber o poder aquisitivo, as manias dos personagens, nos ambientar no espaço em que o biografado circula, por exemplo. Assim, percebemos que as biografias de cunho jornalístico são afetadas e que na ausência de conexões, que esquadrinhem esse puzzle, os biógrafos se esforçam em uma tentativa de atribuir um sentido à vida biografada. Os biografemas rompem a fronteira dos modelos tradicionais de biografia que, como afirma Vilas boas (2008), jura dizer a verdade nada mais que a verdade, somente a verdade e se associa a um olhar que evidencia os pequenos detalhes, as cinzas soltas, os traços insignificantes que fazem parte dessa vida. Notemos, dessa forma, que apesar de híbrida, intertextual, as bio11 Ver Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] / Rodrigo Bartz. – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015, p. 91 – 99. 114 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar grafias possuem elementos narrativos e de estilo que permitem denominá-la, classificá-la como jornalística, porém isso não é o mais importante. Procuramos evidenciar, aqui, algumas possibilidades de abordagem nas biografias de cunho jornalístico e as complexificações emergentes de algumas estruturais verificações que, como afirmamos anteriormente, prestam-se apenas como formas mais largas de verificação e discussão e nunca de engessamento. 3 Algumas respostas prováveis A escrita biográfica foi consolidada no Brasil com um verdadeiro fenômeno de vendas iniciado nos anos 1990. O ápice mercadológico brasileiro foi na década de 90 quando “o catálogo brasileiro de publicações anunciava um crescimento de 55% do gênero em relação a 1987” (MAYRINK E GAMA, 1994, p.104). Vilas Boas (2002) também ressalta essa questão, afirmando que nos anos 1990 a publicação de biografias dobrou no Brasil, mesmo sendo um país de poucos leitores, ao contrário de outros gêneros que diminuíram seu número de tiragens: “[...] entre 1995 e 1997, o número de exemplares à venda no Brasil praticamente dobrou (99%), enquanto a variação do total de títulos lançados caiu 11%[...]” (VILAS BOAS, 2002, p. 23). A partir dessa data, as biografias passaram a ser escritas prioritariamente por jornalistas, que munidos com recursos da literatura e documentos, preocuparam-se mais com a individualidade (singularidade) dos biografados. Ademais, citamos dados contidos no artigo de Sandra Reimão (2011) – Tendências do mercado de livros no Brasil – quando a autora evidencia a presença de autores nacionais de ficção nas listagens dos mais vendidos. Mesmo com um predomínio dos best-sellers de autores estrangeiros como O Código Da Vinci do norte americano Dan Brown, percebemos que na década estudada pela pesquisadora, de 2000 a 2009, aparecem na lista livros-reportagem e biografias de autores nacionais. Como exemplo; 1808 de Laurentino Gomes, 2º colocado em 2007, 1º em 2008, 5º em 2009, além de Corações sujos (8º colocado em 2000 e 4º em 2001), Olga (6º colocado em 2004) e O mago (8º colocado em 2008) do jornalista Fernando Morais, o que, de certa forma, confirma esse Boom de jornalistas enveredando para a escrita de livros-reportagem e biografias. Para Jaguaribe (2007) há um boom das biografias e das escritas do “eu” no meio editorial. As muitas aparições da vida íntima tanto no circuito audiovisual quanto na internet assinalaram novas mesclas entre o 115 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar público e o privado, ficcional e o real. Para a autora a desaparição dessas divisas é consequência “[...] da politização da vida privada [...] a presença avassaladora da mídia que engloba [...] tanto agendas e eventos públicos, quanto notícias referentes a individualidade privada” (JAGUARIBE, 2007, p. 153). Segundo a pesquisadora, ficou quase impossível separar o real e o ficcional na modernidade, pois incorporamos o imaginário no próprio cotidiano e quando processos de ficcionalização se cristalizam, como disponíveis, buscamos experiências não mediadas. Nesse percurso, assim como a biografia, a ficção brasileira passou por diversas fases. Conforme Karl Erik Schollhammer (2011), o Brasil, prioritariamente, urbano em 1960 tem como norte a prosa urbana e em 1970 há uma busca pela narrativa, em resposta a situação política. Em 1980, o narrador começa a narrar se apropriando do cenário brasileiro e dos grandes centros. Assumindo, assim, um compromisso com a realidade social. Dessa forma, destacamos a produção de romances híbridos - entre eles a biografia – na divisa entre o ficcional e realidade, aqui, uma resposta à notícia reprimida pela ditadura. Schollhammer (2011) afirma que a geração de 90 tem preferência pelo miniconto, formas de escritas instantâneas, os flashes e stills com uma retomada inovadora ao romance realista regional como vemos, por exemplo, em Assis Brasil. Ainda na década de 90, há a intensificação do hibridismo literário e incorporação da narrativa roteirizada da linguagem publicitária. Os escritores trazem para suas narrativas a factualidade da criação, tirando proveito da tensão entre o plano referencial e o plano ficcional, para confundir os limites e para inserir índices de um real originário da experiência íntima que legitima e ampara a ficção. A narrativa biográfica segue, pelo menos neste ponto, fielmente os rumos da ficção brasileira. Nas biografias contemporâneas escritas por jornalistas, percebemos essa busca, de certa forma paradoxal12, pela instantaneidade usufruindo de técnicas do conto. Na biografia jornalística encontramos paratextos ou indexadores13 indicados nos capítulos em que, mesmo se tratando de uma obra linear, cronológica, é possível ler o último capítulo sem ter lido os demais, sem prejuízo do entendimento. 12 Afirmamos ser paradoxal, pela sua extensão. 13 Ver ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994 e RAMOS, Fernão. Mas afinal -- o que é mesmo documentário?. São Paulo: SENAC-SP, 2008. 116 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Aqui, podemos citar a obra Getúlio: dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930), do jornalista Lira Neto (2012) e O Mago (2008), do jornalista Fernando Moraes que seguem divisão com paratextos e indexadores, isso para ficar somente em dois exemplos. Nesse sentido, visualizamos a semelhança da forma como é estruturada a narrativa biográfica contemporânea com a analogia da fotografia e do conto levantada por Julio Cortázar. Cortázar (1993) afirma que a foto e o conto fazem um recorte na realidade apontando a uma realidade mais ampla, pois ambas se aproveitam de um acontecimento significativo para elaborar um efeito de sentido a obra: Numa fotografia ou num conto de grande qualidade [...] o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto. (Cortázar 1993: 151-152) Assim, tal característica, segundo Cortázar (1993), impulsiona no leitor amplitude, passível de levar o interlocutor a algo que transcende o que está registrado de forma incisiva desde a primeira página na obra. É uma possibilidade de leitura paratextual, ou seja, paralela, para além do escrito. Dessa forma, essa narrativa biográfica (ou Puzzle), fragmentada em capítulos – biografemática –, é entendida como um acontecimento real ou fictício que proporciona ruptura de linhas, que vai além daquilo que é contado na narrativa. Para Selzer (1998) citado por Schollhammer (2011), vivemos a “cultura da ferida” quando expomos a intimidade privada e ela é exposta confundindo o individual e a multidão. De acordo com o autor, trata-se de uma patologização da esfera pública por meio de sentimentos individuais que se tornam coletivos num tempo em que a indiferença atinge a esfera privada e a vivência Pública. Assim, a biografia é uma narrativa costurada que se situa nos limiares do jornalismo, da história, do relato do real e do ficcional. O que podemos extrair daí é a extrapolação do micro, dos pequenos detalhes, da explicação do todo por meio da narrativa de pequenos personagens ou cenas, a uma primeira mirada, banais. Assim, por meio do micro che- 117 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar gar ao macro, característica fortemente ligada à micro-história14, que conforme Burke (1990) enfocou o homem comum, considerou não somente ações individuais, mas também coletivas. Ou seja, hibrida – pautada, por um lado, nas marcas que dão credibilidade a narrativa frente ao público leitor, a biografia, pegando carona nesse fenômeno, alterou suas táticas narrativas e de estilo. Considerando as proporções devidas, podemos comparar a biografia jornalística contemporânea com a narrativa autoficcional, pois conforme Hidalgo (2013)15, na autoficcão temos a vantagem de poder embaralhar, de certa forma, apagar os limites entre a verdade e a ficção. Por outro, nos diversos entrelaçamentos contidos na contemporaneidade quando temos, segundo Fabiana Piccinin16 a “estética dos múltiplos”, ou seja, não há um narrar hegemônico o que auxilia a hibridização das narrativas: [...] trazendo a presença e a importância de todas as formas narrativas advindas de variados suportes. Assim, tem-se a narrativa a partir do recurso da oralidade, do texto impresso, do áudio e do vídeo e dos recursos oferecidos pelo ambiente web, resultando em um narrar fruto dessa multiplicidade. As historias se dão na combinação das formas narrativas tradicionais associadas às novas possibilidades e recursos, ou em novas “dicções” [...]. (PICCININ, 2014, p. 167) Talvez, uma das causas dessa extrapolação do micro, como o uso dos biografemas abordados anteriormente, a fragmentação do enredo por meio dos capítulos, seja característica da autenticidade, como afirma Jaguaribe (2007, p. 159) que: “[...] o retrato da favela verbalizado pelo favelado possui maior poder de barganha do que a visão da favela entrevistada pelo fotógrafo classe-media, pelo cineasta publicitário ou pelo escritor erudito.” Dessa forma, a narrativa biográfica continua hibrida no paradoxo e limiar do contemporâneo, quando serve de igual maneira de indexador da experiência de legitimação do real e estrutura do ficcional. Logo, leitores encantados com esse narrar despendem fascinados momentos de leitura mesmo sabendo de antemão o desfecho da história. 14 Ver BURKER, Peter. A escola dos annales (1929-1989) – A revolução francesa da historiografia. São Paulo: unesp, 1990. 15 HIDALGO, Luciana. Literatura da urgência – Lima Barreto no domínio da loucura. São Paulo: Annablume, 2008.) 16 A expressão é uma criação da própria autora e é utilizada para se referir às diversas estéticas presentes na contemporaneidade sem que haja hegemonia de uma sobre a outra. 118 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Isso porque tendemos a ficcionalizar a vida por parecer mais agradável e confortável. Talvez por isso reality shows e biografias façam tanto sucesso, pois vemos nos “personagens”, de ambos, semelhanças com o que nos deparamos. A biografia atrelada à literatura, a essa forma de descrição verossímil, biografemática aproxima e encanta o leitor. O texto biográfico, assim, faz com que o personagem biografado (na tentativa do narrador em captar o real) seja explicável em um maior grau de originalidade que a própria vida, ofertando ao leitor uma sensação de poder transformando esse personagem em algo mais manejável e palpável. 4 Considerações interpretativas Percebemos, no trabalho que - por hora - aqui se encerra, que essas formas de abordagem, servem como sobreposições de camadas mais complexas. Tentamos construir somente algumas possibilidades de acesso em biografias de cunho jornalístico pelo viés da narratologia nos molde de Reis e Lopes (1988), pois assim conseguimos constatar a estrutura, para além dos gêneros e categorias, que se constituem tais relatos. Com isso, buscamos identificar complexificações que estabelecem a prática jornalística quando esta é midiatizada. Em particular a dialogia que se concebe quando os campos do conhecimento buscam em outras áreas os elementos atestatórios de identidade enquanto campo. Além disso, nesse contexto, o narrador jornalista ao se comportar como narrador literário, não deixa de ser um narrador midiático, pois se formata através da experiência do personagem. Desse modo, busca novos formatos imprimindo ao texto marcas literárias. Portanto, ao tornar o texto uma narrativa, segundo Barthes (1991), há uma ficcionalização do sujeito. Ao escrever acerca da vida de alguém se ficcionaliza esse sujeito. E essa ficcionalização não esta no plano irreal, tampouco no real, que se funde com o personagem tornando-se um mesmo tecido. Como afirmava a escritora Virginia Woolf, uma biografia só pode ser considerada completa quando explica sete ou mais eus, enquanto uma pessoa pode ter milhares. Isso se aproxima as declarações de Antonio Candido (2002) acerca do personagem. O autor define o personagem de ficção (homo fictus) como o mais próximo da realidade e não a realidade, pois podemos delimitá-lo, por possuirmos um conhecimento (presenteado pelo narrador) mais completo e coerente, enquanto a pessoa viva 119 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar (homo sapiens) é constituída de uma infinidade de eus. O que se aproxima muito do trabalho biográfico quando pessoas, tornadas personagens, sofrem o efeito do dinamismo da história. Enfim, o gênero biográfico descomprometido com padrões, busca aparatos outros em diversas fontes, distintas formas de se legitimar frente a um mercado complexificado. O que mais nos interessa nessas metamorfoses são as emergências da biografia de natureza jornalística no cenário editorial. Terminamos com poucas certezas, porém com a capacidade de perceber que compreender o que significam, principalmente em tempos evolutivos do jornalismo implica ter condições de observar importantes transformações e intertextualidades que estão, atualmente, em constante processo. Referências BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2011. . MICHELET. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. . Sade, Fourier, Loiola. Lisboa: Edições 70, 2010. BARTZ, R. Jornalismo e literatura: as complexificações narrativas jornalísticas de cunho biográfico [recurso eletrônico] – Santa Cruz do Sul: Catarse, 2015. Disponível em: http://editoracatarse.com.br/ site/2015/10/26/jornalismo-e-literatura-as-complexificacoes narrativasde-cunho-biografico/. Acesso em: 02 de maio 2016. BURKER, Peter. A escola dos annales (1929-1989): A revolução francesa da historiografia. São Paulo: unesp, 1990. CÂNDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. 10. ed. 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Segundo o autor, “ainda não se chegou a um consenso para definir o que seriam histórias em quadrinhos, pois para cada conceito existe pelo menos um argumento que o contradiz” (p. 7). Essa indefinição conceitual é justificada. Capazes de assimilar várias linguagens, como a cinematográfica e a literária, os quadrinhos também se adaptam facilmente a novas tecnologias, ajustando regularmente seu método de distribuição e consequentemente seu método de leitura. Antes disponíveis apenas nas páginas impressas dos jornais e revistas, os quadrinhos ultrapassaram diversas barreiras de plataformas e hoje estão disponíveis digitalmente até mesmo em aplicativos de leitura de livros. De maneira específica, um dos grandes desafios das histórias em quadrinhos é conseguir fazer valer uma de suas regras básicas e primordiais, que é se estabelecer como uma narrativa interdependente 1 Mestre em Letras (UNISC) e Especialista em Comunicação Digital (UCS/PUCRS). 123 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar da integração entre texto e imagem, onde a sequencialidade de seus quadros vai determinar sua dinâmica. Por isso, aqui entenderemos a história em quadrinhos como uma arte interdependente constituída a partir da integração de elementos textuais e imagéticos, das mais diversas naturezas, dispostos de modo sequencial e capaz de gerar inúmeras narrativas a partir da hibridização da sua linguagem. Essa natureza híbrida, que hoje extrapola a simples definição de arte sequencial, é a responsável por facilitar uma convergência com outras áreas artísticas e comunicacionais, como a literatura, o cinema, e principalmente o jornalismo. Se, por essa mesma natureza, muitas vezes os quadrinhos são considerados diversão efêmera e infanto-juvenil, é inegável que também estão presentes na cultura contemporânea de uma forma generalizada e transformadora. Mais do que um produto cultural descartável, as histórias em quadrinhos se transformaram num poderoso meio artístico, contribuindo para o desenvolvimento cultural, e de comunicação, recriando a realidade de épocas, costumes e valores principalmente em um contexto jornalístico. Em um dos primeiros estudos sobre os quadrinhos, Eco (2008) recorreu à linguagem consolidada e reconhecida do cinema (p. 131), que tem por base o movimento, e tentou adaptá-la para a especificidade da linguagem dos quadrinhos, cuja continuidade narrativa é garantida pela sequencialidade dos seus quadros (também chamados de vinhetas), que são estáticos. Segundo o autor, “da história em quadrinhos banal, praticamente bidimensional, chega-se a algumas elaboradas construções, no âmbito da vinheta, que obviamente se ressentem de uma sofisticada atenção aos fenômenos cinematográficos” (p. 146). Ao afirmar que os elementos semânticos dos quadrinhos – constituídos por balões, onomatopeias, entre outros – compõem-se numa gramática do enquadramento (p.146), Eco faz uso de diversas leis de montagem cinematográfica, adaptando-as aos quadrinhos: Dissemos “leis de montagem”, mas o apelo ao cinema não nos pode fazer esquecer de que a história em quadrinhos “monta” de modo original, quando mais não seja porque a montagem da história em quadrinhos não tende a resolver uma série de enquadramentos imóveis num fluxo contínuo, como no filme, mas realiza uma espécie de continuidade ideal através de uma fatual descontinuidade. (ECO, 2008, p. 147) Por isso, Eco (2008) afirma que “a história em quadrinhos que- 124 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar bra o continuum2 em poucos elementos essenciais. O leitor, a seguir, solda esses elementos na imaginação e os vê como continuum” (p.147). Ou seja, é no intervalo entre um quadro e outro que o leitor deixa a sua imaginação fluir, pois precisa preencher o espaço que não pode ser ocupado pela informação estática. Esse espaço entre os quadros é que compõe o continuum. Para Paim, […] há uma lei atuando de forma mais intensa nos quadrinhos, que não há no cinema nem na fotografia […]. Estamos falando da noção de que o que acontece entre dois quadros é um componente mais vital para a história do que esses dois quadros por si. Afinal, é no espaço entre dois momentos congelados que o leitor constrói uma conexão narrativa. É o espaço da imaginação do leitor, que pode ser exigida de forma mais ampla ou mais breve conforme variar a distância dos momentos representados nesses dois quadros. É, portanto, na justaposição que se constrói a linguagem dos quadrinhos. (2013, p. 374) Nas histórias em quadrinhos, esse espaço entre os quadros (ou vinhetas) – que precisa ser preenchido pela imaginação criativa do leitor para completar a sequência narrativa – é conhecido como elipse, multiquadro, entrequadro, canaleta, sarjeta etc. Independente das nomenclaturas escolhidas, a sua importância é sempre ressaltada. Para Chinen (2011), “se a arte de contar uma boa história em quadrinhos depende da habilidade em selecionar certas cenas, saber o que não mostrar também é fundamental” (p.41). Há algumas décadas costumava-se dizer que os quadrinhos eram leituras de gente preguiçosa, pois, diferentemente da literatura, não exigiam que se imaginasse como seria o rosto e o porte de uma personagem ou o relevo de uma paisagem, uma vez que tudo era mostrado nos desenhos. Esse tipo de crítica, além de antiquada, era equivocada, pois uma das riquezas dos gibis é justamente permitir que, entre um quadrinho e outro, a imaginação voe. Se numa vinheta vemos o mocinho sair a galope e, na sequência, um outro quadrinho o mostra prestes a desmontar do cavalo, todo o percurso, a passagem ensolarada, o ruído dos cascos do animal batendo no solo é criado pela mente do leitor. (CHINEN, 2011, p.40/41) 2 O termo continuum – que significa contínuo (ou continuidade, sequência) – é usado por Eco (2008) a partir de um estudo sobre a memória, realizado pela socióloga francesa Evelyn Sullerot. Usando a estrutura da fotonovela, a socióloga percebeu que os entrevistados, ao serem submetidos a duas fotografias justapostas – que mostravam, respectivamente, um pelotão de execução disparando e um condenado caído no chão – eram capazes de comentar detalhadamente uma “terceira fotografia” – descrevendo o condenado enquanto caía – que não tinha sido mostrada. Essa capacidade de preencher o espaço entre duas imagens usando a imaginação de uma terceira imagem recebeu o nome de continuum virtual (ECO, 2008, p.147). 125 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Na mesma linha, Klawa (1997) analisa que “o que faz do bloco de imagens uma série é o fato de que cada quadro ganha sentido depois de visto o anterior; a ação contínua estabelece a ligação entre as diferentes figuras” (p.110). Os cortes de tempo e espaço estão presentes e ligados a uma rede de ações lógicas e coerentes. McCloud (1995) também argumenta que para ler o movimento dos quadrinhos é preciso ler também o espaço que existe entre cada quadro e refere-se ao espaço entre os quadros como sarjeta: [...] a sarjeta é responsável por grande parte da magia e mistério que existem na essência dos quadrinhos. É aqui, no limbo da sarjeta, que a imaginação humana capta duas imagens distintas e as transforma em uma única ideia. Nada é visto entre os quadros, mas a experiência indica que deve ter alguma coisa lá. Os quadros das histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado de momentos dissociados. Mas a conclusão nos permite conectar esses momentos e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada. Se a iconografia visual é o vocabulários das histórias em quadrinhos, a conclusão é a sua gramática. E já que nossa definição de quadrinhos se baseia na disposição de elementos, então, num sentido bem estrito, quadrinho é conclusão (MCCLOUD, 1995, p. 66-67). Para que o leitor de quadrinhos possa estabelecer essa conexão imaginária entre os quadros, é necessário que a sequência da história esteja muito bem definida, com os elementos dispostos de maneira clara e adequada dentro dos quadros. Ou seja, o autor da história em quadrinhos precisa realizar uma montagem estruturalmente eficaz, com as imagens e textos bem enquadrados dentro de sua área designada. Nesse sentido, o enquadramento refere-se à aproximação do observador em relação à cena e serve para enfatizar algum elemento a partir do seu distanciamento ou detalhe (CHINEN, 2011, p.36). Curiosamente, muito tempo antes do surgimento do cinema os quadrinhos já se utilizavam dessa montagem – e dessa linguagem – para retratar os fatos da atualidade nas páginas dos jornais. É o caso do trabalho realizado pelo jornalista Angelo Agostini, italiano naturalizado brasileiro. Lançada em 1869 e considerada a primeira história em quadrinhos publicada no Brasil3, As Aventuras de Nhô-Quim (ou Impressões de uma Viagem à Corte), criada por Agostini (2002), foi publicada nas páginas 3 A primeira parte da HQ foi publicada no dia 30 de janeiro de 1869. Considerando a importância da data, decidiu-se instituir o dia 30 de janeiro como o Dia do Quadrinho Nacional (CARDOSO, 2002, p.23). 126 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar do jornal carioca A Vida Fluminense e teve a duração de nove capítulos. Apesar de não apresentar as falas dos personagens em balão, a história em quadrinhos de Agostini utilizou vários elementos que se tornaram marca registrada dos quadrinhos, como o uso de recursos metalinguísticos, com personagem fixos e de personalidade definida, bem como a utilização de enquadramentos inusitados, que seriam referência para o cinema (CAGNIN, 1996). Na história, Nhô-Quim é um jovem abastado de uma cidade do interior do país. Quando se apaixona por Sinhá Rosa, uma moça de família pobre, Nhô-Quim é punido por seu pai, que o envia a um passeio à Corte, na capital, com a intenção de que esqueça a amante. Começa assim uma série de desventuras do caipira ingênuo e trapalhão em uma cidade grande, evidenciando um estilo mais literário, mais próximo da crônica de costumes4, que se tornaria uma marca registrada de Agostini. Como aponta Sodré (2009), o cronista se impõe como uma moderna modalidade de narrador. Na crônica jornalística, está quase sempre implícito um locucionário (um tu), com o qual o cronista estabelece uma relação de intimidade, permitindo-se a digressões sobre qualquer tema, embora, na maioria das vezes, o tema importe menos do que a feitura densa ou sedutora do texto, onde se deixa ver o estilo personalíssimo do autor (SODRÉ, 2009, p.145). Considerado historicamente apenas como um caricaturista, Agostini teve um papel muito mais importante na aproximação dos quadrinhos com o objetivismo do jornalismo e com o subjetivismo da literatura, do que o mero entretenimento cômico. Conhecido como o “repórter do lápis”, Agostini era um jornalista engajado em várias questões sociais, desde que criou o primeiro jornal ilustrado de São Paulo, o Diabo Coxo, em 1864, que teve curta duração. Em 1866, fundou o Cabrião e suas críticas ao governador da Província resultaram na depredação e destruição do jornal, obrigando Agostini a fugir para o Rio de Janeiro. Lá, atuou nos jornais Arlequim (1867), Vida Fluminense (1868), e O Mosquito (1869-1875). Em 1876, fundou a sua própria revista, a Revista Illustrada, publicação que marcou época no Brasil por seus relatos opinativos, em forma de 4 Segundo Sodré (2009), no Brasil, a crônica de costumes teve como representantes grandes nomes da literatura como Martins Pena, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis. 127 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar histórias em quadrinhos, que tratavam de temas polêmicos e criticavam desde o clero até a elite brasileira, levantando bandeiras em favor da libertação dos escravos negros e da República. Ao retratar os principais conflitos da sociedade escravista brasileira, Ângelo Agostini procurou dar sua contribuição ao processo que culminaria na abolição da escravatura em 1888. Como militante abolicionista, ele usou seu talento para criticar os escravocratas e denunciar a crueldade da escravidão pondo em descrédito a autoridade senhorial e a legitimidade da instituição. Com enorme perspicácia, ele percebeu as principais questões que envolviam as leis emancipacionistas de 1871 e 1885, e procurou tirar proveito da crescente fragilidade da autoridade senhorial para mostrar à população o quanto a escravidão estava fadada ao desaparecimento (SILVA, 2006, p. 299). A força do trabalho de Agostini não residia apenas no fato de trabalhar com a informação de forma ilustrada, mas, principalmente, no propósito e na significação do uso da linguagem em quadrinhos. Como o uso da fotografia era raro na época, destinando-se apenas a registros fotográficos de lugares e pessoas em poses programadas, o uso do desenho nos jornais era a única forma de retratar e registrar os fatos da época. E Agostini, com seu traço marcante e detalhista, principalmente na composição de luz e sombras, tornou-se uma referência realista, quase fotográfica, dos fatos que marcaram o final do império brasileiro. Além disso, a técnica sequencial dos quadrinhos desenvolvida por Agostini facilitava o entendimento do público leitor, sugerindo ideias e opiniões por meio de texto e imagens bem encadeadas. O que era uma nova e eficiente ferramenta de comunicação para uma população com baixo índice de alfabetização, reflexo de uma sociedade de minoria branca e rica e de maioria negra e mulata, que contava com um grande número de escravos. Esse ato de contar histórias por meio dos quadrinhos certamente desempenhou papel relevante na formação da opinião pública da época, funcionando como “um dispositivo argumentativo de linguagem para convencer, provocar efeitos, mudar o estado de espírito de quem ouve, lê ou vê uma história” (MOTTA, 2013, p.74). Posteriormente, Agostini ainda iria criar personagens fictícios famosos, como Zé Caipora (1883), e produzir histórias baseadas em eventos reais, criando as primeiras reportagens em quadrinhos. Seu maior exemplo foi uma série de histórias em quadrinhos que mostrava vários relatos históricos sobre a brutalidade da escravidão brasileira de uma 128 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar maneira factual: Scenas da Escravidão. As histórias, originalmente uma seção regular da Revista Illustrada, retratavam e denunciavam, de forma crua e documental, a realidade de castigos, torturas e assassinatos cometidos contra os escravos nas fazendas, pouco antes da assinatura da Lei Áurea, em 1888. Quadrinhos e o contexto jornalístico Diferentes da ideia desenvolvida por Agostini, as histórias em quadrinhos que se firmaram nas páginas dos jornais americanos do final do século XIX eram resultado de uma intensa evolução industrial, iniciada no século XV com a invenção da imprensa (MCCLOUD, 1995, p. 16), e adquiriram autonomia e respaldo suficiente para serem consumidas em grande quantidade, geralmente por um público cativo. Mais especificamente, esses quadrinhos surgiram de uma rivalidade jornalística entre William Randolph Hearst, dono do The New York Journal, e Joseph Pulitzer5, dono do jornal The New York World, que disputavam acirradamente as crescentes verbas publicitárias do mercado (CIRNE, 1975). O jornal The New York World foi o jornal americano mais popular do final do século XIX, chegando a alcançar a tiragem de 600 mil exemplares diários em 1896, e tinha como seu principal concorrente o jornal The New York Journal (SILVEIRA, 2013), sendo que a violenta disputa entre os dois por leitores originou o termo yellow journalism, que ficou conhecido no Brasil como “jornalismo marrom” ou “sensacionalismo”. Como o aumento da tiragem dos jornais determinava o sucesso publicitário, os quadrinhos “funcionariam como uma novidade para atrair mais leitores” (CIRNE, 1975, p. 19). Conforme o autor, […] os quadrinhos surgiram como uma consequência das relações tecnológicas e sociais que alimentavam o complexo editorial capitalista, amparados numa rivalidade entre grupos jornalísticos […] dentro de um esquema preestabelecido para aumentar a vendagem de jornais, aproveitando os novos meios de reprodução e criando uma lógica própria de consumo. (CIRNE, 1970, p.10) 5 Joseph Pulitzer é o jornalista que dá nome ao famoso prêmio dedicado a escritores e jornalistas, nos Estados Unidos. Já a biografia de William Randolph Hearst inspirou o filme “Cidadão Kane”, de Orson Welles, em 1941 (WAIBERG, 1997, p.105). 129 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Cirne (2000) também afirma que os quadrinhos já eram uma arte consumada na época, só que ainda não existia uma discussão sobre a sua função de elaboração artística, o que resultava em uma imagem de um produto típico da cultura de massa, voltado principalmente para um público consumidor infanto-juvenil, que não apresentava maiores possibilidades estéticas. “Este engano, agravado com o forte preconceito cultural instalado contra seus discursos, perduraria durante anos” (CIRNE, 2000, p. 40). Para Klawa (1997), a Revolução Industrial não é exatamente a origem dos quadrinhos, mas estabelece uma espécie de ano zero da história dessa arte popular, principalmente por levantar fatores decisivos para o entendimento do significado histórico e estrutural dos quadrinhos. Segundo Klawa, [...] é necessário que a história em quadrinhos seja entendida como um produto típico da cultura de massas, ou especificamente da cultura jornalística. A necessidade de participação e envolvimento catártico motivada pela alienação do indivíduo, a metamorfose da informação em mercadoria, o avanço da ciência, a nova consciência da realidade, enfim, as coordenadas características do estabelecimento da sociedade de consumo criaram as condições para o aparecimento e sucesso do jornal, cinema e história em quadrinhos. O teatro e a pintura foram meios transformados e adaptados à nova situação, enquanto que a história em quadrinhos como o cinema, podem ser classificados como novos veículos e formas. (1997, p.110) Mesmo que os jornais americanos sejam reconhecidos pelo crescimento e desenvolvimento dos quadrinhos, o pioneirismo da sua criação ainda resulta em debates até hoje sem resolução. Isso porque muitas obras – como as de Agostini – antecederam Hogan’s Alley, de Richard Felton Outcault, considerada pela maioria dos críticos como a primeira publicação em quadrinhos. A fama pioneira dos quadrinhos de Outcault até hoje se mantém sob a justificativa de ter integrado o texto no desenho através do uso do balão de quadrinhos pela primeira vez. Surgida em 1896 no jornal The New York World, Hogan’s Alley retrata o cotidiano de diversas personagens exóticas e caricatas que vivem em um beco de New York, entre elas o garoto Mickey Dugan, que ficou conhecido como Yellow Kid por usar um camisolão amarelo onde eram escritas várias frases e críticas. Curiosamente, a personagem Yellow Kid foi o motivo da criação do termo yellow journalism, que fazia referência ao jornalismo sensacionalista. A popularização dos quadrinhos, simbolizado pelo sucesso da 130 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar personagem de roupa amarela com o grande público, gerou “uma reação de conservadores que temiam a divulgação dos fatos de maneira massiva, através de uma imprensa cada vez mais popular, cada vez mais ao alcance de todos” (MOYA, 1977, p.36). Em 1907, o autor de quadrinhos Bud Fisher propôs a criação de uma história em quadrinhos em forma de uma tira diária (MOYA, 1993, p.40). Até então, os quadrinhos ocupavam os espaços dos suplementos dominicais coloridos dos jornais americanos, sendo publicados em forma de painéis, ocupando meia ou uma página inteira do jornal (CHINEN, 2011, p. 10), e normalmente utilizavam uma narrativa cômica e caricata para complementar as informações jornalísticas ou apenas como entretenimento. Esse modelo de tiras de quadrinhos estabeleceu um molde padrão, com um formato fixo, geralmente horizontal e de mesmo tamanho, e acabou servindo claramente para os interesses comerciais do mercado jornalístico (RAMOS, 2009). Dessa forma, os autores poderiam produzir uma mesma história e vender para vários jornais, por um preço mais acessível, ficando o trabalho de distribuição a cargo dos syndicates, empresas especializadas e responsáveis pela distribuição de conteúdo. Para Ramos, as tiras adotam o uso de poucos quadrinhos dada a limitação do formato, geralmente constítuido de um a quatro quadros, o que resulta em narrativas mais curtas. Dessa maneira, as tiras privilegiam o tema do humor porque nesse formato há “tendência de criar um desfecho inesperado, como se fosse uma piada por dia” (2009, p.6). Para Morin (2011), os quadrinhos em forma de tiras cômicas de jornal – que a autora refere como historieta cômica – são tão curtas ou tão engraçadas que seu valor narrativo poderia ser posto em questão (p.182). Para comprovar que as tiras cômicas são narrativas e, “como estas, fazem evoluir uma situação viva em função de reviravoltas imprevistas” (p.182), a autora pesquisou sua estrutura descritiva durante 180 dias consecutivos de publicação em jornal, concluindo que: São todas redutíveis a uma sequência única que coloca, argumenta e resolve uma certa problemática. Esta sequência nos parece ser uniformemente articulada por três funções que ordenamos como se segue: uma função de normalização que situa os personagens; uma função locutora de deflagração, com ou sem locutor, que coloca o problema a resolver, ou questiona; enfim uma função interlocutora de distinção, com ou sem interlocutor, que responde “comicamente” à questão. Esta última função faz 131 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar bifurcar-se a narrativa do “sério” para o “cômico”, e dá à sequência narrativa sua existência disjunta, de historieta “última”. (MORIN, 2011, p.183) Mais do que uma simples temática, as tiras cômicas baseadas nas piadas se tornaram uma característica tão marcante dos quadrinhos que definiram até mesmo sua nomenclatura: nos Estados Unidos, as histórias em quadrinhos são conhecidas até hoje como comics. No entanto, nem só de piadas vivem as tiras em quadrinhos. Para Santos (2014), a característica marcante dos quadrinhos de humor neste século é o rompimento com a estrutura típica das piadas a partir do surgimento dos “quadrinhos poético-filosóficos que, mais do que causar no leitor o efeito cômico, procuram levá-lo a uma reflexão sobre temas sociais ou existenciais” (p.16). Além disso, para o autor, o conteúdo humorístico dos quadrinhos vai mais além, “acompanhando ou não temas de fundo político ou social, as imagens satirizam ou criticam as atitudes dos homens públicos e do ser humano comum” (SANTOS, 2014, p. 15). Para Cardoso, Mais do que uma simples forma de entretenimento, o humor em quadrinhos desvela certas práticas sociais, culturais e políticas, cobertas pelos mecanismos disciplinares de poder, colocando em relevo as fraquezas e imperfeições dos sujeitos e das sociedades. Ao delinear de maneira crítica os contornos de grupos sociais, o humor em quadrinhos permite compreender as tensões entre os mecanismos de controle e as forças de resistência; entre as normas impostas e a acrasia; entre os comportamentos de submissão e transgressão. Nesse sentido, atuam como um tipo de expressão cultural popular que objetiva, ao satirizar os grupos dominantes, trazer à luz as adversidades que nos cercam. (2014, p. 11) Diferentes das tiras em seus formatos e pretensões cômicas, o cartum e a charge têm estilos próprios e objetivos bem específicos de humor. Segundo Chinen (2011), o cartum restringe-se a um único quadro ou painel em que é ilustrada uma situação cômica, normalmente de compreensão universal, atemporal e sem vínculo com o contexto sociocultural da época. Já a charge costuma satirizar uma situação ou personalidade, retratando-a sob a forma caricaturizada. Por isso, é preciso que o leitor conheça minimamente os personagens envolvidos para entender ou rir da charge (CHINEN, 2011, p.8). Normalmente constituídos de apenas um quadro, a charge e o cartum suscitam discussões sobre a sua natureza quadrinística, já que não 132 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar possibilitam uma sequencialidade de quadros, característica marcante dos quadrinhos. Para McCloud (1995), eles podem ser classificados como “arte em quadrinhos”, porque seu vocabulário visual vem dos quadrinhos. Para o autor, “talvez esse quadro único também seja rotulado de quadrinho por sua justaposição de palavras e figuras” (p. 25). Para Cagnin (2015), “uma só figura já é um embrião ou parte da narrativa ou mesmo uma pequena história” (p.181). Ou seja, a partir da ação dos elementos visuais e textuais presentes em um só quadrinho, tanto na forma de charge, cartum ou tira, é possível percebermos sua sequencialidade. Por isso, podemos chamá-lo de história em quadrinhos. Outra característica marcante das tiras de jornal foi sua estruturação narrativa baseada no uso episódico das suas histórias, cujo final era marcado por uma surpresa a ser revelada somente no jornal seguinte, criando uma ligação entre os capítulos. Característica dos folhetins franceses da época, essa modalidade narrativa indicava a continuidade da história no número seguinte do jornal, fazendo com que os leitores se mantivessem cativos e ansiosos. Conforme Bulhões (2007), o folhetim foi um fenômeno de massas que ligava “o jornalismo francês a uma das facetas da experiência da modernidade e à dinâmica do capitalismo arrojado, revelando, ainda, uma interface com a literatura” (p.31). Esse uso episódico das tiras foi adotado de maneira plena pelos jornais diários como alternativa ao sistema de uma piada simples por dia, criando um novo cenário mercadológico e criativo para os quadrinhos. Para Ramos, esse era um gênero classificado como tira de quadrinhos seriada, pois sua marca era a narração de uma história maior, contada em partes, como um capítulo. “Tal qual uma novela, a tira retoma a cena final da anterior e serve de gancho para a seguinte. A singularidade do gênero é o aspecto serial” (2011, p.8). Segundo Chinen (2011), essa fórmula viabilizou a publicação de aventuras mais extensas que duravam meses e que, para o leitor acompanhá-las, era necessário ler o jornal todos os dias. Essa tarefa “exigia do autor um talento especial, pois era necessário reter o interesse do público, criando um gancho para o dia seguinte” (p.11). Como os jornais estavam conectados ao padrão de vida diário (Eisner, 2008, p.136), as tiras assimilam essa característica, criando sequências de histórias sempre dependentes da periodicidade diária dos jornais, principalmente com relação a sua continuidade. Mais do que isso, para Eisner (2008) as tiras seriadas tinham a função de manter a lealdade dos 133 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar leitores, o que exigia uma grande habilidade narrativa, já que os jornais competiam selvagemente nas bancas, dominando a leitura popular. A reconstrução do fato A necessidade de atualização diária ou semanal dos jornais, aliado ao alto custo e demora na produção, impossibilitava o uso frequente das histórias em quadrinhos como material informativo. Com menos espaço para o desenvolvimento de histórias mais longas e investigativas, os quadrinhos acabaram restritos à predominância dos estilos cômicos e de aventura, proposto pelas tiras de entretenimento. A publicação dessas tiras em revistas específicas, normalmente suplementos dos jornais, foram ganhando a preferência das crianças, que se firmaram como público consumidor preferencial. No Brasil, revistas como O Tico-Tico6, a Gazetinha (ou Gazeta Infantil), o Suplemento Infantil, o Globo Juvenil e O Lobinho foram suplementos de muito sucesso, publicando principalmente quadrinhos americanos7, cujos direitos de publicação eram mais baratos do que os nacionais8. Posteriormente, surgiram revistas de quadrinhos como O Gibi, que acabou virando sinônimo de revista em quadrinhos no país, e O Guri, publicado pela editora O Cruzeiro, que publicava a famosa revista jornalística homônima. Na década de 40, com a consolidação da fotografia como elemento jornalístico e com o surgimento de novas mídias de comunicação, os quadrinhos perderam espaço e função nos jornais impressos e revistas, retomando sua força no final da década de 60, com o amadurecimento dos quadrinhos de estilo underground9, reflexo da contracultura da época. 6 O Tico-Tico é considerada a primeira revista de quadrinhos do Brasil. Suplemento da revista O Malho, O Tico-Tico chegou a ter cerca de 100 mil exemplares vendidos por edição e foi publicada durante 50 anos. A revista consagrou personagens originais do Brasil, como Zé Macaco e Faustina, Kaximbown, Jujuba, Carrapicho, Lamparina e o trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona. 7 Exemplos de personagens que faziam sucesso nos EUA: Tarzan, Zorro, Popeye, Flash Gordon, Mickey Mouse, Gato Felix, Buck Rogers, Fantasma, Flash Gordon, Mandrake, Dick Tracy, Príncipe Valente, Super-Homem e Batman. 8 Exemplos de personagens brasileiros de sucesso nos quadrinhos: Juca Pato, Garra Cinzenta, Capitão Gralha, Péricles, Capitão Atlas e Morena Flor, a primeira super heroína brasileira (anos 50). 9 Os quadrinhos chamados de underground surgiram na década de 1960, nos EUA, como um movimento da contracultura, que tinha como principal objetivo criticar os valores da época. O movimento nas HQs iniciou a partir do quadrinista Robert Crumb com o lançamento da revista Zap Comix. Os principais temas do movimento eram sexo, drogas, rebeldia e a guerra no Vietnã. 134 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Com seus personagens desajustados e irreverentes, suas histórias autobiográficas e críticas, essas publicações independentes ganharam espaço como publicações em formato de livros. Nesse ponto, cresceram e se consolidaram os quadrinhos autorais de não-ficção preocupados em retratar cotidianos e realidades específicas, a partir de relatos pessoais, histórias familiares e dramas que se interligavam com grandes fatos da história. Nesse contexto, sempre apontando para um caminho de apropriação do real a partir das vivências e experiências10 do autor, se sobressai uma das características marcantes dos quadrinhos, anteriormente explorados por Angelo Agostini: a possibilidade de recriação visual do mundo imaginado, nos seus mínimos e importantes detalhes ilustrativos. Para Motta (2013), essa mimese11 permite recriarmos a significação da história a partir da relação que fazemos com os nossos próprios valores e nossa memória cultural. Diferente da fotografia e do filme, a história em quadrinhos não capta ou retrata a realidade, ela imagina e recria essa realidade, a partir de experiências e memórias dos envolvidos, dando importância vital a toda e qualquer imagem inserida. Ponto intersticial na aproximação entre jornalismo e ficção literária, essa estética do realismo objetivo, analisada por Sodré (2009), também se aplica à narrativa dos quadrinhos. Para Sodré, Não se trata, portanto, de qualquer estilo literário, nem mesmo de realismo clássico, como o de Balzac que, como bem se sabe, ensaiava uma espécie de “macrojornalismo” da totalidade social, intervindo como um demiurgo, por meio da filosofia social e moral, no universo que descrevia. O realismo objetivo prescinde dessa ordem de intervenções, desse narrador onisciente, em favor de fatos objetivos, artisticamente selecionados como numa montagem cinematográfica e deixados à sorte de leitura. Fatos, gestos e diálogos passam de um suposto real-histórico para um real imaginado, com vista à produção daquilo que Roland Barthes chamou de “efeitos de real” (2009, p.154). O processo de recriação – ou reinterpretação – da realidade pelos quadrinhos encontra um campo fértil na apuração do fato jornalístico, já que o autor precisa elaborar seu próprio olhar como uma estratégia textual e imagética que o legitime. Para isso, se baseia nas experiências 10 Benjamin (1985) filosoficamente define experiência (Erfahrung) como o conhecimento que aufere da vida prática e vivência (Erlebnis) como a revelação que se obtém num acontecimento, numa experiência íntima do sujeito. 11 Originalmente, o conceito de mimese significa imitação, recriação ou representação do mundo por meio de alguma configuração. Mas, ao configurar, o homem vai além do objeto representado, acrescenta algo e, neste ato, apropria-se do mundo (MOTTA, 2013, p.72). 135 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de entrevistados e em seus próprios relatos autobiográficos, mesmo que incorpore elementos ficcionais, utilizando os elementos da reportagem, como um narrador investigativo, representado pela figura do repórter. Dessa forma, pode construir a história a partir de estratégias textuais e visuais pessoais que dão credibilidade ao relato. Com esse olhar mais apurado pela informação contextual, os quadrinhos se ajustam a uma nova narrativa jornalística, marcada principalmente pela obra do jornalista e quadrinista maltês Joe Sacco que, em 1996, lançou a história em quadrinhos Palestina. Mais do que uma visão violenta e dramática do conflito entre Israel e Palestina, a obra é um relato jornalístico em imagens ilustradas sobre a dor das pessoas atingidas pela guerra. Além de contar uma versão que dificilmente circularia nos meios de comunicação tradicionais, como a televisão e o jornal, Sacco deu um rosto aos invisíveis personagens palestinos, até então relegados a um silenciamento forçado da identidade, sendo sempre associados, de forma coletiva, ao terrorismo. Para Said (2011), poucos conseguiram registrar o terrível estado de existência do povo palestino tão bem quando Sacco. É inquestionável que suas imagens são muito mais representativas que quaisquer outras, lidas ou vistas na televisão (...) o ritmo de suas andanças, sem pressa e sem objetivo definido, deixa claro que ele não era um jornalista em busca de uma história ou um especialista tentando comprovar fatos para definir uma política. Joe estava ali para conhecer a Palestina e nada mais que isto; sua intenção era acompanhar, ou mesmo vivenciar, a vida que os palestinos foram condenados a levar (...) Joe Sacco consegue transmitir uma enorme quantidade de informações sobre o contexto humano e os eventos históricos que reduziram o povo palestino à atual sensação de impotência e estagnação, mesmo após o processo de pacificação e apesar do mascaramento hipócrita dos fatos impostos por líderes políticos e pela grande mídia (SAID, 2011, p.XI). Sucesso comercial e de crítica, Palestina ultrapassou as fronteiras dos quadrinhos e do jornalismo ao vencer o prêmio literário American Book Awards, em 1996. A obra obteve grande reconhecimento no mundo inteiro, tanto por mostrar a crueza e a barbárie de uma guerra violenta, quanto pela coragem de abertamente tomar partido12 pelo lado palesti12 No prefácio da HQ Palestina, Sacco responde sobre as acusações de que ele mostra apenas um dos lados do conflito. Ele afirma que “este é um juízo correto sobre o livro, mas ele não me afeta. Minha posição foi e ainda é que a visão do governo israelense já está bem representada pela grande mídia norte-americana, e é calorosamente defendida por quase todo político eleito para altos cargos nos Estados Unidos” (SACCO, 2011). 136 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar no no conflito, abalando a questão de imparcialidade e objetividade da atividade jornalística tradicional. Ironicamente, o impacto de Palestina firmou a obra como referência de narrativa a ser seguida e copiada à exaustão, criando um rótulo difícil de ser suplantado. Nesse contexto, criou-se uma exigência de que as histórias em quadrinhos, diferentes por natureza em estilo e traço, seguissem o mesmo padrão criado por Sacco: um padrão jornalístico, baseado na prática da reportagem, da entrevista e da investigação. Surgiu assim o conceito de jornalismo em quadrinhos, que continua na pauta de grandes debates sobre os gêneros jornalísticos. A história de Palestina é baseada nas investigações de Sacco, a partir de entrevistas e depoimentos dos refugiados palestinos, que se posiciona como um narrador/jornalista, vivenciando de perto os fatos que investiga, sempre demonstrando uma grande preocupação com a veracidade de dados e informações. Com farta contextualização dos fatos, a obra assume um estilo documental, pois pesquisa e fornece datas, números, documentos e todos os tipos de informações históricas, sempre evitando as fontes oficiais para dar atenção às fontes anônimas. Sacco narra a história do seu ponto de vista, que parece muitas vezes dúbio, adquirindo características de herói em busca de verdades nem sempre tão evidentes. Dessa forma, o narrador/jornalista tem liberdade para detalhar suas ações, revelando seus pensamentos e convicções e mostrando o seu próprio processo criativo. Em outras palavras, Sacco não se apoia em histórias fictícias para reconstruir a realidade. Ele narra seu esforço como jornalista, suas próprias dificuldades em obter os depoimentos e se preocupa em contar a sua própria história dentro desse conflito. Mas esse tipo de narrativa, mais próxima da reportagem, não se mostrou adequada para o jornalismo diário, que precisa de um ritmo intenso e acelerado de produção de notícias. Por isso, o trabalho de Sacco, transformado em livros-reportagem, se aproxima mais da textualidade literária do New Journalism. Para Sodré (2009), Quanto mais detalhada a pesquisa, e mais fiel a reconstituição, melhor o texto será (conforme Pereira Junior). Esta recomendação vale tanto para uma biografia quanto para uma obra pertencente à escola de ficção realista, mas igualmente para o que se convencionou chamar nos Estados Unidos de New journalism, isto é, as reportagens caracterizadas por extensas pesquisas de campo e pelas descrições detalhadas de ambientes e personagens (2009, p. 153). 137 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Segundo Bulhões (2007), o New Journalism foi uma tendência que despontou nos Estados Unidos, nos anos 60, e afrontou os limites convencionais do fazer jornalístico, que na época adotava uma estrutura similar à linha de produção industrial, produzindo a notícia a partir de uma prática textual pré-fabricada. Contrariando esse estilo, o New Journalism adotou uma nova textualidade jornalística ligada diretamente à literatura. Bulhões (2007), citando o escritor Tom Wolf em análise do pioneiro livro A Sangue Frio, de Truman Capote, cita alguns dos expedientes fundamentais do New Journalism, como o “registro minucioso de gestos de personagens e a descrição de costumes, hábitos” (p.155). Além disso, podemos ainda citar o “detalhamento espacial na caracterização de um evento narrativo, a construção cena a cena e a presença de diálogos como recurso de caracterização de personagens” (p.155). Jornalismo em quadrinhos ou quadrinhos de narrativa jornalística? Usando uma imagem para uma comparação simplista: enquanto o jornalista quer encontrar o livro de Sacco (2011) na estante de jornalismo, o quadrinista quer encontrar o mesmo livro na área destinada aos quadrinhos. No entanto, por sua produção artística, a história em quadrinhos tem mais funções do que preencher requisitos de algum gênero estabelecido. Mesmo enquadrada em uma categoria específica, a narrativa dos quadrinhos tem como característica se adequar a qualquer necessidade, seja a partir do jornalismo, da história, da medicina, da área esportiva, entre outros. Isso porque, mesmo servindo a algum propósito bem definido, a história em quadrinhos pode ser lida, interpretada, entendida de diversas maneiras, devido a sua natureza híbrida de texto e imagem. Os quadrinhos, na sua concepção artística, não se importam com rótulos. Spiegelman (1987), em Maus, obra vencedora do Prêmio Pulitzer de jornalismo, entrevistou o próprio pai em busca de uma história real, ao mesmo tempo em que usou recursos visuais próprios dos quadrinhos para retratar os povos de maneira clara e diferente: os alemães receberam a forma de gatos, os judeus de ratos, os americanos de cachorros e os poloneses de porcos. No final, não importava se a sua obra seria categorizada pelo jornalismo ou pela história. Sacco (2011) já havia desistido do 138 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar jornalismo escrito, não por conta de uma desilusão com a profissão, mas simplesmente porque não conseguia encontrar um trabalho jornalístico que o deixasse satisfeito. Dedicou-se então aos quadrinhos, a paixão de sua vida, e produziu a obra Palestina, que chamou de jornalismo em quadrinhos. Agostini (2002) teve que criar seus próprios jornais e revistas para veicular, no século XIX, uma arte que era ainda desconhecida, mas não desistiu de seu objetivo de informar e opinar criticamente sobre temas políticos e sociais. Em todos os casos, fica evidente que os quadrinhos sempre seguiram a ideia de integração narrativa, mantendo fronteiras bem próximas principalmente com o jornalismo e a literatura. Como ressalta Santaella (2004), isso pode ser um reflexo de como se caminha para uma convergência maior das artes com a comunicação, através de uma hibridização de formas comunicacionais e culturais. Em outras palavras, uma narrativa não anula a outra. Elas se integram, buscando a melhor forma de se manifestarem. No caso das histórias em quadrinhos, as novas narrativas estão fazendo com que se repense o papel dos quadrinhos como mero suporte a outras áreas, como o jornalismo. Longe de ser uma novidade, os quadrinhos de narrativa jornalística ganharam uma nova vitrine e uma possibilidade mais livre de trabalhar diretamente com a informação, principalmente em forma de reportagens, como Angelo Agostini já ensaiava no século XIX. REFERÊNCIAS AGOSTINI, Angelo. As aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora: os primeiros quadrinhos brasileiros. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e Literatura em Convergência. São Paulo: Ática, 2007. CAGNIN, Antônio Luiz. Os Quadrinhos: linguagem e semiótica. São Paulo: Criativo, 2015. 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Pelo viés da narratologia, podemos afirmar que ambas as descrições – do barômetro e da casaca – têm em comum o uso de uma estratégia literária bem particular, chamada de efeito de real, que visa gerar uma sensação de veracidade, junto ao leitor, em relação aos fatos que são narrados. O barômetro descrito por Flaubert foi, justamente, o elemento estudado pelo linguista Roland Barthes quando elaborou sua teoria acerta do efeito de real. Como veremos mais adiante, Barthes (1984) entendeu que a descrição do barômetro, bem como de outros objetos aparentemente insignificantes nas narrativas realistas, consistiria em uma estratégia literária para transmitir ao leitor a impressão de que os cenários descritos seriam reais – mesmo que presentes em obras ficcionais. Porém, como buscaremos demonstrar, a descrição detalhada das roupas vestidas por D. João, na obra de Laurentino Gomes (2010), também pode ser entendida como uma estratégia literária geradora de efeito de real. 1 O autor é jornalista e mestre em Letras, graduado e pós-graduado (com bolsa da Capes) pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). É escritor, professor do Curso de Comunicação Social da Unisc e editor executivo do jornal Gazeta do Sul. E-mail: [email protected]. 143 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Aqui, é imprescindível salientar que, diferente de Felicité, a obra 1808 não é um romance ficcional. Trata-se de um romance de não-ficção, ou livro-reportagem, fruto de pesquisa jornalística realizada pelo autor2. Tal constatação nos leva a uma inevitável pergunta: se o efeito de real gera sensação de veracidade em relação à descrição ficcional, qual seria seu efeito em uma descrição apresentada no âmbito de um trabalho jornalístico, entendendo-se que o jornalismo se encontra previamente legitimado como transmissor do real? Esta é a dúvida que norteou nossa dissertação de mestrado (Düren, 2013), onde estudamos o emprego do efeito de real em narrativas jornalísticas, adotando o livro 1808 como corpus de pesquisa. Guiamos este trabalhado acreditando na hipótese de que determinadas narrativas jornalísticas empregam artifícios literários, como o efeito de real, para reforçar sua legitimidade pré-existente, gerando redundância discursiva. Entendemos que o jornalismo é previamente legitimado porque seus autores têm, já estabelecido com o leitor, um pacto segundo o qual sua intenção é realizar o que Searle (1995) identifica como asserção, ou seja, uma afirmação verdadeira, que pode ser comprovada mediante evidências da veracidade do fato que é narrado. O que diferencia o autor jornalista do autor ficcional, portanto seria a sua intencionalidade em realizar uma asserção, tendo em vista que a intenção do autor ficcional é a de fingir realizar uma asserção. Como salienta Searle (1995), tanto no caso da ficção quanto da não ficção, as intenções do autor são compartilhadas com o leitor, de forma a possibilitar que ele identifique se está diante de uma asserção ou de um texto que finge fazer uma asserção. Neste artigo, buscamos apresentar o que observamos por ocasião deste trabalho. Em um primeiro momento, vamos demonstrar como a apropriação de estratégias narrativas da literatura pelo jornalismo ocorre, atualmente, inserida em uma lógica de dialogia entre sistemas – onde os sistemas jornalístico e literário entram em confluência e se influenciam mutuamente. Ressaltaremos, porém, que este diálogo entre jornalismo e literatura é um fenômeno bem mais antigo, que nos remete às publicações jornalísticas do século 19. Posteriormente, ex2 Em 1808, como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, o jornalista Laurentino Gomes (2007), relata e contextualiza a fuga da família real portuguesa para a América do Sul, entre 1807 e 1808, e os eventos políticos e sociais ocorridos ao longo dos 13 anos em que a corte permaneceu no Brasil colonial antes do retorno para a Europa. 144 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar plicaremos em mais detalhes como ocorre o efeito de real, conforme defende Roland Barthes (1984). Por fim, demonstraremos a presença de descrições geradoras de efeito de real na obra 1808 e apresentaremos nossas conclusões. Antes, cabe citar que nossa opção metodológica para viabilizar esta pesquisa foi a narratologia, dado se tratar de um campo de estudo que, segundo Reis e Lopes (1988), possibilita congregar diferentes áreas do conhecimento. Neste sentido, a narratologia possibilitou que empregássemos, em nossos estudos, as teorias da literatura, do jornalismo e da linguística. Para situar nossa opção metodológica em nossa dissertação, esquematizamos como a narratologia se desenvolveu desde a Antiguidade Clássica até os dias atuais – passando pelo Formalismo Russo, pelo Estruturalismo e pelo Pós-estruturalismo3, – bem como, relatamos como a pesquisa em jornalismo se aprimorou nas últimas décadas. Trata-se de um movimento complexo, que não reproduziremos neste artigo em função do espaço. Entretanto, no que diz respeito à pesquisa em jornalismo, abordaremos a seguir recentes trabalhos que inserem a prática jornalística em uma lógica sistêmica, o que nos ajuda a entender como se processa, nos dias atuais, a influência da literatura sobre o jornalismo. Entendemos que é justamente em decorrência desta influência que podemos encontrar, em trabalhos jornalísticos, estratégias narrativas que advém da literatura – caso do efeito de real. 2 Diálogos entre jornalismo e literatura Para verificarmos como se processa atualmente o diálogo com a literatura, analisamos o jornalismo contemporâneo em um contexto de jornalismo midiatizado, formato decorrente, segundo Soster (2009, 2011 e 2012), da midiatização da sociedade como um todo. Conforme o autor, 3 Cabe citar, para entendimento de conceitos que serão apresentados a seguir, que o Estruturalismo foi uma linha de análise literária que se originou na segunda década do século XX, herdando do Formalismo Russo a tradição da análise do texto a partir de sua estrutura, entendida, conforme Reis e Lopes (1988), como o conjunto de relações entre os elementos que exercem determinadas funções no âmbito da narrativa. Segundo a ótica estruturalista, todos os componentes da narrativa devem exercer alguma função. Roland Barthes, cuja teoria sobre o efeito de real é um dos pilares desta pesquisa, é um autor de transição entre o Estruturalismo e o Pós-estruturalismo, sendo essa última uma linha de análise mais atenta à participação do leitor e de sua bagagem de conhecimento na interpretação dos textos. 145 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar o termo midiatização diz respeito ao estágio onde a sociedade, inserida em um quadro de profunda imersão tecnológica, converte-se em um novo ambiente, no qual dispositivos comunicacionais interconectados em rede, pela internet, atuam na geração de novos sentidos. Neste novo ambiente social, o jornalismo situa-se como parte do sistema midiáticocomunicacional, ou seja, um sistema onde dispositivos comunicacionais (jornais, revistas e noticiários de rádio, televisão e portais de notícias na internet), interconectados em rede (internet), se influenciam mutuamente e, em função dessa influência recíproca, reconfiguram conteúdos informativos, gerando novas significações a cada reconfiguração. Neste processo de reconfiguração da informação, os dispositivos se autorreferenciam e se correferenciam, ou seja, produzem novas significações a partir de conteúdos anteriores produzidos/reconfigurados tanto por eles próprios quanto por seus pares. Soster (2011 e 2012) ressalta que a reconfiguração não se restringe à informação: nesse processo, os próprios dispositivos, ao se correferenciarem, se modificam, seja em aspectos operacionais, seja em aspectos discursivos, na medida em que as reconfigurações exigem adaptações, correções e mudanças de enfoque, por exemplo. Para a compreensão de nossa análise pelo viés sistêmico é fundamental entender que a reconfiguração dos dispositivos comunicacionais não decorre apenas das influências mútuas entre eles, no interior do sistema midiático-comunicacional. Conforme Soster (2012), os dispositivos mantêm diálogo também com outros sistemas – além do midiático-comunicacional – como é o caso do sistema literário. Para o autor, do diálogo com outros sistemas emerge a complexificação das formas pelas quais o jornalismo estabelece seus relatos e gera sentidos. No caso da imbricação com o sistema literário, integram essa complexificação, por exemplo, formas de expressão e significação mais comuns à literatura (tais como interjeições e diálogos), a interferência mais nítida da subjetividade do autor, a apresentação das fontes da informação como se fossem personagens literários e a opção por uma forma narrativa em que o relato parece vir de um narrador que, muitas vezes, testemunhou ou mesmo participou dos eventos que relata. Porém, é importante salientar que este diálogo entre jornalismo é literatura é bem mais antigo do que o processo de midiatização da sociedade. Esta relação dialógica retoma características do primeiro jornalismo, 146 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar conceito utilizado por Marcondes Filho (2000) em referência ao modelo jornalístico praticado entre o final do século XVIII e a metade do século XIX, que tinha perfil político-literário. Seguindo a história do jornalismo, percebemos que, muito embora o jornalismo tenha adotado, quase que hegemonicamente, um perfil tido como objetivo, características do primeiro jornalismo continuaram se manifestando, através de simbioses com a literatura. Marcondes Filho (2000) divide o desenvolvimento do jornalismo em fases, dentre as quais nos interessam particularmente, nessa revisão, o primeiro jornalismo, segundo jornalismo e terceiro jornalismo4. A primeira fase, que o autor situa entre 1789 e a metade do século XIX, teve origem na Revolução Francesa, quando a burguesia utilizou os jornais para atacar a aristocracia e o estado. No período, os jornais, impulsionados pelos ideais iluministas e pela queda dos antigos regimes – e de seus aparatos de censura –, transformaram-se em difusores de ideologias políticas e também do conhecimento que, antes, estava restrito à Igreja e à nobreza. Marcondes Filho (2000) afirma que o primeiro jornalismo foi de caráter político-literário – contanto com o trabalho de escritores nas redações e movido por interesses ideológicos e pedagógicos; sem que houvesse intenção de lucro com a empresa jornalística. Entretanto, na maior parte do planeta, o caráter político dos jornais não resistiu ao novo modelo capitalista advindo da Revolução Industrial. Conforme Marcondes Filho (2000), o desenvolvimento de novas tecnologias de impressão – capazes de atender à demanda em expansão de pessoas alfabetizadas – fez com que as empresas jornalísticas da metade do século XIX realizassem grandes investimentos em maquinário. Para cobrir os gastos, tornou-se necessário abandonar o caráter partidário, que restringia a venda do jornal a um público específico, possibilitando a comercialização a mais indivíduos, independentemente de suas preferências políticas. Além de cobrir os gastos, a medida possibilitou maiores lucros e consolidou os jornais como empresas capitalistas. Tal período diz respeito, conforme Marcondes Filho (2000), ao segundo jornalismo5. 4 Marcondes Filho (2000) também cita o quarto jornalismo, que contemporaneamente se apresenta nas redes (internet), ao mesmo tempo em que é influenciado por elas e pelas formas interativas que também geram e difundem notícias, independentemente da participação de jornalistas no processo. 5 Outros fatores também interferiram nesta transição do primeiro para o segundo jornalismo, dentre os quais, o advento da publicidade. Lage (1993) observa a publicidade se tornou mais um obstáculo à continuidade do jornalismo partidário, na medida em que a divulgação de alguma ideologia poderia afastar determinada classe de anunciantes. 147 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Com isso, o segundo jornalismo é aquele no qual a práxis jornalística adota o paradigma da objetividade, entendida, segundo Amaral (1996), como a tentativa de transmissão da informação com imparcialidade e isenção – ou seja, sem opinião. De acordo com o autor, as adequações dos jornais ao paradigma da objetividade também influenciaram a forma como a notícia passou a ser apresentada ao leitor. O autor ilustra o fenômeno citando o depoimento de Lincoln Steffens, jornalista norte-americano que viveu na época da transição para o jornalismo objetivo: [...] Os repórteres tinham que redigir maquinalmente os fatos […], sem preconceito, sem cor e sem estilo: tudo a mesma coisa. Humor ou qualquer sinal de personalidade em nossas matérias eram apanhados, rejeitados e suprimidos. (STEFFENS, 1931 apud AMARAL, 1996, p. 32). A afirmação de Steffens sugere que os jornais perderam não só o perfil político-ideológico que mantinham desde a queda dos antigos regimes como também o estilo estético de narrativa semelhante ao da literatura, herdado dos escritores. No entanto, conforme Schudson (2010), na década de 1890 ainda foi possível observar a existência de dois formatos jornalísticos convivendo de forma paralela nos Estados Unidos. O autor distingue os dois formatos classificando um deles como de ideal literário e o outro como de ideal da informação. O primeiro formato englobava textos que visavam, além de narrar a notícia, possibilitar uma experiência estética através da leitura. Já o outro seguia a rígida cartilha da objetividade, buscando a transmissão isenta da informação, tentando excluir qualquer resquício de subjetividade do repórter. Mesmo ganhando força ao longo do século XX – período que diz respeito ao terceiro jornalismo – o paradigma da objetividade não suprimiu as narrativas jornalísticas semelhantes à literatura. De acordo com Schudson (2010), a crítica de vários jornalistas à objetividade, intensa na transição dos séculos XIX ao XX – e Lincoln Steffens é um exemplo disso –, voltou a ganhar força nos anos 1960. No período, o maior acesso ao ensino superior entre a população e a consequente desconfiança em relação aos governos gerou o que o autor chama de cultura crítica. Inseridos nessa cultura, os jovens jornalistas dos anos 1960 desconfiavam das notícias que os governos divulgavam à imprensa, ao mesmo tempo em que também atacavam a opção pela objetividade. De acordo com Schudson (2010), esses repórteres entendiam que a notícia mais parcial era justamente aquela que se apresentava 148 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar sob o formato objetivo, na medida em que, desprovida de interpretações ou questionamentos, meramente reproduzia a visão da realidade transmitida pelos detentores do poder. Segundo o autor, os ataques à objetividade desse período também deram novo vigor à tradição literária no jornalismo. Tanto que, nos anos 1960, o formato jornalístico semelhante ao literário, reforçado pela rebelião contra a objetividade e pela adesão de novos adeptos, ganhou um nome: New Journalism. Segundo Wolfe (2005), o New Journalism congregava jornalistas que, mesmo sem conhecimento acadêmico sobre o assunto, empregavam técnicas de narrativa realista, termo que diz respeito a obras literárias ficcionais que buscam transmitir uma reprodução fiel da realidade. Dessa forma, tais jornalistas produziam textos acerca de fatos ou situações não ficcionais, mas com descrições detalhadas de cenários, personagens e diálogos, mediante aplicação de estratégias narrativas dos romancistas. Entretanto, embora o New Journalism seja apresentado por Wolfe (2005) como uma espécie de marco em termos da aplicação de recursos literários no jornalismo, entendemos – e aqui procuramos demonstrar – que a influência da literatura foi constante no desenvolvimento do jornalismo desde o século XVIII. E persiste até hoje, gerado, desta vez, pelo diálogo entre o sistema literário e o sistema jornalístico decorrente do processo de midiatização da sociedade. 3 O que é efeito de real Na revisão bibliográfica acima, demonstramos que, através de simbioses com a literatura, o jornalismo se apropria de estratégias narrativas desta. No caso específico de nossa pesquisa, nos interessa o emprego, pelo jornalismo, de um estratagema literário conhecido como efeito de real, que passaremos a explicitar a seguir. Mas, antes, é importante explicar porque nos referimos a tais construções como estratégias voltadas a gerar efeitos no leitor. Para tanto, citaremos apontamentos de Motta (2007), expoente da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Segundo ele, a narrativa – inclusive, a jornalística – não é apenas uma forma de representação, mas uma ação sociocultural articulada mediante determinados objetivos do narrador, dentre os quais, a geração de certos efeitos em seus destinatários. Afirma o autor que, 149 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar [...] os discursos narrativos midiáticos se constroem através de estratégias comunicativas (atitudes organizadoras do discurso) e recorrem a operações e opções (modos) linguísticas e extralinguísticas para realizar certas intenções e objetivos. A organização narrativa do discurso midiático, ainda que espontânea e intuitiva, não é aleatória, portanto. Realiza-se em contextos pragmáticos e políticos e produz certos efeitos (consciente ou inconscientemente desejados). Quando o narrador configura um discurso na sua forma narrativa, ele introduz necessariamente uma força elocutiva responsável pelos efeitos que vai gerar no seu destinatário. (MOTTA, 2007, p. 144). Transferindo nosso olhar ao emprego, particularmente, de estratégias literárias da estética realista pelo jornalismo, constatamos a emergência de um fenômeno conhecido como efeito de real. Com isso, chegamos a um ponto importante de nosso trabalho: o estudo do efeito de real, termo empregado por Roland Barthes na análise da descrição de ambientes nos romances realistas. Para compreendermos o conceito de efeito de real, devemos levar em consideração, inicialmente, que em literatura as descrições costumam exercer o que Genette (1973) chama de função simbólica. Segundo o autor, as descrições de personagens ou dos ambientes onde vivem podem fornecer ao leitor elementos que revelam, por exemplo, traços das suas personalidades. Barthes (1984), por sua vez, concorda que, de forma geral, a descrição procura transmitir determinados significados. Entretanto, observa que existe, no âmbito da narrativa realista, a descrição de certos detalhes que, aparentemente, não acrescentam sentidos e que, em função disso, eram entendidos pelos críticos estruturalistas6 como pormenores supérfluos ou inúteis. Para facilitar a compreensão acerca destes pormenores, Barthes (1984) recorre à descrição da sala da residência de madame Aubain, personagem do romance Um coração singelo, de Gustave Flaubert – ou seja, a descrição que citamos no início deste artigo. O pesquisador observa que, em meio à descrição do ambiente onde vive a patroa de Felicidade, o narrador cita que “[...] um velho piano suportava, sob um barômetro, uma pilha piramidal de caixinhas e de cartões” (FLAUBERT, 1987, p. 10). Barthes (1984) observa que tanto o piano quando as caixas com cartões transmitem significados. Segundo ele, a presença de um piano na sala é mostra do status burguês de madame Aubain, ao passo que a 6 Ver nota de rodapé número 2. 150 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar pilha de cartas denota certa desordem e, ao mesmo tempo, certa prosperidade da proprietária da casa. O que intriga Barthes (1984), entretanto, é o barômetro. Ele afirma que, aparentemente, “[...] nenhuma finalidade justifica a referência ao barômetro, objeto que não é nem incongruente nem significativo e não participa, portanto, à primeira vista, da ordem do notável” (BARTHES, 1984, p. 88). Portanto, Barthes (1984) se debruça sobre este tipo de pormenor, típico da descrição realista, que parece não ter utilidade alguma à transmissão de novos sentidos no âmbito da narrativa. Para o autor, tais pormenores são descritos mediante uma relação direta entre signo e referente, sem deixar espaços aparentes para novas formas de significado decorrentes da descrição – como ocorre em outras descrições realistas cuja função simbólica é mais facilmente identificada, como no caso do piano de madame Aubain. Desta forma, [...] a “representação” pura e simples do “real”, a relação nua “do que é” (ou foi) surge assim como uma resistência ao sentido; esta resistência confirma a grande oposição mítica do vivido (do vivo) e do inteligível; basta recordar que, na ideologia do nosso tempo, a referência obsessiva ao ‘concreto’ (naquilo que retoricamente se pede às ciências humanas, à literatura, aos comportamentos) é sempre equiparada como uma máquina de guerra contra o sentido, como se, por uma exclusão de direito, o que vive não pudesse significar – e vice-versa. (BARTHES, 1984, p. 93). Neste aspecto, o autor compara o discurso realista com o discurso da história. Desde a Antiguidade Clássica, interessa ao discurso histórico apenas o que aconteceu, o real concreto, a descrição dos lugares como realmente são, ao passo que a prosa ficcional se apresentava mediante padrões de verossimilhança. Barthes (1984) observa que a descrição realista, entretanto, não se contenta com o verossímil, visto que a aplicação da verossimilhança é relativa, estando subordinada a entendimentos tanto do autor quando do leitor. O verossímil é o que poderia ter acontecido e, assim, situa-se em caráter de dependência em relação à opinião do público – que pode discordar quanto à coerência do que é narrado. A descrição realista, entretanto, opõe-se ao verossímil conforme esse conceito clássico, apresentando-se não como o que pode ser, mas como o que é, da mesma forma em que se apresenta o discurso histórico. Entendemos que essa comparação do discurso realista com o histórico é pertinente, no âmbito da pesquisa, na medida em que também autoriza a comparação de ambos com o conteúdo jornalístico, nosso foco 151 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de análise. Assim como o historiador, o jornalista também se apresenta com intenção de narrar o real. O próprio Barthes (1984) inclui a reportagem jornalística, juntamente com as exposições de objetos antigos e o turismo em monumentos e locais históricos, no grupo de manifestações que demonstram não só a necessidade humana de acesso a um real concreto, mas também que “[...] o ‘real’ tem a reputação de se bastar a si próprio, que é suficientemente forte para desmentir qualquer ideia de ‘função’ [...] e que o ter estado lá das coisas é um princípio suficiente da palavra” (BARTHES, 1984, p. 94, grifo no original). Visto esse ponto, torna-se necessário, para compreendermos o conceito de efeito de real, retomarmos a questão da relação direta entre signo e referente, a qual, como vimos há pouco, ocorre por ocasião da existência dos pormenores na descrição realista. Essa relação direta, aparentemente, exclui a possibilidade de desenvolvimento de novas formas de sentido nessa descrição específica, a qual, como aponta Barthes (1984), apresenta-se, assim, inteiramente denotativa. O autor observa, entretanto, que a narrativa realista se desenvolve por vias ficcionais – afinal, tratam-se de histórias ficcionais – de forma que esse pormenor inútil, na verdade, não faz referência direta a algo real, mas significa algo real. Quando o texto de Flaubert cita o barômetro de madame Aubain, não está descrevendo um barômetro real, mas significando um barômetro. Portanto, para Barthes (1984), a descrição ficcional do pormenor inútil não é denotativa, mas conotativa. Ou seja, [...] suprimido da enunciação realista como significado de denotação, o “real” volta como significado de conotação. Porque no próprio momento em que se considera que esses pormenores denotam diretamente o real, o que fazem realmente, sem que seja dito, é significá-lo. (BARTHES, 1984, p. 95). O que advém dessa inversão – onde o que é conotativo se apresenta como denotativo ao leitor –, conforme Barthes (1984), é a ilusão referencial, a impressão que tem o leitor de estar “enxergando a realidade” quando o que vê, na verdade, é a representação gráfica, o texto. No caso da descrição do pormenor, que aparenta uma ligação direta com o próprio referente, a ilusão referencial ocorre justamente porque o signo está posto de forma a parecer que apenas denota um referente real – ao invés de conotar um referente fictício, como, de fato, ocorre. Como afirma Barthes (1984), “[...] a própria carên- 152 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar cia de significado em proveito do referente transforma-se no próprio significante do realismo” (BARTHES, 1984, p. 96). O resultado desse fenômeno é a produção, junto ao leitor, de uma sensação de estar, de fato, diante de uma narrativa real, fenômeno esse que Barthes (1984) chama de efeito de real. É devido a esse fenômeno que Todorov (1984), ao interpretar os apontamentos de Barthes, sugere que o pormenor do discurso realista, na verdade, tem uma função: a de camuflar sua própria existência como ficção e de dissimular suas próprias regras. Tratase de uma narrativa que, ao mostrar-se pormenorizada, com detalhes que aparentam não ter significado além do próprio, pretende se fazer passar por transparente, concedendo ao leitor a impressão de estar diante, de fato, do real, do vivido. Conforme Todorov (1984), o que surge no texto como apenas um pormenor inútil é o que “transporta de fato uma mensagem essencial: a de uma autenticação do resto.” (TODOROV, 1984, p. 11). Tal autenticação da narrativa realista como um todo é resultado do efeito e real. Jaguaribe (2007) relaciona o efeito de real à naturalização do leitor à narrativa. Para a autora, a descrição pormenorizada de cenários, ao mesmo tempo em que gera o eleito de real, ambienta – ou naturaliza – o leitor à narrativa e, dessa forma, gera a sensação de credibilidade em relação aos fatos narrados. Tal ponto de vista fica claro quando a autora afirma que [...] o “efeito de real” do romance realista é obtido por detalhes que dão credibilidade à ambientação e caracterização dos personagens. Assim, a descrição da casa burguesa contém a menção de objetos que não estão diretamente associados à trama, mas que sugerem o que deveria estar contido num lar burguês, daí [...] a inclusão dos objetos de refinamento francês na sala de estar de Quincas Borba quando ele buscava ascender socialmente. (JAGUARIBE, 2007, p. 27). Jaguaribe (2007) ressalta que essa descrição detalhada, como a da casa de Quincas Borba, é, em um primeiro plano, uma forma de construir um cenário mimético que, em concordância com o real, ou com o senso comum acerca do real, ganha contornos de verossimilhança e é aceito pelo público, que dessa forma, deposita credibilidade na narrativa. Mas, indo além, a descrição também gera o efeito de real descrito por Barthes (1984) e, dessa forma, contribui para “mascarar os próprios processos 153 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de ficcionalização e, assim, garantir ao leitor-espectador uma imersão no mundo da representação” (JAGUARIBE, 2007, p. 27). Portanto, aceitando o emprego do efeito de real como forma de mascarar processos ficcionais, naturalizando o leitor à narrativa e gerando nele a sensação de estar enxergando o real, vem à tona a pergunta que consiste em nosso problema de pesquisa: o que emerge do emprego do efeito de real pelo jornalismo, se a práxis jornalista já se encontra legitimada como transmissora do real? A seguir, demonstraremos como analisamos este fenômeno em nossa pesquisa. 4 Nossa análise Também nos apoiamos em Mota (2007) para estabelecer uma metodologia de análise da obra 1808, nosso corpus de pesquisa. Empregamos a Análise pragmática da narrativa jornalística, metodologia de análise de textos jornalísticos pelo viés da narratologia formulada por Motta (2007), mas com determinadas adaptações metodológicas para adequar o procedimento ao nosso interesse de pesquisa. Basicamente, nossa adaptação metodológica viabilizou a observação, dentre outros fatores, de como recursos jornalísticos e literários agem em conjunto na autenticação da narrativa pelo viés do efeito de real. Para tanto, analisamos no texto momentos em que Gomes (2007) emprega estratégias de objetivação jornalística, entendidas como recursos que, segundo Motta (2007), também são geradores de efeito de real. Conforme o autor, consistem em estratégias de objetivação jornalística, por exemplo, referências precisas a datas, endereços e números, e a citação de fontes das informações, inclusive, com declarações dessas entre aspas. Tais expressões, conforme Motta (2007), contribuem para conceder ao texto jornalístico a sensação de precisão e objetividade, gerando assim efeito de real pelo viés de recursos jornalísticos. Concomitantemente, observamos os momentos em que, além de recursos jornalísticos, Gomes (2007) emprega recursos literários geradores de autenticação da narrativa – no caso, descrições pormenorizadas, como as estudadas por Barthes (1984). Para facilitar esta observação, confeccionamos um modelo de tabela, como a do exemplo abaixo (aqui apresentada em formato resumido): 154 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Tabela 1 – Capítulo 10 (O repórter Perereca) Categorias de expressões de objetivação Referência precisa a lugares Reprodução do trecho onde consta a expressão de objetivação “[...] Encarregado de organizar a recepção, o vice-rei, conde dos Arcos, deixou sua moradia, um prédio acanhado, de dois pavimentos, situado bem em frente ao cais do porto, onde hoje é a Praça 15 de Novembro. [...] Ali deveriam ser hospedados o príncipe regente e sua família” (GOMES, 2007, p. 129). “[...] Por uma casa térrea fora da cidade, o diplomata Maler, encarregado de negócios da França, pagava 800000 réis por ano, o equivalente hoje a cerca de 45000 reais. Uma excursão numa carroça puxada por Números e/ou estatísticas mulas até a Fazenda de Santa Cruz, situada a menos de cem quilômetros da capital, saia por quase 400 francos, cerca de 4000 reais em valores atuais” (GOMES, 2007, p. 136). Pormenor Reprodução do trecho onde consta o pormenor “[...] A esquadra de D. Pedro e da família real portuguesa entrou na Baía da Guanabara no começo da tarde de 7 de março de 1808. Havia sol e o céu estava azul, sem O tempo no dia da chegauma única nuvem. Um vento forte soprava do oceano para da da família real. aliviar o calor ainda sufocante do final do verão carioca” (GOMES, 2007, p. 127). Descrição das vestes de D. João por ocasião do desembarque no Rio de Janeiro, conforme Tobias Monteiro. “[...] Na descrição de outro historiador, Tobias Monteiro, ‘D. João trajava casaca comprida de gola alta, colete branco bordado, calções de cetim, botas curtas, dragonas, um enorme chapéu armado, com enfeites de arminho, e trazia na cintura um espadagão, pendente de cordões de fios de ouro com as respectivas bolas’” (GOMES, 2007, p. 132). Para cada capítulo do livro, foi apresentada uma tabela como esta. Cada uma tinha espaços para exemplos de expressões de objetivação jornalística, dentre os elencados por Mota (2007), e para descrições pormenorizadas que, conforme os conceitos de Barthes (1987), seriam potenciais geradoras de efeito de real pelo viés literário. No exemplo acima, a tabela mostra casos de expressões de objetivação que transmitem sensação de precisão e veracidade por meio da referência precisa 155 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar a lugares e do emprego de números. Também exibe descrições pormenorizadas – no caso, do dia em que a família real chegou ao Brasil e das vestes usadas por D. João na ocasião (conforme, aliás, citamos na abertura deste artigo). Por meio destas tabelas – foram 30 no total – foi possível observar e demonstrar como estratégias narrativas, tanto jornalísticas (expressões de objetivação) quanto literárias (descrições pormenorizadas), emergem atuando juntas na geração de efeito de real e, desta forma, contribuem para o advento de sensações, junto ao leitor, de credibilidade em relação aos fatos narrados pelo autor-jornalista. Observamos assim que o jornalista, ao retomar o perfil literário do primeiro jornalismo, emprega determinados artifícios literários geradores de autenticação – como o efeito de real – como forma de reforçar uma legitimidade que está mais vinculada ao advento do paradigma da objetividade, atrelado ao segundo jornalismo. Notamos que este fenômeno, visível no emprego tanto de recursos jornalísticos quanto literários, vincula-se às complexificações decorrentes do diálogo entre os sistemas jornalístico e literário, conforme apontado por Soster (2012). Trata-se de uma complexificação geradora de novos sentidos, dentre os quais percebemos, em nossa análise, uma nova oferta, mais intensa, de autenticação – estabelecendo, assim, também novos pactos de legitimidade entre jornalista e leitor. Referências bibligráficas AMARAL, Luiz. A objetividade jornalística. Porto Alegre: Sagra-D.C. Luzzatto Editores, 1996. BARTHES, Roland. O efeito de real. In.: ______. et al. Literatura e realidade: que é realismo?. Tradução de Tereza Coelho. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984. p. 87-97. BULHÕES, Marcelo Magalhães. Jornalismo e literatura em convergência. São Paulo: Ática, 2007. DÜREN, Ricardo Luís. Mais real que a realidade: a obra 1808 e o uso de elementos da narrativa literária pelo jornalismo. 2013. 204 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Letras – Leitura e Cognição), Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2013. 156 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar FLAUBERT, Gustave. Um coração singelo. Tradução de Luís de Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In.: BARTHES, R. et al. Análise estrutural da narrativa: pesquisas semiológicas. Tradução de Maria Zélia Barbosa Pinto. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 255-247. GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2007. JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. LAGE, Nilson. Linguagem jornalística. 5. ed. São Paulo: Ática, 1997. MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação e Jornalismo: a saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker, 2000. MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise pragmática da narrativa jornalística. 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A midiatização das narrativas jornalísticas na seção Diário da Revista Piauí. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 9., 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 157 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar SBPJor, 2011. CD-ROM. SOSTER, Demétrio de Azeredo. Sistemas, complexidades e dialogias: narrativas jornalísticas reconfiguradas. In: PICCININ, F.; SOSTER, D. A. (Org.). Narrativas comunicacionais complexificadas. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2012. p. 89-110. SPONHOLZ, Liriam. Jornalismo, conhecimento e objetividade: Além do espelho e das construções. Florianópolis: Insular, 2009. TODOROV, Tzvetan. Introdução. In.: BARTHES, R. et al. Literatura e realidade: que é realismo?. Tradução de Tereza Coelho. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984. p. 9-12. WOLFE, Tom. Radical chique e o novo jornalismo. Tradução de José Rubens Siqueira. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 158 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Uma perspectiva hermenêutica para os estudos de literatura: abordagem do texto Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe Joseylza Lima Silva1 1 Considerações iniciais O ensino de literatura na Educação Básica brasileira perpassa três níveis:Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. A literatura está inserida, mais precisamente, na disciplina de língua portuguesa, podendo ser trabalhada interdisciplinarmente em outras disciplinas. Com características diferenciadas, nos dois primeiros níveis educacionais, o ensino de literatura volta-se para o texto literário como suporte à formação do leitor, em que, na maioria das abordagens, o texto está fadado ao ensino de boas maneiras, dos hábitos de higiene ou tópicos gramaticais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, para o ensino fundamental afirmam que: [...] postos de forma descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. (BRASIL,1997, p.25). A citação supracitada é um arquétipo da condição do ensino de literatura. Equivocadamente, a literatura ainda é trabalhada com caráter instrucional. É de suma importância que o texto literário esteja presente 1 Mestrado em Letras pela UNISC. Especialista em Leitura e Produção Textual / Metodologia do Ensino da Língua Inglesa / Educação Especial e Práticas Inclusivas / Educação Infantil.Graduada em Letras Português/Inglês na Universidade Estadual do Maranhão - UEMA. 159 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar nas práticas de estudo em sala de aula, visto que a literatura é uma forma específica de conhecimento. Porém, torna-se necessário que o tratamento equivocado do texto literário seja afastado das atividades que os envolve. A literatura precisa ser concebida enquanto uma variável que constitui a experiência humana e que precisa ser demonstrada e discutida enquanto manifestação do cotidiano humano no mundo. Na última etapa da educação básica, no ensino médio, as práticas educacionais para o ensino de literatura mostram-se, ao longo da história, divididas em duas abordagens: teórica e histórica. A tradição teórica considera a obra como única, de valor eterno e universal; e a tradição histórica a encarano seu tempo e lugar.Fora do contexto escolar, considera-se pouco o número de afortunados que são inseridos, enquanto crianças e adolescentes, no mundo da literatura via familiares, comunidades, grupo de jovens, entre outros. Neste contexto, faz-se necessária a inserção de práticas metodológicas que levem o aluno/leitor auma postura diferenciada em relação aos estudos literários, considerando fundamentalmente a obra literária enquanto fonte de conhecimento. Palmer (2011) afirma que uma obra literária não é um objeto que se analisa e conceitualiza; mas, uma voz que deve ser ouvida, poisouvindo-a, compreendemos mais que vendo-a. É mergulhando na leitura hermenêutica das obras,sob a perspectiva de Alfredo Bosi, Richard Palmer, Costa Lima, entre outros teóricos que possam subsidiar este estudo, que sepropõe a introdução nas aulas de literatura da postura hermenêutica de leitura e, consequentemente, de um ensino e aprendizagem diferenciados. É necessário oportunizar ao aluno/leitor a transposição doensino “engessado”, da formalização da literatura, para um encontro no mundo da existência humana. Neste trabalho, a proposta de mudança de atitude em relação ao ensino e aprendizagem da literatura na educação básica, fundamenta-se a partir dos textos narrativos, que justificam a sua existência na própria existência da humanidade e, que fazem parte de todas as civilizações em quese apresentamnos mais variados gêneros textuais. A narrativa encontrada no romance alemão de Johann Wolfgang von Goetheescrita em 1774,intitulado Os sofrimentos do Jovem Werther,será palco para a discursão desta empreitada. 160 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 2 Reflexões sobre o ensino de literatura As considerações do ensino de literatura encontradas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394/96, nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e nos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio refletem acerca da visão de ensinoe precedem a realidadedas aulas de literatura nas escolas brasileiras. Conforme a lei que rege a educação brasileira, LBD, em seu CAPÍTULO II – DA EDUCAÇÃO BÁSICA, Seção I das Disposições Gerais: Art. 26 § 1ºOs currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil. (Brasil, 1996) Sucinto e implícito, o estudo de literatura está imerso nas horas destinadas às aulas de língua portuguesa. Nos dois primeiros níveis da educação brasileira, a saber: a educação infantil e o ensino fundamental, a atenção dada à literatura, ao texto literário, está relegada a informações direcionadas a hábitos, costumes, regras sociais eobjetivos gramaticais. Assim como apontam os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, para o ensino fundamental: É possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação aos textos literários, ou seja, tratálos como expedientes para servir ao ensino das boas maneiras, dos hábitos de higiene, dos deveres do cidadão, dos tópicos gramaticais, das receitas desgastadas do “prazer do texto”, etc. Postos de forma descontextualizada, tais procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. Sem que haja a percepção de que o texto literário está incorporado ao cotidiano do aluno, visto que é uma forma específica de conhecimento. (BRASIL, 1997, p.30) Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, última etapa da educação básica, referem-se à literatura enquanto conhecimento da área de Linguagens Códigos e Suas Tecnologias, incluindo-a como expressão criadora e geradora de significação de uma linguagem e do uso que se faz dos elementos e de suas regras em outras linguagens. Dividindo a carga-horária de Língua Portuguesa entre aulas de gramática e redação, a literatura é ensinada com abordagens voltadas à histo- 161 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar ricidade da escola literária, prática corriqueira na qual a grande maioria dos professores enfatizaas características históricas, sociais e ideológicas das escolas literárias; ou atividades relacionadas à vida e obras dos autores, ficando, consequentemente, essa última à disposição da crítica literária. Alguns questionamentos encontrados nos livros didáticos podem explicitar essa afirmação: Quais são as características do Classicismo? Explique a situação social, histórica e econômica do Brasil no período romântico. Qual é o assunto tratado no poema? Quem são os personagens da narrativa?Etc. Evidentemente, que tais informações não podem ser banidas dos estudos de literatura, porém, os enfoques histórico ou teórico não devem ser considerados como os únicose de maior relevância. As raízes que sustentam esta realidade estão fincadas na formação acadêmica desses professores, que antes do exercício da profissão foram alunos e que, em sua grande maioria, tiveram formação acadêmica em que sempre ao lado de uma explicação do texto literário, fazia-se a relação ao contexto histórico e social. Desta forma, as práticas de ensino acabam perpetuadas e repassadas a cada geração de estudantes.O pensamento de Todorov corrobora com essa situação do ensino de literatura na educação básica, mesmo quando elese refere ao ensino superior: Como aconteceu de o ensino de literatura na escola ter-se tornado o que é atualmente? Pode-se, inicialmente, dar a essa questão uma resposta simples: Trata-se do reflexo de uma mutação ocorrida no ensino superior. Se os professores de literatura, em sua grande maioria, adotaram essa nova ótica na escola, é porque os estudos literários evoluíram da mesma maneira na universidade: antes de serem professores, eles foram estudantes. Essa mutação ocorreu uma geração mais cedo, nos anos 1960 e 1970, e sob a bandeira do “estruturalismo” (TODOROV, 2009, p.35). O estudo de literatura para Todorov (2009)deveria, tanto na atualidade quanto em épocas passadas, ser tratado de forma complementar das abordagens interna e externa, unindo o estudo das relações dos elementos da obra com o contexto histórico, ideológico e estético. O objetivo do estudo, contudo, permaneceria acerca da compreensão do sentido das obras, conduzindo essencialmente a fatores sociais, políticos, étnicos e psíquicos, dos quais o texto literário supostamente seria a consequência desses. Outros eventos impulsionam a crise do ensino de literatura, tendo em vista a escassez de espaço consagrada a ela na sociedade: as escolas 162 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar são devoradas por textos midiáticos; na imprensa, as páginas literárias estiolam; nos lazeres, a célere ocupação das mídias digitais fragmentam o tempo disponível, antes ocupado por livros (COMPGNON, 2012). Uma vez distanciados da leitura literária, os alunos não criam afeto peloslivros, ficando expostos às leituras obrigatórias do ensino fundamental e médio, adquirindo postura, muitas vezes, de leitores de resumos. Salvo leitores juvenis que têm encontrado no mercado literário livros atraentes, uma leitura de deleite como as séries e bestsellers, os demais consideram o ato da leitura uma prática entediante, pois, requer períodos imóveis, de solidão e concentração. 3Uma perspectiva hermenêutica na literatura Não se tem neste trabalho, o objetivo de pormenorizar as fases evolutivas da teoria hermenêutica, mas sintetizar a sua história em favor da melhor compreensão do atual estado em que se encontra e que é motivo maior desta empreitada, a abordagem hermenêutica da literatura. Termo que deriva de Hermes, aquele que transmitia as mensagens dos deuses aos mortais, a Hermenêutica, em suas origens surge como atividade de anuncio textual, interpretativa, que tornava palavras acessíveis e compreensíveis. Caracterizadas pela tradução e mediação, a hermenêutica tem suas raízes no sistema educativo grego quando as obras de Homero já não eram mais compreensíveis pelos contemporâneos. O caráter de tradução de textos é modificado na Idade Média, através da hermenêutica teológica, a qual se fundava na diferenciação dos sentidos das palavras, com realce para a distinção entre o sentido literal e o figurado. Ainda que conhecida desde a antiguidade clássica, éem 1654 que surge a primeira obra intitulada Hermeneutica sacra sivemethodusexponendarumsacrarumlitterarumde J. Dannhauer. Desde então, é datada a distinção entre a hermenêutica teológica, filosófica e jurídica (LIMA, 1983). Ligada ao campo religioso, a Reforma Protestante impulsiona a história da hermenêutica ao condenar o emprego alegórico (figurado) do sentido, recuperando a interpretação correta dos textos, fossem bíblicos ou clássicos. Até o século XVIII a hermenêutica permaneceu fragmentada, enquanto disciplina, em posição de subordinação à teologia e à filologia, usada com finalidades práticas e didáticas. É com Schleiermacher (1768- 163 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 1834) que a hermenêutica é vista como teoria geral da compreensão e da interpretação, mantendo o uso do emprego normativo especialmente aos textos bíblicos. A hermenêutica geral de Schleiermacher vislumbra o historicismo, antes desconhecido, define-se como os condicionamentos temporais e espaciais que caracterizam a condição humana. Para teóricos contemporâneos, a hermenêutica pode e deve ser utilizada como fonte de interpretação a toda e qualquer obra literária. Por ser essencialmente estudo da compreensão, tarefa de compreender textos, tem como ponto central a decifração da marca humana em uma obra. O processo de decifração, de compreensão dos significados histórico e humanístico é a base desta perspectiva de estudo da obra literária. Tendo em vista o caráter analítico em que a interpretação literária encontrase, estagnada em um modo científico de pensar, que trata o texto como objeto separado de qualquer sujeito de recepção. Desta forma, Palmer reporta-se ao assunto: A interpretação literária de um modo geral é ainda essencialmente encarada como um exercício de «dissecação» conceptual (é uma imagem biológica) do objeto (ou «ser») literário. É claro que como este ser ou objeto «estético», pensamos que dissecá-lo é sempre muito mais «humanizante» do que dissecar um sapo num laboratório; no entanto, a imagem do cientista, que isola um objeto para ver como ele é feito, tornou-se o modelo dominante na arte da interpretação (PALMER, 2011, p.18) As obras literárias devem ser vistas não enquanto objetos de análise científica, dissecadas como componentes biológicos; mas como textos que falam,que foram criados por serem humanos. A compreensão de uma obra literária não é, portanto, uma forma de conhecimento científico em que foge da existência humana para o mundo dos conceitos; é um encontro histórico que recorreao ser humano no mundo e assuas experiências de vida, que se constituem em forma de conhecimento, que proporcionam ao leitor a percepção de si, da cultura, das crenças, de tudo que engloba a vida humana. É, contudo, a hermenêutica que, definida como o estudo da interpretação das obras humanas, transcende as configurações linguísticas do texto em busca do sentido que ultrapassa a superfície e as formas simbólicas, Bosi diz: Ler é colher tudo quanto vem escrito. Mas interpretar é eleger (ex-legere: escolher), na messe das possibilidades semânticas, 164 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar apenas aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer? (BOSI, 1988, p.74) Neste sentido, aponta-se para uma leitura literária do texto a partir da perspectiva hermenêutica. Pois é uma leitura de expressões e, não uma decomposição de materiais biológicos. A postura hermenêutica diante do texto propiciará ao aluno/leitor da educação básica uma possibilidade diferenciada de aprendizagem, tendo em vista que o texto sairá de uma posição estática, fora do mundo e contido apenas no interior da obra e passará a fazer parte da vida do leitor, mobilizando diversas formas de conhecimento que a obra literária é capaz de produzir. O aluno, leitor, em uma postura hermenêutica, poderá perguntar-se e responder: o que o texto quer dizer? 4 Narrativas e conhecimento O conhecimento de que se trata neste trabalho está vinculado ao texto literário, nãose trata, pois, de um conhecimento genérico, ou conceitual; masuma forma específica de conhecimentoque valida no leitor uma posição reflexiva de si e do mundo a que pertence. Parafraseando Alfredo Bosi (1988), nenhum grande texto literário pode ter sido criado fora do contexto da lembrança, memória social, de fantasia criadora, visão ideológica da história. Entende-se, portanto, que o texto literário está carregado de informações e conhecimentos que são próprios da existência humana. A tarefa de compreender textos tem como ponto central a decifração da marca humana em uma obra. Esse processo de decifração, esta compreensão dos significados histórico e humanístico é a base da perspectiva de estudo da obra literária em que se propõe um posicionamento hermenêutico para abstrair do texto literário, mais especificamente da narrativa, o conhecimento constituído por ela. Pois, a narrativa é composta por conhecimentos que proporcionam ao leitor a percepção de si, da cultura, das crenças, de tudo que engloba a vida humana. Originalmente, a palavra “narrar” deriva do vocábulo latino “narro”, verbo que significa “dar a conhecer”, “tornar conhecido”, o qual provém do adjetivo “gnarus”, que significa “sabedor”, “que conhece” (AGUIAR E SILVA, 2009). A narrativa é uma prática intrínseca à existência humana, 165 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar pois se vivemediante narrações, o acontecer da vida humana é uma sucessão de fatos vivenciados em determinados ambientes, em um espaço de tempo, e relacionados, ou não, com outros seres. Entende-se que o conhecimento contido nos textos narrativos são repletos de singularidades e, por esse motivo, são intrínsecos à condição humana. Neste sentido, necessita-se considerar uma posição diferenciada diante doensino de literatura na educação básica, apontando para uma prática na qual o leitor possa não somente reconhecer as características do período literário, da obra em si e do autor, mas que ele possa se auto constituir, reconhecendo-se diante das informações e conhecimentos oferecidos pelo texto narrativo. 5 Os sofrimentos do Jovem Werther: um modo de ler Romance alemão escrito em 1774 por Johann Wolfgang Goethe, Os sofrimentos do Jovem Werther é a obra literária selecionada para aludir à condição de leitura e aprendizagem, que se defende neste trabalho, no estudo de literatura na educação básica. Tal postura, como supracitada, requer uma fruição de conhecimentos que são admissíveis por meioda teoria hermenêutica; a compreensão da obra não é somente um entendimento de um novo sentido do texto, mas é um compreender que faz parte do ser humano como um ser existencial. Dividido entre os três anos do ensino médio, os períodos ou escolas literárias são trabalhadas em paralelo com outros conhecimentos de língua portuguesa. É no segundo ano do ensino médio, que seguindo as regras cronológicas dos períodos, os alunos tem contato com o romantismo. Os conteúdosdo período romântico são expostos concomitantemente, literatura brasileira e portuguesa, algumas poucas referências são feitas à literatura produzida no restante da Europa e América. O Romantismo é um movimento que surge internacionalmente, caracterizado pela unificação dos estilos comuns dos escritores do período compreendido entre a metade do século XVIII e a metade do século XIX. A mesma concepção de literatura, imaginação poética, natureza e sua relação com o homem, sentimentos, elementos positivos e negativos formam o plano de ideias que são as características da unificação do movimento. É, contudo, um estilo artístico individual e de época, que consistiu uma 166 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar transformação estética e poética, foi traduzido num estilo de vida e de arte e, inspirado no medievalismo, surge em oposição à tradição neoclássica setecentista. A visão de natureza, a pureza da vida, a imaginação, o sentimento, a emoção, a sensibilidade aos poucos tomam o lugar antes ocupado pelo racionalismo (COUTINHO, 2002). Divisor de águas na literatura alemã, referência mundial do Romantismo, Werther, primeira obra de sucesso de Goethe é marco da prosa moderna na Alemanha e precursor do romance oitocentista burguês na Europa.Arquétipo do poder que a literatura pode exercer na vida do leitor, a obra é qualificada como importante expressão literária, pela força que opera na sociedade, sendo responsabilizada por grande número de jovens que foram levados ao suicídio no período em que foi escrita. Escrito em cartas pelo personagem principal e o seu destinatário, Guilherme, que faz o papel de leitor. A presença de um suposto editor -personagem faz algumas intervenções ao longo do livro para explicar a compilação das cartas, esclarecer dúvidas em notas de rodapé e, para contornar o final da história. De acordo com o crítico literário Marcelo Backes, que traduziu, organizou, prefaciou e comentou a edição de março de 2001, do livro em questão, o romance é constituído por partes da autobiografia e das relações do círculo de amizade que Goethe tinha em Wetzlar,cidade alemã em que vivia quando escreveu o livro. Dividido em duas partes: a primeira retrata a história de paixão de Werther por Carlota, inspirada pela paixão de Goethe por Charlotte, esposa de seu amigo Johann Kestner; a segunda parte é o desfecho do romance, inspirada na tragédia de Karl Wilhelm Jerusalem, quetambém fazia parte do círculo de amizade de Goethe e, apaixonado pela mulher de outro membro do grupo, Herd, tem o mesmo destino incorporado porWerther.Fato curioso transcorre com Jerusalem, que comete suicídio com uma arma emprestada por Kestner, sendo o próprio Kestnerquem conta o ocorrido a Goethe por meio de uma carta. Os fatos que compõem a narrativa são descritos em cartas remetidas por Werther e endereçadas a Guilherme, seu amigo; a primeira datada em 04 de maio de 1771; em 06 de dezembro de 1772 tem-se referencia a carta que antecede a intervenção do editor; desde então algumas notas explicativas do decurso e, cartas intercalam a narrativa. O marco para o fim dos sofrimentos de Werther é uma carta endereçada a Guilherme em 167 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 20 de dezembro de 1772; outra destinada a Carlota, escrita dias antes da morte do apaixonado; entre notas e explicações do editor que relatam a sucessão de eventos até as vésperas de natal daquele ano. O enredo do romance dá-se a partir de uma viagem que Wertherrealiza no intuito de resolver uma situação de herança reclamada por sua mãe. Ao alojar-se na cidade, encanta-se pela exuberante natureza que o rodeia, dando atenção especial ao lugar chamado Wahlheim que é a princípio palco de sua felicidade e sua posteriordesventura. Cativado pela essência do lugar e das pessoas que conhece, e com quem passa a conviver, a personagem extasia-se potencializando suas pinturas e leituras. Neste estado de espírito, o jovem conhece Carlota, motivo de vida e morte desde então. Prometida a Alberto no leito de morte de sua mãe, Carlota e Werther dividem grandiosos momentos de amizade e cumplicidade, nos quais o amante torna-se até o limite do suportável apaixonado. Não correspondido em seus sentimentos, o amante resolve partir; porém não suporta a distância e, ao retornar, encontra Carlota e Alberto em matrimônio; desde então o jovem põe-se em estado de possessão, passando por fases de delírios e devaneios. A calma e serenidade voltam a pairarsobre ele somente quando entende que a morte é necessária; reflete sobre a morte de Alberto, de Carlota, mas aceita-a como indispensável a si. Compreende a morte como uma virtude, remédio para os males que o definham, suicida-se. A visão descrita por Goethe, em 1744, aponta para a natureza racional do indivíduo ao perceber quanto prejuízo pode ser causado pela falta de entendimento entre as pessoas.Atributo de questões atuais, Werther discorre sobre essa temática ao escrever a Guilherme contando-lhe sobre os negócios de família, que se tornaramobjeto de sua viagem: Resumindo, não me agrada continuar escrevendo acerca disso; diga a minha mãe que tudo haverá de acabar bem. Neste insignificante negócio só fiz comprovar mais uma vez, meu caro, que os mal-entendidos e a indolência talvez causem mais enganos no mundo do que a esperteza e a maldade. De qualquer modo as duas últimas são, por certo, mais raras (GOETHE, 2016, p.16). Outro tema que atualiza a obra e a põe em meditação é a brevidade da vida, a relação de felicidade e realização pessoal. Werther cogita a ideia que satisfaz sua mãe e seu amigo de partir com o embaixador e assumir um cargo público, tendo em vista que os mesmos consideram que ele encontra-se inativo: 168 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Tudo nessa vida acaba em bagatela e aquele que, para agradar aos outros se mata trabalhando por dinheiro, honras ou o que for, sem que a isso o mova sua própria paixão ou necessidade, é, com certeza, um tolo (GOETHE, 2016, p.60) A riqueza e a sensibilidade do vocabulário utilizado, sem dúvidas, faz de Os sofrimentos do Jovem Werther, uma obra clássica, atual. Reflexo exímio do movimento romântico, a natureza é exaltada com primor, considerada como fonte inesgotável de beleza e poesia. Os escritos transportam o leitor à cena retratada, neste extrato Werther exprime ao amigo a exuberante paisagem bucólica: Quando a bruma do vale se levanta a minha volta, e o sol altaneiro descansa sobre a abóbada escura e impenetrável da minha floresta, e apenas alguns escassos raios deslizam até o fundo do santuário, ao passo que eu, deitado no chão entre a relva alta, na encosta de um riacho, descubro no chão mil plantinhas desconhecidas...Quando sinto mais perto de meu coração a existência desse minúsculo mundo que a formiga por entre a relva, essa incontável multidão de ínfimos vermes e insetinhos de todas as formas e imagino a presença do Todo-poderoso, que nos criou a sua imagem e semelhança e o hálito do Todo-amado que nos leva consigo e nos ampara a pairar em eternas delícias...(GOETHE, 2016, p.18) A delicadeza e a efervescência do amor sentido pelo jovem o faz um homem em ebulição, mostra-se desconcentrado, atormentado pela esperança de viver este amor e, pela certeza da não concretização do mesmo. Muitas vezes levado ao extremo com seu temperamento fervoroso trava batalhas no intento de convencer os demais de suas ideologias. Assim o fez, ao denegar, o mau humor, versado em diálogos com Carlota e amigos: Citai-me um só homem que, adoecendo de mau humor, seja, não obstante, bravo o suficiente para dissimulá-lo, guarda-lo só para si, sem acabar com a festa dos que o rodeiam! Não será o mau humor muito antes uma insatisfação íntima com a nossa própria indignidade, um descontentamento com nós mesmos, que sempre vem atado a uma inveja, fomentada por uma vaidade insana? Vemos homens felizes cuja felicidade não é obra nossa e isso nos resulta insuportável. (GOETHE, 2016, p.51) A expressividade utilizada para retratar a mulher caracteriza-a como um ser perfeito, celestial, de beleza e qualidades indizíveis, assim é Carlota para Werther. Ele se considerao único a ter sensibilidade, devoção, e capacidade para amá-la e usufruir de sua existência, como se observa a seguir: 169 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Ela é sagrada para mim. Todo meu desejo emudece em sua presença. Não sei jamais o que se passa comigo quando estou ao seu lado; parece que a minha alma se revolve em todos os meus nervos... Há uma melodia que ela toca no piano com a força de um anjo, tão sensível e tão espirituosa! É sua ária favorita! E ela livra-me de todas as mágoas, de todas as confusões, de todas as manias, apenas ouço a primeira nota. (GOETHE, 2016, p.58) A ausência física e a suplementação são deveras retratadas ao longo do romance. Werther exprime sua dor e consolo através de personagens secundários, que durante a narrativa estiveram diante da amada, tocando-a, em diálogos, ou simplesmente compartilharam de sua presença. A exemplo, um canário, pássaro que Carlota considera como novo amigo, que ao alimentá-lo com miolo de pão e, beijá-lo, o bico sugere que Werther também o faça. Desta forma, o apaixonado tem sua imaginação incendiada passando a venerar também a ave. A citação a seguir manifesta essa assertiva: Falam que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve os seus raios e reluz por algum tempo durante a noite. Dava-se o mesmo comigo e aquele rapaz. A lembrança de que os olhos de Carlota haviam pousado em seu rosto, em suas faces, nos botões de sua casaca e na gola de seu sobretudo, tornava-o tão querido, tão sagrado para mim! Naquele momento não daria aquele rapaz nem por mil táleres! Me sentia tão bem em sua presença...(GOETHE, 2016, p.59) A natureza humana, para o amante, tem seus limites, pode suportar até certo ponto a dor, a alegria, o desespero; mas passado do ponto ela sucumbe. Se o homem é fraco ou forte, não é a questão maior; mas simse pode suportar o peso dos próprios sentimentos, quer físicos, quer morais. Desta forma,Alberto reporta-se a Werther como irracional ao perceber manejar uma pistola, apontando-a para a própria cabeça: “Essas são mais algumas das tuas extravagancias”, disse Alberto. “Exageras tudo e, por certo, cometes pelo menos o erro de aceitar o suicídio, que é do que estamos falando agora, como se fosse uma grande ação, quando não é nada mais do que simplesmente fraqueza. Pois, para ser sincero, é mais fácil morrer do que suportar com firmeza uma vida de tormentos.” (GOETHE, 2016, p.69) O pessimismo marcante do apaixonado jovem diante das incertezas do futuro mostram um ser perdido, sem perspectivas para o tra- 170 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar balho, a arte; para os livros, a leitura; perde-se para si e dentro de si. Demonstra em toda a narrativa a convicção da transitoriedade da vida, afirma, pois, que o homem é tão efêmero que mesmo tendo certeza que existe e, consciente de que o único lugar que poderá permanecer por mais tempo é na memória, ainda assim, será por pouco tempo e logo deixará de existir. Em vão estendo meus braços para ela, de manhã, ao despertar de um penoso sonho; em vão a procuro à noite em minha cama, quando um devaneio feliz e puro me iludiu, quando julgava estar sentado ao lado dela na relva, e lhe pegava na mão cobrindo-a de mil beijos. Ah, quando, ainda meio tonto de sono, a procuro e a seguir desperto, uma torrente de lágrimas brota do meu coração e choro, desolado com o futuro sombrio a minha frete! (GOETHE, 2016, p.77) A desilusão amorosa sentida por Werther fá-lo transitar pelas extremidades das sensações, ora carrega no peito a fonte de todas as venturas, ora a forte de todas as misérias. A angústia da desilusão, sentimento recorrente, exprime um ser que dantes bracejava uma inesgotável sensibilidade, que via surgir um paraíso diante de si em tudo; contudo, desenganado mostra-se com um coração morto, que já não sente nenhum encanto pela vida. À noite, decido que vou gozar o nascer do sol no dia seguinte, mas não consigo levantar da cama. De dia espero ficar alegre com o luar, mas à noite fico trancado em meu quarto. Já não sei mais por que levanto, já não sei mais por que vou dormir. O fermento que pôs minha vida em movimento falta; o estímulo que me encorajava à noite já não existe, aquele que me despertava pela manhã se foi (GOETHE, 2016, p.94). A interpretação da obra de Goethe a que se trata nesta proposta, traz ao leitor uma profunda reflexão da condição humana, levando em conta os campos social, físico e psicológico, em que o ser humano pode encontrar-se nos diversos momentos da vida. Necessita-se pontuar a atualização da obra, que, em diversos trechos,Werther, a principal personagem, recai em reflexões propondo uma minuciosa compreensão das atitudes do homem, que ora age por instinto, ora por obediência às regras sociais. A grandeza da escrita, os vocábulos, as metáforas e sensações propiciadas pela narrativa são notáveis fontes de conhecimento sobre o movimento romântico. 171 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS As considerações feitas no percurso deste trabalho têm como pretensão um direcionamento, uma atitude diferenciada ante ao estudo e ensino de literatura na educação básica. Almeja-se com esse discurso contribuir com uma prática de estudos na qual levem em consideração os conhecimentos vinculados ao texto, mais precisamente, os conhecimentos que o leitor, em atividade, possa abstrair;retirando-se de uma condição estática de conhecimento na qual se privilegiaa historicidade do período literário, as características da escrita relacionada e, a vida e obras de autores com a presunção de classificá-los ou qualificá-los.Optou-se por um romance de grande expressão para a sociedade, de época e atual, para interpretar segundo a visãohermenêutica. Sendo essa, a base teórica para tal anseio, através dela,manifestam-se as possíveis leituras e aprendizagens que podem ocorrernas práticas metodológicas para o ensino de literatura. A partir deste postulado, pondera-se que a teoria hermenêutica permite ao ensino de literatura, além do conhecimento histórico e teórico, o conhecimento da obra em si, prestigiando o que o leitor sente e imagina, pois, ao ler o texto, o leitor se lê e não apenas lê o que está escrito. Respondendo, por fim, o que quer dizer o texto. Referências BOSI, Alfredo. A interpretação da obra literária. In: ____. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideologia. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. COMPAGNON, Antonie. Literatura para quê? Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2012. COSTA LIMA, L. Hermenêutica e abordagem literária. In: Teoria da Literatura em suas fontes. Vol. I. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983. COUTINHO, Afrânio (Dir.); COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil. 6.ed. São Paulo: Global, 2002. v.3 GOETHE, Johann Wolfgang. Os sofrimentos do Jovem Werther.Porto Alegre: L&PM, 2016. 172 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise crítica da narrativa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003. PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 2011. TODOROV, Tzvetan. A Literatura em perigo. Rio de Janeiro: DFEL, 2009. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. 173 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar A audiodescrição como estratégia narrativa para um jornalismo acessível1 Daiana Stockey Carpes2 Introdução O processo de inclusão de pessoas com deficiência é um dos grandes desafios da sociedade atual. Em se tratando de inclusão comunicacional, os cegos têm grande dificuldade em obter informações, pois existem poucos produtos adaptados, sejam eles em braile ou audiodescritos. Uma forma de promover a acessibilidade comunicacional é por meio da audiodescrição. Assim, a audiodescrição no jornalismo, surge como forma de inclusão comunicacional dos cegos na sociedade. Tavares (2013, p. 11) explica que esse recurso é uma técnica que traduz imagens em sons e que permite a uma pessoa cega ou com baixa visão compreender o que está contido no visual. A audiodescrição pode ser gravada, ao vivo ou escrita. Segundo Lima et al. (2009), a audiodescrição vem constituir-se numa ferramenta de acesso tanto para o lazer quanto para a educação e informação. Se para aqueles que possuem visão está reservado o acesso às informações visuais, estas devem, igualmente, serem disponibilizadas aos cegos. De outra forma, essas pessoas estarão novamente sendo discriminadas por razão de deficiência. Se a notícia é uma forma de narrativa, então, a audiodescrição dessa notícia também será uma forma de narrativa. Entende-se narrativas 1 Artigo desenvolvido para a disciplina Jornalismo e Literatura: Narrativas Complexificadas ministrado pelo professor Demétrio de Azeredo Soster, do PPG Letras da Unisc (2015). 2 Jornalista e mestranda no programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul. Bolsista BIPPS-Unisc. 174 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar como formas de narrações, e a audiodescrição é uma forma de narrativa acessível aos cegos. Narrar é uma manifestação que acompanha o homem desde sua origem e está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades. Atualmente, as narrativas podem ser encontradas em novelas, filmes de cinema, peças de teatro, notícias de jornais, gibis, desenhos animados, videogames, entre tantos outros. Motta (2013, p. 27) identifica seis razões pelas quais o estudo da narrativa é importante: para compreender quem somos; para entender como os homens criam representações e apresentações do mundo; para esclarecer as diferenças entre representações factuais e fictícias do mundo; para enunciar fenômenos tão diferentes como a literatura ficcional e a historiografia fática; para identificar como os indivíduos e sociedades cotejam o excepcional e o consuetudinário a fim de tornar familiar o que antes era não familiar e por último, conclui: “Precisamos estuda-las para melhor contá-las (story telling)”. Dessa forma, pretende-se, com este trabalho, discutir a comunicação acessível a partir de produtos laboratoriais, como meios para garantir a inclusão, a cidadania e a promoção do desenvolvimento da informação por meio da narrativa, uma vez que ela é considerada uma estratégia organizadora do discurso jornalístico. Acessibilidade comunicacional: um direito de todos Quando se fala de inclusão, seja ela física, intelectual, auditiva, visual ou múltipla, nos deparamos com a questão da acessibilidade. A inclusão só é possível se tiver acessibilidade. Conforme a Portaria da Lei nº 310 de 27 de julho de 2006, acessibilidade é a condição para utilização, com segurança e autonomia, dos serviços, dos dispositivos, dos sistemas e dos meios de comunicação e de informação, por pessoas com deficiências auditiva, visual ou intelectual. O Manual da Mídia Legal (2002, p. 16) aponta alguns aspectos que definem inclusão: - Inserção total e incondicional (crianças com deficiência não precisam “se preparar” para ir à escola regular); - Exige rupturas nos sistemas; - Mudanças que beneficiam toda e qualquer pessoa (não se sabe quem “ganha” mais; todas ganham); 175 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar - Exige transformações profundas para que a sociedade se adapte para atender às necessidades das pessoas com deficiência e, com isso, se torna mais atenta às necessidades de todos; - Defende o direito de todas as pessoas, com e sem deficiência; - Traz para dentro dos sistemas os grupos de “excluídos” e, paralelamente, transforma esses sistemas para que se tornem de qualidade para todos; - O adjetivo inclusivo é usado quando se busca qualidade para todas as pessoas com e sem deficiência (escola inclusiva, trabalho inclusivo, lazer inclusivo, etc); - Valoriza a individualidade de pessoas com deficiência (pessoas com deficiência podem ou não ser bons funcionários; podem ou não ser carinhosos etc); - Não quer disfarçar as limitações, porque elas são reais; - Não se caracteriza apenas pela presença de pessoas com e sem deficiência em um mesmo ambiente; - A partir da certeza de que todos somos diferentes, não existem “os especiais”, “os normais”, “os excepcionais”, o que existe são pessoas com deficiência. É por meio das leis que o Governo Federal lança medidas de inclusão, que se voltam às questões de acessibilidade arquitetônica, atitudinal, comunicacional, instrumental, metodológica, tecnológica e técnica. Hoje, o Brasil possui leis que garantem a acessibilidade e o direito à informação. Em 2015, foi sancionada a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência3, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, na qual apresenta uma preocupação em promover a inclusão comunicação. No título IV – da Ciência e Tecnologia, desta lei apresenta: Art. 78. Devem ser estimulados a pesquisa, o desenvolvimento, a inovação e a difusão de tecnologias voltadas para ampliar o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias da informação e comunicação e às tecnologias sociais. Parágrafo único. Serão estimulados, em especial: Parágrafo único: I - o emprego de tecnologias da informação e comunicação como instrumento de superação de limitações funcionais e de barreiras à comunicação, à informação, à educação e ao entretenimento da pessoa com deficiência. Não basta que a lei assegure os direitos à acessibilidade. É imprescindível que as escolas e as universidades adotem essas medidas na estrutura curricular dos cursos, como forma de aprendizagem e conscientização dos alunos. “Do contrário, o direito de comunicar se esvazia, na 3 Lei 13.146 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. 176 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar medida em que o seu exercício fica limitado aos poucos instruídos, capazes de formular mensagens, recheá-las de conteúdos e disseminá-las adequadamente” (MELO, 1986, p. 69). Pelo viés da educação, o Ministério da Educação (MEC) inseriu a acessibilidade em diversos aspectos nos cursos superiores. Assim, o órgão publicou em junho de 2015, o Instrumento de Avaliação de Cursos de Graduação presencial e a distância4, no qual apresenta a acessibilidade como critério de avaliação em diversos quesitos. Como: Estrutura curricular: A estrutura curricular contempla, em uma análise sistêmica e global, os aspectos: flexibilidade, interdisciplinaridade, acessibilidade pedagógica5 e atitudinal6, articulação da teoria com a prática. Conteúdos curriculares: Possibilitar o desenvolvimento do perfil profissional do egresso, considerando, em uma análise sistêmica e global, os aspectos: atualização, adequação das cargas horárias (em horas), adequação da bibliografia, abordagem de conteúdos referentes às relações étnico-raciais, direitos humanos, políticas ambientais, bem como acessibilidade. Metodologia: Quando as atividades pedagógicas apresentam excelente coerência com a metodologia prevista/implantada, inclusive em relação aos aspectos referentes à acessibilidade pedagógica e atitudinal. Além dos quesitos citados acima, o documento propõe acessibilidade em outros aspectos, como: apoio ao discente, tecnologias de informação e comunicação – no processo ensino aprendizagem, material didático institucional, infraestrutura da universidade, equipamentos de informática, laboratórios didáticos especializados. Com o intuído de instruir os futuros profissionais, o MEC propõem inúmeras mudanças no currículo dos cursos de graduação. Para Melo (1986, p. 69) a trajetória do povo brasileiro é marcada por dois direitos basilares: o direito à educação e à informação. 4 Este Instrumento subsidia os atos autorizativos de cursos – autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento – nos graus de tecnólogo, de licenciatura e de bacharelado para a modalidade presencial e a distância. De acordo com o art. 1º da Portaria Normativa 40/2007, consolidada em 29 de dezembro de 2010. 5 Ausência de barreiras nas metodologias e técnicas de estudo. Está relacionada diretamente à concepção subjacente à atuação docente: a forma como os professores concebem conhecimento, aprendizagem, avaliação e inclusão educacional irá determinar, ou não, a remoção das barreiras pedagógicas. 6 Refere-se à percepção do outro sem preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminações. Todos os demais tipos de acessibilidade estão relacionados a essa, pois é a atitude da pessoa que impulsiona a remoção de barreiras 177 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Comunicar, expressar livremente fatos e ideias, pressupõe o domínio do código e o acesso aos conteúdos que permitirão produzir mensagens e difundi-las e divulga-las. Logo, pressupõe o manejo de informações. E tal atividade se estriba na instrução básica, no conhecimento sistematizado, no treinamento para aprendizagem continuada (MELO, 1986, p.69). A UNESCO (1980, p. 230) também está engajada na causa em prol da comunicação a todos, inclusive considera a comunicação como um aspecto dos direitos humanos. A organização recomenda àqueles que trabalham com os meios de informação, que eles devem contribuir para a realização dos direitos humanos, tanto individuais como coletivos, colaborando dessa forma, que nenhum direito humano seja violado. A UNESCO ainda ressalta que todos têm o direito de comunicar. Para garantir o direito de comunicar é preciso dedicar todos os recursos tecnológicos de comunicação a atender às necessidades da humanidade a esse respeito. Audiodescrição como forma de inclusão comunicacional Um meio de promover a inclusão comunicacional àqueles que possuem cegueira, está na oferta de um recurso tradutório, da imagem em palavras, conhecido como audiodescrição. Esse recurso é um direito constitucional da pessoa com deficiência visual, uma vez que a todos é devido o direito à informação, à educação e ao lazer. Conforme Franco e Silva (2010), a audiodescrição consiste na transformação de imagens em palavras para que informações-chave sejam transmitidas visualmente, não passem despercebidas e possam também ser acessadas por pessoas cegas ou com baixa visão. O recurso, cujo objetivo é tornar os mais variados tipos de materiais audiovisuais acessíveis a pessoas não videntes. “A audiodescrição não é meramente uma descrição falada, e nem uma descrição exclusivamente transmitida por áudio, como o nome pode sugerir” (LIMA e LIMA, 2013). Assim, este recurso é uma forma de tradução, e, enquanto tradução, pode ser feita oralmente ou também por escrito. Couto salienta a importância deste recurso ser reconhecido: A noção da audiodescrição como tradução é de fundamental importância para o seu reconhecimento como trabalho intelectual, pois vai muito além do que a descrição de informações percebi- 178 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar das pela visão. Questões técnicas, linguísticas e fílmicas precisam ser observadas para que se possa realizar a audiodescrição. As respostas a essas questões dependem do gênero da obra a ser audiodescrita (Couto, 2014, p. 17). A audiodescrição é um recurso de acessibilidade e, uma atividade de mediação linguística, que transforma o visual em verbal, abrindo possibilidades maiores de acesso à cultura e à informação, contribuindo para a inclusão cultural, social e escolar. A reflexão a respeito dessas barreiras é pertinente para remoção de entraves à construção de uma sociedade justa e sem discriminação. Franco (2007, p. 171) demonstrou por meio de sua pesquisa exploratória, que a presença do recurso da audiodescrição facilitou a recepção dos cegos, ao assistirem um filme de curta metragem. Se pensarmos no jornalismo impresso, os cegos teriam um entendimento maior do contexto da história narrada, uma vez que fotos e ilustrações recebem o recurso da audiodescrição. Jornalismo em audiodescrição: uma forma de uma narrativa inclusiva? Preocupado com a inserção das pessoas com deficiência visual na sociedade, o curso de Jornalismo da UNISC implantou a audiodescrição nos produtos jornalísticos laboratoriais, produzido nas disciplinas de Jornalismo Impresso e Jornalismo de Revista, ambas ministradas pelo professor Demétrio de Azeredo Soster. A iniciativa possibilita uma melhora na qualidade de vida dos cegos, além de torná-los mais autônomos e informados. Por outro lado, traz aos acadêmicos a questão social, uma vez que desperta a consciência social, a necessidade em pensar produtos comunicacionais acessíveis. Aliado a isso, contribui para divulgar conteúdos jornalísticos a uma parcela da população que não teria acesso. Pensar em um produto jornalístico acessível é uma tarefa difícil, exige preparo, atenção e criatividade. A dificuldade se dá, principalmente, devido ao despreparo desses profissionais para lidar com temas preponderantes, como educação, saúde, violência e inclusão. As faculdades de comunicação raramente oferecem disciplinas que qualifiquem os futuros comunicadores para compreender ou tratar dessas questões. 179 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Por outro lado, aqueles que atuam no campo dos direitos, sejam eles juristas ou ativistas, que, enquanto fontes privilegiadas, poderiam estabelecer um diálogo sistemático e educativo com a mídia, pouco sabem lidar com os processos e os profissionais da comunicação. Assim, o que poderia se tornar uma aliança estratégica acaba por se constituir em um grande fosso de incompreensão (ESCOLA DE GENTE, 2002, p. 100). Pensar a audiodescrição no jornalismo laboratorial impresso infere em pensar nas imagens contidas nesse meio. Ou seja, traduzir as fotos jornalísticas e as ilustrações para o áudio. Para Buitoni (2011, p. 90) a foto jornalística está vinculada a valores informativos e/ou opinativos e à veiculação num órgão dotado de periodicidade. Além disso, a fotografia possui relevância social e política e possui relação com a atualidade com um caráter noticioso. A partir disso, percebemos a importância em audiodescrever as imagens do impresso. A narratividade que pode estar presente numa foto isolada é a mesma potencialidade narrativa de um fragmento de ação. O jornalismo tem uma natureza intrinsecamente narrativa, pois relata acontecimentos e ações de pessoas, animais e meio ambiente. Daí podemos inferir que uma foto que apresenta uma narratividade latente estará mais apta a fazer interface com o texto (BUITONI, 2011, p. 58). Sem dúvida, o jornalismo impresso utiliza a fotografia como uma ferramenta para o testemunho ocular, um registro da realidade e, sobretudo a marca da credibilidade. Quando as imagens não possuem acessibilidade aos cegos, o veículo de comunicação está excluindo essa parcela da população em ter acesso a essa informação. Assim, a audiodescrição no jornalismo impresso pode ser uma alternativa para garantir o acesso aos deficientes visuais à comunicação. José Marques de Melo (2007) desafia a nova geração dos estudiosos do jornalismo a buscarem alternativas pedagógicas que correspondam aqueles que não possuem acesso às informações. Para o autor os pesquisadores da área possuem o dever de repensar as estruturas de ensino, pesquisa e extensão, tornando o espaço universitário em um instrumento de transformação social, bem como da elevação do nível cognitivo daqueles que estão excluídos da sociedade de consumo. “Nossa meta é construir um jornalismo radicalmente inclusivo” (MELO, 2007). 180 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar A narrativa jornalística e a audiodescrição Quando uma matéria jornalística impressa recebe o recurso da audiodescrição, a distância entre o leitor/ouvinte e a informação veiculada é minimizada, de forma que será possível aos cegos ter conhecimento do que foi publicado no periódico. Conforme Mascarenhas (2013, p. 56) a audiodescrição possui natureza narrativa, uma vez que compreende a descrição de uma sucessão de fatos visuais. Por esse viés, percebemos a intenção da narrativa: Quem narra tem algum propósito ao narrar, nenhuma narrativa é ingênua. A análise deve, portanto, compreender as estratégias e intenções textuais do narrador, por um lado, e o reconhecimento (ou não) das marcas do texto e as interpretações criativas do receptor, por outro lado. A ênfase está no ato de fala, na dinâmica de reciprocidade, na pragmática comunicativa, não na narrativa em si mesma (Motta, 2005, p.3). Quando se atinge o propósito da narrativa, ou melhor, quando afirmamos que a entendemos, Scholes e Kellogg (1957, p. 56) explicam que nós encontramos um relacionamento ou conjunto de relacionamentos satisfatórios entre o mundo real e o da ficção. Nesse contexto, Barthes (2008, p. 48) sugere que, no interior da narrativa, há uma grande função de troca (repartida entre um doador e um beneficiário), para que efetivamente a narrativa atinja a sua função de entendimento. Trazendo essa intenção para a linha do jornalismo; a notícia é uma forma de narrativa. E o grande propósito do repórter que escreveu essa matéria é que seu leitor o leia e, desta forma, entenda o que está posto no jornal. Porém, quando esse possível leitor é cego, a narrativa do impresso passa a ser incompreendida. Então, a audiodescrição cumpre esse propósito e a narrativa que foi veiculada no jornal impresso e que recebeu esse recurso é recebida e compreendida pelo cego. Fechando assim, o ciclo da narrativa, que tem por um lado o narrador que conseguiu contar a sua história e por outro, o narratário7, que recebeu e principalmente, entendeu essa narrativa. Desta forma, surge a comunicação narrativa. 7 O narratário é uma entidade fictícia, um “ser de papel” com existência pluralmente textual, dependendo diretamente do outro “ser de papel”, o narrador que se lhe dirige de forma expressa ou tática (REIS E LOPES, 1988, p. 63). 181 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Assim, as narrativas trazem um propósito em si: levar a mensagem compreendida e entendida ao seu destinatário, sem ruídos e interferências; é seu objetivo final. Logo, as narrativas da audiodescrição estão inseridas como uma forma de promover a acessibilidade, uma vez que os cegos não teriam as informações de determinados produtos visuais, salvo com a ajuda desse recurso. Conclusão Percebe-se que o jornalismo passou e está passando por mutações ao longo de sua história. Já não basta simplesmente noticiar os fatos, é preciso garantir que todos tenham o mesmo acesso a informação. Se há mudança no consumo da notícia, trazidas pelas novas tecnologias, é imprescindível pensar na maneira de produzir e apresentar os conteúdos jornalísticos. A mídia precisa ser reeducada sistematicamente na abordagem do tema. A importância e a relação da linguagem e da comunicação na formação do sujeito crítico e participativo são claras e notórias, que não podem ser negadas às pessoas com deficiência visual. Portanto, o recurso da audiodescrição precisa ser valorizado e aproveitado para que a existência destas pessoas seja cada vez mais produtiva e significativa enquanto cidadãos. Pensar no recurso da audiodescrição é proporcionar aos cegos acesso a uma sociedade que antes não tinham conhecimento. Por outro lado, as universidades não podem esquecer os problemas sociais e nem se esquivar de contribuir para melhorar a qualidade de vida daqueles que possuem alguma deficiência. O compartilhamento de materiais jornalísticos por meio do recurso da audiodescrição é um desafio que tem como meta tornar possível a experiência estética pelo sentido da visão, às pessoas com deficiência visual. A audiodescrição no jornalismo impresso surge para solucionar uma coluna descritiva, dispondo de informações obtidas nas imagens inseridas no impresso. Acreditamos que iniciativas de acessibilidade voltadas à autonomia comunicacional e o bem estar das pessoas com deficiência visual se tornarão em breve uma realidade nas empresas jornalísticas, por essa razão se dá a importância dessa pesquisa, uma vez 182 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar que dialoga com o jornalismo laboratorial e a consciência dos futuros jornalistas. Daí sua relevância, que visa discutir a inserção de produtos comunicacionais voltados aos cegos. Cremos que esta pesquisa seja de grande valia para a difusão da audiodescrição no jornalismo laboratorial. E entendemos que promover materiais jornalísticos acessíveis é uma forma de fazer um jornalismo inclusivo. Referências BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. IN: BARTHES, Roland, et al. Análise estrutural da narrativa. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. BUITONI, Dulcília Schroeder. Fotografia e jornalismo: a informação pela imagem. São Paulo: Saraiva, 2011. BRASIL. Portaria 310 de 27 de junho de 2006. Portaria que aprova a Norma nº 001/2006 - Recursos de acessibilidade, para pessoas com deficiência, na programação veiculada nos serviços de radiodifusão de sons e imagens e de retransmissão de televisão. Ministério das Comunicações. Disponível em: Disponível em: <http://www.mc.gov. br/portarias/24680-portaria-n-310-de-27-de-junho-de-2006>. Acesso em: set. 2015. ______. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Presidência da República – Casa Civil. 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Dissertação (Programa de PósGraduação em Estudos de Tradução) – Universidade de Brasília, Brasília, 2014. UNESCO. Um Mundo. Muitas Vozes – Comunicação e informação na nossa época. Rio: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1983. 185 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar Estratégias narrativas em entrevistas pingue-pongue: uma análise de “As 30 melhores entrevistas de Playboy”1 Pedro Piccoli Garcia2 1 Introdução O presente artigo discute a utilização de recursos textuais utilizados em entrevistas jornalísticas do formato pingue-pongue. A atenção recairá sobre certo padrão de entrevistas, praticado principalmente por revistas, em que é recorrente o emprego de uma série de artifícios textuais na composição do relato da conversa face a face. Buscaremos analisar esses artifícios enquanto estratégias discursivas adotadas com propósitos específicos. Para tanto, seguiremos um percurso que iniciará com uma contextualização teórica por meio da qual lançaremos um primeiro olhar sobre a entrevista pingue-pongue na sua perspectiva conceitual e histórica. Essa contextualização também abarcará uma conexão entre os estudos sobre entrevista e os estudos sobre narrativa e narrativa jornalística. Esse escopo nos permitirá, em um segundo momento, partir para um estudo de caso, cujo recorte será a coletânea As 30 melhores entrevistas de Playboy. Essa análise consistirá em dois movimentos: no primeiro, serão identificados os recursos narrativos recorrentes nas entrevistas, enquanto no segundo se refletirá a respeito desses recursos e sobre as causas e efeitos de seu uso. 1 Trabalho apresentado no DT 1 – Jornalismo do XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul realizado de 26 a 28 de maio de 2016. 2 Graduado em Comunicação Social – Jornalismo e mestrando em Letras pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). E-mail: [email protected] 186 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar 2 Entrevista pingue-pongue: olhar sobre o indivíduo A bibliografia clássica sobre entrevista a define como uma técnica de interação social que possui diversas possíveis aplicações. Conforme Medina (1990), todos os profissionais que tratam de problemas humanos lidam, de forma ou outra, com a entrevista – médicos, juízes, funcionários de departamentos de pessoal de empresas, assistentes sociais, pesquisadores, psicanalistas e, claro, jornalistas. No caso do jornalismo, a entrevista é, sem dúvida, um dos elementos fundamentais, já que constitui a principal ferramenta de obtenção de informações junto a fontes humanas – informações essas que servirão de matéria-prima para elaboração de notícias, reportagens, etc. O que interessa a este artigo, porém, não é propriamente a entrevista enquanto “meio” e, sim, enquanto “fim” ou “produto” da atividade jornalística. Silva (2007) delimita três concepções para a entrevista jornalística. São elas: a entrevista como procedimento de apuração de informações (que consiste na interação entre jornalista e entrevistado), a entrevista publicada em jornais e revistas (em citações diretas inseridas em notícias e reportagens ou no formato pingue-pongue) e ainda a entrevista na modalidade oral (praticada nas mídias televisiva e radiofônica). O que se discute aqui é a segunda concepção, ou seja, a entrevista enquanto formato praticado em veículos impressos. O termo entrevista pingue-pongue (por alguns chamada apenas de entrevista pergunta-e-resposta ou ainda P-R) refere-se a um padrão de composição textual em que são reproduzidas as perguntas do jornalista e as respostas do entrevistado (SILVA, 2007). Difere-se, portanto, do que acontece na notícia e reportagem, em que as citações diretas de entrevistados aparecem de forma esporádica e servem apenas como “acessório” ao texto.3 A presença desse formato, lembra Silva (2007), é constante e significativa, sobretudo em revistas. Se observarmos a realidade brasileira, todas as revistas da atualidade de maior circulação no País dedicam espaços fixos às entrevistas pingue-pongue. Em alguns casos, essas seções são tradicionais e compõem a “identidade” das publicações - exemplos 3 De acordo com as proposições teóricas clássicas sobre gêneros jornalísticos, de Beltrão (1980) e Marques de Melo (2003), a entrevista está inserida no gênero jornalismo informativo. 187 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar disso são as seções “Páginas Amarelas”, da Veja, e “Páginas Vermelhas”, da IstoÉ.4 Também é fácil notar a presença marcante de entrevistas pingue -pongue em revistas especializadas, principalmente as que se ocupam da área de cultura e variedades. Um exemplo é a revista Bravo!, hoje extinta. Na esfera internacional, vale citar publicações como Le Monde, Paris Review, Rolling Stone e Playboy (as duas últimas, também nas suas versões brasileiras). De qualquer forma, nos dizeres de Costa (2010, p. 51), a entrevista pingue-pongue é uma “unidade textual legitimada”. Nas entrevistas pingue-pongue, o conteúdo temático é o entrevistado e o seu discurso. Diz Souza (2001, p. 236) que a maioria das entrevistas pingue-pongue se presta a “revelar a personalidade de um ator social ou a dar a conhecer o seu ponto de vista sobre uma realidade” (p. 236). Em raciocínio semelhante, Silva (2007, p. 84) afirma que, na entrevista pingue -pongue, “o pensamento do entrevistado é contemplado em sua totalidade, constituindo, então, um espaço razoável para esboçar o seu perfil”. “[...] podemos dizer que o projeto discursivo do autor da entrevista pingue-pongue é evidenciar o entrevistado e seu “dizer”, o que equivale a dizer que a finalidade discursiva do gênero está intrinsecamente ligada ao objeto do discurso, que é o entrevistado e seu discurso. (SILVA, 2007, p. 126) Para Silva (2007, p. 127), a presença de entrevistas pingue-pongue em jornais e revistas produz o que chama de “efeito de pluralidade ideológica”. Ao inserir, no conteúdo da publicação, a “voz” de pessoas que não integram o corpo de profissionais da empresa, é como se o órgão estivesse democratizando os espaços de fala. Muhlhaus (2007) vai ao encontro dessa reflexão ao afirmar que a entrevista é um dos recursos por meio dos quais a mídia constrói modelos de identidades e alimenta o leque de subjetividades oferecido à sociedade. 3 Perspectiva histórica O marco inaugural deste formato pode ser considerado a entrevista feita por Horace Greeley com Brigham Young, fundador da Igreja Mór4 Por outro lado, é importante ressaltar que alguns jornais também têm aberto, nos últimos anos, espaços para esse formato – é o caso, por exemplo, de Zero Hora, líder em circulação no Estado do Rio Grande do Sul, que em 2013 inaugurou a seção “Com a Palavra”, passando a ocupar três páginas de suas edições dominicais com entrevistas. 188 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar mon, publicada em 20 de agosto de 1859 pelo jornal New York Tribune (BELTRÃO, 1985). Essa, possivelmente, foi a primeira vez que uma entrevista foi publicada no formato “pergunta-e-resposta”. De acordo com Altman (1995), não é por acaso que o formato começou a aparecer nos jornais nesse período: O surgimento da entrevista no final do século XIX coincidiu com um período de grandes transformações da sociedade: o mercado de massa pressupunha interesses mais vastos, tão vastos como as ideias de Marx e os romances de Robert Louis Stevenson. Além disso, a nova sociedade burguesa começava a produzir celebridades com velocidade inédita. Elas existiam aos olhos do cidadão comum – numa época em que a televisão era sonho – apenas nos jornais, entre perguntas e respostas. (p. 19) De fato, segundo Marcondes Filho (2000), é exatamente na segunda metade do século 19 que os jornais começam a se constituir como negócios que precisam gerar lucro para se manter e, portanto, passam a produzir conteúdo sintonizados com as exigências do capital5. Um novo impulso às entrevistas pingue-pongue virá na segunda metade do século 20. De acordo com Medina (1990), é principalmente a partir da década de 1950 que os veículos começam a valorizar a humanização das fontes de informação. Nesse período, consagraram-se muitas entrevistas e entrevistadores pelo mundo. Um exemplo é a jornalista italiana Oriana Fallaci, considerada, conforme Altman (1995), uma das mais contundentes entrevistadoras de todos os tempos. No Brasil, relata Medina (1990), experiências interessantes foram observadas a partir desta época em veículos como O Cruzeiro, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Quatro Rodas, Realidade e Bondinho. Aliás, o jornalismo brasileiro também coleciona notórias entrevistas. É o caso, por exemplo, da concedida em fevereiro de 1945 ao jornalista Carlos Lacerda pelo político paraibano José Américo de Almeida e publicada pelos jornais Correio da Manhã e O Globo, em que fazia duras críticas à ditadura de Getúlio Vargas. Ainda sobre a experiência brasileira, cabe destacar outros dois marcos importantes. Um deles refere-se às entrevistas publicadas pelo semanário alternativo O Pasquim, reconhecido por sua irreverência e oposição 5 É o que o autor chama de “segundo jornalismo”, a fase que seguiu ao “primeiro jornalismo” (1789-segunda metade do século 19), período em que houve a profissionalização do jornalismo e que o conteúdo era marcado por um tom fortemente político e literária. 189 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar ao regime militar. Outro grande momento foi a criação da seção “Páginas Amarelas”, da Revista Veja, em junho de 19696. 4 O segundo narrador Para analisar recursos narrativos empregados em entrevistas pingue-pongue, valemo-nos dos conceitos de Luiz Gonzaga Motta sobre narrativa e narrativa jornalística. O autor entende a narrativa como algo inerente ao ser humano e que permeia toda a nossa existência. Trata-se da forma por meio da qual organizamos nossas ideias, opiniões e lembranças e, ao organizá-las, atribuímos sentido às nossas experiências e formamos conceitos e identidades – inclusive a nossa própria identidade. “Construímos um autossignificado singular: nosso eu se transforma em um conto, um relato valorativo”. (MOTTA, 2013, p. 27) Não por acaso, estamos permanentemente contando estórias sobre nossas vidas, elaborando e transmitindo, das mais variadas formas, pequenos relatos a respeito do que vivenciamos e testemunhamos, nos quais estão impregnados nossos julgamentos e intencionalidades. É também por meio de narrativas que construímos representações do mundo material e social. O cânon organizador da experiência é narrativo, mais que conceitual. Ao ordenar suas ideias em pensamentos coerentes em busca de significados, os sujeitos encadeiam as relações possíveis na forma cronológica ou causal, estabelecendo provisoriamente um antes e depois, um antecedente e um consequente, uma causa e uma consequência, até chegar ao senso comum partilhado. Sem uma ideia condutora, os dados da experiência se amontoariam como grãos de areia sem organizar-se unidade [...] (MOTTA, 2013, p. 31) Se há uma narrativa, há um narrador. Conforme Motta (2012), o narrador é o agente que enuncia a narrativa e que se vale de estratégias e artifícios discursivos para orientar, em uma determinada direção, a compreensão de seu destinatário (ouvinte, leitor, interlocutor, etc). No caso da narrativa jornalística, esse poder de voz emerge de três esferas. São, portanto, três narradores: o veículo (primeiro-narrador), o 6 A maioria das entrevistas citadas nesta seção constam, na íntegra, na antologia A Arte da Entrevista (1995), organizada por Fábio Altman. 190 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar jornalista (segundo-narrador) e o personagem (terceiro-narrador). Assim, em qualquer notícia ou reportagem, a enunciação parte do veículo, seja jornal, revista ou outro, que com base em seus interesses comerciais e ideológicos exerce o papel de atrair audiência à estória através de uma apresentação sedutora; do profissional responsável pelo conteúdo, que, subordinado ao veículo, é quem enuncia propriamente a narração, ou seja, quem organiza o relato com o desejo de contar uma boa estória; e o personagem, ou seja, os atores sociais que são ouvidos como fontes e que vão se manifestar no interior do relato. (MOTTA, 2012) Se aplicarmos essa sistematização às entrevistas pingue-pongue, podemos concluir que, em cada uma delas, os narradores são: a revista ou jornal em que é publicada, o entrevistador/autor do texto e o entrevistado. Silva (2007), aliás, já havia se dedicado a essa análise. Segundo ela, há uma complexa interação discursiva nas entrevistas pingue-pongue. Entrevistado e entrevistador são, conforme ela, os “autores” das entrevistas face a face. Porém, ao ser transformada em produto jornalístico (no texto que é publicado), a entrevista passa por uma reenunciação, processo pelo qual são responsáveis tanto o jornalista/entrevistador quanto os seus superiores hierárquicos, à luz dos valores do veículo no qual estão inseridos. A utilização de recursos narrativos em entrevistas pingue-pongue surge justamente nesse trabalho de acabamento. Isso significa que nossa análise se volta à instância do segundo-narrador. Sobre este, vale acrescentar: “[...] ele inclui, exclui, destaca, hierarquiza segundo seus valores pessoais, profissionais e os interesses do jornal ao qual está subordinado que ele assimila como uma cultura profissional, e de acordo ainda com a sua complexa ‘negociação’ com as fontes”. (MOTTA, 2012, p. 32) 5 Sobre as entrevistas na revista Playboy Quando nos deparamos com uma entrevista pingue-pongue, estamos diante de uma transcrição pura e simples das falas do entrevistado e entrevistador? O uso de recursos narrativos nos textos das entrevistas é um dos indicativos de que a resposta a essa pergunta é negativa. O corpus deste estudo consiste nas entrevistas reunidas em As 30 melhores entrevistas de Playboy. Trata-se de uma coletânea em livro, cuja primeira edição saiu em 2005, de 30 entrevistas no formato pingue-pon- 191 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar gue publicadas entre 1975 e 2005 pela Revista Playboy, da Editora Abril. As entrevistas foram selecionadas, dentre as 348 publicadas neste período, pelo jornalista Luiz Rivoiro, ex-editor da Playboy. Como já citado anteriormente, a Playboy7 tem nas entrevistas pingue-pongue uma de suas marcas. Elas estão presentes desde o seu primeiro número no Brasil, em agosto de 1975, quando ainda circulava com o nome Homem. Seus principais traços identitários, que obedecem ao padrão praticado nas edições norte-americanas, são: o nome do entrevistado como título; a frase “uma conversa franca com...” como subtítulo; um pequeno texto de abertura apresentando o entrevistado e o entrevistador e o uso de recursos narrativos nas perguntas e respostas – o que justifica a escolha do corpus. A partir de análise de toda a coletânea, identificou-se um conjunto de artifícios narrativos recorrentes nas entrevistas pingue-pongue de Playboy, os quais serão ilustrados agora. a) Perguntas suscitadas por respostas. Uma pergunta feita pelo entrevistador remete à resposta do questionamento anterior. Em alguns casos, esse “encadeamento” se estende por longos trechos das entrevistas. Um exemplo pode ser observado na entrevista com o músico Tom Jobim, realizada pelos jornalistas Ruy Castro e Ana Maria Bahiana, publicada na edição de setembro de 1988. “[...] Você já fez música para cantar alguém, no sentido de conquistar? Olha, cada canção que eu fiz é uma moça que eu não comi. Uma vez eu disse isso pro Millôr Fernandes e ele rebateu com a seguinte frase: ‘Pois cada canção que eu não fiz é uma moça que eu comi’ [risos]. Naturalmente, ele disse aquilo brincando. Mas para as coisas darem certo não precisa de canção, não. O mundo não está aí? Não se reproduz tão bem sem canção? Então, não tem esse negócio. Mas é claro que uma canção ajuda. Ou seja, se você já tem esse talento, é uma a mais para a conquista, certo? Ah, sem dúvida. O violão é uma arma, o piano é outra. Na hora de compor, o truque é deixar em branco o espaço em que deveria entrar o nome dela. [...]” 7 A revista foi fundada em 1953 nos Estados Unidos e circula regularmente desde então. 192 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar b) Entrevistado se dirige ao entrevistador. O entrevistado, em suas respostas, se volta diretamente ao entrevistador. Pode-se observar um exemplo disso em trecho da entrevista concedida pelo boxeador Mohammed Ali ao repórter Lawrence Linderman, publicada na edição de dezembro de 1975. “[...] Quer ouvir alguns dos meus pensamentos? Tenho outra escolha? Ouve só: ‘O homem sem imaginação tem os pés na terra; ele não tem asas, não sabe voar”. E este: “Quando estamos certos, ninguém se lembra; quando erramos, ninguém se esquece”. Gosto muito deste, ouve só: “A riqueza do homem está no conhecimento; não está no banco. Se estiver no banco, ele não possui, porque está no banco”. Pegou todos, hein? Peguei, Mohammed. Então tem mais: ‘O carcereiro está em pior situação do que o prisioneiro, porque, enquanto o corpo do prisioneiro está fechado, é a mente do carcereiro que está aprisionada’. Sábias palavras de Mohammed Ali [...] Um pouco piegas, não é, Ali? Na hora que eu te vi, percebi logo que não era um cara inteligente. Mohammed Ali é muito mais profundo do que o boxe, meu filho. [...]” c) Interjeições do entrevistador. O entrevistador não apenas pergunta, como também comenta, ironiza, brinca, reage a declarações. Observa-se esse traço no seguinte trecho da entrevista feita pelo jornalista Ivo Cardozo com a apresentadora de TV Xuxa e publicada em agosto de 1983. “[...] Você ainda não tinha se iniciado sexualmente? Não. Não é estranho, você namorando jogadores de futebol, homens feitos, e não haver transação? Como você conseguia isso? Esse garoto chamado Jacaré não queria me namorar, porque eu não transava, e durou pouco tempo. [...]” d) Transposição da linguagem coloquial. O modo de fala do entrevistado é preservado, com gírias, vícios de linguagem e tom coloquial. É possível perceber essa característica na entrevista concedida pelos fun- 193 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar dadores da revista O Pasquim (Ziraldo, Jaguar e Ivan Lessa) a Zuenir Ventura, Fernando Morais e Fernando Pessoa Ferreira, publicada em março de 1977. “[...] Quem era Murilo Reis? JAGUAR – Era um camarada que trabalhava com o Altair, da Distribuidora da Imprensa, uma distribuidora de jornais e revistas aqui do Rio. Mas, peraí, deixem eu primeiro contar os antecedentes... [...] e) Descrição da postura do entrevistado. Não apenas as respostas são transcritas, mas também a postura/comportamento do entrevistado: risadas, pausas na fala, reações a comentários do entrevistador, gestos. É o que ocorre, por exemplo, na entrevista concedida pelo cantor Tim Maia a Ruy Castro e publicada em julho de 1991. “[...] Você pensa mais em sexo hoje do que, digamos, há uns 20 anos? Vamos ver. Eu estava cantando no People, sentou uma comadre com umas coxas, que eu fiquei cantando de olho nela o tempo todo. Tentei falar com ela, dar um disco, mas o namorado não deixou. [divagando] Sexo é coisa gostosa. Assim de mulher bonitas no Brasil. [...]” f) Descrição de elementos extra-diálogo. O texto faz referências para além do diálogo em si, descrevendo o ambiente em que a conversa se deu e interferências que ocorreram durante a entrevista. A abertura da entrevista feita por Josué Machado com Luiz Inácio Lula da Silva (na época, líder sindical), publicada em julho de 1979, ilustra claramente o uso desse recurso, assim como outros citados anteriormente. “[...] Lula, que tal posar nu para a PLAYBOY? [rindo] Quando você falou sobre a entrevista, eu cheguei pro Djalma Bom [diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo] e disse: ‘Vou posar pelado pra PLAYBOY”. E o Djalma, puto da vida: ‘Nem fodendo, nem fodendo’. Aí eu aguentei sério e comecei a explicar: ‘Pô, Djalma, que é isso? Não é o sindicato que vai posar pelado. Sou eu, o Lula. Isso não tem nada com o sindicato. Eu quero, vou ganhar um dinheiro, sabe? Dizem que as mulheres estão querendo saber como é o 194 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar metalúrgico, querem saber se ele tem pinto de ferrou ou não’. O Djalma não quis saber: ‘Não, nem fodendo. Espera aí que nós vamos fazer uma reunião da diretoria. Você tem que se preservar, não pode ficar entrando nessas, não!”. Djalma acreditou, rapaz! [pausa] Quer ver a Marisa ficar uma vara também? [grita para a cozinha]: ‘Marisa, vem cá! O quarto tá arrumado?’. MARISA [chegando] Está. LULA [sério] Eu vou tirar umas fotos pelado. MARISA [rindo] Magina! LULA - São poucas fotos. MARISA [rindo, ainda meio incrédula] Ah, não inventa, vai, Lula. É tão ridículo! LULA - Vai, mulher, está com ciúme de mim! Vai, não precisa ficar vermelha. Arruma lá a cama que eu preciso posar pelado, vai. MARISA - Você não tem vergonha, Lula? [...]” Importante ressaltar que os trechos transcritos foram selecionados apenas como exemplos, mas os recursos narrativos identificados são comuns a praticamente todos os textos analisados, o que permite inferir que constituem um padrão de entrevista pingue-pongue praticado pela Revista Playboy. 5 A estória de uma entrevista O questionamento que naturalmente decorre da identificação de artifícios discursivos empregados reiteradamente nas entrevistas da Revista Playboy é: por que utilizá-los? À luz da bibliografia que nos serve de base, conclui-se que o uso desses recursos de linguagem não é aleatório e tampouco gratuito, e sim intencional. O segundo-narrador dessas entrevistas, que é o entrevistador e o responsável pelo acabamento estilístico do texto, emprega-os estrategicamente como forma de orientar a interpretação do destinatário (leitor) a respeito do seu objeto (o entrevistado). Em outras palavras, vale-se desses recursos para garantir com que a representação que se busca construir do entrevistado seja facilmente compreensível para o leitor. Um dos traços mais marcantes das entrevistas analisadas é a presença do entrevistador, que se evidencia tanto no encadeamento entre perguntas e respostas,quanto nas interjeições e nos momentos em que 195 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar o entrevistado se dirige diretamente a ele. Ao contrário do padrão praticado em outros veículos, as perguntas não são enunciadas de forma impessoal. Com isso, o entrevistador ganha “visibilidade” e torna-se um personagem da “estória” tanto quanto o entrevistado – não por acaso, o entrevistador é sempre apresentado na abertura do texto. Isso confere um “verniz dialógico” ao texto: ao invés de um questionário pré-elaborado e submetido a um entrevistado tal qual um formulário, o que lemos é o relato de uma conversa, que evolui e toma rumos os mais diversos em seu próprio desenrolar. Nesse ponto, é interessante evocar novamente Silva (2007, p. 127), que afirma que a intenção do segundo-narrador de uma entrevista pingue-pongue é oferecer ao leitor a sensação de que está testemunhando a situação da conversa: O autor, tendo em vista seu projeto discursivo, tenta “projetar” no seu leitor a impressão de que, ao ler uma entrevista pingue -pongue, ele (o leitor) está “presenciando” uma conversa face a face entre jornalista e entrevistado, dessa forma, o autor do gênero busca fazer com que seu leitor se ‘sinta’ como se estivesse frente a uma entrevista face a face. A entrevista pingue-pongue torna-se, portanto, uma espécie de “cena” de um diálogo entre duas pessoas, uma sequência cronológica de fatos com começo, meio e fim – é a “estória de uma entrevista”. O objeto do texto não é a fala do entrevistado e, sim, este diálogo – que pode ter momentos de descontração ou até mesmo de tensão, como restou demonstrado em trechos reproduzidos anteriormente. Cabe aqui, aliás, transcrever outro excerto da entrevista com a apresentadora Xuxa em que o protagonismo do entrevistador é evidente. “[...] Aos 17 anos eu só tinha transado com um cara. E como foi que aconteceu? Ah, tu acha que eu vou te falar tudo? Acho. Isto é uma entrevista. Mas dá um tempo... [...]” O que se observa é que nessa relação dialógica com o entrevistador emergem muitas ofertas de sentido a respeito da personalidade e do perfil do entrevistado. Nesse ponto, vale recorrer novamente à entrevista com o boxeador Mohammed Ali. Vê-se, no trecho transcrito anteriormente, que foi o próprio Ali quem tomou a iniciativa de recitar versos de sua autoria, que seguiu citando-os à revelia da falta de interesse do entrevistador e que se mos- 196 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar trou incomodado e até “xingou” o entrevistador quando este criticou as suas qualidades enquanto poeta. Presume-se, portanto, que ao transcrever essa passagem da conversa (que poderia ter simplesmente sido deixado de fora do texto final, já que o segundo-narrador possui autonomia para isso), o que se procurou mostrar é que o entrevistado é uma pessoa vaidosa e arrogante. Da mesma forma, os demais recursos identificados – a preservação do modo de fala do entrevistado, a descrição de sua postura durante a conversa e as referências a elementos extra-entrevista – também compõem essa “estória” e oferecem significados sobre a pessoa do entrevistado – como são, o que pensam, como se comportam, como tratam os outros. A abertura da entrevista com Luiz Inácio Lula da Silva é, nesse sentido, emblemática. A reprodução da piada feita por Lula com sua esposa, quando mentiu a ela que tiraria fotos nu para a Playboy, não parece ter outra função que não a de revelar o perfil do personagem: percebe-se, por exemplo, que ele estava à vontade na situação da entrevista e que é um homem brincalhão e piadista. Já o fato de ele usar palavrões e termos populares em sua fala sugere que é um sujeito de origem simples e descontraído. Através desses artifícios, portanto, o leitor é induzido a formar uma determinada imagem do entrevistado. Ao se valer desses artifícios, o entrevistador age intencionalmente, porque o que espera é exatamente que o leitor assimile essa imagem. Vale lembrar Motta (2012, p. 12): “O sentido narrativo de uma estória provém, portanto, não apenas dos conteúdos, mas também dos artifícios discursivos postos em prática em um ato comunicativo em contexto”. Essas constatações deixam claro que a entrevista pingue-pongue está longe de ser uma transcrição literal da entrevista face a face. O uso estratégico de recursos narrativos escancara o fato de que o conteúdo da entrevista passa por uma reenunciação para que sirva ao intuito do segundo-narrador, que é constituir uma representação de uma figura pública. Ou seja, nesse processo de reenunciação, uma valoração é agregada ao entrevistado. É por isso que Silva (2007, p. 91) afirma que toda entrevista pingue-pongue é “um discurso representado”. [...] ao enquadrar o discurso do entrevistado, o autor o faz ‘umedecido’ de julgamentos de valor. A partir da análise dos dados, consideramos que jornalista, editor e leitor são os participantes diretos da situação de interação discursiva do gênero entrevista pingue-pongue, mas que esse gênero cria um ‘efeito’, ou melhor, deixa ‘transparecer’ um ‘vestígio’ dos participantes da interação da entrevista face a face, em que os interlocutores da situação 197 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar de interação discursiva são constituídos pelo jornalista e pelo entrevistado. (SILVA, 2007, p. 91) Curiosamente, esse tratamento que é dado ao conteúdo das entrevistas serve, em muitos casos, justamente ao propósito de gerar a aparência de uma reprodução literal da conversa – ou seja, reenuncia-se para dar a impressão que não houve reenunciação. 6 Considerações finais Não é por acaso que a entrevista pingue-pongue está presente há mais de um século e até hoje ocupa espaço significativo no jornalismo. Também não é por acaso o interesse de pesquisadores pelo tema nos últimos anos. O que restou demonstrado nessa investigação é que, mais do que uma simples forma de apresentação de um conteúdo, esse é um formato que se presta à construção de representações e sentidos que serão compartilhados nas sociedades. Observou-se que o emprego de artifícios narrativos, como ocorre com regularidade no padrão praticado por diversos veículos de grande circulação, consiste na realidade em uma estratégia. Como toda entrevista publicada é, na verdade, uma reenunciação da entrevista face a face (nunca uma transcrição literal), vale-se desses artifícios como forma de potencializar o produto no que toca à sua intenção maior, qual seja, tornar palatável para o leitor a imagem que se deseja compor de um determinado personagem. Procura-se dizer, “nas entrelinhas”, o que a fala pura e simples não é capaz de dizer. Referências ALTMAN, Fábio. (Org.). A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias. 3. ed. São Paulo: Scritta, 1995. BELTRÃO, Luiz. Jornalismo opinativo. Porto Alegre: Sulina, 1980. COSTA, Lailton Alves da. Gêneros jornalísticos. In: MARQUES DE MELO, José. ASSIS, Francisco de. Gêneros jornalísticos no Brasil. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2010. MARQUES DE MELO, José. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no 198 Narrativas do ver, do ouvir e do pensar jornalismo brasileiro. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003. MEDINA, Cremilda. 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